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ADRIANO

SIQUEIRA

ANDRÉ

VIANCO

MARTHA

ARGEL

J. MODESTO

NELSON

MAGRINI

REGINA

DRUMMOND

GIULIA

MOON São Paulo, 2008.

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Adriano Siqueira, André Vianco, Martha Argel, J. Modesto, Nelson Magrini, Regina Drummond e Giulia Moon

Título Original em Português: Amor Vampiro

Coordenação editorial: Ednei Procópio Supervisão editorial: Simone Mateus Revisão: Marcelo Brabão Editoração eletrônica: V2 Capa: Amauri Modesto de Oliveira Impressão: Vida e Cosnciência Gráfica e Editora Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Amor vampiro. — São Paulo : Giz Editorial,2007. Vários autores. ISBN 978-85-99822-76-0 I. Contos — Coletâneas 2. Contos de terror.

07-9936 CDD-869.93

índices para catálogo sistemático:

I. Contos de terror fantástico : Literatura brasileira 869.93

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Sumário

ADRIANO SIQUEIRA

ANDRÉ VIANCO

MARTHA ARGEL

J. MODESTO

NELSON MAGRINI

REGINA DRUMMOND

GIULIA MOON

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O Outro Lado do Espelho

Um encontro entre um vampiro e uma bruxa — Morda-me, Lorde! — dizia Lady Shy, segurando em

meu braço e apoiando-se em meu ombro... — Eu não posso, Shy, não há sentido em querer ser

mordida... eu gosto muito de você como a Bruxa que é. Não quero machucá-la!

— Mas você não pode me machucar... Sou uma bruxa, sou protegida pela Deusa Lua. Não temo vampiros, não temo ser diferente. Além disso, e se eu fosse mordida por outro vampiro? Como iria saber que o meu poder é tão forte para evitar que eu me transforme em Vampira?

Segurei seus braços bem forte: — É loucura, Shy! Ninguém até hoje resistiu a uma

mordida. Você não pode estar falando serio. Esquece isso, por favor... por mim.

— Você vai me morder, seu cretino! Eu estou mandan-do!

Ela bate no meu rosto. O anel fez um ferimento, que sangrava:

— O que está fazendo, Shy?! Fiquei lambendo o sangue que estava em minhas mãos

e olhei para ela com muita raiva. — Estou vendo se você tem coragem de me agredir... Ela ficou na minha frente com as mãos na cintura. Sor-

rindo de uma maneira sórdida. — Faça alguma coisa, seu idiota!

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Novamente seguro seus braços e abro a boca, direcio-nando-me ao seu pescoço. Eu tinha que fazer aquilo... Ela es-tava me provocando. Shy era muito esperta! Sabia como con-seguir o que queria...

Quando cheguei perto do seu pescoço, ela me agarrou forte. Ela queria isso... Eu finalmente mordi! Ela sentia cada mordida.

Seu sangue, no começo, parecia ser difícil de sair, mas depois ficou cada vez mais doce. Ela segurava meu cabelo... Quase arrancando! Não gritava, apenas soltava alguns soluços pequenos... Ela estava chorando.

Eu a agarrava cada vez mais forte! Ela estava muito ca-rinhosa... Começou a me beijar e eu aprofundei minhas presas em seu pescoço!

Isso não era normal... Humanos normalmente já estari-am mortos!

Shy era forte. Enquanto arrancava cada gota de sangue de seu corpo, ela se sentia mais carinhosa e mais desejada. Eu não entendia o que estava acontecendo...

— Vamos, Lorde... Mostre mais! Cada suspiro era substituído por um lamento e meus

olhos lacrimejavam por estar fazendo aquilo com minha ama-da.

Eu estava excitado; queria fazer tudo com ela. Nunca me senti assim. Ela estava tirando minha roupa... não acredita-va! Suas mãos passando sobre meu corpo... Por um momento, pensei ser a vítima de Shy! Seus olhos queimavam de desejo e fome. Eu só estava observando a maneira de ela agir e podia dizer que aquela não era a Shy que eu conhecia... ela estava tomando conta da situação. Seus dentes estavam mais afiados, seus olhos... Ela não parava de me olhar.

Estava me mordendo, me arranhando. Meu sangue apa-recia por todo o corpo e logo em seguida desaparecia, com o seu beijo mortal... Ela tinha ficado tão forte quanto eu. Rasga-va facilmente os lençóis e as roupas, como se fosse papel. Suas

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mordidas estavam mais fortes, eu gritava em meio à dor e ao prazer. Ela sabia exatamente como fazer... e como sabia! Mas ela gritava, gritava muito, e ria o tempo todo. Nunca em minha vida tinha visto mulher com tamanha fome, tamanha força, tamanha magia... Era Shy que estava fazendo tudo isso, eu es-tava à sua mercê. De caçador, transformei-me em vítima, e era prisioneiro de suas artimanhas sensuais! Escutei um grito, mis-turado com uma fúria que chegou a me assustar. Ela parou e me abraçou.

Shy, mais calma e chorando em meu ombro, disse, meio que soluçando:

— São muitos desejos, muitas culpas, muitas batalhas... Como você agüenta tudo isso? Como isso não te sufoca?

Seu corpo estava quente. Ela ficou apenas algumas ho-ras como uma vampira. Agora estava “humana” novamente.

Que poderes Shy teria para sobreviver à mordida de um vampiro?

Passei a mão em seu rosto e dei um sorriso. Uma de suas lágrimas havia caído em minhas mãos. Levemente, eu a deitei e puxei o travesseiro para que ela

ficasse mais confortável. Beijei-a bem devagar. Ela estava com sono... Ficou segurando a minha mão, até que finalmente a-dormeceu...

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O Dia dos Vampiros

Eram oito horas e chovia muito. Alberto acabava de voltar da loja de fantasias. Foi buscar a sua roupa de vampiro e como já estava bastante atrasado, vestiu a fantasia lá mesmo. Correu para esquina, que era o lugar marcado pela sua esposa Jéssica para pegá-lo.

Ele tinha de esperá-la. Essa dependência o deixava lou-co. A fantasia estava cada vez mais molhada. Ele praguejava muito. Se não fosse por causa do dinheiro, Alberto já a teria largado. Foi por isso que ele se casou, por dinheiro, mas o pai dela era esperto e jamais autorizou a filha a comprar sequer um carro para ele. Como ela tinha de buscar a roupa dela, deixou Alberto na loja e foi se arrumar dizendo que iria voltar para buscá-lo. Ele procurou se acalmar e respirou fundo. Afinal era uma noite especial! Nela, se comemorava o Dia dos Vampiros. Ele adorava este tema. Alguns bares e casas noturnas come-moravam este dia e os freqüentadores se vestiam a caráter.

Alberto ficou reclamando até ser surpreendido por um raio que atingiu um poste. Este estava caindo em sua direção, mas foi impedido por um homem. Ele segurou o poste e o jogou para outro lado evitando a sua morte. Antes de Alberto conseguir agradecer, um outro raio apareceu e o homem desa-pareceu sem deixar pistas e junto com ele a chuva parou com-pletamente. O chão estava completamente seco e não havia sinais de que havia chovido. Somente Alberto estava molhado.

Ainda sentado no chão, embasbacado com a cena, Al-berto sentiu o cano de uma arma em sua cabeça.

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— Nós o pegamos! Avisem a aldeia que o vampiro está em nossas mãos! Agora!

Muitas pessoas armadas com inúmeros tipos de armas diferentes estavam na rua. Alberto não entendeu o que estava acontecendo. Nada era como antes. As ruas, as casas estavam diferentes. As roupas das pessoas eram muito antigas.

A mulher gritou no meio da multidão: — Sim, foi ele! Ele matou minha irmã! Sugou todo o

seu sangue! Arrancou a sua cabeça e jogou os seus restos para os lobos!

Alberto desesperou-se. Eles estavam procurando um vampiro e ele usava as roupas de um. Começou a gritar em protesto. Mas os homens não davam ouvidos. Queriam justiça. Alberto foi alvejado ali mesmo, sem ter o direito de poder ex-plicar ou mesmo entender o que se passou. Com o corpo per-furado pelas balas, os homens atacaram novamente, mas desta vez, com estacas. Deixando Alberto com várias estacas atra-vessadas pelo corpo.

A multidão se afastou e um padre foi até o seu corpo. Retirou a espada da bainha e cortou-lhe a cabeça, recolheu-a do chão e mostrou para os outros dizendo:

— Finalmente destruímos o vampiro. Nunca mais te-remos problemas com a sua espécie. Estamos entrando em uma nova era de paz para a comunidade!

No mesmo lugar. Alguns séculos depois, uma mulher dirigindo um carro pára na esquina e vê um homem usando uma roupa de vampiro... Ela sorri.

— Vamos Alberto! Estamos atrasados. Hoje é o dia dos vampiros. Esta noite será maravilhosa!

Ela levou um susto quando descobriu que não era o seu marido. Tentou gritar, mas a voz não saiu. Ficou olhando para os seus olhos negros. Aos poucos, sucumbiu completamente

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ao seu poder. Ela abriu a porta do carro. O vampiro entrou e sorriu. Segurou uma de suas mãos enquanto acariciava os seus cabelos.

— É uma honra ter um dia só para mim. Meu nome é Lorde Dany Ray I. Qual é o seu?

— Jéssica! Meu Lorde. — Seus olhos lembram os de uma bruxa que conheci

no passado. Moramos juntos por algum tempo até que uma outra bruxa a matou e disse ao povo da aldeia que eu era o assassino. Minha ira foi tão grande que fui até a aldeia para vingar a sua morte. Arranquei a cabeça dela e joguei para os lobos. Porém, a reação da comunidade não foi muito cativante e pela primeira vez tive de fugir quando encontrei um homem usando uma roupa parecida com a minha. Eu o ajudei e tentei alertá-lo de que seria caçado, mas por algum motivo místico acabei vindo para este mundo desconhecido. Você entende o que estou falando, Jéssica?

— Claramente, meu Lorde! Acredito que o homem seja o meu marido. Acho que ele teve o que merecia. Meu pai en-viou umas provas mostrando que ele me traiu com várias mu-lheres e usou o meu dinheiro para pagar as contas. Meu Lorde! Posso ser muito útil. Pratiquei bruxaria por um bom tempo e espero que meu conhecimento seja bem aproveitado para os seus serviços.

— Tenho certeza que será, minha dama. Em um futuro próximo.

O Lorde segurou a mão da Jéssica e ficou cheirando o seu perfume.

— Fico me perguntando como um homem poderia trair uma mulher tão linda e cheirosa como você! — ele se acomo-dou no banco do carro e falou pensativo.

— Agora leve-me para um lugar onde eu possa apren-der um pouco mais sobre o seu povo e sobre este dia dos vampiros.

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Obediente aos seus comandos Jéssica levou o Lorde até a festa em que iria com o seu marido. No caminho o Vampiro ficou atento e absorveu rapidamente a cultura desta nova épo-ca.

— Afinal, o seu mundo não é muito diferente do meu. Apesar das novas invenções, os homens ainda insistem em divulgar a sua própria imagem nelas! A beleza e o poder ainda são cobiçados por vocês!

Quando o carro de Jéssica pára em um semáforo eles são atacados por dois bandidos.

— Sai do carro! Isso é um seqüestro! O vampiro percebeu rapidamente que eram ladrões des-

ta época. Usou o seu olhar sobrenatural e começou a dar su-gestões para um dos bandidos.

— Seu amigo fez amor com a sua mulher várias vezes! Atire nele!

O bandido acreditou nas suas palavras. Apontou a arma na cabeça do amigo dele e atirou sem dar tempo para reação. O vampiro atacou sem compaixão, mordeu o pescoço e arran-cou a cabeça do bandido para que ele não se transformasse em vampiro. Um táxi se aproximou e o motorista perguntou o que havia acontecido. O Lorde sorriu e respondeu:

— O estresse desta cidade fez com que este pobre ho-mem perdesse a cabeça!

Jéssica chegou ao local planejado, estacionou o carro na frente de uma mansão e juntos entraram na festa.

O lugar estava agitado. As pessoas dançavam e come-moravam o dia dos vampiros. O Lorde observou a festa com muita atenção. Notou um banner pendurado que dizia “Dia dos Vampiros — 13 de agosto”.

Algumas pessoas passavam perto deles e mostravam os seus caninos postiços. Um deles foi bem mais ousado, alem de mostrar os caninos agarrou a Jéssica e tentou morde-la. Isso deixou o Lorde enfurecido. Ele veio de um mundo onde o cavalheirismo e a cortesia eram atitudes cotidianas. Pelo me-

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nos, ate o dia que fora caçado. Ele tinha de reconquistar o seu respeito. Agarrou o pescoço do humano e o trouxe bem para perto de si. O rapaz mostrou os dentes postiços e o lorde mos-trou os dele, bem maiores, como os de um leão, mas o lorde percebeu que ele não era um perigo. Largou o rapaz e conti-nuou andando com Jéssica. O rapaz gritou para o Lorde.

— Seus dentes são perfeitos! Pode me dar um autógra-fo?

Jéssica deu para o Lorde o papel e uma caneta e ele es-creveu: Lorde D.R.I.

— Legal! Depois me passa o telefone do seu dentista! Vou querer os caninos iguais aos seus na próxima festa!

A música estava mais calma e alguns pares se juntaram na pista de dança. O Lorde abraçou Jéssica e aos poucos seus movimentos foram acompanhando a música. Ele sussurrou:

— Preste atenção Jéssica. Quero que me abrace bem forte... Vou mostrar um pouco do meu poder.

O lorde flutuou e foi subindo até chegar a um metro do chão. Todos que estavam na pista aplaudiram achando que fosse parte do show. Quando ele voltou a colocar os seus pés no chão, afastou Jéssica, levantou as mãos e com apenas um gesto, as luzes do lugar aumentaram de intensidade. Alguns pequenos raios passavam de um lado para o outro. Entrando e saindo das luzes. De repente todas as luzes se apagaram e uma pequena iluminação apareceu bem no centro da pista. Um lo-bo branco surgiu e saltou sobre as pessoas espantadas. O ani-mal correu pelas paredes do lugar. Depois de algumas voltas saltou na direção de Jéssica, mas antes de tocar em seu corpo com as suas enormes patas, o lobo se transformou em uma coruja branca. A coruja ficou alguns segundos parada, apenas batendo as suas asas, logo em seguida, pousou suavemente no braço da Jéssica. Ela deu um beijo na coruja e tudo voltou a escurecer.

Quando a luz voltou, o Lorde e Jéssica estavam no meio da pista se beijando. As pessoas, impressionadas, come-

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çaram a aplaudir. Depois do beijo, Jéssica deu um sorriso para o Lorde e sussurrou no seu ouvido.

— Você foi perfeito, meu Lorde. — Obrigado minha dama. Mas confesso que estou com

fome. Jéssica fechou os olhos e movimentou o seu pescoço

em direção ao vampiro, mas ele acariciou o seu rosto e o dire-cionou para os seus olhos.

— Ainda não, minha dama! Preciso de você para me dar proteção quando amanhecer. Meus poderes enfraquecem de dia e ainda não tenho onde me esconder...

Antes de completar o seu raciocínio as luzes do palco que ficava em frente a pista de dança se acenderam. Uma pes-soa usando um capuz, foi para o centro do palco, pegou o mi-crofone e começou a falar.

— Amigos vampiros! Chegou a hora de nos reunirmos para o grande momento desta festa! Todos sabem que hoje é o dia dos vampiros. Hoje! É o dia em que todos os vampiros aparecem para nos dar boas vindas e mostrar como o nosso mundo pode ser melhor! Este é o momento de contarmos a nossas histórias! Como sou o anfitrião eu escolho quem será o vampiro que vai nos contar um pouco da sua vida. Chamo pa-ra o palco aquele vampiro que a instantes nos deu um maravi-lhoso show de mágicas com lobos e raios.

Todos olharam para o Lorde. Ele olha para Jéssica e sorri. Tornou a olhar para o palco e caminhou em direção do anfitrião. Dispensou o microfone, deu uma boa olhada nas pessoas que estavam na festa, levantou as mãos, e começou a falar. A sua voz era forte como um trovão.

— Estou há pouco tempo por aqui, e neste pouco tem-po, já aprendi muito sobre os costumes deste novo mundo! Vocês vivem em um lugar onde os cientistas produzem inven-tos para recuperar o que eles mesmos destruíram. Querem fi-car livres. Livres dos bandidos, das doenças, dos que atormen-tam vocês! Darei o poder que vocês precisam para vencer to-

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dos os obstáculos deste mundo! Eu perdi uma batalha no pas-sado. Estava sozinho. Mas agora! Juntos! Somos imbatíveis! Para que o mundo precisa de bandidos? Para que servem os que só pensam em destruir’ Eu digo a vocês... Eles serão nos-sos alimentos. Serão nossa fonte de energia. Em troca da ajuda de vocês, darei conhecimento. Darei um lugar para ficar e um mundo para governar! Serei seu arauto! Seu anjo da morte! Em troca quero respeito e principalmente... sua lealdade!

O Lorde gesticulou as mãos e se transformou em um morcego. Voou por todo o local e voltou ao palco, agora em sua forma original. Todos aplaudiram o vampiro. O Lorde o-lhou e ficou satisfeito com o resultado das suas palavras.

De repente, ele sente uma estaca atravessando o seu peito. Foi pego de surpresa. Olhou para o anfitrião. Ele tira o capuz e o vampiro o reconhece imediatamente. Era o padre que o caçava em outra época. O vampiro cai de joelhos. Olhou para as pessoas, finalmente viu Jéssica. Ele tenta pedir ajuda. Ela olhou e mesmo não estando mais em seu domínio, chora, e antes que o vampiro pudesse dizer algo, seu corpo caiu inerte ao chão e se transforma em cinzas.

O anfitrião presenciou um pequeno tumulto no local. Ele pedia calma para todos. Começou a falar no microfone.

— Eu criei este lugar! Eu reuni cada um de vocês para poder um dia achar um verdadeiro vampiro! Era a ordem da minha família! Era o meu legado! As cartas da minha família alertaram sobre a sua vinda!

O anfitrião pisou nas cinzas do lorde e voltou a falar pa-ra todos.

— Talvez ele pudesse realmente resolver nossos pro-blemas, mas quando acabasse com todos os humanos despre-zíveis da terra qual seria o seu próximo passo? Quais seriam os próximos tipos de pessoas de quem ele iria se alimentar? Quem joga lixo na rua? Quem faz colas na prova? Ele iria ex-terminar todos os humanos usando como desculpa os erros que cometemos. Seria assim até não existir mais ninguém.

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As pessoas que estavam ouvindo o anfitrião discutiam os seus pontos de vista! Alguns diziam que ele não tinha o di-reito de exterminar um vampiro. Outros concordavam com a sua ação. No meio de tudo isto, Jéssica se aproximou cautelo-samente do palco e recolheu todas as cinzas do vampiro. Na-quela pequena troca de olhar que tiveram, antes de ele ser des-truído, foram passados todo o conhecimento que ela precisava para reviver a criatura.

Obs: O DIA DOS V A MPIROS “13 de agosto” foi criado pela a-triz/ escritora Mariliz Marins (criadora e intérprete da V ampira LIZ-VAMP, filha do ZÉ DO CAIXÃO).

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A Grande Chance

Melissa... Um nome que, para mim, significa tudo. A garota mais linda da minha classe. Loira, de cabelos

longos e um sorriso lindo que destaca claramente uma pinta bem do lado esquerdo, em cima da boca. Quando ela passa um batom vermelho e pinta as unhas com cores claras e coloca aquelas flores de decalque, é difícil não reparar em seus gestos. É como se posasse o tempo todo para as câmeras. Coisa de filme mesmo. Às vezes, até embaçava os olhos para dar aquele clima romântico que vejo nos filmes da sessão da tarde.

É hoje que vou encontrá-la. Finalmente consegui que meu amigo, Tito, organizasse uma festa para nos encontrar-mos. Uma dança! Esse é meu plano. Quando ela estiver na pista vou dar um toque para o DJ e ele rapidamente vai colo-car uma música para eu convidá-la a dançar. Um plano que nunca falha. Quando eu der o beijo fatal, vou mostrar o anel que comprei para a gente ficar. Podem não acreditar, mas quando vi esse anel, vi o rosto dela.

Nossa! Fiquei sonhando com o meu plano e já estou a-trasado! Prometi que estaria na festa às 19:30 e já são 19:45. E a droga da minha irmã não sai do banheiro!

— Já saí! É todo seu. — Sai! Sai da frente... — Mãe! Olha o Cacá de novo. — Menino! Toma juízo ou fica de castigo a noite toda. — Está bem! É rapidinho, mãe! Hoje é muito impor-

tante. — Sei! Mais um plano para conquistar a Melissa!

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— Cala a boca! — Mãe! Depois de muita encrenca, consigo me arrumar e saio

correndo para a casa do Tito! Já são 20:00. Ouvi a minha mãe gritando comigo, mas já estava na

rua, correndo. Um carro buzinou e com o susto dei de cara com uma árvore que estava no caminho.

Depois da dor de cabeça por causa da pancada, conti-nuei meu caminho.

A festa estava bem animada. Tão cheia que parte do pessoal estava com garrafas bebendo no quintal. Deve estar um calor muito forte lá dentro... Eu já estou suando. Esse ter-no não foi uma boa idéia.

Estava ouvindo uma música, bem daquelas para dançar junto. Cheguei na hora. O Tito deve ter me visto chegando. Legal! Significa que a Melissa está na festa. Legal! Legal! Estou com a adrenalina a mil por hora. Minhas pernas estão tremen-do muito. Tem muita gente. Acho que vi o cabelo dela lá no meio da sala. Caramba... Eu vi o Tito no som. Ele estava me dando um sinal... Não entendi! Cadê ela? O anel! Droga! Está no meu bolso... Qual deles? Oras... Vê se isso é hora de ficar procurando anel.

Quando o pessoal viu que eu estava indo ao encontro dela, seus sorrisos diminuíram e se afastaram, dando maior visão ao centro da sala...

— Achei o anel! O pessoal ficou me olhando. Eu estava sorrindo quan-

do vi a Melissa beijando aquele cara. Um beijo caloroso e que só podia ser dado por alguém muito, muito apaixonado.

Meu sorriso diminuiu muito. Deixei o anel cair. Ficou rodando... Não sei pra onde... Fiquei olhando e tentando me afastar antes que ela pudesse me ver.

— Cacá! — ela disse. — Que bom que veio. Queria a-presentar meu namorado.

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O cara estendeu a sua mão para me cumprimentar, sem tirar os olhos dela. A outra mão estava acariciando seus cabe-los.

Eu estava suando. Pelo calor. Pela boca que não falava. Pelos olhos que não se abriam. Pela dor. Dor que médico ne-nhum iria curar. Aos poucos, consegui forças para dar um a-perto de mão. Respirei fundo. Naquela respiração suguei todo o ar da sala. Eu disse:

— Estou por aí. — Espere! — ele disse. — Junte-se a nós. — O quê? Ele deu um sorriso e disse: — Você a quer, não é? — Qual é a sua, cara? Esta noite não está sendo das melhores. — Melissa! — disse ele como se comandasse um exérci-

to. — Beije o garoto. Antes que eu entendesse o que estava acontecendo, ela

me beijou e gemia passando as mãos no meu cabelo e em meus ombros.

— Basta! — novamente, aquela voz forte que era maior que a música que tocava. Ela parou na hora e ficou com um olhar vazio, como se nada especial tivesse acontecido. Aos poucos, ela voltou para os braços dele e voltou a sorrir.

— Por que está me olhando assim, Cacá? — Você pode ter esse poder. Por quantas dessas garo-

tas você se apaixonou e perdeu? — Dane-se! — eu estava com raiva dele e com raiva do

que ele fez a Melissa. — Quantas noites você sonha com planos e oportuni-

dades para conquistá-las? — Cara, eu não sei o que você fez, mas eu não vou dei-

xar você sair livre dessa! O pessoal agia como se nada estivesse acontecendo. Era

um pesadelo, só podia ser.

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— Eu posso tudo, garoto! — Eu já disse que não! — segurei o braço dele e disse.

— Eu a amo, eu a quero da forma correta! Do jeito certo, en-tendeu?

O sorriso dele finalmente cessou. Seus olhos eram ver-melhos como fogo. Fiquei um pouco sem ar e meio tonto, até que apaguei e cai no chão.

Aos poucos comecei a escutar as pessoas gritando meu nome e minha vista estava muito embaçada. Mas eu reconhe-cia a voz... Era ela...

— Melissa! — Que bom que você está bem! Ficamos preocupados,

sua mãe ligou pra gente te procurando. E encontramos você aqui. Abrace-me!

Fiquei ali no chão abraçando-a e aos poucos vi final-mente onde eu estava. Perto da árvore.

Quando bati, devo ter desmaiado. Tudo foi um sonho. Ela estava agora comigo. Eu a beijei. E fechei os olhos. Quan-do abri novamente... Meu coração quase saiu pela boca.

Eu vi o cara novamente... Na esquina. Ele estava lá. Me olhando...

Ela viu que me assustei e perguntou por que eu estava assim.

Olhei de novo e ele havia sumido. Aliviado, olhei para ela e disse:

— Quer dançar? — Claro que quero Cacá! Mas antes... Ela olha para o meu pescoço e diz: — Quero saciar a minha sede!

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A Canção de Maria

Ezra suava frio. Não que fosse um dos mais ortodoxos de sua religião, contudo era obrigado a parecer, se não quisesse ser maldito pelas ruas. Já havia olhos demais julgando suas ultimas decisões. Por conta disso, ninguém ficaria sabendo sobre aque-la nova. Bastava seu primo e o velho ambulante, que tinha in-dicado as ferramentas nas mãos e trocado por alguns asses um ídolo Baal pendurado no pescoço. Os amuletos protetores comercializados pelo beduíno na encruzilhada, antes de os romanos passarem no meio da tarde, não levantariam tantas suspeitas quanto sua simples presença ali, na boca do campo sagrado àquela hora da noite. Para entender por que Ezra esta-va ali, a despeito de suas fortes superstições e o avançado da hora, é necessário lançarmos mão de um artifício deveras co-mum nesse tipo de narrativa. Vamos voltar. Voltar ao dia em que ela surgiu na porta dele. A mulher grávida que tinha fugido do apedrejamento meses atrás numa cidade localizada duas semanas acima, pelas trilhas negras que beiravam o rio Jordão. Ezra não precisava ser um supersticioso arraigado para saber que mulher grávida traria azar, bastava o bom senso. No en-tanto, naquele fim de tarde em particular, chovia tanto que o viúvo não teve outro remédio senão deixar entrar aquela jo-vem menina com um fruto quase maduro no ventre. Tão ma-duro que ao entrar da noite, ela começou a se contorcer em gritos e a parteira da vila quase não acreditou quando viu o viúvo lívido, nervoso, na porta da sua casa, como alguns dos pais de famílias novas costumavam ficar. Ezra disse que uma irmã distante por parte de pai tinha aparecido em sua porta e

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que não teve coragem de não ceder abrigo, até mesmo porque a situação fazia muito lembrar seus últimos dias com Saienne, sua esposa, morta durante o trabalho de parto daquele que se-ria seu primogênito. A parteira atendeu Ezra. Correu até a humilde casa do lenhador, tão solicitado pelos agricultores das margens do Jordão, por ser um exímio abridor de corta-fogo nas florestas que circundavam o vilarejo. Lá pelas tantas a jo-venzinha pariu de igual outra jovenzinha. Parteira e lenhador souberam que a mulher chamava-se Maria e que era seu desejo que a menina se chamasse Miriam. Assim a bebê foi chamada desde o primeiro instante. A mãe Maria, no primeiro dia, tran-sitava entre a consciência e a inconsciência em longos turnos, quase colocando louco o lenhador, que ficava às voltas com a pequena Miriam, chorando de fome, enchendo a casa de ber-ros.

Contudo, Ezra não detestava de todo aqueles momen-tos. Foi em um deles, dias depois, enquanto tentava servir leite de cabra diluído em água mineral vinda das fontes hipotermais do Jordão que Ezra pegou-se imaginando como seria se sua amada Saienne não tivesse perecido naquele crepúsculo tão semelhante ao que acontecera poucas noites atrás. Chegou a ver Saienne sorrindo e fazendo cachinhos nos cabelos noviços do bebê Tiago. Então o sorriso de Ezra sumiu e voltou a ver apenas Miriam em suas mãos fortes. Ela era tão pequena que seu corpo cabia quase todo na mão esquerda do lenhador. A-pesar dos calos, ele sabia como tocar com delicadeza, tanto a pele fina da recém-nascida como a testa da mãe que queimava em febre enquanto o homem trocava suas compressas. Num dos turnos em que Maria permaneceu alerta, Ezra providen-ciou água morna tanto para o banho de Miriam quanto para o de Maria. Segundo as crenças da época, a pequena menina não poderia ser submersa em seus primeiros sete banhos e até a mãe deveria ser muito diligente durante o asseio. Aquelas ter-ras eram forradas de crenças e idéias a respeito das vontades

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inacessíveis dos deuses e mais rígida ainda para os fiéis, que tentavam seguir rigorosamente os comandos escritos na lei.

Mirian dormia. Apesar de ser sábado, Ezra tinha saído

para apanhar madeira em seu barracão para alimentar o fogo. Não queria que aquele dia frio trouxesse desconforto para a jovem mãe. Teimoso e novamente desobediente, Ezra assou pão com frutas. A jovem mulher, visivelmente combalida, com olheiras profundas, insistiu em ajudar o bom homem que a tinha acolhido no meio da tempestade. Ezra gastou muito do seu aramaico para convencer a menina a permanecer deitada. O lenhador sentou-se à beira da cadeira rústica construída com suas próprias mãos e vigiou o desjejum da jovem. Depois, ca-lado e de olhos arregalados, viu a bebê fartar-se no leite ma-terno. Maria ia, com o passar das horas, mostrando um aspec-to melhor. Quando o sol avançava para o horizonte, mostran-do cansaço da jornada, querendo deitar e jogar sombra no mundo, a mãe até arriscava um ou outro sorriso. Ezra colocou azeite nas lamparinas. Já não era contra a lei voltar aos traba-lhos. Alimentou o fogo e assou uma ave. A casa simples, con-tudo bastante espaçosa, teria mergulhado no mais profundo silêncio, com a aconchegante penumbra a cercar o trio de mo-radores não fosse a doce voz de Maria a embalar o bebê que tinha desatado a chorar. Miriam se acalmou lentamente e a voz perene, enfeitada pelo canto materno, ressoou até que Ezra, da mesma forma, tombasse no sono na cadeira à beira da mesa observando mãe e filha.

Maria foi baixando o tom da cantiga de ninar. Era uma de suas favoritas. Seu pai, quando ainda vivo, a cantava ao lado de sua cama para acalmar os espíritos que circundavam o leito da criança e acalmava tanto seus ouvidos quanto o de seus três irmão homens. A jovem mãe fitou longamente aquele estranho lenhador que nunca vira na vida. O fato de ele a ter acolhido

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na noite da chuva o transformava da condição de homem es-tranho. Só um anjo do senhor teria tanta bondade. Acolher uma parturiente sem nunca tê-la visto antes. Maria orou para que aquele lenhador fosse sempre iluminado. Fosse sempre um bom anjo em sua vida. A mãe só dormiu depois de vencida pelo cansaço. Depois de deitar centenas de beijos sobre a ca-beça delicada de sua amada Miriam.

No amanhecer do domingo, Ezra saiu para a floresta com as ferramentas no ombro. O machado começou a bater cadente contra o tronco de uma frondosa oliveira que tinha crescido junto a uma segunda. Essa era uma mania de Ezra, tão acostumado aos campos de oliveiras nas verdejantes mar-gens do Jordão: sempre derrubar a árvore menor quando duas deles estavam juntas. Oliveiras grudadas não prestavam. Uma sempre roubava o sol da outra, que ia ficando cada vez mais atrofiada. Então o lenhador separava aquela oliveira pequena e daninha, para que a maior vicejasse e cumprisse seu destino.

Quando passou pela vila, muitas línguas perguntaram da mulher. Já sabiam que Ezra açoitara uma certa menina grávida. O homem, mais uma vez esquecendo a Torá e protegendo quem começava a lhe ser querido, disse que a menina era uma irmã há muito distante, filha de seu pai com outra mulher que não era sua mãe a qual, vendo-se viúva e órfã, sem ter a quem recorrer, lembrou-se no fim do penoso caminho onde ficava a porta do irmão até então esquecido. Ezra falou a todos que encontrou de como era linda a pequena Miriam. Uma dádiva vinda dos céus para brindar seu coração triste e maltratado pelo destino.

Com o passar de poucas semanas, a pequena Miriam começou a ganhar peso e a mudar de tamanho. As bochechas inchavam e enrubesciam, transbordando vida. O choro já tinha tomado uma cadência no diminuto organismo que ia se acos-tumando às necessidades. Choro de bebê. Ezra, grande e bra-ços fortes, forjados na lida com as árvores no entorno do Jor-dão daqueles dias, um gigante robusto e grosseiro, descobriu-

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se um romântico emotivo na verdade. Fazia tempo que não ficava ansioso em voltar para casa. Normalmente, batia-se con-tra as árvores e as árduas caminhadas nas montanhas da região até o sol começar seu mergulho para o horizonte, sem ter quem ou por que voltar ao lar. Não eram tão raras as noites, tão pouco comuns, em que o lenhador acendia fogo e dormia encoberto no meio das pedras ou sob a copa das árvores na floresta. Agora, quando ainda era metade do dia, seu peito já apertava com vontade de voltar logo à casa só para dar uma espiada na menina, saber como ela estava. Passar a mão com cuidado em seu rosto, com medo de feri-la com seus dedos de pele tão dura quanto a casca de uma oliveira velha. Por certo e justo é bom fazer saber que quando ele sentia aquela agonia em retornar ao lar era para ver “as meninas”. Um carinho fra-ternal crescia entre Ezra e Maria. Quando o lenhador entrava em casa não demorava a perguntar como ia a menina-mãe. Também afagava-lhe a cabeça muitas vezes. Ia percebendo que com o passar dos dias, apesar de seu restabelecimento mais lento que o comum, a menina Maria também ia recuperando a beleza. A mulher, de pele branca como neve e olhos verdes intensos era dona de cabelos negros cacheados que desciam até os quadris. Era bela demais, dona de modos atraentes, tão inocentes que era fácil sentir a doce fragrância da boa desgraça pairando ao redor de sua pele macia, seus seios fartos, seus olhos magnéticos e boca de lábios de beijar. Ezra chegou a sentir o rosto queimar e talvez tenha até mesmo ficado verme-lho quando por momentos imaginou aquela mãe morando em seu lar. Justamente quando nisso pensava, Maria, agora sem precisar arquear o corpo para caminhar, enquanto mexia com uma panela ao fogo preparando o jantar para o lenhador, veio ter com ele.

— Senhor Ezra, preciso lhe falar. O lenhador, experiente da vida, chegou a sentir um frio

na espinha. Não pela oração em si, não pelas palavras escolhi-

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das, mas pelo tom de voz da menina que trazia no bojo o som da tristeza anunciada e as ruminações.

— Estou melhor a cada dia, tudo graças ao senhor e sua providencial acolhida. Não sei que seria de mim e minha Miri-am não fosse sua bondade.

— Não precisa agradecer, meu anjo. Você era uma alma precisando de amparo. Meu primo muito falou sobre o amor entre os homens... e mulheres nessa situação. Caridade nunca faz mal.

Maria abriu um sorriso e tocou o rosto barbudo do le-nhador. Os olhos castanhos do homem refletiam muito mais que a luz dos candeeiros, mas, infelizmente, a menina de vida curta não sabia ler todas as luzes. Ela logo tirou a mão do ros-to de Ezra e tornou a falar.

— Sei o quanto a língua das pessoas dessas paragens pode ser cruel e tornar o que é santo e amoroso em algo sujo e perverso. Não quero que eu e minha Miriam sejamos proble-mas ao senhor. Peço só mais uma semana em sua casa. Nem sairei dessa cozinha para que ninguém me veja no seu quintal ou a redor sua propriedade.

— É ajuizada sua preocupação, Maria. Só ressalta seu senso de responsabilidade.

— Só pedirei ao senhor a bondade de trazer água do poço. Ainda tenho dores nos quartos, sei que é não bom para aquela que deu a luz a um anjo carregar peso durante o res-guardo.

Ezra aquiesceu e sorriu novamente para a jovem mu-lher. Maria baixou a cabeça.

— Não quero que você se vá. É boa alma. Boa mãe. Boa menina.

Maria começou a chorar e deitou a cabeça no colo do lenhador. Ezra assustou-se. Não pelas lágrimas e soluços, coi-sas normais em situações como aquela em que uma pobre al-ma pensa estar num beco sem saída sem lembrar-se de olhar para trás.

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— Fosse eu responsável e boa menina não teria vindo dar à porta de um desconhecido às vésperas de ter meu bebê. Não teria ouvido a voz suave dele em meus ouvidos removen-do toda minha vontade de me ater à moral. A língua de uma serpente, ele tem.

— Não diga mais nada, Maria. Quando bateu em minha porta eu não fiz julgamentos. Eu apenas te acolhi.

— Sinto-me uma coruja, esquiva e rapineira. Nunca dê-me ouvidos, bom Ezra. Nunca.

— E não é justamente isso que faço agora? Estou ta-pando minhas orelhas. Não quero saber de nenhum pio dessa corujinha esquiva e rapineira. — sorriu Ezra, cobrindo os ou-vidos com as mãos e depois colocando uma delas sobre a boca da menina que ainda choramingava. — Não pense nisso. For-taleça Miriam, fortaleça também seu corpo. Logo seu coração se aquieta e então veremos que providências hão de ser toma-das.

Foi a vez de Maria tocar a face do homem maduro com suas mãos finas e frias. Acariciou o rosto e ficou mirando os olhos do lenhador.

— Se estivesse em casa de meu pai, meu amigo, dar-lhe-ia três carneiros.

Ezra sorriu. — Não preciso de carneiros. Preciso de descanso. Maria apressou-se em levantar para colocar água no fo-

go. O lenhador segurou seu braço e recomendou que descan-sasse. Cuidou ele mesmo de seu banho e em pouco tempo es-tava sentado na tina, sentindo a água quente relaxar seus mús-culos. Tão confortável ficou que dormiu. Quando despertou chegou a assustar-se, levantando-se de um pulo. Apanhou pa-nos para secar o corpo e deitou em sua estreita cama de palha. Quase dormia novamente quando ouviu a doce voz de Maria cantando para a pequena Miriam. Sempre a mesma, suave e melancólica canção de ninar. Uma canção para levar as crian-ças ao sono transmitindo imagens que os pequenos ainda não

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conheciam, falando de lugares sombrios, de trilhas perigosas, lugares onde certamente criança alguma quereria pisar. A can-ção de um boi negro. A canção de Baal. O lenhador, vencido pelo cansaço, com a voz encantadora da jovem mãe, mais uma vez, adormeceu.

Ezra acordava sempre muito cedo, mas aquela manhã foi diferente. Acordou quando um bode de um vizinho passa-va ao lado de fora da casa ainda fechada. Além do balido, o bode vinha com um sino pendurado ao pescoço. Ezra tossiu e levantou-se, estranhando tanto silêncio do lado de dentro. Te-ria acordado se Maria tivesse ido a cozinha preparar o desje-jum. Vestiu-se lentamente, ainda tonto de sono. O cotovelo direito doía. O machado parecia pesar cada dia mais, conforme os anos se juntavam em suas costas. Parecia carcomer seus músculos por dentro. O trabalho que fazia em duas horas an-tigamente, agora levava quase o dia todo para executar. Não brincavam quando diziam que a idade era uma senhorinha o-cupada que não dava descanso a ninguém, empurrando e fus-tigando nossos corpos todos os dias em direção ao abismo. Ezra praguejou duas vezes e foi até o fogão de lenha. Prague-jou novamente. Maria podia muito bem ter acendido as brasas. Fazia anos que não saia para o trabalho de barriga vazia. Quando passou o umbral da porta, estacou. Seus olhos quase saltaram das órbitas. Ezra correu até o berço e um novo susto tomou sua alma. A bebê estava morta! Apanhou-a nos braços e saiu da casa aos prantos. Caiu de joelhos no chão de terra seca na frente da porta, derramando lágrimas sobre a pequena Miriam. Olhou para o bode negro que ainda balia e fazia bater o sino. A criatura mascava grama e mantinha os olhos negros fixos em Ezra. O lenhador, ainda afundando num poço escu-ro, ficou hipnotizado por aquelas gemas sem luz. O bode re-

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gurgitou uma baba verde e deu um passo, fazendo o sino no pescoço bater. Apontou com a pata para a bebê e disse:

— Ela ainda está aqui. Ezra recebeu outro jorro de adrenalina no sangue e

tombou para o lado. Seus olhos foram para o bebê. Ela chora-va a plenos pulmões. Ezra apanhou uma pedra enorme e er-gueu acima da cabeça, arremessando-a de encontro ao corpo do bode. O quadrúpede fugiu levantando poeira e balindo de-sesperado. Ezra embrulhou Miriam no lençol que estava junto a seu corpo e cobriu seus olhos para que não fossem incomo-dados pelo sol. O lenhador voltou para dentro de casa. Ah! Como queria que também estivesse enganado quanto a jovem Maria. Não estava. A jovem Maria continuava tão morta quan-to seus olhos viram instantes atrás. Seu corpo suspenso no meio da humilde sala, com o pescoço laçado por uma corda velha e suja que subia até a viga central da casa do lenhador. Maria tinha dado fim a seu padecimento. Fosse a tristeza ou a doença, certamente o fardo se mostrara pesado demais para a jovem mãe durante a madrugada. A língua da serpente certa-mente tinha vindo-lhe visitar. Jovens tolos! Ezra queria fazer tanto por ela. Fazê-la entender que nada estava perdido. Jovem orgulhosa! Poderia muito bem ficar vivendo ali, em sua casa. Cuidaria das duas meninas com muito prazer. Para que mais serviriam aquelas mãos que não cuidavam de ninguém? Para que serviria toda a temperança e sabedoria acumuladas com as experiências e com o tempo? Para nada! Ezra apanhou um facão e suspendeu o corpo leve da menina com seu braço for-te. Deu uma passada da lâmina acima da cabeça da mulher e segurou-a antes que batesse contra o chão. Ezra ainda chorava. Cobriu a mulher com os couros de cabra que lhe serviam de cama. Voltou para o lado de fora. Os olhos arderam com o sol novamente. Apanhou a pequena Miriam e colocou-a de volta em seu berço rústico. A bebê ressonava, sem desconfiar que aquela que fazia cafunés em sua cabecinha e passava horas embalando-a com cantigas jamais tornaria a tocar-lhe os ca-

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chos ou servir-lhe de leite materno. O anjinho, de suspiros tão profundos, não sabia que agora atenderia pela alcunha de órfã e que a vida seria muito mais difícil a partir de agora, sem pai nem mãe naquela terra de estranhos. Talvez, motivado por esse pensamento, Ezra fechou a face e passou a esmurrar o peito da jovem mãe morta. Ela não podia ter feito aquilo. Não podia ter deixado sua menina para trás. Estava tudo tão bem. Seriam cuidadas e amparadas. O lenhador afundou a testa no colo da morta. O corpo frio e rijo não recusou a aproximação. O homem pensou em gritar e sair dali, buscando ajuda, bus-cando a parteira, chamando os vizinhos. Controlou o desespe-ro. Se quisesse ficar com a pequena Miriam teria de engolir a dor. Esconderia o corpo de Maria e partiria ao cair da noite com o cadáver nas costas para sepultá-lo nos arredores da vila. Lá fora o bode balia e o sino tocava.

Na manhã do sétimo dia, Ezra acordou sobressaltado. O céu ainda estava escuro, plúmbeo, e o primeiro fio verme-lho rajava no horizonte. O lenhador olhou para os lados. Seu rosto estava encovado. Desde o suicídio de Maria não conse-guia dormir bem nem se alimentar de forma decente. Às vezes sentia-se tonto e o estômago nem mais roncava. Uma pressão invisível que tinha se instalado em seu peito ia se reduzindo dia a dia, mas aquela manhã, por alguma razão, pulou da cama. Jurava ter alguém do seu lado. Sentia uma presença, fria, amea-çadora. Levantou-se da cama. A casa em silêncio total. Ezra suspirou. De fato havia alguém.

A pequena Miriam. O lenhador tinha colocado o berço da bebê em seu quarto. Ela dormia profundamente. O leite de cabra, diluído como recomendaram as lavadeiras na fonte da vila, tinha funcionado bem. Ele tinha usado um subterfúgio tolo, mas que ao menos surtira o efeito desejado. Perguntava, de curiosidade, o que alguém faria para alimentar um recém-

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nascido caso secasse o leite nos peitos da mãe. Bastou isso pa-ra as mulheres começarem uma algazarra lascada, cheias de suas crendices, dizendo que coisa assim só acontecia quando havia na casa uma presença maligna, ou a visita da invejosa Lilith ou quando a mãe violava as leis do livro sagrado. Para o bem do lenhador e da pequena Miriam, pelo menos todas con-cordaram que a melhor saída era misturar água limpa ao leite de cabra e pedir a Yhaweh para que o bebê aceitasse o leite de outras tetas. As eólicas, mesmo sendo razão de dores lancinan-tes, seria o menor dos problemas para se preocupar. Relem-brando as mulheres agitadas e vendo o rosto calmo da peque-na. Ezra chegou a esquecer o fantasma de Maria por um ins-tante e pegou-se sorrindo. Alisou o rostinho da menina que agitou os bracinhos repetidas vezes, espichando-os e reco-lhendo-os rapidamente, como se estivesse a ponto de cair do berço. Ezra sorriu de novo. Abriu as janelas da casa, apanhou o balde na cozinha e foi caminhando até o poço. Estava lá pu-xando a cabaça com água quando uma grande e gorda coruja pousou nas madeiras que guarneciam a mureta de pedra ao redor do poço. Ezra assustou-se com a chegada repentina e o farfalhar insistente da ave. Deu passos para trás e acabou por tropeçar numa pedra, indo ao chão. Lembrou-se imediatamen-te do bode, mas dessa feita seus olhos ficaram nos olhos gi-gantes da coruja cinza, gelando seu sangue. Ezra levantou-se maldizendo a criatura. Ergueu o balde de madeira e tornou à casa. Ia precisar de uma mulher para ajudá-lo com a pequena Miriam, não teria outro remédio. Precisava arranjar uma mãe substituta.

Ezra acordou ensopado em suor. Tinha sonhado a noite inteira com a jovem Maria. A menina estava sentada na beira do poço em frente a sua casa. Ela chorava e não queria dizer-lhe a razão de tanta tristeza. Ezra suplicava. Pedia que a jovem

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revelasse sua dor, seu desespero. Ela só tinha afundado mais a cabeça num manto negro e soluçado alto. Penas cinzas esca-pavam do manto, como se a menina escondesse no tecido uma ave que lutava para escapar. Depois, como os sonhos têm essa natureza mutante, andavam os três numa praia. Miriam, apa-rentando coisa de quatro anos de idade agora, ia bem no meio, de mãos dadas com a mãe e com o protetor. Depois de um bom tanto andar, pararam e acenaram para os barcos dos pes-cadores, a luz do sol baixando e prateando todo o mar. Quan-do o sol, durante o sonho, sumiu no horizonte foi que as coi-sas assumiram um aspecto mais bizarro. Assim que a escuridão tomou o céu, a pequena Miriam soltou-se das mãos de Ezra e Maria, e começou a correr. Bastou que se afastasse alguns me-tros para o lenhador começar a chamá-la, com medo. Um ven-to forte varreu a praia e em segundos converteu os grãos da paisagem em uma cortina. Ezra gritou mais alto, mas a infante Miriam sumiu de seu campo de visão, tragada pela tempestade de areia. Apertou os olhos e ergueu a touca grossa de sua túni-ca para proteger o rosto dos grãos que raspavam a pele. Quando virou-se para Maria soltou um grito de pavor. A mu-lher soltava golfadas de sangue pela boca. A jovem mãe caiu de joelhos e foi enchendo o chão com aquele líquido viscoso e grosso. Quando correu para longe da mulher, caiu sentado no banco de madeira de sua sala. Era noite. A luz da candeia lan-çava luminosidade fraca sobre os objetos, cintilante, a chama repicando como se uma corrente de ar que não podia sentir, atravessasse a sala. Agora seu coração estava disparado. Aos poucos se acalmava revendo aquela cena que tanto adorava. Maria estava de joelhos sobre o chão de tábuas e seu corpo, trajando uma camisola branca e transparente, balançava, emba-lando a bebê Miriam. Novamente a mãe entoava serenamente a canção do boi. Baal. O deus antigo que protegia aquelas ter-ras próximas ao Jordão. O deus que pedia cabras e cordeiros para abençoar os ciclos da terra. Ezra sorria novamente. Ape-sar de sombria e portadora de um punhado de maus agouros, a

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canção era evocada com tanta docilidade, tanto amor, que a-calmaria até o coração de um cão. Ezra projetou o corpo para frente sem levantar-se. A luz chegava melhor agora. Deteve-se antes de tocar o ombro de Maria. Reparou na pele da jovem mãe. Estava ressecada, como que recoberta por areia. O le-nhador engoliu a saliva. Olhou para os pezinhos de Miriam que agitavam-se no ar. Ela soltava gritinhos como os bebês fazem. Desceu os olhos até o cotovelo de Maria. Seu braço es-tava seco, mirrado, cadavérico. Ele levantou-se vagarosamente. Não era Maria que estava ali cantando aquela canção. Era ou-tra coisa. Era uma assombração com braços cadavéricos. Ele pegaria seu machado e tiraria a pequena Miriam dos braços daquele fantasma! Esticou-se em direção à cozinha. Foi nessa hora que a criatura, cantando suavemente virou-se para ele. Ezra bateu as costas contra o batente grosso do pilar da sala. Não acreditava no que via. Sobre o pescoço esquelético da assombração não existia a cabeça de Maria. Era a cabeça de um boi negro! Um boi que tinha olhos remelentos e o encara-va, chifrudo, medonho, enorme, assustador. Em seu colo, a caveira de um bebê se remexia e chorava. Ezra gritou e abo-minou o que via, clamando pelo seu Deus. O boi mugiu fu-rioso, ameaçador e Ezra novamente gritou. No meio do grito desesperado o lenhador abandonou a vigília e se colocou aler-ta. Seu corpo inteiro tremia enquanto aquele alívio que acome-te os humanos ao perceber que toda a agonia que sua mente experimentava não passava de um pesadelo se espalhava por todo o corpo. Ezra chegou a colocar a mão no peito ao sentir-se mais aliviado. Levantou tonto de sono. A candeia na cozi-nha guiou seu caminho. Tomaria uma caneca com água. Pesa-delo horrível. Quando voltava, a luz revelou algo na sala. To-dos os pêlos de seu corpo arrepiaram-se no mesmo instante. Um lençol branco no chão. Um lençol que ali não estava quando adormeceu. Sobre o lençol a pequena Miriam, balan-çando bracinhos e perninhas no ar, descoberta. Ezra sentiu tontura. Era ela. Só podia. Maria assombrava sua casa. De tão

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atordoado e assustado quase não teve forças para tirar Miriam do chão. Voltou com a bebê para o quarto e fechou a porta. Um filete de sangue escapava do diminuto narizinho da crian-ça. Alguém bateu em sua janela. Ezra gritou para que o demô-nio fosse embora. Ezra orou até o nascer do sol, gelando a cada barulho escutado do lado de fora da casa, a cada balido do bode e cada pio da coruja. Miriam chorou de fome.

O homem passou o dia preocupado. Não à toa. Era ób-vio que os pesadelos não foram só pesadelos. Sua rústica casa de homem solitário estava assombrada. Maria, de alguma for-ma tinha transposto o manto da morte para vir estar com a filha. Poderia até não ser um espírito daninho, mas tinha esta-do na casa, regurgitado do além. O lenhador mal conseguia ficar lá dentro sem ser assaltado pela perturbadora lembrança do corpo esquelético com cabeça de boi. Como tinha de se ocupar com as coisas da neném, a assombração ficou relegada gratamente a segundo plano. Depois do almoço correu à vila para falar com o primo João. A ele confidenciou parte do que se passou, escondendo que a jovem mãe tinha se suicidado e que ele, sem dar-lhe um enterro dentro da lei, sepultou-a clan-destinamente na tumba de sua família, sobre o corpo já car-comido de sua Saienne, iluminando ao primo apenas que não sabia mais de Maria e que agora tinha lhe ficado a menina para cuidar. Pediu discrição ao primo e desculpas ao mesmo tempo. Sabia que João era discreto e querido por toda a comunidade. O lenhador precisava de ajuda para arrumar uma mulher que pudesse cuidar da pequena durante o dia. João tinha irmãs, tias e muita gente conhecida ao redor. Muitos vinham até ali, bus-car aquelas margens onde os primos conversavam, e entravam nas águas até os joelhos junto de João para receberem o ba-tismo.

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João Baptista deteve sua atenção nos olhos claros do primo. A serenidade rotineira não estava ali. Ezra tinha um fio de tormenta revolvendo seu espírito.

— Ezra, se minha mãe não tivesse ido até Nazaré essa semana, ela ficaria com a pequena Maria de bom grado. Acal-ma teu coração, bom primo. Daremos um jeito para que não se aborreça com a presença da menina.

— João, a menina não me aborrece em nada. Acontece que lenhadores nada sabem de crianças. Preciso que uma boa mulher cuide da criança enquanto estou no trabalho.

— Ezra, Ezra. Os primos sorriram um ao outro e se despediram.

Quando a noite chegou, Ezra colocou-se alerta. Colo-cou a bebê em sua cama em vez de no berço e ficou obser-vando seu sono. A pequena estava banhada e alimentada, e, como é comum na idade, dormia tranqüilamente mais uma vez. O cuidadoso lenhador tinha deixado a bebê cheirosa, es-palhando sobre sua pele e cabelos óleo perfumado. Vigiou o sono da pequena até que sentiu seus olhos pesarem e, mesmo lutando com todas as forças para levantar-se e manter-se aler-ta, Ezra adormeceu.

Quando voltou do sono, pulou da cama transpirando. Fora da casa já era manhã. O bode caminhava próximo ao po-ço, tilintando o sino em seu pescoço. Podia ouvi-lo perfeita-mente. Ezra olhou para a cama. Maria não estava lá! Levantou-se assustado e correu até a sala. Onde encontrara a menina na manhã anterior, encontrou-a novamente. Estava sobre o len-çol branco, adormecida. Não achou filete de sangue dessa vez, mas ao tirá-la do chão sentiu um frio na espinha. Miriam esta-va estranhamente amolecida e ardia em febre. Alguma doença muito séria parecia instalar-se na pequena. Ezra, ainda abalado, enxugou as gotas que desciam pelo queixo e tentou controlar

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os soluços. Não estava ficando louco! Não! Maria tinha retor-nado à casa. Por quê? Por que tinha pegado a pequena Miri-am? Por que tinha saído de seu sepulcro como demônio maldi-to? Talvez porque era uma suicida. O caminho dos suicidas é sempre o mais penoso. Podia muito bem ser também por sua culpa, pensava Ezra. Afinal, ele a tinha colocado numa cova que não era dela. Tinha escondido o corpo de Maria na tumba de Saienne. Isso não estava certo. Tudo contribuía para a lou-cura do vivo e do morto. Ezra tinha que dar um jeito naquilo. Maria tinha se tornado uma vampira.

Quando anoiteceu, Ezra buscou se precaver. Era sabido que os vampiros detestavam alho. Colocou réstias nas portas e janelas da casa e também costurou um cordão com dentes de alho e colocou-o ao no pescoço da pequena, como um amule-to para afastar a assombração. Fez um cordão com sete dentes e também protegeu seu próprio pescoço. Antes de recolher-se ao leito fez todas as orações que sua mente conseguiu resgatar e ficou quieto, deitado com um candeeiro aceso dentro do di-minuto cômodo, com a bebê aninhada ao seu lado. Ela dormia profundamente e não havia mais sinal do febrão que queimara sua testa na manhã. A noite avançou lentamente. Um vento forte lambia a colina onde ficava sua propriedade e bem longe Ezra ouvia o sino do bode badalar. Maldito bode! A madruga-da ia entrando quando Ezra, cabeceando de sono, deu tento a uma estranheza. Não ventava mais nem ouvia barulho algum. Fora da casa imperava um silêncio assustador. Foi do meio desse silêncio incômodo que a canção surgiu, invadindo seus ouvidos. A canção do boi da cara preta. A canção com que a mãe morta costumava embalar a criancinha. Ezra olhou para a bebê. Ela estava acordada e movia os bracinhos. Lançou um sorriso para o lenhador ao encontrar seus olhos. Ezra engoliu a saliva enquanto procurava se acalmar. Talvez fosse sua ima-

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ginação. Não. Não era. A voz de Maria começou a chegar cada vez mais clara e mais alta, até ficar bem nítida em frente à jane-la do quarto, ao lado da cama do lenhador. A maldita sabia que Ezra e a bebê estavam no quarto. Ezra apertou os ouvidos. A música foi ficando mais alta, mais melosa, carinhosa. A vampi-ra não parou. Cantou por horas a fio. O lenhador tremia da cabeça aos pés. A certa altura a bebê começou a chorar e girar o corpo na direção da mãe. O homem não sabia o que fazer. Agradecia simplesmente pelo fato de ela permanecer do lado de fora. O que faria se ela entrasse? O que faria para salvar a bebê das garras daquele monstro? Miriam começou a chorar mais alto. Ezra a colocou no colo, mas sem sucesso algum. A música entrava pela parede, pelas frestas da janela, pelas telhas. A canção do boi da cara preta. A canção terna e contínua. Ezra sentiu os olhos pesarem e lutou com todas as forças. Quando abriu-os novamente, era manhã, Miriam não estava em seus braços nem na cama. A bebê, mais mole que na manhã anteri-or, jazia no chão da sala, com os lábios azulados, a febre co-mendo seus miolos.

Ezra correu ao primo que escovava uma mula próximo ao rio. Seu rosto preocupado franqueou a conversa com o primo.

João, mais uma vez, ouviu o lenhador em silêncio. Não fez chacotas com o caso de assombração. Muito pelo contrá-rio, assumiu uma postura contraída, cheia de pesar. Ezra não era um supersticioso nem se deixava impressionar com pouco. Se estava chegando com aquela queixa e tão intensos testemu-nhos era porque de fato algo de tormentoso assolava seu cora-ção.

— Junto com minha mãe, chega no começo da semana nosso amado primo Yeshua, para ser batizado no Jordão. Pre-serva-te até lá. Meu bondoso primo vem realizando prodígios, certamente há de ir até sua casa e derramar a graça de Yahweh por todos os lados.

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— Hei de aguardar a chegada de nosso primo, mas te-mo pela pequena. A febre agora não passa. Se é mesmo uma vampira que vem todas as noites, pode estar roubando sua pe-quena alma aos bocadinhos.

— Almas não são pequenas, primo. Cuida da pequena Miriam e ela suportará a tribulação até Yeshua estar entre nós.

Ezra suspirou, resignado. Uma pomba branca voou do telhado do celeiro e pousou sobre a mula, arrulhando. O le-nhador afastou-se, despedindo-se de João. Esperaria.

Carcomido pela insegurança, com medo de que Yeshua tardasse em sua visita, caminhou até a encruzilhada dois qui-lômetros ao sul da vila. Era lá, quando a pequena trilha até seu vilarejo encontrava com a via pavimentada pelos infiéis roma-nos, que se juntava uma procissão de tendas de vendedores ambulantes. Conhecia a fama dos amuletos de purificação e afastamento de demônios que o velho Natanael comercializava com habilidade. O lenhador cercou o velho com perguntas sobre amuletos para afastar os mortos viajantes, conjurar as-sombrações e diabos. Natanael assediou o espírito combalido de Ezra que não teve outra alternativa a não ser revelar, parci-almente, seu tormento. Não falou sobre o bebê todavia. Abriu que uma morta recente, que tinha se matado, voltava da cova noite apos noite para assombrar um amigo de um povoado não muito distante.

O homem saiu da tenda de Natanael com Baal pendu-rado ao pescoço, quatro estacas com orações antigas pirogra-fadas em seus corpos, óleo místico perfumado de Cafaniaum para ser passado num instrumento de corte, um pergaminho com outras rezas e os bolsos vazios. Ezra não esperaria pela vinda do Prodígio de Nazaré. Daria um jeito naquela situação à maneira de Natanael. Sabia que a frágil Miriam não resistiria a novos ataques de sua mãe diabólica. Sucumbiria sem forças ou vitimada pela febre.

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Ezra suava frio. As ferramentas nas mãos e o ídolo Baal pendurado no pescoço, que o velho beduíno tinha lhe vendido na encruzilhada antes de os romanos passarem no meio da tarde, não levantariam tantas suspeitas quanto sua simples pre-sença ali, na boca do campo sagrado àquela hora da noite. Em seus 46 anos de vida talvez nunca tenha sentido tanto medo e apreensão como experimentava agora. Tinha estado ali noites atrás, quando arrastara o cadáver para a cova de sua família, mas agora era diferente. Se antes apenas imaginava se essas coisas assombradas podiam mesmo existir, aquela noite tinha certeza que todas as criaturas assombradas que tinha ouvido falar podiam estar espreitando atrás das moitas do caminho. O vento cortava a encosta do morro e fazia sibilar as folhas das oliveiras, obrigando Ezra a proteger melhor o corpo do frio que aumentava a cada passo dado em direção a tumba. Quan-do chegou na cova de Saienne, agora portando o corpo da jo-vem Maria, Ezra caiu de joelhos.

O lenhador abriu o pequeno frasco de óleo perfumado e espalhou o líquido sobre o fio afiado do machado. Soltou uma corda amarrada ao peito, deixando uma pá cair. A terra e as pedras sobre o túmulo não tinham aparência de terem sido revolvidas. Como a vampira conseguia deixar a cova todas as noites? O lenhador foi esquentando com o esforço repetido. Em coisa de uma hora conseguiu chegar ao sudário que envol-via o corpo da jovem mãe. Apanhou o machado e, com a pon-ta da ferramenta, conseguiu abrir o tecido. Seus olhos se arre-galaram. Havia não um corpo, mas dois! Nenhum deles era Maria. Via os restos mortais de Saienne com um bebê no colo. Saienne era agora um esqueleto, com longos cabelos verme-lhos saindo da caveira. Envolto em seus braços, o pequeno bebê Tiago, natimorto, que deveria estar imóvel, mas agora, enquanto os olhos do Ezra enchiam-se de agonia, o pequeno virava a cabeça em direção ao pai, bebê feito de pele e osso, olhos negros, encovados, apontando para o céu negro, e com

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uma voz vinda dos infernos, avisava ao homem que beirava o território dos loucos:

— Corre, pai! Ela não está aqui! Ezra quase tombou desmaiado. Seu coração batia tão

forte que o pescoço tinha enrijecido e as veias saltado. O ho-mem entendeu. Maria não estava na cova. Não era uma aluci-nação. Maria estava à solta na noite. Maria estava com Miriam!

O lenhador deu as costas para a cova e levantou-se par-tindo em desabalada carreira, deixando a pá e três das estacas para trás. Tão atordoado, não olhou para trás. Não viu a gran-de coruja que pousou no buraco da cova e lançou bicadas con-tra o bebê exposto ao céu da noite.

Ezra não parou de correr um instante. Conhecia a trilha. Coisa de vinte minutos depois, com o suor empapando peito, costas e abdome, com filetes grossos descendo dos cabelos e fazendo arder os olhos depois de vencer as grossas sobrance-lhas, o lenhador avistou o caminho que levava até sua casa. As portas e janelas fechadas como tinha deixado. Orava para que Maria ainda estivesse na cama e todo aquele tormento não pas-sasse de coisas da sua imaginação. Tinha deixado a infanta em sua cama, coberta pelo pergaminho de conjurar demônios e nela também tinha passado o óleo de Cafarnaum. Tudo para protegê-la, para deixá-la em segurança durante aquele expedi-ção que não duraria mais que três horas. Contudo, a ampulheta tinha se invertido. Maria estava na sua frente. Empurrou a por-ta de entrada. Trancada por dentro! Empurrou a folha da por-ta. Não cedeu um centímetro! As janelas também estavam trancadas, ele mesmo tinha providenciado isso. Chutou a por-ta. Nada. Recostou-se um segundo. O coração estava saindo pela boca. Então aquilo o bombardeou. Dentro da casa, ouvia nitidamente, a canção de ninar de Maria! Estava ninando sua filha. Estava roubando lhe a vida. Miriam não suportaria outra madrugada nas garras da vampira. Maria queria carregá-la para o mundo dos mortos para partirem juntas. Ezra não queria que a bebê pagasse pelos erros e falta de temperança da mãe.

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Ergueu o machado e a golpes poderosos acabou com a porta. Estava tomado pelo ódio e pela urgência. Entrou tropeçando em lascas de madeira, com os olhos esbugalhados, procurando sob a luz fraca da candeia a pequena Miriam e também a as-sombração. Estavam ali, incrivelmente, na sala. Maria virou se lentamente para encarar o lenhador. Levou o dedo indicador à frente dos lábios e entre o ninar expeliu um chiado pedindo silêncio. Os olhos do lenhador marejaram. A pequena Miriam parecia morta, com a boca roxa e os olhos quase negros, fun-dos nas órbitas. Maria tinha veias escuras saltando nos braços e pescoços. Apesar de repugnante, sua aparência nada tinha a ver com uma pessoa morta, que deveria estar sendo comida pelos vermes a essa altura. A canção do boi reverberava pelo casebre. Ezra tremia dos pés à cabeça, mas firmou a mão no cabo do machado ungido e aproximou-se pé ante pé. Não ha-veria medo mais forte que seu amor pela menina. Ao contrário do que imaginou, a mãe não se mexeu, não buscou fugir. Tal-vez pressentisse, talvez soubesse como todos os pais sabem o que era melhor para a filha. O golpe foi certeiro e potente o suficiente para separar a cabeça do corpo. Enquanto a cabeça da jovem rolava e o corpo desfalecia, Ezra correu para acudir a pequena Miriam. Carregou-a correndo para o quarto. Deitou-a sobre o lençol e deixou-a nua. Não conteve as lágrimas quan-do notou que o peitinho subia e descia devagar. Febre não e-xistia e o roxo ao redor da boca estava ficando visivelmente mais fraco, tênue, quase desaparecendo. Ela dormia o sono dos puros e inocentes.

O lenhador voltou para a sala. O corpo não tinha san-grado. Talvez porque estivesse morto, porque o coração das assombrações não palpitasse dentro do peito deixando de car-regar o milagre da vida para todas as células. Ezra suspirou fundo e arrastou o corpo para fora da casa, deixando-o ao lado do poço. Apanhou a cabeça e colocou-a junto ao cadáver. Tomou a estaca com oração gravada na madeira e, como tinha explicado o velho Natanael, cravou-a bem no coração da mor-

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ta viva. Tornou a entrar na casa e trouxe da cozinha um frasco com óleo da candeia, esparramou sobre os restos de Maria e ateou fogo. Ezra acompanhou o crepitar da carne morta sendo comida pelas chamas que foram aumentando. Tornou a con-fabular sobre a menina morta viva. Ela sabia que seria atacada. Sabia que seria separada da filha. Sabia. Não lutou contra. Tal-vez impossível para ela fosse só manter-se longe dali, longe da casa, longe da filha. Bem provável que por dentro estivesse implorando para que o bom protetor desse logo fim àquele suplício de vir drenar a vida da própria filha noite após noite. Maria amava o bebê no final das contas.

Ezra agarrou o corpo pelos calcanhares e o arremessou pela boca do poço. Ouviu o barulho da água sepultando a me-nina, chamando-a para a última morada. Virou-se e apanhou a cabeça. Ainda mirou aquele rosto acinzentado uma última vez. Inacreditável. Soltou os cabelos de Maria e novamente a água devorou as partes da morta. Foi até o barracão ao lado de sua casa e retornou com uma marreta. Não precisou de muita for-ça para acabar com a mureta e encher parte do poço com as pedras e a terra que cercavam a boca. Logo que amanhecesse terminaria de tapar tudo com terra. Seria sua última infração às leis da Torá naquele episódio sombrio. Daquela noite em dian-te nenhuma coruja piou em seu quintal, nenhum balido de bo-de assombrou sua noite e nem mais foi despertado pela canção do boi da cara preta. As margens do Jordão encontraria muitas árvores para trabalhar. Trataria de mudar-se dali com a peque-na Miriam. Mudaria ou cavaria um novo poço para dar água fresca a sua filha.

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A flor do mal

Quanto è bella gíovínezza, Che sífugge tuttavía!

Chi vuoí esser líeto, sía: Di doman non cè certezza.1

Lourenco de Médias

OUVERTURE

O ruído cadenciado de meus passos era o único som a romper o silêncio da noite nos arredores de Florença. Sentia como se estivesse sozinha no mundo. Aquela hora da madru-gada, nem carruagens nem cavaleiros percorriam as estradas. O inverno já terminava, mas a primavera não se aproximara o suficiente para dissipar o frio, ainda intenso, nem para vestir de verde os vinhedos que se estendiam pelas colinas a meu re-dor. Na noite de lua nova. o céu parecia não ter espaço para mais estrelas, e a claridade cristalina iluminava o caminho, tão intensa para mim como a de um dia ensolarado para uma pes-soa normal.

Voltava para casa algo desapontada, depois de uma noi-te de caçada quase infrutífera pelas ruas desertas da cidade. Havia conseguido apenas uma menina prostituta, seu sangue

1 Quão bela é a juventude, / que de fugir nunca deixa! / Se quer ser ale-gre, pois seja, / do amanhã não há certeza.

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tão anêmico que mal tinha gosto. Deixei-a ir depois do primei-ro gole.

Não tinha pressa. Ia devagar, retardando ao máximo o retorno ao lar. Apenas a solidão me receberia quando chegasse em casa. Todo ano, nessa época, a melancolia me invadia, jun-to com a lembrança do canto do rouxinol e do perfume das laranjeiras em flor. Mil vezes escolheria as noites curtas e cáli-das do verão, vibrantes de atividade, às noites de inverno, lon-gas e vazias como a eternidade. Imortalidade. Não-vida eterna. Para quê? Para retornar noite após noite a uma casa solitária e fria?

A caminhada em breve terminaria. ]á acompanhava o muro de pedra da V illa Il Rossignolo. O rouxinol. Só um nome. Na noite invernal, o silêncio era absoluto.

Encontrei entreabertos os grandes portões de ferro for-jado, e não tive chance de perguntar-me se esquecera de fechá-los. Senti uma presença, alguém ocultando-se detrás da densa folhagem sempre-verde dos juníperos que ladeavam os por-tões. Minha audição sobrenatural captou, quase ensurdecedo-res no silêncio absoluto, o bater de um coração acelerado pelo medo, o arfar de uma respiração pesada e, como pano de fun-do, o rugir do sangue fluindo nas veias e artérias de quem quer que espreitasse. Eu não tinha dúvida de que suas intenções eram más. Não piores, porém, do que as que então brotaram em mim.

Como se ignorasse a presença intrusa, cruzei os portões, avançando alguns passos pelo caminho que percorria o bosque rumo à Villa. Pareceria despreocupada em meus movimentos, mas estava totalmente alerta. Num gesto casual, afastei a capa de lã negra, como se acomodasse meus trajes mas na verdade preparando-me para a ação.

O ataque veio por trás. Girei o corpo e o veludo verme-lho de meu vestido sussurrou no silêncio noturno. Aparei no ar a foice que cortava o ar rumo a meu pescoço, segurando-a pelo cabo, junto à lâmina.

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Um grito de dor e eu já tinha o atacante caído de joe-lhos no chão, o braço torcido para trás num ângulo quase im-possível. Um pouco mais de pressão quebraria seu cotovelo. Ele resfolegava, os dentes cerrados no esforço de não gemer ou gritar de novo. Tirei a foice de entre seus dedos, jogando-a longe, e ela se perdeu em meio aos arbustos do bosque.

Puxando o homem pelas roupas, coloquei-o de pé e o empurrei para trás, contra o tronco de um olmeiro. Minha mão em sua garganta imobilizava-o. Sob meus dedos suas arté-rias me chamavam, pulsando sedutoras. Examinei-lhe a face. jovem, teria quando muito vinte anos, ainda o que se costuma-va chamar um giovanetto. As feições belas retinham um resquí-cio da suave androginia que o adolescente perde ao tornar-se homem. Olhos de um azul muito claro, que mesmo naquela situação indefesa faiscavam de fúria, fixos em mim. O nariz aquilino era perfeito. Uma boca carnuda, feita para beijar e ser beijada, emoldurada por uma mandíbula firme e um queixo quadrado, já bem masculino. Os cabelos da cor do ouro velho, ondulados, formavam um halo revolto ao redor de sua cabeça. Irresistíveis. Afundei neles os dedos da outra mão, sentindo o quão macios eram e como acariciavam minha pele.

— Por que tentou me matar? — sussurrei, aproximan-do-me para aspirar seu perfume, um misto de adolescência, masculinidade e medo. Excitante. Fazia-me querer tomá-lo ali mesmo.

Em vez de ter uma resposta, senti uma dor excruciante no ventre. Surpreendida, dei um passo para trás. Baixei os o-lhos e vi que tinha sido ferida por uma lâmina. Maldito! Devia tê-la oculta entre as vestes. O sangue vertia do profundo corte, abundante, empapando o veludo do vestido. Vermelho sobre vermelho.

Aproveitando minha breve desatenção. o rapaz atacou de novo. Numa estocada precisa, a lamina do punhal pene-trou-me o peito e se enterrou em meu coração. A dor foi terrí-vel, mas ao contrário da madeira, o metal não provoca danos

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permanentes a um coração morto-vivo. Em uma ou duas ho-ras não restaria vestígio do ferimento. A única coisa que o tolo giovanetto conseguiu com o assalto foi enfurecer-me. Num mo-vimento brusco, agarrei-o pelo pescoço e atirei-o no ar. Ele bateu numa árvore, a cabeça sofrendo o grosso do impacto, e caiu ao chão, entorpecido. Ignorando a dor, arranquei o pu-nhal de meu próprio coração e joguei-o fora como fizera com a foice. Aproximei-me do rapaz e me ajoelhei a seu lado. Com uma das mãos agarrei seus cabelos, os mesmos que pouco an-tes afagara, puxando seu rosto para perto do meu.

— Faz idéia do preço que vai pagar por sua estupidez? — Sei que vai me matar, monstro, como matou meu

irmão, mas estarei te esperando no inferno! — e cuspiu em minha cara.

Furiosa, golpeei-o no rosto, de novo e de novo, jogando sua cabeça de um lado a outro, até ser detida por algo mais poderoso que a ira. Um perfume inebriante de repente inun-dou o ar noturno a meu redor, despertando meu apetite, en-chendo-me de desejo e excitação. Meus caninos superiores, até então tão normais como os de qualquer pessoa, alongaram-se e se transformaram nas presas de uma fera formidável.

Sangue! Um filete de sangue escorria de sua boca entre-aberta e ofegante. Sem pensar, ergui-o pelos cabelos e toquei seus lábios com os meus. Minha língua deslizou por sua pele, por seus lábios macios, enfiou-se na umidade quente da boca, recolhendo cada gota do precioso alimento. Mais, mais, eu queria mais! Aquele sangue era delicioso. Aquele homem era delicioso. Sem afastar os lábios da pele dele, traçando um ca-minho úmido com a língua, minha boca moveu-se por sua fa-ce, por sua garganta, até deter-se em cima do ponto pulsante que eu já sentira sob os dedos. Meus caninos se cravaram na carne, afundando até romperem os vasos sangüíneos. O san-gue encheu minha boca e eu o tomei, deliciada, gole após gole, sentindo avultar-se o prazer, que atingiria a plenitude quando o coração dele parasse de bater.

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Um gemido escapou dos lábios do giovanetto, não um gemido de agonia, mas de puro deleite. Eu sabia que ao morrer ele gozaria comigo, num orgasmo final. O prazer de minhas vítimas em geral aguçava meu apetite e a ânsia por sua morte, e me fazia drená-las com mais ímpeto. Desta vez, porém, a imi-nência do êxtase dele instigou outros apetites. Afastei as presas do seu pescoço e a cabeça dele descambou assim que minha mão soltou sua nuca. Ele estava à beira da inconsciência, a caminho da morte. Mas eu interrompera a tempo o repasto. Ele não morreria se recebesse cuidados logo.

Meus olhos varreram-no de alto a baixo. Intrigava-me a determinação daquele menino-homem em me matar. Quem era, qual sua história? Desejei-o, e imaginei como seria, por baixo das roupas pesadas de inverno, seu corpo de macho jo-vem cheio de energia. O quanto saberia sobre o amor físico, o prazer partilhado com uma mulher? Como seria ensinar-lhe as artes praticadas a dois na intimidade da alcova? Quão es-plêndida seria a sensação de possuir seu corpo e dominar sua mente, tê-lo devotado e fiel a meus pés?

Passei a mão pelas roupas modestas, de tecido rústico e áspero e já bem gastas. A musculatura por baixo era forte e definida. Tateei o volume rijo de sua masculinidade, ainda in-tumescido pelo prazer de minha mordida, e imaginei-o pene-trando-me enquanto meus dentes penetravam o pescoço sabo-roso. Não pude me conter. De um só tirão rasguei-lhe as ves-tes e desnudei-o da cintura para cima. Ele ainda não chegara à maturidade mas tinha um torso vigoroso, de quem está afeito a atividades físicas. Não era um nobre flácido e indolente mas tampouco era um camponês mal nutrido. Quem seria? Deslizei as mãos por sua pele nua, exposta ao ar gélido da madrugada. Meu desejo era cada vez maior. Tive impulsos de arrancar o resto de suas roupas, cavalgá-lo naquele instante e lugar, tomar seu sangue enquanto sua semente jorrava dentro de mim num gozo simultâneo.

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Contive-me, porém. H avia em seus lábios um tom azu-lado inquietante. Ele empalidecera a olhos vistos e tinha perdi-do os sentidos. Os ferimentos deviam ser tratados ou eu não teria chance de desfrutá-lo. Precisava recuperar as forças que eu lhe roubara ao drenar seu sangue. E não podia ficar naquele frio.

Ergui nos braços o giovanetto seminu e com ele corri ru-mo à Villa. Agora tinha pressa em chegar a casa.

PROPÓSITO

— Giovanetto... — sussurrei, tocando de leve a fronte do rapaz que caíra em um sono inquieto. Ele transpirava, num estado febril resultante da exposição ao frio, da fraqueza pela perda de sangue e do frenesi em que sua busca por vingança o lançara.

Ao chegar em casa, carregando nos braços tão preciosa presa, minha primeira providência fora acender a lareira e tra-zer um pouco de calor a um lar que já não parecia solitário e vazio. Removi as últimas peças de sua roupa e acomodei-o diante do fogo, nu em pêlo e suculento sobre o tapete espesso.

Crescia meu fascínio por sua beleza suave, pelos misté-rios por desvendar. Pela promessa das delícias que me espera-vam. Qual a identidade do impulsivo atacante? Ele me chama-ra de monstro, acusando-me de haver matado seu irmão. Quem teria sido? Eu já matara a tantos, conseguiria me lem-brar de uma morte em particular? Corri os olhos por sua for-ma inerte. Era excitante vê-lo tão vulnerável, alheio ao perigo que corria. Refrear os apetites lascivos que a visão despertava era tanto uma tortura como um prazer. Tão indefeso. Eu po-deria fazer dele o que desejasse. Era dona de seu corpo, de sua vida. Minha mão envolveu-lhe o pescoço, e a carícia transfor-mou-se em ameaça quando aumentei a pressão dos dedos so-bre a carne. Inconsciente, ele não imaginava o risco que corria.

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Podia matá-lo apenas por não haver o que me impedisse. Na-quelas circunstâncias, porém, a morte não fazia sentido. A vida carregava em si possibilidades mais interessantes.

Tinha decidido cuidar dele. Recuperar sua energia, sua saúde, para mais tarde aproveitá-las por completo. A expecta-tiva era mais instigante do que a nudez. Fazia muito tempo que não me deliciava tanto.

O calor do fogo devolveu a cor a suas faces, e os lábios carnudos adquiriram um suave tom rosado que me impelia a beijá-los, mordê-los, apertá-los com meus próprios lábios. Es-freguei-lhe o corpo escrupulosamente com uma toalha embe-bida em água de rosas. Prolonguei além do necessário a fricção da toalha contra seu membro, que avolumou-se como por vontade própria. Num impulso, debrucei-me e apliquei ali um beijo casto, ignorando a pressão que as presas exerciam por dentro de meus lábios cerrados.

Em seguida carreguei-o, envolto numa manta quente, até uma pequena alcova contígua a meu quarto, onde havia um leito, uma mesa com um candeeiro, uma cadeira e nada mais. Sem janelas, o único acesso era a porta de carvalho maciço que dava para o aposento onde eu dormia. O ferrolho só podia ser aberto por fora. Para todos os efeitos, o jovem era meu prisio-neiro. Uma idéia arrebatadora, que me excitava a imaginação.

Coloquei-o no leito, aquecido por mantas e cobertores. Agora velava seu sono agitado, povoado de pesadelos gerados pela febre. Bello giovanetto. De novo afaguei a tez úmida de suor, só depois dando-me conta de que por trás desse gesto oculta-va-se o desejo quase consciente de que o toque tão leve, tão cheio de cuidados, o tivesse despertado.

Essa esperança foi recompensada daí a pouco. Ao mu-dar de posição, ele inspirou fundo e notei que estava acordan-do. Acariciei de novo seu rosto e os olhos se abriram. Vaguea-ram pela alcova num instante de desorientação, fixaram-se em mim e, quando ele se lembrou, arregalaram-se de medo. Um espasmo sacudiu seu corpo. Ele tentou se afastar de mim, mas

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meus dedos seguraram-lhe o queixo, obrigando-o a me enca-rar.

— Quem é você? — perguntei. Seu corpo se contraiu num esboço de resistência, mas

ele não tinha escolha. Eu usara a Voz vampírica. — Giuliano Sacchetti — ele respondeu. — Você é filho de Girolamo Sacchetti? — Sim. Pensei por um instante. Girolamo Sacchetti era um rico

negociante florentino. Os vinhedos da família, em Badia a Col-tibuono, no Chianti, produziam um vinho afamado há gera-ções. Lourenço, o Magnífico, era apreciador declarado do ver-miglio da Casa Sacchetti.

— Você me acusa de ter matado seu irmão. Como foi isso? Quanto tempo faz?

— Você matou Domenico numa noite há cerca de dois meses. Ele estava com um grupo de amigos, perto do Giardi-no Torrigiani e cruzou com você na rua. Você os atacou, e matou meu irmão. Você dilacerou o pescoço dele... com os dentes!

Eu me lembrava. Um bando de jovens rufiões bêbados, como tantos que de noite assolavam a cidade, promovendo todo tipo de arruaça, agressão e violência. O sangue do mais truculento deles trazia o gosto ruim do álcool e de doenças venéreas. Não fora uma boa refeição.

— E como sabe que fui eu quem fez isso? — Eu vi tudo. Ele estava voltando para casa e eu... fui

esperá-lo na porta. A ligeira hesitação sugeria que, na verdade, ele fora a-

cordado pela gritaria habitual dos baderneiros. Grupos de vândalos como aquele se divertiam perturbando a ordem pú-blica, e ninguém ousava protestar, sob o risco de represálias.

— Então deve ter visto também que eles me atacaram primeiro. Eles iam me violentar. É o que bandos de arruacei-

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ros como seu irmão fazem com qualquer mulher que cruze seu caminho. Estupro coletivo. Eu só me defendi.

— Eles estavam apenas se divertindo. Só putas saem sozinhas de noite, e ninguém violenta uma puta. Ela se entrega a qualquer um de livre vontade, qualquer homem tem direito a desfrutá-la — o vigor de sua reação me surpreendeu, mas o protesto era veemente só em aparência, pois enquanto dizia aquilo, a face já corada pela febre se enrubesceu mais ainda. O argumento não era dele, e sim do irmão que venerava e cuja morte ansiava vingar. Ele prosseguiu a defesa do falecido. — Domenico só queria se divertir e você o assassinou. Vi quando o agarrou e o atirou pelos ares. Nenhum ser humano tem tanta força. Então você o segurou, enterrou os dentes no pescoço dele e tomou seu sangue. Você é um monstro, uma abomina-ção, e jurei pela alma dele que a enviaria de volta ao inferno de onde saiu.

— Como soube que eu morava aqui? — Desde aquela noite procurei-a sem descanso por to-

da Florença. Várias vezes vi-a ao longe c quis segui-la, mas sempre havia um momento em que eu dobrava uma esquina e você tinha desaparecido. Tentei saber quem era e ninguém pôde dizer, até que há duas noites eu a vi no baile oferecido pelos Médicis na Villa de Poggio a Caiano. Contaram-me que era Francesca Fornasari, uma jovem rica e excêntrica que vivia só e quase reclusa na Villa Il Rossignolo.

— E assim decidiu armar uma cilada em minha própria casa.

— Sim. Não saía de minha memória a visão da foice dele cor-

tando o ar rumo a meu pescoço. A decapitação é uma das poucas formas de matar um vampiro para sempre, e eu preci-sava descobrir o quanto ele sabia e o quanto era apenas casua-lidade.

— Por que me atacou com a foice?

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— Você destroçou o pescoço de meu irmão. Queria fa-zer o mesmo com o seu.

Justiça poética. Um mero acaso ele quase ter acabado com minha longa existência.

Meus dedos afagaram sua face. — Você não tem a aparência de alguém que mata a san-

gue frio. — Você também não, e nós dois sabemos que é uma

criatura assassina. Dei uma risada de escárnio. — Eu não me deixo capturar e desnudar por minhas ví-

timas. Ele corou violentamente. — Sei que vai me matar, e apesar do fracasso, morro

com a consciência tranqüila por ter feito o que deveria fazer. Tenha certeza de que a esperarei no inferno, para cumprir mi-nha obrigação para com Domenico.

A lealdade cega e ingênua me causou impressão, mas o perfume do sangue que anuíra a sua face teve maior efeito. Impossível resistir. Debrucei-me sobre o giovanetto desnudo, indefeso e cativante e beijei sua boca.

— Você não teria me violentado, como seu irmão ten-tou. Você teria feito amor comigo — sussurrei em seus lábios, enquanto minha mão percorria seu baixo ventre para se deter sobre o membro, que reagiu de imediato.

Ele fechou os olhos e gemeu ao retribuir o beijo, ren-dendo-se à tentação do prazer carnal. Minha língua forçou passagem por seus lábios e encontrou a dele, relutante a prin-cípio, ávida a seguir. Por um instante eterno, o beijo se pro-longou, até que sua mão em meu ombro tentou me empurrar para longe. Intrigada, deixei-me ser afastada.

— Que espécie de monstro é você? — perguntou quando nossos lábios se separaram.

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Segurei-lhe o rosto e forcei-o a me encarar. Olhei direto em seus olhos claros, atemorizados mas cheios de determina-ção.

— Olhe-me bem. Veja minha face. Eu lhe pareço um monstro?

— Não — ele admitiu, esquadrinhando-me as feições, e estava óbvio que ele não era imune a minha beleza juvenil, i-nalterada depois de tantos, tantos anos.

— Se cruzasse por mim na rua, se vislumbrasse meu semblante, no que pensaria? Pensaria em vida ou em morte? Prazer... ou dor?

— Prazer — a resposta veio num fiapo de voz, após breve titubeio. Minha mão moveu-se para uma vez mais en-volver sua garganta e sentir o pulsar do sangue sob a ponta dos dedos.

— Quer saber que tipo de monstro sou? Sou um mons-tro que pode lhe trazer o prazer e a vida. Ou a dor e a morte. Você agora é meu, e seu destino me pertence. Por enquanto decidi que você viverá e terá prazer. Mais tarde veremos. Por agora... durma.

Os olhos se fecharam e quase no mesmo instante ele ca-iu num sono profundo.

Saí da alcova e aferrolhei a porta detrás de mim. Apoi-ando as costas na madeira, fechei os olhos e deixei uma lágri-ma rolar. Uma lágrima tola. Lágrima de sangue. A angústia da solidão e do vazio imortal voltara com todo vigor. A lealdade de Giuliano Sacchetti ao irmão morto feria meu coração como a lâmina de seu punhal. Não era justo que eu, uma criatura i-mortal, estivesse tão só, enquanto alguém já morto merecia uma devoção tão profunda, capaz de levar a uma tentativa de assassinato.

Penso que foi então que me apaixonei pelo belo giovanet-to aprisionado. Não, paixão não era a palavra certa. Obsessão. A inveja a um homem morto me consumia. Sentia a necessi-dade imperiosa de também merecer a lealdade inabalável do

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menino-homem de princípios tão elevados. Um sorriso incerto arqueou meus lábios. Com um dedo limpei a lágrima que, eu sabia, marcara-me a face com seu rastro rubro. Um calor in-comum aquecia meu corpo frio, um calor que não seria senti-do por mão alguma que me tocasse, pois vinha de minha alma.

Após tanto tempo, eu tinha um propósito. Conquistaria a lealdade de meu giovanetto. Eu o faria amar-me. Ele me salva-ria da solidão.

PROCESSO

Nos dias e noites seguintes cuidei de Giuliano Sacchetti. Debelei sua febre, alimentei-o e aos poucos restaurei suas for-ças. A princípio, era evidente a ojeriza que lhe causava. Minha entrada no pequeno aposento era recebida com um olhar hos-til, e a cada toque meu, mesmo acidental, seu corpo se retesa-va. Somente sob o comando da Voz aceitava os alimentos que lhe trazia. Não respondia de livre vontade a minhas perguntas e não se esforçava para comunicar-se. Minha paciência estava por ura fio.

Para conseguir-lhe comida vi-me forçada a pilhar as co-zinhas de um casario próximo. O pratos que podia lhe ofere-cer estavam bem aquém de sua posição social, mas minha pre-ocupação era sua sobrevivência, não etiqueta e costumes. De qualquer modo, ele não estava em condição de queixar-se, e subjugado pela Voz devorava os mais humildes pratos, fosse uma panata, sopa de pão velho misturado com ovo e queijo, fosse uma scottiglia, feita a base de carnes tiradas das peles de novilho que iam para o curtume.

Na quarta noite, pela primeira vez ele me dirigiu a pala-vra por vontade própria. Eu o havia forçado a tomar uma ter-rina de ribollita, espessa sopa de feijões e vegetais, e já saía pela porta, aborrecida com sua indiferença e desdém, quando sua voz soou.

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— Por que não me matou ainda? Virei-me surpresa. Ele estava de pé. Eu não lhe trouxera

roupas, mas mesmo nu e exposto seu porte era digno e orgu-lhoso. Meus olhos percorreram toda sua anatomia.

— Porque não pretendo matá-lo. Se o quisesse morto não me empenharia tanto em devolver-lhe a saúde.

— E qual seu interesse em devolver-me a saúde? Num gesto brusco atirei longe a terrina. Ele olhou so-

bressaltado o lugar onde ela se espatifou. Tirando proveito da distração, fui para junto dele, mais veloz que a vista.

— Este interesse — passei um braço por sua cintura, puxando-o para mim, e a outra mão por trás da cabeça dele trouxe sua boca até a minha. Um beijo ligeiro, ao qual ele não retribuiu, e meus lábios buscaram a orelha dele para sussurrar — Quero sua pele deslizando sobre a minha, seus lábios sobre meu corpo, você dentro de mim, derramando sua semente nas minhas entranhas.

Meu hálito em sua orelha era morno. Tinha me alimen-tado quando fui buscar comida para ele. Senti o tremor em seu corpo, e ele tentou me repelir. Eu ri, pois ele fazia aquilo não por repulsa mas para afastar a tentação. Minha língua passeou pela orelha dele. Com um gemido, ele acabou cedendo, e me envolveu pela cintura. Beijamo-nos com paixão, as línguas sa-boreando-se mutuamente. As mãos dele tentaram erguer mi-nha saia.

— Não — afastei-me, fazendo-o soltar minhas roupas. — Quero que me possua, mas não assim, como uma serviçal tomada as pressas.

Parado no meio da alcova, ele corou violentamente, sem poder esconder a ereção. Dei-lhe as costas e saí do aposento, fechando a porta detrás de mim. Eu sorria, deliciada.

Retornei na noite seguinte, decidida a tê-lo. Trajava uma diáfana camisa de dormir de seda branca. Ao abrir a porta vi a cama vazia, e antes de entender o que acontecia, fui atingida pela porta maciça. O impacto me jogou contra o batente, e em

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seguida fui golpeada de novo. Atordoada, senti o cabelo ser puxado para trás com força.

— Não vou permitir que me seduza, demônio! Só então reagi. Agarrando a mão que me prendia, torci

o pulso até me soltar. A outra mão veio em minha direção e eu a aparei. De seus dedos tirei um longo caco da terrina que eu quebrara na noite anterior. Com um puxão lancei o giovanetto na cama, montando a cavaleiro sobre ele para imobilizá-lo. Vi a hostilidade em seu olhar.

— Você quer condenar minha alma ao inferno — voci-ferou ele, debatendo-se entre minhas pernas, que o mantinham bem preso.

Tanto vigor. Num único movimento, livrei-me da cami-sola, tirando-a pela cabeça. Não vestia nada por baixo. Meus seios projetavam-se firmes, os mamilos contraídos e duros an-tecipando o prazer. Meu sexo pressionava o dele, e um enrije-cimento súbito traiu o instante em que ele se deu conta disso. Minha mão afagou seu peito e desceu até perder-se na floresta de pêlos que se estendia pelo baixo ventre.

— Não. Quero levar seu corpo ao paraíso. Prendi seus braços com as mãos e me debrucei sobre

ele. Meus seios comprimiram-se contra seu peito. Nossos lá-bios se encontraram. Ele arqueou as costas e apertou-se mais contra mim, e agora estava rígido como uma barra de ferro. Enquanto nossas bocas devoravam-se, sôfregas, passei a mo-ver-me ritmicamente sobre seu membro firme. Giuliano con-torceu-se e percebi que tentava penetrar-me. Esquivei-me com uma risada, e seus braços me envolveram, fortes e decididos, mantendo-me numa posição que lhe permitia entrar em mim. Se eu quisesse, poderia ter me soltado. Mas não queria. Com uma estocada certeira, ele entrou. Num acordo sem palavras rolamos na cama e agora era ele quem me cavalgava. Nossos movimentos se tornaram urgentes, sincronizando-se por si só. A fricção de sua carne na minha, enquanto ele deslizava para

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dentro e para fora em investidas cada vez mais rápidas, cada vez mais curtas, em breve levou-me à beira do gozo.

Foi quando assumi o controle. Forcei-o de novo a rolar na cama e voltei a ficar por cima. De imediato cravei na lateral de sua garganta minhas recém-surgidas presas. O primeiro gole de seu sangue me trouxe uma explosão de satisfação. Gritamos ao mesmo tempo, quando alcançamos juntos o orgasmo.

Nossos corpos descaíram no leito, esgotados. Giuliano arfava, e sob minha mão senti seu coração acelerado. Apoiada em um cotovelo, afundei o rosto no pescoço dele e lambi o sangue que vertia das perfurações de meus dentes. A saliva vampírica agiu de pronto e logo só restavam duas marcas qua-se invisíveis. Ficamos deitados lado a lado, até que notei, pela respiração pausada, que meu giovanetto adormecera.

Saí em silêncio do aposento, levando nas mãos minha camisola e nas veias a lembrança cálida de seu sangue, que embalou meu sono diurno.

Horas depois, despertei ao som de um pranto convulsi-vo vindo através da porta aferrolhada que me separava de Giu-liano. Ao entrar na alcova daí a pouco, levando um prato de cozido, ele estava sentado na cama, os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça entre as mãos. Deixei o prato na mesa e saí, sem dizer nada. Retornei no fim da noite, e achei vazio o pra-to. Meu giovanetto comera por vontade própria, uma mudança de atitude que me encheu de alento. Ele continuava na mesma posição. Entrelaçando os dedos em seu cabelo, puxei-lhe a cabeça para trás, forçando-o a olhar-me. A face molhada de lágrimas contraiu-se num ricto de fúria.

— Por que faz isto comigo? — ele gritou. — O que ga-nha roubando minha dignidade, torturando minha consciên-cia?

Pousei a palma da mão em seu rosto áspero com a bar-ba de vários dias.

— Estou lhe oferecendo um prazer que jamais imagi-nou. Que mal há em aceitá-lo?

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Ele cerrou os olhos numa angústia evidente. — O preço — sussurrou. Aproximei o rosto, nossos lábios quase tocando-se. — Que preço? — murmurei de encontro à boca convi-

dativa. Meu desejo se agitava. Os olhos dele se abriram lentamente, duas gemas pre-

ciosas fitando-me sombrias, o brilho de céu primaveril empa-nado por uma resignação desesperançada.

— Meu dever de irmão. Vingar o assassinato de Dome-nico.

— Seu único dever é para consigo mesmo — disse eu baixinho, os lábios roçando os dele antes de envolvê-los num beijo feroz.

Os braços dele se fecharam ao meu redor, apertando-me contra si, e juntos nos deixamos cair na cama. Seu sexo já estava rijo e pronto.

Tive então a certeza de ter dominado seu corpo. Sua alma seria questão de tempo, lembro-me de haver pensado. Não fazia idéia do quão enganada estava.

CONVIVÊNCIA

Consumada a conquista de seu corpo, Giuliano Sacchet-ti tornou-se prisioneiro de seus próprios apetites sensuais.

Eu o visitava em sua cela noite após noite. Noite após noite nossos corpos nus se entrelaçavam numa busca frenética pelo prazer. Eu o beijava, lambia, afagava. Enquanto suas mãos exploravam meu corpo, eu tomava seu membro entre as minhas e fazia-o alvo de atenções dedicadas, até que meu bello giovanetto chegasse ao limiar do gozo. Deliciava-me ver em sua face o misto de frustração e ansiedade quando eu subitamente o soltava, sem permitir que alcançasse o êxtase. Ele então me tomava com brutalidade, me atirava no colchão e me possuía com voracidade animal, sem cuidados, apenas buscando satis-

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fazer-se dentro de mim. Ele aprendera rápido que era assim que eu queria. Quando o ritmo de suas investidas se acelerava, adquirindo regularidade mecânica, e o clímax se avizinhava, eu fincava as presas em sua garganta e, com o gosto de sangue denso e quente em minha boca, juntos mergulhávamos numa explosão de gloriosa plenitude.

Nesses atos amorosos, assaltava-me a tentação de beber mais sangue do que a prudência aconselharia. Como seria dre-nar as forças de meu amante, absorver toda sua energia, sentir o momento em que a vida findasse? A delícia da última fagulha se apagando, essa tentação tão irresistível que transforma os vampiros em assassinos, embora não precisemos matar nossas presas para saciar nossa fome. Mas como não ceder à pro-messa da mais sublime das sensações, o melhor dos orgasmos? O medo por meu belo parceiro era constante, e assim impus como norma jamais visitá-lo sem antes fartar-me do sangue de mendigos, viajantes e outros andarilhos noturnos que surpre-endia pelas estradas. Era a morte deles que eu degustava, fan-tasiando por vezes ser a de meu amado.

Todas as noites, portanto, contentava-me com o menor dos goles do sangue dele, e sonhava com a chance de um dia poder me embriagar com ele, tomá-lo à larga, sem limites, sem o rígido controle que impunha a mim mesma.

Inconsciente do perigo, Giuliano participava de nossas celebrações sexuais com feroz determinação. A ânsia pelo pra-zer era evidente na forma como suas mãos me agarravam e me acariciavam. No calor de seu corpo prendendo-me de encon-tro ao leito. Na boca ávida devorando-me em beijos que não poupavam um centímetro de mim, tanto mais instigantes quanto mais obscenos fossem. Depressa ele descobriu o delei-te de ser mordido, de ter o sangue tomado, e a visão de meus caninos afiados já não lhe trazia terror, mas excitada expectati-va. Ainda, para que o sangramento diário não o debilitasse, comecei a dar-lhe de beber pequeninas doses de meu sangue, outra prática que ele logo deixou de temer e passou a ansiar.

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Os beijos sangrentos já não eram a marca de minha monstruosidade, mas um prêmio cobiçado. Toda noite ele me esperava impaciente, andando de um lado a outro na pequena alcova como um animal selvagem. Soberbo animal. Parecia ser agora fisicamente dependente de mim, como um viciado ansi-oso pela nova dose de uma droga.

Tamanha era sua dependência que em breve eu já não temia tirá-lo da cela para juntos percorrermos as belas paisa-gens da campanha toscana ao redor de Il Rossignolo. Caminhá-vamos sob as estrelas, cavalgávamos por caminhos serpentean-tes, fazíamos amor sob os olivais, um amor apressado dado o temor do pudico Giuliano de que fôssemos vistos; um receio insuficiente, porém, para conter sua avidez por mim. As vezes eu me afastava de meu fascinante parceiro, sob o pretexto de colher alguma flor ou espiar por cima de um muro. Fingia dei-xá-lo livre, fingia abrandar a vigilância. Preso pela mais forte das correntes, seu próprio desejo, ele jamais deu mostras de tentar fugir.

Eu saboreava os momentos que partilhávamos após o sexo, nos braços um do outro. Nesses instantes íntimos ele me falou de si, um homem introspectivo que preferia morar nas terras da família e trabalhar nos vinhedos a participar da vida social urbana de Florença. No dia a dia inspecionava os parrei-rais e administrava os negócios. Durante a vindima, no outo-no, ajudava na colheita, conduzia carroças, carregava tonéis e esmagava as uvas junto com os camponeses. Embora os pra-zeres do corpo feminino não lhe fossem desconhecidos, levava uma existência quase monástica. Eu era a primeira mulher com quem mantinha uma relação mais duradoura que uma noite num bordel.

A intensa atividade sexual a que eu o forçava era-lhe muito insólita, e ele acatava minhas ordens, sugestões e insinu-ações com curiosidade e entusiasmo indisfarcáveis.

Nem tudo, porém, era perfeição. Embora falasse sobre si, Giuliano Sacchetti jamais me fez perguntas. Talvez tentasse

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iludir-se, desviando o olhar para não ver o que eu era: o mons-tro que matara seu irmão. A despeito das delícias colhidas a cada noite, eu ainda despertava com seu pranto. Durante meu repouso, ele ainda permanecia confinado, a porta aferrolhada garantindo minha segurança contra um repente de sua cons-ciência. Sozinho, a culpa e a vergonha o esmagavam, e ele se atormentava por sua fraqueza. Em seu íntimo ainda rugia a tormenta do conflito, e a consciência o torturava por relegar a segundo plano o dever fraterno, em favor de uma relação que considerava obscena.

Minha vitória não se consumara, pois sua lealdade não me pertencia. Eu o tinha fisicamente, mas não conquistara seu espírito.

FATALIDADE

Pouco mais de um ano transcorreu. Giuliano Sacchetti estava mudado, e já não podia chamá-lo de giovanetto. As belas feições haviam amadurecido e uma indefinível mas óbvia de-terminação se instalara em seu semblante. No olhar não restara nada da adolescência. Até os cabelos dourados pareciam ter escurecido e assumido um tom mais adulto. O corpo estava mais robusto e os movimentos eram diferentes, mais enérgi-cos, mais bruscos. Sua musculatura mantinha-se firme, rija, não só por conta dos vigorosos jogos amorosos que eu lhe impunha noite após noite, mas também como efeito colateral da ingestão de meu sangue vampírico.

A ambigüidade de seus sentimentos por mim prossegui-a, assim como minhas tentações e fantasias acerca de sua mor-te. Minha imaginação ainda se perguntava E se eu me rendesse à tentação? Como seria o prazer de drená-lo até o fim ? Volta e meia tais questões ocupavam por completo minha mente, sem que eu pudesse pensar noutra coisa, e durante horas dava voltas e vol-

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tas em meu quarto, resistindo ao impulso de cruzar a porta que nos separava e descobrir as respostas de uma vez por todas.

Mas um incidente fortuito imprimiu aos acontecimentos um rumo inesperado.

Foi numa noite suave de primavera que matei Giuliano Sacchetti, meu prisioneiro e amante.

Era uma das primeiras noites tépidas do ano, e conduzí-amos nossos cavalos por um bosque onde folhas novas enfei-tavam cada ramo. A vida retomava seu curso após a pausa do inverno. Estar ao ar livre e sentir o vento no rosto era adorá-vel. Os primeiros acordes dos rouxinóis enchiam a noite. A idéia do passeio tinha sido de Giuliano, que implorara para sair da Villa, o que praticamente não fizéramos por todo o inver-no. Não precisou insistir muito. Eu ansiava desfrutar a beleza da noite com ele, talvez fazer amor à beira de um regato, em-balados pelo rouxinol.

Num ponto onde o caminho se alargava, ele empare-lhou o cavalo ao meu.

— E qual o motivo da celebração? — perguntou, reto-mando a conversa sobre uma festa que aconteceria daí a algu-mas noites e para a qual eu havia sido convidada.

— A chegada da primavera. Lourenço quer celebrar o amor primaveril.

— Bem sei que tipo de amor Lourenço quer celebrar com você!

O ciúme evidente me deliciou. Rindo, estendi a mão e puxei-o pelo braço. Beijei seu rosto.

— Não seja bobo, há anos não há mais nada entre Lou-renço e mim.

— Justamente por não ser bobo é que não confio nas intenções dele.

— Lourenço de Médicis é feio como um cão doente e quase um palmo mais baixo que eu. Jamais pensaria em trocar você por ele! — eu mentia. Não foi por beleza ou estatura que Lourenço recebeu a alcunha de Magnífico, mas por seu poder

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e por ser um mecenas grandioso, patrocinando gênios como Leonardo, Michelangelo e Botticelli. Eu o teria tomado nova-mente como amante a qualquer momento, se acaso vampirizar o príncipe e senhor máximo da cidade-estado de Florença não fosse um jogo por demais arriscado.

— Além do mais, caro mio, você estará lá comigo, ou a-cha que iria sozinha à festa? — continuei, observando-lhe o perfil másculo, perfeito, para ver como ele recebia a novidade. Mas seus olhos estavam fixos a nossa frente.

— O que é aquilo? — ele exclamou de repente, tirando-me de meus devaneios.

Adiante, na beira do caminho, dois vultos eram ilumi-nados pelo luar que se infiltrava, intenso, pelas copas ralas das árvores.

— Duas pessoas — minha visão era muito melhor que a dele.

— Salteadores? — Não, monges mendicantes — respondi, tensa. Não

raro eram a mesma coisa. — Francesca, não estou gostando dis... — começou ele,

ao passarmos pelos vultos. Nesse instante eles pularam sobre nós, gritando como

loucos e agitando os braços no ar. O objetivo do ataque súbito foi assustar os cavalos, que empinaram aterrorizados.

Surpreendidos, Giuliano e eu fomos atirados ao chão. O impulso do arremesso me fez rolar para longe, por um peque-no declive. Zonza, e com as pernas enleadas na longa saia e incontáveis anáguas, demorei para pôr-me de pé. Assim que consegui, corri encosta acima. Eu ouvia ruídos de luta e temia por Giuliano.

Um dos assaltantes cortou minha frente e se atirou so-bre mim, derrubando-me de novo. Estava armado com uma faca, que cravou fundo em meu abdome.

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— Maldito! — urrei, e segurando sua cabeça entre as mãos, torci com força o pescoço, que se partiu com um estalo seco. O homem desabou, já morto.

No mesmo instante ouvi um grito de dor. Giuliano! Er-gui-me num salto e fui até onde estava caído, o segundo mon-ge debruçado sobre ele. Agarrei o salteador pelos andrajos que vestia e arranquei-o de perto de Giuliano, com tal força que ele descreveu um arco no ar e estatelou-se no lenho de um pinhei-ro vários metros distante.

— Giuliano, você está bem? — mesmo enquanto per-guntava, já sabia que não.

O cheiro do sangue alcançou minhas narinas, vindo da mancha escarlate que crescia em seu peito. Os olhos dele se arregalaram em minha direção, cheios de terror.

Um grito selvagem soou c algo pesado caiu sobre mim, uma dor lancinante rasgando-me o flanco. O segundo monge me atacava por trás. O infeliz não só ferira meu humano, mas agora se atrevia a fazer o mesmo comigo. Minha ira explodiu. Dei um rugido e minhas presas projetaram-se ameaçadoras. Peguei-o pelo pescoço, erguendo-o no ar. Aterrorizado, o bandido se contorceu e acertou-me um golpe violento no lado do rosto. Cada vez mais furiosa, arranquei de sua mão a faca com que me atingira e num movimento só rasguei-lhe o ven-tre, da virilha à base do diafragma. A massa de vísceras derra-mou-se para fora do corpo dele e o cheiro combinado de san-gue, carne e excrementos espalhou-se no ar. O cheiro da mor-te. De um tronco próximo projetava-se, a uns sete palmos de altura, a ponta aguda de um galho quebrado. Empalei ali o monge-bandido e me afastei dois passos para contemplar mi-nha obra: enrascados nas vísceras, os pés agitavam-se inúteis a um palmo do chão, enquanto as mãos envolviam, patéticas, a ponta do toco que trespassava o corpo para emergir pouco abaixo do esterno.

Cedi ao impulso animal e mergulhei a cara no ventre quase vazio. Lambuzei-me e fartei-me do sangue do bandido

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agonizante. O ato selvagem me deu enorme satisfação. O ho-mem não ignorava que estava morrendo, e a adrenalina que corria em suas veias temperava o sangue e me enchia de eufo-ria.

Mas a vida dele não era a única que se esvaía, e a súbita lembrança do risco que Giuliano corria bastou para me arran-car do frenesi sangrento.

Voltei-me para meu amante, tentando limpar com a ca-pa o rosto ensangüentado. Quando nossos olhos se encontra-ram dei-me conta da enormidade do erro que acabava de co-meter. Por tanto tempo eu evitara que Giuliano Sacchetti pre-senciasse minhas refeições sangrentas. Era certo que ele me vira drenar a vida do irmão, aferrada ao pescoço que havia es-traçalhado com os dentes, mas ele assistira de longe, na escuri-dão da noite, e o tempo atenuara os detalhes. Entretanto, o que acabava de testemunhar agora tão perto de si, à luz tão reveladora da lua quase cheia, estava além de qualquer cenário de horror que a memória ou a imaginação pudessem pintar-lhe. Estarrecido e ofegante, ele me olhava com repugnância. De repente teve um acesso de tosse. Um jorro de sangue saiu de sua boca, e uma espuma rósea passou a se formar com cada expiração. O punhal do salteador tinha perfurado seu pulmão.

Ajoelhei-me e tomei-o nos braços, angustiada, mas ele tentou me empurrar para longe, golpeando-me debilmente com os punhos cerrados.

— Afaste-se de mim, ser maldito, artefato do demônio. Seu propósito único é ludibriar os homens e condenar suas almas à danação eterna.

Num novo acesso de tosse, ele expeliu mais sangue. Em vez de soltá-lo, ajeitei-o melhor. Ele começou a chorar.

— Estou amaldiçoado, fadado ao fogo eterno do infer-no. Você é uma assassina maldita, e mesmo vendo-a banhar-se em sangue e gozar a morte alheia, ainda assim eu a amo mais que à minha alma. Estou perdido, sou um desgraçado!

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Afaguei seu rosto onde a lividez da morte começava a se instalar.

— Ele atacou você, Giuliano. Ele o feriu de morte. Eu só lhe dei o castigo merecido. Ninguém faz mal àqueles que me são caros e permanece impune.

— Não falo desse infeliz. Falo de você e de todos que matou. Você viceja em meio à morte, e para você a vida hu-mana não tem valor.

Aquilo me irritou. Segurei seu rosto com uma mão para que me olhasse. Um tremor percorria meu corpo tenso de fú-ria.

Como se matar me fizesse diferente da raça humana. Olhe ao redor, Giuliano, estamos cercado de assassinos e monstros. A vida não vale nada para os próprios humanos. Traição, vingança, rixas banais, qualquer motivo é bom para a morte de um desafeto. A venietta faz parte dos deveres familia-res. O poder se mantém à custa de crimes pagos, a ponto de ninguém acreditar que um poderoso possa morrer de causas naturais. Você me acusa como se fosse uma pecadora entre virtuosos. Acaso isto... — apontei minha vítima presa à árvore — ...é mais condenável do que o uso de venenos que matam a vítima aos poucos, prolongando por meses sua agonia? — a-proximei-me mais de sua face, e meu sussurro se tornou den-so, quase sexual. — Nem os Papas estão acima de qualquer suspeita.

— Você toma o sangue de suas vítimas. Isso é mons-truoso.

— Se eu quiser, posso matar minhas vítimas em meio ao mais esplendoroso prazer. Posso transformar a morte numa experiência sublime. Acaso minha morte teria sido esplendo-rosa se tivesse cortado meu pescoço com sua foice? Não foi monstruoso você tentar decapitar-me e depois cravar uma a-daga em meu coração?

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— Foi diferente... — o protesto débil foi interrompido por mais um acesso de tosse e mais sangue saindo de sua boca. O tempo dele se esgotava.

— Dois golpes fatais desferidos por amor podem ser tão diferentes a ponto de um ser aceitável e outro não? Essa discussão não faz sentido, Giuliano, eu o amo e você está mor-rendo.

— Também a amo, Francesca — ele gemeu. — Por Deus, como eu a amo! Por favor, me abrace, tenho frio...

Eu o abracei e seu braço me envolveu sem forca. A vida dele esvaía-se. Havia uma saída. Eu poderia salvá-lo da morte definitiva. Mas só o faria com o consentimento dele, ou o risco seria demasiado.

— Giuliano, posso salvá-lo se o transformar num ser como eu.

O corpo dele se retesou. — Não, Francesca, nunca! — protestou, alarmado, e o

esforço o fez tossir. Sangue escorreu de sua boca. Ofegante, ele perguntou — Você me ama de fato?

— Amo — quase não hesitei. Ele não deve ter notado. Não era o momento para explicações acerca das sutis diferen-ças entre amor, paixão e obsessão.

— Tenho um pedido. Promete cumpri-lo? — pela ur-gência na voz, ele percebia o quão próximo estava o fim.

— Diga o que quer e se estiver a meu alcance eu o farei — respondi, cautelosa. Não imaginava o que ele pretendia, mas tinha o pressentimento de que não ia gostar.

— Mate-me. Agora. Já — um esgar contorceu sua bela face.

— Giuliano! — gritei, horrorizada — Você não sabe o que diz! Você perdeu o juízo.

Ele fechou os olhos e deu uma risadinha amarga, segui-da de novo acesso de tosse, mais espuma sangrenta e, por fim, um ricto de dor.

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— Sim, perdi o juízo por você, quando cedi à tentação do prazer e tornei-me seu amante. Amo-a mais que a mim mesmo, mas não posso amá-la mais que a Domenico. Eu o traí por luxúria, Francesca. Mate-me e devolva a honra que insultei por tanto tempo.

O discurso inflamado o exauriu, e ele fechou os olhos. A respiração produzia um som borbulhante em seu peito. A-ninhei-o junto a mim.

— Giuliano, você não pode estar sendo sincero — sus-surrei com paixão em seu ouvido. — Eu lhe ofereço a imorta-lidade. Quero torná-lo igual a mim.

— Não quero ser um traidor para todo o sempre, nem um assassino. A convicção em suas palavras dizia que ele não ia voltar atrás. Isso encerrava a questão. Ele morreria. Trans-formá-lo a sua revelia era impensável, pois não se cria um vampiro sem sua anuência e cumplicidade. Essa é uma regra de ouro. Só loucos ou idiotas rematados se arriscam a perpetu-ar ressentimentos e rancores e criar um inimigo imortal.

Por outro lado, a idéia de perde-lo era intolerável. An-gustiada, beijei-o com o fogo da paixão e do desespero. Minha boca passeou pela dele, bebendo seus líquidos. O sabor suave da saliva misturava-se ao calor apetitoso do sangue que verte-ra. Mais, eu queria mais. Minha língua meteu-se entre seus lá-bios, sedenta. O aroma agridoce do sangue envolvia-nos como um manto aconchegante. Gemi, deliciada. Ele virou o rosto e o movimento expôs a pulsação tênue do sangue na lateral da garganta.

— Não dificulte tudo, Francesca. Cumpra sua promes-sa. Mate-me agora.

A súplica aflita me liberou da responsabilidade que por meses me atormentara. Por fim podia entregar-me sem culpa à tentação e degustar o deleite supremo de sua morte. Eu o ma-taria, mas não pela promessa. Ela era um pretexto. Eu o faria por mim e por meu apetite assassino. Meus caninos se alonga-ram. Enterrei-os no pescoço dele e rasguei sua carne. A pri-

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meira golfada de sangue em minha boca foi devastadora. Seu calor se irradiou por meu corpo, eletrizando-me com a própria essência de Giuliano, seus desejos e paixões, tão inebriantes como o sangue em si. Minha excitação crescente transmitiu-se através de nossa ligação de sangue, e senti o instante em que, dentro dele, o prazer tomou o lugar do medo. O gemido que deu era de puro êxtase. Aferrei-me com mais força a seu pes-coço e redobrei o empenho com que lhe tomava o sangue.

Então ele começou a chorar. — Não quero morrer, Francesca... não quero... não

posso... — pediu, desesperado. Surpresa, afastei meus dentes de sua garganta e o enca-

rei perplexa. — Eu não quero morrer — ele repetiu com olhos fe-

bris. — Não posso abrir mão... disso... de você.... Salve-me, Francesca. Por favor, por favor não me deixe morrer!

O milagre que eu não ousara esperar havia acontecido. Afaguei sua face.

— Você perdeu sangue demais. Só posso salvá-lo con-vertendo-o. Sabe disso, não? Sabe o que me pede?

— Sim — respondeu num sussurro assustado. Em seus olhos vi a sombra do medo.

— E o que é? — perguntei, prendendo seu olhar no meu. Era necessário que ele entendesse com clareza as impli-cações do que me implorava.

— A imortalidade... assassina. Trevas eternas — lágri-mas corriam-lhe pelo rosto. — A danação de minha alma em troca do prazer. Como você, Francesca.

Corno e não com. O detalhe dava a medida da retidão de seu caráter, a honra exacerbada ao ponto do absurdo. Eu o fizera trair todos seus princípios, e estava prestes a lançá-lo na não-vida que ele execrava, e ainda assim não me acusava. Não me declarava culpada a priori por falhar-lhe no futuro — o que, eu sabia, fatalmente ocorreria. Ele antes via-se partilhando comigo uma maldição, movido não por amor mas pela tenta-

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ção da paixão carnal. Pobre rapaz idealista, impondo-se fideli-dade a um monstro. Em breve descobriria a extensão de seu erro. Mas eram seus problemas, não meus. Para mim, a sua ingênua nobreza era tranqüilizadora. Beijei-o de leve nos lá-bios.

— Então venha, bello Giuliano mio. Venha para este lado da imortalidade.

Com os dentes rasguei meu pulso e fiz Giuliano beber meu sangue. Quando mordi seu pescoço, o sangue circulou entre nós. Com a dupla troca de sangue, o prazer de novo se avolumou em mim e ecoou em meu amante. O ciclo virtuoso se intensificou mais e mais, até culminar num or-gasmo pleno, compartilhado. O último orgasmo da vida de Giuliano. En-fraquecido pela perda de sangue, ele não resistiu ao esforço e seu coração deixou de bater. Quando o fio da vida se rompeu, sua energia vital fluiu para mim numa onda gigantesca, num êxtase violento ao ponto do insuportável, e meu grito de pra-zer ecoou pelo bosque. As contrações do gozo por fim abran-daram e deixei-me cair sobre o corpo dele, exaurida. Fiquei abraçada ao cadáver ainda quente, esperando as forças retorna-rem.

Assim que pude, tomei nos braços meu amante morto e com ele corri através da estrada prateada pela lua, de volta a Il Rossignolo. Preparei com cuidado o cadáver. Limpei o sangue e a terra de sua pele e de seus cabelos, vesti-o com roupas lim-pas e acomodei-o em sua cama na alcova adjacente a meu quarto. Velei-o pelo resto da noite, e durante todo o dia se-guinte, até que, logo após o pôr-do-sol, uma forte convulsão sacudiu-lhe o corpo. Seus olhos se abriram, e num movimento brusco ele se sentou na cama.

Giuliano Sacchetti renascia como vampiro.

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REVELAÇÕES

Com a conversão, Giuliano pareceu abandonar seus princípios e a ojeriza pela existência vampírica. Nenhum sinal deles manifestou-se na primeira noite como vampiro. Estava deslumbrado com o que verdadeiramente lhe pareceu um mundo novo. Descobriu sua força descomunal, uma nova agi-lidade e a velocidade que agora igualava a minha. Ele corria pela Villa, me carregava no colo e ria como uma criança. Eu ria junto, divertindo-me com seu entusiasmo infantil. Queria saborear ao máximo o momento de felicidade, que duraria pouco e eu sabia que jamais voltaria a repetir-se.

Não demorou para que ele se desse conta também de seus novos sentidos. As cores vivas no que deveria ser escuri-dão quase total. Ruídos antes insuspeitos. Cheiros antes des-percebidos. Meus cheiros, e ele farejou o ar a meu redor, como um bicho.

— Seu perfume é tão intenso, tão maravilhoso. Como se você fosse toda uma flor... — ele me abraçou e afundou o rosto em meu pescoço, inspirando fundo. Aninhou a face na curva superior de meus seios. Inspirou uma vez mais, e suas mãos se crisparam em minhas costas quando me apertou com força. — Francesca, seu cheiro é enlouquecedor.

Sem aviso, ele me ergueu e me carregou para o quarto. Atirou-me na cama e debruçou-se sobre mim, rasgando-me as roupas, as mãos ávidas segurando-me os seios, esfregando-se em meu ventre, em minhas coxas e então afastando minhas pernas. Seus dedos encontraram meu sexo, numa carícia rude, e arqueei o corpo de encontro à mão dele. Excitado com essa reação, num instante já estava em cima de mim, dentro de mim.

— Agora não preciso mais ser cuidadosa com você — sussurrei-lhe ao ouvido, abraçando-o e entrando em ritmo com seus movimentos. — Nem você comigo.

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Ele me beijou a boca com sofreguidão. Nosso ato sexu-al transformou-se num embate violento. Logo ele percebeu o quão próximos estão prazer e dor. Eu respondia a suas estoca-das impiedosas com profundas marcas de minhas unhas em sua pele, e meus beijos se converteram em mordidas em nada semelhantes às mordidas cuidadosas anteriores a sua morte. Ele parecia estar possuído. O movimento rítmico de seus qua-dris aumentou em velocidade e ímpeto, até que todo seu corpo se retesou. Ele gozou dentro de mim com um rugido de satis-fação. Excitada, também eu gozei, e passado o momento do clímax desabamos ensangüentados, exaustos e saciados.

De repente num espasmo ele se encolheu em meus bra-ços, gemendo de dor.

— Francesca... — ele balbuciou, dobrando-se em dois, contorcendo-se todo. — O que... aaaaaaaah! Dói, Francesca, dói muito por dentro! O que está acontecendo?

Eu esperava aquilo. O orgasmo tinha drenado suas for-ças. Ele, que tanto odiara o que eu era, agora precisava sangue para aplacar a Fome. Pondo as mãos em suas faces, guiei sua boca até meu seio nu.

— Morda, caro mio, alimente-se de mim. Beba meu san-gue como jamais bebeu vinho algum.

Sem vacilar, seus dentes rasgaram a pele branca e suave, penetrando em minha carne. Gritei de dor e prazer. Ele come-çou a sugar e um novo orgasmo me assaltou, mais intenso que o anterior. Ele tomou e tomou de meu sangue. Quando achei que era suficiente, afastei-o de mim. Ele resistiu. Queria pros-seguir. Convenci-o com uma saraivada de beijos. Ele riu, acei-tou e, por fim, acomodou-se em meus braços.

— Francesca... Francesca... — murmurou, antes de cair no sono da exaustão.

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Os limites da Villa depressa ficaram estreitos demais para a imensa curiosidade de Giuliano. Voltamos a percorrer os arredores, e as noites seguintes foram as mais felizes que passamos. Sua alegria infantil com a noite estrelada, com as fragrâncias trazidas pelo vento e a suave beleza dos prados floridos. Tudo, tudo, tudo lhe chamava a atenção.

Nos momentos mais inesperados, ele me agarrava e, conservando ainda algo de seu recato, me levava para algum arvoredo ao resguardo de olhares indiscretos. Ali nos entregá-vamos a delirantes jogos amorosos, dos quais emergíamos ro-tos e ensangüentados. Voltávamos para casa rindo, perseguin-do-nos, brincando como adolescentes.

Três noites. Foi o quanto durou a felicidade do vampiro Giuliano. Ela terminou no momento em que, fazendo a pri-meira presa, ele descobriu o monstro em que se tornara. A partir desse instante fatídico, os eventos trágicos se sucederam com rapidez assustadora, minhas ilusões se esfumaram e perdi todo o controle que julgara ter sobre o destino.

Na terceira noite de Giuliano como vampiro, cavalga-mos até um prado às margens do rio Arno, cercado por um bosque denso, repleto dos sons da noite de primavera. Deixa-mos os cavalos pastando e tomamos a trilha que levava às ruí-nas de um antigo moinho, bem na beira d’água. Sentados lado a lado, saboreávamos a paisagem, os cheiros, o rumor das á-guas que ali se lançavam numa corredeira pequena mas turbu-lenta.

— A festa de Lourenço é amanhã — disse eu, acima do barulho do rio.

— E...? — perguntou ele, passando-me o braço pela cintura e beijando meu pescoço. Abracei-o e nossas bocas se encontraram.

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— Precisamos conseguir roupas para você — disse-lhe, sem interromper o beijo. Senti nos lábios o sorriso que arque-ou os dele.

Os braços me apertaram e o beijo ficou mais intenso. Eu podia adivinhar o que lhe passava pela mente. Depois da solidão que por tanto tempo eu lhe impusera, a idéia de ver-se rodeado de pessoas elegantes, divertidas e cultas era irresistí-vel. Ele estaria imaginando como seriam, para seus sensos vampíricos, a iluminação abundante, a intensidade sonora da música, dos risos e de dezenas de conversações simultâneas.

Mas enquanto suas mãos moviam-se numa óbvia inten-ção atrevida, o que eu me perguntava era como reagiria ele quando o perfume do sangue de dezenas de pessoas o envol-vesse quente e sufocante, aguçando um apetite que ele ainda não descobrira. Apesar da inquietação que o pensamento tra-zia, se não estivesse disposta a saber a resposta não teria toca-do no assunto. Em algum momento minha cria teria de con-frontar-se com a real extensão de sua nova condição, e eu pre-feria não prolongar a espera.

Do modo como tudo ocorreu, porém, esse confronto se deu antes do que eu pretendia.

Sustentando-me com um braço, Giuliano beijava um seio que meu decote mal escondia, a outra mão ocupada em soltar os colchetes e ganchinhos que prendiam o corpete de meu vestido. Fechei os olhos, antecipando o prazer. Foi então que ouvimos um cão latir e, quase de imediato, os relinchos dos cavalos e o som de seu galopar afastando-se.

Giuliano soltou uma praga, enquanto eu fazia menção de desvencilhar-me de seus braços. Minhas vestes deslizaram por meu corpo, desnudando-me da cintura para cima.

— Fique aqui — disse ele, pondo-se de pé. — Vou a-trás deles para trazê-los de volta.

Antes que eu objetasse ele se foi, com rapidez vampíri-ca. Pensei em segui-lo mas acabei ficando onde estava. Ele soara bem satisfeito por poder usar suas novas habilidades pa-

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ra algo prático. Deixei-me estar ali, desfrutando a paisagem e sentindo na pele a caricia fria do vento de primavera.

Entretanto, o tempo passou e ele não retornava. Ao ca-bo de vinte minutos a inquietação me venceu. Compus minhas roupas o suficiente e fui a sua procura..

Não havia sinal dele ou dos cavalos no lugar onde os tí-nhamos deixado. Seguindo o caminho que nos trouxera ali, notei as pegadas de Giuliano por cima dos rastros dos animais. Ao chegar na estrada principal, eles tinham tomado a esquerda. Sempre atrás dos rastros, caminhei cerca de dez minutos até vislumbrar um casebre ao lado da estrada.

Com uma sensação funesta, aproximei-me da porta. Aberta. Lá dentro ouvia um pranto que conhecia bem. Esta-cando no umbral, vi a cena que já esperava. De joelhos, Giuli-ano tinha nos braços uma velha. O sangue escorria de duas feridas no pescoço dela até a gola de sua camisa encardida, onde uma mancha encarnada alastrava-se devagar. Eu presen-ciara a morte vezes suficientes para reconhecê-la nos olhos semicerrados e na expressão final de perplexa agonia.

Giuliano virou para mim o rosto riscado por lágrimas de sangue e a consternação me invadiu, ao ver confirmados meus temores. Os últimos dias tinham sido a calmaria que precede a tormenta. Ele não abandonara a aversão à condição vampírica. Nem mesmo o prazer proporcionado pela morte da vítima mudara isso.

— O que fiz? O que fiz? Estava passando diante da ca-sa e... Ouvi o bater do coração dela e não pude resistir. Eu que-ria o sangue dela, ansiava por sua morte. Entrei, ela gritou e lutou comigo, mas eu a mordi e tomei seu sangue. Quanto mais tomava, maior minha sede por ele. Sabia que a estava ma-tando, e tentei parar, mas... O prazer, Francesca, o prazer foi mais forte, e eu não consegui... não consegui...

Nos olhos marejados de vermelho havia um pedido de socorro. Por algum motivo isso me irritou profundamente. Veio-me à lembrança o instante de sua morte, e como eu acre-

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ditara que ele de fato tinha entendido e aceitado as implicações da transformação.

— Estamos perto demais de Il Rossignolo, Giuliano. Te-mos de destruir o corpo para evitar que desconfiem de nossa existência — disse eu com uma raiva contida.

Certamente não era o que ele esperara ouvir. Seus olhos se arregalaram e o horror tomou conta do belo semblante.

— A pobre velha está morta, Francesca, eu a matei, e tudo o que você diz é que temos de ocultar o crime?

— O que queria que eu dissesse? Nem bem se afasta de mim, você já perde o controle. Se continuar assim, não vai du-rar muito. E nem será com eles que terá de se preocupar, por-que eu é que tomarei uma providência para que não o descu-bram, ou a mim.

— Eu a matei, Francesca, eu a assassinei! Segurei-o pelo queixo e forcei-o a ficar de pé. O corpo

da mulher caiu no chão com um ruído surdo. — Sim, você a assassinou, e vai assassinar outros depois

dela. Você fez a escolha, Giuliano. Você preferiu assim, e deve arcar com as conseqüências. Agora vamos, temos de dar um jeito nela antes de voltarmos para casa. Lá conversaremos so-bre isso.

Ainda chocado com minha reação, ele não se moveu a não ser para sair da casa. Tive de fazer tudo sozinha. Com a pederneira da própria mulher, obtive uma chama que logo se alastrou pelo casebre num incêndio que o destruiria por com-pleto, junto com o cadáver. A tapera ardia quando nos afasta-mos rumo à Villa. Giuliano seguia-me calado. Chegamos a uma bifurcação. Uma estrada levava a Florença, a outra a Il Rossignolo. Só aí ele abandonou seu mutismo.

— Não vou com você — anunciou. — O que disse? — perguntei, surpreendida com a ati-

tude dele. — Não vou voltar para a Villa — repetiu ele. — Sinto

necessidade de estar só, de afastar-me de você.

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Que podia eu dizer? Concordei com a cabeça. — Como quiser. Mas veja lá o que vai fazer, ou terei de

matá-lo. Ele não se moveu e ficou me olhando. Estava claro que queria que eu falasse algo mais, talvez que implorasse para ele mudar de idéia. Não o faria. Ele mesmo teria que lutar con-tra seus demônios. Era sua a missão de entrar em um acordo com o ser em que se transformara. Virei-me para ir embora e ele me deteve com a mão em meu braço.

— Espere, você não pode fazer isso comigo. — Isso o quê? — respondi, sem sequer me voltar. — Ir embora sem me ajudar. Sem me dar explicações Virei-me tão rápido que ele deu dois passos para trás,

assustado. — Ajudar como? Quer que lhe afague a cabeça e diga

que está tudo bem? Que o convença de que não fez nada de mais, nada de mal? Não há explicações a dar, Giuliano. Você é um vampiro, aprenda a lidar com isso. Se prefere afastar-se de mim, tanto melhor. Não quero a meu lado um ser atormenta-do, que implorou pela imortalidade e agora não sabe o que fazer dela. Aproveite para refletir e ponderar. Quando estiver em paz consigo, volte a Il Rossignolo. Enquanto isso, faça o que bem entender. Só não ponha em perigo sua vida, e por exten-são a minha, pois é algo que não admitirei.

— Como pode ser tão cruel, Francesca? Você é um monstro — ele disse, amargurado.

— Foi por isso que você tentou me matar, em primeiro lugar — respondi, glacial. — E não se esqueça, meu caro, de que agora você também é como eu.

Ele estendeu as mãos numa súplica que teria me como-vido se não fosse patética.

— No que foi que me transformei? Não bastava ter em mim o sangue de Domenico e tornar-me cúmplice de sua as-sassina, agora também sou um assassino. Troquei a lealdade a meu irmão por estes apetites profanos, hediondos. Eu perdi minha alma.

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— Não suporto lamúrias, Giuliano — suspirei. — Se quer remediar a situação, fique aqui e deixe que o nascer do sol ponha fim ao seu sofrimento, para sempre.

— Sou um fraco, não posso — ele baixou a cabeça. — Lamento, o que posso fazer é dar um conselho: a-

prenda a controlar-se e abra mão do prazer supremo de sentir partir-se o fio da vida de suas presas. Se acha necessário pou-pá-las, pode alimentar-se sem matar.

Com isso, virei-me e parti. Ainda o ouvi implorar que ficasse, e perguntar se não sentia mais amor por ele, se não o queria mais. No momento, só o que sentia era asco. E o que queria era distância.

DECISÕES

Chegando a Il Rossignolo, fui recebida pela solidão da ca-sa vazia. Por toda parte havia lembranças da presença recente de Giuliano. Seu cheiro pairava no ar. Em meu quarto, meu olhar deteve-se nos lençóis revoltos da cama onde horas antes fizéramos amor. Pela porta aberta da alcova, a visão de suas roupas atiradas de qualquer jeito, aguardando uma volta que não ocorreria, me encheu de melancolia. Vaguei pela casa e a sensação de perda me perseguiu. Não amava Giuliano, não estava apaixonada, mas isso não mudava o fato de que sentia sua falta. Talvez como quem sente falta de um bicho de esti-mação ou um brinquedo divertido. Ainda assim, era um sen-timento amargo.

A debilidade decorrente do nascer do sol me fez buscar abrigo num aposento que não era usado havia anos, e onde não havia traços de Giuliano. Em meio ao pó acumulado e ao fedor dos ratos, caí num sono perturbado, povoado por fan-tasmas de amantes há muito desaparecidos. Numa cena recor-rente, Giuliano e Lourenço de Médicis uniam-se para zombar e gargalhar enquanto eu tentava em vão correr para longe de-

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les. Despertei com o anoitecer, e manchas rubras no travessei-ro imundo revelaram que chorara durante o sono. Furiosa com tanta fraqueza, assumi o firme propósito de não mais pensar em Giuliano.

Mas era impossível. Nem por um segundo deixei de vê-lo com os olhos da mente.

Foi assim que, a despeito de mim mesma, em breve cor-ria pela campanha rumo ao local onde o deixara na noite ante-rior, torturando-me a idéia de que tivesse seguido minha su-gestão de deixar-se matar pelo sol nascente. Ao chegar lá, constatei aliviada que não havia nem cinzas, nem cheiro ou qualquer outro sinal de imolação.

Onde estaria ele? Imaginei que tivesse ido para um lugar familiar. Os vinhedos da casa Sacchetti, em Badia a Coltibuo-no, distavam muito dali. Florença era o destino mais plausível. Para lá rumei de imediato. Perturbava-me a idéia de que tivesse retornado à residência da família, revelando aos parentes sua condição.

Percorri as ruas buscando indícios de sua presença. Du-as vezes topei com bandos ruidosos de rufiões, conseguindo passar despercebida. Num deles, reconheci antigos compa-nheiros do irmão de Giuliano. Perto da Piazza delia Signoria, a sorte me favoreceu, e farejei o cheiro ainda intenso de Giulia-no. Ele passara ali havia pouco, rumo a Ponte Vecchio. Sim, estava indo para casa, situada em Oltrarno, do outro lado do rio. Cruzei a ponte o mais depressa que podia.

Ao me aproximar do pallazzo Sacchetti, esgueirando-me nas sombras, o alívio me invadiu. Giuliano estava parado dian-te da grande porta de madeira. Uma velha com um lanterna abriu-lhe a porta. Ele murmurou algo, e ela fez caminho para que entrasse. A forma como ela se movia me dizia que ele a-prendera a usar a Voz. Talvez ninguém soubesse que estava de volta ao lar. Isso me tranqüilizou. Ele não estava pondo em risco nossa existência.

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Decidi não retornar a Il Rossignolo. Pelo resto da noite montei guarda à casa, e Giuliano não mais a abandonou. Ante a iminência do amanhecer, invadi uma casa onde apenas dois corações batiam, na cadência suave do sono. Uma dama e sua criada. Uma visita curta a cada uma me garantiu algum alimen-to e a certeza de que não visitariam os porões durante o dia. Foi lá, entre garrafas de vinho, móveis antigos e presuntos em maturação, que passei em segurança todo o período diurno.

Mal escureceu, retomei a vigília ao pallazzo Sacchetti. Logo Giuliano saiu rumo à ponte, cruzou o Arno e enfiou-se pelo labirinto urbano de Florença, por onde vagou um par de horas. Eu sempre atrás dele. Sabia o que passava por sua cabe-ça. Ele revia lugares familiares que, através dos novos sensos, agora pareciam tão desconhecidos.

Mas talvez houvesse algo mais. Um vampiro recém-criado tem um apetite voraz, implacável. Se, no afã de comba-ter os impulsos vampíricos que tanto abominava, ele não tives-se se alimentado na noite anterior, hoje estaria à mercê da Fo-me. Alguma hora cederia. Eu queria estar lá, para protegê-lo de si mesmo. E evitar que criasse problemas para mim.

Seria já por volta da meia-noite quando ele entrou numa estalagem. Hesitei por um momento. Ficar ali implicava em perdê-lo de vista num momento crítico. Decidi entrar também, mesmo sob risco dele me descobrir. Fatalmente aconteceria, se entrasse sozinha.

Assim, usei a Voz com o primeiro homem que passou. Usando-o como disfarce, abracei-o e cruzei o salão lotado de gente, ruídos e cheiros. Acomodamo-nos no canto de uma mesa, de forma tal que ele me servia de anteparo, enquanto eu tingia dar-lhe atenção. Giuliano, do outro lado do salão, entre-tinha-se com uma jovem.

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Um alarido súbito chamou minha atenção para um gru-po barulhento no centro do aposento. Com desagrado reco-nheci, uma vez mais, os companheiros de Domenico. Não se-ria coincidência. Giuliano viera a este lugar porque seu irmão costumara freqüentá-lo. Tentei controlar a súbita irritação provocada por essa imprudência.

Vi quando a jovem se ergueu e puxou Giuliano pela mão em direção às escadas. Eu sabia como aquilo terminaria se não interferisse.

— V amos lá para cima — disse com a Voz a meu acom-panhante involuntário. Erguemo-nos e de novo me abracei a ele, escondendo a cara ao passar pelos baderneiros.

No segundo andar, um corredor escuro estendia-se a minha frente, com portas em ambos os lados. Nem sinal de Giuliano.

— Fique aqui e não deixe ninguém passar. Percorri o corredor, ouvindo por trás das portas os sons

de pessoas adormecidas ou fazendo sexo. Quase no final, num dos quartos ouvi um só coração batendo, gemidos de prazer e uma respiração excitada. A mulher estava viva. Eu encontrara Giuliano a tempo. Acompanhei pelos sons seu ato de alimen-tação. Quando a respiração da mulher falhou, um sinal de que se debilitava, abri a porta.

— Giuliano, pare ou vai matá-la. Ele ergueu os olhos. Um rosnado saiu de sua garganta, e

em vez de obedecer ele sugou a vítima com mais empenho. Naquele instante era um predador, não um ser racional, e eu não passava de uma rival atrás de sua presa. A esse ponto a Fome o dominara.

A respiração da mulher ficou rasa e irregular. Fui até e-les, agarrei Giuliano pelos cabelos e arranquei-o do pescoço dela. Resistindo, ele se virou contra mim. Era mais corpulento que eu e agora era mais forte, mas ainda não sabia lidar com sua força. Joguei-o ao chão com violência e, aproveitando sua

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inação temporária, esbofeteei-lhe as faces até trazê-lo de volta à razão. Quando ergueu as mãos numa defesa débil, detive-me.

— Já lhe disse para aprender a controlar-se. Um rastro de cadáveres detrás de si é um caminho seguro até a fogueira. Para você e para mim.

— Com que agora está me vigiando como se eu fosse uma criança? — protestou ele ao se pôr de pé num salto.

— Até que aprenda a lidar com seus apetites, você é uma criança. E sim, vou segui-lo até que saiba se controlar. Todos os viram juntos — apontei a mulher desfalecida. — O que acha que fariam depois de encontrá-la morta?

De repente, ele pareceu desmoronar. Seus ombros des-caíram.

— Outra vez, Francesca. Sabia que não devia, mas eu desejava matá-la. Queria sentir o êxtase de sua morte. Sou um monstro. Um monstro que você criou.

Abafei a irritação que me causavam tanto fatalismo e a passividade com que ele se entregava a derrota. Não podia ne-gar que ainda o queria como parceiro, e que ainda tinha inte-resse por ele e por seu corpo. Assim, uma vez mais tentei re-conquistá-lo.

— Deixe-me ajudar, quero estar ao seu lado quando precisar de mim — disse, com uma suavidade à qual não esta-va afeita. — Você ainda não aprendeu a conviver com seus apetites, Giuliano. Dê tempo ao tempo, aprenda com seus er-ros, domine seus impulsos e verá como é capaz de adaptar-se à nova existência..

— Meus erros, como os chama, são as mortes de pes-soas inocentes. O que sugere é uma eternidade de luta contra os instintos de um assassino. Que eu mergulhe no medo eter-no e constante de perder o controle e matar pelo simples delei-te de matar. Não, Francesca, essa alternativa é inaceitável — ele fechou os olhos e passou um instante quieto, cabisbaixo. Ao erguer a cabeça, seu olhar fixo tinha um brilho doentio. —

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É verdade o que disse na outra noite, que o sol pode nos des-truir?

Senti a dor da decepção. As palavras dele mataram mi-nha frágil esperança de tê-lo de volta.

— Sim — respondi apenas, antes de virar as costas. — Vamos embora. O homem ainda montava guarda no corredor.

— V á para o quarto cuja porta está aberta. Há uma mulher lá. Faça com ela o que tiver vontade. Então mate-a, e mate-se depois.

Em obediência, o homem passou por nós, sob o olhar horrorizado de Giuliano.

— Não diga uma palavra — disse eu, antes que ele pro-testasse — a não ser que conheça outro modo de evitar que ela o acuse aos brados de ter-lhe tomado o sangue.

Ele me lançou um olhar rancoroso e nada disse. Bom. Eu lhe estendi a mão.

— Venha. Cruzemos juntos o salão e talvez ninguém note que entrei com um homem e saí com outro.

— Não — ele não se moveu. — Não me importo com o que lhe aconteça. Os piores castigos não seriam punição su-ficiente por seus crimes horrendos.

Antes que o pudesse deter, ele desceu as escadas. Fiquei estática, dominada pela ira. Estava tão furiosa que nem me ocorreu que a janela de algum quarto seria a via de saída mais prudente. Ao refazer-me da surpresa, desci atrás de Giuliano e cheguei a vê-lo sair pela porta. Mas os baderneiros tinham se levantado, aparentemente para irem embora. Para seguir Giuli-ano, teria de passar pelo grupo, e foi o que tentei fazer, até que um deles barrou-me o caminho, dizendo obscenidades. Olhei-o nos olhos.

— Deixe-me passar, e impeça seus companheiros de me molesta-rem.

De imediato ele abriu passagem, e agarrou pelo braço outro rufião que já vinha em minha direção. Pareciam a ponto de engalfinhar-se quando saí e fechei a porta detrás de mim. Que se matassem. O mundo ficaria melhor sem eles.

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Do lado de fora, o silêncio e a luz pura da lua que mal começava a minguar eram reconfortantes. Olhei ao redor e vi Giuliano afastando-se, distante já duas quadras. Fui até a es-quina, disposta a segui-lo, mas estaquei. Ponderei se valeria a pena. Ele não queria nada comigo e eu, francamente, estava enojada com seu comportamento. Que se matasse! Sentiria sua falta por uns dias, e logo nem me lembraria dele. Mas talvez devesse segui-lo para impedir que me pusesse em risco.

Perdida no debate interno, apenas tarde demais notei que alguém se esgueirava às minhas costas.

— Morra, demônio! — uma voz masculina exclamou. Ato contínuo, algum tipo de cordão me enlaçou o pescoço e apertou, numa tentativa de estrangulamento. O ataque deveria ter sido inócuo, pois vampiros não respiram, mas causou uma dor terrível, como se um colar de ferro incandescente rodeasse meu pescoço. Acometida por uma fraqueza inexplicável, caí de joelhos, e fui arrastada para um beco escuro entre dois edifí-cios.

— Giuliano! Giuliano Sacchetti! — a voz bradou. Pare-cia vir de muito longe. Minha vista turvou-se e não consegui ver mais nada. Quando tentei arrancar o cordão, minhas mãos arderam como se tivessem tocado brasas. Que diabos aconte-cia?

— Pietro Castracane! Que está fazendo? — era a voz de Giuliano.

— Por Deus, Giuliano, sua família acha que está morto! Que aconteceu com você?

— Estive... fora. Que faz com essa mulher? — Ela não é uma mulher, é um demônio maldito! Foi

ela quem matou seu irmão. Lembra-se da força com que ela lançou Domenico no ar antes de estraçalhar-lhe a garganta com os dentes? E como ela tomou o sangue dele? Se quer a prova de que ela é um ser amaldiçoado, veja como a dominei com um simples rosário ao redor de seu pescoço!

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Um calor terrível me consumia por dentro. A dor era insuportável. Tentei pedir ajuda a Giuliano, e mal consegui articular seu nome.

— Ela conhece você, Giuliano. Quando o vi descendo as escadas na estalagem, não pude crer que era mesmo você. Vi então que ela o seguia, e adivinhei seu propósito. Ela quer matá-lo, da mesma forma que matou seu irmão, e completar a desgraça de sua família.

— Um rosário... você a imobilizou com um rosário — Giuliano soava intrigado. Eu não havia lhe contado sobre o efeito terrível que os símbolos religiosos têm sobre nós.

— Sim. Eu a havia visto ontem de noite, e percebi que tinha voltado a rondar as ruas de Florença para satisfazer sua sede de maldades. Sendo uma criatura do mal, imaginei que poderia combatê-la com os instrumentos da Santa igreja. Saí preparado para procurá-la e acabar com ela, para vingar a mor-te de seu irmão. Só não esperava encontrá-la tão depressa. E nem encontrar você. Mas foi muito conveniente. Você pode me ajudar a fazê-la pagar pelo assassinato de Domenico!

Em meio à agonia, senti o desespero aflorar. Não duvi-dava que Giuliano, consumido pela angústia, aproveitaria o momento para afinal honrar a lembrança do irmão. Era sua chance de, finalmente, acertar as contas comigo.

— Deixe-a ir, Castracane. Aquelas palavras me surpreenderam, e também a meu

captor. — Deixá-la ir? Não seja tolo, rapaz. Ela é a assassina de

seu irmão e merece uma morte horrível. — Ninguém merece uma morte horrível, Castracane.

Isso não vai trazer Domenico de volta. Solte-a e esqueça de tudo isso.

Em resposta, o homem apertou ainda mais o rosário em torno de meu pescoço.

— Se não tem estômago para isso, garoto, eu o faço so-zinho — ele deu uma risada. — Mas pense bem, você nunca

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desfrutou uma mulher-demônio antes. Não tem curiosidade em saber como é? Se me ajudar, podemos nos divertir com ela enquanto está indefesa, para depois encharcá-la com água ben-ta e cortar-lhe a garganta. Veja. por baixo das saias ela é igual a qualquer rameira barata.

Ele deu um riso insano, que terminou abruptamente, ao mesmo tempo em que a terrível ardência arrefeceu e a pressão do rosário diminuiu.

— Eu disse para deixá-la ir! Com as mãos ardendo, lutei até arrancar o rosário do

pescoço e joguei-o longe de mim. Minha visão retornou, e vi Giuliano parado a meu lado. Pietro Castracane estava caído a alguma distância. O desprezo tomou conta de suas feições grosseiras.

— Não me diga que de fato é o efeminado que seu ir-mão sempre achou que era!

A reação de Giuliano foi mais veloz que a vista humana. Num instante ele tinha o homem de pé, seguro pelas golas.

— O que está dizendo? — vociferou, usando a Voz. Com a fúria, suas presas alongaram-se, ameaçadoras,

sua brancura brilhando ao luar. O cheiro acre da urina de Cas-tracane encheu o ar. Apesar de aterrorizado, não podia deixar de responder.

— Domenico o desprezava por não unir-se a nós em nossas diversões noturnas. Ele ria de seus escrúpulos com as mulheres, e afirmava que eram causados por seu nojo a elas. Costumava dizer que, se um dia o descobrisse com um aman-te, ele os surraria até a morte.

Atônito com a revelação, Giuliano soltou o homem, que recuou dois passos, com uma expressão de profundo hor-ror.

— Você é como ela! Você também é um demônio! — gritou, e deu mais um, dois, três passos para trás. Em breve sairia correndo. Livre do contato com o rosário, eu já me re-cuperava, mas não tanto que pudesse persegui-lo.

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— Giuliano, ele vai procurar os companheiros! Impeça-o ou virão atrás de nós!

Ele não vacilou. De um salto alcançou o antigo amigo do irmão. Agarrando-o, fincou-lhe os dentes no pescoço e passou a drená-lo. O homem foi tomado de um terror absolu-to. O tempero do medo no sangue aguçou a voracidade de Giuliano, que sugou com mais empenho até as forças abando-narem a vítima. Giuliano retesou-se no instante em que Cas-tracane morreu, e eu sabia que experimentara um orgasmo glo-rioso. Ele permaneceu imóvel, degustando o prazer. Quando por fim os espasmos amainaram, pousou os olhos no cadáver de Pietro Castracane. A face estava vazia de emoções.

Já praticamente recuperada, fiquei em pé, em silêncio, sem me aproximar ou interferir. Apenas esperei. Ficamos ali, estáticos, por longos minutos. Por fim Giuliano me olhou. Continuei calada. Ele veio até mim, envolveu-me nos braços e aninhou o rosto em meu pescoço.

— Meu irmão, Francesca, meu irmão... Eu nunca soube como consolar alguém. — Você quase me matou por nada. Seu irmão não teria

feito o mesmo por você. Ele ficou em silêncio por um momento, remoendo a

verdade daquilo. — Pietro Castracane está morto. Eu matei mais uma

vez — um soluço sacudiu seu corpo, e perguntei-me por quem ele chorava, se por sua vítima ou por ele próprio.

— Ele está morto não porque você é um monstro, mas porque ele o era. Você agiu brutalmente para nos salvar. Ele agia brutalmente porque queria. Como seu irmão, que teria matado você por um motivo irrelevante. Me diga, Giuliano, qual o pior monstro, o que fere por dever ou o que fere por prazer? — segurei seu rosto entre as mãos, e minha voz soou incisiva. — Nem tudo o que é necessário fazer é moralmente justificável. Temos de aprender a conviver com nossas deci-sões e nossos pecados.

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Ele me fitou, e em seus olhos havia dor, escuridão e uma profundidade que nunca tinham estado lá. Puxei-o para um beijo, e depois da mais ligeira hesitação, os lábios dele rea-giram ávidos aos meus.

O gosto do sangue em sua boca me excitou. Minhas mãos percorreram-lhe o corpo, num convite explícito aceito sem demora. Ele me empurrou de encontro à parede de pedra, o corpo musculoso imprensando-me com brutalidade. Con-torci-me como se tentasse me libertar, mas o real intuito era forçá-lo a sujeitar-me com mais violência. Ele não me decep-cionou, apertando-se ainda mais contra mim, as mãos fortes prendendo-me os braços. Sua boca não largou a minha por um instante. Continuei a me debater e a resistência fingida pareceu incitá-lo. Apesar do orgasmo recente, seu membro enrijeceu-se e logo estava pronto para a ação outra vez.

De repente ele se afastou, apenas o suficiente para jun-tar meus pulsos numa só mão. Ele os ergueu acima de minha cabeça e manteve-os presos contra a parede. Mais uma vez me contorci, e ele me imobilizou pressionando meu ventre com o quadril. Em seus olhos faiscantes havia uma fome feroz, algo selvagem que fez minhas entranhas se contraírem de prazer e antecipação. Ele me tinha a sua mercê, indefesa, e sabia disso. Sua boca de novo procurou a minha, faminta, voraz. Durante o beijo violento, os dedos da mão livre me envolveram a face, quentes com o sangue recém roubado, e em seguida desliza-ram até minha garganta, fechando-se ao redor dela numa carí-cia grosseira que também era uma ameaça. Cada vez mais exci-tada, gemi de desejo e impaciência. Eu o queria dentro de mim!

Ele compreendeu e entrou em ação. Soltando-me os pulsos e a garganta, num gesto repentino e enérgico rasgou minhas roupas de alto a baixo. Os panos caíram ao chão, e eu estava nua diante dele. Tomando-me pela cintura, Giuliano me ergueu com facilidade, minhas costas apoiadas na parede, e então me penetrou tão de repente que me pegou de surpresa.

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Uma dor cortante irradiou através de meu corpo e eu gritei, não de angústia ou medo, mas de êxtase. Cravei as unhas nos músculos das costas dele e envolvi-lhe o tronco com as pernas. Ele me apertou mais, movendo-me para cima e para baixo, deslizando dentro de mim, indo mais e mais fundo. Mais uma vez ele me beijou, sua boca abafando meus gemidos. Seu ím-peto, a forma como me dominava e possuía, eram alucinantes. Movi os quadris em ritmo com as investidas dele. Um grunhi-do de satisfação animal saiu de sua garganta em resposta.

Senti os caninos dele alongarem-se ao mesmo tempo que os meus. Nossas bocas se separaram, e ergui o braço, ofe-recendo-lhe a parte interna do pulso. Assim que ele enterrou as presas na carne macia, eu o mordi na jugular, e formamos um circuito único no qual o sangue compartilhado fluiu. A sensação extraordinária em que mergulhamos não tem paralelo no mundo humano.

Pela primeira vez degustávamos o prazer com a plena aceitação do que éramos. Seres imortais e mortíferos, que não mais pertenciam à humanidade. Naquele beco escuro e sujo, ao lado do cadáver que esfriava, gritamos juntos ao atingirmos o clímax, que foi sublime em sua comunhão total. Depois dele, deixamo-nos ficar nos braços um do outro por um longo tem-po, exaustos, saboreando a perfeita cumplicidade que final-mente acabávamos de alcançar.

— Minha flor — sussurrou Giuliano em meu ouvido. — Minha bela flor do mal.

Por fim eu vencera. Seu espírito fora dominado.

FINALE

O que se seguiu foi o curso normal de qualquer relação, humana ou vampira, esteja o amor envolvido ou não. Ao lon-go dos dois anos seguintes, a excitação da vida em comum aos poucos perdeu seu brilho.

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Depois da morte de Lourenço de Médicis, Florença tornou-se uma sombra do que tinha sido. A decadência trans-parecia por toda parte, em todos os aspectos da cultura, da economia, da vida diária.

Decidi partir. Iria para Milão, Veneza talvez. Giuliano Sacchetti não quis me acompanhar. Não abandonaria sua terra natal. Viver sem as paisagens que lhe eram caras? Impensável! Pode parecer um motivo tolo para a separação, mas quando o desinteresse se instala numa relação, para terminá-la não é ne-cessário um bom motivo, apenas um pretexto. Assim, deixei Florença e Giuliano ficou.

Parti sem pesares, sem angústias, e compreendi que a essência da imortalidade talvez não esteja na busca do amor, mas na aceitação da solidão. Talvez a expectativa pelo primeiro rouxinol da primavera seja em si tão deleitosa quanto o canto da ave em si.

Voltamos a nos encontrar muito tempo depois, e já não éramos os mesmos. O reencontro, que não foi alegre, acabou numa separação definitiva. Aliás, bem definitiva para Giuliano. Mas essa é uma história a ser contada em outro momento.

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Amante Notívago

A noite mal havia chegado e com ela um sentimento de luxúria inevitavelmente invadiu-lhe o corpo. Uma brisa gélida e suave soprou vinda da janela aberta às suas costas enquanto a jovem sentava-se na beirada da cama. A chegada do misterioso se-nhor da noite era inevitável e seu corpo já dava sinais de impa-ciência enquanto o aguardava.

As batidas, cada vez mais forte e aceleradas de seu cora-ção podiam ser ouvidas no silêncio do quarto e o tecido de sua roupa de dormir acariciava levemente a pele alva.

Submersa em seus pensamentos ela somente percebeu a estranha e densa névoa que cobria todo o piso do quarto quando lábios frios tocaram a pele do seu ombro, na base do pescoço, num beijo suave e quase sem fim. Ele havia chegado!

Fechou os olhos e suspirou diante da carícia que deixa-va a região do pescoço e produzia algumas mordidas. A ponta gélida de uma língua acompanhou as curvas de sua orelha en-quanto as mãos do misterioso amante acariciaram-lhe o ab-dômen até subir cobrindo-lhe os seios rijos.

Uma das alças de sua roupa de dormir deslizou por so-bre o ombro até cair-lhe pelo braço. A mão pálida e fria do amante notívago deslizava por uma forma levemente arredon-dada e dedos hábeis brincavam com o mamilo agora intumes-cido.

Sem abrir os olhos, voltou o rosto para trás e os lábios dos amantes se tocaram num beijo lascivo e inebriante. Suas línguas se entrelaçaram em movimentos úmidos de prazer e paixão.

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Uma das mãos do amante deslizou até o colo da mulher apaixonada levantando lentamente o tecido que cobria suas pernas alvas pela falta de exposição aos raios do sol. Não de-morou muito para que sua roupa íntima surgisse e a pálida mão se movesse habilmente para dentro da vestimenta provo-cando um leve gemido de prazer em meio ao beijo ardente que ainda selava os lábios da Condessa.

As ferraduras do cavalo batiam fortemente contra o so-lo amolecido e encharcado pela forte chuva que caía impiedo-samente sobre o animal e seu cavaleiro, dificultando o avanço. Bem ao longe, podia-se ver o conjunto de montanhas que tan-to buscara. Finalmente estava próximo de suas terras e, se o cavalo agüentasse o resto da jornada, deveria chegar a seu cas-telo pouco antes do amanhecer.

Um raio desceu sobre uma árvore grande pouco a fren-te assustando sua montaria que parou bruscamente e empinou as patas dianteiras quase derrubando o cavaleiro que. com ha-bilidade, domou o cavalo.

— Fogo estaremos em casa e você terá seu merecido descanso -disse com voz suave e tranqüilizadora enquanto aca-riciava o pescoço do animal

Após sentir que a montaria havia se acalmado, olhou com descaso para a árvore destruída e agora em chamas para, em seguida, dar um leve cutucão com as esporas e retomar seu caminho rezando em silêncio para que ainda não fosse tarde demais.

Mãos frias correram sobre a pele alva da mulher en-quanto sua boca morta pressionava os lábios carnudos e sen-suais da esposa de seu inimigo humano.

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Um ribombar ao longe e o aumento da umidade no ar, facilmente percebido por seus sentidos aguçados deram ao vampiro a certeza de que uma forte tempestade se aproximava rapidamente e antes do nascer do dia atingiria o castelo.

A mulher, agora já completamente nua, moveu-se gra-ciosamente se desvencilhando do beijo ardente, e voltou-se para ele, olhando o com um ar malicioso que lhe acentuava ainda mais o tom negro de seus olhos. Os lábios vermelhos se entreabriram, deixando a língua umedecida deslizar sedutora-mente sobre ele expondo nitidamente as intenções da fêmea humana.

Os olhos avermelhados da criatura noturna percorreram todo o corpo da Condessa que, tal como ele, permanecia ajoe-lhada sobre a cama macia. Ela era extremamente bela. Linda o suficiente para fazer com que o vampiro a desejasse como sua companheira eterna. Tão linda que praticamente o fazia esque-cer do real motivo pelo qual estivera ali um dia.

Com as mãos sobre o peito do vampiro, a condessa deu-lhe um leve empurrão obrigando o a cair de costas sobre o colchão macio. Sem perder tempo, acomodou-se sobre ele como se estivesse montando seu garboso cavalo. Com movi-mentos lentos e circulares dos quadris, ajeitou-se. Podia senti-lo, lenta e prazerosamente, dentro de seu corpo como uma rocha dura e fria enquanto a criatura de pele empalidecida fe-chava os olhos e abria os lábios deixando a mostra os afiados caninos. Jogando suas mãos para trás, a condessa apoiou-as sobre as coxas do amante enquanto inclinava a cabeça também para trás e voltava a fazer movimentos lentos e ritmados ainda com mais intensidade.

O animal parou respondendo ao comando de seu cava-leiro enquanto a tempestade não dava trégua e parecia que o acompanhava.

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Abaixando o capuz que protegia a cabeça, o Conde er-gueu seus olhos e vasculhou o horizonte até vislumbrar a pe-quena silhueta de seu castelo. Um pequeno ponto negro no horizonte, mas facilmente reconhecível para ele.

— Prepare-se para ser destruído, demônio, pois estou chegando! — disse deixando as palavras se espalharem por todas as direções como se acreditasse que o inimigo pudesse ouvi-las.

Seu cavalo relinchou deixando claro que o esforço des-pendido até aquele momento começava a cobrar o seu preço.

— Sei que está cansado, amigo, mas nossa jornada está chegando ao fim — disse o Conde acariciando-lhe o pescoço molhado.

Subitamente um raio cortou o céu negro e carregado i-luminando rapidamente o terreno à sua volta e o Conde pen-sou ter visto alguma coisa movendo-se entre os arbustos que ocupavam as margens do caminho. Colocando uma das mãos sobre o cabo da espada presa à sela, ele manteve seus sentidos apurados, em alerta e, com uma leve cutucada em sua montari-a, se pôs em movimento.

Vindo de algum ponto da escuridão a sua esquerda, algo cortou o ar e atingiu sua montaria que relinchou para, em se-guida, começar a tombar para a direita. Com grande habilida-de, o Conde passou sua perna direita sobre a montaria enquan-to desembainhava sua espada e saltava. Tanto o cavaleiro co-mo o cavalo atingiram o solo no mesmo instante e o Conde, entre as patas do animal colocou-se de prontidão aguardando o ataque iminente. Uma rápida olhadela e verificou que uma grotesca lança havia atingido sua montaria transpassando-a de flanco a flanco

Num movimento rápido, a arma do inimigo desceu so-bre o cavaleiro que, com agilidade, rolou sobre o corpo do a-nimal morto e escapou de um golpe fatal. A lâmina cintilante cortou a barriga do cavalo até atingir o solo onde estivera o Conde. Sem dar chances para que seu misterioso adversário

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partisse para um novo ataque, ele desferiu um golpe horizontal com sua espada cuja lâmina atingiu algo. Um grito de dor es-palhou-se e, girando o corpo em sentido contrário, o Conde novamente golpeou o inimigo agora do outro lado para, em seguida, ouvir o som de algo se chocando contra o solo mo-lhado.

Ainda em alerta e contornando a montaria, o nobre va-lente avistou o corpo do inimigo em meio às patas daquele que fora um dia seu fiel corcel. Não havia dúvidas, deitado ali esta-va um dos soldados do inimigo e apresentava dois grandes cortes, um de cada lado do tórax, que quase lhe partira o tron-co em dois. O sangue escorria em abundância misturando-se com a água da chuva e a lama do caminho encharcado.

Sem demora, o Conde apanhou a bainha que se encon-trava presa à sela de seu cavalo e guardou sua espada amarran-do-a as costas. A caminhada até o castelo seria longa e difícil.

— Ainda estou vivo, demônio, e a caminho! — bradou o nobre cavaleiro em direção à silhueta do castelo ao longe. — Estou chegando e minha espada está ávida para cortar-lhe a carne!

Ajeitando a espada às costas de forma a ficar numa po-sição menos desconfortável, ele iniciou sua caminhada até o castelo.

A condessa sentiu as mãos frias de seu amante notívago deslizar pelas curvas de suas ancas provocando-lhe um delicio-so arrepio que a deixou ainda mais excitada. Com os olhos fe-chados e sentada sobre ele, a fogosa mulher sentiu as mãos hábeis subirem até os seus seios firmes e envolvê-los carinho-samente. Os dedos gélidos brincaram com os mamilos que se enrijeceram deixando claro a satisfação que ela sentia.

Voltando a fazer movimentos lentos e circulares com o quadril, a Condessa podia senti-lo dentro de si ocupando to-

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dos os espaços disponíveis e fazendo o seu companheiro ge-mer de prazer. Nunca desde que se casara sentira um prazer tão intenso com seu esposo como agora. Esta era a primeira vez que tomava a iniciativa deixando de desempenhar seu ha-bitual papel meramente figurativo naquele ritual de amor.

O amante levantou seu tronco sentando-se e manteve-a no colo enquanto afundava o rosto entre seus seios firmes e fartos.

Cruzando as pernas atrás dele e abraçando sua cabeça com ambos os braços, a condessa passou a beijar-lhe lenta-mente os cabelos negros e lisos enquanto sentia as pequenas mordiscadas em ambos os seios.

Para aumentar ainda mais a intensidade do prazer, ela começou a subir e descer sentindo-o sair e voltar a penetrá-la de uma forma enlouquecedora. As mãos gélidas de seu amante cravaram-se em suas nádegas e ele com uma força surpreen-dente passou a ditar o ritmo do movimento sem demonstrar, aparentemente, estar fazendo esforço algum.

— Não pare, amor! — sussurrou a Condessa quase numa súplica. Enquanto subia e descia num ritmo cadenciado e erótico, ela podia senti-lo pulsar dentro de si e sabia que o clímax se aproximava rapidamente. Abriu os olhos c afastou o rosto do amante de seu peito olhando-o fixamente. Amava aquele homem com toda a força e intensidade que uma mulher podia amar um homem. Amara-o desde a primeira vez em que o vira e o casamento planejado por seu pai, que a princípio fora uma tortura, havia se revelado a melhor coisa de sua vida. Era bem verdade que tinha algumas reclamações, mas nada era perfeito.

— Estou contente que tenha retornado, meu marido! — disse a Condessa voltando a aconchegar o rosto do amado entre os seios enquanto sentia-o explodir dentro dela. Na jane-la, os primeiros pingos de chuva molharam o peitoril de pedra.

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O Conde parou e ajeitou a espada presa às costas que

parecia pesar mais do que uma bigorna. Ao longe já podia ver perfeitamente o imponente castelo. Chegaria ao seu destino bem antes do nascer do sol e, certamente, encontraria o seu demoníaco inimigo.

Voltando a caminhar pela margem do caminho, apro-veitando a vegetação como piso, evitou o lamaçal em que se transformara a trilha.

Um raio cortou o céu negro enquanto o dilúvio que caía à volta castigava seu corpo cansado. Seus lábios moviam-se sem proferir um único som, mas carregava consigo a certeza de que o Deus Todo-Poderoso estava ouvindo sua prece e lhe concederia a dádiva de destruir o servo do maligno e salvar a alma de sua amada esposa.

Apertando mais o passo, o Conde acelerou sua marcha enquanto sua ansiedade aumentava à medida que a distância até o castelo diminuía.

Sentada de costas para seu amante, em seu colo, e sen-tindo-o ereto roçando suas nádegas, a condessa fechou nova-mente os olhos buscando aproveitar ao máximo a gostosa sen-sação. Podia sentir as mãos frias e macias deslizarem por suas coxas e, lentamente, subirem passando pelo seu ventre até pa-rar em seus seios. Os dedos hábeis voltaram a brincar com os mamilos que imediatamente se sobressaltaram deixando um prazeroso arrepio percorrer-lhe o corpo.

Um movimento curto e sabiamente planejado de seu amante fez a condessa sentir o peito másculo tocar-lhe as cos-tas enquanto os braços fortes envolviam-na num abraço forte como se tentasse fundir os dois corpos nus.

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Os lábios frios e úmidos de seu amante tocaram-lhe o ombro suavemente num beijo delicado que fez os pêlos de sua nuca se eriçarem de prazer. Um outro beijo seguido de outro e outro e outro foram acontecendo até que a boca lasciva parou próxima à base de seu pescoço e a ponta da língua estranha-mente quente começou a acariciar a pele sedosa da condessa aumentando ainda mais seu prazer. Era incrível como aquela noite estava se tornando a melhor que já tivera em companhia de seu amado marido.

Subitamente um clarão provocado pelo relâmpago que cortou o céu penetrou pela janela iluminando por um brevís-simo instante o quarto para logo em seguida devolvê-lo às sombras de antes enquanto um estrondo forte de um trovão espalhou-se pelo ambiente deixando a impressão de que o cas-telo tivesse sido atingido. Apesar disto, os amantes permanece-ram indiferentes como se tudo que estava acontecendo ao seu redor não tivesse qualquer importância.

A condessa sentiu os lábios tocarem novamente sua pe-le na base do pescoço enquanto as mãos frias comprimiam seus seios trazendo seu corpo para mais perto dele. Subita-mente uma dor aguda surgiu no exato momento em que os dentes afiados rasgaram sua pele alva e penetraram em sua carne macia.

Rapidamente a dor deu lugar a uma sensação de intensa luxaria e o prazer loucamente desejado se fez presente. Sem medo e totalmente entregue a seu amante, a Condessa sussur-rou algo quase num tom de súplica enquanto o sangue rubro desceu de seu pescoço em dois pequenos filetes e escorrega-ram por entre os seios.

— Não pare, não pare, continue, por favor! — sussur-rou novamente.

Todas as fibras de seu corpo pareciam imersas em puro prazer enquanto uma sonolência perturbadora infiltrava-se em sua consciência ocupando cada vez mais espaço na medida em que o sangue deixava suas veias e inundava a boca do amante

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vampiro. Seus braços fraquejaram e uma estranha dormência começou a se espalhar por todo o seu corpo enquanto ávida começava a se extinguir, mas a Condessa estava feliz.

A água caía do céu em abundância escorrendo pela su-

perfície da muralha do castelo quando o conde aproximou-se dos portões protegido pelas sombras. Apesar da escuridão pô-de avistar facilmente dois soldados que faziam vigília no topo da murada. Eram soldados inimigos que certamente haviam dominado toda a guarnição. O castelo pareceu-lhe impenetrá-vel até que se lembrou de uma passagem secreta cuja entrada ficava submersa nas águas do fosso que circundava a edifica-ção.

Com movimentos furtivos e procurando manter-se o-culto nas sombras, o Conde mergulhou na água em busca da entrada da passagem. Não demorou muito para que o nobre senhor do castelo emergisse dentro da pequena câmara de pa-redes de pedra onde uma escada levava para cima. Agarrando o cabo de sua espada presa às costas, o Conde desembainhou a arma colocando-se de prontidão e subiu os degraus escorre-gadios.

Ao chegar no local onde ficava o calabouço, rendeu os guardas que faziam a vigília dos prisioneiros e libertou vários dos seus homens. Não demorou muito para que o castelo fos-se retomado e ele chegasse à porta do quarto onde seu demo-níaco inimigo se encontrava na companhia de sua amada espo-sa. Sem esperar um minuto sequer, o Conde arrombou a porta fazendo as folhas de madeira se escancararem.

O sangue quente e fresco que lhe inundava sua boca e descia por sua garganta aplacava cada vez mais a maldita sede

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que o torturava. A mulher em seus braços gemeu quase que de forma inaudível enquanto seu corpo desabava nos seus braços. O vampiro sabia que a primeira parte do ritual estava no fim e em poucos instantes iniciaria a última fase para que sua amada, como ele, se tornasse uma filha da noite. Depois disto, não precisaria mais utilizar seus poderes hipnóticos e ele a teria por toda a eternidade levando como prêmio adicional a derrota de seu maldito inimigo, o marido.

Apesar do barulho da chuva e dos trovões que entrava pela janela, o vampiro pôde ouvir o som de espadas se cho-cando do lado de fora do quarto e lentamente retirou os lábios do pescoço da Condessa aguçando ainda mais seus sentidos. Alguma coisa saíra errada. O inimigo havia chegado cedo de-mais.

Subitamente as portas se abriram com violência deixan-do à mostra a silhueta de um homem empunhando uma mag-nífica espada cuja lamina reluzia ameaçadoramente. Era o Conde que regressara para resgatar sua esposa, mas chegara tarde demais.

Levantando da cama e trazendo consigo a condessa, que parecia inconsciente, em seus braços, o vampiro encarou o valente cavaleiro.

— Mandar-te-ei de volta para o inferno, criatura malé-vola! — bradou o nobre conde.

Com um sorriso sarcástico surgindo num dos cantos da boca, o vampiro olhou fixamente nos olhos de seu adversário enquanto dois outros cavaleiros adentravam o quarto parando pouco atrás do conde, um de cada lado.

— E tua querida esposa irá me acompanhar! — disse o ser notívago. Agachando-se, o vampiro depositou a Condessa parcialmente no chão deixando um de seus braços livres en-

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quanto com o outro apoiava o seu tronco de forma que a ca-beça dela ficasse confortavelmente aconchegada em seu tórax.

Rapidamente levou seu pulso esquerdo à boca e rasgou a carne deixando que o sangue vermelho quase negro jorrasse em abundância para, sem seguida, forçar a Condessa a bebê-lo. O conde ameaçou avançar sobre ele e o vampiro novamente fixou seu olhar no nobre que pareceu não conseguir se mover. Algum poder maligno impedia que seu corpo o obedecesse.

Agindo rapidamente, um dos cavaleiros retirou de den-tro de suas vestes um pequeno frasco que havia conseguido com um padre pouco depois de ser aprisionado, o mesmo que vira morrer brutalmente nas mãos do ser demoníaco, e jogou todo o seu conteúdo sobre o vampiro. Assim que o líquido atingiu sua pele, a criatura começou a gritar de dor enquanto feias queimaduras surgiam no local atingido e uma fumaça es-branquiçada desprendia da epiderme.

O vampiro largou a mulher e recuou para próximo da parede enquanto os três cavaleiros se aproximavam e o Conde agachava tomando sua esposa nos braços de forma carinhosa.

Ao ver o inimigo parar de se contorcer e se colocar de pé, o cavaleiro que havia arremessado a água benta sobre ele, apanhou outro frasco e deixou-o à mostra, movendo-o de um lado para outro, numa ameaça velada.

Entregando a Condessa para o outro cavaleiro e orde-nando que a tirasse daquele lugar, o Conde voltou sua atenção para o inimigo.

— Encontramo-nos pela segunda e última vez, demô-nio! — disse o nobre.

Sem nada dizer, o vampiro esboçou um sorriso de de-boche como se, apesar de encurralado e prestes a ser destruí-do, fosse o vitorioso. Num movimento instintivo, ele avançou e recebeu uma nova rajada de água benta que o fez recuar e chocar as costas contra a parede de pedra enquanto que a es-pada de lâmina cintilante do Conde descrevia um movimento

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horizontal decepando-lhe a cabeça que rolou pelo chão do quarto ainda exibindo um maldito sorriso nos lábios.

O dia já estava no fim e o sol já se escondia por detrás

das montanhas que povoavam o horizonte quando o Conde deitou-se ao lado da esposa e beijou-a carinhosamente no ros-to sentindo sua pele fria. Já haviam se passado três dias desde que o vampiro fora derrotado e a Condessa resgatada. O mé-dico da corte fizera tudo que fora possível e, apesar de sua mu-lher apresentar alguns sintomas estranhos, principalmente a pele fria e a sensibilidade à luz do dia, provavelmente por cau-sa da experiência macabra por que passara, havia demonstrado sensível melhora. Mas isto não importava, o que mais interes-sava ao Conde era que tinha sua amada esposa ao seu lado. Com todo o cuidado, ele acomodou-se no leito ficando de costas para sua mulher que aparentemente dormia profun-damente. Iria deixá-la descansar, pois queria que se recuperasse o mais rápido possível e, em pouco tempo, ele também se en-tregava ao sono.

Subitamente a Condessa abriu seus olhos negros e ob-servou a escuridão à sua volta. O tecido macio acariciava-lhe a pele pálida e fria enquanto seus sentidos aguçados sentiam o corpo quente deitado de costas para ela. Virando-se lentamen-te, avistou seu amado marido e sorriu deixando à mostra os afiados caninos. Sem sombra de dúvida seu querido e amado marido estaria ao seu lado para sempre. Seria seu amante notí-vago por toda a eternidade. Sem esperar um momento a mais, a Condessa mordeu-lhe carinhosamente o pescoço.

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O A njo e a V ampira

Bruno entrou na sala carregando a mochila com seus livros escolares e exibindo uma cara fechada. Sem dizer nada, Ofélia observou o neto jogar a pequena mala sobre o sofá e sentar-se. Sem dúvida o “pequenino” estava furioso com alguma coisa.

Fingindo não perceber o que estava acontecendo, a avó continuou movendo habilmente as agulhas de tricô, mas sem desviar sua atenção do neto. Por alguns instantes o menino ficou imóvel onde estava até que, percebendo o desinteresse da avó, abriu a mochila ao seu lado e retirou um pequeno livro colocando-o, ainda fechado, em seu colo.

— Droga! — deixou escapar Bruno com a clara inten-ção de chamar a atenção da avó.

Com toda a calma, Ofélia parou o seu tricotar e deposi-tou seus artefatos sobre a pequena mesa localizada ao lado da poltrona onde estava sentada, juntamente com seus novelos. Retirando os óculos, deixou-os sobre o peito preso a um cor-dão comumente utilizado para sustentar o acessório preso ao pescoço. Bruno bufou mais uma vez enquanto abria o livro.

— O que foi, Bruno? Por que o mau humor? — per-guntou a avó falando com uma voz doce e aveludada.

— É esta droga de livro, vó! — disse o menino dando um tapa na pequena brochura.

— O que tem ele? — É muito chato! — disse levantando os olhos e o-

lhando em direção a sua avó que o observava da poltrona on-de estava. — É coisa de menina!

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— De menina? — surpreendeu-se Ofélia com que o ne-to havia falado. — Quem te disse isto, Bruno? Deixa eu ver!

Levantando-se de onde estava, o menino caminhou até a avó e lhe entregou o livro que tanto havia despertado sua fúria.

Ainda olhando para o neto, Ofélia apanhou o exemplar enquanto observava como o garoto havia crescido rápido. Já estava com dez anos e parecia que seu nascimento havia acon-tecido há poucos dias. Sem demora ela leu o nome da autora e o titulo da obra enquanto Bruno se aconchegava ao seu lado. Reconheceu a ambos imediatamente. Sua filha, a mãe de Bru-no, havia lido aquele mesmo livro quando estava na idade do neto. Era um livro muito bom e indicado para crianças da ida-de do pequeno Bruno. Contava a história de uma borboleta chamada Atíria que nascera com um defeito na asa e não podia voar direito, pois se cansava muito rápido. Ela sofria muito, mas no final conseguia ficar com o príncipe.

— É um livro muito legal, Bruno! Sua mãe já o leu quanto tinha a sua idade!

— Tá vendo como é de menina, vó? — disse o neto já achando que havia vencido a discussão. — Até a mamãe já leu!

— Mas por que você acha que ele é um livro de meni-na?

— Porque é chato e fala de amor! Amor é coisa de me-nina!

— Não é só de menina não, Bruno. É de menino tam-bém!

— Não é não, vó! É de menina. Esse negócio de prín-cipe e borboleta é coisa de menina. Além do mais a borboleta tem um nome esquisito.

Era óbvio que o neto estava procurando algum motivo para justificar a não leitura do livro que provavelmente havia sido indicado por uma professora. Com certeza tal tarefa po-deria ser imposta, mas isto não era aconselhável. Em sua longa experiência com crianças, primeiro como mãe depois como

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avó, Ofélia descobrira que a melhor forma de fazer com que uma criança fizesse algo era despertar-lhe o interesse. E era exatamente isto que ela iria fazer com o neto.

— Por que você acha que o amor é coisa só de menina, Bruninho? — perguntou a velha senhora ao neto.

— Porque o amor é uma coisa boba que só as meninas gostam, vó!

— Oh, não é não, Bruno! — disse Ofélia. — O amor é um sentimento poderoso que pode vencer qualquer problema e nos deixa forte!

— Verdade? — perguntou Bruno já demonstrando al-guma curiosidade pelo assunto enquanto sua avó depositava o livro na mesinha ao lado, junto com seus apetrechos de tricô.

— É sim! Pra você ver como o amor é poderoso vou contar-lhe uma história que ouvi há muito tempo, quando ain-da era menina!

— Não é história de menina, é? — perguntou Bruno com uma certa desconfiança na voz.

— Claro que não! A história é sobre o amor de uma vampira por um anjo!

— Legal! — disse Bruno. — Gosto de histórias de vampiros, vó! Eles são legais!

— Que bom! Então vamos lá! Era uma vez uma vampi-ra chamada...

As afiadas presas de Agatha penetraram a carne macia do pescoço da jovem vítima que parou de se debater e gemeu baixo. Era bem verdade que teria sido mais fácil utilizar-se de seu poder de hipnose e forçar aquele humano a se submeter aos seus caprichos sem que tivesse que usar força física, mas ela gostava de subjugar a caça de forma direta. Sentia prazer em ver em seus olhos o medo da morte iminente enquanto tentava escapar do fim próximo.

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A vampira apertou ainda mais suas presas contra a jugu-lar da vítima fazendo com que o fluxo de sangue aumentasse e o líquido rubro vertesse mais rapidamente para dentro de seu corpo. Aos poucos sentiu a maldita fome amenizar-se e sua face adquiriu um tom rosado causado pela ingestão de alimen-to fresco.

Ao terminar, Agatha levantou-se abandonando o corpo da vítima e deixando o beco sujo e mal iluminado caminhando em direção à rua principal. Podia sentir suas forças revigoradas quando alcançou avia repleta de pessoas e o cheiro do gado humano estimulou novamente sua amaldiçoada fome ainda não saciada por completo.

Subitamente algo lhe chamou a atenção do outro lado da rua e seus olhos captaram a forma humana movendo-se graciosamente no meio da multidão que aguardava o semáforo mostrar o sinal verde permitindo que os pedestres atravessas-sem a via. Calmamente, Agatha permaneceu imóvel, oculta nas sombras que se projetavam nas reentrâncias das diversas edifi-cações aguardando a massa humana se mover permitindo as-sim uma visão melhor.

O breve instante pareceu uma eternidade até que a luz vermelha deu lugar ao sinal verde e as pessoas começaram a se mover permitindo à vampira vislumbrar a magnífica figura que se destacava facilmente dos demais. Os olhos negros de Aga-tha se fixaram no homem do outro lado da rua que agora dei-xava a calçada e caminhava sobre a faixa de pedestres como se uma força hipnótica a impedisse de olhai” para o outro lado. Com passos firmes e silenciosos, o homem caminhou de for-ma austera até atingir a calçada do outro lado da rua e tomar a direção contrária de onde a vampira estava. Vestia-se elegan-temente com um terno bege coberto por um sobretudo de mesma cor. Os cabelos loiros desciam até a altura dos ombros e moviam-se com o deslocamento do ar numa forma hipnoti-zante.

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Agatha suspirou inconscientemente enquanto observava aquele magnífico espécime masculino imaginando suas presas no pescoço dele que se debatia desesperadamente em seus braços.

— Eu não faria isto se fosse você! — disse uma voz às suas costas. Era Marie, sua amiga e, obviamente, outra vampi-ra.

— Por que não? É um humano magnífico! — disse A-gatha com uma certa malícia na voz.

— Porque se você tocar nele vai queimar como se tives-se se exposto ao sol!

— Não estou entendendo. Marie! — Ele é um Anjo, meu bem! — Achei que anjos não existissem! — disse Agatha com

uma expressão de surpresa estampada no rosto. — E daí? Você também achava que vampiros não exis-

tiam até se transformar em um! — disse Marie com um sorriso cínico nos lábios.

— O que mais sabe sobre ele? — perguntou Agatha demonstrando certa curiosidade enquanto via o anjo entrar no restaurante mais à frente.

— Não muito! — disse a amiga. — Seu nome angelical é Veuliah. É um anjo da virtude e grande inimigo das forças do mal, conseqüentemente de nós, vampiros. Seu principal objetivo é orientar as pessoas a respeito de suas missões e seu cumprimento. O chefão dele é o Arcanjo Rafael.

— Não muito? Você só faltou me dar o número da car-teira de motorista dele! — disse Agatha impressionada com as informações da amiga vampira. — Onde descobriu tudo isto?

— Nos livros! O que mais existe são livros sobre anjos e demônios, meu bem. Depois dos de vampiros, é claro!

— Você agora me deixou excitada, Marie! Vou bater um papo com este anjinho!

— Cuidado Agatha! — disse a amiga com um tom sério na voz. — Os anjos da virtude não são fáceis de serem seduzi-

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dos e lembre-se, se tocá-lo será como se tivesse mergulhado num rio de água benta, não sobrará nada pra contar a história.

— Pode deixar, Marie! — disse a vampira já se afastan-do em direção ao restaurante onde agora se encontrava Veuli-ah.

Ofélia deu uma breve parada na narrativa da história apenas para tomar fôlego e percebeu que o neto permanecia imóvel observando-a atentamente e aguardando a continuação da história.

— Está gostando, Bruno? — perguntou a avó. — Sim, vovó! Continua! Quero saber o que aconteceu

no encontro da vampira com o anjo! Sem demora, Ofélia atendeu ao pedido do neto e pros-

seguiu com a narrativa.

Agatha adentrou ao salão do restaurante repleto de hu-manos que jantavam e conversavam animadamente. Rapida-mente correu os olhos pelo recinto até localizar o Anjo senta-do numa das banquetas do balcão, conversando animadamen-te com o barman. Realmente aquele ser angelical era magnífico.

Lentamente a vampira deslizou pelo salão até alcançar o bar e sentar-se na banqueta próxima ao anjo que bebia o que parecia ser água. Com um sinal discreto, Agatha chamou a a-tenção do barman que se aproximou e ela pediu-lhe uma taça de vinho tinto.

Enquanto o homem por detrás do balcão se afastava para atender o pedido da vampira, o anjo voltou-se para sua direção e ela exibiu o melhor e mais sedutor sorriso que con-seguiu, procurando não ser excessivamente vulgar. O anjo re-

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tribuiu o sorriso deixando à mostra uma fileira de dentes per-feitos e alvos.

Outros encontros noturnos se seguiram, todos no mesmo local, onde embates verbais e psicológicos se fizeram presentes. Cada qual tentava sobrepujar o outro sem sucesso até que a inimizade transformou-se em respeito. O respeito, então, transformou-se em admiração. A admiração em amiza-de e, por fim, a amizade em amor. Um amor impossível, um amor platônico no qual seus corpos jamais iriam se tocar. Um amor no qual os apaixonados jamais iriam conhecer seus limi-tes, mas que mesmo assim mostrava sua presença.

— Por que a vampira e o anjo não podem se tocar, vo-vó? — perguntou Bruno já demonstrando certa afeição pelo estranho casal da história narrada por Ofélia.

— Porque se ela tocar no anjo vai se queimar! — res-pondeu a avó.

— Não é isso que eu quero saber, vó! Eu sei que ela vai se queimar! Você já disse! Eu quero saber é porque a vampira queima quando toca no anjo! — esclareceu o menino.

Ofélia sorriu diante da duvida do neto. Tão pequeno e tão observador e inteligente. Por um breve instante ela pensou na melhor forma de explicar e se fazer entender pelo garoto à sua frente até que o olhar suplicante de Bruno a fez prosseguir.

— Você já viu o fogo e a água se misturarem? — disse Ofélia aguardando o neto balançar a cabeça negativamente. — Então! Igual ao fogo e a água, o Bem e o Mal são diferentes. Ao se tocarem ou apagam ou evaporam. A vampira pode ser ferida ou morta com qualquer objeto sagrado. O anjo é um ser divino, sagrado, e se ela tocá-lo, vai se ferir muito podendo até morrer. Entendeu, Bruninho?

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— Entendi, vó! — respondeu o garoto. — E o que a-conteceu com eles? Não tinha ninguém que pudesse ajudar eles?

Ofélia sorriu para o neto que aguardava ansiosamente a resposta deixando claro que a história do romance entre a Vampira e o anjo o estava fascinando.

— Teve sim, Bruno! Isto aconteceu quando os dois já não mais conseguiam agüentar aquele grande sentimento que era o amor que um sentia pelo outro e desejaram poder ao menos trocar um simples beijo. Era uma noite...

...fria. O vento soprava atingindo os transeuntes com seu toque gélido enquanto, no topo de um edifício, Agatha balançava lentamente suas pernas sentada no peitoril. Em suas mãos, um livro de capa vermelha com o título e o nome do autor grafado em dourado repousava em seu colo. Seus longos cabelos negros tremulavam ao sabor do vento em movimentos graciosos e harmônicos enquanto uma singela lágrima descia-lhe pela face empalidecida.

Submersa em pensamentos e emoções relativamente novas para ela, Agatha despertou de seus devaneios quando uma forte rajada de ar, acompanhada por um farfalhar de asas, chegou aos seus ouvidos vinda de algum ponto às suas costas. Sem voltar-se a vampira teve certeza de que seu amado havia acabado de chegar e pousara próximo a ela. Discretamente enxugou a lágrima do rosto com o dorso de uma das mãos, mas não conseguiu impedir que o anjo percebesse.

— O que foi, Agatha? Algo errado? — perguntou o an-jo Veuliah a sua amada que se mantinha imóvel e com o olhar fixo no livro em seu colo.

Um raio cortou o céu negro ao longe anunciando a chuva que estava a caminho enquanto Veuliah recolheu suas

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asas fazendo-as se desmaterializarem e sentou-se ao lado de sua amada notívaga.

— Sei que algo está errado, meu amor! — disse o ser angelical com uma voz terna e carregada de sentimento. — Posso sentir sua amargura, mas não sei a razão de tal senti-mento! Diga-me o que a aflige para que possa ajudá-la a carre-gar tal fardo!

A vampira levantou seu olhar e encarou o amado mer-gulhando fundo em seus hipnotizantes olhos azuis que a fita-vam quase que suplicando-lhe a resposta. Agatha levou sua mão até próximo ao rosto angelical e, sem tocá-lo, imaginou afagou-lhe a face.

— Você já carrega comigo este fardo, querido! — disse finalmente a vampira.

Nada mais foi necessário ser dito para que Veuliah en-tendesse o que machucava sua amada e mais uma vez sentiu-se impotente. Mesmo com todo o poder divino que possuía, nada podia fazer a não ser curvar-se a um poder maior. Procurando desviar-se do assunto e buscando algo que pudesse tornar a-quele momento suportável, o anjo avistou o livro que sua a-mada segurava e ficou curioso.

— O que está lendo? — perguntou. — Do que trata a história deste livro?

Sem nada dizer, Agatha levantou o livro deixando a ca-pa voltada para Veuliah que leu o título em dourado. “Romeu e Julieta”. O título não lhe disse nada, pois o anjo não se inte-ressava pela literatura humana e havia feito a pergunta apenas buscando amenizar o clima tenso entre ambos. Tal ignorância literária transpareceu em sua expressão fazendo com que sua amada vampira iniciasse um breve relato do conteúdo da bro-chura de capa vermelha.

— É a história do amor entre dois jovens que perten-cem a famílias inimigas e, apesar de se amarem enormemente, não conseguem ficar juntas! Não lhe parece com a história de um outro casal que conhecemos tão bem? — perguntou Aga-

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tha e Veuliah não pôde deixar de perceber o que sua amada estava querendo dizer.

Por alguns instantes, ambos ficaram em silêncio até que o anjo lembrou-se de algo que o fez levantar-se e olhar para a vampira enquanto suas enormes asas se materializavam e se abriam às suas costas.

— Venha! — disse Veuliah. — Sei de alguém que talvez possa nos ajudar!

Certo tempo depois, o estranho casal encontrava-se di-ante de uma mulher que parecia conhecer o anjo de longa data.

— Olá, Veuliah! — disse a humana. — Estou vendo que os boatos são verdadeiros!

— Que boatos, bruxa? — disse o anjo assumindo uma posição de superioridade.

— O que deseja de mim, anjo? — perguntou a bruxa ignorando por completo o questionamento do ser angelical.

— Preciso de seus conhecimentos de magia, bruxa! — disse o anjo entrando no jogo da feiticeira e ignorando a per-gunta que fizera e da qual já sabia a resposta.

Durante os momentos que se seguiram, Veuliah relatou toda a história do romance e do amor que nutria por Agatha, a vampira, enquanto a bruxa mantinha-se atenta a tudo até que finalmente veio o inevitável pedido. Ambos queriam um feiti-ço que os permitissem agir como qualquer outro casal apaixo-nado. Eles queriam se tocar sem que um dos dois morresse.

— As energias de vocês são opostas e nada se pode fa-zer para que elas não se rejeitem! — disse a bruxa. — Sinto muito! Isto está além do meu poder!

— Não é possível! — esbravejou Veuliah diante da res-posta da feiticeira e do semblante entristecido da amada. — Deve haver alguma coisa que se possa fazer para impedir a perpetuação de tal maldição. Um grande amor não pode existir eternamente sem que os seres que se amam possam trocar uma simples carícia!

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Por um longo tempo, os dois amantes permaneceram frente a frente trocando olhares tristes e melancólicos até que a tensão e o sofrimento emanado de ambos acabou por sensibi-lizar o coração da bruxa.

— Existe um meio! O casal voltou-se para a feiticeira com uma expressão

de incompreensão estampada em seus rostos. — O que disse?! — perguntou Agatha falando pela

primeira vez desde que havia chegado na casa da feiticeira. — Criaturas de naturezas diferentes não podem se unir!

— começou a bruxa. — Mas as de naturezas iguais ou seme-lhantes, sim!

— Onde você quer chegar, Bruxa? — perguntou Veuli-ah.

— O que quero dizer é que se modificar a natureza de um de vocês para que fiquem no mínimo semelhantes, em te-se, vocês poderão se tocar.

— Ótimo! — disse o anjo entusiasmado. — Faça! — Acho melhor ouvir o resto, Veuliah! — retrucou a

feiticeira. — A essência da vampira é mais difícil de mudar e levará muito tempo para atingirmos o resultado desejado. To-davia, a sua essência é mais simples. Afinal, é infinitamente mais fácil o Bem ser corrompido do que o Mal ser recuperado.

— Você quer dizer que terá que transformar o Veuliah num ser maligno? — perguntou Agatha.

— Com certos cuidados, ele não perderá sua essência original!

A vampira emudeceu e deixou transparecer um certo incômodo em relação à “transmutação” do seu amado em algo maligno. Ela aprendera a amá-lo como era.

— Prossiga! — disse Veuliah. — Querido, não acho que seja uma boa idéia! É muito

arriscado! — disse Agatha.

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— Prossiga! — repetiu o anjo. — Você é importante para mim e não deixarei que nada impeça nosso amor, nem mesmo o bem que existe em meu ser!

E virando para a bruxa ordenou novamente que prosse-guisse. Caminhando até uma caixa de madeira cuidadosamente colocada numa prateleira, a feiticeira pegou-a e a depositou sobre a mesa onde agora se encontrava sentado o casal apai-xonado. Aberta, a pequena caixa deixou à mostra um meda-lhão negro da qual emanava um forte poder maligno.

Apanhando-o pelo cordão, a bruxa levantou-o na altura dos olhos. Era um pentagrama e no centro encontrava-se uma caveira esculpida que parecia estar gritando.

— Colocando este medalhão no pescoço por vontade própria, você terá sua essência maculada pelo mal e estará livre para tocar a vampira sem destruí-la. Mas devo adverti-lo que se, passado uma hora no tempo mortal, ainda estiver com ele no pescoço, sua essência tornar-se-á má para toda a eternida-de. Você compreendeu?

— Sim! — disse Veuliah estendendo a mão e pegando o medalhão. Antes que ele o colocasse no pescoço, Agatha per-guntou se era mesmo aquilo que ele queria, pois se sentia cul-pada pela decisão que o anjo estava tomando. Sem hesitar, Veuliah confirmou com um leve aceno de cabeça e colocou o artefato no pescoço.

Tão logo o medalhão acomodou-se no peito do ser an-gelical, suas asas tornaram-se negras como a noite e os olhos passaram a personificar a escuridão total. Um sorriso malévolo formou-se em seus lábios e ele aproximou-se de Agatha aco-modando-a em seus braços e selando seus lábios com um ar-dente beijo.

— Lembrem-se, vocês tem apenas uma hora mortal. Depois disto deve ficar sem o medalhão por sete dias mortais para novamente poder usá-lo por mais uma hora — advertiu a bruxa.

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Veuliah sorriu e, segurando sua amada num forte abra-ço, alçou vôo atravessando o teto da casa e desaparecendo na escuridão.

Durante a hora seguinte o casal saciou a chama do amor que os consumia até que o momento do medalhão ser removi-do do pescoço do anjo chegou. Veuliah viu a felicidade de sua amada e o prazer que sentia em tê-la nos braços que pensou em permanecer com o artefato.

— Você se esqueceu do que a Bruxa disse que iria acon-tecer se mantiver o medalhão no pescoço? — disse a vampira com uma certa preocupação já estampada no rosto.

— Não me esqueci, mas sou forte o suficiente para manter o poder do medalhão sob controle. Sou um Anjo da Virtude e meu poder benigno é infinito!

— Mas por via das dúvidas, peço que o tire, querido! — disse a vampira preocupada.

— Não! — respondeu Veuliah empurrando-a para lon-ge de si. Imediatamente Agatha percebeu que o ser que estava agora à sua frente não era o mesmo que conquistara o seu co-ração. A maldade que emanava do medalhão já havia subjuga-do o anjo e agora o manipulava. Um sentimento de culpa do-minou-a novamente provocando na vampira uma sensação que há muito não se lembrava. Amava Veuliah mais que a si própria e era correspondida na mesma proporção. Amor este que fizera seu amado abdicar do que lhe era mais sagrado, sua essência, para ficar ao seu lado. Se ele tivera esta coragem, a vampira concluiu que ela também deveria tê-la e a usaria para salvar seu amado de uma maldição eterna, não importando o preço.

Utilizando todo o seu poder de sedução, característica da sua espécie, Agatha aproximou-se do anjo voltando a se aconchegar em seus braços e beijando-lhe levemente os lábios.

— Amo você mais do que a mim mesmo, querido! O-brigado por transformar minha essência em algo de que me orgulho! Por favor, jamais se esqueça de que o amo muito!

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— O que você quer dizer com... Com um movimento brusco, a vampira agarrou o me-

dalhão e num único puxão arrancou-o do pescoço do anjo jo-gando-o para longe no momento final. Chamas brotaram da pele pálida de Agatha enquanto seu corpo se transformava em cinzas nos braços de seu amado e seu rosto exibia uma expres-são de infinita felicidade ao mesmo tempo em que lágrimas de sangue escorriam dos olhos de Veuliah.

Horas depois, na casa da bruxa, o anjo devolveu o me-dalhão que voltou a caixa de madeira.

— Sinto muito, Veuliah! — disse a bruxa tentando con-solar o ser angelical.

— Por quê? — perguntou — Ela está feliz onde quer que esteja. Nosso amor continua vivo e assim permanecerá até o fim de minha existência.

Sem mais nada dizer, Veuliah partiu desaparecendo no céu negro da noite.

— Não gostei que a vampira morreu, vó! — protestou Bruno. — E o que tem o amor de bom se foi ele que matou a vampira e deixou o anjo sem namorada?

— Tudo, Bruninho! Você não está vendo direito o po-der que o amor tem. Foi ele que juntou os dois, mesmo sendo impossível um anjo e uma vampira se amarem. Depois o anjo desistiu do que era mais importante para ele, o bem que possu-ía, para ficar poucas horas com ela, novamente o amor foi mais forte. Por último, quando o mal já ia dominar Veuliah, a vampira, por amor, deu sua vida para salvá-lo. O amor é muito poderoso. E se este poder é tão grande, você acha que é coisa de menina? — cutucou Ofélia.

Bruno ficou por alguns instantes pensando para depois se levantar, apanhar o livro da borboleta e sentar-se no sofá para lê-lo.

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Com um sorriso no rosto, Ofélia levantou-se e cami-nhou lentamente até o seu quarto, fechando a porta atrás de si. Apanhando uma pequena chave que trazia pendurada no pes-coço, abriu uma gaveta de uma cômoda e retirou uma pequena caixa de madeira de seu interior. Abriu-a, verificou que o me-dalhão do pentagrama, com a caveira no centro, ainda estava lá e fechou-a novamente. Realmente aquela era uma linda histó-ria de amor que Ofélia tivera um papel importante e descobrira que até anjos e vampiros podem amar.

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Isabella

1

Os galhos das árvores farfalhavam à sua passagem. Mesclada ao vento frio, era um suspiro contido, o sutil toque gelado que abençoa o silêncio e fez estremecer o júbilo. Vaga-va nas alturas com leveza e majestade, a sombra sem sombra e o negro da negra noite, o manto escuro envolto em saudade e o rilhar de presas em tão branco contraste.

Dona da noite, seu elemento favorito era a madrugada alta. Gostava assim, poucas pessoas, solitários em sua maioria, o mundo sugerindo ampliar-se, englobando recantos e som-bras, praças e ruas.

Apesar de forte, era recatada e sabia que discrição era de mais valia e não deixava rastros, pistas que acabariam por reve-lá-la. Era um predador rápido e mortal, mas trabalhava à sur-dina e caçava em silêncio agudo, procurando, escolhendo seu provento, seu sustento.

Caminhando à luz do luar, transparecia sua pele o bran-co leitoso de inusitado tom, que a fazia uma beleza singular. Por breve instante, farejou as distâncias, ergueu-se e, em fuma-ça, se atirou mais uma vez ao vento. Flutuava, vagava, procu-rava com a certeza de que em breve encontraria. Sempre en-contrava.

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2

O ruído agudo quebrou o encanto e fragmentou o mundo, o som penetrando-lhe os ouvidos como finas facas em brasas. Subitamente desnorteada, o corpo se fez peso e des-pencou ao chão.

O baque seco não a feriu, mas deixou-a alerta, garras e presas à mostra, os olhos incandescentes, a fera pronta para atacar. Contudo, não havia ninguém ali. Estava só, apenas ela e aquele ruído irritante, de tal monta agudo que lhe feria a audi-ção.

Com o olhar em brasas, perscrutou à volta. Achava-se em uma das inúmeras praças da cidade e, de súbito, lá estava, preso à árvore. Saltou em câmara lenta, como se não houvesse urgência. O corpo impulsionado à frente deslizou sobre o ar, vencendo a distância de modo fácil, os pés batendo ao solo com leveza, quase sem peso.

Por um momento, olhou intrigada para o objeto. Era apenas um alto-falante banal, acoplado a uma espécie de transmissor, a origem daquele som. Em fúria contida, estendeu a mão e desligou o aparelho e o ruído extinguiu-se de imedia-to. No entanto, havia algo mais preso ao galho da árvore, pou-co acima do artefato. A curiosidade lhe franziu a testa e refre-ou os restos de fúria. Seu semblante agora aparentava calma e os caninos levemente pronunciados, apenas eram denunciados quando deixava os lábios entreabertos.

Aproximou-se e observou mais de perto. Não havia dú-vida, era uma folha de papel, cuidadosamente dobrada e finca-da a um prego. Devagar, retirou a folha e a desdobrou. Era um recado e nele havia apenas uma frase:

Eu te amo.

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3

Nunca conhecera outros, muito embora, sabia que exis-tiam. Vira pistas, marcas e vítimas, e tais sinais eram tão certos quanto o dia. Nada sabia sobre os demais, mas ela, apesar da sede e fome serem implacáveis quando se abatiam, não tinha a necessidade de se fartar todos as noites. Bem alimentada, po-dia passar até três dias em jejum, os quais, na maioria das ve-zes, simplesmente repousava. Evitava o mundo dos humanos, não por lhe desagradar, mas porque nada mais havia era co-mum entre eles. Solidão é um preço pequeno para a imortali-dade e quando se tem todo o tempo do mundo à disposição, alguns dias desperdiçados não representam nada.

Entretanto, passado apenas uma lua, estava de volta a campo, sob o estrelado céu noturno. O bilhete a intrigava. Certamente fora endereçado a ela. O artefato fora montado para atraí-la. A questão era a frase escrita, quem a teria escrito e por quê. Uma onda de cólera atravessou-lhe o coração. Há muito perdera a capacidade de amar ou despertar amor, mais um pequeno custo no cômputo da imortalidade. Mas se assim fosse isenta, por que a raiva e o ódio? Um bom palpite seria por tê-la lembrado o amor do qual fora privada, contudo...

A suave brisa da madrugada a envolveu. Aromas se es-tendiam pela atmosfera, mesclando-se e misturando-se, insinu-ando-se com toques delicados e, por vezes, com marcante pre-sença. Com a face erguida, as narinas se dilatando a cada inspi-rada, podia separá-los um a um, identificando-os e, ainda, se-guir suas direções de origem.

O mesmo se dava com os sons, harmônicos entrelaça-dos em uma sinfonia desarmônica e dissonante, e ao mesmo tempo, tão puros e cristalinos, onde ela espaçava o sorriso de uma criança ou a lágrima que escorria. Mas, apesar dos prodí-gios de sua natureza, estava ali por um motivo bem específico e nenhuma daquelas sensações a desviaria de suas intenções.

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Quem a chamara, iria chamar de novo, só que desta vez, esta-ria preparada.

E tempo e paciência foram, por fim, recompensados, e um simples clic, o diminuto som de um pequeno relê conec-tando lhe apontou a direção. E quando o ruído agudo e desto-ante a alcançou, já estava em terra, a poucos passos do intruso.

Surpreendido, o desconhecido se voltou, caindo ao chão pelo inesperado, paralisado e tomado de pânico, exalan-do o doce e inebriante aroma que fez seus caninos se projeta-rem e os olhos incandescerem. Aqui estava quem a procurara e em deboche, escrevera que a amava. Mas não se brinca com fogo e em retribuição, lhe ensinaria o significado de horror.

4

Aflorada em predadora, avançou lentamente, rodeando o vilão e saboreando o momento. No entanto, a confiança ce-ga lhe foi fatal. Deveria supor que, quem fez o que fez, estaria preparado para imprevistos. Passada a surpresa, o intruso rea-giu de pronto. Tocou alguma coisa em seu cinto e no mesmo instante, o ruído agudo e irritante se elevou mil vezes.

Levou as mãos aos ouvidos, comprimindo-os, se cur-vando e cambaleando, seu cérebro mais uma vez perfurado por mil facas em chamas, agora ainda mais forte. Contudo, tal truque não o salvaria. Ela era fumaça e fogo, brasa incandes-cente que incendeia e mágica barata nenhuma iria impedi-la de alcançá-lo.

Porém, desta feita foi sua vez de ser surpreendida. Em vez de correr, implorando clemência, o intruso se levantou e recuou, trancando-se em uma espécie de jaula, escondida em meio às árvores. E mais surpresas se seguiram. Como um lou-co insano, um suicida que não mais se importa com ávida, des-ligou o som.

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Assim que o ruído desapareceu, ela se ergueu, mas em vez de atacar, apenas ficou ali, placidamente olhando o inusi-tado da cena. Depois de um tempo, desatou a rir.

— Sinto-me reconfortado por vê-la de tão bom humor. O riso cessou de imediato, porém, não havia ódio em

seus olhos. Como se brincasse, passou a língua de leve pelos caninos, num um misto de luxúria e sensualidade. O movi-mento lhe despertou sede e fome, as presas se projetando à mostra. Com o sorriso sinistro a brilhar, deu um passo em di-reção à jaula.

— Puxa, acho que não precisamos disso, não? Poderí-amos ter uma conversa mais amigável em nosso primeiro en-contro, você não acha?

A pergunta, assim como o tom de voz tranqüilo e con-fiante, a desarmou. Quem estava dentro do cerco? Um malu-co, com certeza, entretanto, ele não mais exalava o odor do medo. Hesitou por uns segundos e, sem que notasse, as presas se recolheram e o fogo dos olhos se apagou.

— Que espécie de louco é você? — Em primeiro lugar, não sou louco e... Louco ou suicida, pouco importa. Quem brinca com

fogo acaba queimado. — Tomei minhas precauções. — Acha mesmo? — Bem, você ouviu o som. Posso tornar a ligá-lo e ain-

da mais intenso. — Aquilo é apenas um incômodo. E mesmo assim, por

que acha que não o alcançaria antes? Sou bem rápida quando quero.

— Tenho a gaiola que me protege. — Gaiola? A mim parece mais para uma jaula. Gosta de

se sentir como um animal 110 zoológico? — Comentário interessante. Mesmo assim... — Mesmo assim, cale-se!

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Já não havia mais sorriso em seus lábios e a face se tor-nou dura e cinzenta.

Você me atraiu aqui de propósito, então sabe o que sou. Pensa mesmo que essa... gaiolinha pode lhe proteger, passari-nho? Posso rasgá-la com as mãos sem ao menos me esforçar!

— Esta não. Me custou um bocado, mas valeu cada centavo. É trançada ao extremo, para evitar que você consiga passar a mão ou um braço por entre as barras e é feita de aço especial de três polegadas, mais reforçada que aquelas usadas por mergulhadores quando filmam os tubarões brancos e...

O intruso não concluiu a frase, sendo jogado para trás com violência. O impacto fora tão brutal que a gaiola, mesmo firmemente presa ao chão e às árvores, quase foi arrancada de suas amarras. Os galhos se vergaram e por pouco não parti-ram. E antes que ele se desse conta do que acontecera, com velocidade impressionante, ela se pôs a poucos centímetros de seu rosto, fazendo-o recuar com sobressalto. Com a face transfigurada colada às barras, deixava as presas à mostra e os olhos em fogo.

— Não sou peixe, passarinho idiota! Nenhum peixe tem minha velocidade ou força!

E sumindo de suas vistas, recuou, contornou a gaiola e antes que ele pudesse sequer acompanhá-la com o olhar, se atirou outra vez contra a armação, golpeando-a ainda mais for-te, partindo os galhos e quebrando as árvores que a ancora-vam. Toda a estrutura foi atirada ao chão, só impedida de rolar para longe pelas amarras que ainda a fincavam ao solo.

— Vê, passarinho? Não preciso entrar. Posso erguer toda a estrutura e atirá-la às alturas. Você sobreviveria à queda, passarinho suicida? Sobreviveria?

O medo voltara aos olhos do intruso, o odor do suor frio se mesclava ao do temor. Mesmo assim, ele o reprimiu, em aparente calma.

— Não, não sobreviveria, mas você não fará isso. — E por que não?

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A fúria assassina distorcia sua beleza, expondo a fera que ali se ocultava.

— Porque a amo. A frase a acertou como um golpe e por um momento,

vacilo transpareceu-lhe nos olhos. — Me ama? Não deboche de mim! Não pode me amar,

sendo o que sou, criatura das trevas e... Você não é sobrenatural — disse com voz pausada e

segura, embora ela parecesse não ouvir. — ...uma caçadora de humanos, uma lenda que se faz

real e que caminha por entre vocês. Como pode afirmar que me ama?

— Você não é um ser sobrenatural. É uma pessoa, não percebe? Desta vez, ela se calou. O que pretendia dizendo a-quilo? Era louco.

Ela pertencia ao mundo das trevas, uma vampira suga-dora de sangue e uma morta-viva. Se não fosse sobrenatural, quem o seria?

— Sou uma morta-viva ou se esqueceu deste detalhe, passarinho?

— Morta-viva é um termo, não necessariamente um fa-to. Apenas uma maneira de descrever sua condição atual. Con-tudo, perceba, você existe, está aqui, e isto é fato. Sobrenatural é algo além do mundo natural, algo que não existe, como fan-tasmas e espíritos.

— Como sabe que não existem? — Se existirem, pertencem a este mundo e então, não

seriam sobrenaturais, está me entendendo? O mesmo se passa com você. Você é uma pessoa; apenas pensa que não.

Pela primeira vez após muito tempo, ela recuou de al-guém. O que o intruso dizia a confundia e atingia mais dura-mente que estacas ou balas, acertando as lembranças de frag-mentos de uma vida já esquecida. O que pretendia com aquilo? Iria fazê-lo falar.

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Contudo, não houve mais tempo e a hora para questio-namentos chegava ao seu término. As perguntas que lhe per-turbavam os pensamentos ficariam sem respostas, naquela madrugada prestes a findar. Uma fraca luminosidade crescia no horizonte, denunciando que não tardaria a amanhecer. Chegava a hora de se recolher.

— Para sua sorte, passarinho, tenho de ir. Aproveite a graça concedida e desapareça. Se me procurar de novo, será morto.

Uma última surpresa, porém, ainda lhe esperava. Agar-rando-se às barras da gaiola, o intruso se aproximou o quanto pôde dela.

— Então serei morto, porque vou procurá-la. Sabe que há verdade em minhas palavras e temos de conversar. Preferia não usar de subterfúgios para atraí-la, então, marquemos aqui mesmo, em três noites, o que me diz?

Sem uma palavra, ela se fez fumaça e se dispersou pelo ar. O intruso estava só. Por precaução, esperou a manhã raiar para sair da estrutura.

5

Havia anos não se alimentava de sangue animal, e mes-mo assim, apenas umas poucas vezes o fizera, na condição de sobreviver em situações críticas. Agora, contudo, hesitara em matar uma pessoa e isso tornava sua raiva ainda mais intensa. Em contraste, sentia-se ansiosa, as frases reverberando no pensamento, revertendo-a a uma condição de anseios quase humanos, e isso a enlouquecia.

— Maldito humano! Atirou longe a carcaça do animal sem vida, passando a

língua pelos lábios, sorvendo o resto de sangue. Por fim, lim-pou a face com as costas da mão e sem mais um movimento, arremessou-se ao ar e suas formas se dissolveram em fumaça,

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deixando-se levar pelas correntes ascendentes. Mas não havia paz em seu íntimo. O encontro a marcara mais do que gostaria de admitir. Duvidava das palavras e da intenção, mas não po-dia negar que se houvesse uma simples chance de ser como ele afirmara, de ainda pertencer a este mundo... mas não, não fazia sentido. Era uma predadora, matava para sobreviver...

Mas não matara um humano desta vez. “Eles são apenas alimento”. Não sou um animal, uma fera. Sou... “Uma vampira, não esqueça”. Poderei ser... “Não, não pode”. Humana? O pensamento dividido esfacelou-se de vez com a pala-

vra. Em meio ao vento, em meio ao nada, seu gritou se propa-gou até as nuvens.

6

Apesar da certeza, era impossível conter o nervosismo e, compulsivo, consultou o relógio novamente. A madrugada já ia alta e sabia que ela viria, sentia isso. E assim que se virou, a viu. Permanecia imóvel, a uns dez metros dele. A distância não lhe representava nada e se quisesse, estaria sobre ele em frações de segundos. Apostava que não o faria, mas naqueles minutos que se seguiram, era uma aposta bem alta. Viera de-sarmado, sem o ultra-som ou a gaiola de proteção. Queria de-monstrar confiança em si e nela também. Olhou em seus o-lhos. Se fosse matá-lo sem uma palavra, o faria agora.

Os segundos corriam frenéticos e por detrás da aparên-cia de tranqüilidade, o suor lhe escorria à testa e certamente não passaria despercebido a ela, menos ainda, o coração acele-rado. As batidas ritmadas empurravam o sangue com vitalida-

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de, fazendo as veias dilatarem, pressionando-lhe as têmporas, um péssimo negócio quando se está defronte a uma vampira.

Contudo, ela nada fez. Não o ameaçou ou avançou so-bre ele. Ficou lá parada, esperando, as feições cálidas e serenas. A luz pálida da Lua crescente a deixava linda, uma beleza arre-batadora, sem igual, mas não podia esquecer que esta mesma beleza era mais mortal que qualquer coisa viva sobre o planeta.

E apesar disso, continuava estática, aguardando, garras e presas recolhidas. Estaria pronta ao diálogo? Aquela distância, a via mais humana como jamais poderia ter imaginado. Estaria pronta a se conter e se dominar? Só havia uma maneira de sa-ber. Decidido, caminhou em sua direção.

7

Ela o viu se aproximar e apesar dos receios que irradia-va, ela os sentia tão claros como luz, ele procurava manter a serenidade. Os passos eram firmes e os leves vacilos se foram, assim que se pôs em movimento. Sabia que se tivesse um co-ração que pulsasse, estaria agora lhe martelando o peito, e mesmo mudo dentro de si, a ansiedade a consumia. A sensa-ção ambígua era terrível e ao mesmo tempo, reconfortante, revigorante. Fazia-a se sentir... Humana?

O pensamento quase a derrubou, e ela o espantou de sua mente. Fechou e apertou as mãos com força, percebendo dúvida em si. Se perdesse o controle agora, não sabia do que seria capaz.

Por fim, mais alguns passos, e estavam frente a frente. — O-oi, que bom que veio. Não respondeu. Seu olfato aguçado captava uma curio-

sa mescla de medo e confiança, algo que nunca percebera em nenhum outro humano. O perfume cítrico e suave da confian-ça atenuava e por vezes suplantava o odor doce e enjoativo do medo, e aquilo, de um modo que não entendia, a atraía.

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— Você disse que precisávamos conversar. O tom de sua voz saiu frio e impessoal, e ela gostou as-

sim. Revelar emoções que não compreendia e a faziam confli-tar não seria de bom tom naquele encontro.

— De fato, precisamos, mesmo. A fala dele se tornava mais convicta, fazendo o perfume

cítrico exalar com mais vigor. Surpresa, teve de refrear suas percepções sob pena de se ver inebriada, dominada antes mesmo de saber o significado daquela reunião.

— Diga o que tem a dizer. Notou transparecer uma ponta de insegurança em sua

frase. Assim como a ansiedade, a sensação ambígua a deixava desorientada.

— Bem, interrompemos nossa conversa quando eu ten-tava lhe fazer ver que você não é um ser sobrenatural e...

— Saiba que só estou aqui hoje para saber o que você quis dizer com isso e o que pretende.

— Comecemos por aí, está vendo? Você veio porque ficou curiosa. Não precisa me responder, mas tenho certeza de que ficou ansiosa também.

— Por que diz isso? E o que tem a ver curiosidade e an-siedade com o sobrenatural?

— Em primeiro lugar, digo porque também fiquei, e em segundo, este é exatamente o ponto. Curiosidade e ansiedade são predicados humanos.

— Animais também são curiosos e sofrem de ansieda-de.

— Você mesma disse que não era um animal. A lógica a contrariou, no entanto, havia sentido no que

dizia. E por que um elemento sobrenatural não poderia guar-dar tais características?

— A questão se volta novamente ao significado de so-brenatural. Como falei, expressa aquilo que é superior à Natu-reza ou ao natural, que não se conforma às leis naturais. To-memos o exemplo do fantasma, de novo. Caso existisse e esti-

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vesse sujeito a atributos humanos, ele estaria conformado à nossa natureza e, portanto, não seria um ser sobrenatural. Per-cebe onde quero chegar?

De fato, percebia, bem como antevia as implicações. E se assombrou ao perceber também que, de tão envolvida que ficara, nem se dera conta de que conversava com um humano, de igual para igual, a poucos passos de distância, algo impossí-vel há poucos dias.

— Isso não tem sentido, sou uma morta-viva! A exasperação na voz saiu contrária à sua vontade, con-

seqüência de seu conflito desordenado de idéias, e havia sido mais uma defesa do que propriamente uma agressão. Se ele tinha percebido, não o demonstrou.

— Como lhe expliquei, é apenas um termo folclórico utilizado para descrever sua atual condição. Você se locomove, pensa, fala, enxerga e faz praticamente tudo que um ser huma-no vivo faz, somado a coisas ainda mais espetaculares. Não me parecem qualidades de um morto.

Ele lhe abriu um largo e cativante sorriso, e ela quase o retribuiu. Desconcertada, não conseguia definir os sentimentos por aquele humano. De certo modo, havia uma familiaridade naquela conversa, como uma discussão entre amigos, entre...

Namorados? Amantes? Repeliu o pensamento com tamanha brutalidade que

chegou a se desequilibrar. Ele a fitou por um instante, mas não chegou a compreender o que se passara.

— Não sei onde quer chegar, mas humanos não se ali-mentam de sangue humano.

— O sangue como alimento e fonte de sua sobrevivên-cia advém de sua condição atual. Quanto ao fato de ser “hu-mano”, isso é tão somente um vício.

— Um vício? — Exato, um vício, como inúmeros outros que nós,

humanos, estamos sujeitos.

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— Vícios não são necessários à sobrevivência. Se deixar de beber sangue, pereço.

— Mas não é necessário que seja humano. — É necessário, sim! Imprescindível, por assim dizer!

Sangue animal não nos alimenta! E, contudo, não matara um humano desta vez. A mentira e aspereza da voz somente reforçavam a ver-

dade das palavras dele. — Não acredito nisso. Em seu caso, as diferenças de-

vem ser mínimas. Já provou para saber? Virou-lhe o rosto, temia ser pega no embuste. A per-

gunta ficou sem resposta. — E se eu lhe provar tudo que afirmo? — Como faria? — Responda-me, por que não sai de dia? — Se sabe o que sou, sabe a resposta. — Gostaria de ouvir de você. — A claridade me destruiria. Sou um ser das trevas. — Pois bem, e se lhe provar que isso não é verdade? — Não pode. — Posso, mas para tanto, teremos de esperar quatro di-

as. Encontre-se comigo e lhe provarei. A curiosidade despertada nela era genuína, fazendo-o se

prender ao seu rosto. A beleza o enfeitiçava. Nunca antes vira feições mais lindas.

— Por que esperar? Mostre-me agora. Curiosidade e ansiedade. Humana? — Confie em mim. — Se isso for um jogo... — Não é jogo, acredite. Vou prová-lo. Sem resposta, seu corpo se esfumaçou e a fina névoa se

desprendeu ao vento.

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8

Ao findar o quarto dia, a Lua cheia tomava o firmamen-to e enfeitiçava a cidade. A pálida luz translúcida banhava a noite, tornado-a mais que perfeita, a menos de um inconveni-ente. Fosse outra artimanha, tal qual o ruído agudo, seria a úl-tima afronta que cometeria. Contudo, o incômodo era distinto, como se de imprevisto a Natureza tivesse se tornado hostil à sua presença.

Via-o ao longe, em pé e seguro de si, a segurança que a fascinava. Por que fazia aquilo?

Porque ele a ama. “Ama nada”. Você não sabe. E a história é tão maluca assim? “Lógico que sim”. Então, por que a quer verdadeira? Não respondeu a seus questionamentos. Saltou, surfou

pelos ares e atingiu o solo com um leve toque, bem à frente dele.

— Então, passarinho, onde está a grande prova? Havia diversão em sua voz. — Está sentindo alguma coisa? A pergunta a fez se armar. — Se isto for uma de suas invenções... — Nada tenho com isso. Apenas me diga, está sentindo

alguma coisa diferente? Sim, estava, mas como poderia saber, não fosse ele o

responsável por mais aquele desconforto? — Sinto-me estranha e inquieta. Algo me incomoda,

uma ameaça ou inimigo à espreita. Contudo, nada vejo ou per-cebo.

— Além dessa sensação, sente algo físico? A pergunta fora contundente e certeira mais uma vez.

Sentia. — Uma espécie de formigamento na pele.

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— Aí está, como lhe prometi. O comentário a surpreendeu. Seria essa a grande prova? — Isso é alguma piada? A raiva na pergunta fez o semblante endurecer, os cani-

nos prontamente se pronunciando. — De modo algum, deixe-me explicar. Diga-me, por

que você não caminha sob o Sol? — Sabe por quê. Pelo que sou. A luz solar me queima-

ria de imediato até às cinzas. — Correto. E você acredita ser uma criatura das trevas,

pois à noite está a salva do Sol, estou certo? — Está sim. O que mostra o quanto está errado em tu-

do o que vem afirmando, bobagens com algum propósito. Ela avançou um passo. Seus olhos se intensificavam. — Não são bobagens. O que está lhe causando este

formigamento à pele é a luz do Sol. O súbito silêncio que se fez foi quebrado por gargalha-

das. Se fosse possível, riria às lágrimas. — Esta é a coisa mais idiota que ouvi. É noite ou não

percebe? No entanto, quando esperava hesitação e embaraço, ele

sorriu. — De que ri, passarinho? — Certamente é noite, isto é inegável. Mas olhe à volta

e me diga o que vê. — Vejo a praça, a fonte ao centro, o gramado, tudo i-

gual à sempre. O que há mais para se ver? Os questionamentos a irritavam. Repreendeu-se por ter-

se deixado acreditar ser possível, ter-se deixado levar por um sonho, um desejo.

— É verdade, há tudo isso para se ver e... sombras. — Sombras? Sempre há sombras! — De fato, ainda mais com um luar destes, a Lua cheia

tão esplendorosa e... — Chega deste absurdo! O que pretende com isso?

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A resposta veio em forma de mais uma pergunta enig-mática.

— Você faz idéia do que é o luar? O luar? Do que ele falava? O que teria aquilo a ver com

suas afirmativas? Todavia, em algum ponto de sua mente, lembranças de outra vida, de estudos e conhecimentos, come-çaram a aflorar.

O luar... O luar nada mais é do a luz do Sol refletida na superfí-

cie da Lua. Claro que era! Como nunca pensara nisso? — E a luz solar lhe é mortal, seja dia ou noite! Havia triunfo na face dele. — Não importa, não tem sentido. Já estive sob o luar

mais tempo do que você poderia se lembrar em vida e nunca senti nada igual.

— Há motivos para isso. Sua voz era tão segura que a desarmou. Existiria enfim...

Esperança? Deixava-se levar outra vez, queria acreditar, incapacita-

da de resistir à atração do sonho de ter a vida de volta. — Quais motivos? — Em primeiro lugar, temos a questão da intensidade.

De modo óbvio, a luz solar que incide através do reflexo na Lua é extremamente menos intensa que a luz do dia, irradiada diretamente do Sol. Em segundo, há certos fatores conjuntos que devemos considerar. Hoje em especifico é o dia em que a Lua atinge seu Perigeu, a posição mais próxima da Terra. So-ma-se a uma atividade solar incomum, que produziu conside-rável radiação adicional, além de um céu particularmente limpo e desprovido de nuvens, o que resultou em um luar mais in-tenso, suficiente para lhe ser perceptível.

— Mas... — Como pôde sentir na pele, radiação lhe é letal, seja

dia ou noite. Tudo é uma questão de intensidade.

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— Mas eu... — Deixe-me terminar. A questão da Luz e das Trevas

remete à antigüidade, onde o escuro encobria ameaças de to-dos os tipos. Dizem ser natural nos seres humanos o medo do escuro. Chamam a isso de medo ancestral, que trazemos de geração a geração. Com o passar do tempo, tais idéias foram englobadas pelas religiões, onde a Luz passou a se referir ao Bem e as Trevas ao Mal. Muito disso se refletiu no mito dos vampiros, por exemplo, expresso na crença de que seriam sub-jugados pelo crucifixo, um símbolo antigo que acabou por to-mar conotação cristã. A cruz a incomoda?

— Não. — Imaginava que não. Em assim sendo, o que se pode

concluir disto tudo? — Diga-me você. Seu tom era de perplexidade e aflição. — Você é uma pessoa, nada tem de sobrenatural. Já foi

como eu, embora agora se encontra em outra condição, com características bem peculiares. Mesmo assim, algumas são co-muns à maioria dos seres humanos.

— Como o quê? — Sua sensibilidade à claridade. Você é sensível ao ex-

tremo à radiação, e é disso que trata a luz solar, mas perceba que alguns indivíduos também sofrem desse mal. De um mo-do geral, as pessoas são mais tolerantes, chegam mesmo a se bronzear, mas não somos imunes ao Sol. Sua radiação é res-ponsável pela maioria dos cânceres de pele, e mesmo o exces-so de bronzeamento deixa marcas e nos envelhece precoce-mente.

— E isto me torna humana? — Talvez não uma humana comum, mas são fortes in-

dícios de que você não é “não-humana”. E há outros. A angústia lhe pressionava, no entanto manteve-se em

silêncio.

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— Seus órgãos, por exemplo, não estão mortos, apenas em desuso.

— Por que pensa assim? — Para lhe responder, descreva o que se passaria se não

se alimentasse. — Nunca aconteceu comigo, embora passei por alguns

períodos difíceis e posso afirmar que, sem sangue, a sede e a fome se alastrariam em um sofrimento terrível, mas que não leva à morte. Até onde sei, o corpo se definharia, deterioran-do-se até mumificar. Ainda assim, seria possível reanimá-lo com sangue.

— Em outras palavras, o sangue lhe é primordial à exis-tência. Contudo, como você não necessita oxigenar seu san-gue, seu coração não pulsa. Em outras palavras, não é necessá-rio que o faça. Porém, o que dizer de seus pulmões? Você não precisa de oxigênio, não precisa respirar, contudo, mesmo as-sim o faz? Por quê?

— Hábito? — Não. Respirar é um movimento autônomo e inde-

pende de nossa vontade. A resposta é dedutível e se encontra mesmo em romances de ficção. Você respira para poder falar. Perceba que, neste caso, seus pulmões funcionam, não estão “mortos” pois são necessários. Penso que o mesmo se dará em relação aos demais órgãos. Se você forçá-los ao uso, voltarão à ativa. Como vê, não somos tão diferentes assim.

Eram afirmações de peso e a fizeram refletir por um bom tempo. Seriam verdades ou esperanças inúteis, que se apegava no afã por uma vida quase normal?

— Pensa mesmo que meus órgãos podem voltar a fun-cionar como antes?

— Penso que sim, desde que você ingira sangue antes de utilizá-los. Alguma vez tentou comer?

— Umas duas vezes, mas descobri ser impossível. — Pois creio que se você se fartar de sangue, e em se-

guida comer algo, seus órgãos responderão.

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Ela se manteve em silêncio, ponderando por mais um bom tempo. Por sua vez, ele a sentia cada vez mais propensa às suas idéias.

— Confesso que vejo sentido no que expôs, mas ainda não estou plenamente convencida. E meus poderes? Posso saltar distâncias enormes, pular de alturas imensas e cair leve-mente ao solo, sem ao menos fazer ruído. Torno-me fumaça e vôo com o ar.

— Não tenho todas as respostas, mas não chamaria isso de poderes miraculosos. Diria que são atributos de sua atual condição e como tais, passíveis de estudo e explicação. Creio que sua aptidão de vencer distâncias, pousar suavemente e mesmo se dissolver, sejam conseqüências de uma mesma ca-pacidade. De algum modo, você parece controlar a densidade de seu corpo. Isso inclusive explica outras habilidades, como a resistência a ferimentos e sua força e velocidade superiores.

— Quem é você afinal, um doutor em vampiros? A pergunta franca quebrou a tensão que até ali existia.

Ela lhe sorriu e ele sorriu de volta. Pela primeira vez, seus o-lhos se encontraram.

— Na verdade, sou físico. — Físico? Ele confirmou com um aceno. — Minha especialidade é Óptica, embora conheça um

pouco de Acústica e Mecânica Quântica, para uma visão mais acurada sobre radiação.

O termo se traduziu em aviso e a fez se voltar para o horizonte. Em breve, uma vez mais o inexorável findar do tempo traria claridade.

— Tenho de ir. — Bem sei, mas ainda há tantas coisas para lhe dizer.

Havia ternura no som. Seus olhares continuavam presos. — Tenho de ir. — Depois de amanhã, aqui. Para lhe dizer... — Tenho de ir...

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Estendeu-lhe a mão às últimas palavras, mas quando ele a tocou, dissolveu-se em bruma. Estava só, mas o coração lhe certificava de que ela voltaria.

9

Desta vez o viu chegar, descer do automóvel e cami-nhar até a velha fonte. E, por sua vez caminhou até ele, dei-xando-se ver, sem surpreendê-lo. Ficaram ali um bom tempo, apenas se olhando, saboreando a sensação de que se conheci-am, se sabiam e se sentiam.

— Qual seu nome? A pergunta fora natural, como fora natural não fazê-la

até então. — Roberto, e o seu? — Isabella. — É um bonito nome. — Era o nome de minha bisavó. — Era tão linda quanto você? Ela não respondeu. — Como me achou? Como soube de minha existência?

Ele a olhou distante, enquanto revivia lembranças. — Você é precavida, mas não o quanto desejaria. Há al-

guns anos, a vi quando encontrou outras pessoas. Ele se calou e virou-lhe o rosto. A tristeza transparecia

em sua face. — Você me viu... me alimentando? Mesmo no silêncio, a frase fora apenas um sussurro. — S-sim. Uma noite eu estava caminhando à toa e notei

uma agitação. Era um local mal iluminado e assim, me apro-ximei com cuidado e... bem, você sabe.

— Onde foi? — Não quero falar sobre isso. É passado para nós dois. Ele se aproximou, olhando-a nos olhos. Ela não recuou

e sustentou o olhar.

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— Só que quando a vi, não consegui mais esquecê-la. Foi como estar enfeitiçado, mas era algo bom. Sabia o que vo-cê era, mas mesmo assim havia sonho, magia...

Esperança? Ele recuou uns passos. Se continuasse tão próximo, a

tomaria nos braços. — E desde então, eu a amo. Esperança. — Como me encontrou? — Como disse, você é precavida, mas nem tanto. Não

fui o único a vê-la. Relatos apareceram aqui e ali. A grande maioria era apenas bobagem, mas alguns, não. Passei então a correlatálos, decifrando seus caminhos até me antecipar a vo-cê.

Ela comprimiu os lábios. Fora descuidada. Se em vez dele, tivesse sido outro...

Ele a tocou. Ela recuou por instinto, mas percebia que talvez não devesse mais se afastar, se resguardar ou esconder. Suas diferenças agora não pareciam insuperáveis. Um horizon-te infinito de possibilidades se abria, tanta coisa para aprender, reaprender, testar e tentar... viver.

O coração dele batia apressado, podia ouvi-lo. Quando a tocou de novo, desta vez com mais firmeza, ela temeu o do-mínio da sede, sentir-se impelida a pular sobre sua garganta, sorvendo o líquido generoso e quente. Porém, a luxúria da fome se refreou. Não era viciada ou um animal. Podia domi-nar-se. Ele não seria alimento, todos os demais deixaram de sê-lo. Graças a ele, lograra esperança e sonho.

A distância entre seus corpos desapareceu e se beijaram. A lascívia a dominou quando, de maneira deliberada, ele pas-sou a língua por seus caninos. Ela se contorceu, excitada de maneira que já esquecera. Sentia-se viva. Arfou, quando a mão dele tocou seus pequenos e firmes seios. Ela o queria, mas não aconteceria agora, não ali, não hoje. Não se alimentava há dois

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dias. Estava fria, a pele fria preservada pelo sangue já sem ca-lor. Afastou-se dele.

— Hoje não. Amanhã. — Hoje, Isabella, hoje. — Não. As vozes eram sussurros. Tocou os lábios dele, pedindo

para que se calasse. — Amanhã. E não aqui. Em um lugar mais isolado, a

sós, íntimo. — Tenho uma pequena chácara, a uns quarenta minu-

tos de viagem. — Nos encontraremos quando a noite cair. — Acredita em mim? — Acredito. — Será minha? O sorriso foi sua resposta e, ao dissolver, deixou apenas

aroma no ar.

10

Do beijo ardente às roupas largadas, a eternidade cul-minava seu propósito e se permitia uma pausa. Ele a amava com intensidade, imerso em seu corpo quente. Sabia-o ser pelo sangue ingerido recente, mas isso não importava. Não era uma vampira, tinha em seus braços uma mulher de verdade, a ser explorada, decifrada e conhecida de todas as maneiras, uma resoluta em combate e apesar de fera, ele a amava com cari-nho, enquanto luxúria transbordava, tornando-o mais ousado, dominante e sedento por transpor.

Ao fazer menção de virá-la, ela não se opôs. Sorriso ma-treiro, se fez cúmplice e o ajudou, dirigindo-o. Quando a pene-trou, sentiu-se afundar em suas nádegas rígidas, encaixando a pelve, o mundo tomado por ondas rítmicas de um vai-e-vem

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constante. Quando o tempo findou, seu gozo foi prazer que céu e terra jamais sentiram.

11

Ela o sentia em si, sentia-se mulher em chamas, ardendo e amando em frenético desejo, corrompido pelo tempo de es-pera que agora chegava ao fim. Era mãos e boca, pernas e sei-os, explorando e sendo explorada, dando e recebendo, sem limites ou receios. Diferentes e tão iguais, o calor animal recém adquirido a aquecia e seu gozo veio em número, formas e ma-neiras. Mesmo assim, ela queria mais, experimentar mais, ir mais além, sem limites.

Quando ele a fez virar-se e beijou-lhe as costas, não co-locou resistência, deixando-se levar. Sabia o que ele queria e porque não o permitir? Estava mais excitada do que jamais estivera, revivia sensações há muito esquecidas e queria expe-rimentar todas as possibilidades de novo... todas. Sorrindo provocante, tomou-o pela mão e o guiou, facilitando como pôde. Quando o sentiu dentro, arfou de prazer e expiação, o bem e o mal, prazer e dor se mesclando no ritmo acelerado, adentrando a cada estocada, transpondo percepções, transpas-sando-a com carinho e ao mesmo tempo, força. E quando o gozo por fim veio, viveu o intenso do prazer, deixando o cor-po esmorecer sem forças, remontando a ela suas próprias lem-branças de mulher e fera.

12

Ficaram juntos e abraçados, o tempo não contando co-mo tempo e muito depois de depois, ela se afastou dele, ainda adormecido, e se levantou, caminhando pelo quarto escuro.

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Saiu ao luar, a pele nua banhada pela alva luz. No alto, através de um espelho prateado flutuante, o Sol a observava distante, do outro lado do planeta, mas não existia zombadas, truques ou ameaças. Nunca o veria de frente, contudo, agora havia paz entre eles, não eram inimigos. Ele não era luz e ela trevas, não havia embate nem subterfúgios, havia apenas seu corpo nu exposto à sua luz noturna e aquela leve ardência seria seu carinho mais intimo.

Sentir-lhe o fulgor e poder foi seu adeus ao mágico olho incandescente. Voltou-se sorrindo ao pensar em quem a espe-rava. Contrariou-se ao perceber chamá-lo de humano. Era mais que isso, um homem diferente de todos. Outros lhe es-tenderam armas, ele lhe estendera o coração. Resgatara a ela o quanto pôde de sua humanidade, sem perceber talvez que ele mesmo corria perigosamente para se afastar de sua própria.

O que seria o futuro? Não sabia. Por muito tempo exis-tiria o amor, o compartilhamento de dois mundos que, ainda que próximos, jamais seriam iguais, mas que podiam conviver. Mais tarde quem sabe? Poderia haver velhice, doença e morte, ou não. Ele iria querer se tornar um imortal? Talvez viesse a querer, mas existiria um preço, sempre há um preço na vida.

Mas não pensaria nisso agora. Era o futuro e ao futuro pertencia. Viu-o se erguer e correu para ele, para sua cama, que a partir de agora, também lhe pertencia. Aquela seria sua casa, não mais um esconderijo solitário e distante. Sentiu-se excitada e abandonou os questionamentos de vez. Queria amor, muito amor.

E quem sabe um dia, eterno.

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A Velha, o jovem e o casarão

O casarão da esquina era imponente, embora num primeiro olhar só fosse possível ver os telhados rodeados de muros al-tos e o portão largo na frente. Descascando aqui e ali, os mu-ros impediam a visão dos passantes, mas o portão exibia seu sorriso desdentado de grades bordadas, deixando entrever as varandas que o rodeavam e o jardim selvagem, onde as sa-mambaias tinham se agrupado como cachos de espadas, en-quanto heras, cipós e lianas sufocavam as árvores. As mais al-tas mostravam partes da copa e, muito acima dos muros, uma imensa tamareira se destacava contra o céu.

Tudo parecia indicar que o local estava abandonado, mas quem observasse com atenção perceberia o contrário: al-guém cuidava do casarão.

Todos os dias, antes do sol nascer, uma mulher podia ser vista, entrando por um rasgo do muro. Ela se recusava a usar a chave e abrir o pesado cadeado que abraçava a grade do portão em duas voltas apertadas e enferrujadas, preferindo esse meio um tanto insólito. Entrava de mansinho, como se não quisesse ser vista, e sumia entre as árvores. A noite, cos-tumava sair da mesma maneira discreta, sugerindo uma pessoa que trabalhasse na casa.

Não que isso tivesse qualquer importância. Ninguém mais se lembrava dos verdadeiros donos do palacete, aqueles que o tinham construído e nele morado durante muitos anos: nas outras casas da rua, todas as pessoas mais velhas também tinham-se ido. A diferença é que, enquanto os herdeiros ven-diam as propriedades a peso de ouro para os agentes imobiliá-

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rios e, em seu lugar, viam surgir arranha-céus de luxo, os her-deiros do casarão o mantinham como ele tinha sido nos tem-pos idos.

Ao primeiro sopro do século XX, o jovem médico re-

cém-formado desposara a bela professorinha. Ela abandonara os alunos para ser esposa e mãe, como era costume na época, e eles mudaram-se para o palacete recém-construído. Tiveram cinco filhas que nunca quiseram se casar e continuaram mo-rando ali, junto com um bando de primas e agregados da famí-lia, que se hospedavam e perdiam o caminho de casa, estabele-cendo-se no local em bases bastante confortáveis: dormiam, comiam e bebiam de graça, qual gatos numa pensão.

O senhor doutor era um homem muito dedicado. Tra-balhava no hospital, atendia no consultório e jamais se negava a dar consultas grátis para os pobres. A noite, porém, secreta-mente, ele ficava estudando e pesquisando até tarde: tinha se tornado um alquimista e a busca da imortalidade ocupava to-dos os seus pensamentos.

Ao dar à luz a seu sexto filho — agora, um menino — a professorinha veio a falecer, deixando o doutor desesperado. E não apenas pela sua perda, imensa, mas ele foi assaltado por um horrível sentimento de impotência por não ter podido sal-vá-la. Alguns dias depois, o bebê também faleceu, aumentando seu tormento.

Dizem que, inconformado, o doutor fez de tudo para trazer os dois novamente à vida, mas não teve êxito, é claro, e acabou sendo obrigado a enterrá-los. Havia quem jurasse que ele tinha roubado o corpo da esposa do cemitério da família e construído um mausoléu para ela no jardim. Usando o tronco de uma grande mangueira, disfarçou uma gruta que construiu para abrigar o túmulo, ao mesmo tempo em que o escondia de possíveis olhares indiscretos com muitas plantas. Muitas histó-

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rias circulavam de boca em boca, mas uma coisa era certa: to-das as noites, ele conversava com a esposa morta e lhe pedia perdão por não ter sido capaz de impedi-la de abandoná-lo.

O tempo passou e a vida foi desempenhando seu papel: um agregado se formou e mudou-se para outra cidade. Uma das primas casou-se, a outra encontrou o caminho de casa, uma terceira foi morar em outro local. Pouco a pouco, todos partiram. Ficaram ali apenas os donos da casa, e logo eles tam-bém foram se retirando para outras esferas, um a um... Uma velha desapareceu. Outra velha se foi, e mais outra, e mais ou-tra... E o doutor também, na sua loucura mansa, embora as circunstâncias a respeito jamais tenham ficado claras.

Só sobrou uma velha, por quem ninguém se interessava, já que não havia mais quem conhecesse “o senhor doutor e as senhorinhas do casarão” ou mesmo se lembrasse de que eles, um dia, tivessem existido. Todos os vizinhos moravam há pouco nos belos apartamentos cheirando a tinta e verniz, e as crianças não saíam mais para brincar na rua, desfrutando da sua curiosidade nas áreas delimitadas pelas grades e plantas em volta da piscina e do parquinho.

O palacete era apenas um imóvel esquecido no cruza-mento de duas ruas.

Todos os dias, uma mulher refrescava o seu ar abando-nado, correndo as cortinas escuras que não podiam ser vistas de fora e andando pelas salas imensas e quartos desertos.

Ela era muito magra e empertigada. Usava uma saia longa e uma blusa com um laço no meio da gola bicuda. Ves-tia-se toda de preto como uma viúva inconsolável, o que lhe acentuava a palidez do rosto amassado como papel embolado e o círculo negro em torno dos olhos fundos. O nariz compri-do e curvo fazia uma triste figura com a papada mole debaixo do queixo, mas ela já tinha passado do tempo de se incomodar com essas coisas e só se olhava no espelho uma vez, pela ma-nhã, quando ajeitava os cabelos brancos e ralos, puxando-os com força para trás e arrematando-os numa bola sobre a nuca.

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Quem a visse passar, não repararia nela. E embora seu rosto fosse uma cuidadosa máscara de indiferença, seus olhos escu-ros e vivos sabiam de tudo.

Não se tem notícia do que ela fazia no casarão, o dia in-teiro, mas uma coisa era certa: barulho não era. Dali não se ouvia ruído de nada. Nem de televisão, nem de música, nem de vozes. Nunca uma porta batia. E o casarão continuava apa-rentando um abandono discreto e estranhamente bem cuida-do, como se tivesse sido preparado para ser o cenário de um filme.

Certa noite, em algum lugar da cidade, um jovem brigou com o pai e decidiu sair de casa. Colocou na mochila algumas roupas, a escova de dentes, seus livros e CDs prediletos, algum dinheiro, um sanduíche, uma lanterna velha e bateu a porta com força atrás de si.

Para onde iria? Ele também não sabia. Um vento forte soprou, jogando para trás seus cabelos

escuros e lisos, e ele decidiu que andaria com o vento batendo no rosto.

“Não aceito ser levado a lugar algum!”, pensou. “Quero escolher sozinho os meus caminhos.”

E, assim, confiante, pôs o pé no mundo. Andou, andou, andou. Atravessou ruas e avenidas, sem

olhar para os lados, preso dentro de si mesmo. Cruzou o rio, acompanhou a parede alta do cemitério, passou na porta de incontáveis igrejas, atento aos próprios pensamentos, e foi pa-rar do outro lado da cidade, num bairro elegante, cheio de ar-ranha-céus de luxo.

Cinco horas da manhã. O céu apresentava manchas de nuvens no poente e uma limpidez impressionante a leste. As estrelas se escondiam, pálidas e envergonhadas, após a anima-

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ção noturna. Os prédios tinham mantido acesas algumas de suas luzes, quadradinhos brilhantes de cristal no recorte escu-recido das paredes.

“Vou procurar um lugar para descansar”, pensou ele, parando numa esquina e observando o local com mais aten-ção.

Encostou-se num muro para olhar em volta. Reparou que não havia ninguém no cruzamento das ruas. Nem mesmo um automóvel apontava os faróis. As folhas das muitas árvo-res estavam imóveis, elas também num silêncio de espera.

Ele não queria chamar a atenção dos porteiros, que po-deriam confundi-lo com um ladrão, mas mesmo assim ficou parado, pensando no que fazer.

Viu a velha chegar de mansinho, no seu passo miúdo e certeiro, de quem sabe para onde vai. Ele ficou olhando para ela, acompanhando os seus movimentos. Ela também o viu e lançou-lhe um meio-sorriso enigmático, antes de esgueirar-se pela fenda do muro, que as plantas cobriam sem esconder, como se quisessem disfarçar a entrada, mas sem impedir que fosse usada.

Só então o moço reparou no casarão. Deu um pulo, tão grande foi o susto. Ou talvez fosse a idéia saltando e batendo na parede do seu cérebro.

Intuiu, mais do que soube, o que faria. Do pensamento à ação, um milésimo de tempo se passou, e em alguns poucos passos ele fez o mesmo que a velha.

O coração aos saltos, viu-se entre árvores e plantas que cresciam desordenadamente, enrolando-se umas às outras e dando voltas para sair do mesmo lado como numa floresta. Um suor gelado brotou nas suas costas. Teve vontade de vol-tar, mas o caminho se fechara. Receava animais e insetos, so-bretudo as aranhas, e cada folha que nele encostasse fazia com que estremecesse. Sentia cócegas, mas nenhuma vontade de rir.

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Seu medo adquiriu um rosto de mulher, que apareceu entre as folhagens, os olhos faiscando na escuridão, a cabeça deitada, solta no ar como se não tivesse corpo. Ela repetia a sua frase predileta: “Menino feio, menino mau!”. Seus lábios se mexiam sem que deles saísse som algum. Nem precisava. Ele conhecia tão bem aquela frase...

Seu pai sempre ficava do lado da madrasta. Ele nunca acreditara no filho e levava a sério tudo o que aquela megera lhe contasse. Muitas vezes, ele fora castigado por causa das mentiras dela. Mas agora tinha decidido que esse tempo acaba-ra.

Mesmo assim, o jovem sentiu os olhos úmidos. Ele não era feio nem mau. Era apenas um garoto que tinha crescido o suficiente para entender que o seu jeito não era do gosto dela, não era do jeito que ela achava que ele deveria ser.

Tampou os olhos para não ver o rosto odiado, mas ela estava dentro dele, e agora ria seu riso debochado, riso sem som como se o pai estivesse atrás dela e ela tivesse de manter o fingimento. “Meu amor, venha com a sua mamãe...”, dizia a voz, enquanto os olhos duros informavam: “Não se atreva a me desobedecer!” Ela gostava de ser chamada de “mamãe”, mas era tudo para os outros verem. Ela só pensava no que os outros iriam pensar.

O ódio que dominava seu coração se fez mais amargo. Ele sempre soubera que, mais dia, menos dia, ia acabar matan-do aquela criatura! Antes que o fizesse, decidira ir embora. A-fastar-se lhe parecera a solução ideal.

Pensou que deveria ter planejado melhor a nova vida, mas não tivera tempo. A madrasta tinha atingido os seus limi-tes e agora, perturbado por aquelas lembranças, as coisas pare-ciam piores. Forçou a vista para enxergar o caminho, mas as árvores não permitiram. Elas cercavam o casarão como se o quisessem proteger. Solidária, a lua saiu de trás de uma nuvem grossa e iluminou o céu. Já estava quase cheia. A tênue luz da manhã, que começava a refletir-se no vidro das janelas, impe-

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dia-o de ver o que havia dentro, mas também cegava a casa, impedindo-a de ver o mundo.

Ele concluiu que o melhor seria afastar-se dali. O local era muito estranho e ele não conseguia imaginar o que diria à velha, se ela o surpreendesse.

Não teve tempo, porém. A névoa se condensou, redu-zindo ainda mais a profundidade da sua visão, e um frio inten-so o envolveu. Ele apertou os braços contra o peito, mas mesmo assim seu corpo começou a tremer, os dentes a bater, a cabeça a doer. Um medo imenso se apoderou dele, paralisan-do-o e impedindo-o de pensar em outra coisa que não fosse aquela sensação sufocante, que parecia vir do estranho casarão. As garras da angustia pegaram-no pelo pé e a pressão foi su-bindo, lentamente, envolvendo cada célula, até dominá-lo por completo. Ele não sabia de onde vinha aquela magia, mas ti-nha certeza de que não podia mais ficar no jardim. Tinha de entrar na casa ou voltar para a rua.

Sentiu o olhar do casarão sobre ele. Aqueles olhos cegos enxergavam melhor do que quaisquer outros. Revirando-se nas molduras das janelas, enviavam mensagens aterradoras, mas estranhamente foi a curiosidade que venceu e o jovem optou pela primeira alternativa.

Abrindo um caminho entre os galhos entrelaçados de heras, viu-se, de repente, num local aberto: um pequeno lago de cimento, sem água, em formato oval, era cercado por casi-nhas de telhados bicudos com uma porta arredondada na fren-te. Pelos desenhos gastos, concluiu que eram casas para patos que não vinham mais. Uma imensa mangueira cuja copa se abria sobre um tronco sólido fazia como que um teto para o lago; encravada no tronco havia uma gruta; dentro dela, uma grande lápide que lembrava um túmulo, cercada de plantas. Estremecendo, o jovem afastou-se, o corpo todo arrepiado, como se os olhos cegos e invisíveis o fitassem cheios de ran-cor.

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Tinha certeza de que o melhor seria ir embora e esque-cer-se daquilo tudo, mas encarou o casarão e a vontade de chegar mais perto dele venceu seus temores.

Ele tinha sido construído num terreno em desnível, por isso, apenas daquele lado era possível ver que tinha um andar térreo grande, um segundo andar que ocupava apenas a meta-de deste, um porão, do lado oposto, cujas janelas gradeadas rentes ao chão deixavam entrar um pouco de ar, e um sótão, lá em cima, no bico do telhado.

Olhou as janelas compridas: uma delas estava iluminada por uma frágil luz azul; como se hipnotizado por ela, um ca-chorro dormitava.

O jovem teve certeza de que o casarão escondia um se-gredo.

Ele tinha de entrar. Deu a volta, procurando por uma porta secundária que

o recebesse. Não demorou a encontrar. Experimentou o trinco e empurrou. Estava aberta. Ela gemeu, mas ele entrou assim mesmo, chegando a um compartimento que lhe pareceu com-pletamente vazio. Esperou um pouco para que seus olhos se acostumassem à escuridão e viu uma escada. Tateando, perce-beu que ela levava para cima ou para baixo, dependendo do lado para o qual se dirigisse. Nem precisou pensar muito para escolher e desceu os degraus com cuidado, sabendo que ia pa-ra o porão.

Só então ele se lembrou de que tinha trazido uma lan-terna. Buscou-a dentro da mochila, torcendo para que tivesse pilhas, detalhe que não verificara. Por sorte, funcionou. A luz era fraca, mas ele pôde ver que o porão estava cheio de coisas velhas amontoadas: móveis antigos de todo tipo, alguns intei-ros, outros quebrados ou apenas desmontados; roupas jogadas num canto, amontoadas umas sobre as outras; garrafas vazias; livros empilhados misturados com papéis e jornais; utilidades domésticas de toda espécie e mil outras tralhas, sugerindo que as pessoas que ali moravam nunca jogavam nada fora.

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Ele esticou os braços para o alto e esfregou os olhos. Subitamente, percebeu que estava exausto. Olhou em volta, procurando um local onde pudesse descansar um pouco. Mais tarde, pensaria no que fazer.

Um colchão velho e fedorento lhe pareceu melhor do que o chão duro e úmido. Deitou-se, enrolou-se sobre si mesmo e ficou quieto, ouvindo os sons quase inaudíveis do local confundindo-se com as batidas do seu coração. Ajeitan-do-se o melhor que pôde, adormeceu.

Acordou sobressaltado, sentindo uma energia diferente no ar. Ouviu algo como uma respiração curta, ofegante, e intu-iu, mais do que viu, um vulto ao seu lado. O jovem achou que só podia ser a velha e ficou imóvel, esperando o que iria acon-tecer, os olhos fechados, mas todos os outros sentidos ligados. Ele era forte, tinha os músculos bem treinados pelos aparelhos da academia, por isso, tinha certeza de que ela não teria cora-gem de enfrentá-lo e, menos ainda, forças para vencê-lo. Só torcia para que não tivesse uma arma, mas, de qualquer manei-ra, não a usaria se ele não a atacasse primeiro.

A presença aproximou-se mais, tão de mansinho como tinha chegado, e olhou em seu rosto. Ele podia senti-la. Vinha dela um frio estranho, que o envolvia e dominava. Ele não ti-nha certeza se era um sonho ou se estava mesmo acontecendo. O frio invadiu todos os espaços ao redor. O cômodo ficou gelado como um frigorífico. Seu corpo enrijeceu-se de tal for-ma que, mesmo se quisesse, ele não conseguiria se mexer. O frio trouxe a névoa e as gotas que escorriam das paredes úmi-das congelaram, mas isso ele não podia ver.

Um tempo se passou. O jovem não saberia dizer se ti-nha sido pouco ou muito tempo. A presença retirou-se sem ruído, mas ele continuava com a sensação de que estava sendo observado. Ouviu passos miúdos e sons que lembravam guin-chos. Não estava mais só, mas o medo e o frio tinham ido embora.

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Ousou acender a lanterna e o facho de luz mostrou-lhe um rato enorme, mais assustado do que ele próprio, que, er-guido sobre as patas dianteiras, o encarava com os bigodes tremendo. O animal também não estava só: seus companhei-ros corriam de um lado para outro, cheirando aqui e ali à pro-cura de algo para comer.

O jovem riu e lembrou-se de que também não comera nada. Mas ele tinha um sanduíche na mochila! Puxou-o lá do fundo e dividiu o jantar com os animais. E já que o medo ti-nha levado o sono embora, resolveu explorar o local.

Àquela altura, já tinha amanhecido completamente e o casarão estava claro e silencioso. Ele sentiu-se mais à vontade para pesquisar aqui e ali. Seu maior receio era o cão, mas nada aconteceu.

O rapaz subiu a escada, dando direto na cozinha, que tinha um banheiro ao lado; atravessou a imensa sala de jantar, onde contou doze lugares à mesa, saiu na sala de visitas, deco-rada com sofás grandes e móveis escuros e antigos, enfeitados com forrinhos de crochê debaixo dos grandes candelabros de cristal e das baixelas de prata-de-lei. Nunca tinha visto portas e janelas tão altas, mas elas apenas estavam acompanhando a altura imensa do teto. As portas contavam dos quartos que se escondiam, talvez ainda dormindo àquela hora fresca da ma-nhã. Viu uma escada que levava ao piso superior e subiu. Lá no alto, o teto tinha forro de madeira.

Ele andou pelo longo corredor cheio de portas, mas não se atreveu a abrir nenhuma e continuou em frente até chegar a uma escada em caracol. Ela dava no sótão, cuja porta estava aberta, mostrando um local impecável como se estivesse espe-rando visitas. Nas prateleiras, cadinhos, pipetas, ampulhetas, frascos de todos os tamanhos, medidores, ganchos, pegado-res e toda a parafernália que podia ser encontrada nas boticas de antigamente; sobre a mesa, papéis cheios de anotações rabis-cadas misturavam-se a livros abertos e fechados.

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O jovem ficou andando pela casa, olhando sem tocar em nada, até que a manhã passou pelas árvores e as primeiras sombras brotaram no vidro das janelas. O silêncio doía nos seus ouvidos habituados à poluição sonora da cidade grande. Parecia que ele estava em outro mundo, um mundo sem som. Correndo o risco de chamar a atenção, bateu com o pé nas tábuas compridas do chão, tão grande foi o seu receio. A pan-cada surda provou que a sensação vinha de alguma estranha magia do local.

O casarão o recebia como a um amigo. Aos poucos, ia se revelando, e até mesmo permitindo que o jovem se inteiras-se dos seus segredos. A ousadia engoliu o medo e, não encon-trando em lugar algum sequer o rastro nem da velha nem do cão, o jovem sentiu-se à vontade para fuçar mais.

Todos os quartos tinham uma cama, um grande guarda-roupa, uma cômoda e pelo menos um baú cheio de roupas, fotografias e objetos. Ele sentou-se no chão e ficou imaginan-do a vida das pessoas que as fotografias mostravam, todas muito empertigadas nas suas roupas domingueiras, nenhum sorriso no rosto duro, posando para a eternidade como se qui-sessem mostrar autoridade e seriedade às pessoas do futuro. Uma mulher jovem rodeada por cinco meninas com laço de fita nos cabelos olhava para ele de um jeito estranho. Um ho-mem de bigode e cavanhaque aparecia várias vezes, ora com uma das meninas, ora com outra, ora com todas. A família po-sando como num quadro de Rembrandt. Nenhum sorriso, mas via-se pelo semblante que eles eram felizes.

O jovem examinou cada caminho, abriu portas e gave-tas, mas não encontrou nada além de um velho casarão limpo e arrumado. No entanto, ele o sentia frio e vazio. Faltava al-guma coisa ali e ele não sabia dar nome à sensação que o prendia ao lugar. Uma casa sem habitantes é como um corpo sem alma, concluiu ele, que nunca tinha imaginado nada igual.

Já estava novamente com fome. Checou as chamadas do celular e, não vendo nada de interessante ou urgente, guar-

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dou-o no bolso da perna da calça, preparando-se para buscar algo para comer. Antes, porém, saiu para o jardim e constatou que tudo que ele tinha visto no escuro estava no mesmo lugar. O jovem riu.

Queria sair para comer algo na padaria que vira na mesma rua, logo adiante, mas o casarão, que exercia um estra-nho poder sobre ele, lhe pedia para ficar. Fascinado, comeu algumas frutas que as árvores lhe ofereceram e tentou continu-ar seu passeio pelo jardim, mas uma tontura o fez sentar-se. Apertou os olhos e, ao abri-los, viu animais que saíam voando de dentro dos olhos cegos do casarão, olhos que o fitavam de longe, ofuscados pela luz, e que o dominavam mesmo sem o ver. Eram morcegos enormes, que guinchavam e voavam à sua volta, transformando-se em estranhos seres com olhos peque-nos e juntos, orelhas de abano e caninos pontudos, que tenta-vam mordê-lo, sem sucesso, e iam embora furiosos, para vol-tar em seguida, guinchando mais alto.

Apavorado, tentou levantar-se, pensando em sair cor-rendo, mas seu corpo não o obedecia.

De repente, as imagens de pesadelo desapareceram e o jovem viu o lago ovalado. Riu, constatando que sua imagina-ção lhe pregara uma peça: a gruta era apenas uma pedra grande aberta no meio como qualquer gruta de jardim. No buraco, pedras pontudas e folhagens que tinham nascido ali por acaso, atraídas pela água do fundo. Não havia lápide alguma. A morte sequer passara por ali.

Aos poucos, a luz foi-se afastando e cedendo lugar à noite, que chegava de mansinho como era do seu feitio. Senta-do num canto, ele não se dera conta da passagem do tempo. O medo também se esgueirou, invadindo o coração do jovem, onde se instalou no maior conforto. Chegara tão suavemente, que ele só percebeu quando ouviu o pio de uma coruja e sal-tou, batendo a cabeça num galho. O que acabou sendo a sua sorte, afinal: vestida de preto, a velha se confundira com a es-

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curidão entre as árvores e agora saía, o cachorro preso na co-leira, pelo mesmo lugar disfarçado entre as folhagens.

O animal latiu em sua direção, mas ela reclamou: — O que deu em você, Rex? Quieto! Ela virou Rex para a direção contrária, arrastou-o alguns

poucos metros, e os dois ganharam a rua, ela, no seu passo miúdo, ele trotando ao seu lado.

O jovem olhou o casarão de olhos cegos e reparou que este tinha uma ruga de reprovação no meio da testa em forma de trapézio, que o bico cortado do telhado lhe dera. Mesmo cegos — ou talvez exatamente por isso mesmo — aqueles o-lhos o hipnotizavam. O jovem estremeceu, farejando proble-mas...

Ninguém à vista. A saída logo ali. Era a oportunidade perfeita para cair fora. Mas ele não foi embora. O casarão lhe pedia para ficar. Num pulo macio como o de um gato, o jo-vem atravessou o jardim e parou, examinando os vultos que a porta deixava entrever, mas foi andando, lentamente, hipnoti-zado, e voltou para dentro da casa. Não sabia o que procurava, mas pensou que seria interessante pesquisar a cozinha. Com a fome que sentia, seria capaz de comer um porco inteiro!

Começou a rir quando viu que seu desejo tinha se tor-nado realidade: sobre a mesa, um porco assado estava em cima de uma travessa grande. Ele riu, esfregou as mãos uma na ou-tra e não fez cerimônia, decidido a ir embora em seguida. Não roubara nada, nem sequer tirara qualquer coisa do lugar, comer um pouco não teria conseqüências. De qualquer maneira, a dona da casa já tinha se servido: faltava um pedaço pequeno de pernil, que poderia muito bem ter sido comido por uma velha ressecada.

Uma garrafa de vinho aberta piscou para ele que não re-sistiu à bela combinação que ela fazia com os pedaços do suí-no. Serviu-se devagar, com respeito. Cheirou-o, antes de pro-var. Tinha um bouquet tão perfumado que ele tomou um gole

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bem pequeno para melhor apreciá-lo, revirando-o dentro da boca, deliciado.

Nem bem o engoliu, foi dominado por uma estranha sonolência. Mesmo sentado, seu corpo balançava para lá e para cá, ameaçando cair da cadeira. Os olhos semicerrados lhe per-mitiram ver que a cozinha estava povoada de sombras. Elas se aproximaram, querendo tocar seu corpo, e provocando arrepi-os de horror. Mas ele não conseguia levantar-se, embriagado pelo vinho e pela estranha sensação de estar sendo gradativa-mente dominado por uma força estranha.

Algumas sombras adquiriram forma humana e ele viu cinco seres andróginos que lembravam belas mulheres de ca-belos negros e pele clara. Eles o olhavam sem sorrir e o toca-vam sem o atingir, voando ao seu redor num bailado de mo-vimentos rápidos e confusos. Atrás delas, outras cinco som-bras de mulheres, com os cabelos claros e a pele negra, mos-travam os caninos salientes num arremedo de sorriso. Elas também não conseguiam tocá-lo, apesar das tentativas grotes-cas. Todas estavam nuas. Seus longos cabelos lisos lhes cobri-am o corpo como se o vestissem, deixando apenas entrever o flácido sexo de homem que não combinava com suas formas arredondadas e os seios de mulher. Eram o negativo e o posi-tivo, mas todos eram vampiros sedentos de sangue, que não conseguiam tê-lo e voavam, desesperados, em torno do pobre rapaz apavorado.

Um vulto entrou na sala, por trás do jovem, que sentiu a presença sem o ver. Todos os seres desapareceram através das paredes, soltando gritos e lamentos mudos, que ficaram pai-rando no ar como neblina.

“Estou vendo coisas...”, disse o jovem, em voz alta. “Esse vinho me pegou...!”

Levantou-se com esforço e, segurando-se nos móveis para não cair, tentou caminhar. Pretendia descer a escada que levava ao porão, pensando que, pelo menos ali, só havia ratos; e com coisas concretas ele sabia lidar melhor.

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Não conseguiu. Suas pernas pesavam tanto que nem ar-rastando-as ele pôde sair do lugar. Caiu sentado de volta na cadeira ao lado e sua cabeça balançou, no mesmo ritmo dentro e fora. Ele entreabriu os olhos e viu o casarão como se o o-lhasse da rua, mas agora as árvores não existiam e os muros eram de vidro. Ele era muito maior e mais imponente, porque ficava na ponta de uma montanha, lá no alto, mas era ele mesmo, envolto pela neblina e brilhando aqui e ali sob a lua cheia.

O jovem ouviu barulho de asas e viu a cozinha se en-chendo de pássaros. Eram todos grandes e pareciam fortes. Os olhos faiscantes e malvados estavam fixos nele e o bico pon-tudo se misturava e confundia com a plumagem negra e luzidi-a, mesmo quando eram abertos para fazer o crá-crá, que repe-tiam sem parar. Cada um que chegava ajeitava-se onde podia: em cima da mesa, das cadeiras, do armário, no parapeito das janelas. Crá-crá, faziam eles, recolhendo as asas imensas. Silên-cio.

A energia da sala moveu-se, provocada por alguém às costas do jovem, que ele não podia ver, pois não conseguia segurar a cabeça ereta sobre os ombros e muito menos virá-la. Os pássaros voaram todos em sua direção. Ele pensou que eles o matariam, mas as aves o tomaram pelo bico sem feri-lo, e foram embora por uma janela aberta, cortando a noite numa velocidade constante e agradável, apesar do frio que fazia lá no alto, perto do céu escuro.

Voaram juntos durante um tempo que não existia, para alguém que tinha a cabeça frouxa, os olhos se revirando nas órbitas e o corpo mole de um boneco de pano, mas acabaram, estranhamente, chegando ao seu destino. E o jovem pôde ver de longe, antes de chegar, que agora a sua posição se invertera: ele via o interior do casarão como se esse não tivesse paredes. Estava vazio de pessoas, mas repleto de vultos sombrios que mostravam seus caninos pontudos e rosnavam sem som, en-

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quanto os olhos injetados e brilhantes pareciam antegozar um prazer que apenas vislumbravam.

Não havia nada a fazer e ele se deixou levar...

Quando acordou, estava debruçado sobre a mesa. Ainda

era noite lá fora. Sua cabeça doía. O sangue latejava nas têm-poras. A mesa, limpa e arrumada, tinha sido coberta por uma toalha xadrez de azul e branco.

“Devo ter sonhado...”, pensou. Queria ir embora, mas suas pernas não o obedeciam.

Virou-se para a direita, mas foi para a esquerda. Subiu a esca-da, quando pretendia descê-la. Era como se, uma vez dentro do casarão, o jovem só pudesse fazer o que a casa quisesse.

Sentindo-se observado, levantou a cabeça e abriu os o-lhos: ali estava ela! A velha vestida de negro. A dona da casa. Ela segurava o cachorro pela coleira. bem firme, mas ele tam-bém estava quieto e não parecia incomodado com a sua pre-sença.

O jovem não quis acreditar no sorriso da velha, que o fitava com o deleite de uma avó acariciando o neto com o o-lhar.

— Aconteceu alguma coisa, meu filho? — perguntou com delicadeza.

— Eu... Desculpe... — gaguejou ele. — Eu... Não... Ele queria explicar que tinha entrado sem querer, que

tudo não passava de um mal entendido, mas não conseguia coordenar as frases. Ela pareceu ler o seu pensamento.

— Você não mexeu em nada, não é mesmo? Eu sei... Não tem importância. É tarde. Quer que eu prepare uma cama para você? Pode dormir aqui hoje.

Ele balbuciou agradecimentos confusos e ela saiu na frente, caminhando em direção a um dos quartos do andar de cima.

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O celular tocou. Parecia um som vindo de um outro mundo.

— Pai? Discreta, a velha se afastou, mas ainda podia ouvir a

conversa. — Não posso, pai. (...) Estou bem. (...) Não voltarei,

enquanto essa vampira estiver aí. (...) Eu sei, pai. (...) Não que-ro interferir na sua felicidade. Mas também não quero matar esse monstro com quem você se casou. O melhor é que eu me retire da vida de vocês. (...) Sinto muito, pai. Seja feliz com ela. (...) Certo. (...) Não se preocupe. (...) Tá certo, pai. Eu me viro. Tchau.

Ele desligou e enfiou o celular de volta ao mesmo bol-so. A velha se aproximou, outra vez, e abriu a porta de um quarto, dizendo:

— Fique à vontade. Estou sempre só, mas gosto de vi-sitas, sobretudo quando elas são jovens e bonitas como você... — Sempre amável e sorridente, ela disse duas ou três delicade-zas e saiu. Antes de fechar a porta sem ruído, ainda desejou. — Boa-noite.

Exausto, perplexo, ele só teve tempo de tirar os sapatos e jogar-se na cama.

Mas não dormiu. Aquela não era uma cama como as outras. O colchão parecia ter sido recheado com tocos de ma-deiras, pedaços de ferro e pequenos espinhos que não paravam de se mexer, ativos e desconfortáveis. Era só o jovem se ajei-tar, que já um cutucão fazia com que ele se movimentasse. Era só ele se mexer, e já um espinho o agredia. Um vento frio en-trava por debaixo da porta e girava pelo quarto, fazendo es-tremecer as janelas. Lá fora, as árvores desenhavam sombras estranhas no ar e suas folhas criavam vultos na noite, fantas-mas bêbados que escancaravam as bocarras sem cor e gemiam gemidos sem som.

Um cortejo entrou no quarto: cinco mulheres vestindo uma túnica negra com um capuz que lhes escondia o rosto,

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uma atrás da outra, solenemente. Cada uma trazia uma vela negra, que colocava em volta dele, sem acender, mas delimi-tando o espaço. Depois, elas ficaram dançando, ansiosas para lhe morder o pescoço, mas sem ousar se aproximar. Do canto, um homem com o rosto invisível controlava-as com os olhos vermelhos e brilhantes. Elas iam e vinham em torno dele, mostrando seus caninos e rosnando baixinho como panteras, ameaçadoras.

Certo de que era um pesadelo, o jovem levantou-se para chamar a velha e lhe dizer que agradecia muito, mas queria ir embora imediatamente. Cambaleou até a porta, mas não con-seguiu abri-la: estava trancada.

Ele passou a mão nos cabelos, desesperado, e forçou-a com raiva, mas ela sequer se moveu. O trinco lhe queimou a mão, fazendo com que o largasse com um palavrão. Lá fora, o vento uivou mais forte, bulindo nas folhas das árvores. A ta-mareira balançou e dobrou-se no ar como durante uma tem-pestade.

Ele se sentou no chão do quarto e, encostado à parede, chorou amargamente.

Mal o sol nasceu, tratou logo de passar pelas venezianas da janela e acordá-lo. O jovem olhou o mundo iluminado e teve certeza de que sonhara. Levantou-se e experimentou o trinco. A porta estava aberta.

Procurou pela velha, mas não havia nem sinal dela ou de qualquer pessoa. Nem mesmo do cachorro, o que fez com que ele concluísse que tinham ido passear. Ou talvez tivesse sonhado tudo aquilo também, já não tinha mais certeza de na-da.

Agora que ele não tinha mais o que temer, ficou tran-qüilo. Foi à cozinha e encontrou um café da manhã com fru-tas, sucos, geléias, queijos, frios, pães e café fresco. Sentiu-se

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em um hotel de luxo e sorria, quando sentou-se à mesa, para comer com todo o apetite da idade.

Quando ficou satisfeito, foi passear entre as árvores do jardim. Já se sentia em casa e não tinha mais nenhuma vontade de ir embora. Tinha encontrado toalhas limpas e até mesmo uma calça jeans e uma camiseta no banheiro, que usara com a certeza de que eram para ele mesmo. O desaparecimento da velha e do cão não o incomodavam.

Lembrando-se da noite e dos sonhos estranhos que ti-vera, chegou a formular o pensamento concreto de que deve-ria dar um rumo novo à sua vida, mas a tarde estava tão boni-ta, o local era tão agradável, tudo parecia tão natural ali, que ele, sentindo o olhar das janelas cegas acompanhando todos os seus movimentos, sentou-se junto à gruta e acabou adorme-cendo.

O céu cobriu-se de nuvens pesadas de chuva, impedin-do a lua de mostrar a sua cara cheia. O dia escureceu e o jo-vem encolheu as pernas, apertando-as no peito com os braços arredondados, que as mãos nos joelhos atavam como se tives-sem recebido um nó. O queixo repousando nos joelhos lhe dava um ar descontraído, mas ele estava nervoso. Alguma coi-sa ia acontecer, ele tinha certeza. Só não sabia o quê.

Viu uma mulher saindo de dentro de uma das casinhas dos patos, pequenina o suficiente para ali ter um refugio. Ves-tia o mesmo traje preto que a dona da casa, mas seus cabelos estavam soltos. Eram compridos e lisos. No seu passo miúdo, ela demorou para atravessar o lago seco e sumir entre as plan-tas.

Ele ficou parado, tremendo de medo. Arrependia-se de não ter ido embora e deixado aqueles mistérios no lugar em que estavam. Essa mania que as pessoas tinham de se acomo-dar era mesmo algo negativo — e era justamente o que ele também estava fazendo! Pensava que tinham acontecido coisas estranhas demais para que ele as ignorasse — e, no entanto, fora exatamente o que fizera! Encontrava-se numa situação

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absurda, mas a curiosidade ainda o prendia. Ou seriam os o-lhos da casa que queriam ver através dos seus?

As perguntas se multiplicavam: Quem era aquela mi-núscula criatura? Que estranha magia possuía o casarão?

Ele estremeceu e acordou com um latido. Era apenas um sonho! Levantou-se, disposto a ir embora. Caminhou até o por-

tão gradeado3 mas a rua parecia uma fotografia, de tão calma e quieta. Nem as folhas das árvores se mexiam.

Sem olhar para o casarão, ele procurou pela saída, mas não a encontrou.

“Que esquisito!”, pensou. “Eu tinha certeza de que era aqui...”

Tudo estava no mesmo lugar: a tamareira no meio do jardim, as lianas e os cipós sufocando as árvores copadas que escondiam a casa, as samambaias, o muro alto. Apenas a fenda que as plantas disfarçavam não existia mais.

Ele apalpou o muro inteiro, pedaço por pedaço, dos quatro lados.

Nada. Entrou na casa para procurar uma chave que abrisse o

cadeado do portão. Agora ele realmente estava decidido a ir embora. Deixaria um bilhete para a velha, agradecendo a hos-pedagem. Ao passar pela sala de jantar, viu que havia em cima da mesa da cozinha um pedaço de pão e um queijo numa re-doma de vidro. Percebeu que estava com fome e resolveu co-mer alguma coisa antes de partir. Serviu-se e subiu as escadas do sótão ainda mastigando, à procura de um papel e uma cane-ta. Sentia-se meio tonto, mas com certeza a vertigem se devia à ansiedade... Cambaleando, balançou agarrado ao corrimão e conseguiu chegar ao topo da escada, sentindo que o casarão lhe abria os braços e o aconchegava, hipnotizado por aqueles olhos cegos que o fitavam sem o ver, de algum ponto do outro lado das janelas fechadas.

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Que lugar interessante! Estranhou que tivesse se esque-cido de ver o que continham tantos potes cheios ora de líqui-dos, ora de pós e grãos. Não podia ir embora agora, que tinha descoberto tanta coisa para ver! Esperaria mais um pouco, já estava ali mesmo, uma ou duas horinhas e pronto, tudo exa-minado, poderia então ir embora. Talvez escrevesse um conto para um livro futuro, contando as suas aventuras no fantástico casarão.

Resolvido a preencher a lacuna final na sua curiosidade, abriu gavetas, pegou em objetos cuja utilidade prática lhe esca-pavam, abriu livros em línguas desconhecidas, admirou gravu-ras antigas, cheirou poções, leu anotações, enquanto, lá fora, o dia se fazia noite e o mundo mudava de dono...

Levou um susto com a voz da velha. — Teve um dia agradável, meu filho? Ela estava ao seu lado, toda sorrisos e gentilezas, amável

como uma avó dos contos que o pai lia para ele dormir, quan-do ele era criança e os dois moravam sozinhos no pequeno apartamento do fim da rua.

Afastando a lembrança doce, respondeu que sim e com naturalidade contou-lhe o que fizera, acrescentando:

— Já abusei da sua hospitalidade. É hora de ir embora. Muito obrigado por tudo.

O sorriso dela foi enigmático, mas as palavras não dei-xaram dúvidas:

— Fique até amanhã. É noite, e daqui a pouco vamos ter uma festa aqui. Você é meu convidado.

Ele titubeou. Um vago pressentimento apertou-lhe o coração, mas ele não queria ser indelicado com uma senhora tão simpática.

— Obrigado. Adorarei — respondeu. — Que bom! — disse ela. — Já foi preparada uma rou-

pa para você usar. Está no seu quarto. Arrume-se e desça para a sala de visitas. É lá que vamos receber os convidados.

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A sala estava iluminada pela luz suave das velas dos

candelabros de cristal, quando ele a adentrou, usando um ele-gante terno escuro. Uma mesa no centro parecia esperar pelas comidas e bebidas que ainda estavam por vir. Era de pedra e tinha o formato de um ataúde, estilizando o corpo humano.

A velha estava na varanda, de costas para ele, olhando a escuridão.

— Quando os outros convidados vão chegar? — ele quis saber. Ela respondeu sem se voltar:

— Daqui a pouco. Quer tomar alguma coisa? — Sim, obrigado. Gostaria de um suco. — Está em cima do móvel, basta você estender a mão

para alcançar a jarra — respondeu ela. Ele confirmou o que ela dissera, estranhando não tê-lo

visto, pois estava mesmo muito perto. Serviu-se sem pensar a respeito e, como daquela vez que tomou o vinho, sentiu-se completamente tonto e teve de sentar-se para não cair.

Então, a velha se virou e começou a caminhar na dire-ção da cadeira onde ele jazia, o corpo jogado, as pernas bam-bas, os braços abertos, a cabeça pesada virada para trás. Ela vestia a mesma roupa de sempre e os panos da sua saia brilha-vam à luz trêmula das velas. Não tirava os olhos dele como se o quisesse hipnotizar e andava como se flutuasse. Talvez tenha sido imaginação, ele não tinha certeza. Apertou os olhos e dis-tinguiu, atrás dela, um cortejo de cinco mulheres portando tú-nicas negras com capuz, rodeando um homem de bigode e cavanhaque que vestia um jaleco branco.

Delicadamente, elas tomaram o jovem nos braços e o colocaram em cima da mesa em formato de ataúde.

Como se estivesse longe, ele ouviu a voz da velha in-formar:

— Desta vez, fiz tudo direitinho, meu pai. Ele entrou caminhando com os próprios pés, comeu e bebeu por vontade

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própria, aqui permaneceu porque quis e aceitou meu convite para participar da cerimônia.

O homem passou a mão na cabeça dela, afagando-a como se ela fosse um animal de estimação, e disse apenas:

— Muito bem feito, meu bem. Seu castigo terá termi-nado antes do amanhecer.

No dia seguinte, ao cair da noite, uma mulher esguei-rou-se pela fenda do muro e saiu para a rua. Era magra e ele-gante. Usava uma saia longa e uma blusa com um laço no meio da gola bicuda. Apesar de jovem, vestia-se toda de preto como uma viúva inconsolável, o que lhe acentuava a palidez do belo rosto ovalado. O leve círculo negro em torno dos olhos fun-dos dava-lhe um ar misterioso; o nariz bem desenhado fazia uma interessante figura com a pele fresca e o queixo pontudo e sedutor; seus cabelos negros e fartos tinham sido puxados delicadamente para trás e arrematados numa bola sobre a nu-ca. Quem a visse passar, talvez não reparasse na sua beleza discreta. E embora o rosto fosse uma cuidadosa máscara de indiferença, seus olhos escuros e vivos sabiam de tudo.

No mesmo momento, um homem jovem e bonito saía de um dos prédios de luxo que inundavam o bairro de charme. Seus olhos se encontraram e ela lançou-lhe um meio-sorriso enigmático que era uma isca. Ele sorriu de volta, escancarado, e parou para vê-la passar, a boca aberta, a expressão admirati-va. Ela voltou levemente a cabeça e olhou-o por cima do om-bro, mas seguiu em frente no seu passo seguro de quem sabe para onde vai. Ele acelerou, correndo atrás dela, disposto a conversar.

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Dragões Tatuados

Samuel acordou com um pulo. Olhou ao redor e reconheceu a cama de mogno, a colcha azul desbotada, a mesinha de fórmi-ca lascada com uma mancha oval de queimado no tampo. Uma TV de quinze polegadas no suporte da parede. Um qua-dro desbotado de flores. Eram os mesmos objetos e móveis desgastados pelo uso, o kit básico de um quarto de hotel bara-to. Bem, estava em casa. O barulho característico do trânsito de São Paulo o incomodava, como sempre. Deitou-se de no-vo. O coração batia forte. Tivera um sonho estranho que o fizera gritar e se debater, deixando toda a roupa de cama mo-lhada de suor. Não estava passando nada bem. Estava febril.

Que dia é hoje? Olhou para o rádio-relógio. Dezesseis de agosto, meio-dia. Diabos, o que acontecera? Mais de vinte e quatro horas haviam se passado desde que acordara pela últi-ma vez e isso incluía uma noite inteira da qual não tinha a me-nor lembrança. Forçou-se a vasculhar a memória à procura de alguma pista da noite passada, mas a sua cabeça começou a doer. De repente, lembrou-se de uma coisa. Levantou-se tão depressa que sentiu o quarto rodar. Esperou alguns segundos até recuperar o equilíbrio e saiu, cambaleante, em direção ao espelho do banheiro.

Toda manhã Samuel vistoriava o seu pescoço, só para ter certeza que ainda permanecia o mesmo, ileso como na noi-te anterior. Durante mais de dez anos, mantivera-se a salvo, um dia após o outro. Mas desta vez... Estavam lá, na região da jugular. Duas bolinhas de sangue seco e, em torno de cada uma delas, uma mancha arredondada, roxa nas bordas e azul,

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quase preta, no centro. Ele conhecia muito bem os sinais. Era uma mordida típica de vampiro.

Samuel ficou imóvel por alguns instantes, atônito. Res-pirou fundo. Tudo bem, tudo bem... Tudo bem, o cacete, estava ferrado! Desesperado, foi até a janela. O dia estava nublado, sem sol. O Largo do Arouche mostrava o movimento costu-meiro da hora do almoço. Havia as buzinas impacientes, o ruí-do dos automóveis da Avenida São João. Tudo igual a ontem e anteontem. Mas, para ele, as coisas tinham mudado. Fora mordido por um vampiro... Samuel dava voltas pelo quarto, confuso, a mão no pescoço. Como para confirmar que a coisa era séria, a ferida começou a arder. Que bosta! Por isso a febre, por isso não se lembrava do que houve durante a noite. Todas as peças se encaixavam. Quase pisou num pedaço de papel enfiado por debaixo da porta. Tinha o timbre do hotel e dizia: “Favor ligar para a recepção”.

Em instantes, Samuel estava correndo para lá. Disse-ram-lhe que, na noite passada, um táxi havia deixado na recep-ção do hotel o seu casaco e a mochila que, segundo o taxista, esquecera dentro do carro. Um absurdo! Não ligava para o casaco, mas o seu laptop estava na mochila. Era um notebook sem valor, um velho Compaq jurássico, com a tampa rachada graças a uma queda durante uma perseguição. Mas os seus ar-quivos, os registros acumulados de toda a sua vida estavam armazenados naquele computador. Jamais esqueceria o seu laptop em algum lugar, ainda mais dentro de um taxi. Alias, quase nunca andava de taxi, era um luxo ao qual se permitia só em ocasiões especiais.

Ao abrir a mochila, ainda no balcão da recepção, cons-tatou que o laptop continuava ali. Subiu para o quarto, tremulo, a tontura tinha voltado. Colocou o aparelho sobre a mesinha, ligou-o e abriu o seu dossiê com mais de mil vampiros catalo-gados em planilhas. Estava intacto. Ufa! Fizera um backup em CD, mas não o atualizara nos últimos dias. Deixou-se cair so-bre a cama, mais calmo. Mas o alívio durou pouco. A dor in-

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sistente lembrou-o do seu problema mais urgente: a mordida no pescoço!

Como aquilo fora acontecer? Dez anos trabalhando como olheiro, observando e catalogando os vampiros mais ferozes, e nunca nenhum deles notara a sua presença. Sempre se contentara em assistir, sem interferir, até mesmo às caçadas mais sangrentas. Era discreto, eficiente e cuidadoso ao extre-mo, por isso fora escolhido pelo Instituto para atuar em São Paulo, o território mais perigoso de todos. O Instituto exigia segredo absoluto de suas atividades e Samuel cumpria rigoro-samente todos os procedimentos. Bem, quase todos. Nos úl-timos tempos havia se tornado um pouco atrevido, é verdade. Não se contentava em observar à distância e andara se apro-ximando cada vez mais dos espécimes, seguindo-os às vezes por vários dias. Era isso. Ele havia ultrapassado o limite e um vampiro o pegara. Ponto final. Agora, precisava correr atrás do prejuízo.

Começou a recolher a roupa espalhada pelo quarto. Meias e camisetas sujas, as cuecas amontoadas no banheiro. Ao jogar as roupas na mochila, achou algo inesperado. Era uma liga feminina preta, uma daquelas coisas que servem para segurar as meias. Como fora parar na sua mochila? Examinou a peça, confuso. Era rendada, com uma pequena rosa verme-lha de tecido no fecho. Não entendia muito do assunto, mas parecia cara. De repente, a imagem borrada de uma mulher veio-lhe à mente. Sentiu um perfume forte, gostoso. Vinha da liga. Levou-a ao nariz e aspirou profundamente. Mergulhou numa espécie de vertigem. Meias de seda, a liga rendada, o fe-cho de rosa... Música, corpos se movendo na penumbra. Uma garota. Colocou as mãos à cabeça, estava doendo outra vez. Ao procurar um copo para tomar água, notou um cartão de visitas sobre a mesinha. Caramba! Na pressa de verificar os arquivos do laptop, havia se esquecido dele. Era um cartão do táxi que trouxera as suas coisas. Mais do que isso, tratava-se de

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uma pista real do que lhe acontecera na noite anterior. Afoito, pegou o telefone e discou para o número do cartão.

— Alô? Táxi do Ronaldo... — disse a voz masculina no outro lado da linha. Ao fundo, reconheceu os ruídos de trânsi-to pesado.

— Sou o cara do Hotel Vitória, aqui na Avenida São Jo-ão... — disse Samuel, ainda sem saber exatamente o que dizer. — Você me trouxe pra cá ontem à noite.

— Tá precisando de táxi? — Não, eu... Olha, foi você quem deixou um casaco e

uma mochila ontem, aqui no hotel? — Isso! O senhor esqueceu suas coisas quando saiu do

carro. Eu voltei ao hotel pra lhe devolver, mas o rapaz da re-cepção disse que o senhor não estava atendendo a ligação. Aí, deixei tudo com ele e fui tratar da vida. Ele entregou direiti-nho?

— Entregou, sim, obrigado. — Bom, se é só isso... — Espere, mais uma coisa. Onde você me pegou? Samuel ouviu uma risada. — Puxa, tava mal mesmo, hein, amigo? Peguei o senhor

no Hotel Tayô, na Liberdade. — Lembra a hora? — Assim, ao certo, não sei. Acho que eram umas qua-

tro da manhã. — Tinha mais alguém comigo? — Não vi ninguém, não... Olha, tô meio com pressa e... — Quem pagou a corrida? Alguém lá do Hotel Tayô. Foi uma corrida contratada,

me deram o endereço, fiz o preço e eles pagaram adiantado. — Tá beleza, amigo. Obrigado! — Boa sorte! Maneira aí na bebida, hein? Bebida... Nada a ver. Samuel só bebia refrigerantes light,

a obsessão por vampiros já lhe bastava como vício. Escreveu no bloquinho de recados do hotel: Tayô — Liberdade.

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Guardou o papel na mochila e arrastou-se para o eleva-dor. O vampiro, ou a vampira, sabia o seu endereço. Tinha que desaparecer o mais rápido possível dali.

Depois de uma semana, a febre de Samuel tinha baixa-

do até um mínimo suportável e as marcas dos caninos tinham começado a cicatrizar. Mas de uma coisa ele não tinha sarado. Estava obcecado pela imagem da garota. Pedaços dela vinham-lhe à mente de forma desordenada. Cabelos lisos, olhos ne-gros, mãos pequenas com as unhas pintadas de vermelho. E-ram como peças de um quebra-cabeça que não conseguia montar. Mas isso ia acabar agora, tinha que acabar! Botou a mão na cabeça. Sentia a testa quente, as mãos úmidas. Seus olhos focaram os letreiros que se sucediam pela janela do vagão do metrô: Estação Paraíso, Vergueiro, São Joaquim. Ele estava a caminho do Hotel Tayô.

Desembarcou na estação Liberdade e abriu caminho em meio à multidão que lota a estreita Galvão Bueno todos os dias da semana. Gostava dessa babilônia de línguas orientais, odores estranhos, gente e carros se esbarrando pela rua. Com passos apressados, foi deixando para trás adolescentes de o-lhos puxados com cabelos coloridos, donas de casa com saco-las abarrotadas, velhinhos de terno e bengala que pareciam saídos de um filme de Kurosawa, crianças barulhentas e came-lôs. Uma fauna e tanto. Os restaurantes, boates e lojinhas de comida pareciam estacionados no tempo, envelhecendo e se desgastando sem se darem conta de que os anos setenta já ha-viam ficado para trás. Nas galerias, pequenos shoppings de bal-cões apertados, encontravam-se, ao contrário, as quinquilharias eletrônicas mais modernas, além de roupas, perfumes, tênis e DVDs dos últimos animes de sucesso. Tudo a preços módicos. Essa bagunça visual, olfativa e sonora era um cenário de con-

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trastes para ser amado ou odiado. Samuel gostava, sim, de tu-do isso.

Já comera por ali uma vez, numa barraca de lanches na entrada de um dos supermercados cheios de verduras frescas, pratos típicos japoneses e, claro, centenas de produtos impor-tados. Tinha gostado da comida, um prato generoso de yakiso-ba suculento. A lembrança atiçou o seu apetite. Resolveu parar no mesmo local para comer um salgado. Ficou pensando se não era apenas uma desculpa para adiar um pouco mais a sua ida ao Hotel Tayô. Talvez, mas estava mesmo com fome e isso o incomodava. Parou na barraca, contando o dinheiro no seu bolso. Ao seu lado, uma nissei de longos cabelos negros pedia um refrigerante.

Algo dentro dele se agitou. Ficou observando-a enquan-to esperava. Ela era bastante alta, do tipo gostosona, mas não devia ter mais do que uns quinze anos. Usava uma camiseta curta, que deixava o seu umbigo à mostra apesar do frio inver-nal. A calça jeans de cintura baixa não lhe era favorável, de-nunciava uma gordurinha que procurava esconder, encolhendo a barriga de tempos em tempos, enquanto bebia o refrigerante direto na lata, em grandes goles sedentos. Gotas da bebida caí-am sobre o seu peito, Samuel podia ver os bicos arrepiados dos seios sob o sutiã. Não era a garota das suas visões, mas algo nela o atraía. Algo familiar nos olhos rasgados, nos cabe-los escorridos e negros... Ficou olhando, excitado, até que a menina, percebendo o seu interesse, dirigiu-lhe um olhar de viés.

Samuel não tinha problemas em atrair o sexo oposto. Tinha a aparência condizente com os seus trinta e dois anos, o rosto com algumas rugas de expressão, principalmente na tes-ta, resultantes da intensa concentração na hora de observar os vampiros. Era alto e magro, tinha uma vasta cabeleira castanha que pedia há semanas por uma boa tosada. As mulheres em geral apreciavam os seus olhos cinzentos. Ao final, quase sem-pre se dava bem nas suas conquistas. A garota, por sinal, pare-

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ceu gostar da atenção de um “tio”, para variar. Levou o pole-gar à boca, mordiscando de leve a ponta da unha. Usava es-malte rosa, com uma espécie de purpurina brilhante por cima. A barriguinha encolheu-se de novo, acompanhada de um olhar meio infantil, meio sacana. A bunda ergueu-se, num convite mudo. Era só pegar. Samuel comia o seu salgadinho, de olho em cada reação dela. O que o atraía nessa pivete? Nunca tivera tesão por menininhas. Problemas com menor de idade? Tava fora. Suspirou fundo e recomeçou a andar, decidido a acabar com a sua ansiedade, chegando logo ao Hotel Tayô. Ao passar pela garota, ouviu a voz dela, sussurrando com raiva: “Brocha!” Ele sorriu, divertido. Menina safada... Quase mudou de idéia e voltou para aceitar a provocação.

O Hotel Tayô ficava numa travessa a alguns quarteirões de distância, num prédio baixo de quatro andares. O luminoso da fachada tinha perdido as letras “h” e “a”. “ otel T yô”... Mais duas palavras ininteligíveis entre tantas na Liberdade. Ao passar pela porta escura de vidro, deparou-se com a recepção deserta. Havia uma campainha sobre o balcão estreito de mármore esverdeado, mas o olheiro não a tocou. A sua aten-ção ficou presa à capa de uma revista japonesa, que jazia num revisteiro ao lado das duas poltronas pretas de couro sintético. Mais uma garota oriental lhe sorria na foto, o mesmo sorriso de criança pura e ao mesmo tempo devassa. Arre, estava ad-quirindo uma tara por japonesas... No rádio, uma mulher can-tava com a voz estridente uma espécie de rock nipônico.

Tudo ali lhe trazia uma sensação de familiaridade incô-moda. Reconhecia o cheiro de desinfetante que emanava do corredor. De algum modo sabia que havia no subsolo um bar, que só abria às seis. Sim, já estivera por aqui antes. Cocou o pescoço no local da mordida. Imediatamente a ferida começou a latejar. Arrependeu-se e meteu as mãos nos bolsos. Uma par-te de Samuel soava o alarme de perigo e dizia para ir embora. A outra parte teimava em repetir sem parar: calma, vampiros não saem de dia. Sentiu a boca seca e o coração bater como um

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tambor. Talvez fosse melhor voltar outro dia, considerou. Mas alguém interrompeu os seus pensamentos.

— Seu Samuel? Ele gelou. O recepcionista do hotel surgira pela porta

lateral e o reconhecera. Era um japonês magricelo, usando um par de óculos e um terno, ambos grandes demais para ele.

— O senhor foi embora de repente na outra noite, nem fechou a conta.

— Ah... — era só o que faltava, uma conta para pagar. — Quanto foi?

O homem riu baixinho, como se tivesse ouvido alguma piada.

— O senhor não nos deve nada, a moça pagou pelo se-nhor!

— Quem? — A sua amiga... Samuel engoliu em seco. Cabelos lisos. Olhos Negros.

Uma cinta-liga rendada. — Que amiga? — A moça que estava com o senhor. Quer que ligue

para o quarto dela? Ela está lá agora. Ela estava ali, bem perto. Mais lembranças. Uma boca

vermelha se abrindo devagar, mostrando um par de caninos aguçados. De repente a boca se fechou sobre ele. Uma sensa-ção de dor aguda veio-lhe à mente. Samuel teve ímpetos de gritar. O sujeito da recepção esperava a resposta com o fone na mão, pronto para discar o número do quarto dela.

— N...Não, pode deixar — Samuel conseguiu dizer. — Não quero incomodá-la, eu a conheço pouco.

— Ah... Sim, senhor. O homem colocou o fone no gancho. Samuel suspirou,

aliviado. — Ei... Como é mesmo o nome dela? O japonês continuava a ostentar o mesmo sorriso sem

expressão.

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— O senhor não sabe? Ora, vamos... — Samuel cochichou de forma cúmplice

para ele. — Eu estava muito bêbado e esqueci... Ela vai me ma-

tar se descobrir. Vai mesmo, pensou Samuel, mas não por causa disso.

Não importa, precisava descobrir mais sobre a garota. Para garantir a boa vontade do atendente, escorregou uma nota de dez reais para as mãos dele.

— Bom, nesse caso... — o sujeito respondeu, solícito. — Ela se chama Kaori. Quarto dezoito.

Samuel sentiu um choque. Um par de olhos amendoa-dos roçaram por um breve instante a sua consciência. Uma boca molhada sussurrava as sílabas do nome. Ka-o-ri.

— Ela mora aqui? — Faz uns três meses... — o homem consultou os re-

gistros. — Ela chegou em junho. — Ela sai todas as noites? — Ela só sai à noite — o recepcionista ficara falante de

repente. — Mas não todas as noites. Sai uma ou duas vezes por

semana, sempre com homens diferentes. Ela ganha a vida as-sim, se o senhor me entende... Saindo com esses homens.

— Ela tem algum namorado? Parentes? Amigos? — Que eu saiba, não. O senhor é o primeiro que vejo

duas vezes por aqui. Mas posso ficar de olho pro senhor — piscou para Samuel, com ar esperto.

— Não, não precisa. Não conte a ela que eu estive aqui. Em hipótese alguma — passou os últimos dez reais da carteira para as mãos dele. Que beleza, agora estava duro.

— Sim, senhor. Pode deixar — disse o japonês. Era a primeira vez que Samuel via alguém aceitar um suborno com uma mesura.

Ao deixar o Hotel Tayô, o olheiro respirou, aliviado. Agora sabia mais um pouco sobre ela. Faltava tão pouco para

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as peças se juntarem! Logo ia conseguir lembrar-se de tudo. Caminhou de volta para o metrô, animado.

Desceu do metrô na estação Paraíso, mas a idéia de vol-

tar para a pensão na Rua Apeninos, para onde tinha se muda-do às pressas, não o atraía. Quando tudo isso estivesse resolvi-do, ia pedir transferência para um local mais calmo, ficar longe de São Paulo por um ano ou dois. As coisas estavam ficando arriscadas demais para um olheiro por aqui. Resolveu cami-nhar até a Avenida Paulista, misturando-se à multidão que saía dos escritórios. Por força do hábito, observou os transeuntes um a um, à procura dos sinais característicos dos vampiros. Besteira. Ainda era cedo, eles começavam a surgir lá pelas sete da noite.

Quis parar para um café na altura da Brigadeiro Luís Antônio, mas lembrou-se que estava sem dinheiro. Não ligava muito para o café, era apenas um pretexto para parar e olhar o movimento da avenida. Continuou a andar até chegar ao Par-que Trianon, onde alguns velhinhos solitários e crianças com babás passeavam sob um sol pálido de final da tarde. Os ou-tros passantes eram executivos, estudantes, balconistas e ven-dedores ambulantes, que usavam o parque apenas como atalho para chegar mais rápido às ruas paralelas. Ao contrário dos freqüentadores da Liberdade, andavam apressados, sem olhar para os lados, não ligavam a mínima para a paisagem.

Samuel também não era fã de paisagens bucólicas. De-testava o mato, para ele sinônimo de mosquitos, calor, lama e todas as coisas sem conforto. Preferia o movimento das ruas apinhadas ou a solidão dos quartinhos de hotéis, tendo como companhia apenas o laptop. Mas hoje não. Sentia-se bem no parque. Até lhe pareceram bonitas as sapucaias, os cedros, as figueiras, os jequitibás e a enorme variedade de árvores do Tri-anon. Leu, distraído, os nomes científicos nas plaquinhas, es-

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quecendo-os em seguida. O parque mostrava-se grandioso e venerável, como se fosse muito mais velho do que os seus quase cem anos. Havia um quê no Trianon que o tornava se-melhante aos vampiros. A existência dessas criaturas anacrôni-cas no nosso mundo era uma surpresa, tanto quanto a presen-ça do velho parque no meio do vidro, metal e concreto da A-venida Paulista.

Samuel sentou-se num dos bancos de madeira, cansado após as emoções do dia. A parte assustada da sua mente ainda reclamava, dizia para ir embora e esconder-se no quarto da pensão, mas a parte durona mandava esperar. Dizia para curtir esse momento de paz, a primeira vez, após muitos dias, que conseguia sentir-se tranqüilo... Ouviu a cantoria dos pássaros. Havia várias espécies por ali, mas, em se tratando de aves, só sabia reconhecer os pombos. Fechou os olhos. Logo os piados e os arrulhos soavam longínquos nos seus ouvidos.

Acordou no escuro, de repente. Merda! Caíra no sono. Levantou-se, mal-humorado, com frio. Olhou para o relógio, esforçando-se para ler as horas sob a luz do luar: duas horas da manhã! Não podia acreditar. Todos os dias, o parque era fe-chado depois das seis da tarde, mas como estava num banqui-nho mais ou menos fora das vistas, fora esquecido ali, desaba-do, como um bêbado. Era muito estranho, nunca dormia as-sim, tão fácil; ao contrário, tinha dificuldades para pegar no sono. Bem, precisava ir para casa. Começou a andar para a en-trada do parque. Se fosse preciso, ia pular as grades. Queria ir embora logo, estava morrendo de cansaço.

Pelo caminho ouviu, desconfiado, os inúmeros ruídos noturnos ao seu redor. Pequenos roedores, gambás, corujas e gatos estavam em plena atividade. Claro que nada muito gran-de poderia se esconder num local como aquele, no coração da Avenida Paulista, mas mesmo assim sentia-se pouco à vonta-de. Apertou o passo, tenso. De repente, parou. Os seus ins-tintos, de tanto seguir vampiros, haviam se tornado razoavel-mente aguçados. E agora eles lhe diziam para... correr! Desta

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vez, a sua parte durona parecia concordar. Algo o estava se-guindo. Tinha certeza disso. Disparou a correr e a coisa veio atrás dele, as patas batendo no chão, rosnando.

O olheiro, desesperado, viu os portões da avenida à frente. Olhou para trás. Havia algo negro e enorme vindo em sua direção. Parecia um cão. Voltou-se para a frente e quis gri-tar. Então aquilo pulou sobre as suas costas, derrubando-o. O ar deixou os seus pulmões e o grito morreu em seu peito.

Atrás dele, sobre a nuca, sentiu uma boca úmida e gela-da.

— Silêncio, gaijin-san... Que bom encontrar você de no-vo...

Samuel começou a tremer.

Ele abriu os olhos, zonzo. Encontrava-se deitado na cama de cabeceira alta, cheia de pequenos rococós cobertos de pó. Viu as paredes cor de creme, quadros com molduras dou-radas. O seu olhar andou a esmo, percorrendo as sancas, o teto pintado de um vermelho esmaecido. Reconhecia um dos quartos do Hotel Tayô.

A vampira estava ali, à sua frente, os olhos negros pou-sados sobre ele. Era ela, afinal. Uma mulher oriental belíssima, com a pele pálida de porcelana e um corpo esguio, embora bem provida de seios e coxas. O vestido de seda dourada co-bria suas formas como uma segunda pele, tão justo que se per-cebia, à primeira vista, que não usava nada por baixo. Os cabe-los longos, cortados num fio reto, pareciam um tecido acetina-do, macio. Seda nos cabelos, seda sobre a pele. O seu rosto de boneca tinha as proporções exatas. Os olhos amendoados, contornados por uma maquilagem suave, estavam fixos em Samuel. Toda a atenção do mundo concentrava-se ali, nos o-lhos da vampira, que observavam em silêncio o observador de vampiros. Samuel sentiu-se mergulhando num abismo sem

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fundo. Lá estavam todas as peças do quebra-cabeça, finalmen-te combinadas.

— Você colocou a liga preta na minha mochila... — disse Samuel. Os cantos da boca vermelha da vampira curva-ram-se num sorriso dúbio.

— Sabia que eu ia acabar chegando até aqui, não é? Vo-cê me manipulou...

Ela subiu na beirada da cama, dobrando o joelho e in-clinando-se para frente, como uma felina. O vestido tinha um decote indecente, que roçava nas aréolas dos mamilos. Samuel olhava para os seios quase descobertos, sentindo o tesão cres-cer.

— E hoje à tarde... O japa da recepção... Ele é um dos seus escravos humanos. Você controla o hotel e todos os que trabalham aqui!

O rosto dela estava a um palmo do seu. Samuel queria afastar-se, mas não conseguia. Ou não queria? Queria, isso sim, tocar aquela pele branca, os cabelos brilhantes...

— O que você quer de mim...? Ela riu. Um som claro, agudo como cristais partindo,

fez o olheiro arrepiar-se. Pergunta imbecil. O que uma vampi-ra pode querer de um humano? Havia um perfume forte no ar. Era incenso. O olheiro sentiu-se meio aéreo, não conseguia manter a atenção no que falava. Estendeu a mão e tocou o ros-to dela de leve. Tinha uma textura macia, agradável. Samuel não podia crer no que estava fazendo. Estava acariciando uma criatura selvagem, predadora de homens, que poderia matá-lo com um só golpe. A vampira continuava a observá-lo, imóvel. As mãos dele avançaram mais um pouco, descendo em direção aos seios sob o vestido. Elas tremiam de forma miserável. En-tão ele puxou o vestido dourado pelo decote e ouviu os botões de pressão se abrirem. Mais um pouco... Ela ergueu-se, empi-nando o peito. Lá estavam eles, os seios pequenos, roliços, os bicos durinhos. A vampira sorria, mostrando a ponta dos ca-ninos salientes. Oh, meu Deus...

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De repente, ela investiu. Inclinou-se, o rosto a milíme-tros do peito de Samuel, subindo rumo ao pescoço. Ele espe-rou sentir o arfar dela sobre a sua pele, mas isso não aconte-ceu. Aquela mulher não respirava. Os bicos dos seus seios ro-çaram o corpo tenso do olheiro. Ela segurou-o. O toque das suas mãos era gelado. Samuel estremeceu, assustado, quando a boca dela alcançou a sua garganta. Pequenas mordidas de le-ve... A boca carnuda, fria, passeando sobre a pele ardente do humano. Ele suspirou, em êxtase. Afinal, sentiu a mordida de-finitiva, na região da jugular. O que uma vampira pode querer de um humano?

Ele agora se lembrava de tudo. Tudo.

Haviam se passado sete dias desde aquela noite. O cená-rio era o bar velho e decadente do Hotel Tayô. Um piano me-lancólico tocado por um velhote japonês com um terno puído. Um copo de refrigerante light com gelo e uma rodela de limão. E uma vampira caçando o seu jantar.

Samuel não podia se queixar de tédio. Era um olheiro desde os vinte e um anos, quando descobrira os vampiros e a sua vocação. Desde então, não se passara um só dia sem que se espantasse por ter sobrevivido incólume, pois as coisas tor-navam-se perigosas quando eles estavam envolvidos.

Eles. Os vampiros. Predadores de homens, lobos soltos num mundo cheio de carneiros gordos estufados de sangue. Os seres humanos. Pessoas como o barman com cara de fuinha ou a arrumadeira que passava pelo corredor com expressão cansada, empurrando o carrinho com vassouras, toalhas e frasquinhos de xampu barato. Não fazia diferença se era um conhecedor de vampiros como ele, Samuel, ou algum cafetão bêbado. O gosto do sangue era o mesmo, pois os vampiros os tratavam da mesma forma: a pior possível.

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Bem, o mundo inteiro era um lugar perigoso. Políticos corruptos, uma sociedade sem regras, organizações criminosas cada vez mais poderosas. Os vampiros eram a parte menos visível da horda de predadores que dominavam as manchetes dos jornais, mas eles estavam por aí, bem ativos. Samuel já re-gistrara o terceiro vampiro, só nos últimos dois dias. Uma vampira, para ser mais exato. Aquela ali, bem à sua frente.

Samuel bebericou o resto do refrigerante do seu copo. Estava se arriscando ao observar tão de perto. Era apenas uma vampira comum, não valia o risco. Suspirou. Valia o risco, sim. Ela era uma garota japonesa gostosíssima e também um espé-cime raro. Avistara poucas vampiras orientais na sua vida, não sabia exatamente o porquê. Talvez a literatura e o cinema te-nham algo a ver com isso, consagrando tipos anêmicos de pele pálida como modelos de vampiros. O fato é que a aparência deles dependia da preferência popular da época. Os vampiros mais antigos escolhiam loiras peitudas como suas companhei-ras. Depois, veio a fase de morenas magras e pálidas. Hoje, as ruivas estavam se multiplicando. Mas as orientais ainda eram pouco comuns.

O velho pianista deixou uma torrente de acordes iniciar a sua versão pessoal de Yesterday. O jantar do dia era um ho-mem obeso, grandalhão, com cabelos levemente grisalhos. A banha ondulava sob o terno caro que, apesar do bom corte, jamais conseguiria disfarçar o corpo inchado. A vampira o ro-deava, insinuava-se com toques, sorrisos e gestos. Ele ria, exci-tado. Desajeitado, deixou-se cair sobre o assento depois de ensaiar alguns passos de dança ao som do piano. Estava com-pletamente bêbado.

A garota usava um vestido vermelho curto de gola chi-nesa que lhe caía como uma luva. As pernas bem torneadas estavam cobertas por meias pretas finas, a esquerda trazia uma bela estampa de dragão. Calçava sapatos de verniz vermelho com saltos agulha altíssimos. Estava de pé, reclinada, com as mãos sobre os ombros do balofo. Olhos de gata refestelada

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sobre o camundongo. Um prazer indisfarçável pela posse, num raro gesto denunciador. Não precisava se preocupar, os outros freqüentadores do bar mal olhavam para o casal. A não ser Samuel, é claro.

Ela executava uma espécie de dança. Rodeou com mo-vimentos vagarosos a poltrona onde a sua presa desabara, ren-dida. Samuel não perdia nenhum detalhe. Notou os movimen-tos sinuosos da cinturinha delicada. Das coxas. Da bunda. Centenas de sinais rápidos, quase imperceptíveis, sexo ema-nando de todos os poros. Uma garota de hentai, desenho ani-mado erótico, sonho molhado de adolescentes japoneses. De-vassa, exibia-se para o gordo cliente, que ria, a baba escorren-do pelos cantos da boca entreaberta. Então ela cochichou, se-gurando com a mão minúscula o lóbulo da orelha vermelha do homem. Ele assentiu, rápido e veemente. Samuel estremeceu. Era hora. Ela queria continuar o show em algum lugar mais isolado. Saíram de braços dados pela porta, após o gordão pa-gar a conta em dinheiro vivo. O sujeito era pão-duro, o gar-çom pareceu irritado com a gorjeta deixada.

Samuel levantou-se, colocando o dinheiro do seu pró-prio refrigerante no balcão. Um show privê? Uma pinóia! Tinha um ingresso para assistir o espetáculo até o fim. E de camaro-te. Subiu a escada atrás deles.

A vampira levara a sua presa para o quarto. O local do abate. O hotel estava quase vazio, fora fácil conseguir o quarto ao lado. Depois, enquanto ela caçava lá fora, invadira o boudoir vampírico para instalar uma mini-câmera no aparelho de TV quebrado. Agora ele podia assistir tudo o que acontecia na in-timidade da vampira pela tela do seu velho laptop. De camaro-te.

Hum, o show era bom. Samuel não percebia muitos de-talhes pela câmera barata e antiga. Mas via o suficiente, a ima-ginação supria o resto. O lado ruim era ver também o gordão, que fora despido com paciência oriental pela garota. Aquilo

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parecia uma espécie de pudim mole que se remexia e balança-va, uma cena pra brochar qualquer um.

A figura patética não parecia incomodar a pequena, que saltou sobre a cama com leveza. Recostou-se na cabeceira e escorregou até a borda, abrindo as pernas e erguendo os pés na altura do rosto embasbacado do homem. Ele se ajoelhou, arfante, e retirou com gestos desajeitados os sapatos dela, des-cobrindo dois pés graciosos, cobertos pelas meias finas. De-pois de acariciar as banhas do corpo enorme com os pés, a garota ergueu o vestido até mostrar uma cinta-liga de rendas. Quando o balofo estendeu os braços na direção da coxa apeti-tosa, ela disse algo que Samuel não pôde ouvir, pois o micro-fone era de péssima qualidade. Não precisava. Sabia o tipo de sacanagens que boquinhas como aquela sussurravam nas ore-lhas quentes do freguês.

E o freguês era dócil como um cãozinho. De quatro, colocou a cara inchada sobre a coxa da garota e abriu a liga com os dentes, demonstrando uma habilidade surpreendente até para a vampira, que riu alto. Desta vez Samuel pôde ouvi-la. O som inigualável da voz vampírica. Nada no mundo se comparava a esse som.

O gorducho também estacara, surpreendido com a risa-da sobrenatural. Por um brevíssimo instante desconfiou da garota. Mas o corpo dela deslizou sobre a cama e os lençóis de cetim. A meia da perna direita estava solta, liberada do fecho da cinta. Devagar, ela começou a puxar a meia, tomando cui-dado para não desfiá-la, enquanto acariciava a própria coxa, a dobra atrás do joelho, a perna. Foi o suficiente, o ar abobalha-do voltou ao rosto roliço do homem, que quis abraçá-la, mas foi contido. Então esperou, obediente, que ela erguesse a outra perna, bufando com o esforço para manter-se na posição de quatro. Afoito, acabou rasgando a meia ao abrir o fecho da liga e foi castigado, chicoteado no lombo com a outra meia. Quando recuou, fingindo-se de atemorizado, ela deu-se por satisfeita e começou a despir lentamente a meia rasgada.

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Samuel aproximou o rosto do laptop, como se isso pu-desse melhorar a qualidade da imagem. Era uma descoberta inesperada... O dragão, que pensara ser parte da meia, era na verdade uma tatuagem, que surgia por debaixo do vestido, en-rolando-se na perna esquerda e indo terminar quase no joelho. Tão excitado quanto o gordo, Samuel arfava, ansioso pela con-tinuação do show. Ela ia tirar o vestido agora. Tinha que tirar...

No entanto, recostada entre as almofadas de cetim, a vampira chamou o homem para si. Suas pernas nuas enrola-ram-se em torno do dorso peludo e ambos caíram sobre a ca-ma.

Samuel suspirou de decepção. Não haveria o strip-tease, que enlouqueceria o gorducho, e a ele próprio, o voyeur. Que bosta... Esmurrou a mesa com raiva. Logo se arrependeu por ter feito um barulho desnecessário e olhou, temeroso, para a imagem no laptop. E, de súbito, voltou à realidade. Aquilo não era um show pornô. Era uma vampira caçando a sua comida. No meio dos lençóis e das almofadas, o homem surgiu, estre-buchando, as mãos se agitando no ar, as pernas se debatendo em falso. A garota estava sobre ele, segurando com as duas mãos a cabeça roliça, alheia aos socos que a vítima lhe desferia. Ela lhe disse algo que o microfone não captou. E o homem parou de se mexer. Ficou ali, ajoelhado sobre a cama, olhando para ela, que se levantara. As unhas dela se enterraram nas bo-chechas do homem ao trazê-lo para si como um boneco iner-te. Samuel estremeceu. Sentiu um arrepio de horror ao perce-ber que ela dobrara o corpo do humano para trás e estava... Sim, estava finalmente mordendo o seu pescoço. Mais do que isso. Os olhos oblíquos olhavam diretamente para a câmera.

Samuel piscou, incrédulo. Não é possível... Mas não havia dúvida. Ela estava olhando para a câmera, ou melhor, olhava para ele, Samuel, o bisbilhoteiro atrás da câmera. O olheiro sentiu as pernas moles. Estava tão envolvido pela observação que nem pensara em como agir se fosse descoberto. Uma falha imperdoável para um olheiro.

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Sobre a cama, dava para ver o cadáver do homem gor-do. A vampira de olhos puxados — merda! — não se encon-trava mais ali.

Samuel correu para a porta. Quase caiu sobre ela, que o esperava do lado de fora. Sob a luz amarela, o corredor vazio parecia imagem de um sonho borrado. Havia uma fina mecha de cabelos negros na testa pálida da vampira, uma única mecha despenteada em meio à cabeleira lisa e impecável. Ela sorria. Entre seus lábios carnudos, os temíveis caninos começavam a surgir. Samuel deu um passo para trás. Ela fez um “não” deva-gar, meneando a cabeça sem parar de sorrir.

— Olá, gaijin-san... Espionar os outros é muito, muito feio...

A voz dela era fina e vibrava nas suas têmporas. Samuel começou a retroceder, ao mesmo tempo em que a vampira avançava em sua direção. Os pés descalços dela eram absur-damente pequenos, moviam-se silenciosos como se levitassem sobre o carpete do corredor.

— Você... sabia que eu estava olhando, não é? — Sim... Foi excitante dançar para você, gaijin-san. Exi-

bir-me para um homem enquanto matava outro... Samuel fugiu, desajeitado, para dentro do quarto, ten-

tando fechar a porta. Uma mão feminina conteve o seu gesto, introduzindo-se pela fresta. A porta foi empurrada com força e a vampira entrou. A porta fechou-se atrás dela. A boca verme-lha abriu-se, mostrando por inteiro os longos caninos. Antes que pudesse falar, ela estava sobre ele, jogando-o ao chão e segurando-o pela nuca com as duas mãos.

— Você queria isto, gaijin-san? Era isto o que procurava? Pode ser, pensou ele. Tanto tempo atrás deles. Tanto

tempo observando-os. Talvez quisesse ser mordido. Talvez. Testar até onde a corda podia se esticar. E ela se partira. Mer-da, merda. A vampira puxou a sua cabeça para trás, pelos ca-belos, para expor o pescoço.

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— Eu... Eu só... observo vampiros — conseguiu dizer. — Não quero prejudicar vocês!

— Que engraçado. Gosto do senso de humor dos hu-manos...

— É verdade! Veja nas minhas coisas... No meu laptop. — Pode até ser verdade — ela disse, ainda sorrindo. —

Mas isso não importa. Não percebeu, gaijin-san, que o meu ver-dadeiro objetivo era você desde o inicio? Agora, não se mexa...

Samuel ouviu a voz dela soar mais de uma vez, bem longe. Não se mexa, não se mexa... Sentiu o teto do quarto rodar. Uma profusão de cores. O vermelho do teto. O dourado brega dos detalhes da cabeceira da cama... O corpo dela sobre o seu. O perfume era bom... Não conseguia se mover. Mal podia manter os olhos abertos. A única coisa que sentia era uma es-pécie de alívio. Uma estranha sensação de paz.

Havia crisântemos por todo o quarto. Amarelos, eram flores da família imperial japonesa. Brancos, como aqueles, simbolizavam a Morte.

Fazia quanto tempo desde que fora capturado no par-que Trianon? Samuel não sabia mais. Só sabia que a vampira o sugara até a inconsciência. Depois ardera em febre, em meio a sonhos cheios de luxúria e agora, que acordara, sentia-se fraco, a cabeça lhe doía.

Como se esperasse por um sinal, a porta foi aberta as-sim que Samuel sentou-se na cama. Era ela. Usava um vistoso mini-quimono vermelho fechado apenas por dobraduras e uma faixa negra bordada logo abaixo dos seios. Uma roupa que parecia tão frágil, tão fácil de ser violada... Ela trazia nas mãos uma bandeja coberta por uma toalha. Havia um cheiro delicioso de comida no ar.

— Está com fome, gaijin-san?

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Na verdade, estava faminto. Ela alimentou-o com pe-quenas iguarias de carne, legumes e arroz servidas em peque-nas peças de porcelana, de onde ela fisgava as porções com habilidade, utilizando os hashis, pauzinhos japoneses. Depois, serviu saque. A bebida subiu como um foguete na cabeça de Samuel, acostumado a beber apenas refrigerantes. Logo o o-lheiro sentiu a cabeça rodar. O que era aquilo tudo? Um jogo malicioso, onde ele era uma peça sendo movida pra lá e pra cá. E o próximo movimento já tinha começado. A vampira, colo-cando a bandeja de lado, dizia:

— Deite-se, gaijin-san. Aqui na cama, de bruços. O que ela queria? O saque o deixava mais atrevido. — Para quê? Ela sorriu o seu sorriso de boneca. — Para me agradar. — Eu não vou... Antes de terminar a frase estava no chão, prensado pe-

las mãos dela com uma força surpreendente. Mãos que poderi-am esmagá-lo com facilidade.

— Nunca deixe de me agradar, gaijin-san. Nunca. Ela o soltou e ficou olhando para ele, os olhos ainda

mais oblíquos. Samuel levantou-se com cuidado, a embriaguez foi-se de repente. A vampira o analisava, talvez pensando se valia a pena mantê-lo vivo por mais algum tempo. Depois de alguns segundos intermináveis, ela disse:

— Tire a camisa. Ele hesitou um pouco, mas achou melhor fazer o que

ela queria. — Agora tire o resto — ouviu-a dizer. Havia um riso maroto no rosto dela. Samuel sentiu-se

enrubescer. Uma coisa era arrancar as roupas no ímpeto de um ato sexual, mas outra, a de despir-se para uma mulher, sim-plesmente porque ela queria vê-lo nu. Descobriu-se, de repen-te, pensando se estava em forma. Mais ou menos. Tinha o corpo duro, sem gordura, graças à vida frugal de olheiro, mas

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nada muito impressionante. Bosta! Era o tipo de coisa que nunca lhe importara antes.

— Eu não gosto de esperar, gaijin-san... A voz era fria. O rosto da vampira estava impassível,

mas era visível a sua irritação. Sabia que não tinha escolha, já tinha observado vampiros demais para ter ilusões. Ela poderia obrigá-lo a despir-se usando a voz vampírica, se quisesse. Ou simplesmente arrancar as suas calças pela cabeça. Isso ia ser bem ruim... Samuel começou a desabotoar a calça. Tirou-a, ficando de cuecas e meias. Olhou para a vampira, hesitante, mas ela esperava pelo resto. Que merda, e pensar que era ele quem queria assistir a um strip-tease dela há apenas alguns dias! Foda-se. Arrancou as meias e a cueca. Ficou ali, de pé, bem pouco à vontade, enquanto ela o examinava detidamente com o olhar.

— Gosto do seu corpo — ela disse, depois de alguns segundos. Pena que algumas partes dele careçam de um pouco mais de... entusiasmo.

— Não tenho muita prática nesse tipo de coisa. Mas posso melhorar, com um pouco de estímulo...

Ela riu. — Veremos, gaijin-san, veremos... Samuel sentiu-se aliviado. Ela estava de novo de bom

humor. — Agora, de bruços... Não tenha medo — ela tornou a

ordenar. Desta vez ele obedeceu em silêncio, deitando-se na cama de barriga para baixo. Sentiu que ela estava sobre ele, um pé de cada lado do seu corpo.

“Fique imóvel A gora.” Ela disse. A voz vampírica ressoou na sua mente, produzindo um efeito relaxante. Ele ficou iner-te, quase todos os músculos do seu corpo parados, sem forças para se mover. Que diabos ela ia fazer? Algo, talvez uma cane-ta, movia-se sobre o seu dorso. Círculos, ovais, traços. Logo compreendeu, quando começou a sentir as dores. Estava sen-do tatuado.

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Tinha feito uma tatuagem quando moleque. O pai o en-chera de pancadas ao descobrir que o garoto Samuel tinha ta-tuado a inicial do próprio nome no braço. Era um trabalho tosco, com traços tortos e falhos. Com o tempo, a tatuagem ficou ainda mais feia, desfigurando-se à medida que o corpo crescia. Hoje, tinha uma mancha escura, arremedo deformado de um “s” na parte de dentro do seu antebraço.

Doía. Cada picada da agulha doía. Doía ainda mais de-pois, quando ela passava o pincel com a tinta e limpava a feri-da. Mas a dor o excitava. O corpo dela, sobre o dele, o excita-va. Lasciva, não usava nada por baixo do mini-quimono. Sa-muel podia sentir o corpo gelado movendo se devagar, desli-zando, as partes íntimas dela roçando nas suas nádegas. Ficou assim durante muito tempo, perdido entre as sensações de dor e prazer. Tatuagens são definitivas. São marcas de um momen-to, de uma paixão, de uma tristeza imensa... A idéia de ser marcado por ela aumentava o seu tesão.

Então ela o virou para si. E procurou a sua garganta.

Foram várias sessões até que a tatuagem estivesse ter-minada. Samuel não a tinha visto. E não se importava. Nada mais lhe importava. Sentia-se fraco demais. Ficava quase o tempo todo na cama, sem forças para se levantar. Cada vez que ela o sugava, acabava com o pouco de energia que lhe res-tava. Mas quando ela não vinha, sentia-se ainda pior.

— Está quase na hora de nos despedirmos, gaijin-san. Ele sabia disso. Ah, sim, claro que sabia que um dia a-

quilo ia terminar. Ela deitou-se ao seu lado e afastou os cabe-los desalinhados da sua testa febril. O toque macio dela lhe fazia bem. Tentou sorrir.

— Kaori. — Sim, gaijin-san? — Quero vê-la nua...

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Ele pediu, sem esperanças de ser atendido. Mas ela sor-riu, por sua vez. Abriu um a um os numerosos botões do seu vestido vermelho. Com movimentos penosos, Samuel sentou-se na cama. Afinal... O corpo pequeno e proporcional, o ven-tre liso, o umbigo. O delicioso tufo de pêlos na sua virilha. Tudo isso surgiu pela fresta aberta no meio do vestido. Com um movimento gracioso dos ombros, ela deixou cair o vestido no chão. Não havia uma marca sobre a pele, ela, inteira, era perfeita como uma pintura. Estendendo as mãos delicadas pa-ra Samuel, disse:

— Venha, gaijin-san... Ele sentou-se na beirada da cama com a ajuda dela. Ela

tirou as roupas dele devagar, peça por peça. Ao ficar nu, Sa-muel sentiu-se só, desamparado e frágil como uma criança. Um bebê nos braços dela, que o embalou, gentil. Ele suspirou, sorvendo o perfume exótico que emanava da pele pálida. Tal-vez pela última vez.

Então a vampira o beijou. A boca molhada e carnuda estava tão quente... Mas os vampiros não são gelados? Ela já tinha se alimentado, pensou.

Por isso estava quente como uma humana. A língua de-la percorreu-lhe a boca, enfiando-se, voluptuosa, pela garganta. Ele correspondeu, acariciando as presas afiadas, sorvendo o sabor adocicado da saliva. Abraçou-a com força, estreitando o corpo minúsculo entre seus braços. Ela ergueu a perna e con-tornou a coxa dele. Ele a segurou. Então sentiu algo se mexer na sua mão. Algo pequeno e liso. O que foi aquilo? Olhou, espantado, para a perna delgada da vampira. Viu apenas o dra-gão tatuado. Então, dentro dele, surgiu um desejo intenso. Ele a queria, mais do que nunca. Aquilo o corroia por dentro. Era tanto tesão que doía... Doía demais. Para tê-la, mesmo que uma única vez, não se importava em morrer.

Com um movimento rápido ergueu-se e rolou, posicio-nando-a sob si. A mão dele introduziu-se entre as pernas dela, submergindo num mundo misterioso, úmido e quente. Ela

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gemeu, deliciada. Então ele viu. Ilusão ou magia, o dragão tatu-ado na perna da vampira se agitou e se mexeu. Maravilhado, Samuel assistiu-o deslizar pelo seu ventre, enrodilhar-se na sua cintura. A cauda de escamas reluzentes percorreu os seios, ve-loz, acariciando os mamilos. Samuel beijou de novo a vampira, desta vez com toda a violência do seu desejo incontido. Ela respondeu, arranhando o dorso dele com suas unhas cobertas pelo esmalte vermelho. Sangüíneo. Os dentes dele afundaram-se no pescoço alvo, marcando-o com pequenas mordidas. O corpo dela abriu-se, recebendo-o por inteiro. Nesse instante, o dragão vermelho sobre a pele dela abriu a boca dentada e ex-peliu uma intensa nuvem de fogo. Como a responder o cha-mado, algo se desprendeu das costas de Samuel. Ele sentiu cada movimento daquilo, que corria pelo seu corpo teso, cada vez mais rápido, cada vez mais selvagem. Samuel urrou, delici-ado, no momento da penetração. E um esplêndido dragão ne-gro saltou da pele do humano e mergulhou sobre o corpo da vampira.

Os amantes se moviam, frenéticos, enlouquecidos de prazer. Os olhos semicerrados de êxtase do humano viram o dragão negro descer, célere, para o ventre da vampira e explo-dir na virilha, em meio ao pêlo macio. O dragão vermelho, nesse instante, lançou-se sobre o seu par negro num salto. As duas criaturas míticas se uniram, enrolando-se, flexíveis, como se fossem uma só. A amante-vampira gritava, gritava... A voz irreal vibrava em cada fibra do corpo de Samuel, que continu-ava a estocá-la com fúria. E os dragões vermelho e negro sur-giam por entre as nádegas dele e deslizavam até a nuca dela. Enrolavam-se entre as ancas e saltavam nos peitos arfantes. Iam de um para o outro amante, animais selvagens, incontro-láveis, queimando com suas passadas cada centímetro de pele. Cada gota de suor.

Por fim, já quase ao nascer do dia, o dragão vermelho pousou suavemente sobre a perna da vampira. E deixou-se ficar descansando, balançando a sua cauda devagar. O dragão

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negro, do alto do ombro do humano, deu um último e grande salto, indo sumir no dorso firme, sua morada até uma próxima vez.

Samuel, o olheiro de vampiros, ficou ali, observando a vampira que repousava. Parecia uma mulher frágil e solitária como tantas outras. Uma mulher que poderia amar. Sentiu os olhos se fecharem. As últimas forças o abandonavam de vez. Não importava. Estava feliz.

É dia, mas o mundo está escuro. Após vários dias de es-tiagem, uma forte tempestade cai sobre São Paulo. A força da água leva consigo o pó, a fuligem, a sujeira acumulada em tempos de seca. As pessoas observam a chuva, um pouco a-medrontadas. O trânsito caótico está ainda pior. Um relâmpa-go ilumina o quartinho do sobrado na Rua Apeninos. Samuel acorda sobressaltado, com dor de cabeça. Olha ao redor e re-conhece o seu quarto na pensão. O rádio-relógio marca meio-dia e dez, dia primeiro de setembro. O que havia acontecido com os últimos quinze dias de sua vida? Ura novo relâmpago mostra-lhe de relance a sua imagem no espelho do guarda-roupa. Junto com o ribombar da trovoada, uma pergunta ecoa na sua mente. Como, diabos, conseguiu aquela enorme tatua-gem de dragão nas costas?

Não muito longe dali, uma vampira dorme tranqüila, segura no seu esconderijo no subsolo de um velho hotel. Ela sonha com amantes humanos. Milhares de homens de todas as idades que amou durante a sua longa existência. Ela os sedu-ziu, capturou, comprou. Ou foi aprisionada, por sua vez, pela vontade e o desejo férreo de alguns. Tantas histórias diferen-tes, tantos finais iguais... Os homens de sua vida, tão diversos em temperamento, gostos e aparência, sempre tão semelhantes no seu eterno e insaciável desejo por amor.

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Após algum tempo, ela os deixa ir. Que partam em paz. Que saiam em busca de fêmeas humanas saudáveis, que lhes darão filhos, cuidarão de suas casas e ouvirão suas dúvidas e queixas com paciência e dedicação. Pois esse amor cotidiano e sofrido, ela nunca será capaz de lhes dar.

A única coisa que ela pode lhes oferecer são dragões. Dragões negros, dourados, multicoloridos. Tatuagens sem memória, perdidas em lindos dorsos, pedaços dela a vagarem solitários, incompletos, saudosos desse estranho amor.

De repente, Kaori abre os olhos, desperta. O seu último amante, um sujeito esquisito que espiona vampiros para um bando de malucos, está à sua procura de novo. Hum, que in-sistente... Mas por outro lado, tão adorável! Talvez, no futuro, queira vê-lo mais uma vez.

A tempestade castiga a cidade, lá fora. A vampira vira-se para o outro lado. Fecha os olhos e volta a sonhar...

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