Van Gogh e a melancolia: pinturas de pôr do sol em Arles
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO PROGRAMA DE PS-GRADUAO INTERUNIDADES EM ESTTICA E HISTRIA DA ARTE
MARIANA PEREIRA LENHARO
Van Gogh e a melancolia: Pinturas de pr do sol em Arles
So Paulo
Julho de 2014
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MARIANA PEREIRA LENHARO
Van Gogh e a melancolia: Pinturas de pr do sol em Arles
So Paulo Julho de 2014
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao Interunidades em Esttica e Histria da Arte da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Esttica e Histria da Arte Linha de pesquisa: Teoria e Crtica da Arte Orientadora: Profa. Dra. Katia Canton
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AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL E PARCIAL DESTE TRABALHO, POR
QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E
PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogao da Publicao
Biblioteca Lourival Gomes Machado
Museu de Arte Contempornea da Universidade de So Paulo
Lenharo, Mariana Pereira.
Van Gogh e a melancolia: pinturas de pr do sol em Arles / Mariana Pereira
Lenharo ; orientadora Katia Canton. -- So Paulo, 2014.
118 f. : il.
Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao Interunidades em
Esttica e Histria da Arte) -- Universidade de So Paulo, 2014.
1. Ps-impressionismo. 2. Arte Moderna Sculo 19. 3. Melancolia. 4. Van
Gogh, Vincent, 1853-1890. I. Canton, Katia. II. Ttulo.
CDD 759.056
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LENHARO, Mariana Pereira
Van Gogh e a melancolia: Pinturas de pr do sol em Arles
Aprovado em: ___/___/___
Banca examinadora
Prof. Dr. __________________________ Instituio: ___________________________
Julgamento: _______________________ Assinatura: ___________________________
Prof. Dr. __________________________ Instituio: ___________________________
Julgamento: _______________________ Assinatura: ___________________________
Prof. Dr. __________________________ Instituio: ___________________________
Julgamento: _______________________ Assinatura: ___________________________
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao Interunidades em Esttica e Histria da Arte da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Esttica e Histria da Arte Linha de pesquisa: Teoria e Crtica da Arte
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AGRADECIMENTOS
professora Katia Canton, que acreditou em minha proposta e me deu a oportunidade
de desenvolver esta pesquisa.
professora Elza Ajzenberg e ao professor Paulo Roberto Barbosa, pelas importantes
contribuies na banca de qualificao.
Aos colegas de mestrado Alex Gomes, Adriana D'Agostino e Aryane Cararo, pela ajuda
ao longo do desenvolvimento do trabalho e pelo apoio nos momentos difceis.
Ao Daniel, pela reviso do trabalho.
Aos meus amigos, pelo carinho e companheirismo.
minha famlia, por todo apoio e incentivo.
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Enfim, quero chegar ao ponto em que digam de minha obra: este homem sente profundamente, este homem sente delicadamente. Apesar de minha suposta grosseria, voc me entende? Ou precisamente por causa dela.
Vincent van Gogh, 1882
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RESUMO
Este trabalho tem por objetivo verificar que tipo de impacto as crises de melancolia do
pintor Vincent van Gogh podem ter exercido sobre sua produo artstica. Os
questionamentos tomados como ponto de partida so os seguintes: se o estado de
melancolia impulsiona seu trabalho como artista, se a melancolia imprime
caractersticas especficas em sua obra e se a arte proporciona a Van Gogh um alvio ou
um agravamento de sua natureza melanclica. A pesquisa foca um perodo especfico
na vida do artista: os primeiros 10 meses em que viveu na cidade de Arles, no sul da
Frana, entre fevereiro e dezembro de 1888. A leitura das 139 cartas escritas por Van
Gogh neste perodo possibilitou identificar os momentos em que ele descrevia seu
prprio estado de esprito como melanclico. A partir desta identificao, o trabalho
parte para a anlise de obras produzidas no perodo, das quais foram selecionadas oito
telas de pr do sol. A observao das telas sob o contexto do sentimento
experimentado por Van Gogh enquanto as produzia levou, por fim, a uma reflexo
sobre a relao entre melancolia e a arte no pintor.
Palavras-chave: Vincent van Gogh, Melancolia, Arte Moderna.
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ABSTRACT
The aim of this research is to verify what kind of impact the melancholy crises of the
painter Vincent van Gogh may have had in his artistic production. The questions that
represent the starting point are: whether the state of melancholy impels his work as
an artist, whether melancholy results in specific features in his work and whether art
provides a relief or an aggravation of Van Gogh's melancholy nature. The research
focuses on a specific period in the artist's life: the first 10 months in which he lived in
the city of Arles, in the south of France, between February and December of 1888. The
reading of the 139 letters written by Van Gogh during this period enabled the
identification of the moments in which he described his own state of mind as
melancholic. Based on this identification, the study starts the analysis of the paintings
produced in this period, from which eight canvas of setting suns were selected. The
observation of these works under the context of the emotions experimented by Van
Gogh while he painted them led, ultimately, to a reflection about the relationship
between melancholy and art in the painter.
Keywords: Vincent van Gogh, Melancholy, Modern Art.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Vincent van Gogh, Pollard willows with setting sun (F 572 / JH 1597), maro de 1888, leo sobre tela 31,6 x 34,3 cm. Krller-Mller Museum, Otterlo, Holanda . 77
Figura 2 - Vincent van Gogh, Sower with setting sun (F422 / JH 1470), junho de 1888, leo sobre tela 64,2 x 80,3 cm. Krller-Mller Museum, Otterlo, Holanda ............... 82 Figura 3 - Vincent van Gogh, Wheatfield with setting sun (F 465 / JH 1473), junho de 1888, leo sobre tela 74 x 91 cm, Kunstmuseum Winterthur, Winterthur, Sua ...... 86 Figura 4 - Fac-smile da Carta 628, escrita em 19 de junho para Emile Bernard, com esboo do quadro Wheatfield with setting.................................................................. 88 Figura 5 - Vincent van Gogh, Sunset at Montmajour (F - / JH -), julho de 1888, leo sobre tela - 93,3 x 73,3 cm. Coleo privada ............................................................... 89 Figura 6 - Vincent van Gogh, Sand barges (F437 / JH 1570), outubro de 1888, leo sobre tela 71 x 95 cm. Coleo privada..................................................................... 92 Figura 7 - Vincent van Gogh, Sand barges (F438 / JH 1571), outubro de 1888, leo sobre tela 53,3 x 64 cm. Museu Thyssen-Bornemisza, Madri, Espanha ..................... 92 Figura 8 - Vincent van Gogh, Red vineyard (F495 / JH 1626), novembro de 1888, leo sobre tela 75 x 93 cm. Pushkin State Museum of Fine Arts, Moscou, Rssia ............. 96 Figura 9 - Paul Gauguin, Human miseries (W317/W304), novembro de 1888, leo sobre tela - 73,5 x 92,5 cm. Ordrupgaard Collection, Copenhague, Dinamarca ............ 97 Figura 10 - Vincent van Gogh, Sower with setting sun (F450 / JH 1627), novembro de 1888, leo sobre estopa sobre tela 73,5 x 93 cm. Foundation E. G. Buehrle Collection, Zurique, Sua ............................................................................................................. 99 Figura 11 - Fac-smile da carta 722, escrita para Theo em 21 de novembro de 1888, com esboo da pintura Sower with setting sun ......................................................... 101 Figura 12 - Vincent van Gogh, Doctor Gachet (F 753 / JH 2007), 1890, leo sobre tela - 66 x 57 cm. Coleo privada ...................................................................................... 105 Figura 13 - Vincent van Gogh, Sorrow (929a / JH 130), 1882, carvo - 44,5 x 27 cm. Walsall Museum and Art Gallery, The Garman Ryan Collection, Walsall, Inglaterra ... 106 Figura 14 - Vincent van Gogh, At Eternity's gate (F702 / JH1967), 1890, leo sobre tela - 80 x 64 cm. Krller-Mller Museum, Otterlo, Holanda ............................................ 107
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Figura 15 - Vincent van Gogh, Weeping woman (F1069 / JH325), giz preto e branco sobre papel, 1883, Art Institute of Chicago, Chicago, Estados Unidos ........................ 107 Figura 16 - Vincent van Gogh, Peasant sitting by the fireplace (F863 / JH34), aquarela, 1881. P. and N. de Boer Foundation, Amsterdam, Holanda ....................................... 107
file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484640file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484640file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484639file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484639
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SUMRIO
1 Introduo ........................................................................................................... 11
1.1 Objeto ........................................................................................................... 12
1.2 Objetivos ....................................................................................................... 14
1.3 Justificativa .................................................................................................... 15
1.4 Metodologia e quadro terico de referncia ................................................. 16
2 Van Gogh e a Melancolia ..................................................................................... 24
2.1 Evoluo histrica do conceito de melancolia ................................................ 24
2.2 O artista se define como melanclico ............................................................ 35
2.3 Jornada at o sul da Frana ........................................................................... 40
3 A produo nos perodos melanclicos ............................................................... 47
3.1 As cartas revelam seus sentimentos .............................................................. 47
3.2 Anlise dos quadros....................................................................................... 74
4 Discusso ........................................................................................................... 102
4.1 Concluso .................................................................................................... 114
REFERNCIAS ............................................................................................................ 116
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1 Introduo
A melancolia uma caracterstica marcante da personalidade de Vincent van
Gogh (1853 1890). Descrito por seus bigrafos e por sua prpria famlia como aquele
que estava sempre "no limiar da melancolia" (SWEETMAN, 1993, p. 80) e que
alimentava "hbitos de solido e de melancolia" desde a infncia (NAIFEH e SMITH,
2012, p. 129), o artista tambm costumava mencionar em suas cartas como sua
natureza era "terrivelmente e irreparavelmente melanclica" (Carta 244)1.
Mas de que forma este temperamento reflete em suas obras de arte? Foi esta a
pergunta que me fez delinear o projeto de mestrado que resultou nesta dissertao.
Cabe mencionar aqui algumas das principais motivaes que me levaram a escolher
tratar do sentimento de melancolia no artista Vincent van Gogh.
Primeiro, assim como deve ser em qualquer processo de pesquisa, o que me
guiou foi a curiosidade. As pinturas de Van Gogh passaram a exercer fascnio sobre
mim desde cedo. A ideia de que eram produzidas por uma espcie de gnio-louco, no
entanto, sempre foi motivo de desconfiana por parecer uma constatao demasiado
simplista. Descobrir o homem por trs da arte , portanto, minha principal inteno. E
tentar identificar algo que tenha passado despercebido por inmeros olhares
anteriores meu desafio.
Hoje, alis, todos os olhares voltam-se para Van Gogh. Seus quadros atingem
preos exorbitantes em leiles de arte2 e, em pleno ano de 2012, um livro que se
props, mais uma vez, a contar a histria de sua vida turbulenta ganhou uma imensa
projeo miditica3. A descoberta de uma nova tela do artista em 2013 tambm foi
noticiada com destaque por veculos de comunicao do mundo inteiro. Ainda assim,
vejo espao para revelar o novo.
1 As menes s cartas escritas por Van Gogh neste trabalho seguem sempre a numerao proposta pela publicao mais recente e mais completa da correspondncia do artista: VAN GOGH, Vincent. The letters. The complete illustrated and annotated edition. Londres: Thames & Hudson, 2009. 2 O quadro "Vue de l'Asile et de la Chapelle de Saint-Remy" que pertencia coleo da atriz Elizabeth Taylor, foi vendido na casa de leilo Christies em fevereiro de 2012 por US$ 16 milhes. Em 1987, um de seus Les Tournesols bateu um recorde no mercado da arte ao ser leiloado por US$ 36 milhes. 3 Este livro Van Gogh: A vida, de Steven Naifeh e Gregory White Smith. Lanado no Brasil em novembro de 2012 pela Companhia das Letras, props um novo olhar sobre a morte de Van Gogh, contestando a tese de morte do pintor como suicdio.
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Ao longo deste trabalho, busco descobrir de que maneira os diferentes estados
de esprito experimentados por Van Gogh podem ter influenciado sua produo
artstica. Em sua trajetria marcada por oscilaes frequentes entre melancolia e
euforia, seria possvel detectar em sua pintura sinais da presena desses sentimentos?
como se ele fosse duas pessoas: uma maravilhosamente dotada, terna e refinada, a outra egosta e cruel. Elas se apresentam alternadamente, de modo que a gente o ouve falar primeiro de uma maneira, depois da outra, e sempre com discusses dos dois lados. (VAN GOGH, Theo apud SWEETMAN, 1993, p. 195)
A descrio feita por Theo van Gogh, irmo de Vincent, em carta enviada irm
Willemien, demonstra quo ntida era sua percepo sobre a dualidade do esprito do
artista. Este trabalho busca conhecer mais profundamente essas duas pessoas: o bom
e o cruel, o melanclico e o eufrico, o sensato e o desvairado, o monge e o pintor.
Esta pesquisa aborda um perodo especfico da vida de Van Gogh os dez
primeiros meses em que viveu em Arles, no sul da Frana para buscar identificar de
que forma os episdios de melancolia, que eram intercalados com momentos de
euforia, interferiram em sua produo artstica.
A partir das cartas escritas na poca, foi possvel determinar os perodos em
que ele mencionou estar se sentindo melanclico. A partir da, escolhi um tema de
pintura que se repetiu ao longo de todo o perodo analisado: o pr do sol. O trabalho
parte, ento, para a anlise das oito telas de pr do sol produzidas nesses 10 meses,
levando em conta que algumas delas foram feitas em meio a crises de melancolia e
outras no.
1.1 Objeto
Este estudo tem como objeto as pinturas produzidas por Van Gogh entre
fevereiro e dezembro de 1888 e tambm as cartas escritas pelo artista na mesma
poca. O perodo de 10 meses delimitado por este estudo vai desde sua mudana de
Paris onde vivera por quase trs anos com o irmo Theo para a cidade de Arles, no
sul da Frana, at a crise que o leva automutilao da orelha.
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A escolha por esse perodo especfico deve-se ao fato de que, em Arles, Van
Gogh experimentou estados de esprito muito distintos em um curto intervalo de
tempo. Se houve momentos em que demonstrou intenso entusiasmo com o clima e as
cores quentes do sul, caractersticas que o aproximavam do Japo que tanto admirava,
houve tambm situaes em que se sentiu solitrio e melanclico. Foi nessa poca que
ele comeou a sonhar, esperanoso, com a formao de uma comunidade de artistas,
ambio que foi amplamente documentada em sua correspondncia e que tomou
conta de boa parte de sua reflexo sobre a arte no perodo. Foi l tambm que
percebeu sinais de que sua idealizao poderia jamais ser concretizada.
Nos meses que se seguem ao fatdico incidente da orelha, ocorrido em 23 de
dezembro de 1888, o pintor passa longos perodos internado em busca da recuperao
mental. Suas cartas tornam-se mais escassas e seu trabalho, mais irregular. Por esse
motivo, este estudo limita-se fase que antecede a crise.
O psiquiatra Humberto Nagera, que dedicou ao pintor um estudo psicolgico
publicado pela primeira vez no final da dcada de 1960, afirma que o perodo de Arles
tem uma importncia primordial na vida de Van Gogh, tanto do ponto de vista artstico
pois quando atinge sua forma de expresso mais acabada , quanto do ponto de
vista psicolgico:
[Em Arles] sua vida e seus conflitos psicolgicos alcanam tambm um ponto culminante, o qual, por desgraa, marca o comeo de um perodo infeliz e de grandes perturbaes que conduzem, quase sem interrupo, ao final ocorrido um ano e dois meses mais tarde, em julho de 1890. (...) s vezes, queixa-se de seu nervosismo e ansiedade. Est, em alguns momentos, animado e, em outros, deprimido. Seu isolamento e sua solido no contribuem para alivi-lo. (NAGERA, 1980, p. 113, traduo nossa)
Por condensar muitas experincias discrepantes, a anlise dessa fase permitir
observar possveis contrastes entre as pinturas produzidas em momentos de
melancolia e em momentos de euforia e identificar se, afinal, a presena desses
sentimentos foi capaz de provocar um impacto perceptvel em sua obra.
Levando em conta toda a estadia em Arles, que se estendeu por mais quatro
meses aps o episdio de automutilao, at o dia 8 de maio de 1889, Van Gogh
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produziu mais de 200 quadros e mais de 100 desenhos e aquarelas (PICKVANCE, 1985,
p. 11).
Do perodo analisado, chegaram at ns 139 cartas escritas por Van Gogh. A
maioria delas, 106, tinha como destinatrio o irmo Theo. O segundo maior
correspondente da poca foi o pintor francs Emile Bernard, para quem escreveu 19
cartas. Sua irm Willemien foi a destinatria de 8 correspondncias. Outros amigos
com quem trocou cartas ao longo dos 10 meses foram o pintor de origem australiana
John Peter Russell, o belga Eugne Boch, o holands Arnold Koning, alm de Paul
Gauguin.
A frequncia com que Van Gogh escrevia a amigos e familiares variou durante
os meses em que esteve em Arles. Em maro, por exemplo, escreveu apenas 8 cartas.
J em outubro, chegou a enviar 20 correspondncias. Ao longo dos 10 meses
analisados, o artista escreveu, em mdia, uma carta a cada dois dias.
Ele tinha uma necessidade real de trocar ideias, de discutir problemas artsticos e comparar seu trabalho com o de outros artistas, de preferncia pessoalmente, seno por carta. Se ele pudesse falar com as pessoas face a face, ele obviamente teria menos necessidade de escrever. (JANSEN; LUIJTEN; BAKKER, 2009, traduo nossa)
Na edio mais recente e mais completa das cartas, os editores ressaltam ainda
outro aspecto da correspondncia: a qualidade intrnseca da escrita de Vincent. (...)
tom pessoal, estilo evocativo e linguagem viva. A combinao desses fatores levou
alguns especialistas a conceder correspondncia o status de literatura. (JANSEN;
LUIJTEN; BAKKER, 2009).
Desta forma, o conjunto formado pela correspondncia e pelas pinturas
realizadas no perodo, bem como a documentao que permite determinar com
preciso a data em que as pinturas foram executadas, servem como base para a
execuo desta pesquisa.
1.2 Objetivos
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Este trabalho tem como objetivo geral identificar se o estado de melancolia
experimentado pelo pintor Vincent van Gogh em determinados perodos de sua vida
teve algum impacto em sua produo artstica.
Como objetivos especficos, pretende, primeiro, identificar se o estado de
melancolia em Vincent van Gogh impulsiona ou inibe sua produtividade artstica.
Em segundo lugar, pretende identificar se existem caractersticas presentes nas
obras produzidas em perodos de melancolia que diferem daquelas presentes em
obras relacionadas a perodos de euforia ou de serenidade.
Finalmente, pretende identificar se a produo artstica tem algum efeito sobre
seu estado de esprito: a arte exerce o papel de aliviar ou de agravar seu estado de
melancolia?
1.3 Justificativa
O dilogo entre psicologia e histria da arte apresenta-se de maneira intensa
desde o fim do sculo XIX, a partir de quando surgem historiadores da arte como
Warburg, Panofsky e Gombrich cuja compreenso de seu objeto de estudo passa a
ser influenciada por sua formao em psicologia (FRAYZE-PEREIRA, 2010).
No caso da literatura dedicada compreenso da vida e obra de Van Gogh,
esse dilogo ainda mais arraigado, tendo sido o pintor alvo de uma crtica eivada de
psicologismo (FRAYZE-PEREIRA, 2010). Esse tipo de abordagem pode ser justificada
pela maneira como a biografia do artista revela a importncia de suas emoes em seu
processo de produo artstica.
Para Vincent, sua arte era um registro mais verdadeiro, mais revelador (to profundo to infinitamente profundo) de sua vida, at mais do que a enxurrada de cartas que sempre vinham de acompanhamento. Ele acreditava que toda onda de serenidade e felicidade, todo estremecimento de dor e desespero ingressavam na pintura; todo sofrimento se infundia em imagens que geravam sofrimento; todo retrato se fazia em autorretrato. E dizia: Quero pintar o que sinto e sentir o que pinto. (NAIFEH; SMITH, 2012, p. 27)
Alm disso, sua histria de vida desperta ateno especialmente por causa da
instabilidade de sua sade mental. O fato de que situaes trgicas de sua vida como
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o episdio da orelha cortada ou da mo queimada4 so citadas com frequncia
mesmo pelo pblico leigo demonstra o quanto esses acontecimentos, carregados de
folclore e simbolismo, atiam a curiosidade dos que tm contato com sua obra. Todos
querem saber mais sobre o gnio maluco, aquele que s vendeu um quadro enquanto
vivia e que tirou sua prpria vida sem saber se sua arte seria, um dia, compreendida.
Apesar dos numerosos estudos sobre a obra e a personalidade de Van Gogh,
muitas questes a respeito do artista permanecem sem resposta. A questo de como
suas intensas emoes, em especial a melancolia, deixam-se transparecer em suas
telas um desses enigmas.
A pertinncia deste trabalho reside no fato de que decifrar esse mecanismo em
Van Gogh seria dar um passo adiante na direo de compreender como se d a relao
entre a criao artstica e a melancolia tambm em outros artistas.
1.4 Metodologia e quadro terico de referncia
Para atingir o objetivo geral deste trabalho, que avaliar se o estado de
melancolia de Van Gogh exerceu algum tipo de impacto em sua produo artstica, os
procedimentos metodolgicos adotados consistem na leitura e anlise das 139 cartas
escritas pelo artista no perodo que esta pesquisa tem como foco: entre 20 de
fevereiro de 1888, quando o pintor chega a Arles, at 23 de dezembro de 1888,
quando corta sua prpria orelha aps um ataque, termo que ele mesmo usou para
descrever o acontecimento.
Ao buscar a publicao mais recente das cartas completas de Van Gogh,
descobri com grata surpresa que todas as 819 cartas escritas pelo artista ao longo da
vida que foram preservadas por seus correspondentes, podem ser acessadas de forma
4 Em 1880, enquanto van Gogh passava a Pscoa com os pais na cidade de Etten, a famlia recebeu a
visita da prima de Vincent, Cornelia Vos (que era chamada de Kee), junto de seu filho Jan. Van Gogh apaixonou-se pela viva e declarou-se. Mesmo depois de ser veementemente rejeitado, resolveu tentar convenc-la de suas intenes e foi at Amsterd, na casa do tio Johannes Stricker, ver a amada. Ao ser informado de que ela no estava, e desconfiando que a alegao era apenas uma desculpa de seu tio, resolveu estender a mo direita sobre o funil de uma lmpada a leo e declarar que queria v-la nem se fosse somente pelo tempo em que aguentasse manter as mos sobre a chama. Num anticlmax, o tio Stricker simplesmente apagou a lmpada e manteve-se firme na inteno de no deix-lo ver a filha Kee. A mo ficou apenas superficialmente ferida.
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gratuita pelo site www.vangoghletters.org. Essa publicao, que tambm ganhou uma
edio em livro, com seis volumes, ocorreu em 2009, aps 15 anos de trabalho de
pesquisadores do Van Gogh Museum e do Huygens Institute of the Royal Netherlands
Academy of Arts and Sciences. A equipe, coordenada por Leo Jansen, Hans Luijten e
Nienke Bakker, revisou os manuscritos e fez nova traduo das lnguas originais para o
ingls, alm de acrescentar notas explanatrias. O trabalho inclui a identificao dos
indivduos citados pelas cartas, bem como as obras de arte mencionadas e a origem de
aluses e citaes que aparecem nas correspondncias.
Na pgina da internet, o leitor pode acessar os textos originais das cartas, os
fac-smiles, as notas explanatrias, a traduo dos textos para o ingls e as imagens de
todas as obras mencionadas ao longo do dilogo entre Van Gogh e seus
correspondentes.
Cabe observar que, das 139 cartas analisadas, 133 foram lidas na lngua original
(131 em francs e 2 em ingls). Em 6 delas, escritas originalmente em holands, coube
recorrer traduo para o ingls. As citaes a trechos das cartas feitas neste trabalho,
portanto, foram traduzidas por mim a partir da lngua original ou a partir do ingls, no
caso das que estavam originalmente em holands. Os nmeros referentes s cartas
aqui adotados so aqueles definidos por Jansen, Luijten e Bakker nessa ltima reviso
da correspondncia.
Se todo esse material chegou at ns, muito se deve ao empenho da viva de
Theo, Johanna van Gogh-Bonger. Pouco menos de seis meses aps a morte de Van
Gogh, em 29 de julho de 1890, seu irmo Theo tambm morre, em 25 de janeiro de
1891. Alm de ser seu principal correspondente, Theo era tambm quem sustentava
financeiramente o irmo e o detentor de muitas de suas obras.
Por ocasio de sua morte, quem fica responsvel pelo patrimnio artstico e
literrio dos irmos Van Gogh Johanna, ento com 29 anos. Na poca, Vincent no
tinha muita relevncia no meio artstico e no gozava de grande reconhecimento nem
mesmo por parte de seus colegas artistas. Ainda assim, Johanna acreditou na
importncia de reunir e preservar cerca de 550 pinturas, vrias centenas de desenhos
e uma enorme e desordenada pilha de cartas.
http://www.vangoghletters.org/
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Coube a Jo, a viva de Theo, realizar o milagre de transformar o nome insignificante de um suicida obscuro, que s expusera umas poucas telas em algumas mostras de vanguarda, e que de fato s vendera um quadro em toda a sua vida, no do artista mais famoso de seu tempo. (SWEETMAN, 1993, p. 283)
No prefcio da Biografia de Vincent van Gogh por sua cunhada (VAN GOGH-
BONGER, 2008), o filho de Theo e Johanna, tambm chamado Vincent Willem van
Gogh como o tio famoso relata que sua me se esforou ao longo de muitos anos
para colocar as cartas de Vincent em ordem cronolgica, j que muitas no tinham
data.
A primeira edio das cartas foi lanada em trs volumes em Amsterd em
1914. Um dos muitos bigrafos de Van Gogh, o britnico David Sweetman, conta que
Johanna chegou a adiar a publicao, j que ela considerava que os detalhes pessoais
da vida do artista s deveriam ser revelados quando sua obra fosse mais bem
assimilada pelo pblico. As cartas foram publicadas nas vrias lnguas em que Vincent
as escrevera. A introduo um relato de Jo sobre a vida de Vincent, sobretudo a
partir de lembranas do que Theo lhe contara foi a base de todas as biografias
subsequentes de Vincent (SWEETMAN, 1993, p. 285).
Em 1915, ela se mudou para Nova York, onde comeou a traduzir as cartas para
o ingls. Quando morreu, no dia 2 de setembro de 1925, tinha chegado at a carta
nmero 526, de acordo com seu filho Vincent Willem.
As cartas so escritas com tal frequncia que correspondem a registros quase
dirios do estado de esprito do pintor. Nelas, Van Gogh discorre sobre o trabalho, os
anseios e as angstias, demonstrando assim seu modo de ver o mundo. Para
Sweetman, a anlise das cartas um procedimento primordial para compreender a
essncia do artista:
preciso retornar s suas prprias palavras para descobrir a verdade. Ele se deu a considervel trabalho para explicar seu pensamento em sua extensa correspondncia, e o tempo dedicado s pinturas, seguido da leitura de suas cartas, principalmente a seu irmo Theo, um dos prazeres mais iluminantes que o estudo da arte tem a oferecer. (SWEETMAN, 1993, p. 10)
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No prefcio do livro Vincent van Gogh: Un Studio psicolgico, do psiquiatra
Humberto Nagera, a psicanalista Anna Freud tambm destaca a maneira como as
cartas revelam os sofrimentos de Van Gogh:
As cartas de Vincent van Gogh em que se baseiam este livro tm emocionado o leitor pela sinceridade dos sentimentos expressados nelas, por sua fora expressiva, pela profundidade dos sofrimentos humanos que refletem e pelos lampejos de intuio que manifestam uma e outra vez. Em suas cartas, van Gogh d um testemunho necessariamente subjetivo dos acontecimentos que marcaram sua existncia. (FREUD, 1980, p. 7, traduo nossa)
Conhecendo o carter oscilante do estado de esprito do pintor ao longo dessa
fase, busca-se determinar, por meio da anlise desses documentos, os perodos em
que suas palavras revelam um estado de esprito melanclico e sombrio, assim como
os momentos em que seu discurso aponta para um estado eufrico e entusiasmado.
O discurso do sujeito, a escolha que ele faz das palavras, alm do uso da
entonao e do ritmo podem denunciar, ainda que involuntariamente, a presena da
melancolia e da tristeza. Julia Kristeva descreve o discurso do deprimido como uma
ladainha repetitiva.
Lembrem-se das palavras do deprimido: repetitivas e montonas. Diante da impossibilidade de se encadear, a frase se interrompe, se desgasta, para. Mesmo os sintagmas no chegam a se formular. Um ritmo repetitivo, uma melodia montona vem dominar as sequncias lgicas rompidas e as transformar em ladainhas recorrentes, obsessivas. (KRISTEVA, 1987, traduo nossa)
A anlise das cartas de Van Gogh resulta na identificao de algumas das
caractersticas citadas por Kristeva. Frases interrompidas e ideias descritas apenas pela
metade aparecem em algumas das cartas escritas durante o perodo.
Outro fenmeno destacado por Kristeva a respeito do discurso do deprimido
a observao de que aquele que acometido pela depresso, por sofrer um luto
impossvel do objeto maternal, como um estrangeiro na lngua materna, j que no
consegue integrar-se plenamente cadeia significante universal a linguagem.
A fala do depressivo para ele como uma pele estrangeira: o melanclico um estrangeiro em sua lngua materna. Ele perdeu o sentido o valor de sua lngua materna, falta de perder sua me. A
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lngua morta que ele fala e que anuncia seu suicdio esconde uma Coisa enterrada viva. (KRISTEVA, 1987)
A autora descreve ainda o discurso do depressivo como uma mscara bela
fachada entalhada em uma lngua estrangeira. Esse fenmeno de ser estranho
prpria lngua materna pode ser identificado literalmente na correspondncia de Van
Gogh. A partir do momento em que decide ser artista, ele comea a se corresponder
com o irmo Theo em francs, no lugar do holands materno.
O uso do francs para dirigir-se a seu irmo, com quem seria natural conversar
em holands, aparece pela primeira vez em carta de 15 de outubro de 1880, quando o
artista chega a Bruxelas com o objetivo de aprender a desenhar. A escolha parece
frisar o fato de que uma nova vida estava comeando (SWEETMAN, 1993). Um
comentrio sobre o fato de ele se sentir mais vontade ao se expressar em francs
tambm aparece em uma carta irm Willemien, de 26 de agosto de 1888, quando ele
passa a dirigir-se tambm a ela na lngua francesa: Minha querida irm, se voc me
deixar escrever-lhe em francs, isso realmente me simplificar a carta (Carta 670).
Acima de tudo, e alm da observao das caractersticas do discurso do
deprimido elaboradas por Kristeva, a determinao do estado de esprito de Van Gogh
ao longo do perodo selecionado torna-se possvel graas ao fato de que ele prprio se
dispunha a descrever sua atitude mental ao longo das cartas. Apesar de ter
mencionado certa vez, em carta irm Willemien, que detestava escrever sobre si
mesmo e que no sabia por que o fazia (carta 626), o fato que so frequentes os
trechos em que busca transmitir ao destinatrio exatamente o que est sentindo no
momento em que se senta mesa com papel e pena na mo.
No presente, eu sofro bastante certos dias, mas isso no me preocupa de
maneira alguma, j que no nada alm da reao a este inverno fora do comum,
escreve Van Gogh a Theo em 9 de abril de 1888 (Carta 594), evidenciando seu
sofrimento nos primeiros meses da estadia em Arles. Em outra ocasio, em 8 de
setembro de 1888, fala ao irmo sobre a chegada de dias melhores e mais alegres:
(...) aps algumas semanas de preocupaes, tenho tido uma semana bem melhor. E
assim como as preocupaes no vm sozinhas, as alegrias tambm no (Carta 676).
Depois de uma leitura sistemtica dos documentos em busca de trechos como
os citados, que evidenciam o estado de esprito do artista naquele momento, a
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pesquisa procedeu anlise das pinturas produzidas nesses perodos distintos e a
escolha de algumas obras para serem analisadas mais profundamente, de modo que se
torne possvel comparar os trabalhos produzidos em momentos de melancolia com
aqueles produzidos em momentos de euforia.
Para tornar a comparao mais consistente, essa escolha recaiu sobre obras
com um tema comum. Dessa forma, torna-se possvel observar como o mesmo tema
foi representado pelo artista enquanto experimentava sentimentos distintos e
identificar quais so as diferenas entre essas representaes.
Neste ponto, tendo em vista que este trabalho parte de uma aproximao de
elementos da psicologia representados aqui pela identificao de caractersticas
psicolgicas do artista presentes no texto de sua correspondncia e pela busca por
essas mesmas caractersticas em sua pintura com a esttica e a histria da arte,
pertinente retomar algumas consideraes feitas por Frayze-Pereira em Arte, Dor:
Inquietudes entre Esttica e Psicanlise. O autor cita o escritor francs Ren Huyghe
ao afirmar que, para a psicologia da arte, o principal objeto de anlise a prpria obra
de arte, cuja leitura permite decifrar no s o que um homem disps nela
intencionalmente, mas tambm o que nela colocou inconscientemente, de si prprio e
do grupo humano a que pertence (HUYGHE, 1986 apud FRAYZE-PEREIRA, 2010, p. 65).
Apesar de essa leitura ser possvel, como mostra Huyghe, Frayze-Pereira alerta
para o fato de que simplesmente usar a obra de arte como o objeto por meio do qual o
psicanalista pretende diagnosticar e decifrar o artista, da mesma forma que interpreta
seu paciente por meio da fala, uma viso muito simplista da relao entre arte e
psicanlise. Dessa forma, a obra acaba reduzida funo sintomtica de mascarar
significados que o analista, como sujeito do saber psicanaltico, cr desvelar por um
poder interpretativo oriundo desse saber (FRAYZE-PEREIRA, 2010, p. 70).
Portanto, a definio dos critrios para a anlise das obras selecionadas de Van
Gogh deve levar em conta essas observaes, para que a interpretao no resulte
demasiado simplista nem reduza as pinturas a meros sintomas.
Por fim, para atingir os objetivos de identificar se o estado de melancolia em
Van Gogh impulsiona ou inibe sua produtividade artstica e identificar se, por outro
lado, a arte tem o efeito de aliviar ou agravar seu estado de melancolia, esta pesquisa
recorre novamente s cartas. O intuito verificar qual a percepo do prprio pintor
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em relao a essas questes. Outras fontes a quem este trabalho tambm deve
recorrer para tratar desse tema so os bigrafos de Van Gogh com o propsito de
reunir as vises dos diferentes autores sobre a relao entre melancolia e arte na
figura de Van Gogh.
* * *
Desde a morte de Van Gogh, centenas, se no milhares de estudos j foram
publicados a respeito de sua vida e obra. Frayze-Pereira cita que, de acordo com um
registro de 1942, at essa data j se podiam contar 777 pesquisas divulgadas sobre o
tema (FRAYZE-PEREIRA, 2010).
Um levantamento inicial para o desenvolvimento desta pesquisa chegou a
diversas biografias do pintor holands. Entre elas, destacam-se as de Meyer Schapiro
(1950), Dino Formaggio (1952), Henri Perruchot (1959), Viviane Forrester (1983), Jorge
Coli (1985), Julius Meier-Graefe (1987), entre outras.
A escolha das biografias que norteariam este trabalho recaiu sobre quatro
autores principais: David Sweetman (1993), Pascal Bonafoux (2011), Steven Naifeh e
Gregory White Smith (2012).
Estes dois ltimos so os responsveis pela mais recente publicao sobre o
tema: Van Gogh: A vida (NAIFEH; SMITH, 2012). O trabalho resultado de 10 anos
de meticulosa pesquisa e chamou a ateno da crtica ao sugerir que Van Gogh no se
matou, mas teria sido atingido por um tiro acidental disparado por um jovem chamado
Ren Secrtan. O estudo extremamente detalhado contou com o apoio de
pesquisadores do Van Gogh Museum, cujo curador, Leo Jansen, definiu a obra como a
biografia definitiva para as prximas dcadas. As caractersticas da obra fazem com
que ela seja a fonte de referncia mais atualizada e detalhada sobre a vida do pintor.
Se as mais de mil pginas de Van Gogh: A vida primam pelo detalhamento e
levam em conta uma quantidade imensa de fontes documentais (somente as notas da
obra resultaram em cerca de 5 mil pginas datilografadas, segundo os autores, motivo
pelo qual elas no foram publicadas na forma impressa, mas no site
www.vangoghbiography.com), a obra de David Sweetman Van Gogh: Uma biografia
(SWEETMAN, 1993), tem como qualidade a abordagem cuidadosa, ainda que mais
http://www.vangoghbiography.com/
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concisa, sobre as caractersticas psicolgicas de Van Gogh. Tendo sido a primeira
biografia a que tive acesso, desempenhou um papel importante para a elaborao do
projeto de pesquisa para esta dissertao (o livro de Naifeh e Smith seria publicado no
Brasil apenas em novembro de 2012).
O trabalho de Pascal Bonafoux tambm foi importante para esta pesquisa,
principalmente por trazer a reproduo de textos de crticos e escritores a respeito da
obra de van Gogh, como Georges Bataille, Antonin Artaud e Georges-Albert Aurier,
responsvel pela primeira crtica relevante a respeito de Van Gogh, publicada em
janeiro de 1890 no Mercure de France (BONAFOUX, 2011).
Outra pea importante para a montagem do quebra-cabea que constitui a
personalidade e as caractersticas psicolgicas de van Gogh foi o livro Vincent van
Gogh: Un studio psicolgico, do psiquiatra Humberto Nagera (NAGERA, 1980). Uma
de suas contribuies foi trazer novas hipteses para o que pode ter contribudo para
o desencadeamento das crises que tiveram incio em Arles.
A respeito da busca pstuma por um diagnstico mental preciso para Van
Gogh, o mdico afirma que no seria possvel chegar a uma concluso definitiva,
opinio que compartilho com o autor, motivo pelo qual este trabalho no adota
nenhuma das hipteses como a nica correta.
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2 Van Gogh e a Melancolia
Antes de comear a discorrer sobre a melancolia em Van Gogh, importante
trazer luz duas questes principais. Primeiro, preciso promover uma reviso a
respeito da evoluo histrica do conceito de melancolia, levando em conta que
muitas definies que j foram associadas ao termo desde seu primeiro registro, no
sculo V a.C. Em seguida, faz-se necessrio compreender que tipo de relao o prprio
Van Gogh estabelecia com esse termo, tomando por base as referncias que ele faz
melancolia ao longo de sua correspondncia. Desta forma, possvel determinar qual
a definio de melancolia a ser tomada como referncia por este trabalho.
Com o objetivo de compreender melhor a trajetria de vida do personagem
principal desta pesquisa, este captulo tambm traz um resumo sobre a vida de Van
Gogh at sua chegada cidade de Arles, quando comea a anlise de sua obra e de
suas cartas.
2.1 Evoluo histrica do conceito de melancolia
Antes de comear a abordar a questo da melancolia em Van Gogh,
importante discorrer sobre a evoluo histrica do conceito de melancolia e
determinar qual definio entre as muitas que j foram associadas ao termo desde
seu primeiro registro no sculo V a.C ser tomada como referncia neste trabalho.
Ao longo dos sculos, o termo melancolia tem incorporado significados e conotaes
distintas, como observam Klibansky, Panofsky e Saxl (1964): Embora novos
significados tenham emergido, os velhos significados no deram lugar a eles; em suma,
foi um caso no de decadncia e metamorfose, mas de sobrevivncia paralela. O
conceito de melancolia carrega, portanto, uma pesada bagagem histrica que deve ser
levada em considerao por trabalhos atuais sobre o tema.
Doutrina dos quatro humores
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Para falar da origem do conceito de melancolia, preciso voltar antiga
doutrina dos quatro humores, que determinava a existncia de quatro humores
corporais: a bile negra, a fleuma, a bile amarela e o sangue. Acreditava-se que a
proporo desses humores no organismo determinava a sade, o carter e o
temperamento dos indivduos.
O sistema foi adotado durante muito tempo tanto pela medicina quanto pela
psicologia, havendo registros de seu uso clnico at o sculo XIX, quando a nova teoria
sobre doenas mentais desenvolvida pelo mdico francs Philippe Pinel aboliu o uso
do vocabulrio da teoria dos humores (LAMBOTTE, 2000). At o sculo XVIII,
tratamentos baseados no humoralismo como sangrias, expurgos e vomitrios ainda
eram correntes na prtica clnica. Eles seguiam o princpio de que a eliminao do
excesso de determinados humores poderia levar ao equilbrio e sade.
O primeiro registro de que se tem conhecimento de uma descrio sistemtica
dos quatro humores aparece na obra Da natureza do homem, texto atribudo a
Hipcrates, ou a seu genro Plibo (KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL, 1964).
Mas antes mesmo dessa sistematizao, trs antigos princpios gregos j
prenunciavam o surgimento da doutrina dos humores: a busca por elementos simples
que dessem origem a toda a complexidade do universo; a busca por uma expresso
numrica capaz de abarcar toda a estrutura da existncia carnal e espiritual e a teoria
da harmonia, simetria e proporcionalidade, que os gregos pensavam ser essencial
tanto para os valores estticos quanto para os valores morais, de higiene e de sade.
Em ltima instncia, a doutrina dos quatro humores resultou da evoluo e da
agregao de teorias anteriores propostas por pensadores da Escola Pitagrica, de
acordo com Klibansky, Panofsky e Saxl (1964).
Primeiro, Alcmeo de Crotona, mdico pitagrico que viveu em 500 a.C, props
que a sade era resultado do equilbrio de qualidades como mido e seco, amargo e
doce, frio e quente, entre outras.
J Filolau deu um passo a mais rumo doutrina humoral elegendo o nmero
quatro com o princpio da sade. Posteriormente, Empdocles criou a teoria dos
quatro elementos csmicos, segundo a qual terra, fogo, gua e ar seriam os elementos
constituintes de toda a matria. A proporo de cada elemento presente no indivduo
determinaria suas caractersticas. Um homem no qual os elementos estivessem em
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equilbrio, por exemplo, teria melhor compreenso da vida. J o homem em que um
dos elementos sobressasse em relao aos outros teria uma capacidade intelectual
limitada.
Empdocles comeou, dessa forma, a relacionar a parte fsica e mental do ser
humano, dando origem a uma teoria psicossomtica. Mas sua teoria ainda no
especificava quais eram as matrias fsicas, dentro do homem, que pudessem
comprovar a teoria.
Para se chegar doutrina dos quatro humores ainda faltava relacionar os
quatro elementos csmicos com elementos presentes no corpo humano. Buscavam-se
substncias especficas da constituio fsica do homem que correspondessem aos
elementos primrios do universo.
Filistio chegou a associar os quatro elementos csmicos com as caractersticas
calor, frio, mido e seco, conciliando dessa forma a teoria de Empdocles com a de
Alcmeo de Crotona, que dizia respeito sade como resultado do equilbrio entre as
qualidades.
Mas foi Hipcrates quem finalmente determinou a existncia de quatro
humores responsveis pela constituio fsica e mental do homem. Antes dele, j se
falava na existncia dos humores como causadores ou sintomas de doenas, j que
eles se tornavam visveis em situaes como o vmito. Mas as teorias correntes
apontavam para a existncia de apenas dois humores a fleuma e a bile ou ento de
inmeros humores.
Hipcrates transformou-os em quatro ao incluir o sangue e dividir a bile em
duas: a bile amarela e a bile negra. Segundo a teoria hipocrtica, os quatro humores
poderiam levar tanto sade quanto doena: enquanto a combinao correta
resultava em sade, a predominncia ou a falta de um deles produzia a doena.
Alm disso, Hipcrates determinou as combinaes de caractersticas
associadas a cada um dos humores: o sangue seria quente e mido, a bile amarela
seria quente e seca, a bile negra seria fria e seca e a fleuma, fria e mida. Ele props
tambm que cada estao do ano estaria associada ascenso de um humor: a
primavera foi associada ao sangue, o vero bile amarela, o outono bile negra e o
inverno fleuma.
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O termo melancolia, em grego, designa justamente a condio de ter bile
negra. A palavra grega (ou melagkhola) composta pela juno de
(ou mlas), que significa negro, e (ou khol), que significa bile.
Da sade ao temperamento
Se, a princpio, a doutrina dos quatro humores dizia respeito exclusivamente
sade do indivduo, ela passou gradualmente a designar tambm o temperamento das
pessoas. Como a situao de manter um equilbrio absoluto entre todos os humores, o
que determinaria que o indivduo nunca adoecesse, era virtualmente impossvel, a
predominncia de um ou de outro humor passou a ser vista como um tipo de
disposio.
Dessa forma, as palavras colrico, fleumtico, melanclico ou
sanguneo tinham duas possveis aplicaes: poderiam tanto denotar estados
patolgicos quanto aptides constitucionais.
No caso da melancolia, a doena provocada pelo excesso de bile negra era
principalmente caracterizada por sintomas mentais, variando desde medo,
misantropia e depresso at loucura em suas formas mais assustadoras. A
ambiguidade desses sintomas psicolgicos levou ao reconhecimento de situaes em
que um indivduo, apesar de apresentar hbitos melanclicos, no era considerado
necessariamente doente. Na melancolia, essa distino entre a doena e a mera
predisposio ocorreu antes do que nos outros humores.
Ainda segundo Klibansky, Panofsky e Saxl (1964), essa peculiaridade abriu
caminho para a transformao da teoria dos quatro humores em uma teoria do
temperamento e dos tipos mentais.
Melancolia como ddiva
Aristteles leva em frente o processo de desassociar a melancolia da esfera
patolgica. Para ele, o doente da bile negra no necessariamente melanclico, nem o
melanclico necessariamente doente da bile negra (ARISTTELES; PIGEAUD, 1998).
Na viso de Aristteles, alm de existir uma sade do melanclico, a melancolia
estaria intimamente relacionada ao que se pode chamar de genialidade. O filsofo
abre seu texto Problema XXX, I com o clebre questionamento:
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Por que razo todos os que foram homens de exceo, no que concerne filosofia, cincia do Estado, poesia ou s artes, so manifestamente melanclicos, e alguns a ponto de serem tomados por males dos quais a bile negra a origem, como contam, entre os relatos relativos aos heris, os que so consagrados a Hrcules? (ARISTTELES; PIGEAUD, 1998)
No sculo IV a.C, segundo observam Klibansky, Panofsky e Saxl (1964), a noo
de melancolia passou a ser associada s figuras mticas heroicas como Hracles, jax e
Belerofonte. O encanto exercido por essas figuras era forte o suficiente para dar
noo de melancolia uma aura de sinistra sublimidade. A melancolia tornou-se a
doena dos heris.
Plato j havia interpretado a loucura como uma ddiva divina. Aristteles
ao associar a loucura melancolia concluiu que a melancolia tambm conferia o
carter excepcional a todos os bem dotados nas reas de filosofia, poesia e arte.
Dessa forma, a noo de melancolia adquiriu por sua vez um contedo novo e
positivo e, graas a ele, foi possvel de uma s vez reconhecer e explicar o fenmeno
do homem de gnio (KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL, 1964). De acordo com essa viso,
a loucura divina passou a ser vista como uma sensibilidade de alma e a grandeza
espiritual de um homem era medida por sua capacidade para a experincia e,
sobretudo, para o sofrimento.
Em Problema XXX, I, Aristteles estabelece uma curiosa comparao entre os
efeitos do vinho e os efeitos da bile negra no organismo. Os dois so modeladores de
carter e a bile negra, assim como o vinho, teria a capacidade de produzir todos os
estados de personalidade em um mesmo indivduo.
Isto quer dizer que o melanclico tem em si, como possveis, todos os
caracteres de todos os homens. O que esclarece prodigiosamente, como veremos, a
ideia mesma da criatividade melanclica. (ARISTTELES; PIGEAUD, 1998)
Ao interpretar o texto de Aristteles, Pigeaud descreve o melanclico como
aquele que, pelo efeito da bile que o corri, no tolera a sobriedade calma da vida.
Pela mesma razo, um ser de violncia e de contraste, vtima da mudana
incessante; ele incompreensvel. Para ela, o corao do problema proposto por
Aristteles como a inconstncia do indivduo melanclico pode explicar sua grandeza
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e sua criatividade. O texto, que no responde questo de forma fechada, tem o
objetivo de levantar o problema e apresentar argumentos para reflexo.
De fato, a relao entre o temperamento melanclico e a criatividade, mais
especificamente a inclinao para a arte, uma questo que intriga at hoje e para a
qual no existe resposta definitiva. Essa discusso faz-se especialmente importante na
medida em que um dos objetivos especficos desta dissertao entender de que
forma o temperamento de Van Gogh, descrito por ele prprio como melanclico, pode
ter influenciado sua produo artstica. A viso de outros pensadores sobre o tema
ser abordada ao longo deste trabalho.
A melancolia depois de Aristteles
Na Antiguidade, depois de Aristteles, manteve-se a ideia de que havia alguma
ligao especial entre a melancolia e a vida intelectual. Porm, a tese apresentada em
Problema XXX, I, de que todo homem de gnio seria melanclico, era vista com
ressalvas ou ironia.
A partir do sculo III a.C, os estoicos passaram a ver a melancolia no como
requisito para dons excepcionais, mas como doena severa que os excepcionalmente
dotados tm mais risco de desenvolver. Ou seja, enquanto para Aristteles a
melancolia predispunha genialidade, para os estoicos, a genialidade predispunha
melancolia.
J Rufo de feso, mdico que viveu no sculo I d.C, defendia que a atividade
mental era a causa direta da doena melanclica. Segundo Klibansky, Panofsky e Saxl
(1964), essa teoria evidencia uma viso especificamente mdica sobre a questo, em
oposio quelas dos filsofos naturais ou morais. Dessa forma, o destino trgico de
um homem de gnio tornou-se meramente a m disposio de um estudioso
sobrecarregado.
Nessa poca, os sintomas da melancolia j tinham sido estabelecidos: os
melanclicos eram pessoas atormentadas por toda sorte de desejos, deprimidas;
covardes e misantropas; geralmente tristes sem causa, mas s vezes imoderadamente
alegres; dadas a vrias excentricidades, fobias e obsesses (KLIBANSKY; PANOFSKY;
SAXL, 1964).
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Idade Mdia e Renascimento
As ideias de Aristteles sobre a relao entre melancolia e genialidade eram
ainda menos aceitas na Idade Mdia, quando, devido crescente influncia da Igreja,
o valor de um indivduo no era medido de acordo com seu talento intelectual, mas
com suas virtudes pelas quais Deus lhe dava foras para perseverar. O cristianismo fez
da tristeza um pecado e, nessa poca, ter um corao morno significava ter perdido
Deus (KRISTEVA, 1987).
Ao longo de toda a Idade Mdia, a ideia dos melanclicos com capacidade
intelectual excepcional foi deixada de lado para ser retomada somente no
Renascimento.
No geral, a Idade Mdia teve pouco interesse na interpretao do Problema XXX, I, enquanto os escritores do Renascimento, percebendo muito cedo o verdadeiro significado da distino entre melancolia natural e patolgica, passaram a aplic-la independentemente de sua divergncia em relao j vulgarizada doutrina das compleies (KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL, 1964)
Outras interpretaes sobre a melancolia
importante observar que a melancolia aparece, em diversos autores,
associada loucura. Em Histria da Loucura na Idade Clssica, Michel Foucault
descreve algumas dessas classificaes de loucura das quais a melancolia faz parte.
Segundo Paracelso, mdico e alquimista suo que viveu no sculo XVI, por exemplo,
existiriam quatro tipos de loucura: lunatici (influenciada pela lua), insani (loucura
hereditria), vesani (loucura pelo mau uso da bebida ou comida) e melancholici (vcio
de natureza interna).
Em 1621, o acadmico britnico Robert Burton publicou o livro The Anatomy
of Melancholy. Trata-se de uma espcie de enciclopdia que se prope, ao longo de
suas mais de mil pginas, a compilar de forma cientfica todo o conhecimento
acumulado pela humanidade a respeito da melancolia, desde a Grcia antiga at as
teorias da medicina do sculo XVII.
O prprio autor se dizia acometido pelos males da bile negra e afirmava que um
dos motivos que o levou a se debruar com tanto afinco sobre o tema foi esquecer ou
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amenizar seu prprio temperamento. Ironicamente, a obra que detalha com tanta
propriedade as caractersticas da melancolia foi interpretada, na poca, como uma
obra de entretenimento. Apesar da seriedade do trabalho de pesquisa e da riqueza de
fontes consultadas por Burton, muitos o liam como um livro de humor.
Analistas julgam que o efeito cmico se d justamente pelo detalhamento com
que o temperamento melanclico descrito neste que j foi considerado um manual
mdico, um livro de autoajuda ou uma compilao de citaes. Burton classifica a
melancolia de forma to especfica a ponto de criar um verbete sobre a melancolia
provocada pelo consumo de gua parada.
Observa-se que, mesmo nessa poca, a viso medieval da melancolia enquanto
degenerao moral e castigo divino ainda estava presente:
(...) enquanto formos regrados pela razo, corrigirmos nosso apetite excessivo e permanecermos em conformidade com a palavra de Deus, ficaremos como todos os santos: mas se dermos rdeas a luxria, dio, ambio, orgulho e seguirmos nossos prprios caminhos, ns degeneramos em animais, nos transformamos, derrubamos nossas constituies, provocamos o dio de Deus, e se amontoa por cima de ns essa melancolia, e todos os tipos de doenas incurveis, como uma punio justa e merecida por nossos pecados. (BURTON, 2001)
J no sculo XX, em Luto e Melancolia, Freud faz uma abordagem
psicanaltica da chamada psicose manaco-depressiva (FREUD, 2013). E por que, depois
de a medicina j ter superado o termo melancolia com a teoria Philippe Pinel
tendo abolindo o uso desse vocabulrio no mbito mdico, relegando-o ao domnio
dos filsofos e poetas Freud escolhe justamente esse significante? Segundo Maria
Rita Kehl, no texto de abertura para a edio brasileira da obra, provvel que ele
tenha escolhido a antiga e romntica designao de melancolia para estabelecer uma
distino entre a abordagem psicanaltica da doena e aquela j consagrada pela
medicina do sculo XIX.
Nessa obra, Freud estabelece uma comparao entre a melancolia e o luto.
Para ele, os dois processos envolvem uma perda. A diferena que o melanclico no
sabe a natureza do objeto perdido nem a origem da perda, ao contrrio da pessoa em
luto.
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Ele descreve um processo em que, diante do abalo de uma relao com a
pessoa amada, em vez da retirada da libido para outro objeto, ela se volta para o
prprio ego, onde ocorre uma identificao com o objeto amado. Dessa forma,
segundo Freud, a sombra do objeto recai sobre o ego e o conflito que deveria ser
entre o sujeito e o objeto amado passa a ocorrer entre duas instncias internas do
prprio ego. Assim, a perda do objeto se transformou em perda do ego (FREUD,
2013). Nessas ocasies, no raro que o paciente tente vingar-se do objeto por meio
de autopunio.
O doente nos descreve o seu ego como indigno, incapaz e moralmente
desprezvel; ele se recrimina, se insulta e espera ser rejeitado e castigado. Humilha-se
perante os demais e tem pena dos seus por estarem eles ligados a uma pessoa to
indigna. (FREUD, 2013). Toda essa crtica dirigida a si mesmo, portanto, tem como
alvo original o objeto amado.
Diferentemente da tradio inaugurada por Aristteles, Freud no estabelece
qualquer relao entre melancolia e criao artstica ou genialidade. Pelo contrrio:
Freud descreve que a melancolia inibe toda a atividade ao provocar um desnimo
profundamente doloroso, a suspenso do interesse pelo mundo externo, a perda da
capacidade de amar e o rebaixamento do sentimento de autoestima. Para Freud, o
melanclico incapaz para o trabalho.
Freud lembra que a definio conceitual da melancolia oscilante e ele prprio
renuncia reivindicao da validade universal de suas concluses. Sobre ela, ele diz
que (...) mesmo na psiquiatria descritiva, apresenta-se sob vrias formas clnicas, cuja
sntese em uma unidade no parece assegurada, e dentre estas algumas sugerem
afeces mais somticas que psicgenas.
Em uma abordagem que guarda semelhanas com a de Freud, Julia Kristeva
define a melancolia como uma ferida aberta ao descobrir que a dor no mais do que
o dio nutrido por aquele que se ama e que o traiu ou o abandonou. Como Freud, ela
tambm associa a melancolia perda de um objeto amado. Como quem j
experimentou a sensao de estar sob o sol negro, dessa forma que ela descreve o
fenmeno:
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Estou tentando lhe falar de um abismo de tristeza, dor incomunicvel que nos
absorve s vezes, e frequentemente por muito tempo, at nos fazer perder o gosto de
qualquer palavra, de qualquer ato, o gosto mesmo da vida. (KRISTEVA, 1987).
Diferentemente de Freud, Kristeva relaciona a melancolia criao esttica.
Para ela, a arte tem um papel de sublimao. Nesses casos, o belo atua como
substituto do objeto perdido.
(...) As artes parecem indicar alguns mtodos que evitam a convenincia e
que, sem simplesmente reverter o luto em mania, garantem ao artista e ao
conhecedor uma adeso sublimatria sobre a coisa perdida. (KRISTEVA, 1987).
Melancolia e mania
Freud cita como a peculiaridade mais notvel da melancolia a tendncia a se
transformar no estado sintomaticamente oposto: a mania. Segundo ele, ambas as
afeces lutam com o mesmo complexo o ego sucumbe a ele na melancolia e o
supera na mania.
(...) na mania, o ego precisa ter superado a perda do objeto (ou o luto pela perda, ou talvez o prprio objeto) e desse modo todo o montante de contrainvestimento que o doloroso sofrimento da melancolia atrara do ego para si e ligara fica agora disponvel. Na medida em que, como um faminto, o manaco sai em busca de novos investimentos de objeto, ele nos demonstra de um modo inequvoco sua libertao do objeto que o fez sofrer. (FREUD, 2013)
Kristeva tambm define a melancolia como uma fase de inibio e assimbolia
que se instala no indivduo cronicamente ou alternadamente com a fase manaca de
exaltao.
Um dos primeiros a propor a alternncia entre mania e melancolia, segundo
Foucault, foi o mdico ingls Thomas Willis, no sculo XVII. E a proposta no veio da
observao de casos, mas da afinidade profunda que ele via entre esses dois estados:
Da mania melancolia, evidente a afinidade: no a afinidade de sintomas que se encadeiam na experincia: a afinidade, bem mais forte e muito mais evidente nas paisagens da imaginao, que enlaa, num mesmo fogo, a fumaa e a chama. (FOUCAULT, 1978)
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De que melancolia estamos falando?
Kristeva afirma que os limites entre as definies de melancolia e de depresso
so vagos. Ambas estariam relacionadas perda do objeto e modificao dos laos
significantes. Apesar das semelhanas, segundo ela, a psiquiatria costuma denominar
melancolia a doena irreversvel, que no responde aos remdios. J Urania Tourinho
Peres afirma que a melancolia pode ser vista como um conceito romntico, enquanto a
depresso, um estado de doena (PERES, 2003).
O fato que, na medicina atual, o termo melancolia no tem espao. Se
observarmos a Classificao Estatstica Internacional de Doenas e Problemas
Relacionados Sade Dcima Reviso (CID-10), documento desenvolvido pela
Organizao Mundial da Sade (OMS) que serve como parmetro mundial para
diagnsticos, a melancolia no faz parte das doenas catalogadas. Ela tampouco
aparece na verso mais recente do Manual Diagnstico e Estatstico de Transtornos
Mentais (DSM-5), elaborado pela Associao Americana de Psiquiatria. Falar de
melancolia hoje, portanto, no falar de uma doena especfica, de uma afeco
passvel de ser diagnosticada com critrios objetivos.
Apesar das muitas definies possveis para o termo, para Pigeaud, a viso
ocidental da melancolia formada basicamente pela confluncia de trs tradies
que se sedimentaram e misturaram de diversos modos (ARISTTELES; PIGEAUD,
1998).
A primeira a tradio de Hipcrates, que foi quem primeiro definiu o
conceito. No 23 aforismo do livro VI dos Aforismos de Hipcrates, aparece a
tentativa inicial de sistematizar o termo: Se tristeza (distimia) e medo duram muito,
um tal estado melanclico. A segunda tradio consiste no texto Problema XXX, I,
de Aristteles, sobre o qual este trabalho j versou.
A terceira fonte so as Cartas do Pseudo-Hipcrates, em que aparece o
personagem Demcrito, que apresenta sintomas de loucura e melancolia. A longa
carta 17 para Damagetes continuamente citada, atravs dos sculos, como
testemunha sobre o sentido da loucura, e particularmente da melancolia
(ARISTTELES; PIGEAUD, 1998).
Quando falo de melancolia neste trabalho, portanto, evoco toda a bagagem
histrica do termo, desde seu surgimento no contexto da doutrina dos humores, no
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sculo V a.C, at as definies mais modernas. No estou me referindo a um
transtorno mental catalogado pela psiquiatria, mas a uma definio quase potica de
um temperamento, de um estado de esprito especfico frequentemente associado aos
artistas. Busco, desta forma, referir-me ao que o prprio Van Gogh tinha em mente
quando usava o termo melancolia para definir suas emoes e seu trabalho ao longo
de suas cartas.
Em Esttica da melancolia, Lambotte (2000) afirma que a melancolia vem
acompanhada de um discurso especfico, da capacidade do sujeito de dissertar sobre a
legitimidade de sua prpria doena. A autora cita que Kirkegaard costumava discorrer
em suas obras sobre seu prprio comportamento melanclico:
(...) entretanto, como no se trata aqui de classificar nossos autores sob uma categoria psicolgica qualquer, nem de tirar partido de seus escritos em vista de uma interpretao que exceda sua significao literria ou imediata, recorreremos s descries que eles nos propem da melancolia e dos temperamentos que a ela se ligam, sem prejulgar sua intimidade com sua sintomatologia. (LAMBOTTE, 2000, p. 31)
Tambm aqui, no se trata de identificar sintomas especficos na trajetria
biogrfica de Van Gogh, nem de assumir a existncia de um diagnstico para o artista,
mas apenas aceitar o que ele prprio tem a dizer sobre suas emoes.
2.2 O artista se define como melanclico
Com o objetivo de compreender melhor de que Van Gogh fala quando fala de
melancolia, cabe retomar o histrico do uso desse termo em sua correspondncia.
Uma das primeiras menes que Van Gogh faz melancolia aparece em uma
carta enviada a Theo em 9 de setembro de 1875 (Carta 46). Na poca, aos 22 anos,
trabalhava na filial da galeria Goupil & Cie em Paris e ainda no tinha planos de se
tornar um artista. A passagem especialmente significativa, pois nela Van Gogh revela
ao irmo uma frase dita pelo pai sobre o significado da melancolia na vida dos homens.
Na carta anterior, Theo anunciara a morte de um conhecido de ambos e
mencionara que o sujeito havia lido certo livro do escritor Jules Michelet, chamado
L'Amour, sobre o qual conversara muito com Theo. Ele acrescentou que esse
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conhecido amava muito a natureza e buscava nela uma melancolia quieta (Carta 45).
Theo provavelmente menciona o livro porque Vincent, no ano anterior, havia indicado
essa mesma leitura para ele e para a irm Willemien, dizendo que a obra tivera um
carter de revelao.
Existe uma melancolia quieta, certamente, graas a Deus, mas no sei se ns temos permisso para senti-la ainda, veja, eu digo ns: eu no mais do que voc. Papai escreveu para mim recentemente: A melancolia no machuca, mas nos faz ver as coisas com um olhar mais sagrado. Essa a verdadeira melancolia quieta, o ouro fino, mas ns ainda no chegamos to longe, ainda h um longo caminho. Vamos esperar e rezar para que cheguemos to longe e acredite em mim sempre. (Carta 46)
Parece, portanto, que nessa poca Vincent via a melancolia quieta como um
ideal de vida a ser alcanado a partir da evoluo espiritual. Na mesma carta, Vincent
recomenda enfaticamente que o irmo no leia mais o livro de Michelet,
anteriormente to recomendado por Vincent.
Sweetman interpreta que essa mudana de ideia sobre o autor se deve a uma
grande desiluso amorosa sofrida por Vincent na Inglaterra. Se o livro LAmour
apresentava uma viso idealizada da mulher e de como deveria se desenvolver um
relacionamento amoroso, sua experincia com o sexo oposto foi bem diferente.
Apesar de no existirem cartas que registrem o fato, alguns bigrafos dizem que o
artista fora rejeitado pela mulher por quem estava apaixonado. Esse acontecimento o
levou primeira grande crise emocional de Vincent, que assumiu uma postura retrada
e taciturna e passou a ser relapso e desinteressado no trabalho na galeria de arte
Goupil & Cie.
A abordagem de um estado de esprito melanclico feita de maneira
particularmente insistente em uma carta escrita em junho de 1880, no momento em
que ele se encontra na regio mineira do Borinage, na Blgica. Aos 27 anos, Van Gogh
participa de uma misso protestante nessa rea extremamente pobre como meio de
seguir seu propsito de se manter em uma vida religiosa, mesmo depois de ter falhado
em entrar na faculdade de Teologia.
Na ocasio, Van Gogh est prestes a tomar a deciso de se tornar um artista.
Nesta carta para o irmo, ele tenta justificar seu comportamento, que vem sendo alvo
de muitas crticas por parte da famlia, que o v como uma decepo. A vida
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missionria que tinha escolhido j era uma alternativa menos digna carreira clerical
de um pastor e mesmo essa funo no estava sendo bem executada por Van Gogh.
Aos olhos de seus supervisores, ele se degradava ao dar tudo o que possua aos pobres
mineiros e falhava na tarefa de evangelizao.
possvel interpretar que a deciso de se tornar um artista resultou desse
momento de reflexo profunda, angstia e melancolia.
Logo no incio da carta, ele descreve seu sentimento ao sentar-se para escrev-
la como um tanto melanclico e relutante. Ao falar de sua reao diante da falta que
sentia dos livros e das pinturas de sua terra natal, estando ele no distante Borinage, ele
introduz um conceito peculiar: o da "melancolia ativa".
Em vez de sucumbir ao sentimento de saudade da ptria, eu disse a mim mesmo, o pas ou a ptria est em todos os lugares. Em vez de me entregar ao desespero, eu tirei vantagem da melancolia ativa enquanto eu tive fora para atividade, em outras palavras, eu preferi a melancolia que espera e que aspira e que busca, em vez daquela que desespera, montona e estagnada. (Carta 155)
Van Gogh descreve seu maior tormento como a dvida sobre sua razo de
viver, para que ele pode servir, em que poderia ser bom e til. Sem uma resposta para
esses questionamentos, ele diz sentir melancolia, desnimo e um vazio onde deveriam
estar as amizades e a as afeies.
A figura da melancolia volta a aparecer na mesma carta, quando ele descreve a
existncia de dois tipos de pessoas ociosas. O primeiro tipo o ocioso por preguia ou
fraqueza de carter. O segundo, com o qual ele claramente se identifica, o ocioso
que tem dentro de si "um grande desejo de ao, que no faz nada porque acha
impossvel fazer qualquer coisa, estando ele aprisionado". Ele compara este ltimo
tipo com um passarinho preso em uma gaiola, que acometido por um "ataque de
melancolia" quando chega a poca da migrao, mesmo tendo tudo de que precisa
dentro de sua gaiola.
nesta carta que costuma ser citada pelas biografias como um ponto crucial
na tomada de deciso rumo vida artstica que Van Gogh demonstra a certeza de
que tm um propsito maior na vida.
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Um sujeito como esse nem sempre sabe o que poderia fazer, mas sente instintivamente, eu sou bom em alguma coisa! Eu sinto que tenho uma razo de ser! Eu sei que poderia ser um homem totalmente diferente! Em que ento eu poderia ser til, a que eu poderia servir! H alguma coisa dentro de mim, o que isso ento! (Carta 155)
Em carta de novembro de 1881, quando passava uma temporada na casa dos
pais, em Etten, ele volta a falar sobre a melancolia que sente. Na poca, logo depois de
um episdio no qual fora rejeitado pela prima Kee Vos ao declarar seu amor a ela, Van
Gogh fala na importncia do trabalho duro para superar uma fase ruim.
Talvez no seja uma coisa ruim eu ter vivido tanto tempo no 'subterrneo', por assim dizer. Que eu seja aquele 'que tem estado para baixo'. Mas agora eu no preciso retornar ao abismo e faria bem, eu penso, em arremessar toda a melancolia aos ventos e viver a vida um pouco mais livremente e alegremente com os ps no cho. E reviver relaes antigas tanto quanto possvel e comear novas. (Carta 189)
Ele se define novamente como melanclico em carta de julho de 1882, quando
tenta explicar ao irmo Theo a natureza de seu relacionamento com a prostituta Sien
Hoornik, em oposio paixo que desenvolveu, no ano anterior, pela prima Kee Vos,
por quem foi rejeitado. Aos 29 anos, ele j vive como um artista.
No imagine que eu pense ser perfeito ou que eu acredite que no minha culpa que tantas pessoas me considerem um personagem desagradvel. Eu estou com frequncia terrivelmente e irreparavelmente melanclico, irritvel ansiando por simpatia como se com uma espcie de fome e sede eu me torno indiferente, afiado e s vezes at derramo leo sobre a chama se no recebo simpatia. Eu no gosto de companhia, e lidar com as pessoas, falar com elas, frequentemente doloroso e difcil para mim. (Carta 244)
Van Gogh demonstra considerar que a melancolia uma condio natural de
todos os homens. Essa viso expressada em carta escrita em maro de 1883 a Theo:
Na minha opinio, todos ns temos momentos de melancolia, de estresse e de ansiedade, em uma extenso maior ou menor, e isso uma condio de toda vida humana autoconsciente. Alguns aparentemente no tm autoconscincia. Mas aqueles que tm momentos assim, apesar de s vezes em um estado de ansiedade, no so desafortunados por causa disso, e nada de incomum est acontecendo com eles. E s vezes h uma soluo, s vezes a nova energia interna vem e a pessoa se levanta a partir dela, at que talvez finalmente, um belo dia, a pessoa no mais se levanta assim seja mas
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no h nada de incomum nisso e, eu repito, inerente vida humana, na minha opinio. (Carta 327)
A referncia a uma melancolia boa volta a aparecer em carta de setembro de
1883. Depois de deixar a companheira, Sien, em uma passagem pelo interior da
Holanda, Van Gogh descreve ter visto figuras esplndidas no campo. E a melancolia
que as coisas tm no geral de um tipo saudvel, como nos desenhos de Millet (Carta
386).
Em alguns momentos da correspondncia, ele se refere ao trabalho e
melancolia como situaes antagnicas. Em carta de junho de 1882, por exemplo, ele
se questiona que motivos teria para a melancolia e acrescenta, logo em seguida: Eu
tenho meu trabalho, afinal de contas, e meu desfrute dele. Desde quando h alguma
necessidade de vacilar ou hesitar ou ter o corao fraco? (Carta 234).
J em setembro de 1883, ele afirma que seu trabalho lhe proporciona uma fuga
da melancolia e que, quando o trabalho no se desenvolve, ele acometido por esse
sentimento. E eu fico to intoleravelmente melanclico quando o trabalho no me
proporciona uma distrao, como voc vai entender, eu devo trabalhar e trabalhar de
forma constante esquecer-me no trabalho, caso contrrio eu ficaria oprimido (Carta
391).
Em certo ponto, em outubro de 1883, ao evocar sua melancolia, Van Gogh d
um conselho ao irmo Theo que mais parece ser um conselho para si mesmo.
(...) fazer-se escasso ou desaparecer nem voc nem eu podemos jamais fazer isso, no mais do que um suicdio. Eu mesmo tenho meus momentos de grande melancolia, mas o pensamento: desaparea, faa-se escasso, deve, eu repito, ser visto por mim e por voc como no benfico a ns. (Carta 401)
Dessa forma, possvel observar que, se em determinados momentos a
melancolia vista como uma qualidade, que leva a percepes mais profundas sobre o
mundo e que o inspira na busca de sua verdadeira funo na vida, em outras ela vista
como algo que precisa ser atirado para fora, algo que o torna menos digno diante de
outras pessoas.
Se em alguns momentos, a melancolia aparece como um impulso para seu
trabalho como artista, em outros ela aparece em oposio ao trabalho, como o
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sentimento que o acomete quando seu trabalho no est sendo executado de maneira
satisfatria.
2.3 Jornada at o sul da Frana
O caminho de Zundert vilarejo holands onde Van Gogh nasceu at Arles
onde o artista pintou algumas de suas principais telas foi longo e tortuoso. Van Gogh
passou por sucessivos deslocamentos ao longo de seus 37 anos. Depois que saiu da
casa dos pais, aos 16 anos, para trabalhar na galeria de arte de seu tio, em Haia, no
permaneceu mais do que quatro anos seguidos vivendo na mesma cidade.
As mudanas de casa refletiam os conflitos internos do artista. Apesar de
sempre ter sentido que tinha um dom missionrio, demorou at escolher a pintura
como sua verdadeira misso. Durante muito tempo, acreditou ter vocao para a
religio e sofreu muitas frustraes por no conseguir por em prtica a atividade de
pastor.
Van Gogh nasceu em 1853, exatamente um ano depois de seu irmo, de
mesmo nome, ter nascido morto em 30 de maro de 1852. A me, Anna, e o pai,
Theodorus, ainda estavam de luto na ocasio de seu nascimento.
Theodorus era o pastor da Igreja Reformada Holandesa no vilarejo de Zundert,
na provncia de Brabant, na Holanda, perto da fronteira com a Blgica. Em Brabant, a
maior parte da populao era catlica, o que fazia com que o pastor protestante
tivesse pouco prestgio. Anna era uma artista amadora dedicada aos cuidados da
famlia.
A tradicional famlia Van Gogh era formada por clrigos, marchands e oficiais.
Um dos membros mais abastados da famlia era o tio de Vincent, tambm chamado
Vincent Willem van Gogh, o tio Cent. Foi tio Cent quem introduziu os irmos Vincent e
Theo no mundo do comrcio de arte. Ele era scio da rede de galerias de arte Goupil,
que tinha filiais em vrias cidades da Europa.
Aos 16 anos, Van Gogh foi para Haia trabalhar em uma das unidades da Goupil.
L, viveu durante quatro anos e passou a absorver tudo o que se relacionasse arte.
Ele gostava, especialmente, das pinturas da escola de Barbizon, cujo princpio era
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pintar diretamente da natureza, ao ar livre. Essa corrente rejeitava os temas clssicos e
religiosos valorizados pelas academias. L passou a admirar Millet e tambm conheceu
o pintor Anton Mauve, mestre na arte de captar a natureza de modo imediato.
Nessa poca, Van Gogh continuava a ter aulas sobre a Bblia e sentia compaixo
pelos pobres e desvalidos, da a admirao pela pintura de Millet, que retratava to
bem a vida dos camponeses.
A correspondncia com Theo comeou em 1872, depois de uma visita do irmo
a Haia, ocasio em que tiveram a oportunidade de ficar mais prximos. Em 1873 foi
enviado para a sucursal de Londres da Goupil, como uma promoo de seu cargo. L,
passou a morar em um quarto a alugado e, segundo alguns bigrafos, apaixonou-se
pela filha de sua senhoria, sofrendo a primeira decepo amorosa ao descobrir que a
moa ficara noiva de outro homem. Passou da euforia para a tristeza e sua reao
exagerada assustou toda a famlia.
Em 1874, foi enviado para a sucursal da Goupil em Paris, em uma tentativa da
direo da galeria de faz-lo motivar-se novamente pelo trabalho. L ficou at 1876,
quando finalmente foi despedido. Seu estado de esprito no permitia que se
dedicasse ao trabalho e ele passara a ser negligente com suas funes. Apesar de ser a
poca em que ocorriam as primeiras exposies dos impressionistas em Paris, van
Gogh no entrou em contato com esses trabalhos na ocasio. Estava alheio a toda a
efervescncia cultural parisiense.
Em seguida, mudou-se para Ramsgate, na Inglaterra, onde passou a dar aulas
como professor voluntrio e, depois, mudou-se para Isleworth com a funo de
assistente de um pastor. Preocupados com o futuro de Vincent, seus pais o chamaram
de volta para casa e, em 1877, conseguiram para ele um emprego em uma livraria na
cidade de Dordrecht, perto de Roterd, na Holanda. No mesmo ano, ele decidiu que
queria ingressar na faculdade de Teologia. Seu sonho era seguir a profisso do pai e
tornar-se um pastor. A famlia se mobilizou e o jovem foi a Amsterd viver com um tio
e estudar para os testes.
Depois de ser reprovado e passar um perodo como missionrio religioso na
regio mineradora do Borinage, uma das mais pobres da Europa, finalmente decidiu
dedicar-se pintura. De 1880 a 1885, passou por Bruxelas, onde estudou pintura, por
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Etten, onde ento viviam os pais, novamente por Haia, para trabalhar no estdio do
pintor Anton Mauve, e por Nuenen, de volta casa dos pais.
Em 1885, mudou-se repentinamente para Paris para viver com o irmo Theo,
onde finalmente entrou em contato com toda a cena artstica impressionista. L,
conheceu Camille Pissarro, Henri de Toulouse-Lautrec, mile Bernard, Paul Gauguin,
Paul Signac, entre outros. Foi l tambm que seu entusiasmo pelo Japo e pelas
estampas japonesas atingiu o pice. Mas a agitao urbana e o consumo excessivo da
bebida da moda, o absinto, fizeram mal ao pintor.
Em 1888, decidiu que era hora de partir novamente. Mas, dessa vez, sua
motivao foi quase puramente esttica. Alm do fato de que desejava fugir do
ambiente conturbado de Paris, a ida para o sul se apresentava como uma
oportunidade de conhecer as cores mais quentes da paisagem da regio, como
descreve Sweetman:
A primeira ideia de Vincent era ir para Marselha, a cidade natal de Monticelli, onde supunha que se originara algo do admirado colorido do artista. Ento John Peter Russel lhe falou sobre Arles e seus arredores, onde um amigo seu, o americano Dodge MacKnight, estava pintando. Pareceu-lhe que poderia ser um bom lugar para passar algum tempo antes de seguir para Marselha; afinal, Monticelli tinha pintado suas marinhas na vila prxima de Les Saintes-Maries-de-la-Mer. (SWEETMAN, 1993, p. 204)
A motivao da escolha pela cidade de Arles motivo de controvrsia entre os
bigrafos de Vincent. Para Naifeh e Smith (2012), Van Gogh escolheu Arles como exlio
voluntrio de Paris no pelo calor, nem pela luz, nem pelas mulheres. A escolha
priorizou, segundo os autores, o fato de que nessa cidade, o artista poderia se entregar
ao trabalho sem outras distraes:
Se tivesse ido para o lendrio Sul da Frana - o Midi - em busca de um clima mais quente, certamente teria ficado no trem e seguiria mais ao sul. (Pensou em ir at Tnger.) Em vez disso, desembarcou numa neve que lhe cobria os sapatos e se arrastou pelo inverno mais frio dos ltimos dez anos em Arles, procurando um quarto para alugar. Se tivesse ido procurar a 'luz brilhante do Midi' prometida por Lautrec e Signac, no teria escolhido como tema de sua primeira pintura um aougue numa travessa de Arles - uma cena urbana sem cu e sem sol que poderia encontrar em qualquer canto de Montmartre. Se tivesse ido apenas por causa das mulheres -, teria continuado at Marselha, apenas oitenta quilmetros adiante: o tipo de cidade porturia agitada, como
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Anturpia, onde sempre havia todas as espcies possveis de mulheres. (NAIFEH e SMITH, 2012, p. 660)
De qualquer forma, a expectativa em relao viagem era realmente alta,
como ocorrera anteriormente em suas tantas mudanas de cidade. Sweetman assim
descreve o entusiasmo que deve ter tomado conta de Van Gogh nesse momento:
Como o Midi deve ser maravilhoso, com o sol da Provena,