VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcoólicas e Outras Drogas – Funções e Significados Entre...
-
Upload
camila-de-pieri -
Category
Documents
-
view
221 -
download
0
Transcript of VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcoólicas e Outras Drogas – Funções e Significados Entre...
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
1/208
Universidade de So Paulo
Faculdade de Sade Pblica
Liminaridade, bebidas alcolicas e outras drogas:
funes e significados entre moradores de rua
Walter Varanda
Tese apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Sade Pblica para obteno
do ttulo de Doutor em Sade Pblica.
rea de Concentrao: Sade Materno-Infantil
Orientador: Prof. Dr. Rubens de C. F. Adorno
So Paulo
2009
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
2/208
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
3/208
Liminaridade, bebidas alcolicas e outras drogas:
funes e significados entre moradores de rua *
Walter Varanda
Tese apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Sade Pblica da
Faculdade de Sade Pblica da
Universidade de So Paulo para obteno do
ttulo de Doutor em Sade Pblica.
rea de Concentrao: Sade Materno-Infantil
Orientador: Prof. Dr. Rubens de C. F. Adorno
So Paulo
2009
* Esta verso inclui correes e reformatao da verso original que se encontra na biblioteca da
Faculdade de Sade Pblica / USP.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
4/208
II
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
5/208
III
queles que mergulham nas sombras mas acreditam na luz.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
6/208
IV
AGRADECIMENTOS
minha famlia, pelo suporte, incentivo e compreenso.
Ao meu orientador, uma mente brilhante.
Aos mestres que me confiaram segredos.
Aos agentes sociais que partilharam suas experincias.
Aos agentes de sade que me mostraram sanidades possveis.
Aos amigos do poder pblico que nutrem a sensibilidade e a razo.
Aos colegas que explicitam os desafios da modernidade.
s freiras beneditinas que me abriram portas para ruas.Aos colaboradores, que trazem na memria da alma o conhecimento da
dignidade que se revela na prpria vida e na vida dos outros, independentemente
do local e do estado em que se encontram.
queles que me mostraram a pacincia e a resistncia no testemunho do
sofrimento encontrado nas ruas e no mundo das drogas, e do pistas para a
reformulao de polticas pblicas que considerem o direito sanidade.
Aos amigos da Ayahuasca e do Santo Daime que me mostraram as portas
de um universo visvel aos olhos da alma, que pulsa e irradia uma luz que incendeiao corao com o fogo de Deus. Especialmente queles que me mostraram suas
intersees com o uso das drogas.
Ashoka, OAF e AMRMC que possibilitaram minha insero na rua e o
aprimoramento de tecnologias de intervenes sociais, despertando o interesse
pelos registros e reflexes sobre as experincias dos moradores de rua.
FSP/USP que acolheu este estudo.
FAPESP que o viabilizou.
... aqueles que podem ser nominados pelo incentivo, pareceres, ajuda
tcnica, acadmica, emocional e espiritual, eu incluo em minhas preces, um pouco
por dia, j que so tantos.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
7/208
V
RESUMO
O uso de bebidas alcolicas e outras drogas atinge a maioria dos moradores
de rua na cidade de So Paulo e assume funes e significados inerentes situao de rua, entendida como situao de liminaridade social. A etnografia
revelou trajetrias individuais, dinmicas de grupos de moradores de rua e sua
interao com as redes pblicas de assistncia, caracterizando o lcool e drogas
nos circuitos da rua enquanto recursos de sobrevivncia e operadores de
processos reativos diante da situao de apartao social. Utilizamos anlise
documental, observao participante, e entrevistas com moradores de rua,
coordenadores de instituies sociais e informantes de outros contextos sociais. O
uso de lcool e drogas refora estigmas de culpabilidade e penalizao daspessoas pela situao em que se encontram, reproduzidos nas relaes com as
instituies pblicas de apoio, referncias miditicas e nas justificativas das lacunas
das polticas pblicas. Este uso, abusivo ou no, atua de forma preponderante na
mediao das relaes sociais e de sobrevivncia na rua e, alm disso, permite o
alvio do sofrimento fsico e psquico, alm da navegabilidade nas memrias
emocionais atravs de processos regressivos e experincias de si em estados
alterados de conscincia. Entender este uso sob a perspectiva da liminaridade
permite o deslocamento analtico do agente patognico e da vulnerabilidade
individual para o drama social que o sujeito vivencia. Tendo em vista os dramas
vividos, o uso de drogas construdo sob o sistema de crenas e representaes
do sujeito, passvel de ressignificaes nos processos de autoconhecimento,
desenvolvimento da autonomia e do autocontrole.
Palavras chave: lcool. Drogas. Liminaridade. Moradores de rua. Estados
alterados de Conscincia.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
8/208
VI
Varanda, W. Liminality, alcohol and other drugs: functions and meanings
among the homeless. Doctoral thesis. Faculty of Public Health of the
University of So Paulo, Brazil. So Paulo; 2009.
SUMMARY
The use of alcohol and other drugs affect the majority of the residents of the streetsin the city of So Paulo and assume functions and meanings inherent to the
situation in which they are, understood as situation of social liminality. The
ethnography showed individual trajectories, dynamics of groups of homeless and
their interaction with the networks of assistance, characterizing the alcohol and
drugs on the street circuits as resources for survival and operators of reactive
process against the social apartheid. We used documental analysis, participant
observation, and interviews with residents of the streets, coordinators of social
institutions and informants from other social contexts. The use of alcohol and drugsincreases the stigma of guilt and punishment of people for their situation. These
appear in relations with help public institutions, references in the media and
justifications of the shortcomings of public policies. This use, abusive or not, serves
mainly in the mediation of social and survival relationships on the street and,
moreover, allows the navigability in emotional memories through regressive
processes, relief of suffering, both physical and mental, and experiences with the
selfin altered states of consciousness. Understanding this use from the perspective
of liminality allows the displacement analysis of pathogen and the vulnerability of thesubject to the social drama experienced. In view of these dramas, drug use is built
under the system of beliefs and representations of the subject, which can be
reconfigured by the development of consciousness, autonomy and self-control.
Keywords: Alcohol, drugs, liminality, homeless, consciousness.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
9/208
VII
NDICE
1 INTRODUO 1
MTODOS DA INVESTIGAO............................................................................. 13OS ESTADOS ALTERADOS DE CONSCINCIA........................................................ 22OENCANTO E O DESENCANTO DA RUA............................................................... 29
2 A ESTIGMATIZAO 45
ASITUAO DE DESVIO..................................................................................... 51
EXPERINCIAS DESESTRUTURANTES.................................................................. 55DOENA OU CONFORTO ..................................................................................... 60
3 AS MEMRIAS 68
AMEMRIA INDIVIDUAL.................................................................................... 71AMEMRIA COLETIVA....................................................................................... 79IDENTIDADES E SEXUALIDADES......................................................................... 85
4 OS CIRCUITOS DA RUA 92
CDIGOS E PRINCPIOS..................................................................................... 103RITUAIS DE USO E FUNCIONALIDADE................................................................ 113
SACRAMENTOS E SIGNIFICNCIA..................................................................... 1255 A EXPANSO DE SI 134
OS (CURTOS)CIRCUITOS DA DROGA................................................................. 139OCIRCUITO RELIGIOSO.................................................................................... 148OCAMINHO INICITICO DO SANTO DAIME ...................................................... 152
6 OS ENFRENTAMENTOS 164
INTERVENES E CONTROLE SOCIAIS............................................................... 169DO CENTRO COMUNITRIO AO EGO ............................................................... 176ASADA PELOS PRINCPIOS............................................................................... 182
7 CONSIDERAES FINAIS 185
8 REFERNCIAS 188
9 DADOS CURRICULARES 195
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
10/208
VIII
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
11/208
IX
APRESENTAO
Antes de tudo devo confessar que sou um engenheiro, psiclogo, que se
arriscou a fazer um estudo com as contribuies da antropologia da performance, o
que explica certo distanciamento dos cnones acadmicos e o referencial terico
difuso.
O objetivo foi justamente descolar a questo lcool e drogas da esfera
individual e da materialidade pragmtica qual eu me acostumara como
coordenador de programas sociais, procurando entend-la como um fenmeno
coletivo de interesse da sade pblica, estudando a ambigidade liminar de seus
significados no nvel mais elementar da anti-estrutura: a populao de rua.
A o sujeito se liberta e se autonomiza no uso. A transformao da auto
imagem de decado na busca do sentido de si no mundo, na economia da carncia
e contextos de cidadania e solidariedade, por si s um drama.
Este foi o nosso esforo, disso trata este texto 1.
1 O texto apresentado banca examinadora em abril de 2009 foi acrescido de notas de rodap que
atualizam alguns dados com o resultado do censo da populao de rua da cidade de So Paulorealizado entre setembro de 2009 e abril de 2010.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
12/208
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
13/208
1
1 INTRODUO
Nas noites de inverno mais rigorosas de 1991, uma fila de moradores de
rua se formava na descida da ladeira da Rua Riachuelo e embicava numa
pesada porta de madeira, que um dia fora a entrada dos fundos do anfiteatro do
mosteiro dos franciscanos. Subiam-se alguns lances de escada e dava-se no
palco, que servia ento como guarda volumes para as sacolas dos moradores de
rua que iam chegando para fugir do frio. Do palco via-se todo o salo frente,
vazio, com duas lmpadas improvisadas pendentes do teto. Por uma escadinha
de madeira descia-se do palco ao salo que antes fora platia e naquele
momento servia de assoalho para dezenas de colches que eram espalhados no
cho. Um ch quente com bolachas aquecia o estomago. Apesar da
precariedade, eventualmente alguns ficavam de fora, por chegarem muito tarde
ou ainda devido a brigas. O Luizo chegou a colocar fogo na porta, certa vez.
Alguns ficavam mais agressivos com a bebida, mas havia cdigos atravs dos
quais se podia negociar uma convivncia pacfica. Conhecer estes cdigos,
oriundos de diferentes linhagens regionais, econmicas, educacionais, religiosas
e prisionais, era um desafio para os cuidadores de planto. Os voluntrios da
noite deitavam-se perto das bagagens e os despachavam pela manh, estes
voltavam s suas casas e os outros s ruas. Eu estava no primeiro grupo.
Nesta introduo procuraremos contextualizar e delinear nosso objeto de
estudo nos referindo ao lcool, s drogas e liminaridade, orientando-nos pelo
alinhamento cronolgico que se iniciou a partir de meus primeiros contatos com
moradores de rua de So Paulo, passando pelas experincias com psicoativos e
apresentando ao final a estruturao temtica do texto.
Reportando-nos Antropologia da Performance, a cena acima evoca a
representao da trajetria de vida tpica do morador de rua. porta, recebia um
crach que havia sido feito desde a primeira vez que ele havia ido ao local e que
garantia o acesso ao abrigo. Como um dia fora rotina na sua vida, tinha um nome,
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
14/208
2
era reconhecido pela sua histria. Uma vez no recinto, subir as escadas, evocava sua
trajetria de desenvolvimento intelectual, profissional e social. Alguns como o Rui,
que ainda hoje transita pelo Largo So Bento, subiam com um grande saco
pendurado nas costas. Havia os que precisavam de ajuda para vencer as escadas e os
que ajudavam os colegas na subida. Outrora, brilharam no palco da vida: como filho,
me, marido, amante, profissional... A maioria j havia passado pelo papel de
provedor ou por perodos de sobrevivncia autnoma. As rupturas com o contexto
familiar e profissional os tornaram dependentes. O cenrio Franciscano e a
linguagem Beneditina das freiras que coordenavam o trabalho indicavam o contexto
religioso, precursor assistncia social em suas vidas. Sair do palco para a platia,
descer alguns degraus, evocava, ainda dentro desta leitura simblica, a transioentre uma posio ativa com alguma representatividade na sociedade a uma posio
passiva. Ou reativa, na medida em que isto seja possvel na situao de liminaridade
social.
A trajetria para a situao de rua, na vida de cada um, um processo
complexo que comumente envolve o uso de bebidas alcolicas antes, durante ou
depois do movimento para as ruas, entre a maioria da populao de rua. No salo da
Rua Riachuelo, os mais alcoolizados precisavam ser ajudados para no cair daescada. Ao longo dos anos seguintes, os servios de apoio desenvolvidos atravs da
iniciativa de instituies religiosas e sociedade civil foram se transformando numa
rede de albergues e casas de convivncia, parcial ou integralmente mantidos com
recursos municipais. Havia uma ameaa permanente de mortes de moradores de rua,
principalmente nas noites mais rigorosas do inverno, que indicavam a
vulnerabilidade desta populao. A populao de rua saltou de 3.392 em 1991 para
10.394 em 2003 (VIEIRA et al, 2004; SAS, 2003), e hoje estimada em mais de12.000 pessoas 2, onde o uso de lcool e outras drogas vem sendo tratado como
problema comportamental, de ordem moral ou como doena.
Os dados subsidirios para as polticas pblicas nesta rea, segundo as fontes
oficiais, so preponderantemente estatsticos no revelando a natureza e
complexidade do problema. Segundo o Estudo dos Usurios dos Albergues
2 O censo da populao de rua da cidade de So Paulo, realizado pela FIPE em 2009 a pedido da
Secretaria da Assistncia e Desenvolvimento Social da Prefeitura Municipal, revelou 13.666 pessoasnesta situao: 6587 vivendo nas ruas e 7079 em abrigos pblicos.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
15/208
3
Conveniados com a Prefeitura 50% dos albergados declararam ter feito uso
continuado de lcool durante a vida e 24% afirmam ter usado drogas
(SMADS/FIPE, 2006). O estudo indica que o uso de droga est associado com o
estrato mais jovem. Entre os que afirmam fazer ou ter feito uso contnuo de droga,
40% so jovens (de 18 a 29 anos), 26% so adultos e 9% so adultos mais velhos. J
o uso do lcool associado aos mais velhos: 52% dos adultos (de 30 a 54 anos);
49% dos adultos mais velhos (55 anos ou mais); e 34% dos jovens. Estes nmeros
so mais elevados, quando se considera a populao de rua no albergada 3. A
pesquisa nacional sobre a populao em situao de rua (MDS/META, 2008) sugere
maior incidncia do uso abusivo de lcool e drogas entre 35,5 % dos entrevistados da
pesquisa nacional de 2007, que alegaram este como o principal motivo pelo qualpassaram a viver e morar na rua. Os outros motivos citados: desemprego e
desavenas familiares situam-se entre 29,8 % e 29,1 % respectivamente.
Nestes documentos no se questiona at que ponto estes dados refletem
diferentes representaes sociais e estigmas em relao ao uso, reforando o
paradigma biologizante da intoxicao. A perspectiva medicalizante se evidencia em
abordagens oficiais da Secretaria Nacional Antidrogas, segundo a qual, entre os
brasileiros, de maneira geral, 52 % podem ser classificados como bebedores(SENAD, 2007), mas praticamente metade dos bebedores (27%) faz uso na classe
ocasional ou raro e a outra metade (25%) faz uso de pelo menos 1 vez por
semana (p.72). Do total da populao com 18 anos ou mais, 3% disse ter
problemas de uso nocivo 4 e 9% de dependncia 5 [notas do texto] (p.75). Ainda
segundo o texto do SENAD, uma das implicaes dessa prevalncia de 12 % que
3Como parte do estudo solicitado pela prefeitura de So Paulo FIPE em 2009 (concludo em abril de
2010), a Caracterizao Socioeconmica da Populao de Moradores de Rua da rea Central de SoPaulo revelou que o consumo de lcool e/ou drogas bastante significativo, pois 74,4% fazem usode um ou de ambos. Foram discriminados os tipos de substncias consumidas: bebida alcolica, 65%;crack, 27,3%; maconha, 21% e cocana, 11,8%. Muitos j faziam uso de algumas dessas substnciasantes mesmo de chegar situao de rua, o que pode ter sido tambm um fator desencadeador dosproblemas subseqentes de desestruturao familiar, perda de emprego, perda da moradia.Independentemente das causas, alta a proporo dos que esto nas ruas atualmente e que declaramsem qualquer constrangimento, que fazem uso de lcool e drogas como algo incorporado em seushbitos (p.8).4Segundo a nota do texto Uso nocivo um padro de consumo de lcool considerado prejudicial doponto de vista fsico, psicolgico ou social e que no preenche os critrios de dependncia.5Segundo a nota do texto Dependncia um padro de consumo de lcool onde alm do consumoexcessivo existam adaptaes neurofisiolgicas ao lcool significativas. Apresenta vrias
manifestaes como sintomas de abstinncia do lcool e necessidade de beber apesar dasconseqncias negativas.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
16/208
4
parte substancial dessas pessoas necessita de alguma forma de tratamento. Elas
apresentam um diagnstico mdico de uso nocivo ou dependncia e portanto, j
padecem de uma condio mrbida, que requer ao do sistema de sade (p.75). A
vinculao de aes do sistema de sade a uma morbidade autoreferida e no
pessoa e seu contexto de vulnerabilidade nos parece um equvoco, e no caso da
populao de rua pode servir ainda para escamotear os mecanismos de reproduo da
misria associados intensificao do uso abusivo destas substancias.
Entre as pessoas em situao de rua, os mecanismos de controle social
responsveis pela limitao do consumo destas substncias compreendem aes
policiais para a remoo das pessoas de lugares estratgicos, do ponto de vista da
gesto pblica, ou se restringem aos critrios de utilizao dos abrigos pblicos,instituies sociais e religiosas. Os 35 albergues e abrigos especiais e 11 moradias
provisrias atendem juntos 8.000 pessoas todos os dias 6, as demais pessoas tem
acesso livre aos ncleos de servio que funcionam somente durante o dia. Equivale
dizer que a rede municipal comporta aproximadamente dois teros desta populao
enquanto um tero vive literalmente nas ruas. Via de regra, exigem a abstinncia,
tratando o problema de forma higienista, medicalizante ou disciplinadora
(GIORGETTI, 2006; _ 2007). As formas tradicionais de suporte aos moradores derua compreendem clnicas religiosas, terapias ocupacionais nas instituies sociais,
reunies dos Alcolicos Annimos e unidades de sade mental abertas populao
em geral. As instituies tecnicamente mais qualificadas para o enfrentamento do
problema do uso abusivo trabalham com processos de longo prazo e raramente so
acessveis s pessoas sem domiclio.
As pessoas que dormem nas ruas ou que transitam entre a rua e as vagas
temporrias de pernoite dos albergues ficam mais prximas do contexto de usodesregrado de drogas de maneira geral, mas ainda assim contam com as intervenes
scio-educativas em Ncleos de Servio com atendimento pblico diurno, que
6Declarao do secretrio da Assistncia Social de So Paulo. Folhapress. Jornal Folha de So Paulo.So Paulo: 29.01.2007.A pesquisa solicitada por esta mesma secretaria em 2009 aponta 7.079 pessoas abrigadas (ver nota 1).Como parte desta pesquisa, o centro de Estudos Rurais e Urbanos (FFLCH/USP) considerou umuniverso de 47 instituies que incluam 44 Centros de Acolhida de 24 e 16 horas, Centros deAcolhida Especial, Repblicas e Hotis Sociais, abrigando 5.993 indivduos.Diante das diferenas entre os totais de abrigados, deve-se considerar a existncia de abrigos fora da
rede conveniada com a prefeitura, diferenas entre metodologias de pesquisa e a possvel diminuiode vagas ou de seus ocupantes na rede de assistncia considerada.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
17/208
5
desenvolvem algum tipo de controle social em relao ao uso. A ttulo ilustrativo,
apresento outra cena que evoca a intensidade do uso e a limitao destas
intervenes, me reportando condio de coordenador de um destes ncleos entre
1996 e 2005 7: enquanto eu recepcionava uma visita da Ashoka no ptio da
instituio, rodeado por dezenas de freqentadores, um usurio se aproximou
bastante alcoolizado, tentou participar da conversa e desabou na nossa frente,
perdendo a conscincia por alguns instantes. Aparentemente no se podia fazer nada
quando o uso da bebida provocava este tipo de apagamento. Quando desperto, ele
voltaria a beber. Esta forma de uso o mantinha permanentemente alcoolizado e com
um contato dissonante com a realidade. Suas palavras e atitudes assumiam um
significado particular para ele, nem sempre compreensvel para os profissionais comquem lidava.
A impotncia da rede de servios para lidar com estas questes vem sendo
enfrentada atravs da atuao interdisciplinar de assistentes sociais, psiclogos,
terapeutas ocupacionais, agentes de sade e educadores. De maneira geral, estas
aes so direcionadas para reverter as trajetrias de perdas do sujeito e para a
manuteno da abstinncia, visando a sada das ruas e a conquista de uma vida mais
saudvel. Entretanto, as intervenes mais qualificadas so personalizadas e devidoao reduzido nmero de educadores, atingem uma pequena parcela de usurios das
instituies sociais, requerendo certo potencial e motivao para a mudana. Na
ausncia da vontade e persistncia para se abandonar o uso espontaneamente, as
intervenes externas exigem a compreenso dos mecanismos do uso de drogas em
geral e na especificidade da situao de rua.
O espao individualizante da rua se contrape viso tradicional da famlia e
do corpo social onde o todo mais importante do que o indivduo. Indo para a rua, oindivduo perde o seu status, suas conexes e fica deriva. Estas questes nos
possibilitaram relacionar a situao de rua situao de liminaridade, no sentido
7 A Associao Minha Rua Minha Casa um centro de ateno a moradores de rua, situada sob oViaduto do Glicrio Interligao Leste-Oeste, na rea central de So Paulo, com recepo diria deaproximadamente 150 pessoas. A organizao se consolidou atravs de parcerias entre o terceirosetor, empresrios e o poder pblico. Enquanto empreendedor social, eu contava com o apoio da
Ashoka, uma fellowshipque aglutina uma rede de empreendedores vinculados a projetos sociais emvrios pases.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
18/208
6
proposto por Victor Turner. Turner resgatou o conceito de liminaridade apresentado
inicialmente por Arnold Van Gennep emLes Rites de Passageem 1909.
Van Gennep usou o termo para identificar a fase fronteiria entre a separao
e a reagregao dos ritos de passagens. Pela anlise sociolgica de R. DaMatta, ele
rompe pioneiramente com a universalidade da fisiologia como caracterstica dos
chamados ritos de puberdade, resgata os ritos de passagem do seu plano de estudo
individual e descobre, um tanto surpreso, que dentro de uma multiplicidade de
formas conscientemente expressas ou meramente implcitas, h um padro tpico
sempre recorrente: o padro dos ritos de passagem (Van GENNEP, 1978, apud
DaMATTA, 2000, p.10). Victor TURNER (1974), avana da concepo da
transio para a noo de processo estendendo a liminaridade a tudo o que est nasmargens. Para ele a liminaridade significa o afastamento do indivduo de um grupo,
quer do ponto fixo anterior na estrutura social, quer de um conjunto de condies
culturais (um estado) ou ainda ambos (p.116). Estado, segundo ele, inclui os
conceitos de status ou funo, referindo-se a qualquer tipo de condio estvel
ou recorrente, culturalmente reconhecida. Os indivduos, enquanto entidades
liminares, no possuem status, propriedade, insgnias, roupa mundana indicativa de
classe ou papel social, posio em um sistema de parentesco, em suma, nada que aspossa distinguir de seus colegas nefitos ou em processo de iniciao (p.117).
Ainda segundo Turner:
o que parece ter acontecido que, com o incremento da
especializao da sociedade e da cultura, com a progressiva
complexidade na diviso social do trabalho, aquilo que era na
sociedade tribal principalmente um conjunto de qualidades transitrias
entre estados definidos da cultura e da sociedade, transformou-senum estado institucionalizado (1974, p.131).
O sujeito liminar no est aqui nem ali; est entre [betwixt and between] as
posies atribudas e organizadas pela lei, pelo costume, pela conveno ou pelo
cerimonial (apud CABRAL, 1996, p.31). Este paradoxo geralmente percebido
negativamente, como critica DaMATTA (2000). Ele associa a liminaridade ao
exerccio da individualidade: a recluso engendra um nicho no qual todos os elos
dirios perdem a fora, deixando vir tona a vivncia do isolamento e da solido.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
19/208
7
Para ele, o trao distintivo da liminaridade a segregao de uma pessoa (ou de
uma categoria de pessoas, tratadas como corporao social ou mstica) dos seus laos
sociais imperativos, liberando-a temporariamente das suas obrigaes de famlia,
linhagem, cl ou aldeia, o que a transforma temporariamente em indivduo fora-do-
mundo (p.20). Da Mata reconhece sociedades de espaos mltiplos, como a
brasileira, na qual ocorre uma verdadeira institucionalizao do intermediriocomo
um modo fundamental e ainda incompreendido de sociabilidade (p.14).
O rompimento com as hierarquias externas e com a previsibilidade da
estrutura social conduz construo de novas hierarquias que surgem nos interstcios
sociais: communitas consolidadas como antiestrutura mediante modelos relacionais
alternativos, constituindo grupos com valores e objetivos comuns. Sob estaperspectiva podemos nos aproximar das malocas 8 e identificar as relaes de
pertencimento, princpios, afinidades e distanciamento do corpo social estabelecido.
Como no modelo de constituio da communitasexistencial essencialmente oposta
estrutura, como a antimatria hipoteticamente oposta matria (TURNER,
1994, p.243), o povo da rua se organiza nos interstcios sociais, se agrupando em
malocas e constituindo redes de sobrevivncia. O que observamos na rua uma
dinmica particular que possibilita as relaes e o exerccio da alteridade.Outra caracterstica da ambigidade liminar o encantamento, quando tudo
pode, e deveria acontecer (...). A Liminaridade repleta de potncia e
potencialidade. Ela pode tambm ser repleta de experincias e representaes. Pode
ser a representao de idias, de palavras, de smbolos, e de metforas 9(TURNER,
1979, p.465). Desta forma, o autor retira a vivncia liminar da rigidez do enquadre
ritualstico percebendo-o atravs da multiplicidade de gneros performticos. Por um
lado, o processo ritual estabelece e articula a sequncia de fases e episdios que ocompem, mas por outro, expressa a suposio, o desejo e a possibilidade e pode
8 Lugares usados por indivduos ou pequenos grupos de moradores de rua durante o dia ou para opernoite, onde normalmente se encontra alguma moblia, como caixotes ou outros objetos para sesentar, colches ou espumas reaproveitadas, caixas ou sacolas para os pertences pessoais, roupas edocumentos, e s vezes utenslios de cozinha.9 No original: Since liminal time is not controlled by the clock it is a time of enchantment whenanything might, even should, happen (). Liminality is full of potency and potentiality. It may alsobe full of experiment and play. There may be a play of ideas, a play of words, a play of symbols, a
play of metaphors. In it, play's the thing. Liminality is not confined in its expression to ritual and theperformative arts.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
20/208
8
ser descrito, especialmente na fase liminar central por termos como carismtico,
numinoso, realidade sagrada (p. 469).
Neste ponto vou introduzir minha experincia em rituais iniciticos com o
psicoativo Ayahuasca, incorporado deste o incio do sculo XX doutrina religiosa
do Santo Daime. A partir das referncias analticas de Turner fizemos uma releitura
destas experincias com as quais tivemos contato ainda na dcada de 90. Uma srie
de experincias e tcnicas meditativas me conduziram s sesses xamnicas na
Amaznia Peruana. At ento eu estava imerso no contexto da situao de rua,
porm ainda restava a imerso nos estados alterados de conscincia como forma de
compreenso daqueles experimentados pelos moradores de rua sob o efeito desubstncias como o lcool e outras drogas.
Em minha primeira visita ao Peru em 1996 conheci a clnica Takiwasi na
cidade de Tarapoto, onde se realizam sesses com ingesto de plantas medicinais e
psicoativas para o tratamento da drogadio, principalmente bebidas alcolicas e
pasta base de cocana. Em 1998, voltei para uma dieta de 11 dias, aproximando-me
do curandeirismo Peruano no centro de terapias tradicionais Rinquia 10. A imagem
harmoniosa dos igaraps era quebrada pelos caboclos, descendo os rios com guapela cintura, conduzindo longas esteiras de troncos amarrados uns aos outros que iam
boiando rio abaixo. O confronto entre o poder anti-ecolgico de um inimigo
invisvel e a imagem da carncia estampada nos casebres desmobiliados e crianas
desnudas beira do Rio Aguaytia no deixavam dvidas de que a realidade da
pobreza e das diferenas sociais no se restringia ao contexto urbano e iam
fornecendo os elementos para a decodificao das imagens e sensaes que seriam
vivenciadas nos rituais xamnicos, induzidas pelas plantas medicinais, isolamento ealimentao restrita. Nestes estados de conscincia a percepo da realidade se
desdobra em diferentes planos nas esferas fisiolgica, emocional, racional e
espiritual, como tem sido abordada pela Psicologia Transpessoal, da qual faremos
uso adiante.
10
Centros de terapias tradicionais localizado prximo ao Distrito de Curiman, Cidade de Pucallpa,Peru.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
21/208
9
Foi nesta poca, num tambo 11de folhas de palmeira cercado pelas rvores
poupadas pelas madeireiras ilegais e riachos paradisacos, nas franjas da Floresta
Amaznica, que eu decidi pela ps graduao. Encerrava-se a etapa de imerso no
problema. Um problema que no se restringia s ruas de So Paulo, ou a casos
isolados de uso cronificado de bebida ou drogas, mas que hipoteticamente se
configurava como busca de sentido e conforto para a sobrevivncia em situaes de
extrema precariedade. Mas ainda me faltava o respaldo acadmico para a sua
compreenso.
A partir da passei a olhar para a rua de forma analtica, registrando eventos e
coletando materiais para um estudo mais amplo de pesquisa. De 2001 a 2003desenvolvemos o tema da sade dos moradores de rua enquanto direito, no curso de
Mestrado (FSP-USP). Por um perodo de pouco menos de um ano, trabalhei junto ao
poder pblico municipal como coordenador do programa de Proteo Social
Especial, dedicado manuteno da rede de Assistncia Social para moradores de
rua. A partir da tambm tive oportunidade de estreitar o contato com usurios de
lcool e drogas atravs da participao na pesquisa sobre a tuberculose na populao
de rua, realizada pelo LIESP - Laboratrio Interdisciplinar de Estudos e PesquisasSociais em Sade Pblica da FSP, com apoio do Decit-Ministrio da Sade.
O perodo deste Doutorado inclui, portanto: o perodo de trabalho com
contato indireto com a populao de rua, na gesto da poltica pblica, em 2005;
contato direto atravs da pesquisa sobre a tuberculose nesta populao; o perodo
dedicado ao trabalho de campo e realizao de disciplinas; e um perodo de
afastamento do campo e anlise do material colhido. Considerando o caminho
motivacional percorrido at o doutorado, como pano de fundo e experinciaindispensvel compreenso do problema, apresentamos neste texto, a trajetria e os
resultados da pesquisa consolidada metodologicamente a partir do vnculo com a
Faculdade de Sade Pblica e apoio financeiro da FAPESP Fundao de Amparo
Pesquisa do Estado de So Paulo. O perodo coberto pela bolsa FAPESP, a partir de
2007, possibilitou o afastamento de vnculos empregatcios e maior dedicao
11 Nome dado aos abrigos individuais feitos com materiais encontrados na floresta, destinados
basicamente proteo contra as chuvas, com espao suficiente para um catre e um mosquiteiro queimpedia a entrada de insetos.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
22/208
10
tarefa investigativa. O estudo, situado entre as questes de sade priorizadas pela
linha de pesquisa Sade Pblica: Cincias Sociais e Sociedade Contempornea do
Programa de Ps Graduao da FSP-USP foi delineado a partir dos recortes
fundamentais: adultos que vivem nas ruas da rea central da cidade, vinculados ou
no a albergues e outras instituies pblicas e a utilizao de bebidas alcolicas e
outras drogas por esta populao.
As duas questes centrais: o uso de drogas e a situao de rua nos remetem
aos estados alterados de conscincia e aos estados de liminaridade social. Este
campo temtico requer uma abordagem qualitativa e interpretativa sobre a qual
faremos algumas consideraes no prximo subcaptulo. Utilizaremos o termodroga no seu sentido genrico, para nos referirmos ao uso de bebidas alcolicas,
crack, cocana, maconha e outras drogas de menor incidncia entre os moradores de
rua adultos, quando quisermos nos referir natureza deste uso, ou seja, a relao
entre o usurio e a substncia, mais do que a substncia em si. Num sentido ainda
mais amplo, incluindo-se o uso de outras substncias e outros contextos sociais,
utilizaremos o termo psicoativo 12. Nos subcaptulos seguintes aprofundaremos estes
temas circunscrevendo termos e conceitos utilizados. O entendimento do uso dedrogas dentro do processo reativo situao de rua nos permite aproximar desta
realidade e da complexidade das questes sociais que a populao de rua apresenta e
que so mais amplas que a prpria sobrevivncia. O extremo da precariedade que
enfrentam salienta estratgias que viabilizam a permanncia na situao de rua e a
continuidade do uso das drogas. Entendemos estratgia no sentido explicitado por
CABRAL (1996, p.46) de prticas sociais que surgem como o resultado agregado
do fato que diferentes membros de um grupo social esto igualmente confrontadoscom contextos de ao semelhantes. A similitude desses contextos de opo
individual redunda no surgimento de padres de comportamento agregado a que
chamamos estratgias. Procuramos delimitar a Introduo contextualizao do
problema, antecipando resultados do estudo e apresentando uma viso cronolgica da
populao de rua e da institucionalizao da assistncia social nas ltimas duas
dcadas.
12
Substncias ou drogas psicoativas so aquelas capazes de promover alteraes da conscinciaindividual, humor ou do pensamento (OMS, 2004).
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
23/208
11
Os estudos de comportamentos desviantes iniciados por BECKER (1973)
com usurios de maconha deslocam o foco do sujeito vitimizado pelo estigma da
drogadio para os mecanismos sociais responsveis por este problema. Zinberg
(1984) tambm distingue a influncia do setting fsico e social no qual o uso de
drogas pode ocorrer dos outros dois determinantes: a droga em si e o set, ou seja, a
atitude da pessoa no momento do uso e sua estrutura de personalidade. Verificamos
que o uso de bebidas alcolicas e outras drogas entre moradores de rua ocorrem de
forma distinta das regras de uso socialmente aceitvel do ponto de vista biomdico e
distante dos padres institucionalmente estabelecidos, seja no contexto familiar ou
em agremiaes e eventos sociais, seguindo padres de liberdade e autonomia
possveis na rua. Como hiptese central deste trabalho, estes padres de uso podemassumir funes sociais e significados para o prprio sujeito, como um recurso que
viabiliza a situao de rua e, portanto seria inerente condio de sujeito liminar.
Este uso se coaduna, no universo da rua, a um cenrio anti-estrutural (TURNER,
1974; _1994), regulado pelas estratgias de sobrevivncia e resilincia desenvolvidas
(ALVAREZ, 2003). Tais questes so aprofundadas no segundo captulo, onde
tratamos do processo da estigmatizao e culpabilizao do sujeito.
O terceiro captulo trata dos cenrios internos das memrias individuais poronde navegam as pessoas que passaram por experincias desestruturantes. Atravs
dos estados alterados de conscincia tais registros so acessados recorrentemente
proporcionando oscilaes motivacionais e de humor conforme os contedos
emocionais vinculados a estas memrias. As memrias coletivas ou arquetpicas
permeiam os estados alterados proporcionando a transio entre a realidade concreta
do meio onde vive e a realidade no menos verdadeira do seu universo subjetivo
constituindo identidades e sexualidades possveis.Ao tratarmos dos circuitos da rua no quarto captulo, nos aproximamos das
estratgias de sobrevivncia desenvolvidas na rua. Os materiais descartveis que
afetam a esttica urbana e entopem os bueiros provocando alagamentos se
confundem com os humanos descartados dos circuitos produtivos, tornando-os
igualmente alvo das medidas de requalificao urbana. Enquanto resistem remoo
encampada pelo poder pblico, se aliam a instituies e comunidades locais,
desenvolvendo cdigos e princpios de convivncia, conferindo uma funcionalidade
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
24/208
12
e significncia particular ao uso de bebidas alcolicas e outras drogas neste contexto,
enquanto circulam nos seus prprios dramas pessoais.
No quinto captulo abordamos os mergulhos nas esferas de prazer e conforto
como recursos que se ajustam a uma realidade que reproduz experincias de carncia
e insegurana e reeditam sentimentos e sensaes disfuncionais do passado. A
impossibilidade de sustentao dos estados alterados de conscincia o conduz ao uso
recorrente que mina a capacidade do individuo para conviver com suas dificuldades
rotineiras fazendo-o oscilar entre a embriagus e estados depressivos de insatisfao
consigo mesmo e com suas relaes com o meio onde se encontra. A oposio e a
ruptura com uma dada ordem social ocorrem em paralelo com rupturas internas,
operando de forma disfuncional na vida do sujeito e comprometendo sua capacidadede autoafirmao e possibilidade de reinsero social. Procuramos estabelecer um
paralelo deste processo com os processos iniciticos que buscam nas rupturas a
libertao dos vnculos externos em direo ao autoconhecimento. Analisamos
experincias de alterao da conscincia pelo psicoativo ayahuasca, que tem sido
utilizado em contextos religiosos e teraputicos focalizando ainda sua utilizao e
funcionalidade por ex-usurios de drogas e moradores de rua.
As alternativas teraputicas tradicionais requerem recursos incompatveiscom a situao marginal de carncia do individuo e com as prioridades da gesto
municipal. No sexto captulo tratamos da formas de enfrentamento do problema. A
introjeo de mecanismos disciplinatrios e auto reguladores dos Alcolicos
Annimosfortalecem o autocontrole mas atuam na contramo da trajetria de busca
de novas experincias de sociabilidade no contexto da rua. Os mecanismos de
desenvolvimento do autocontrole so abordados a partir das alternativas de
enfrentamento possveis. A expectativa de contribuio para o melhor entendimentodo problema e contribuio para as polticas pblicas de sade em relao ao
consumo abusivo de lcool e drogas entre moradores de rua nos motivou a rever
experincias concretas e como elas refletem as discusses encampadas neste estudo.
As primeiras experincias comunitrias que deram visibilidade populao de rua
em So Paulo no anos 80 e 90 e a experincia do Espoir Goutte dOr nas ruas de
Paris nos dias de hoje, nos remetem finalmente a princpios que identificamos entre
grupos e malocas de moradores de rua na busca de autoconhecimento, autonomia e
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
25/208
13
autocontrole.
Reservamos o stimo captulo s consideraes finais. Acreditamos que a
busca das funes e significados para a liminaridade e para o uso de lcool e drogas
se complementam, bem como se relaciona com a busca de sentido para o curso da
prpria vida em cada morador de rua. Tratar a questo do uso abusivo como um
problema exclusivamente biomdico implica na valorizao da patologizao sujeita
a intervenes externas incapazes de absorver a complexidade prpria das
transformaes sociais da modernidade que deram origem ao nmero vertiginoso de
pessoas em situao de rua nos grandes centros. Diante desta limitao, defendemos
o estudo das redes sociais construdas na rua e valorizao da trajetria de vida do
sujeito, compatveis com o processo de autoconhecimento e com possibilidades dedesenvolvimento do autocontrole.
Acreditamos ainda que a relao entre o uso abusivo e processos liminares
amplia a perspectiva de compreenso do problema em outras categorias sociais e
aponta para a necessidade de polticas pblicas que considerem o desdobramento dos
dramas sociais desencadeados pelas experincias individuais e coletivas.
Mtodos da investigao
Voc me chamou de Joel, meu nome Hugo. Enquanto ele tecia uma
toalha de fios, continuou explicando quem era o Joel, muito diferente dele, o
Hugo. O Joel raivoso, fechado, no gosta de conversa e quando fica bravo,
ele fica violento. Hugo, ao contrrio era socivel, alegre, amigo e adaptado ao
contexto teraputico. Entre todos, Moacir era o que mais falava e aproveitavatodos os argumentos para justificar porque ele estava ali, inclusive porque
estava fazendo um tapete de amarradinho, j que no era paciente. Alguns
ainda no haviam entendido o que eu fazia: jornalista da Globo, comentou
em voz baixa, outro rapaz. Continuando, Hugo dizia que o Joel no seria
receptivo conversa que estvamos tendo. Ele no se abriria facilmente: teria
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
26/208
14
que confiar muito para se abrir. De certa forma era o porta voz de todos ali. 13
Diante da profuso de possibilidades num campo de pesquisa to vasto
procuramos, nesta parte, identificar como o sujeito se apresenta, mesmo que ele
recorra fala institucional assimilada na sua passagem por organizaes sociais e
religiosas. A utilizao de mtodos qualitativos nas recentes pesquisas acadmicas
sobre a populao de rua demonstra certo engajamento dos pesquisadores no
aprofundamento de questes que viabilizem a construo de polticas pblicas com
procedimentos mais efetivos na promoo social e da sade. Na perspectiva de
Denzin e Lincoln se busca relacionar a pesquisa qualitativa s esperanas, s
necessidades, aos objetivos e s promessas de uma sociedade democrtica livre(2006, p.17).
Os recenseamentos e levantamentos quantitativos desta populao,
patrocinados pela prefeitura, so espaados em at cinco anos, como o caso no
momento atual, mas tem utilizado mtodos estatsticos criteriosos que permitiram
conhecer a sua extenso e perfil scio-demogrfico e esto entre as principais
referncias para o estudo de necessidades bsicas e planejamento de servios
pblicos. A primeira pesquisa em nvel nacional foi realizada em 2007 sob acoordenao do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome e o
principal argumento da poltica nacional de incluso social da populao em situao
de rua. Uma vez que deixemos de lado a perspectiva catastrfica dos problemas
sociais e abramos espao para o protagonismo do sujeito, como observado por Paulo
FREIRE (1999), a soluo de questes complexas como alternativas de trabalho e
renda, uso abusivo de drogas e outras questes de sade requerem investigaes de
aspectos especficos que possam orientar os gastos pblicos, justific-los e otimiz-los. Estudos epidemiolgicos da tuberculose, por exemplo, revelaram a dificuldade
de penetrao das intervenes de sade nos interstcios da rua, acessados
principalmente por grupos voluntrios itinerantes que eventualmente contam com
profissionais de sade e pelo ainda insuficiente programa A gente na rua vinculado
ao PSF Programa de Sade da Famlia.
13 Campo - Reunio da Associao Vida Ativa em 22.12.06, programa para usurios de lcool e
drogas desenvolvido pelo CRATOD Centro de Referncia do uso de lcool, Tabaco e outrasDrogas, situado no Bairro bom Retiro, mantido pelo Governo do Estado.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
27/208
15
A pesquisa qualitativa envolve o estudo do uso e a coleta de uma variedade
de materiais empricos estudos de caso; experincia pessoal; introspeco; histria
de vida; entrevistas; artefatos; textos e produes culturais; textos observacionais,
histricos, interativos e visuais que descrevem momentos e significados rotineiros
e problemticos na vida dos indivduos (DENZIN e LINCOLN, 2006, p.17). Os
poemas de Elisabete (MOTA, 1986; 1987), por exemplo, refletem situaes de rua na
sua tica particular. So em grande parte sofridos, mas apresentam suas reflexes
sobre o prprio sofrimento e os sofrimentos que assistiu enquanto morou na rua.
Benedito conta suas histrias na sua msica, explicitando os altos e baixos de sua
trajetria de morador de rua em CDs de edio limitada, produzidos com a ajuda de
amigos. Xester se apresenta atravs de suas esculturas expostas na USP, na SoMarcos, etc.... Cada um deles apresenta uma identidade social criteriosamente
construda e se reservam ao direito de ocultar traos de personalidade e histrias de
vida que no lhes convm divulgar. Portanto, cabe ao pesquisador ajuntar
fragmentos e buscar na interao com o indivduo as informaes necessrias para o
entendimento das questes investigadas em toda a sua complexidade.
Na medida em que nos aproximamos da pessoa, a percebemos como sujeito
de sua historia e com um posicionamento histrico consciente. Adotamospreferencialmente o termo sujeitoem vrios lugares do texto utilizando o conceito
familiar rede de articulao social da populao de rua. Com a ajuda de
intervenes articuladoras de organizaes e indivduos que incentivam o
desenvolvimento de uma conscincia crtica diante da realidade, a populao de rua
vem se organizando coletivamente. Pequenos grupos de catadores se agrupam em
espaos compartilhados a exemplo das cooperativas organizadas com o suporte de
organizaes sociais da sociedade civil e que hoje contam com recursos federais paraprojetos de interesse coletivo. Na populao de rua observamos a formao de
grupos reivindicatrios que constituram um movimento social com penetrao na
esfera federal e atuao concreta no processo de criao de uma poltica nacional
para sua incluso social.
No contato individual, a interao proporcionada por este estudo revela este
protagonismo na autorizao das entrevistas ao justificarem sua concordncia: um
de nossos informantes, 45 anos, concedeu suas entrevistas acreditando que sua
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
28/208
16
contribuio pode ajudar a melhorar a vida de outras pessoas; ele se refere com
orgulho sua militncia em Recife nos perodos da ditadura militar quando ainda era
uma criana de aproximadamente 12 anos: o movimento todo gostava de criana,
tudo que olheiro. Ele percebe o papel ativo de quem contribui com um
conhecimento acumulado no somente pelas prprias experincias, mas tecendo
comentrios crticos sobre a fala de psiquiatras, religiosos e terapeutas de instituies
que o atendem ou atenderam devido ao histrico de bebedor abusivo com severos
comprometimentos da sade. Outro entrevistado, 40 anos, falou de aspectos de sua
histria e apresentou um recorte de jornal que divulgava um livro autobiogrfico de
um jogador de futebol que passara dificuldades semelhantes s suas na infncia e
juventude. Sua histria daria um livro e ele queria se certificar que ela no seriausada para este fim sem que ele recebesse os devidos crditos: autorizo se for a fim
de ajudar outras pessoas, se for com fins lucrativos, eu no autorizo. Ele participava
de um grupo de gerao de renda com fins teraputicos e tinha plena conscincia que
os ganhos auferidos com o trabalho artesanal eram demasiadamente inferiores ao
ganho que ele teria com o fornecimento de cocana a antigos clientes. A participao
em um livro poderia ser uma sada para a questo econmica.
O tema da explorao da imagem do morador de rua tambm foi trabalhadopelo cineasta Evaldo Mocarzel com o filme Margem da Imagem dando
visibilidade a moradores de rua que olham para si mesmos e olham para a cidade
sua volta se posicionando diante do abismo entre os dois contextos, s vezes,
intransponvel.
As pessoas entrevistadas concordaram com a pesquisa atravs de registro de
voz ou assinatura do termo de consentimento. Quando nos referimos a declaraes
pblicas, como o caso de Anderson, lder do movimento dos moradores de rua,mantivemos o nome verdadeiro conferindo-lhe o crdito da fala. Quando nos
referimos a declaraes do sujeito enquanto objeto de pesquisa, usamos nomes e
referncias fictcias visando proteger sua identidade. Quando, no trabalho de campo,
observamos a dinmica de malocas ou grupos de moradores de rua, nos
apresentamos enquanto pesquisadores a todas as pessoas que espontaneamente
fizeram algum relato, nos abstendo porem de perguntas e direcionamento
investigativo a priori. Nestes momentos mantivemos a interao com uma postura
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
29/208
17
emptica, deixando o sujeito livre para se expressar ou se afastar quando lhe fosse
mais conveniente. Esta espontaneidade nos convida a reconhecer suas experincias e
conhecimentos e eventualmente cit-los.
Denzin e Lincoln associam o pesquisador qualitativo ao bricoleur, ou seja, ele
como um confeccionador de colchas ou um improvisador de jazz. Esse
confeccionador costura, edita, rene pedaos da realidade, um processo que gera e
traz uma unidade psicolgica e emocional para uma experincia interpretativa
(ibidem, p.19). O processo interativo na pesquisa qualitativa revela a preocupao
do sujeito com os processos interpretativos e com a verdade veiculada sobre ele e
sobre as suas representaes. A validao da pesquisa dada pelo prprio sujeito e
cabe ao pesquisador utilizar os recursos disponveis e adequados para conferir-lhecredibilidade. Anderson critica o rtulo atribudo por pesquisadores: eu no sou
objeto de pesquisa, mas menciona com certo orgulho: fao parte de 6 mestrados,
se referindo s pesquisas que exploraram suas experincias e suas idias 14.
Depois de algumas vezes que estvamos indo ao Ptio do Colgio no final da
tarde, os agentes sociais da prefeitura se aproximaram suspeitando que estivessem
sendo vigiados. Quando compreenderam que no era esse o nosso intuito, sentiram-
se vontade para externar seus sentimentos. Uma de suas colocaes se relacionava presso da prpria prefeitura e das pessoas que os telefonam, identificadas como
contribuintes, para tirar os moradores de rua de lugares pblicos de grande circulao
e reas residenciais sem ter vagas suficientes para todos os atendimentos realizados.
De fato o grupo de agentes sociais estava estacionado no local. Suas informaes
contrariavam o discurso oficial do poder pblico, que transfere o problema para o
morador de rua salientando o ndice de recusa por albergamento, recorrentemente
utilizado para amenizar a presso da imprensa: as pessoas que ainda resistem einsistem em permanecer nas ruas acabam sendo vitimadas todos os dias por violncia
das mais diversas. Por essa razo, temos feito um trabalho articulado para no
permitir que as pessoas durmam embaixo dos viadutos, em praas nem utilizem
espaos pblicos de forma indevida 15. Os agentes, ao contrrio, mostravam
14Representante do Movimento Nacional dos Moradores de Rua, morador do albergue Lar de Nazar,discursando como convidado no Seminrio Nacional Populao em Situao de Rua, na UniversidadeFederal de So Carlos em 14.12.08.15
Nota da Secretaria Municipal de Assistncia e Desenvolvimento Social. Folhapress. Jornal Folha deSo Paulo. So Paulo: 29.01.2007.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
30/208
18
respeito com o morador de rua, demonstrando conhec-lo e especificamente, naquele
dia, preocupados com o plano de utilizao de fora policial para a transferncia de
moradores de rua do centro para a periferia da cidade, na semana seguinte 16.
Do ponto de vista interpretativista, para que uma determinada ao social
seja entendida (...), o investigador deve compreender o significado que constitui esta
ao (...) com o sistema de significados ao qual esta pertence (SCHWANDT, 2006,
p.193). Segundo Schwandt, a compreenso interpretativa tradicionalmente
definida pela identificaoemptica, pela sociologiafenomenolgicae pelos jogos
de linguagem, que tm em comum os seguintes aspectos: a) consideram a ao
humana significativa; b) evidenciam um compromisso tico na forma de respeito e
de fidelidade em relao experincia de vida; e c) a partir de um ponto de vistaepistemolgico, compartilham do desejo neokantista de enfatizar a contribuio da
subjetividade humana (ou seja, da inteno) em relao ao conhecimento sem
sacrificar, desse modo, a objetividade do conhecimento (p.197).
Revisamos os referenciais tericos a partir das primeiras leituras etnogrficas
da rua e voltamos ao campo com um novo olhar, criando novos contextos
relacionais. O trabalho de campo realizado compreendeu: visitas baixada do
Glicrio no bairro da Liberdade, Ptio do Colgio no centro, atual cracolndia nobairro da Luz e regies circunvizinhas; entrevistas em profundidade e
acompanhamento de pelo menos uma dezena de moradores de rua ao longo do
perodo da pesquisa; visitas a instituies sociais da regio central da cidade; e
depoimentos de informantes de outros contextos como igrejas, clnicas e
estabelecimentos comerciais. Atravs da participao de eventos envolvendo
moradores de rua e uso de psicoativos, estreitamos o relacionamento com ex-
usurios de drogas de outras categorias sociais e com adeptos do uso ritualstico depsicoativos no contexto xamnico e religioso, de forma complementar ao plano de
pesquisa original.
Nas observaes de campo levantamos a dinmica interna de grupos de
moradores de rua, prioritariamente aqueles que se instalaram sob o viaduto do
16Acompanhamos o processo de utilizao de fora policial para a remoo de moradores de rua darea central da cidade nas Operaes Cracolndia de 2005 e em operaes do Rapa durante o
recolhimento de pertences encontrados nos agrupamentos onde vivem. Outros episdios destanatureza tambm foram relatados durante as entrevistas.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
31/208
19
Glicrio. Os grupos de moradores de rua que fazem uso de bebidas alcolicas ou
drogas se renem em espaos degradados, preferencialmente em reas protegidas das
intempries, e se fixam temporariamente nestes espaos, alternando-os com outros
que sejam mais convenientes em cada momento. O termo maloca que identifica
este tipo de espao, normalmente seguido de alguma denominao que distingue
uma maloca da outra, como referncias ao local ou s pessoas que a compem.
O trabalho de campo incluiu a aproximao de pessoas alcoolizadas, o que
requer uma anlise interpretativa do contedo simblico e reaes emocionais do
sujeito, em relao ressignificao de sua trajetria de vida ou fixao em
determinados papis, orientados a partir das relaes institucionais ou com a
sociedade em geral. Quanto ao uso de drogas ilcitas principalmente, nosdefrontamos com grupos e pessoas que evitam os questionrios e entrevistas, ou
como afirma Roman: que se resisten a ser penetradas por los mtodos clssicos de
la encuesta epidemiolgica o sociolgica (ROMAN, 1999, p. 155), sendo
necessrio uma relao emptica com os sujeitos, com a postura de pesquisador
camarada (SNOW e ANDERSON, 1998).
Na constituio da amostra da populao pesquisada, buscamos contemplar
diferentes faixas etrias, relaes de gnero, diferentes formas de vinculao com abebida ou drogas e diferentes tipos de relacionamento e dependncia institucional.
Estes critrios foram utilizados nos momentos de priorizar alguns indivduos quando
encontrvamos diante de agrupamentos com maior nmero de pessoas. Em relao
s diferentes formas de vinculao com as bebidas ou drogas, abordamos usurios
permanentes, usurios espordicos, ex-usurios e no usurios. Identificamos como
usurios, aquelas pessoas fazem o uso regular, de forma a comprometer ou no suas
relaes de sociabilidade, sua disponibilidade para o trabalho e sua sade. Estaspessoas costumam se identificar como alcolatras, como dependentes, como viciadas
ou simplesmente como tendo a substncia como um problema na sua vida. Outras
fazem uso regular, mas no apreendem este uso como problemtico. O segundo
grupo que referimos como usurios espordicos, constituem aqueles indivduos que
desenvolveram algum tipo de controle sobre o uso. Os ex-usurios so aqueles que
j beberam ou usaram outras drogas em algum momento da sua vida, mas no o
fazem h mais de um ano, requerendo alguma estratgia para garantir o autocontrole.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
32/208
20
No usurios so aqueles que no fazem uso e no reportam nenhuma estratgia
especfica para manter o autocontrole.
Procuramos ainda explorar a opinio de no moradores de rua, que ocupam
papis sociais definidos no cenrio da populao de rua, como religiosos, assistentes
sociais, tcnicos do poder pblico, profissionais de sade, polcia militar,
empresrios, voluntrios e catadores de materiais reciclveis organizados. No
pretendemos abordar o uso de todos os psicoativos usados entre moradores de rua,
mas to somente estudar as funes e significados do uso de bebidas alcolicas e
outras drogas que apareceram nos depoimentos, mesmo que no seja usado pelo
informante, mas do qual ele tenha conhecimento.
Atravs das entrevistas procuramos identificar as formas de uso de bebidasalcolicas e/ou drogas, motivaes, perdas e ganhos com o uso, e as funes e
significados do uso individual e coletivo, explorando de maneira geral, as seguintes
questes: intensidade e carter cumulativo de experincias desestruturantes;
trajetrias para a situao de rua e para o uso; estratgias de sobrevivncia na rua;
ritualidade e circuitos no uso; mecanismos de controle do uso; relaes de
sociabilidade e dependncia; aproximaes e distanciamentos da estrutura social
atravs do trabalho e do uso; posio identitria do sujeito e do grupo em que seencontra; e reatividade do sujeito e do grupo em relao ao seu status social.
As perdas e rupturas no mbito das relaes familiares e sociais geram
lacunas afetivas ou conduzem a perdas de vnculos trabalhistas que marcam
igualmente a trajetria de vida por abalar a sustentao econmica do individuo.
Vo delineando carncias e um distanciamento da estrutura social. As pessoas que
esto nas ruas so categorizadas como mais ou menos cados. Os mais cados
so assim, aqueles que esto permanentes sujos, alcoolizados, que apresentamalteraes comportamentais e que por isso mesmo so rejeitados nas mesmas
instituies pblicas destinadas ao atendimento deste pblico.
Trabalhamos com indivduos que esto fixados em malocas e com pessoas
que circulam mais livremente na rua em torno de um ponto de encontro ou de
servios itinerantes como a distribuio de alimentao por grupos caritativos e a
oferta de vagas em albergues pblicos. As experincias de imerso no meio social
que est sob investigao permitem maior aproximao ao sujeito. No
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
33/208
21
acompanhamento de malocas do Glicrio, aprofundamos o contato com sujeitos
historicamente estabelecidos na rua, e sobre os quais temos registros documentais
anterior ao perodo desta pesquisa, o que nos permitiu ampliar a leitura longitudinal
dos significados do uso das bebidas alcolicas e drogas. So pessoas com vnculos
antigos com organizaes sociais, que passaram por vrios padres de consumo
destas substncias ao longo do tempo e ainda moram na rua. O trabalho de campo
tambm nos conduziu a indivduos mais jovens recm chegados rua e com perfil de
maior intinerncia.
Como contra referncia s entrevistas com coordenadores e freqentadores de
albergues, organizaes de catadores de materiais reciclveis, profissionais de sade,
usurios ou ex-usurios de drogas, consideramos os depoimentos de pessoas deoutros contextos sociais: empresrios, estudantes e religiosos que tiveram ou tm
contato com as drogas ou com usurios. No nos detivemos na ampliao ou
sistematizao destes depoimentos, mas buscamos to somente identificar diferentes
representaes dos usos e dos usurios procurando ultrapassar os discursos
construdos sob o enquadramento biomdico que o sujeito reproduz para quem os
assediam em troca de respostas bvias, como o rol de perdas em conseqncia das
drogas ou identificaes com rotulaes externas.A observao participante implica, como elemento indissocivel da
etnografia, na aproximao do objeto de estudo captando a experincia do sujeito no
exerccio da alteridade. Valorizamos mergulhos em situaes do cotidiano do sujeito
como as repetidas tentativas de Vieira para o emboo de uma parede em construo.
O seu esforo para se igualar a outros profissionais da construo civil ocultava suas
limitaes individuais. A frustrao repetida por no concluir a tarefa num tempo
satisfatrio indicava naquele momento uma varivel adicional ao stress que precediaacessos de fria e uso de bebidas alcolicas. O acesso de fria observado aps o uso
de cocana ou crack em outras pessoas, depois de algum perodo de abstinncia,
revelava a transio entre estados de humor associados a dificuldades de
relacionamento e adaptao a um estilo de vida no qual se sentiam inferiorizados.
Nestes casos, observamos que as variaes dos estados de humor apresentam alguma
semelhana na sua expressividade independentemente da droga utilizada e das
formas de utilizao, e podem estar associadas s relaes cotidianas no habitat
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
34/208
22
natural do sujeito.
A utilizao de mtodos qualitativos permite, portanto, a apreenso de
processos complexos atravs da concatenao de diferentes contribuies do campo
e de registros documentais. A busca de significados a que este estudo se prope
procurou ampliar a manifestao de necessidades individuais e coletivas, s vezes
no compreendidas ou adequadamente verbalizadas. Os relatos de seis usurios de
outras categorias sociais, com recursos de formao acadmica consolidada, tambm
serviram de referncia para uma melhor compreenso de estados performticos
revelados na etnografia.
Ao procurar avanar nesta rea, lanamos mo da multi e
interdisciplinaridade, articulando recursos da psicologia para aprofundar nas funesdos estados alterados de conscincia e na sua relao com as situaes de
liminaridade reveladas pelo vis antropolgico.
Os estados alterados de conscincia
Ademir, homem, por volta de 50 anos, distinguia entre perodos queficava na maloca e bebia permanentemente, e perodos em que ficava sbrio,
circulava pela cidade, cuidava da sade e se vinculava a programas
institucionais de assistncia como albergues e ncleos de servios. Uma vez
distanciado da maloca e vinculado a instituies de assistncia, costumava dizer:
l um outro planeta, s vezes eu estou aqui, s vezes eu estou l. Acabou
morrendo l, em conseqncia da degradao da sade 17.
O trabalho etnogrfico revela que o aqui e agora do sujeito que vive nas
ruas suscita dinmicas especficas na suas relaes consigo mesmo e com a
sociedade, segundo parmetros econmicos, morais, religiosos, polticos,
emocionais. As anlises macro sociais da complexidade e dinamismo dos
fenmenos urbanos nos leva a pensar a realidade em geral, mas particularmente a
sociocultural, como composta de mltiplos domnios ou realidades (VELHO,
17Morador da maloca do Glicrio.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
35/208
23
1995). Sob a perspectiva do estilo de vida urbano e da modernidade, marcados pela
no linearidade e multidimensionalidade, Gilberto Velho considera os estados
alterados de conscincia como modalidades possveis de conscincia, produtos e
produtoras de conjuntos de significado singulares.
De maneira geral, as pessoas transitam por diferentes estados de percepo da
realidade e de si mesmos, em diferentes momentos da vida, que podem ou no estar
associados ao uso de substncias aditivas, mas no caso da populao de rua, este uso
inerente situao em que vivem. Quando se liberam de compromissos familiares
e obrigaes sociais, podem vagar livremente no anonimato da rua e imergir em
bolhas emocionais ou lembranas fixadas na memria, adotando posturas
psicologicamente regredidas e padres comportamentais alterados em relao aocontexto do presente.
Consideremos as alteraes comportamentais de Mrcia, hoje com mais de
trinta anos. Enquanto estvamos num grupo de moradores de rua, ela observava o
Roberto, vindo de um grupo que fazia doaes na rua, com um novo par de tnis nos
ps e outro na mo. Comentou: muito exibido. Com o mesmo senso crtico que a
permitia distinguir traos de personalidade nos colegas, ela avaliava seu prprio
comportamento de alguns anos antes. Lembrou-se de quando aprontava nas ruas einstituies sociais que freqentava. Naquela poca no tinha acesso ao marido
preso, seus filhos estavam em instituies pblicas de tutela judicial, e ela mesma
havia passado vrios meses num presdio feminino. Costumava morar em cortios
da baixada do Glicrio e conseguia o mnimo para a subsistncia com as doaes e
atividades ilcitas como o envolvimento com batedores de carteira da Praa da S e
com os policiais que lhe cobravam propina: ficavam com a maior parte do
dinheiro!, afirmava.No passado, vivera uma revolta generalizada, como se estivesse num
confronto permanente contra foras internas e externas que lhe oprimiam. Oscilava
entre momentos de compreenso da configurao e dinmica destas foras, quando
se dispunha ao dilogo e participao de atividades comunitrias; e outros momentos
de intolerncia contra todos sua volta. Protagonizara e sofrera muitas violncias no
cenrio da rua. Ameaava as pessoas e as instituies com pedras, facas e com as
acusaes verbais. Acalmava-se com as intervenes psicopedaggicas e espirituais
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
36/208
24
de instituies religiosas e com a cola de sapateiro que usava por longos perodos.
Costumava manter um recipiente de cola sob a roupa que aspirava de tempos em
tempos, independente de onde estivesse. Circulava pelas ruas, mas sua mente
transitava em outras esferas.
No ano de 2007, seus filhos continuavam em instituies pblicas que ela
visitava com certa freqncia. Continuava morando em cortios e convivendo no
circuito da rua. Passou a ter outra idia das instituies sociais, demonstrando nova
conscincia da realidade, com uma ponta de orgulho: No venho muito aqui. Isso
vai afundando a gente. Vir aqui s para comer? tenho que me virar, n!". Para ela, o
que afunda a gente, no a instituio em si, mas a dependncia que ela pode
alimentar. Ela distinguia a postura que adotara no passado, em que se afundava e apostura que adotava nesse momento da vida, em que se virava. De fato, ainda
frequentava as instituies pblicas para tomar banho quente, para se alimentar
eventualmente e falava com orgulho da psicloga voluntria que a atendia. Tinha
conscincia e se sentia agradecida pela ajuda que recebia e a reproduzia com os
outros: segundo o seu relato, comprou um tnis de um colega, por um real 18com a
inteno de presentear o filho da sua vizinha: a gente recebe, tem que ajudar os
outros tambm, n!.As mudanas comportamentais neste caso, segundo o prprio sujeito,
ocorreram devido a mudanas nas maneiras de perceber a realidade. Os relatos
indicam diferentes estados de conscincia relacionados sensao de opresso em
situaes de carncia material e emocional, e ao uso de drogas.
Considerando um histrico emocional disfuncional e representando toda a
vida do sujeito ao longo de um eixo cronolgico desde o seu nascimento, sua
personalidade constituda por uma sucesso de planos onde se projetam as relaesestabelecidas com as pessoas e com o meio em que vive. Desta forma, a mobilidade
da conscincia do sujeito atravs de suas memrias pode conduzi-lo a perceber a si
mesmo e o mundo sua volta com as referncias de um passado que j foi ou das
expectativas de um futuro inacessvel. Antnio, por exemplo, costumava repetir:
eu sou neutro, eu me sinto neutro, o que provavelmente se relaciona com relatos de
adoo precoce, rejeio familiar e auto estima comprometida, que se mantiveram
18
uma prtica comum redistriburem os produtos de doaes recebidas, s vezes vendendo-os apreos simblicos. As instituies sociais tambm o fazem atravs dos brechs.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
37/208
25
como referenciais difceis de serem superados. Por outro lado, Evaldo vive h anos
na expectativa de uma vida abastada com os milhes que ganhar com seus
inventos 19. Outro exemplo deste deslocamento longitudinal no eixo cronolgico da
vida vem de Orlando ao rejeitar uma vaga num abrigo considerado de boa qualidade,
para ficar na rua: no gostei, (...) me lembra a Febem!.
Deslocando a abordagem desta questo para o campo dos estudos dos
fenmenos psquicos, o termo estado alterado de conscincia se refere
principalmente s alteraes decorrentes da ao psicoativa de certas substncias em
reas especficas do crebro, cujo uso se encontra disseminado em praticamente
todas as culturas ao longo de toda a histria da humanidade, como a iboga na frica,
o peyote na America do Norte, o cacto So Pedro nos Andes, a ayahuasca naAmaznia, o pio no oriente, o cogumelo na sia, e outros menos exticos,
facilmente cultivveis ou produzidos como a canabis, o tabaco, o vinho e o lcool
(JAMES, 2002; HUXLEY, 1983; OTT, 1998). O isolamento de princpios ativos em
laboratrios reduz a complexa combinao de alcalides das substncias naturais,
permitindo direcionar sua funcionalidade para a regulao do humor. Por outro lado,
trouxe as substncias alteradoras da conscincia para dentro da cincia, permitindo
estudos criteriosos sobre o comportamento humano. Desde que Albert Hoffmandescobriu o cido lisrgico LSD, vrios pesquisadores puderam estud-lo antes que
fosse proscrito como droga. GROFF (1985) ampliou a perspectiva da psicologia
transpessoal demonstrando que as vises decorrentes do uso deste psicoativo se
relacionam a padres comportamentais constitudos desde as experincias
perinatais 20. Os estudos dos efeitos da ayahuasca, substncia obtida do cozimento
de duas espcies vegetais da Amaznia, tradicionalmente utilizada por vrias etnias
da regio e incorporada em rituais religiosos surgidos no incio do sculo XX,mostraram atravs de registros eletroencefalogrficos (HOFFMAN et al, 2001), o
aumento de freqncias cerebrais alpha (8-13 Hz) e theta (4-8 Hz). Neste caso, os
19Evaldo carrega consigo os registros de patentes de inventos como o tnis carro, um tnis infantilcom luzes acionadas pelo peso do corpo, reproduzido por empresas caladistas sem a sua autorizao(sic). Comenta que acionou a promotoria pblica, mas sente o descaso do advogado. Teme que eletenha sido subornado pela fbrica para no indeniz-lo. Com a ajuda de amigos e com seus prpriosrecursos tambm construiu uma panela de presso com alarme sonoro, visual e manmetro embutidos,dentre outros inventos.20 Para Stanislav Grof, as quatro matrizes emocionais perinatais, ou seja, vivenciadas em torno do
nascimento, na gestao, pr-parto, parto e ps parto se relacionam com padres comportamentais quetendem a se reproduzir ao longo da vida.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
38/208
26
estados de conscincia alterada se assemelham a estados de meditao profunda. O
indivduo pode ter profundos insights sobre seus padres comportamentais e
aprender a integrar contedos inconscientes a um nvel mais elevado da
conscincia. Em termos neurolgicos, isto significa traz-los ao nvel neocortical,
onde os problemas podem ser processados, entendidos e integrados (ibidem).
Falar de contedos inconscientes implica tambm entrar num universo
pessoal constitudo de memrias e representaes de fatores externos internalizados
atravs das relaes familiares, de trabalho, relaes de assistncia, vnculos
religiosos e outros contatos diretos ou indiretos com a sociedade. A possibilidade de
induo a estados alterados de conscincia oferece, portanto, certa navegabilidade
nos contedos de memria e mudanas na percepo da realidade, conferindosignificados diferenciados para determinadas experincias ou para toda a vida da
pessoa. No obstante a interao qumica proporcionada por substncias alteradoras
dos estados de conscincia, focalizaremos principalmente o que esta possibilidade
significa para o sujeito. Este assunto tem sido tratado pela psicologia desde Willian
James em 1902, e tem sido amplamente discutida por cientistas sociais a partir do
uso de psicoativos culturalmente integrados em diversas sociedades.
Os estudos de alteraes da conscincia incorporam ainda fenmenosexplicitamente vinculados ao contexto religioso, como a possesso de espritos.
Reportamo-nos a estes estudos, sob a gide da Antropologia da Conscincia e da
Psicologia Transpessoal, como alternativa ao enquadramento de experincias desta
natureza ao rol dos transtornos psquicos. Independentemente da preciso dos
diagnsticos mdicos, sintomas considerados como delrios e alucinaes produzidas
pelo uso ou crises de abstinncia de drogas podem revelar aspectos da vida do sujeito
que atribuem novos sentidos ao uso destas substncias. Julio, por exemplo, descreviao terror do ataque de demnios e ele prprio se auto flagelava com queimaduras e
cortes que se transformavam em ferimentos crnicos. Uma investigao mais
aprofundada de sua vida revelou que ele foi gerado a partir do incesto entre pai e
filha, respectivamente seu pai/av e sua me. Uma interveno psicoteraputica
revelou que sua infncia foi marcada pela internalizao de julgamentos
culpabilizantes que culminaram com a sada do ambiente familiar e outras
experincias de liminaridade que o conduziram situao de rua e s drogas.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
39/208
27
Em situaes protegidas ritualisticamente, como observado nas prticas
religiosas ou com fins teraputicos, os estados alterados de conscincia permitem que
o sujeito transite pelos domnios arquetpicos, pelo inconsciente coletivo e no terreno
numinoso da metafsica. O senso comum, endossado pela biomedicina, classificaria
como alucinaes a maioria dos efeitos provocados por psicoativos como a iboga, o
peyote, a mescalina e a ayahuasca, tradicionalmente utilizados em rituais religiosos.
Como cita Escohotado cuando estos frmacos intervenienem em ceremonias
dirigidas por chamanes, otros hechiceros y sacerdotes em sentido estricto,
constituyen sustncias com virtud enteognica. O termo vem de em-theos-genos:
engendrar dentro de si al dios, generar lo divino (ESCOHOTADO,1995, p 40;
ver tambm WASSON, 1996, p.100).Tambm encontramos a referncia ao divino e ao paraso para
caracterizar os estados alterados induzidos pelo lcool e crack em depoimentos de
moradores de rua e no moradores de rua, significando experincias de xtase. Os
padres ritualsticos encontrados entre usurios de substncias psicoativas em
contextos destitudos da sacralidade do contexto religioso podem privar o sujeito dos
contedos simblicos enteognicos, entretanto no os privam da experincia notica,
conduzindo-a a outras finalidades como as de sociabilidade, amplamente referidaentre os usurios de drogas na rua e igualmente de outras categorias sociais. A
iniciao alcolica e canbica entre jovens que tiveram contato com estas substncias
na transio entre o ambiente familiar e o de bares e amigos costuma ser referida pela
apropriao de sensaes at ento desconhecidas associadas ao processo da prpria
individuao, quando rompem os cordes umbilicais que os mantinham conectados
aos pais e familiares, conferindo-lhes autonomia e capacidade de perceber a
genuinidade de si, do outro e das relaes que capaz de estabelecer na mesa dobar ou na roda de fumo.
A alterao orgnica e comportamental e as alteraes na percepo da
realidade e das realidades internas acontecem em diferentes configuraes conforme
a droga utilizada. No faremos distines analticas entre as categorias lcitas e
ilcitas, razo pela qual preferimos utilizar o termo droga de forma genrica em
algumas partes do texto. Usurios de crack so comumente discriminados pelos
usurios de lcool justificando-se o uso legal da bebida, mas a violncia e os roubos
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
40/208
28
associados ao crack so motivos mais realistas que justificam esta separao. Cabe
salientar que observamos malocas igualmente freqentadas por usurios de ambas as
substncias. Como o uso drogas ilcitas como o crack e a maconha se tornaram
comuns na rua, raramente geram prises, mas so desestimulados com posturas
ameaadoras e demonstraes de hostilidade da polcia. Desta forma, evita-se o uso
individual de forma ostensiva, mas criam-se redutos como a cracolndia, onde o
artifcio de uso coletivo funciona como ritual de sociabilidade e como estratgia para
se proteger do controle policial. Quando os policiais se aproximam, os grupos de
usurios se espalham ou se deslocam em bandos, s vezes apenas mudando para
ruas prximas 21. No contexto do estudo etnogrfico realizado, utilizamos os termos
lcool ou bebidas alcolicas, maconha ou canabis, crack e cocana, conforme asignificncia que apareceram em cada caso em particular.
Os conceitos que se referem patologizao do uso vm sendo confrontados
com o seu entendimento como um fenmeno socialmente construdo, como se
refere NEVES (2004) em relao ao alcoolismo. Cada sociedade tem colocado em
relevo os padres institucionalizados de uso das bebidas alcolicas, a variedade dos
modos de produo, de motivos e de oportunidades construdas para o ato social de
beber (p.8). Em relao ao uso em situaes liminares, SOUZA e GARNELO(2006) tambm buscam a desconstruo do alcoolismo em suas notas a partir da
construo do objeto de pesquisa no contexto indgena. Citando Langdon
(LANGDON, 2001), assume-se o compromisso terico, tico e poltico de
desconstruir a categoria alcoolismo, evitando utiliz-la no sentido do senso
comum, e tendo o cuidado de no fornecer argumentos a setores da sociedade
nacional que se utilizam desta categoria para acentuar a discriminao dos grupos
indgenas (p.280).Ao nos desvestirmos de conceitos como alcoolismo, dependncia qumica e
doena incurvel, a imerso em estados induzidos pelo uso contnuo de lcool,
maconha e crack entre moradores de rua indicam em primeiro lugar, a preferncia
21 Observamos esta dinmica em pequenos grupos, em torno de at 6 pessoas, em lugares comobaixios de viadutos na baixada do Glicrio, Parque D. Pedro, Vale do Anhagaba, Praa da S,principalmente para o uso de maconha e eventualmente para o uso de crack. A formao de gruposmaiores de usurios de crack de at 30 pessoas esto limitados a redutos especficos como as ruas emtorno da Praa Princesa Isabel, na regio da cracolndia. Pequenos grupos de usurios de crack ou
maconha aglutinados em torno de uma maloca evitam se expor protegendo-se dos olhares externoscom caixas e outros aparatos da prpria maloca.
-
7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua
41/208
29
pelos estados alterados ao invs dos estados ordinrios de conscincia. Partindo
desta possibilidade que a rua oferece, abordaremos a seguir os principais conceitos
que nos ajudaro a compreender a situao de rua.
O encanto e o desencanto da rua
Como marco da fundao da cidade, em 1554 o local situava-se numa
colina alta e plana, cercada por dois rios, o Tamanduate e o Anhangaba.
Agora, com um rio a menos, o museu e a capela ainda lembram o Colgio dos
Jesutas, hoje, Ptio do Colgio 22. Neste cenrio uma roda de pinga
alimentava o batuque nos largos degraus do monumento em honra Glria
Imortal aos Fundadores de So Paulo. Um jovem, negro, literalmente
descamisado, abreviava a parbola do filho prdigo 23: o filho saiu de casa e foi
pro mundo, comia a bolotas dos porcos, ...voc sabe o que bolotas dos
porcos... o resto, ele comia o resto, ... quando ele voltou o pai dele preparou
uma festa... 24.
Os termos moradores de rua e populao de rua, que denominam o segmento
populacional referenciado nesta investigao, encontram-se incorporados nas
recentes publicaes sobre este tema na cidade de So Paulo (GIORGETTI, 2006; _
2007; ROSA, 2005; VIEIRA e col., 2004; VARANDA e ADORNO, 2004;
ALVAREZ, 2003; LOSCHIAVO, 2003; SAS/FIPE, 2003a, 2003b). A identidade
social da populao de rua emerge a partir dos levantamentos scio-demogrficos, de
suas histrias, de suas expresses na cidade sob distintas perspectivas pelas quais sopercebidos: da biomdica e demogrfica, da assistncia social, da religiosa e da tica
e cidadania.
Estaremos nos referindo, portanto, s pessoas sem moradia fixa, sem renda
definida e suficiente sobrevivncia, que vivem nas ruas com doaes, renda de
22 Encontramos a referncia geogrfica no site da prefeitura (PMSP, 2008) e referncias heranacultural e religiosa dos jesutas em Gambini (2000).23
Evangelho de So Lucas da Bblia Crist captulo 11, versculo 11 e seguintes.24Campo - Relatrio da visit