VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcoólicas e Outras Drogas – Funções e Significados Entre...

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Universidade de São Paulo Faculdade de Saúde Pública Liminaridade, bebidas alcoólicas e outras drogas: funções e significados entre moradores de rua Walter Varanda Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública para obtenção do título de Doutor em Saúde Pública. Área de Concentração: Saúde Materno-Infantil Orientador: Prof. Dr. Rubens de C. F. Adorno São Paulo 2009

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    Universidade de So Paulo

    Faculdade de Sade Pblica

    Liminaridade, bebidas alcolicas e outras drogas:

    funes e significados entre moradores de rua

    Walter Varanda

    Tese apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Sade Pblica para obteno

    do ttulo de Doutor em Sade Pblica.

    rea de Concentrao: Sade Materno-Infantil

    Orientador: Prof. Dr. Rubens de C. F. Adorno

    So Paulo

    2009

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    Liminaridade, bebidas alcolicas e outras drogas:

    funes e significados entre moradores de rua *

    Walter Varanda

    Tese apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Sade Pblica da

    Faculdade de Sade Pblica da

    Universidade de So Paulo para obteno do

    ttulo de Doutor em Sade Pblica.

    rea de Concentrao: Sade Materno-Infantil

    Orientador: Prof. Dr. Rubens de C. F. Adorno

    So Paulo

    2009

    * Esta verso inclui correes e reformatao da verso original que se encontra na biblioteca da

    Faculdade de Sade Pblica / USP.

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    III

    queles que mergulham nas sombras mas acreditam na luz.

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    IV

    AGRADECIMENTOS

    minha famlia, pelo suporte, incentivo e compreenso.

    Ao meu orientador, uma mente brilhante.

    Aos mestres que me confiaram segredos.

    Aos agentes sociais que partilharam suas experincias.

    Aos agentes de sade que me mostraram sanidades possveis.

    Aos amigos do poder pblico que nutrem a sensibilidade e a razo.

    Aos colegas que explicitam os desafios da modernidade.

    s freiras beneditinas que me abriram portas para ruas.Aos colaboradores, que trazem na memria da alma o conhecimento da

    dignidade que se revela na prpria vida e na vida dos outros, independentemente

    do local e do estado em que se encontram.

    queles que me mostraram a pacincia e a resistncia no testemunho do

    sofrimento encontrado nas ruas e no mundo das drogas, e do pistas para a

    reformulao de polticas pblicas que considerem o direito sanidade.

    Aos amigos da Ayahuasca e do Santo Daime que me mostraram as portas

    de um universo visvel aos olhos da alma, que pulsa e irradia uma luz que incendeiao corao com o fogo de Deus. Especialmente queles que me mostraram suas

    intersees com o uso das drogas.

    Ashoka, OAF e AMRMC que possibilitaram minha insero na rua e o

    aprimoramento de tecnologias de intervenes sociais, despertando o interesse

    pelos registros e reflexes sobre as experincias dos moradores de rua.

    FSP/USP que acolheu este estudo.

    FAPESP que o viabilizou.

    ... aqueles que podem ser nominados pelo incentivo, pareceres, ajuda

    tcnica, acadmica, emocional e espiritual, eu incluo em minhas preces, um pouco

    por dia, j que so tantos.

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    RESUMO

    O uso de bebidas alcolicas e outras drogas atinge a maioria dos moradores

    de rua na cidade de So Paulo e assume funes e significados inerentes situao de rua, entendida como situao de liminaridade social. A etnografia

    revelou trajetrias individuais, dinmicas de grupos de moradores de rua e sua

    interao com as redes pblicas de assistncia, caracterizando o lcool e drogas

    nos circuitos da rua enquanto recursos de sobrevivncia e operadores de

    processos reativos diante da situao de apartao social. Utilizamos anlise

    documental, observao participante, e entrevistas com moradores de rua,

    coordenadores de instituies sociais e informantes de outros contextos sociais. O

    uso de lcool e drogas refora estigmas de culpabilidade e penalizao daspessoas pela situao em que se encontram, reproduzidos nas relaes com as

    instituies pblicas de apoio, referncias miditicas e nas justificativas das lacunas

    das polticas pblicas. Este uso, abusivo ou no, atua de forma preponderante na

    mediao das relaes sociais e de sobrevivncia na rua e, alm disso, permite o

    alvio do sofrimento fsico e psquico, alm da navegabilidade nas memrias

    emocionais atravs de processos regressivos e experincias de si em estados

    alterados de conscincia. Entender este uso sob a perspectiva da liminaridade

    permite o deslocamento analtico do agente patognico e da vulnerabilidade

    individual para o drama social que o sujeito vivencia. Tendo em vista os dramas

    vividos, o uso de drogas construdo sob o sistema de crenas e representaes

    do sujeito, passvel de ressignificaes nos processos de autoconhecimento,

    desenvolvimento da autonomia e do autocontrole.

    Palavras chave: lcool. Drogas. Liminaridade. Moradores de rua. Estados

    alterados de Conscincia.

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    VI

    Varanda, W. Liminality, alcohol and other drugs: functions and meanings

    among the homeless. Doctoral thesis. Faculty of Public Health of the

    University of So Paulo, Brazil. So Paulo; 2009.

    SUMMARY

    The use of alcohol and other drugs affect the majority of the residents of the streetsin the city of So Paulo and assume functions and meanings inherent to the

    situation in which they are, understood as situation of social liminality. The

    ethnography showed individual trajectories, dynamics of groups of homeless and

    their interaction with the networks of assistance, characterizing the alcohol and

    drugs on the street circuits as resources for survival and operators of reactive

    process against the social apartheid. We used documental analysis, participant

    observation, and interviews with residents of the streets, coordinators of social

    institutions and informants from other social contexts. The use of alcohol and drugsincreases the stigma of guilt and punishment of people for their situation. These

    appear in relations with help public institutions, references in the media and

    justifications of the shortcomings of public policies. This use, abusive or not, serves

    mainly in the mediation of social and survival relationships on the street and,

    moreover, allows the navigability in emotional memories through regressive

    processes, relief of suffering, both physical and mental, and experiences with the

    selfin altered states of consciousness. Understanding this use from the perspective

    of liminality allows the displacement analysis of pathogen and the vulnerability of thesubject to the social drama experienced. In view of these dramas, drug use is built

    under the system of beliefs and representations of the subject, which can be

    reconfigured by the development of consciousness, autonomy and self-control.

    Keywords: Alcohol, drugs, liminality, homeless, consciousness.

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    NDICE

    1 INTRODUO 1

    MTODOS DA INVESTIGAO............................................................................. 13OS ESTADOS ALTERADOS DE CONSCINCIA........................................................ 22OENCANTO E O DESENCANTO DA RUA............................................................... 29

    2 A ESTIGMATIZAO 45

    ASITUAO DE DESVIO..................................................................................... 51

    EXPERINCIAS DESESTRUTURANTES.................................................................. 55DOENA OU CONFORTO ..................................................................................... 60

    3 AS MEMRIAS 68

    AMEMRIA INDIVIDUAL.................................................................................... 71AMEMRIA COLETIVA....................................................................................... 79IDENTIDADES E SEXUALIDADES......................................................................... 85

    4 OS CIRCUITOS DA RUA 92

    CDIGOS E PRINCPIOS..................................................................................... 103RITUAIS DE USO E FUNCIONALIDADE................................................................ 113

    SACRAMENTOS E SIGNIFICNCIA..................................................................... 1255 A EXPANSO DE SI 134

    OS (CURTOS)CIRCUITOS DA DROGA................................................................. 139OCIRCUITO RELIGIOSO.................................................................................... 148OCAMINHO INICITICO DO SANTO DAIME ...................................................... 152

    6 OS ENFRENTAMENTOS 164

    INTERVENES E CONTROLE SOCIAIS............................................................... 169DO CENTRO COMUNITRIO AO EGO ............................................................... 176ASADA PELOS PRINCPIOS............................................................................... 182

    7 CONSIDERAES FINAIS 185

    8 REFERNCIAS 188

    9 DADOS CURRICULARES 195

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    APRESENTAO

    Antes de tudo devo confessar que sou um engenheiro, psiclogo, que se

    arriscou a fazer um estudo com as contribuies da antropologia da performance, o

    que explica certo distanciamento dos cnones acadmicos e o referencial terico

    difuso.

    O objetivo foi justamente descolar a questo lcool e drogas da esfera

    individual e da materialidade pragmtica qual eu me acostumara como

    coordenador de programas sociais, procurando entend-la como um fenmeno

    coletivo de interesse da sade pblica, estudando a ambigidade liminar de seus

    significados no nvel mais elementar da anti-estrutura: a populao de rua.

    A o sujeito se liberta e se autonomiza no uso. A transformao da auto

    imagem de decado na busca do sentido de si no mundo, na economia da carncia

    e contextos de cidadania e solidariedade, por si s um drama.

    Este foi o nosso esforo, disso trata este texto 1.

    1 O texto apresentado banca examinadora em abril de 2009 foi acrescido de notas de rodap que

    atualizam alguns dados com o resultado do censo da populao de rua da cidade de So Paulorealizado entre setembro de 2009 e abril de 2010.

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    1 INTRODUO

    Nas noites de inverno mais rigorosas de 1991, uma fila de moradores de

    rua se formava na descida da ladeira da Rua Riachuelo e embicava numa

    pesada porta de madeira, que um dia fora a entrada dos fundos do anfiteatro do

    mosteiro dos franciscanos. Subiam-se alguns lances de escada e dava-se no

    palco, que servia ento como guarda volumes para as sacolas dos moradores de

    rua que iam chegando para fugir do frio. Do palco via-se todo o salo frente,

    vazio, com duas lmpadas improvisadas pendentes do teto. Por uma escadinha

    de madeira descia-se do palco ao salo que antes fora platia e naquele

    momento servia de assoalho para dezenas de colches que eram espalhados no

    cho. Um ch quente com bolachas aquecia o estomago. Apesar da

    precariedade, eventualmente alguns ficavam de fora, por chegarem muito tarde

    ou ainda devido a brigas. O Luizo chegou a colocar fogo na porta, certa vez.

    Alguns ficavam mais agressivos com a bebida, mas havia cdigos atravs dos

    quais se podia negociar uma convivncia pacfica. Conhecer estes cdigos,

    oriundos de diferentes linhagens regionais, econmicas, educacionais, religiosas

    e prisionais, era um desafio para os cuidadores de planto. Os voluntrios da

    noite deitavam-se perto das bagagens e os despachavam pela manh, estes

    voltavam s suas casas e os outros s ruas. Eu estava no primeiro grupo.

    Nesta introduo procuraremos contextualizar e delinear nosso objeto de

    estudo nos referindo ao lcool, s drogas e liminaridade, orientando-nos pelo

    alinhamento cronolgico que se iniciou a partir de meus primeiros contatos com

    moradores de rua de So Paulo, passando pelas experincias com psicoativos e

    apresentando ao final a estruturao temtica do texto.

    Reportando-nos Antropologia da Performance, a cena acima evoca a

    representao da trajetria de vida tpica do morador de rua. porta, recebia um

    crach que havia sido feito desde a primeira vez que ele havia ido ao local e que

    garantia o acesso ao abrigo. Como um dia fora rotina na sua vida, tinha um nome,

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    era reconhecido pela sua histria. Uma vez no recinto, subir as escadas, evocava sua

    trajetria de desenvolvimento intelectual, profissional e social. Alguns como o Rui,

    que ainda hoje transita pelo Largo So Bento, subiam com um grande saco

    pendurado nas costas. Havia os que precisavam de ajuda para vencer as escadas e os

    que ajudavam os colegas na subida. Outrora, brilharam no palco da vida: como filho,

    me, marido, amante, profissional... A maioria j havia passado pelo papel de

    provedor ou por perodos de sobrevivncia autnoma. As rupturas com o contexto

    familiar e profissional os tornaram dependentes. O cenrio Franciscano e a

    linguagem Beneditina das freiras que coordenavam o trabalho indicavam o contexto

    religioso, precursor assistncia social em suas vidas. Sair do palco para a platia,

    descer alguns degraus, evocava, ainda dentro desta leitura simblica, a transioentre uma posio ativa com alguma representatividade na sociedade a uma posio

    passiva. Ou reativa, na medida em que isto seja possvel na situao de liminaridade

    social.

    A trajetria para a situao de rua, na vida de cada um, um processo

    complexo que comumente envolve o uso de bebidas alcolicas antes, durante ou

    depois do movimento para as ruas, entre a maioria da populao de rua. No salo da

    Rua Riachuelo, os mais alcoolizados precisavam ser ajudados para no cair daescada. Ao longo dos anos seguintes, os servios de apoio desenvolvidos atravs da

    iniciativa de instituies religiosas e sociedade civil foram se transformando numa

    rede de albergues e casas de convivncia, parcial ou integralmente mantidos com

    recursos municipais. Havia uma ameaa permanente de mortes de moradores de rua,

    principalmente nas noites mais rigorosas do inverno, que indicavam a

    vulnerabilidade desta populao. A populao de rua saltou de 3.392 em 1991 para

    10.394 em 2003 (VIEIRA et al, 2004; SAS, 2003), e hoje estimada em mais de12.000 pessoas 2, onde o uso de lcool e outras drogas vem sendo tratado como

    problema comportamental, de ordem moral ou como doena.

    Os dados subsidirios para as polticas pblicas nesta rea, segundo as fontes

    oficiais, so preponderantemente estatsticos no revelando a natureza e

    complexidade do problema. Segundo o Estudo dos Usurios dos Albergues

    2 O censo da populao de rua da cidade de So Paulo, realizado pela FIPE em 2009 a pedido da

    Secretaria da Assistncia e Desenvolvimento Social da Prefeitura Municipal, revelou 13.666 pessoasnesta situao: 6587 vivendo nas ruas e 7079 em abrigos pblicos.

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    Conveniados com a Prefeitura 50% dos albergados declararam ter feito uso

    continuado de lcool durante a vida e 24% afirmam ter usado drogas

    (SMADS/FIPE, 2006). O estudo indica que o uso de droga est associado com o

    estrato mais jovem. Entre os que afirmam fazer ou ter feito uso contnuo de droga,

    40% so jovens (de 18 a 29 anos), 26% so adultos e 9% so adultos mais velhos. J

    o uso do lcool associado aos mais velhos: 52% dos adultos (de 30 a 54 anos);

    49% dos adultos mais velhos (55 anos ou mais); e 34% dos jovens. Estes nmeros

    so mais elevados, quando se considera a populao de rua no albergada 3. A

    pesquisa nacional sobre a populao em situao de rua (MDS/META, 2008) sugere

    maior incidncia do uso abusivo de lcool e drogas entre 35,5 % dos entrevistados da

    pesquisa nacional de 2007, que alegaram este como o principal motivo pelo qualpassaram a viver e morar na rua. Os outros motivos citados: desemprego e

    desavenas familiares situam-se entre 29,8 % e 29,1 % respectivamente.

    Nestes documentos no se questiona at que ponto estes dados refletem

    diferentes representaes sociais e estigmas em relao ao uso, reforando o

    paradigma biologizante da intoxicao. A perspectiva medicalizante se evidencia em

    abordagens oficiais da Secretaria Nacional Antidrogas, segundo a qual, entre os

    brasileiros, de maneira geral, 52 % podem ser classificados como bebedores(SENAD, 2007), mas praticamente metade dos bebedores (27%) faz uso na classe

    ocasional ou raro e a outra metade (25%) faz uso de pelo menos 1 vez por

    semana (p.72). Do total da populao com 18 anos ou mais, 3% disse ter

    problemas de uso nocivo 4 e 9% de dependncia 5 [notas do texto] (p.75). Ainda

    segundo o texto do SENAD, uma das implicaes dessa prevalncia de 12 % que

    3Como parte do estudo solicitado pela prefeitura de So Paulo FIPE em 2009 (concludo em abril de

    2010), a Caracterizao Socioeconmica da Populao de Moradores de Rua da rea Central de SoPaulo revelou que o consumo de lcool e/ou drogas bastante significativo, pois 74,4% fazem usode um ou de ambos. Foram discriminados os tipos de substncias consumidas: bebida alcolica, 65%;crack, 27,3%; maconha, 21% e cocana, 11,8%. Muitos j faziam uso de algumas dessas substnciasantes mesmo de chegar situao de rua, o que pode ter sido tambm um fator desencadeador dosproblemas subseqentes de desestruturao familiar, perda de emprego, perda da moradia.Independentemente das causas, alta a proporo dos que esto nas ruas atualmente e que declaramsem qualquer constrangimento, que fazem uso de lcool e drogas como algo incorporado em seushbitos (p.8).4Segundo a nota do texto Uso nocivo um padro de consumo de lcool considerado prejudicial doponto de vista fsico, psicolgico ou social e que no preenche os critrios de dependncia.5Segundo a nota do texto Dependncia um padro de consumo de lcool onde alm do consumoexcessivo existam adaptaes neurofisiolgicas ao lcool significativas. Apresenta vrias

    manifestaes como sintomas de abstinncia do lcool e necessidade de beber apesar dasconseqncias negativas.

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    parte substancial dessas pessoas necessita de alguma forma de tratamento. Elas

    apresentam um diagnstico mdico de uso nocivo ou dependncia e portanto, j

    padecem de uma condio mrbida, que requer ao do sistema de sade (p.75). A

    vinculao de aes do sistema de sade a uma morbidade autoreferida e no

    pessoa e seu contexto de vulnerabilidade nos parece um equvoco, e no caso da

    populao de rua pode servir ainda para escamotear os mecanismos de reproduo da

    misria associados intensificao do uso abusivo destas substancias.

    Entre as pessoas em situao de rua, os mecanismos de controle social

    responsveis pela limitao do consumo destas substncias compreendem aes

    policiais para a remoo das pessoas de lugares estratgicos, do ponto de vista da

    gesto pblica, ou se restringem aos critrios de utilizao dos abrigos pblicos,instituies sociais e religiosas. Os 35 albergues e abrigos especiais e 11 moradias

    provisrias atendem juntos 8.000 pessoas todos os dias 6, as demais pessoas tem

    acesso livre aos ncleos de servio que funcionam somente durante o dia. Equivale

    dizer que a rede municipal comporta aproximadamente dois teros desta populao

    enquanto um tero vive literalmente nas ruas. Via de regra, exigem a abstinncia,

    tratando o problema de forma higienista, medicalizante ou disciplinadora

    (GIORGETTI, 2006; _ 2007). As formas tradicionais de suporte aos moradores derua compreendem clnicas religiosas, terapias ocupacionais nas instituies sociais,

    reunies dos Alcolicos Annimos e unidades de sade mental abertas populao

    em geral. As instituies tecnicamente mais qualificadas para o enfrentamento do

    problema do uso abusivo trabalham com processos de longo prazo e raramente so

    acessveis s pessoas sem domiclio.

    As pessoas que dormem nas ruas ou que transitam entre a rua e as vagas

    temporrias de pernoite dos albergues ficam mais prximas do contexto de usodesregrado de drogas de maneira geral, mas ainda assim contam com as intervenes

    scio-educativas em Ncleos de Servio com atendimento pblico diurno, que

    6Declarao do secretrio da Assistncia Social de So Paulo. Folhapress. Jornal Folha de So Paulo.So Paulo: 29.01.2007.A pesquisa solicitada por esta mesma secretaria em 2009 aponta 7.079 pessoas abrigadas (ver nota 1).Como parte desta pesquisa, o centro de Estudos Rurais e Urbanos (FFLCH/USP) considerou umuniverso de 47 instituies que incluam 44 Centros de Acolhida de 24 e 16 horas, Centros deAcolhida Especial, Repblicas e Hotis Sociais, abrigando 5.993 indivduos.Diante das diferenas entre os totais de abrigados, deve-se considerar a existncia de abrigos fora da

    rede conveniada com a prefeitura, diferenas entre metodologias de pesquisa e a possvel diminuiode vagas ou de seus ocupantes na rede de assistncia considerada.

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    desenvolvem algum tipo de controle social em relao ao uso. A ttulo ilustrativo,

    apresento outra cena que evoca a intensidade do uso e a limitao destas

    intervenes, me reportando condio de coordenador de um destes ncleos entre

    1996 e 2005 7: enquanto eu recepcionava uma visita da Ashoka no ptio da

    instituio, rodeado por dezenas de freqentadores, um usurio se aproximou

    bastante alcoolizado, tentou participar da conversa e desabou na nossa frente,

    perdendo a conscincia por alguns instantes. Aparentemente no se podia fazer nada

    quando o uso da bebida provocava este tipo de apagamento. Quando desperto, ele

    voltaria a beber. Esta forma de uso o mantinha permanentemente alcoolizado e com

    um contato dissonante com a realidade. Suas palavras e atitudes assumiam um

    significado particular para ele, nem sempre compreensvel para os profissionais comquem lidava.

    A impotncia da rede de servios para lidar com estas questes vem sendo

    enfrentada atravs da atuao interdisciplinar de assistentes sociais, psiclogos,

    terapeutas ocupacionais, agentes de sade e educadores. De maneira geral, estas

    aes so direcionadas para reverter as trajetrias de perdas do sujeito e para a

    manuteno da abstinncia, visando a sada das ruas e a conquista de uma vida mais

    saudvel. Entretanto, as intervenes mais qualificadas so personalizadas e devidoao reduzido nmero de educadores, atingem uma pequena parcela de usurios das

    instituies sociais, requerendo certo potencial e motivao para a mudana. Na

    ausncia da vontade e persistncia para se abandonar o uso espontaneamente, as

    intervenes externas exigem a compreenso dos mecanismos do uso de drogas em

    geral e na especificidade da situao de rua.

    O espao individualizante da rua se contrape viso tradicional da famlia e

    do corpo social onde o todo mais importante do que o indivduo. Indo para a rua, oindivduo perde o seu status, suas conexes e fica deriva. Estas questes nos

    possibilitaram relacionar a situao de rua situao de liminaridade, no sentido

    7 A Associao Minha Rua Minha Casa um centro de ateno a moradores de rua, situada sob oViaduto do Glicrio Interligao Leste-Oeste, na rea central de So Paulo, com recepo diria deaproximadamente 150 pessoas. A organizao se consolidou atravs de parcerias entre o terceirosetor, empresrios e o poder pblico. Enquanto empreendedor social, eu contava com o apoio da

    Ashoka, uma fellowshipque aglutina uma rede de empreendedores vinculados a projetos sociais emvrios pases.

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    proposto por Victor Turner. Turner resgatou o conceito de liminaridade apresentado

    inicialmente por Arnold Van Gennep emLes Rites de Passageem 1909.

    Van Gennep usou o termo para identificar a fase fronteiria entre a separao

    e a reagregao dos ritos de passagens. Pela anlise sociolgica de R. DaMatta, ele

    rompe pioneiramente com a universalidade da fisiologia como caracterstica dos

    chamados ritos de puberdade, resgata os ritos de passagem do seu plano de estudo

    individual e descobre, um tanto surpreso, que dentro de uma multiplicidade de

    formas conscientemente expressas ou meramente implcitas, h um padro tpico

    sempre recorrente: o padro dos ritos de passagem (Van GENNEP, 1978, apud

    DaMATTA, 2000, p.10). Victor TURNER (1974), avana da concepo da

    transio para a noo de processo estendendo a liminaridade a tudo o que est nasmargens. Para ele a liminaridade significa o afastamento do indivduo de um grupo,

    quer do ponto fixo anterior na estrutura social, quer de um conjunto de condies

    culturais (um estado) ou ainda ambos (p.116). Estado, segundo ele, inclui os

    conceitos de status ou funo, referindo-se a qualquer tipo de condio estvel

    ou recorrente, culturalmente reconhecida. Os indivduos, enquanto entidades

    liminares, no possuem status, propriedade, insgnias, roupa mundana indicativa de

    classe ou papel social, posio em um sistema de parentesco, em suma, nada que aspossa distinguir de seus colegas nefitos ou em processo de iniciao (p.117).

    Ainda segundo Turner:

    o que parece ter acontecido que, com o incremento da

    especializao da sociedade e da cultura, com a progressiva

    complexidade na diviso social do trabalho, aquilo que era na

    sociedade tribal principalmente um conjunto de qualidades transitrias

    entre estados definidos da cultura e da sociedade, transformou-senum estado institucionalizado (1974, p.131).

    O sujeito liminar no est aqui nem ali; est entre [betwixt and between] as

    posies atribudas e organizadas pela lei, pelo costume, pela conveno ou pelo

    cerimonial (apud CABRAL, 1996, p.31). Este paradoxo geralmente percebido

    negativamente, como critica DaMATTA (2000). Ele associa a liminaridade ao

    exerccio da individualidade: a recluso engendra um nicho no qual todos os elos

    dirios perdem a fora, deixando vir tona a vivncia do isolamento e da solido.

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    Para ele, o trao distintivo da liminaridade a segregao de uma pessoa (ou de

    uma categoria de pessoas, tratadas como corporao social ou mstica) dos seus laos

    sociais imperativos, liberando-a temporariamente das suas obrigaes de famlia,

    linhagem, cl ou aldeia, o que a transforma temporariamente em indivduo fora-do-

    mundo (p.20). Da Mata reconhece sociedades de espaos mltiplos, como a

    brasileira, na qual ocorre uma verdadeira institucionalizao do intermediriocomo

    um modo fundamental e ainda incompreendido de sociabilidade (p.14).

    O rompimento com as hierarquias externas e com a previsibilidade da

    estrutura social conduz construo de novas hierarquias que surgem nos interstcios

    sociais: communitas consolidadas como antiestrutura mediante modelos relacionais

    alternativos, constituindo grupos com valores e objetivos comuns. Sob estaperspectiva podemos nos aproximar das malocas 8 e identificar as relaes de

    pertencimento, princpios, afinidades e distanciamento do corpo social estabelecido.

    Como no modelo de constituio da communitasexistencial essencialmente oposta

    estrutura, como a antimatria hipoteticamente oposta matria (TURNER,

    1994, p.243), o povo da rua se organiza nos interstcios sociais, se agrupando em

    malocas e constituindo redes de sobrevivncia. O que observamos na rua uma

    dinmica particular que possibilita as relaes e o exerccio da alteridade.Outra caracterstica da ambigidade liminar o encantamento, quando tudo

    pode, e deveria acontecer (...). A Liminaridade repleta de potncia e

    potencialidade. Ela pode tambm ser repleta de experincias e representaes. Pode

    ser a representao de idias, de palavras, de smbolos, e de metforas 9(TURNER,

    1979, p.465). Desta forma, o autor retira a vivncia liminar da rigidez do enquadre

    ritualstico percebendo-o atravs da multiplicidade de gneros performticos. Por um

    lado, o processo ritual estabelece e articula a sequncia de fases e episdios que ocompem, mas por outro, expressa a suposio, o desejo e a possibilidade e pode

    8 Lugares usados por indivduos ou pequenos grupos de moradores de rua durante o dia ou para opernoite, onde normalmente se encontra alguma moblia, como caixotes ou outros objetos para sesentar, colches ou espumas reaproveitadas, caixas ou sacolas para os pertences pessoais, roupas edocumentos, e s vezes utenslios de cozinha.9 No original: Since liminal time is not controlled by the clock it is a time of enchantment whenanything might, even should, happen (). Liminality is full of potency and potentiality. It may alsobe full of experiment and play. There may be a play of ideas, a play of words, a play of symbols, a

    play of metaphors. In it, play's the thing. Liminality is not confined in its expression to ritual and theperformative arts.

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    8

    ser descrito, especialmente na fase liminar central por termos como carismtico,

    numinoso, realidade sagrada (p. 469).

    Neste ponto vou introduzir minha experincia em rituais iniciticos com o

    psicoativo Ayahuasca, incorporado deste o incio do sculo XX doutrina religiosa

    do Santo Daime. A partir das referncias analticas de Turner fizemos uma releitura

    destas experincias com as quais tivemos contato ainda na dcada de 90. Uma srie

    de experincias e tcnicas meditativas me conduziram s sesses xamnicas na

    Amaznia Peruana. At ento eu estava imerso no contexto da situao de rua,

    porm ainda restava a imerso nos estados alterados de conscincia como forma de

    compreenso daqueles experimentados pelos moradores de rua sob o efeito desubstncias como o lcool e outras drogas.

    Em minha primeira visita ao Peru em 1996 conheci a clnica Takiwasi na

    cidade de Tarapoto, onde se realizam sesses com ingesto de plantas medicinais e

    psicoativas para o tratamento da drogadio, principalmente bebidas alcolicas e

    pasta base de cocana. Em 1998, voltei para uma dieta de 11 dias, aproximando-me

    do curandeirismo Peruano no centro de terapias tradicionais Rinquia 10. A imagem

    harmoniosa dos igaraps era quebrada pelos caboclos, descendo os rios com guapela cintura, conduzindo longas esteiras de troncos amarrados uns aos outros que iam

    boiando rio abaixo. O confronto entre o poder anti-ecolgico de um inimigo

    invisvel e a imagem da carncia estampada nos casebres desmobiliados e crianas

    desnudas beira do Rio Aguaytia no deixavam dvidas de que a realidade da

    pobreza e das diferenas sociais no se restringia ao contexto urbano e iam

    fornecendo os elementos para a decodificao das imagens e sensaes que seriam

    vivenciadas nos rituais xamnicos, induzidas pelas plantas medicinais, isolamento ealimentao restrita. Nestes estados de conscincia a percepo da realidade se

    desdobra em diferentes planos nas esferas fisiolgica, emocional, racional e

    espiritual, como tem sido abordada pela Psicologia Transpessoal, da qual faremos

    uso adiante.

    10

    Centros de terapias tradicionais localizado prximo ao Distrito de Curiman, Cidade de Pucallpa,Peru.

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    Foi nesta poca, num tambo 11de folhas de palmeira cercado pelas rvores

    poupadas pelas madeireiras ilegais e riachos paradisacos, nas franjas da Floresta

    Amaznica, que eu decidi pela ps graduao. Encerrava-se a etapa de imerso no

    problema. Um problema que no se restringia s ruas de So Paulo, ou a casos

    isolados de uso cronificado de bebida ou drogas, mas que hipoteticamente se

    configurava como busca de sentido e conforto para a sobrevivncia em situaes de

    extrema precariedade. Mas ainda me faltava o respaldo acadmico para a sua

    compreenso.

    A partir da passei a olhar para a rua de forma analtica, registrando eventos e

    coletando materiais para um estudo mais amplo de pesquisa. De 2001 a 2003desenvolvemos o tema da sade dos moradores de rua enquanto direito, no curso de

    Mestrado (FSP-USP). Por um perodo de pouco menos de um ano, trabalhei junto ao

    poder pblico municipal como coordenador do programa de Proteo Social

    Especial, dedicado manuteno da rede de Assistncia Social para moradores de

    rua. A partir da tambm tive oportunidade de estreitar o contato com usurios de

    lcool e drogas atravs da participao na pesquisa sobre a tuberculose na populao

    de rua, realizada pelo LIESP - Laboratrio Interdisciplinar de Estudos e PesquisasSociais em Sade Pblica da FSP, com apoio do Decit-Ministrio da Sade.

    O perodo deste Doutorado inclui, portanto: o perodo de trabalho com

    contato indireto com a populao de rua, na gesto da poltica pblica, em 2005;

    contato direto atravs da pesquisa sobre a tuberculose nesta populao; o perodo

    dedicado ao trabalho de campo e realizao de disciplinas; e um perodo de

    afastamento do campo e anlise do material colhido. Considerando o caminho

    motivacional percorrido at o doutorado, como pano de fundo e experinciaindispensvel compreenso do problema, apresentamos neste texto, a trajetria e os

    resultados da pesquisa consolidada metodologicamente a partir do vnculo com a

    Faculdade de Sade Pblica e apoio financeiro da FAPESP Fundao de Amparo

    Pesquisa do Estado de So Paulo. O perodo coberto pela bolsa FAPESP, a partir de

    2007, possibilitou o afastamento de vnculos empregatcios e maior dedicao

    11 Nome dado aos abrigos individuais feitos com materiais encontrados na floresta, destinados

    basicamente proteo contra as chuvas, com espao suficiente para um catre e um mosquiteiro queimpedia a entrada de insetos.

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    tarefa investigativa. O estudo, situado entre as questes de sade priorizadas pela

    linha de pesquisa Sade Pblica: Cincias Sociais e Sociedade Contempornea do

    Programa de Ps Graduao da FSP-USP foi delineado a partir dos recortes

    fundamentais: adultos que vivem nas ruas da rea central da cidade, vinculados ou

    no a albergues e outras instituies pblicas e a utilizao de bebidas alcolicas e

    outras drogas por esta populao.

    As duas questes centrais: o uso de drogas e a situao de rua nos remetem

    aos estados alterados de conscincia e aos estados de liminaridade social. Este

    campo temtico requer uma abordagem qualitativa e interpretativa sobre a qual

    faremos algumas consideraes no prximo subcaptulo. Utilizaremos o termodroga no seu sentido genrico, para nos referirmos ao uso de bebidas alcolicas,

    crack, cocana, maconha e outras drogas de menor incidncia entre os moradores de

    rua adultos, quando quisermos nos referir natureza deste uso, ou seja, a relao

    entre o usurio e a substncia, mais do que a substncia em si. Num sentido ainda

    mais amplo, incluindo-se o uso de outras substncias e outros contextos sociais,

    utilizaremos o termo psicoativo 12. Nos subcaptulos seguintes aprofundaremos estes

    temas circunscrevendo termos e conceitos utilizados. O entendimento do uso dedrogas dentro do processo reativo situao de rua nos permite aproximar desta

    realidade e da complexidade das questes sociais que a populao de rua apresenta e

    que so mais amplas que a prpria sobrevivncia. O extremo da precariedade que

    enfrentam salienta estratgias que viabilizam a permanncia na situao de rua e a

    continuidade do uso das drogas. Entendemos estratgia no sentido explicitado por

    CABRAL (1996, p.46) de prticas sociais que surgem como o resultado agregado

    do fato que diferentes membros de um grupo social esto igualmente confrontadoscom contextos de ao semelhantes. A similitude desses contextos de opo

    individual redunda no surgimento de padres de comportamento agregado a que

    chamamos estratgias. Procuramos delimitar a Introduo contextualizao do

    problema, antecipando resultados do estudo e apresentando uma viso cronolgica da

    populao de rua e da institucionalizao da assistncia social nas ltimas duas

    dcadas.

    12

    Substncias ou drogas psicoativas so aquelas capazes de promover alteraes da conscinciaindividual, humor ou do pensamento (OMS, 2004).

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    11

    Os estudos de comportamentos desviantes iniciados por BECKER (1973)

    com usurios de maconha deslocam o foco do sujeito vitimizado pelo estigma da

    drogadio para os mecanismos sociais responsveis por este problema. Zinberg

    (1984) tambm distingue a influncia do setting fsico e social no qual o uso de

    drogas pode ocorrer dos outros dois determinantes: a droga em si e o set, ou seja, a

    atitude da pessoa no momento do uso e sua estrutura de personalidade. Verificamos

    que o uso de bebidas alcolicas e outras drogas entre moradores de rua ocorrem de

    forma distinta das regras de uso socialmente aceitvel do ponto de vista biomdico e

    distante dos padres institucionalmente estabelecidos, seja no contexto familiar ou

    em agremiaes e eventos sociais, seguindo padres de liberdade e autonomia

    possveis na rua. Como hiptese central deste trabalho, estes padres de uso podemassumir funes sociais e significados para o prprio sujeito, como um recurso que

    viabiliza a situao de rua e, portanto seria inerente condio de sujeito liminar.

    Este uso se coaduna, no universo da rua, a um cenrio anti-estrutural (TURNER,

    1974; _1994), regulado pelas estratgias de sobrevivncia e resilincia desenvolvidas

    (ALVAREZ, 2003). Tais questes so aprofundadas no segundo captulo, onde

    tratamos do processo da estigmatizao e culpabilizao do sujeito.

    O terceiro captulo trata dos cenrios internos das memrias individuais poronde navegam as pessoas que passaram por experincias desestruturantes. Atravs

    dos estados alterados de conscincia tais registros so acessados recorrentemente

    proporcionando oscilaes motivacionais e de humor conforme os contedos

    emocionais vinculados a estas memrias. As memrias coletivas ou arquetpicas

    permeiam os estados alterados proporcionando a transio entre a realidade concreta

    do meio onde vive e a realidade no menos verdadeira do seu universo subjetivo

    constituindo identidades e sexualidades possveis.Ao tratarmos dos circuitos da rua no quarto captulo, nos aproximamos das

    estratgias de sobrevivncia desenvolvidas na rua. Os materiais descartveis que

    afetam a esttica urbana e entopem os bueiros provocando alagamentos se

    confundem com os humanos descartados dos circuitos produtivos, tornando-os

    igualmente alvo das medidas de requalificao urbana. Enquanto resistem remoo

    encampada pelo poder pblico, se aliam a instituies e comunidades locais,

    desenvolvendo cdigos e princpios de convivncia, conferindo uma funcionalidade

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    12

    e significncia particular ao uso de bebidas alcolicas e outras drogas neste contexto,

    enquanto circulam nos seus prprios dramas pessoais.

    No quinto captulo abordamos os mergulhos nas esferas de prazer e conforto

    como recursos que se ajustam a uma realidade que reproduz experincias de carncia

    e insegurana e reeditam sentimentos e sensaes disfuncionais do passado. A

    impossibilidade de sustentao dos estados alterados de conscincia o conduz ao uso

    recorrente que mina a capacidade do individuo para conviver com suas dificuldades

    rotineiras fazendo-o oscilar entre a embriagus e estados depressivos de insatisfao

    consigo mesmo e com suas relaes com o meio onde se encontra. A oposio e a

    ruptura com uma dada ordem social ocorrem em paralelo com rupturas internas,

    operando de forma disfuncional na vida do sujeito e comprometendo sua capacidadede autoafirmao e possibilidade de reinsero social. Procuramos estabelecer um

    paralelo deste processo com os processos iniciticos que buscam nas rupturas a

    libertao dos vnculos externos em direo ao autoconhecimento. Analisamos

    experincias de alterao da conscincia pelo psicoativo ayahuasca, que tem sido

    utilizado em contextos religiosos e teraputicos focalizando ainda sua utilizao e

    funcionalidade por ex-usurios de drogas e moradores de rua.

    As alternativas teraputicas tradicionais requerem recursos incompatveiscom a situao marginal de carncia do individuo e com as prioridades da gesto

    municipal. No sexto captulo tratamos da formas de enfrentamento do problema. A

    introjeo de mecanismos disciplinatrios e auto reguladores dos Alcolicos

    Annimosfortalecem o autocontrole mas atuam na contramo da trajetria de busca

    de novas experincias de sociabilidade no contexto da rua. Os mecanismos de

    desenvolvimento do autocontrole so abordados a partir das alternativas de

    enfrentamento possveis. A expectativa de contribuio para o melhor entendimentodo problema e contribuio para as polticas pblicas de sade em relao ao

    consumo abusivo de lcool e drogas entre moradores de rua nos motivou a rever

    experincias concretas e como elas refletem as discusses encampadas neste estudo.

    As primeiras experincias comunitrias que deram visibilidade populao de rua

    em So Paulo no anos 80 e 90 e a experincia do Espoir Goutte dOr nas ruas de

    Paris nos dias de hoje, nos remetem finalmente a princpios que identificamos entre

    grupos e malocas de moradores de rua na busca de autoconhecimento, autonomia e

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    autocontrole.

    Reservamos o stimo captulo s consideraes finais. Acreditamos que a

    busca das funes e significados para a liminaridade e para o uso de lcool e drogas

    se complementam, bem como se relaciona com a busca de sentido para o curso da

    prpria vida em cada morador de rua. Tratar a questo do uso abusivo como um

    problema exclusivamente biomdico implica na valorizao da patologizao sujeita

    a intervenes externas incapazes de absorver a complexidade prpria das

    transformaes sociais da modernidade que deram origem ao nmero vertiginoso de

    pessoas em situao de rua nos grandes centros. Diante desta limitao, defendemos

    o estudo das redes sociais construdas na rua e valorizao da trajetria de vida do

    sujeito, compatveis com o processo de autoconhecimento e com possibilidades dedesenvolvimento do autocontrole.

    Acreditamos ainda que a relao entre o uso abusivo e processos liminares

    amplia a perspectiva de compreenso do problema em outras categorias sociais e

    aponta para a necessidade de polticas pblicas que considerem o desdobramento dos

    dramas sociais desencadeados pelas experincias individuais e coletivas.

    Mtodos da investigao

    Voc me chamou de Joel, meu nome Hugo. Enquanto ele tecia uma

    toalha de fios, continuou explicando quem era o Joel, muito diferente dele, o

    Hugo. O Joel raivoso, fechado, no gosta de conversa e quando fica bravo,

    ele fica violento. Hugo, ao contrrio era socivel, alegre, amigo e adaptado ao

    contexto teraputico. Entre todos, Moacir era o que mais falava e aproveitavatodos os argumentos para justificar porque ele estava ali, inclusive porque

    estava fazendo um tapete de amarradinho, j que no era paciente. Alguns

    ainda no haviam entendido o que eu fazia: jornalista da Globo, comentou

    em voz baixa, outro rapaz. Continuando, Hugo dizia que o Joel no seria

    receptivo conversa que estvamos tendo. Ele no se abriria facilmente: teria

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    que confiar muito para se abrir. De certa forma era o porta voz de todos ali. 13

    Diante da profuso de possibilidades num campo de pesquisa to vasto

    procuramos, nesta parte, identificar como o sujeito se apresenta, mesmo que ele

    recorra fala institucional assimilada na sua passagem por organizaes sociais e

    religiosas. A utilizao de mtodos qualitativos nas recentes pesquisas acadmicas

    sobre a populao de rua demonstra certo engajamento dos pesquisadores no

    aprofundamento de questes que viabilizem a construo de polticas pblicas com

    procedimentos mais efetivos na promoo social e da sade. Na perspectiva de

    Denzin e Lincoln se busca relacionar a pesquisa qualitativa s esperanas, s

    necessidades, aos objetivos e s promessas de uma sociedade democrtica livre(2006, p.17).

    Os recenseamentos e levantamentos quantitativos desta populao,

    patrocinados pela prefeitura, so espaados em at cinco anos, como o caso no

    momento atual, mas tem utilizado mtodos estatsticos criteriosos que permitiram

    conhecer a sua extenso e perfil scio-demogrfico e esto entre as principais

    referncias para o estudo de necessidades bsicas e planejamento de servios

    pblicos. A primeira pesquisa em nvel nacional foi realizada em 2007 sob acoordenao do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome e o

    principal argumento da poltica nacional de incluso social da populao em situao

    de rua. Uma vez que deixemos de lado a perspectiva catastrfica dos problemas

    sociais e abramos espao para o protagonismo do sujeito, como observado por Paulo

    FREIRE (1999), a soluo de questes complexas como alternativas de trabalho e

    renda, uso abusivo de drogas e outras questes de sade requerem investigaes de

    aspectos especficos que possam orientar os gastos pblicos, justific-los e otimiz-los. Estudos epidemiolgicos da tuberculose, por exemplo, revelaram a dificuldade

    de penetrao das intervenes de sade nos interstcios da rua, acessados

    principalmente por grupos voluntrios itinerantes que eventualmente contam com

    profissionais de sade e pelo ainda insuficiente programa A gente na rua vinculado

    ao PSF Programa de Sade da Famlia.

    13 Campo - Reunio da Associao Vida Ativa em 22.12.06, programa para usurios de lcool e

    drogas desenvolvido pelo CRATOD Centro de Referncia do uso de lcool, Tabaco e outrasDrogas, situado no Bairro bom Retiro, mantido pelo Governo do Estado.

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    A pesquisa qualitativa envolve o estudo do uso e a coleta de uma variedade

    de materiais empricos estudos de caso; experincia pessoal; introspeco; histria

    de vida; entrevistas; artefatos; textos e produes culturais; textos observacionais,

    histricos, interativos e visuais que descrevem momentos e significados rotineiros

    e problemticos na vida dos indivduos (DENZIN e LINCOLN, 2006, p.17). Os

    poemas de Elisabete (MOTA, 1986; 1987), por exemplo, refletem situaes de rua na

    sua tica particular. So em grande parte sofridos, mas apresentam suas reflexes

    sobre o prprio sofrimento e os sofrimentos que assistiu enquanto morou na rua.

    Benedito conta suas histrias na sua msica, explicitando os altos e baixos de sua

    trajetria de morador de rua em CDs de edio limitada, produzidos com a ajuda de

    amigos. Xester se apresenta atravs de suas esculturas expostas na USP, na SoMarcos, etc.... Cada um deles apresenta uma identidade social criteriosamente

    construda e se reservam ao direito de ocultar traos de personalidade e histrias de

    vida que no lhes convm divulgar. Portanto, cabe ao pesquisador ajuntar

    fragmentos e buscar na interao com o indivduo as informaes necessrias para o

    entendimento das questes investigadas em toda a sua complexidade.

    Na medida em que nos aproximamos da pessoa, a percebemos como sujeito

    de sua historia e com um posicionamento histrico consciente. Adotamospreferencialmente o termo sujeitoem vrios lugares do texto utilizando o conceito

    familiar rede de articulao social da populao de rua. Com a ajuda de

    intervenes articuladoras de organizaes e indivduos que incentivam o

    desenvolvimento de uma conscincia crtica diante da realidade, a populao de rua

    vem se organizando coletivamente. Pequenos grupos de catadores se agrupam em

    espaos compartilhados a exemplo das cooperativas organizadas com o suporte de

    organizaes sociais da sociedade civil e que hoje contam com recursos federais paraprojetos de interesse coletivo. Na populao de rua observamos a formao de

    grupos reivindicatrios que constituram um movimento social com penetrao na

    esfera federal e atuao concreta no processo de criao de uma poltica nacional

    para sua incluso social.

    No contato individual, a interao proporcionada por este estudo revela este

    protagonismo na autorizao das entrevistas ao justificarem sua concordncia: um

    de nossos informantes, 45 anos, concedeu suas entrevistas acreditando que sua

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    contribuio pode ajudar a melhorar a vida de outras pessoas; ele se refere com

    orgulho sua militncia em Recife nos perodos da ditadura militar quando ainda era

    uma criana de aproximadamente 12 anos: o movimento todo gostava de criana,

    tudo que olheiro. Ele percebe o papel ativo de quem contribui com um

    conhecimento acumulado no somente pelas prprias experincias, mas tecendo

    comentrios crticos sobre a fala de psiquiatras, religiosos e terapeutas de instituies

    que o atendem ou atenderam devido ao histrico de bebedor abusivo com severos

    comprometimentos da sade. Outro entrevistado, 40 anos, falou de aspectos de sua

    histria e apresentou um recorte de jornal que divulgava um livro autobiogrfico de

    um jogador de futebol que passara dificuldades semelhantes s suas na infncia e

    juventude. Sua histria daria um livro e ele queria se certificar que ela no seriausada para este fim sem que ele recebesse os devidos crditos: autorizo se for a fim

    de ajudar outras pessoas, se for com fins lucrativos, eu no autorizo. Ele participava

    de um grupo de gerao de renda com fins teraputicos e tinha plena conscincia que

    os ganhos auferidos com o trabalho artesanal eram demasiadamente inferiores ao

    ganho que ele teria com o fornecimento de cocana a antigos clientes. A participao

    em um livro poderia ser uma sada para a questo econmica.

    O tema da explorao da imagem do morador de rua tambm foi trabalhadopelo cineasta Evaldo Mocarzel com o filme Margem da Imagem dando

    visibilidade a moradores de rua que olham para si mesmos e olham para a cidade

    sua volta se posicionando diante do abismo entre os dois contextos, s vezes,

    intransponvel.

    As pessoas entrevistadas concordaram com a pesquisa atravs de registro de

    voz ou assinatura do termo de consentimento. Quando nos referimos a declaraes

    pblicas, como o caso de Anderson, lder do movimento dos moradores de rua,mantivemos o nome verdadeiro conferindo-lhe o crdito da fala. Quando nos

    referimos a declaraes do sujeito enquanto objeto de pesquisa, usamos nomes e

    referncias fictcias visando proteger sua identidade. Quando, no trabalho de campo,

    observamos a dinmica de malocas ou grupos de moradores de rua, nos

    apresentamos enquanto pesquisadores a todas as pessoas que espontaneamente

    fizeram algum relato, nos abstendo porem de perguntas e direcionamento

    investigativo a priori. Nestes momentos mantivemos a interao com uma postura

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    emptica, deixando o sujeito livre para se expressar ou se afastar quando lhe fosse

    mais conveniente. Esta espontaneidade nos convida a reconhecer suas experincias e

    conhecimentos e eventualmente cit-los.

    Denzin e Lincoln associam o pesquisador qualitativo ao bricoleur, ou seja, ele

    como um confeccionador de colchas ou um improvisador de jazz. Esse

    confeccionador costura, edita, rene pedaos da realidade, um processo que gera e

    traz uma unidade psicolgica e emocional para uma experincia interpretativa

    (ibidem, p.19). O processo interativo na pesquisa qualitativa revela a preocupao

    do sujeito com os processos interpretativos e com a verdade veiculada sobre ele e

    sobre as suas representaes. A validao da pesquisa dada pelo prprio sujeito e

    cabe ao pesquisador utilizar os recursos disponveis e adequados para conferir-lhecredibilidade. Anderson critica o rtulo atribudo por pesquisadores: eu no sou

    objeto de pesquisa, mas menciona com certo orgulho: fao parte de 6 mestrados,

    se referindo s pesquisas que exploraram suas experincias e suas idias 14.

    Depois de algumas vezes que estvamos indo ao Ptio do Colgio no final da

    tarde, os agentes sociais da prefeitura se aproximaram suspeitando que estivessem

    sendo vigiados. Quando compreenderam que no era esse o nosso intuito, sentiram-

    se vontade para externar seus sentimentos. Uma de suas colocaes se relacionava presso da prpria prefeitura e das pessoas que os telefonam, identificadas como

    contribuintes, para tirar os moradores de rua de lugares pblicos de grande circulao

    e reas residenciais sem ter vagas suficientes para todos os atendimentos realizados.

    De fato o grupo de agentes sociais estava estacionado no local. Suas informaes

    contrariavam o discurso oficial do poder pblico, que transfere o problema para o

    morador de rua salientando o ndice de recusa por albergamento, recorrentemente

    utilizado para amenizar a presso da imprensa: as pessoas que ainda resistem einsistem em permanecer nas ruas acabam sendo vitimadas todos os dias por violncia

    das mais diversas. Por essa razo, temos feito um trabalho articulado para no

    permitir que as pessoas durmam embaixo dos viadutos, em praas nem utilizem

    espaos pblicos de forma indevida 15. Os agentes, ao contrrio, mostravam

    14Representante do Movimento Nacional dos Moradores de Rua, morador do albergue Lar de Nazar,discursando como convidado no Seminrio Nacional Populao em Situao de Rua, na UniversidadeFederal de So Carlos em 14.12.08.15

    Nota da Secretaria Municipal de Assistncia e Desenvolvimento Social. Folhapress. Jornal Folha deSo Paulo. So Paulo: 29.01.2007.

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    respeito com o morador de rua, demonstrando conhec-lo e especificamente, naquele

    dia, preocupados com o plano de utilizao de fora policial para a transferncia de

    moradores de rua do centro para a periferia da cidade, na semana seguinte 16.

    Do ponto de vista interpretativista, para que uma determinada ao social

    seja entendida (...), o investigador deve compreender o significado que constitui esta

    ao (...) com o sistema de significados ao qual esta pertence (SCHWANDT, 2006,

    p.193). Segundo Schwandt, a compreenso interpretativa tradicionalmente

    definida pela identificaoemptica, pela sociologiafenomenolgicae pelos jogos

    de linguagem, que tm em comum os seguintes aspectos: a) consideram a ao

    humana significativa; b) evidenciam um compromisso tico na forma de respeito e

    de fidelidade em relao experincia de vida; e c) a partir de um ponto de vistaepistemolgico, compartilham do desejo neokantista de enfatizar a contribuio da

    subjetividade humana (ou seja, da inteno) em relao ao conhecimento sem

    sacrificar, desse modo, a objetividade do conhecimento (p.197).

    Revisamos os referenciais tericos a partir das primeiras leituras etnogrficas

    da rua e voltamos ao campo com um novo olhar, criando novos contextos

    relacionais. O trabalho de campo realizado compreendeu: visitas baixada do

    Glicrio no bairro da Liberdade, Ptio do Colgio no centro, atual cracolndia nobairro da Luz e regies circunvizinhas; entrevistas em profundidade e

    acompanhamento de pelo menos uma dezena de moradores de rua ao longo do

    perodo da pesquisa; visitas a instituies sociais da regio central da cidade; e

    depoimentos de informantes de outros contextos como igrejas, clnicas e

    estabelecimentos comerciais. Atravs da participao de eventos envolvendo

    moradores de rua e uso de psicoativos, estreitamos o relacionamento com ex-

    usurios de drogas de outras categorias sociais e com adeptos do uso ritualstico depsicoativos no contexto xamnico e religioso, de forma complementar ao plano de

    pesquisa original.

    Nas observaes de campo levantamos a dinmica interna de grupos de

    moradores de rua, prioritariamente aqueles que se instalaram sob o viaduto do

    16Acompanhamos o processo de utilizao de fora policial para a remoo de moradores de rua darea central da cidade nas Operaes Cracolndia de 2005 e em operaes do Rapa durante o

    recolhimento de pertences encontrados nos agrupamentos onde vivem. Outros episdios destanatureza tambm foram relatados durante as entrevistas.

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    Glicrio. Os grupos de moradores de rua que fazem uso de bebidas alcolicas ou

    drogas se renem em espaos degradados, preferencialmente em reas protegidas das

    intempries, e se fixam temporariamente nestes espaos, alternando-os com outros

    que sejam mais convenientes em cada momento. O termo maloca que identifica

    este tipo de espao, normalmente seguido de alguma denominao que distingue

    uma maloca da outra, como referncias ao local ou s pessoas que a compem.

    O trabalho de campo incluiu a aproximao de pessoas alcoolizadas, o que

    requer uma anlise interpretativa do contedo simblico e reaes emocionais do

    sujeito, em relao ressignificao de sua trajetria de vida ou fixao em

    determinados papis, orientados a partir das relaes institucionais ou com a

    sociedade em geral. Quanto ao uso de drogas ilcitas principalmente, nosdefrontamos com grupos e pessoas que evitam os questionrios e entrevistas, ou

    como afirma Roman: que se resisten a ser penetradas por los mtodos clssicos de

    la encuesta epidemiolgica o sociolgica (ROMAN, 1999, p. 155), sendo

    necessrio uma relao emptica com os sujeitos, com a postura de pesquisador

    camarada (SNOW e ANDERSON, 1998).

    Na constituio da amostra da populao pesquisada, buscamos contemplar

    diferentes faixas etrias, relaes de gnero, diferentes formas de vinculao com abebida ou drogas e diferentes tipos de relacionamento e dependncia institucional.

    Estes critrios foram utilizados nos momentos de priorizar alguns indivduos quando

    encontrvamos diante de agrupamentos com maior nmero de pessoas. Em relao

    s diferentes formas de vinculao com as bebidas ou drogas, abordamos usurios

    permanentes, usurios espordicos, ex-usurios e no usurios. Identificamos como

    usurios, aquelas pessoas fazem o uso regular, de forma a comprometer ou no suas

    relaes de sociabilidade, sua disponibilidade para o trabalho e sua sade. Estaspessoas costumam se identificar como alcolatras, como dependentes, como viciadas

    ou simplesmente como tendo a substncia como um problema na sua vida. Outras

    fazem uso regular, mas no apreendem este uso como problemtico. O segundo

    grupo que referimos como usurios espordicos, constituem aqueles indivduos que

    desenvolveram algum tipo de controle sobre o uso. Os ex-usurios so aqueles que

    j beberam ou usaram outras drogas em algum momento da sua vida, mas no o

    fazem h mais de um ano, requerendo alguma estratgia para garantir o autocontrole.

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    No usurios so aqueles que no fazem uso e no reportam nenhuma estratgia

    especfica para manter o autocontrole.

    Procuramos ainda explorar a opinio de no moradores de rua, que ocupam

    papis sociais definidos no cenrio da populao de rua, como religiosos, assistentes

    sociais, tcnicos do poder pblico, profissionais de sade, polcia militar,

    empresrios, voluntrios e catadores de materiais reciclveis organizados. No

    pretendemos abordar o uso de todos os psicoativos usados entre moradores de rua,

    mas to somente estudar as funes e significados do uso de bebidas alcolicas e

    outras drogas que apareceram nos depoimentos, mesmo que no seja usado pelo

    informante, mas do qual ele tenha conhecimento.

    Atravs das entrevistas procuramos identificar as formas de uso de bebidasalcolicas e/ou drogas, motivaes, perdas e ganhos com o uso, e as funes e

    significados do uso individual e coletivo, explorando de maneira geral, as seguintes

    questes: intensidade e carter cumulativo de experincias desestruturantes;

    trajetrias para a situao de rua e para o uso; estratgias de sobrevivncia na rua;

    ritualidade e circuitos no uso; mecanismos de controle do uso; relaes de

    sociabilidade e dependncia; aproximaes e distanciamentos da estrutura social

    atravs do trabalho e do uso; posio identitria do sujeito e do grupo em que seencontra; e reatividade do sujeito e do grupo em relao ao seu status social.

    As perdas e rupturas no mbito das relaes familiares e sociais geram

    lacunas afetivas ou conduzem a perdas de vnculos trabalhistas que marcam

    igualmente a trajetria de vida por abalar a sustentao econmica do individuo.

    Vo delineando carncias e um distanciamento da estrutura social. As pessoas que

    esto nas ruas so categorizadas como mais ou menos cados. Os mais cados

    so assim, aqueles que esto permanentes sujos, alcoolizados, que apresentamalteraes comportamentais e que por isso mesmo so rejeitados nas mesmas

    instituies pblicas destinadas ao atendimento deste pblico.

    Trabalhamos com indivduos que esto fixados em malocas e com pessoas

    que circulam mais livremente na rua em torno de um ponto de encontro ou de

    servios itinerantes como a distribuio de alimentao por grupos caritativos e a

    oferta de vagas em albergues pblicos. As experincias de imerso no meio social

    que est sob investigao permitem maior aproximao ao sujeito. No

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    acompanhamento de malocas do Glicrio, aprofundamos o contato com sujeitos

    historicamente estabelecidos na rua, e sobre os quais temos registros documentais

    anterior ao perodo desta pesquisa, o que nos permitiu ampliar a leitura longitudinal

    dos significados do uso das bebidas alcolicas e drogas. So pessoas com vnculos

    antigos com organizaes sociais, que passaram por vrios padres de consumo

    destas substncias ao longo do tempo e ainda moram na rua. O trabalho de campo

    tambm nos conduziu a indivduos mais jovens recm chegados rua e com perfil de

    maior intinerncia.

    Como contra referncia s entrevistas com coordenadores e freqentadores de

    albergues, organizaes de catadores de materiais reciclveis, profissionais de sade,

    usurios ou ex-usurios de drogas, consideramos os depoimentos de pessoas deoutros contextos sociais: empresrios, estudantes e religiosos que tiveram ou tm

    contato com as drogas ou com usurios. No nos detivemos na ampliao ou

    sistematizao destes depoimentos, mas buscamos to somente identificar diferentes

    representaes dos usos e dos usurios procurando ultrapassar os discursos

    construdos sob o enquadramento biomdico que o sujeito reproduz para quem os

    assediam em troca de respostas bvias, como o rol de perdas em conseqncia das

    drogas ou identificaes com rotulaes externas.A observao participante implica, como elemento indissocivel da

    etnografia, na aproximao do objeto de estudo captando a experincia do sujeito no

    exerccio da alteridade. Valorizamos mergulhos em situaes do cotidiano do sujeito

    como as repetidas tentativas de Vieira para o emboo de uma parede em construo.

    O seu esforo para se igualar a outros profissionais da construo civil ocultava suas

    limitaes individuais. A frustrao repetida por no concluir a tarefa num tempo

    satisfatrio indicava naquele momento uma varivel adicional ao stress que precediaacessos de fria e uso de bebidas alcolicas. O acesso de fria observado aps o uso

    de cocana ou crack em outras pessoas, depois de algum perodo de abstinncia,

    revelava a transio entre estados de humor associados a dificuldades de

    relacionamento e adaptao a um estilo de vida no qual se sentiam inferiorizados.

    Nestes casos, observamos que as variaes dos estados de humor apresentam alguma

    semelhana na sua expressividade independentemente da droga utilizada e das

    formas de utilizao, e podem estar associadas s relaes cotidianas no habitat

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    natural do sujeito.

    A utilizao de mtodos qualitativos permite, portanto, a apreenso de

    processos complexos atravs da concatenao de diferentes contribuies do campo

    e de registros documentais. A busca de significados a que este estudo se prope

    procurou ampliar a manifestao de necessidades individuais e coletivas, s vezes

    no compreendidas ou adequadamente verbalizadas. Os relatos de seis usurios de

    outras categorias sociais, com recursos de formao acadmica consolidada, tambm

    serviram de referncia para uma melhor compreenso de estados performticos

    revelados na etnografia.

    Ao procurar avanar nesta rea, lanamos mo da multi e

    interdisciplinaridade, articulando recursos da psicologia para aprofundar nas funesdos estados alterados de conscincia e na sua relao com as situaes de

    liminaridade reveladas pelo vis antropolgico.

    Os estados alterados de conscincia

    Ademir, homem, por volta de 50 anos, distinguia entre perodos queficava na maloca e bebia permanentemente, e perodos em que ficava sbrio,

    circulava pela cidade, cuidava da sade e se vinculava a programas

    institucionais de assistncia como albergues e ncleos de servios. Uma vez

    distanciado da maloca e vinculado a instituies de assistncia, costumava dizer:

    l um outro planeta, s vezes eu estou aqui, s vezes eu estou l. Acabou

    morrendo l, em conseqncia da degradao da sade 17.

    O trabalho etnogrfico revela que o aqui e agora do sujeito que vive nas

    ruas suscita dinmicas especficas na suas relaes consigo mesmo e com a

    sociedade, segundo parmetros econmicos, morais, religiosos, polticos,

    emocionais. As anlises macro sociais da complexidade e dinamismo dos

    fenmenos urbanos nos leva a pensar a realidade em geral, mas particularmente a

    sociocultural, como composta de mltiplos domnios ou realidades (VELHO,

    17Morador da maloca do Glicrio.

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    1995). Sob a perspectiva do estilo de vida urbano e da modernidade, marcados pela

    no linearidade e multidimensionalidade, Gilberto Velho considera os estados

    alterados de conscincia como modalidades possveis de conscincia, produtos e

    produtoras de conjuntos de significado singulares.

    De maneira geral, as pessoas transitam por diferentes estados de percepo da

    realidade e de si mesmos, em diferentes momentos da vida, que podem ou no estar

    associados ao uso de substncias aditivas, mas no caso da populao de rua, este uso

    inerente situao em que vivem. Quando se liberam de compromissos familiares

    e obrigaes sociais, podem vagar livremente no anonimato da rua e imergir em

    bolhas emocionais ou lembranas fixadas na memria, adotando posturas

    psicologicamente regredidas e padres comportamentais alterados em relao aocontexto do presente.

    Consideremos as alteraes comportamentais de Mrcia, hoje com mais de

    trinta anos. Enquanto estvamos num grupo de moradores de rua, ela observava o

    Roberto, vindo de um grupo que fazia doaes na rua, com um novo par de tnis nos

    ps e outro na mo. Comentou: muito exibido. Com o mesmo senso crtico que a

    permitia distinguir traos de personalidade nos colegas, ela avaliava seu prprio

    comportamento de alguns anos antes. Lembrou-se de quando aprontava nas ruas einstituies sociais que freqentava. Naquela poca no tinha acesso ao marido

    preso, seus filhos estavam em instituies pblicas de tutela judicial, e ela mesma

    havia passado vrios meses num presdio feminino. Costumava morar em cortios

    da baixada do Glicrio e conseguia o mnimo para a subsistncia com as doaes e

    atividades ilcitas como o envolvimento com batedores de carteira da Praa da S e

    com os policiais que lhe cobravam propina: ficavam com a maior parte do

    dinheiro!, afirmava.No passado, vivera uma revolta generalizada, como se estivesse num

    confronto permanente contra foras internas e externas que lhe oprimiam. Oscilava

    entre momentos de compreenso da configurao e dinmica destas foras, quando

    se dispunha ao dilogo e participao de atividades comunitrias; e outros momentos

    de intolerncia contra todos sua volta. Protagonizara e sofrera muitas violncias no

    cenrio da rua. Ameaava as pessoas e as instituies com pedras, facas e com as

    acusaes verbais. Acalmava-se com as intervenes psicopedaggicas e espirituais

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    de instituies religiosas e com a cola de sapateiro que usava por longos perodos.

    Costumava manter um recipiente de cola sob a roupa que aspirava de tempos em

    tempos, independente de onde estivesse. Circulava pelas ruas, mas sua mente

    transitava em outras esferas.

    No ano de 2007, seus filhos continuavam em instituies pblicas que ela

    visitava com certa freqncia. Continuava morando em cortios e convivendo no

    circuito da rua. Passou a ter outra idia das instituies sociais, demonstrando nova

    conscincia da realidade, com uma ponta de orgulho: No venho muito aqui. Isso

    vai afundando a gente. Vir aqui s para comer? tenho que me virar, n!". Para ela, o

    que afunda a gente, no a instituio em si, mas a dependncia que ela pode

    alimentar. Ela distinguia a postura que adotara no passado, em que se afundava e apostura que adotava nesse momento da vida, em que se virava. De fato, ainda

    frequentava as instituies pblicas para tomar banho quente, para se alimentar

    eventualmente e falava com orgulho da psicloga voluntria que a atendia. Tinha

    conscincia e se sentia agradecida pela ajuda que recebia e a reproduzia com os

    outros: segundo o seu relato, comprou um tnis de um colega, por um real 18com a

    inteno de presentear o filho da sua vizinha: a gente recebe, tem que ajudar os

    outros tambm, n!.As mudanas comportamentais neste caso, segundo o prprio sujeito,

    ocorreram devido a mudanas nas maneiras de perceber a realidade. Os relatos

    indicam diferentes estados de conscincia relacionados sensao de opresso em

    situaes de carncia material e emocional, e ao uso de drogas.

    Considerando um histrico emocional disfuncional e representando toda a

    vida do sujeito ao longo de um eixo cronolgico desde o seu nascimento, sua

    personalidade constituda por uma sucesso de planos onde se projetam as relaesestabelecidas com as pessoas e com o meio em que vive. Desta forma, a mobilidade

    da conscincia do sujeito atravs de suas memrias pode conduzi-lo a perceber a si

    mesmo e o mundo sua volta com as referncias de um passado que j foi ou das

    expectativas de um futuro inacessvel. Antnio, por exemplo, costumava repetir:

    eu sou neutro, eu me sinto neutro, o que provavelmente se relaciona com relatos de

    adoo precoce, rejeio familiar e auto estima comprometida, que se mantiveram

    18

    uma prtica comum redistriburem os produtos de doaes recebidas, s vezes vendendo-os apreos simblicos. As instituies sociais tambm o fazem atravs dos brechs.

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    como referenciais difceis de serem superados. Por outro lado, Evaldo vive h anos

    na expectativa de uma vida abastada com os milhes que ganhar com seus

    inventos 19. Outro exemplo deste deslocamento longitudinal no eixo cronolgico da

    vida vem de Orlando ao rejeitar uma vaga num abrigo considerado de boa qualidade,

    para ficar na rua: no gostei, (...) me lembra a Febem!.

    Deslocando a abordagem desta questo para o campo dos estudos dos

    fenmenos psquicos, o termo estado alterado de conscincia se refere

    principalmente s alteraes decorrentes da ao psicoativa de certas substncias em

    reas especficas do crebro, cujo uso se encontra disseminado em praticamente

    todas as culturas ao longo de toda a histria da humanidade, como a iboga na frica,

    o peyote na America do Norte, o cacto So Pedro nos Andes, a ayahuasca naAmaznia, o pio no oriente, o cogumelo na sia, e outros menos exticos,

    facilmente cultivveis ou produzidos como a canabis, o tabaco, o vinho e o lcool

    (JAMES, 2002; HUXLEY, 1983; OTT, 1998). O isolamento de princpios ativos em

    laboratrios reduz a complexa combinao de alcalides das substncias naturais,

    permitindo direcionar sua funcionalidade para a regulao do humor. Por outro lado,

    trouxe as substncias alteradoras da conscincia para dentro da cincia, permitindo

    estudos criteriosos sobre o comportamento humano. Desde que Albert Hoffmandescobriu o cido lisrgico LSD, vrios pesquisadores puderam estud-lo antes que

    fosse proscrito como droga. GROFF (1985) ampliou a perspectiva da psicologia

    transpessoal demonstrando que as vises decorrentes do uso deste psicoativo se

    relacionam a padres comportamentais constitudos desde as experincias

    perinatais 20. Os estudos dos efeitos da ayahuasca, substncia obtida do cozimento

    de duas espcies vegetais da Amaznia, tradicionalmente utilizada por vrias etnias

    da regio e incorporada em rituais religiosos surgidos no incio do sculo XX,mostraram atravs de registros eletroencefalogrficos (HOFFMAN et al, 2001), o

    aumento de freqncias cerebrais alpha (8-13 Hz) e theta (4-8 Hz). Neste caso, os

    19Evaldo carrega consigo os registros de patentes de inventos como o tnis carro, um tnis infantilcom luzes acionadas pelo peso do corpo, reproduzido por empresas caladistas sem a sua autorizao(sic). Comenta que acionou a promotoria pblica, mas sente o descaso do advogado. Teme que eletenha sido subornado pela fbrica para no indeniz-lo. Com a ajuda de amigos e com seus prpriosrecursos tambm construiu uma panela de presso com alarme sonoro, visual e manmetro embutidos,dentre outros inventos.20 Para Stanislav Grof, as quatro matrizes emocionais perinatais, ou seja, vivenciadas em torno do

    nascimento, na gestao, pr-parto, parto e ps parto se relacionam com padres comportamentais quetendem a se reproduzir ao longo da vida.

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    estados de conscincia alterada se assemelham a estados de meditao profunda. O

    indivduo pode ter profundos insights sobre seus padres comportamentais e

    aprender a integrar contedos inconscientes a um nvel mais elevado da

    conscincia. Em termos neurolgicos, isto significa traz-los ao nvel neocortical,

    onde os problemas podem ser processados, entendidos e integrados (ibidem).

    Falar de contedos inconscientes implica tambm entrar num universo

    pessoal constitudo de memrias e representaes de fatores externos internalizados

    atravs das relaes familiares, de trabalho, relaes de assistncia, vnculos

    religiosos e outros contatos diretos ou indiretos com a sociedade. A possibilidade de

    induo a estados alterados de conscincia oferece, portanto, certa navegabilidade

    nos contedos de memria e mudanas na percepo da realidade, conferindosignificados diferenciados para determinadas experincias ou para toda a vida da

    pessoa. No obstante a interao qumica proporcionada por substncias alteradoras

    dos estados de conscincia, focalizaremos principalmente o que esta possibilidade

    significa para o sujeito. Este assunto tem sido tratado pela psicologia desde Willian

    James em 1902, e tem sido amplamente discutida por cientistas sociais a partir do

    uso de psicoativos culturalmente integrados em diversas sociedades.

    Os estudos de alteraes da conscincia incorporam ainda fenmenosexplicitamente vinculados ao contexto religioso, como a possesso de espritos.

    Reportamo-nos a estes estudos, sob a gide da Antropologia da Conscincia e da

    Psicologia Transpessoal, como alternativa ao enquadramento de experincias desta

    natureza ao rol dos transtornos psquicos. Independentemente da preciso dos

    diagnsticos mdicos, sintomas considerados como delrios e alucinaes produzidas

    pelo uso ou crises de abstinncia de drogas podem revelar aspectos da vida do sujeito

    que atribuem novos sentidos ao uso destas substncias. Julio, por exemplo, descreviao terror do ataque de demnios e ele prprio se auto flagelava com queimaduras e

    cortes que se transformavam em ferimentos crnicos. Uma investigao mais

    aprofundada de sua vida revelou que ele foi gerado a partir do incesto entre pai e

    filha, respectivamente seu pai/av e sua me. Uma interveno psicoteraputica

    revelou que sua infncia foi marcada pela internalizao de julgamentos

    culpabilizantes que culminaram com a sada do ambiente familiar e outras

    experincias de liminaridade que o conduziram situao de rua e s drogas.

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    Em situaes protegidas ritualisticamente, como observado nas prticas

    religiosas ou com fins teraputicos, os estados alterados de conscincia permitem que

    o sujeito transite pelos domnios arquetpicos, pelo inconsciente coletivo e no terreno

    numinoso da metafsica. O senso comum, endossado pela biomedicina, classificaria

    como alucinaes a maioria dos efeitos provocados por psicoativos como a iboga, o

    peyote, a mescalina e a ayahuasca, tradicionalmente utilizados em rituais religiosos.

    Como cita Escohotado cuando estos frmacos intervenienem em ceremonias

    dirigidas por chamanes, otros hechiceros y sacerdotes em sentido estricto,

    constituyen sustncias com virtud enteognica. O termo vem de em-theos-genos:

    engendrar dentro de si al dios, generar lo divino (ESCOHOTADO,1995, p 40;

    ver tambm WASSON, 1996, p.100).Tambm encontramos a referncia ao divino e ao paraso para

    caracterizar os estados alterados induzidos pelo lcool e crack em depoimentos de

    moradores de rua e no moradores de rua, significando experincias de xtase. Os

    padres ritualsticos encontrados entre usurios de substncias psicoativas em

    contextos destitudos da sacralidade do contexto religioso podem privar o sujeito dos

    contedos simblicos enteognicos, entretanto no os privam da experincia notica,

    conduzindo-a a outras finalidades como as de sociabilidade, amplamente referidaentre os usurios de drogas na rua e igualmente de outras categorias sociais. A

    iniciao alcolica e canbica entre jovens que tiveram contato com estas substncias

    na transio entre o ambiente familiar e o de bares e amigos costuma ser referida pela

    apropriao de sensaes at ento desconhecidas associadas ao processo da prpria

    individuao, quando rompem os cordes umbilicais que os mantinham conectados

    aos pais e familiares, conferindo-lhes autonomia e capacidade de perceber a

    genuinidade de si, do outro e das relaes que capaz de estabelecer na mesa dobar ou na roda de fumo.

    A alterao orgnica e comportamental e as alteraes na percepo da

    realidade e das realidades internas acontecem em diferentes configuraes conforme

    a droga utilizada. No faremos distines analticas entre as categorias lcitas e

    ilcitas, razo pela qual preferimos utilizar o termo droga de forma genrica em

    algumas partes do texto. Usurios de crack so comumente discriminados pelos

    usurios de lcool justificando-se o uso legal da bebida, mas a violncia e os roubos

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    associados ao crack so motivos mais realistas que justificam esta separao. Cabe

    salientar que observamos malocas igualmente freqentadas por usurios de ambas as

    substncias. Como o uso drogas ilcitas como o crack e a maconha se tornaram

    comuns na rua, raramente geram prises, mas so desestimulados com posturas

    ameaadoras e demonstraes de hostilidade da polcia. Desta forma, evita-se o uso

    individual de forma ostensiva, mas criam-se redutos como a cracolndia, onde o

    artifcio de uso coletivo funciona como ritual de sociabilidade e como estratgia para

    se proteger do controle policial. Quando os policiais se aproximam, os grupos de

    usurios se espalham ou se deslocam em bandos, s vezes apenas mudando para

    ruas prximas 21. No contexto do estudo etnogrfico realizado, utilizamos os termos

    lcool ou bebidas alcolicas, maconha ou canabis, crack e cocana, conforme asignificncia que apareceram em cada caso em particular.

    Os conceitos que se referem patologizao do uso vm sendo confrontados

    com o seu entendimento como um fenmeno socialmente construdo, como se

    refere NEVES (2004) em relao ao alcoolismo. Cada sociedade tem colocado em

    relevo os padres institucionalizados de uso das bebidas alcolicas, a variedade dos

    modos de produo, de motivos e de oportunidades construdas para o ato social de

    beber (p.8). Em relao ao uso em situaes liminares, SOUZA e GARNELO(2006) tambm buscam a desconstruo do alcoolismo em suas notas a partir da

    construo do objeto de pesquisa no contexto indgena. Citando Langdon

    (LANGDON, 2001), assume-se o compromisso terico, tico e poltico de

    desconstruir a categoria alcoolismo, evitando utiliz-la no sentido do senso

    comum, e tendo o cuidado de no fornecer argumentos a setores da sociedade

    nacional que se utilizam desta categoria para acentuar a discriminao dos grupos

    indgenas (p.280).Ao nos desvestirmos de conceitos como alcoolismo, dependncia qumica e

    doena incurvel, a imerso em estados induzidos pelo uso contnuo de lcool,

    maconha e crack entre moradores de rua indicam em primeiro lugar, a preferncia

    21 Observamos esta dinmica em pequenos grupos, em torno de at 6 pessoas, em lugares comobaixios de viadutos na baixada do Glicrio, Parque D. Pedro, Vale do Anhagaba, Praa da S,principalmente para o uso de maconha e eventualmente para o uso de crack. A formao de gruposmaiores de usurios de crack de at 30 pessoas esto limitados a redutos especficos como as ruas emtorno da Praa Princesa Isabel, na regio da cracolndia. Pequenos grupos de usurios de crack ou

    maconha aglutinados em torno de uma maloca evitam se expor protegendo-se dos olhares externoscom caixas e outros aparatos da prpria maloca.

  • 7/26/2019 VARANDA_Liminaridade, Bebidas Alcolicas e Outras Drogas Funes e Significados Entre Moradores de Rua

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    pelos estados alterados ao invs dos estados ordinrios de conscincia. Partindo

    desta possibilidade que a rua oferece, abordaremos a seguir os principais conceitos

    que nos ajudaro a compreender a situao de rua.

    O encanto e o desencanto da rua

    Como marco da fundao da cidade, em 1554 o local situava-se numa

    colina alta e plana, cercada por dois rios, o Tamanduate e o Anhangaba.

    Agora, com um rio a menos, o museu e a capela ainda lembram o Colgio dos

    Jesutas, hoje, Ptio do Colgio 22. Neste cenrio uma roda de pinga

    alimentava o batuque nos largos degraus do monumento em honra Glria

    Imortal aos Fundadores de So Paulo. Um jovem, negro, literalmente

    descamisado, abreviava a parbola do filho prdigo 23: o filho saiu de casa e foi

    pro mundo, comia a bolotas dos porcos, ...voc sabe o que bolotas dos

    porcos... o resto, ele comia o resto, ... quando ele voltou o pai dele preparou

    uma festa... 24.

    Os termos moradores de rua e populao de rua, que denominam o segmento

    populacional referenciado nesta investigao, encontram-se incorporados nas

    recentes publicaes sobre este tema na cidade de So Paulo (GIORGETTI, 2006; _

    2007; ROSA, 2005; VIEIRA e col., 2004; VARANDA e ADORNO, 2004;

    ALVAREZ, 2003; LOSCHIAVO, 2003; SAS/FIPE, 2003a, 2003b). A identidade

    social da populao de rua emerge a partir dos levantamentos scio-demogrficos, de

    suas histrias, de suas expresses na cidade sob distintas perspectivas pelas quais sopercebidos: da biomdica e demogrfica, da assistncia social, da religiosa e da tica

    e cidadania.

    Estaremos nos referindo, portanto, s pessoas sem moradia fixa, sem renda

    definida e suficiente sobrevivncia, que vivem nas ruas com doaes, renda de

    22 Encontramos a referncia geogrfica no site da prefeitura (PMSP, 2008) e referncias heranacultural e religiosa dos jesutas em Gambini (2000).23

    Evangelho de So Lucas da Bblia Crist captulo 11, versculo 11 e seguintes.24Campo - Relatrio da visit