Van Gogh e a melancolia: pinturas de pôr do sol em Arles

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERUNIDADES EM ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE MARIANA PEREIRA LENHARO Van Gogh e a melancolia: Pinturas de pôr do sol em Arles São Paulo Julho de 2014

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Transcript of Van Gogh e a melancolia: pinturas de pôr do sol em Arles

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO PROGRAMA DE PS-GRADUAO INTERUNIDADES EM ESTTICA E HISTRIA DA ARTE

    MARIANA PEREIRA LENHARO

    Van Gogh e a melancolia: Pinturas de pr do sol em Arles

    So Paulo

    Julho de 2014

  • MARIANA PEREIRA LENHARO

    Van Gogh e a melancolia: Pinturas de pr do sol em Arles

    So Paulo Julho de 2014

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao Interunidades em Esttica e Histria da Arte da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Esttica e Histria da Arte Linha de pesquisa: Teoria e Crtica da Arte Orientadora: Profa. Dra. Katia Canton

  • AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL E PARCIAL DESTE TRABALHO, POR

    QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E

    PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    Catalogao da Publicao

    Biblioteca Lourival Gomes Machado

    Museu de Arte Contempornea da Universidade de So Paulo

    Lenharo, Mariana Pereira.

    Van Gogh e a melancolia: pinturas de pr do sol em Arles / Mariana Pereira

    Lenharo ; orientadora Katia Canton. -- So Paulo, 2014.

    118 f. : il.

    Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao Interunidades em

    Esttica e Histria da Arte) -- Universidade de So Paulo, 2014.

    1. Ps-impressionismo. 2. Arte Moderna Sculo 19. 3. Melancolia. 4. Van

    Gogh, Vincent, 1853-1890. I. Canton, Katia. II. Ttulo.

    CDD 759.056

  • LENHARO, Mariana Pereira

    Van Gogh e a melancolia: Pinturas de pr do sol em Arles

    Aprovado em: ___/___/___

    Banca examinadora

    Prof. Dr. __________________________ Instituio: ___________________________

    Julgamento: _______________________ Assinatura: ___________________________

    Prof. Dr. __________________________ Instituio: ___________________________

    Julgamento: _______________________ Assinatura: ___________________________

    Prof. Dr. __________________________ Instituio: ___________________________

    Julgamento: _______________________ Assinatura: ___________________________

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao Interunidades em Esttica e Histria da Arte da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Esttica e Histria da Arte Linha de pesquisa: Teoria e Crtica da Arte

  • AGRADECIMENTOS

    professora Katia Canton, que acreditou em minha proposta e me deu a oportunidade

    de desenvolver esta pesquisa.

    professora Elza Ajzenberg e ao professor Paulo Roberto Barbosa, pelas importantes

    contribuies na banca de qualificao.

    Aos colegas de mestrado Alex Gomes, Adriana D'Agostino e Aryane Cararo, pela ajuda

    ao longo do desenvolvimento do trabalho e pelo apoio nos momentos difceis.

    Ao Daniel, pela reviso do trabalho.

    Aos meus amigos, pelo carinho e companheirismo.

    minha famlia, por todo apoio e incentivo.

  • Enfim, quero chegar ao ponto em que digam de minha obra: este homem sente profundamente, este homem sente delicadamente. Apesar de minha suposta grosseria, voc me entende? Ou precisamente por causa dela.

    Vincent van Gogh, 1882

  • RESUMO

    Este trabalho tem por objetivo verificar que tipo de impacto as crises de melancolia do

    pintor Vincent van Gogh podem ter exercido sobre sua produo artstica. Os

    questionamentos tomados como ponto de partida so os seguintes: se o estado de

    melancolia impulsiona seu trabalho como artista, se a melancolia imprime

    caractersticas especficas em sua obra e se a arte proporciona a Van Gogh um alvio ou

    um agravamento de sua natureza melanclica. A pesquisa foca um perodo especfico

    na vida do artista: os primeiros 10 meses em que viveu na cidade de Arles, no sul da

    Frana, entre fevereiro e dezembro de 1888. A leitura das 139 cartas escritas por Van

    Gogh neste perodo possibilitou identificar os momentos em que ele descrevia seu

    prprio estado de esprito como melanclico. A partir desta identificao, o trabalho

    parte para a anlise de obras produzidas no perodo, das quais foram selecionadas oito

    telas de pr do sol. A observao das telas sob o contexto do sentimento

    experimentado por Van Gogh enquanto as produzia levou, por fim, a uma reflexo

    sobre a relao entre melancolia e a arte no pintor.

    Palavras-chave: Vincent van Gogh, Melancolia, Arte Moderna.

  • ABSTRACT

    The aim of this research is to verify what kind of impact the melancholy crises of the

    painter Vincent van Gogh may have had in his artistic production. The questions that

    represent the starting point are: whether the state of melancholy impels his work as

    an artist, whether melancholy results in specific features in his work and whether art

    provides a relief or an aggravation of Van Gogh's melancholy nature. The research

    focuses on a specific period in the artist's life: the first 10 months in which he lived in

    the city of Arles, in the south of France, between February and December of 1888. The

    reading of the 139 letters written by Van Gogh during this period enabled the

    identification of the moments in which he described his own state of mind as

    melancholic. Based on this identification, the study starts the analysis of the paintings

    produced in this period, from which eight canvas of setting suns were selected. The

    observation of these works under the context of the emotions experimented by Van

    Gogh while he painted them led, ultimately, to a reflection about the relationship

    between melancholy and art in the painter.

    Keywords: Vincent van Gogh, Melancholy, Modern Art.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Vincent van Gogh, Pollard willows with setting sun (F 572 / JH 1597), maro de 1888, leo sobre tela 31,6 x 34,3 cm. Krller-Mller Museum, Otterlo, Holanda . 77

    Figura 2 - Vincent van Gogh, Sower with setting sun (F422 / JH 1470), junho de 1888, leo sobre tela 64,2 x 80,3 cm. Krller-Mller Museum, Otterlo, Holanda ............... 82 Figura 3 - Vincent van Gogh, Wheatfield with setting sun (F 465 / JH 1473), junho de 1888, leo sobre tela 74 x 91 cm, Kunstmuseum Winterthur, Winterthur, Sua ...... 86 Figura 4 - Fac-smile da Carta 628, escrita em 19 de junho para Emile Bernard, com esboo do quadro Wheatfield with setting.................................................................. 88 Figura 5 - Vincent van Gogh, Sunset at Montmajour (F - / JH -), julho de 1888, leo sobre tela - 93,3 x 73,3 cm. Coleo privada ............................................................... 89 Figura 6 - Vincent van Gogh, Sand barges (F437 / JH 1570), outubro de 1888, leo sobre tela 71 x 95 cm. Coleo privada..................................................................... 92 Figura 7 - Vincent van Gogh, Sand barges (F438 / JH 1571), outubro de 1888, leo sobre tela 53,3 x 64 cm. Museu Thyssen-Bornemisza, Madri, Espanha ..................... 92 Figura 8 - Vincent van Gogh, Red vineyard (F495 / JH 1626), novembro de 1888, leo sobre tela 75 x 93 cm. Pushkin State Museum of Fine Arts, Moscou, Rssia ............. 96 Figura 9 - Paul Gauguin, Human miseries (W317/W304), novembro de 1888, leo sobre tela - 73,5 x 92,5 cm. Ordrupgaard Collection, Copenhague, Dinamarca ............ 97 Figura 10 - Vincent van Gogh, Sower with setting sun (F450 / JH 1627), novembro de 1888, leo sobre estopa sobre tela 73,5 x 93 cm. Foundation E. G. Buehrle Collection, Zurique, Sua ............................................................................................................. 99 Figura 11 - Fac-smile da carta 722, escrita para Theo em 21 de novembro de 1888, com esboo da pintura Sower with setting sun ......................................................... 101 Figura 12 - Vincent van Gogh, Doctor Gachet (F 753 / JH 2007), 1890, leo sobre tela - 66 x 57 cm. Coleo privada ...................................................................................... 105 Figura 13 - Vincent van Gogh, Sorrow (929a / JH 130), 1882, carvo - 44,5 x 27 cm. Walsall Museum and Art Gallery, The Garman Ryan Collection, Walsall, Inglaterra ... 106 Figura 14 - Vincent van Gogh, At Eternity's gate (F702 / JH1967), 1890, leo sobre tela - 80 x 64 cm. Krller-Mller Museum, Otterlo, Holanda ............................................ 107

    file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484625file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484625file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484626file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484626file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484627file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484627file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484628file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484628file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484629file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484629file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484630file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484630file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484631file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484631file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484632file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484632file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484633file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484633file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484634file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484634file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484634file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484635file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484635file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484636file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484636file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484637file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484637file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484638file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484638

  • Figura 15 - Vincent van Gogh, Weeping woman (F1069 / JH325), giz preto e branco sobre papel, 1883, Art Institute of Chicago, Chicago, Estados Unidos ........................ 107 Figura 16 - Vincent van Gogh, Peasant sitting by the fireplace (F863 / JH34), aquarela, 1881. P. and N. de Boer Foundation, Amsterdam, Holanda ....................................... 107

    file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484640file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484640file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484639file:///C:/Users/Mariana/Documents/Faculdade/Ps-Qualificao%20-%20Semestre%20final/Dissertao2.docx%23_Toc394484639

  • SUMRIO

    1 Introduo ........................................................................................................... 11

    1.1 Objeto ........................................................................................................... 12

    1.2 Objetivos ....................................................................................................... 14

    1.3 Justificativa .................................................................................................... 15

    1.4 Metodologia e quadro terico de referncia ................................................. 16

    2 Van Gogh e a Melancolia ..................................................................................... 24

    2.1 Evoluo histrica do conceito de melancolia ................................................ 24

    2.2 O artista se define como melanclico ............................................................ 35

    2.3 Jornada at o sul da Frana ........................................................................... 40

    3 A produo nos perodos melanclicos ............................................................... 47

    3.1 As cartas revelam seus sentimentos .............................................................. 47

    3.2 Anlise dos quadros....................................................................................... 74

    4 Discusso ........................................................................................................... 102

    4.1 Concluso .................................................................................................... 114

    REFERNCIAS ............................................................................................................ 116

  • 11

    1 Introduo

    A melancolia uma caracterstica marcante da personalidade de Vincent van

    Gogh (1853 1890). Descrito por seus bigrafos e por sua prpria famlia como aquele

    que estava sempre "no limiar da melancolia" (SWEETMAN, 1993, p. 80) e que

    alimentava "hbitos de solido e de melancolia" desde a infncia (NAIFEH e SMITH,

    2012, p. 129), o artista tambm costumava mencionar em suas cartas como sua

    natureza era "terrivelmente e irreparavelmente melanclica" (Carta 244)1.

    Mas de que forma este temperamento reflete em suas obras de arte? Foi esta a

    pergunta que me fez delinear o projeto de mestrado que resultou nesta dissertao.

    Cabe mencionar aqui algumas das principais motivaes que me levaram a escolher

    tratar do sentimento de melancolia no artista Vincent van Gogh.

    Primeiro, assim como deve ser em qualquer processo de pesquisa, o que me

    guiou foi a curiosidade. As pinturas de Van Gogh passaram a exercer fascnio sobre

    mim desde cedo. A ideia de que eram produzidas por uma espcie de gnio-louco, no

    entanto, sempre foi motivo de desconfiana por parecer uma constatao demasiado

    simplista. Descobrir o homem por trs da arte , portanto, minha principal inteno. E

    tentar identificar algo que tenha passado despercebido por inmeros olhares

    anteriores meu desafio.

    Hoje, alis, todos os olhares voltam-se para Van Gogh. Seus quadros atingem

    preos exorbitantes em leiles de arte2 e, em pleno ano de 2012, um livro que se

    props, mais uma vez, a contar a histria de sua vida turbulenta ganhou uma imensa

    projeo miditica3. A descoberta de uma nova tela do artista em 2013 tambm foi

    noticiada com destaque por veculos de comunicao do mundo inteiro. Ainda assim,

    vejo espao para revelar o novo.

    1 As menes s cartas escritas por Van Gogh neste trabalho seguem sempre a numerao proposta pela publicao mais recente e mais completa da correspondncia do artista: VAN GOGH, Vincent. The letters. The complete illustrated and annotated edition. Londres: Thames & Hudson, 2009. 2 O quadro "Vue de l'Asile et de la Chapelle de Saint-Remy" que pertencia coleo da atriz Elizabeth Taylor, foi vendido na casa de leilo Christies em fevereiro de 2012 por US$ 16 milhes. Em 1987, um de seus Les Tournesols bateu um recorde no mercado da arte ao ser leiloado por US$ 36 milhes. 3 Este livro Van Gogh: A vida, de Steven Naifeh e Gregory White Smith. Lanado no Brasil em novembro de 2012 pela Companhia das Letras, props um novo olhar sobre a morte de Van Gogh, contestando a tese de morte do pintor como suicdio.

  • 12

    Ao longo deste trabalho, busco descobrir de que maneira os diferentes estados

    de esprito experimentados por Van Gogh podem ter influenciado sua produo

    artstica. Em sua trajetria marcada por oscilaes frequentes entre melancolia e

    euforia, seria possvel detectar em sua pintura sinais da presena desses sentimentos?

    como se ele fosse duas pessoas: uma maravilhosamente dotada, terna e refinada, a outra egosta e cruel. Elas se apresentam alternadamente, de modo que a gente o ouve falar primeiro de uma maneira, depois da outra, e sempre com discusses dos dois lados. (VAN GOGH, Theo apud SWEETMAN, 1993, p. 195)

    A descrio feita por Theo van Gogh, irmo de Vincent, em carta enviada irm

    Willemien, demonstra quo ntida era sua percepo sobre a dualidade do esprito do

    artista. Este trabalho busca conhecer mais profundamente essas duas pessoas: o bom

    e o cruel, o melanclico e o eufrico, o sensato e o desvairado, o monge e o pintor.

    Esta pesquisa aborda um perodo especfico da vida de Van Gogh os dez

    primeiros meses em que viveu em Arles, no sul da Frana para buscar identificar de

    que forma os episdios de melancolia, que eram intercalados com momentos de

    euforia, interferiram em sua produo artstica.

    A partir das cartas escritas na poca, foi possvel determinar os perodos em

    que ele mencionou estar se sentindo melanclico. A partir da, escolhi um tema de

    pintura que se repetiu ao longo de todo o perodo analisado: o pr do sol. O trabalho

    parte, ento, para a anlise das oito telas de pr do sol produzidas nesses 10 meses,

    levando em conta que algumas delas foram feitas em meio a crises de melancolia e

    outras no.

    1.1 Objeto

    Este estudo tem como objeto as pinturas produzidas por Van Gogh entre

    fevereiro e dezembro de 1888 e tambm as cartas escritas pelo artista na mesma

    poca. O perodo de 10 meses delimitado por este estudo vai desde sua mudana de

    Paris onde vivera por quase trs anos com o irmo Theo para a cidade de Arles, no

    sul da Frana, at a crise que o leva automutilao da orelha.

  • 13

    A escolha por esse perodo especfico deve-se ao fato de que, em Arles, Van

    Gogh experimentou estados de esprito muito distintos em um curto intervalo de

    tempo. Se houve momentos em que demonstrou intenso entusiasmo com o clima e as

    cores quentes do sul, caractersticas que o aproximavam do Japo que tanto admirava,

    houve tambm situaes em que se sentiu solitrio e melanclico. Foi nessa poca que

    ele comeou a sonhar, esperanoso, com a formao de uma comunidade de artistas,

    ambio que foi amplamente documentada em sua correspondncia e que tomou

    conta de boa parte de sua reflexo sobre a arte no perodo. Foi l tambm que

    percebeu sinais de que sua idealizao poderia jamais ser concretizada.

    Nos meses que se seguem ao fatdico incidente da orelha, ocorrido em 23 de

    dezembro de 1888, o pintor passa longos perodos internado em busca da recuperao

    mental. Suas cartas tornam-se mais escassas e seu trabalho, mais irregular. Por esse

    motivo, este estudo limita-se fase que antecede a crise.

    O psiquiatra Humberto Nagera, que dedicou ao pintor um estudo psicolgico

    publicado pela primeira vez no final da dcada de 1960, afirma que o perodo de Arles

    tem uma importncia primordial na vida de Van Gogh, tanto do ponto de vista artstico

    pois quando atinge sua forma de expresso mais acabada , quanto do ponto de

    vista psicolgico:

    [Em Arles] sua vida e seus conflitos psicolgicos alcanam tambm um ponto culminante, o qual, por desgraa, marca o comeo de um perodo infeliz e de grandes perturbaes que conduzem, quase sem interrupo, ao final ocorrido um ano e dois meses mais tarde, em julho de 1890. (...) s vezes, queixa-se de seu nervosismo e ansiedade. Est, em alguns momentos, animado e, em outros, deprimido. Seu isolamento e sua solido no contribuem para alivi-lo. (NAGERA, 1980, p. 113, traduo nossa)

    Por condensar muitas experincias discrepantes, a anlise dessa fase permitir

    observar possveis contrastes entre as pinturas produzidas em momentos de

    melancolia e em momentos de euforia e identificar se, afinal, a presena desses

    sentimentos foi capaz de provocar um impacto perceptvel em sua obra.

    Levando em conta toda a estadia em Arles, que se estendeu por mais quatro

    meses aps o episdio de automutilao, at o dia 8 de maio de 1889, Van Gogh

  • 14

    produziu mais de 200 quadros e mais de 100 desenhos e aquarelas (PICKVANCE, 1985,

    p. 11).

    Do perodo analisado, chegaram at ns 139 cartas escritas por Van Gogh. A

    maioria delas, 106, tinha como destinatrio o irmo Theo. O segundo maior

    correspondente da poca foi o pintor francs Emile Bernard, para quem escreveu 19

    cartas. Sua irm Willemien foi a destinatria de 8 correspondncias. Outros amigos

    com quem trocou cartas ao longo dos 10 meses foram o pintor de origem australiana

    John Peter Russell, o belga Eugne Boch, o holands Arnold Koning, alm de Paul

    Gauguin.

    A frequncia com que Van Gogh escrevia a amigos e familiares variou durante

    os meses em que esteve em Arles. Em maro, por exemplo, escreveu apenas 8 cartas.

    J em outubro, chegou a enviar 20 correspondncias. Ao longo dos 10 meses

    analisados, o artista escreveu, em mdia, uma carta a cada dois dias.

    Ele tinha uma necessidade real de trocar ideias, de discutir problemas artsticos e comparar seu trabalho com o de outros artistas, de preferncia pessoalmente, seno por carta. Se ele pudesse falar com as pessoas face a face, ele obviamente teria menos necessidade de escrever. (JANSEN; LUIJTEN; BAKKER, 2009, traduo nossa)

    Na edio mais recente e mais completa das cartas, os editores ressaltam ainda

    outro aspecto da correspondncia: a qualidade intrnseca da escrita de Vincent. (...)

    tom pessoal, estilo evocativo e linguagem viva. A combinao desses fatores levou

    alguns especialistas a conceder correspondncia o status de literatura. (JANSEN;

    LUIJTEN; BAKKER, 2009).

    Desta forma, o conjunto formado pela correspondncia e pelas pinturas

    realizadas no perodo, bem como a documentao que permite determinar com

    preciso a data em que as pinturas foram executadas, servem como base para a

    execuo desta pesquisa.

    1.2 Objetivos

  • 15

    Este trabalho tem como objetivo geral identificar se o estado de melancolia

    experimentado pelo pintor Vincent van Gogh em determinados perodos de sua vida

    teve algum impacto em sua produo artstica.

    Como objetivos especficos, pretende, primeiro, identificar se o estado de

    melancolia em Vincent van Gogh impulsiona ou inibe sua produtividade artstica.

    Em segundo lugar, pretende identificar se existem caractersticas presentes nas

    obras produzidas em perodos de melancolia que diferem daquelas presentes em

    obras relacionadas a perodos de euforia ou de serenidade.

    Finalmente, pretende identificar se a produo artstica tem algum efeito sobre

    seu estado de esprito: a arte exerce o papel de aliviar ou de agravar seu estado de

    melancolia?

    1.3 Justificativa

    O dilogo entre psicologia e histria da arte apresenta-se de maneira intensa

    desde o fim do sculo XIX, a partir de quando surgem historiadores da arte como

    Warburg, Panofsky e Gombrich cuja compreenso de seu objeto de estudo passa a

    ser influenciada por sua formao em psicologia (FRAYZE-PEREIRA, 2010).

    No caso da literatura dedicada compreenso da vida e obra de Van Gogh,

    esse dilogo ainda mais arraigado, tendo sido o pintor alvo de uma crtica eivada de

    psicologismo (FRAYZE-PEREIRA, 2010). Esse tipo de abordagem pode ser justificada

    pela maneira como a biografia do artista revela a importncia de suas emoes em seu

    processo de produo artstica.

    Para Vincent, sua arte era um registro mais verdadeiro, mais revelador (to profundo to infinitamente profundo) de sua vida, at mais do que a enxurrada de cartas que sempre vinham de acompanhamento. Ele acreditava que toda onda de serenidade e felicidade, todo estremecimento de dor e desespero ingressavam na pintura; todo sofrimento se infundia em imagens que geravam sofrimento; todo retrato se fazia em autorretrato. E dizia: Quero pintar o que sinto e sentir o que pinto. (NAIFEH; SMITH, 2012, p. 27)

    Alm disso, sua histria de vida desperta ateno especialmente por causa da

    instabilidade de sua sade mental. O fato de que situaes trgicas de sua vida como

  • 16

    o episdio da orelha cortada ou da mo queimada4 so citadas com frequncia

    mesmo pelo pblico leigo demonstra o quanto esses acontecimentos, carregados de

    folclore e simbolismo, atiam a curiosidade dos que tm contato com sua obra. Todos

    querem saber mais sobre o gnio maluco, aquele que s vendeu um quadro enquanto

    vivia e que tirou sua prpria vida sem saber se sua arte seria, um dia, compreendida.

    Apesar dos numerosos estudos sobre a obra e a personalidade de Van Gogh,

    muitas questes a respeito do artista permanecem sem resposta. A questo de como

    suas intensas emoes, em especial a melancolia, deixam-se transparecer em suas

    telas um desses enigmas.

    A pertinncia deste trabalho reside no fato de que decifrar esse mecanismo em

    Van Gogh seria dar um passo adiante na direo de compreender como se d a relao

    entre a criao artstica e a melancolia tambm em outros artistas.

    1.4 Metodologia e quadro terico de referncia

    Para atingir o objetivo geral deste trabalho, que avaliar se o estado de

    melancolia de Van Gogh exerceu algum tipo de impacto em sua produo artstica, os

    procedimentos metodolgicos adotados consistem na leitura e anlise das 139 cartas

    escritas pelo artista no perodo que esta pesquisa tem como foco: entre 20 de

    fevereiro de 1888, quando o pintor chega a Arles, at 23 de dezembro de 1888,

    quando corta sua prpria orelha aps um ataque, termo que ele mesmo usou para

    descrever o acontecimento.

    Ao buscar a publicao mais recente das cartas completas de Van Gogh,

    descobri com grata surpresa que todas as 819 cartas escritas pelo artista ao longo da

    vida que foram preservadas por seus correspondentes, podem ser acessadas de forma

    4 Em 1880, enquanto van Gogh passava a Pscoa com os pais na cidade de Etten, a famlia recebeu a

    visita da prima de Vincent, Cornelia Vos (que era chamada de Kee), junto de seu filho Jan. Van Gogh apaixonou-se pela viva e declarou-se. Mesmo depois de ser veementemente rejeitado, resolveu tentar convenc-la de suas intenes e foi at Amsterd, na casa do tio Johannes Stricker, ver a amada. Ao ser informado de que ela no estava, e desconfiando que a alegao era apenas uma desculpa de seu tio, resolveu estender a mo direita sobre o funil de uma lmpada a leo e declarar que queria v-la nem se fosse somente pelo tempo em que aguentasse manter as mos sobre a chama. Num anticlmax, o tio Stricker simplesmente apagou a lmpada e manteve-se firme na inteno de no deix-lo ver a filha Kee. A mo ficou apenas superficialmente ferida.

  • 17

    gratuita pelo site www.vangoghletters.org. Essa publicao, que tambm ganhou uma

    edio em livro, com seis volumes, ocorreu em 2009, aps 15 anos de trabalho de

    pesquisadores do Van Gogh Museum e do Huygens Institute of the Royal Netherlands

    Academy of Arts and Sciences. A equipe, coordenada por Leo Jansen, Hans Luijten e

    Nienke Bakker, revisou os manuscritos e fez nova traduo das lnguas originais para o

    ingls, alm de acrescentar notas explanatrias. O trabalho inclui a identificao dos

    indivduos citados pelas cartas, bem como as obras de arte mencionadas e a origem de

    aluses e citaes que aparecem nas correspondncias.

    Na pgina da internet, o leitor pode acessar os textos originais das cartas, os

    fac-smiles, as notas explanatrias, a traduo dos textos para o ingls e as imagens de

    todas as obras mencionadas ao longo do dilogo entre Van Gogh e seus

    correspondentes.

    Cabe observar que, das 139 cartas analisadas, 133 foram lidas na lngua original

    (131 em francs e 2 em ingls). Em 6 delas, escritas originalmente em holands, coube

    recorrer traduo para o ingls. As citaes a trechos das cartas feitas neste trabalho,

    portanto, foram traduzidas por mim a partir da lngua original ou a partir do ingls, no

    caso das que estavam originalmente em holands. Os nmeros referentes s cartas

    aqui adotados so aqueles definidos por Jansen, Luijten e Bakker nessa ltima reviso

    da correspondncia.

    Se todo esse material chegou at ns, muito se deve ao empenho da viva de

    Theo, Johanna van Gogh-Bonger. Pouco menos de seis meses aps a morte de Van

    Gogh, em 29 de julho de 1890, seu irmo Theo tambm morre, em 25 de janeiro de

    1891. Alm de ser seu principal correspondente, Theo era tambm quem sustentava

    financeiramente o irmo e o detentor de muitas de suas obras.

    Por ocasio de sua morte, quem fica responsvel pelo patrimnio artstico e

    literrio dos irmos Van Gogh Johanna, ento com 29 anos. Na poca, Vincent no

    tinha muita relevncia no meio artstico e no gozava de grande reconhecimento nem

    mesmo por parte de seus colegas artistas. Ainda assim, Johanna acreditou na

    importncia de reunir e preservar cerca de 550 pinturas, vrias centenas de desenhos

    e uma enorme e desordenada pilha de cartas.

    http://www.vangoghletters.org/

  • 18

    Coube a Jo, a viva de Theo, realizar o milagre de transformar o nome insignificante de um suicida obscuro, que s expusera umas poucas telas em algumas mostras de vanguarda, e que de fato s vendera um quadro em toda a sua vida, no do artista mais famoso de seu tempo. (SWEETMAN, 1993, p. 283)

    No prefcio da Biografia de Vincent van Gogh por sua cunhada (VAN GOGH-

    BONGER, 2008), o filho de Theo e Johanna, tambm chamado Vincent Willem van

    Gogh como o tio famoso relata que sua me se esforou ao longo de muitos anos

    para colocar as cartas de Vincent em ordem cronolgica, j que muitas no tinham

    data.

    A primeira edio das cartas foi lanada em trs volumes em Amsterd em

    1914. Um dos muitos bigrafos de Van Gogh, o britnico David Sweetman, conta que

    Johanna chegou a adiar a publicao, j que ela considerava que os detalhes pessoais

    da vida do artista s deveriam ser revelados quando sua obra fosse mais bem

    assimilada pelo pblico. As cartas foram publicadas nas vrias lnguas em que Vincent

    as escrevera. A introduo um relato de Jo sobre a vida de Vincent, sobretudo a

    partir de lembranas do que Theo lhe contara foi a base de todas as biografias

    subsequentes de Vincent (SWEETMAN, 1993, p. 285).

    Em 1915, ela se mudou para Nova York, onde comeou a traduzir as cartas para

    o ingls. Quando morreu, no dia 2 de setembro de 1925, tinha chegado at a carta

    nmero 526, de acordo com seu filho Vincent Willem.

    As cartas so escritas com tal frequncia que correspondem a registros quase

    dirios do estado de esprito do pintor. Nelas, Van Gogh discorre sobre o trabalho, os

    anseios e as angstias, demonstrando assim seu modo de ver o mundo. Para

    Sweetman, a anlise das cartas um procedimento primordial para compreender a

    essncia do artista:

    preciso retornar s suas prprias palavras para descobrir a verdade. Ele se deu a considervel trabalho para explicar seu pensamento em sua extensa correspondncia, e o tempo dedicado s pinturas, seguido da leitura de suas cartas, principalmente a seu irmo Theo, um dos prazeres mais iluminantes que o estudo da arte tem a oferecer. (SWEETMAN, 1993, p. 10)

  • 19

    No prefcio do livro Vincent van Gogh: Un Studio psicolgico, do psiquiatra

    Humberto Nagera, a psicanalista Anna Freud tambm destaca a maneira como as

    cartas revelam os sofrimentos de Van Gogh:

    As cartas de Vincent van Gogh em que se baseiam este livro tm emocionado o leitor pela sinceridade dos sentimentos expressados nelas, por sua fora expressiva, pela profundidade dos sofrimentos humanos que refletem e pelos lampejos de intuio que manifestam uma e outra vez. Em suas cartas, van Gogh d um testemunho necessariamente subjetivo dos acontecimentos que marcaram sua existncia. (FREUD, 1980, p. 7, traduo nossa)

    Conhecendo o carter oscilante do estado de esprito do pintor ao longo dessa

    fase, busca-se determinar, por meio da anlise desses documentos, os perodos em

    que suas palavras revelam um estado de esprito melanclico e sombrio, assim como

    os momentos em que seu discurso aponta para um estado eufrico e entusiasmado.

    O discurso do sujeito, a escolha que ele faz das palavras, alm do uso da

    entonao e do ritmo podem denunciar, ainda que involuntariamente, a presena da

    melancolia e da tristeza. Julia Kristeva descreve o discurso do deprimido como uma

    ladainha repetitiva.

    Lembrem-se das palavras do deprimido: repetitivas e montonas. Diante da impossibilidade de se encadear, a frase se interrompe, se desgasta, para. Mesmo os sintagmas no chegam a se formular. Um ritmo repetitivo, uma melodia montona vem dominar as sequncias lgicas rompidas e as transformar em ladainhas recorrentes, obsessivas. (KRISTEVA, 1987, traduo nossa)

    A anlise das cartas de Van Gogh resulta na identificao de algumas das

    caractersticas citadas por Kristeva. Frases interrompidas e ideias descritas apenas pela

    metade aparecem em algumas das cartas escritas durante o perodo.

    Outro fenmeno destacado por Kristeva a respeito do discurso do deprimido

    a observao de que aquele que acometido pela depresso, por sofrer um luto

    impossvel do objeto maternal, como um estrangeiro na lngua materna, j que no

    consegue integrar-se plenamente cadeia significante universal a linguagem.

    A fala do depressivo para ele como uma pele estrangeira: o melanclico um estrangeiro em sua lngua materna. Ele perdeu o sentido o valor de sua lngua materna, falta de perder sua me. A

  • 20

    lngua morta que ele fala e que anuncia seu suicdio esconde uma Coisa enterrada viva. (KRISTEVA, 1987)

    A autora descreve ainda o discurso do depressivo como uma mscara bela

    fachada entalhada em uma lngua estrangeira. Esse fenmeno de ser estranho

    prpria lngua materna pode ser identificado literalmente na correspondncia de Van

    Gogh. A partir do momento em que decide ser artista, ele comea a se corresponder

    com o irmo Theo em francs, no lugar do holands materno.

    O uso do francs para dirigir-se a seu irmo, com quem seria natural conversar

    em holands, aparece pela primeira vez em carta de 15 de outubro de 1880, quando o

    artista chega a Bruxelas com o objetivo de aprender a desenhar. A escolha parece

    frisar o fato de que uma nova vida estava comeando (SWEETMAN, 1993). Um

    comentrio sobre o fato de ele se sentir mais vontade ao se expressar em francs

    tambm aparece em uma carta irm Willemien, de 26 de agosto de 1888, quando ele

    passa a dirigir-se tambm a ela na lngua francesa: Minha querida irm, se voc me

    deixar escrever-lhe em francs, isso realmente me simplificar a carta (Carta 670).

    Acima de tudo, e alm da observao das caractersticas do discurso do

    deprimido elaboradas por Kristeva, a determinao do estado de esprito de Van Gogh

    ao longo do perodo selecionado torna-se possvel graas ao fato de que ele prprio se

    dispunha a descrever sua atitude mental ao longo das cartas. Apesar de ter

    mencionado certa vez, em carta irm Willemien, que detestava escrever sobre si

    mesmo e que no sabia por que o fazia (carta 626), o fato que so frequentes os

    trechos em que busca transmitir ao destinatrio exatamente o que est sentindo no

    momento em que se senta mesa com papel e pena na mo.

    No presente, eu sofro bastante certos dias, mas isso no me preocupa de

    maneira alguma, j que no nada alm da reao a este inverno fora do comum,

    escreve Van Gogh a Theo em 9 de abril de 1888 (Carta 594), evidenciando seu

    sofrimento nos primeiros meses da estadia em Arles. Em outra ocasio, em 8 de

    setembro de 1888, fala ao irmo sobre a chegada de dias melhores e mais alegres:

    (...) aps algumas semanas de preocupaes, tenho tido uma semana bem melhor. E

    assim como as preocupaes no vm sozinhas, as alegrias tambm no (Carta 676).

    Depois de uma leitura sistemtica dos documentos em busca de trechos como

    os citados, que evidenciam o estado de esprito do artista naquele momento, a

  • 21

    pesquisa procedeu anlise das pinturas produzidas nesses perodos distintos e a

    escolha de algumas obras para serem analisadas mais profundamente, de modo que se

    torne possvel comparar os trabalhos produzidos em momentos de melancolia com

    aqueles produzidos em momentos de euforia.

    Para tornar a comparao mais consistente, essa escolha recaiu sobre obras

    com um tema comum. Dessa forma, torna-se possvel observar como o mesmo tema

    foi representado pelo artista enquanto experimentava sentimentos distintos e

    identificar quais so as diferenas entre essas representaes.

    Neste ponto, tendo em vista que este trabalho parte de uma aproximao de

    elementos da psicologia representados aqui pela identificao de caractersticas

    psicolgicas do artista presentes no texto de sua correspondncia e pela busca por

    essas mesmas caractersticas em sua pintura com a esttica e a histria da arte,

    pertinente retomar algumas consideraes feitas por Frayze-Pereira em Arte, Dor:

    Inquietudes entre Esttica e Psicanlise. O autor cita o escritor francs Ren Huyghe

    ao afirmar que, para a psicologia da arte, o principal objeto de anlise a prpria obra

    de arte, cuja leitura permite decifrar no s o que um homem disps nela

    intencionalmente, mas tambm o que nela colocou inconscientemente, de si prprio e

    do grupo humano a que pertence (HUYGHE, 1986 apud FRAYZE-PEREIRA, 2010, p. 65).

    Apesar de essa leitura ser possvel, como mostra Huyghe, Frayze-Pereira alerta

    para o fato de que simplesmente usar a obra de arte como o objeto por meio do qual o

    psicanalista pretende diagnosticar e decifrar o artista, da mesma forma que interpreta

    seu paciente por meio da fala, uma viso muito simplista da relao entre arte e

    psicanlise. Dessa forma, a obra acaba reduzida funo sintomtica de mascarar

    significados que o analista, como sujeito do saber psicanaltico, cr desvelar por um

    poder interpretativo oriundo desse saber (FRAYZE-PEREIRA, 2010, p. 70).

    Portanto, a definio dos critrios para a anlise das obras selecionadas de Van

    Gogh deve levar em conta essas observaes, para que a interpretao no resulte

    demasiado simplista nem reduza as pinturas a meros sintomas.

    Por fim, para atingir os objetivos de identificar se o estado de melancolia em

    Van Gogh impulsiona ou inibe sua produtividade artstica e identificar se, por outro

    lado, a arte tem o efeito de aliviar ou agravar seu estado de melancolia, esta pesquisa

    recorre novamente s cartas. O intuito verificar qual a percepo do prprio pintor

  • 22

    em relao a essas questes. Outras fontes a quem este trabalho tambm deve

    recorrer para tratar desse tema so os bigrafos de Van Gogh com o propsito de

    reunir as vises dos diferentes autores sobre a relao entre melancolia e arte na

    figura de Van Gogh.

    * * *

    Desde a morte de Van Gogh, centenas, se no milhares de estudos j foram

    publicados a respeito de sua vida e obra. Frayze-Pereira cita que, de acordo com um

    registro de 1942, at essa data j se podiam contar 777 pesquisas divulgadas sobre o

    tema (FRAYZE-PEREIRA, 2010).

    Um levantamento inicial para o desenvolvimento desta pesquisa chegou a

    diversas biografias do pintor holands. Entre elas, destacam-se as de Meyer Schapiro

    (1950), Dino Formaggio (1952), Henri Perruchot (1959), Viviane Forrester (1983), Jorge

    Coli (1985), Julius Meier-Graefe (1987), entre outras.

    A escolha das biografias que norteariam este trabalho recaiu sobre quatro

    autores principais: David Sweetman (1993), Pascal Bonafoux (2011), Steven Naifeh e

    Gregory White Smith (2012).

    Estes dois ltimos so os responsveis pela mais recente publicao sobre o

    tema: Van Gogh: A vida (NAIFEH; SMITH, 2012). O trabalho resultado de 10 anos

    de meticulosa pesquisa e chamou a ateno da crtica ao sugerir que Van Gogh no se

    matou, mas teria sido atingido por um tiro acidental disparado por um jovem chamado

    Ren Secrtan. O estudo extremamente detalhado contou com o apoio de

    pesquisadores do Van Gogh Museum, cujo curador, Leo Jansen, definiu a obra como a

    biografia definitiva para as prximas dcadas. As caractersticas da obra fazem com

    que ela seja a fonte de referncia mais atualizada e detalhada sobre a vida do pintor.

    Se as mais de mil pginas de Van Gogh: A vida primam pelo detalhamento e

    levam em conta uma quantidade imensa de fontes documentais (somente as notas da

    obra resultaram em cerca de 5 mil pginas datilografadas, segundo os autores, motivo

    pelo qual elas no foram publicadas na forma impressa, mas no site

    www.vangoghbiography.com), a obra de David Sweetman Van Gogh: Uma biografia

    (SWEETMAN, 1993), tem como qualidade a abordagem cuidadosa, ainda que mais

    http://www.vangoghbiography.com/

  • 23

    concisa, sobre as caractersticas psicolgicas de Van Gogh. Tendo sido a primeira

    biografia a que tive acesso, desempenhou um papel importante para a elaborao do

    projeto de pesquisa para esta dissertao (o livro de Naifeh e Smith seria publicado no

    Brasil apenas em novembro de 2012).

    O trabalho de Pascal Bonafoux tambm foi importante para esta pesquisa,

    principalmente por trazer a reproduo de textos de crticos e escritores a respeito da

    obra de van Gogh, como Georges Bataille, Antonin Artaud e Georges-Albert Aurier,

    responsvel pela primeira crtica relevante a respeito de Van Gogh, publicada em

    janeiro de 1890 no Mercure de France (BONAFOUX, 2011).

    Outra pea importante para a montagem do quebra-cabea que constitui a

    personalidade e as caractersticas psicolgicas de van Gogh foi o livro Vincent van

    Gogh: Un studio psicolgico, do psiquiatra Humberto Nagera (NAGERA, 1980). Uma

    de suas contribuies foi trazer novas hipteses para o que pode ter contribudo para

    o desencadeamento das crises que tiveram incio em Arles.

    A respeito da busca pstuma por um diagnstico mental preciso para Van

    Gogh, o mdico afirma que no seria possvel chegar a uma concluso definitiva,

    opinio que compartilho com o autor, motivo pelo qual este trabalho no adota

    nenhuma das hipteses como a nica correta.

  • 24

    2 Van Gogh e a Melancolia

    Antes de comear a discorrer sobre a melancolia em Van Gogh, importante

    trazer luz duas questes principais. Primeiro, preciso promover uma reviso a

    respeito da evoluo histrica do conceito de melancolia, levando em conta que

    muitas definies que j foram associadas ao termo desde seu primeiro registro, no

    sculo V a.C. Em seguida, faz-se necessrio compreender que tipo de relao o prprio

    Van Gogh estabelecia com esse termo, tomando por base as referncias que ele faz

    melancolia ao longo de sua correspondncia. Desta forma, possvel determinar qual

    a definio de melancolia a ser tomada como referncia por este trabalho.

    Com o objetivo de compreender melhor a trajetria de vida do personagem

    principal desta pesquisa, este captulo tambm traz um resumo sobre a vida de Van

    Gogh at sua chegada cidade de Arles, quando comea a anlise de sua obra e de

    suas cartas.

    2.1 Evoluo histrica do conceito de melancolia

    Antes de comear a abordar a questo da melancolia em Van Gogh,

    importante discorrer sobre a evoluo histrica do conceito de melancolia e

    determinar qual definio entre as muitas que j foram associadas ao termo desde

    seu primeiro registro no sculo V a.C ser tomada como referncia neste trabalho.

    Ao longo dos sculos, o termo melancolia tem incorporado significados e conotaes

    distintas, como observam Klibansky, Panofsky e Saxl (1964): Embora novos

    significados tenham emergido, os velhos significados no deram lugar a eles; em suma,

    foi um caso no de decadncia e metamorfose, mas de sobrevivncia paralela. O

    conceito de melancolia carrega, portanto, uma pesada bagagem histrica que deve ser

    levada em considerao por trabalhos atuais sobre o tema.

    Doutrina dos quatro humores

  • 25

    Para falar da origem do conceito de melancolia, preciso voltar antiga

    doutrina dos quatro humores, que determinava a existncia de quatro humores

    corporais: a bile negra, a fleuma, a bile amarela e o sangue. Acreditava-se que a

    proporo desses humores no organismo determinava a sade, o carter e o

    temperamento dos indivduos.

    O sistema foi adotado durante muito tempo tanto pela medicina quanto pela

    psicologia, havendo registros de seu uso clnico at o sculo XIX, quando a nova teoria

    sobre doenas mentais desenvolvida pelo mdico francs Philippe Pinel aboliu o uso

    do vocabulrio da teoria dos humores (LAMBOTTE, 2000). At o sculo XVIII,

    tratamentos baseados no humoralismo como sangrias, expurgos e vomitrios ainda

    eram correntes na prtica clnica. Eles seguiam o princpio de que a eliminao do

    excesso de determinados humores poderia levar ao equilbrio e sade.

    O primeiro registro de que se tem conhecimento de uma descrio sistemtica

    dos quatro humores aparece na obra Da natureza do homem, texto atribudo a

    Hipcrates, ou a seu genro Plibo (KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL, 1964).

    Mas antes mesmo dessa sistematizao, trs antigos princpios gregos j

    prenunciavam o surgimento da doutrina dos humores: a busca por elementos simples

    que dessem origem a toda a complexidade do universo; a busca por uma expresso

    numrica capaz de abarcar toda a estrutura da existncia carnal e espiritual e a teoria

    da harmonia, simetria e proporcionalidade, que os gregos pensavam ser essencial

    tanto para os valores estticos quanto para os valores morais, de higiene e de sade.

    Em ltima instncia, a doutrina dos quatro humores resultou da evoluo e da

    agregao de teorias anteriores propostas por pensadores da Escola Pitagrica, de

    acordo com Klibansky, Panofsky e Saxl (1964).

    Primeiro, Alcmeo de Crotona, mdico pitagrico que viveu em 500 a.C, props

    que a sade era resultado do equilbrio de qualidades como mido e seco, amargo e

    doce, frio e quente, entre outras.

    J Filolau deu um passo a mais rumo doutrina humoral elegendo o nmero

    quatro com o princpio da sade. Posteriormente, Empdocles criou a teoria dos

    quatro elementos csmicos, segundo a qual terra, fogo, gua e ar seriam os elementos

    constituintes de toda a matria. A proporo de cada elemento presente no indivduo

    determinaria suas caractersticas. Um homem no qual os elementos estivessem em

  • 26

    equilbrio, por exemplo, teria melhor compreenso da vida. J o homem em que um

    dos elementos sobressasse em relao aos outros teria uma capacidade intelectual

    limitada.

    Empdocles comeou, dessa forma, a relacionar a parte fsica e mental do ser

    humano, dando origem a uma teoria psicossomtica. Mas sua teoria ainda no

    especificava quais eram as matrias fsicas, dentro do homem, que pudessem

    comprovar a teoria.

    Para se chegar doutrina dos quatro humores ainda faltava relacionar os

    quatro elementos csmicos com elementos presentes no corpo humano. Buscavam-se

    substncias especficas da constituio fsica do homem que correspondessem aos

    elementos primrios do universo.

    Filistio chegou a associar os quatro elementos csmicos com as caractersticas

    calor, frio, mido e seco, conciliando dessa forma a teoria de Empdocles com a de

    Alcmeo de Crotona, que dizia respeito sade como resultado do equilbrio entre as

    qualidades.

    Mas foi Hipcrates quem finalmente determinou a existncia de quatro

    humores responsveis pela constituio fsica e mental do homem. Antes dele, j se

    falava na existncia dos humores como causadores ou sintomas de doenas, j que

    eles se tornavam visveis em situaes como o vmito. Mas as teorias correntes

    apontavam para a existncia de apenas dois humores a fleuma e a bile ou ento de

    inmeros humores.

    Hipcrates transformou-os em quatro ao incluir o sangue e dividir a bile em

    duas: a bile amarela e a bile negra. Segundo a teoria hipocrtica, os quatro humores

    poderiam levar tanto sade quanto doena: enquanto a combinao correta

    resultava em sade, a predominncia ou a falta de um deles produzia a doena.

    Alm disso, Hipcrates determinou as combinaes de caractersticas

    associadas a cada um dos humores: o sangue seria quente e mido, a bile amarela

    seria quente e seca, a bile negra seria fria e seca e a fleuma, fria e mida. Ele props

    tambm que cada estao do ano estaria associada ascenso de um humor: a

    primavera foi associada ao sangue, o vero bile amarela, o outono bile negra e o

    inverno fleuma.

  • 27

    O termo melancolia, em grego, designa justamente a condio de ter bile

    negra. A palavra grega (ou melagkhola) composta pela juno de

    (ou mlas), que significa negro, e (ou khol), que significa bile.

    Da sade ao temperamento

    Se, a princpio, a doutrina dos quatro humores dizia respeito exclusivamente

    sade do indivduo, ela passou gradualmente a designar tambm o temperamento das

    pessoas. Como a situao de manter um equilbrio absoluto entre todos os humores, o

    que determinaria que o indivduo nunca adoecesse, era virtualmente impossvel, a

    predominncia de um ou de outro humor passou a ser vista como um tipo de

    disposio.

    Dessa forma, as palavras colrico, fleumtico, melanclico ou

    sanguneo tinham duas possveis aplicaes: poderiam tanto denotar estados

    patolgicos quanto aptides constitucionais.

    No caso da melancolia, a doena provocada pelo excesso de bile negra era

    principalmente caracterizada por sintomas mentais, variando desde medo,

    misantropia e depresso at loucura em suas formas mais assustadoras. A

    ambiguidade desses sintomas psicolgicos levou ao reconhecimento de situaes em

    que um indivduo, apesar de apresentar hbitos melanclicos, no era considerado

    necessariamente doente. Na melancolia, essa distino entre a doena e a mera

    predisposio ocorreu antes do que nos outros humores.

    Ainda segundo Klibansky, Panofsky e Saxl (1964), essa peculiaridade abriu

    caminho para a transformao da teoria dos quatro humores em uma teoria do

    temperamento e dos tipos mentais.

    Melancolia como ddiva

    Aristteles leva em frente o processo de desassociar a melancolia da esfera

    patolgica. Para ele, o doente da bile negra no necessariamente melanclico, nem o

    melanclico necessariamente doente da bile negra (ARISTTELES; PIGEAUD, 1998).

    Na viso de Aristteles, alm de existir uma sade do melanclico, a melancolia

    estaria intimamente relacionada ao que se pode chamar de genialidade. O filsofo

    abre seu texto Problema XXX, I com o clebre questionamento:

  • 28

    Por que razo todos os que foram homens de exceo, no que concerne filosofia, cincia do Estado, poesia ou s artes, so manifestamente melanclicos, e alguns a ponto de serem tomados por males dos quais a bile negra a origem, como contam, entre os relatos relativos aos heris, os que so consagrados a Hrcules? (ARISTTELES; PIGEAUD, 1998)

    No sculo IV a.C, segundo observam Klibansky, Panofsky e Saxl (1964), a noo

    de melancolia passou a ser associada s figuras mticas heroicas como Hracles, jax e

    Belerofonte. O encanto exercido por essas figuras era forte o suficiente para dar

    noo de melancolia uma aura de sinistra sublimidade. A melancolia tornou-se a

    doena dos heris.

    Plato j havia interpretado a loucura como uma ddiva divina. Aristteles

    ao associar a loucura melancolia concluiu que a melancolia tambm conferia o

    carter excepcional a todos os bem dotados nas reas de filosofia, poesia e arte.

    Dessa forma, a noo de melancolia adquiriu por sua vez um contedo novo e

    positivo e, graas a ele, foi possvel de uma s vez reconhecer e explicar o fenmeno

    do homem de gnio (KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL, 1964). De acordo com essa viso,

    a loucura divina passou a ser vista como uma sensibilidade de alma e a grandeza

    espiritual de um homem era medida por sua capacidade para a experincia e,

    sobretudo, para o sofrimento.

    Em Problema XXX, I, Aristteles estabelece uma curiosa comparao entre os

    efeitos do vinho e os efeitos da bile negra no organismo. Os dois so modeladores de

    carter e a bile negra, assim como o vinho, teria a capacidade de produzir todos os

    estados de personalidade em um mesmo indivduo.

    Isto quer dizer que o melanclico tem em si, como possveis, todos os

    caracteres de todos os homens. O que esclarece prodigiosamente, como veremos, a

    ideia mesma da criatividade melanclica. (ARISTTELES; PIGEAUD, 1998)

    Ao interpretar o texto de Aristteles, Pigeaud descreve o melanclico como

    aquele que, pelo efeito da bile que o corri, no tolera a sobriedade calma da vida.

    Pela mesma razo, um ser de violncia e de contraste, vtima da mudana

    incessante; ele incompreensvel. Para ela, o corao do problema proposto por

    Aristteles como a inconstncia do indivduo melanclico pode explicar sua grandeza

  • 29

    e sua criatividade. O texto, que no responde questo de forma fechada, tem o

    objetivo de levantar o problema e apresentar argumentos para reflexo.

    De fato, a relao entre o temperamento melanclico e a criatividade, mais

    especificamente a inclinao para a arte, uma questo que intriga at hoje e para a

    qual no existe resposta definitiva. Essa discusso faz-se especialmente importante na

    medida em que um dos objetivos especficos desta dissertao entender de que

    forma o temperamento de Van Gogh, descrito por ele prprio como melanclico, pode

    ter influenciado sua produo artstica. A viso de outros pensadores sobre o tema

    ser abordada ao longo deste trabalho.

    A melancolia depois de Aristteles

    Na Antiguidade, depois de Aristteles, manteve-se a ideia de que havia alguma

    ligao especial entre a melancolia e a vida intelectual. Porm, a tese apresentada em

    Problema XXX, I, de que todo homem de gnio seria melanclico, era vista com

    ressalvas ou ironia.

    A partir do sculo III a.C, os estoicos passaram a ver a melancolia no como

    requisito para dons excepcionais, mas como doena severa que os excepcionalmente

    dotados tm mais risco de desenvolver. Ou seja, enquanto para Aristteles a

    melancolia predispunha genialidade, para os estoicos, a genialidade predispunha

    melancolia.

    J Rufo de feso, mdico que viveu no sculo I d.C, defendia que a atividade

    mental era a causa direta da doena melanclica. Segundo Klibansky, Panofsky e Saxl

    (1964), essa teoria evidencia uma viso especificamente mdica sobre a questo, em

    oposio quelas dos filsofos naturais ou morais. Dessa forma, o destino trgico de

    um homem de gnio tornou-se meramente a m disposio de um estudioso

    sobrecarregado.

    Nessa poca, os sintomas da melancolia j tinham sido estabelecidos: os

    melanclicos eram pessoas atormentadas por toda sorte de desejos, deprimidas;

    covardes e misantropas; geralmente tristes sem causa, mas s vezes imoderadamente

    alegres; dadas a vrias excentricidades, fobias e obsesses (KLIBANSKY; PANOFSKY;

    SAXL, 1964).

  • 30

    Idade Mdia e Renascimento

    As ideias de Aristteles sobre a relao entre melancolia e genialidade eram

    ainda menos aceitas na Idade Mdia, quando, devido crescente influncia da Igreja,

    o valor de um indivduo no era medido de acordo com seu talento intelectual, mas

    com suas virtudes pelas quais Deus lhe dava foras para perseverar. O cristianismo fez

    da tristeza um pecado e, nessa poca, ter um corao morno significava ter perdido

    Deus (KRISTEVA, 1987).

    Ao longo de toda a Idade Mdia, a ideia dos melanclicos com capacidade

    intelectual excepcional foi deixada de lado para ser retomada somente no

    Renascimento.

    No geral, a Idade Mdia teve pouco interesse na interpretao do Problema XXX, I, enquanto os escritores do Renascimento, percebendo muito cedo o verdadeiro significado da distino entre melancolia natural e patolgica, passaram a aplic-la independentemente de sua divergncia em relao j vulgarizada doutrina das compleies (KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL, 1964)

    Outras interpretaes sobre a melancolia

    importante observar que a melancolia aparece, em diversos autores,

    associada loucura. Em Histria da Loucura na Idade Clssica, Michel Foucault

    descreve algumas dessas classificaes de loucura das quais a melancolia faz parte.

    Segundo Paracelso, mdico e alquimista suo que viveu no sculo XVI, por exemplo,

    existiriam quatro tipos de loucura: lunatici (influenciada pela lua), insani (loucura

    hereditria), vesani (loucura pelo mau uso da bebida ou comida) e melancholici (vcio

    de natureza interna).

    Em 1621, o acadmico britnico Robert Burton publicou o livro The Anatomy

    of Melancholy. Trata-se de uma espcie de enciclopdia que se prope, ao longo de

    suas mais de mil pginas, a compilar de forma cientfica todo o conhecimento

    acumulado pela humanidade a respeito da melancolia, desde a Grcia antiga at as

    teorias da medicina do sculo XVII.

    O prprio autor se dizia acometido pelos males da bile negra e afirmava que um

    dos motivos que o levou a se debruar com tanto afinco sobre o tema foi esquecer ou

  • 31

    amenizar seu prprio temperamento. Ironicamente, a obra que detalha com tanta

    propriedade as caractersticas da melancolia foi interpretada, na poca, como uma

    obra de entretenimento. Apesar da seriedade do trabalho de pesquisa e da riqueza de

    fontes consultadas por Burton, muitos o liam como um livro de humor.

    Analistas julgam que o efeito cmico se d justamente pelo detalhamento com

    que o temperamento melanclico descrito neste que j foi considerado um manual

    mdico, um livro de autoajuda ou uma compilao de citaes. Burton classifica a

    melancolia de forma to especfica a ponto de criar um verbete sobre a melancolia

    provocada pelo consumo de gua parada.

    Observa-se que, mesmo nessa poca, a viso medieval da melancolia enquanto

    degenerao moral e castigo divino ainda estava presente:

    (...) enquanto formos regrados pela razo, corrigirmos nosso apetite excessivo e permanecermos em conformidade com a palavra de Deus, ficaremos como todos os santos: mas se dermos rdeas a luxria, dio, ambio, orgulho e seguirmos nossos prprios caminhos, ns degeneramos em animais, nos transformamos, derrubamos nossas constituies, provocamos o dio de Deus, e se amontoa por cima de ns essa melancolia, e todos os tipos de doenas incurveis, como uma punio justa e merecida por nossos pecados. (BURTON, 2001)

    J no sculo XX, em Luto e Melancolia, Freud faz uma abordagem

    psicanaltica da chamada psicose manaco-depressiva (FREUD, 2013). E por que, depois

    de a medicina j ter superado o termo melancolia com a teoria Philippe Pinel

    tendo abolindo o uso desse vocabulrio no mbito mdico, relegando-o ao domnio

    dos filsofos e poetas Freud escolhe justamente esse significante? Segundo Maria

    Rita Kehl, no texto de abertura para a edio brasileira da obra, provvel que ele

    tenha escolhido a antiga e romntica designao de melancolia para estabelecer uma

    distino entre a abordagem psicanaltica da doena e aquela j consagrada pela

    medicina do sculo XIX.

    Nessa obra, Freud estabelece uma comparao entre a melancolia e o luto.

    Para ele, os dois processos envolvem uma perda. A diferena que o melanclico no

    sabe a natureza do objeto perdido nem a origem da perda, ao contrrio da pessoa em

    luto.

  • 32

    Ele descreve um processo em que, diante do abalo de uma relao com a

    pessoa amada, em vez da retirada da libido para outro objeto, ela se volta para o

    prprio ego, onde ocorre uma identificao com o objeto amado. Dessa forma,

    segundo Freud, a sombra do objeto recai sobre o ego e o conflito que deveria ser

    entre o sujeito e o objeto amado passa a ocorrer entre duas instncias internas do

    prprio ego. Assim, a perda do objeto se transformou em perda do ego (FREUD,

    2013). Nessas ocasies, no raro que o paciente tente vingar-se do objeto por meio

    de autopunio.

    O doente nos descreve o seu ego como indigno, incapaz e moralmente

    desprezvel; ele se recrimina, se insulta e espera ser rejeitado e castigado. Humilha-se

    perante os demais e tem pena dos seus por estarem eles ligados a uma pessoa to

    indigna. (FREUD, 2013). Toda essa crtica dirigida a si mesmo, portanto, tem como

    alvo original o objeto amado.

    Diferentemente da tradio inaugurada por Aristteles, Freud no estabelece

    qualquer relao entre melancolia e criao artstica ou genialidade. Pelo contrrio:

    Freud descreve que a melancolia inibe toda a atividade ao provocar um desnimo

    profundamente doloroso, a suspenso do interesse pelo mundo externo, a perda da

    capacidade de amar e o rebaixamento do sentimento de autoestima. Para Freud, o

    melanclico incapaz para o trabalho.

    Freud lembra que a definio conceitual da melancolia oscilante e ele prprio

    renuncia reivindicao da validade universal de suas concluses. Sobre ela, ele diz

    que (...) mesmo na psiquiatria descritiva, apresenta-se sob vrias formas clnicas, cuja

    sntese em uma unidade no parece assegurada, e dentre estas algumas sugerem

    afeces mais somticas que psicgenas.

    Em uma abordagem que guarda semelhanas com a de Freud, Julia Kristeva

    define a melancolia como uma ferida aberta ao descobrir que a dor no mais do que

    o dio nutrido por aquele que se ama e que o traiu ou o abandonou. Como Freud, ela

    tambm associa a melancolia perda de um objeto amado. Como quem j

    experimentou a sensao de estar sob o sol negro, dessa forma que ela descreve o

    fenmeno:

  • 33

    Estou tentando lhe falar de um abismo de tristeza, dor incomunicvel que nos

    absorve s vezes, e frequentemente por muito tempo, at nos fazer perder o gosto de

    qualquer palavra, de qualquer ato, o gosto mesmo da vida. (KRISTEVA, 1987).

    Diferentemente de Freud, Kristeva relaciona a melancolia criao esttica.

    Para ela, a arte tem um papel de sublimao. Nesses casos, o belo atua como

    substituto do objeto perdido.

    (...) As artes parecem indicar alguns mtodos que evitam a convenincia e

    que, sem simplesmente reverter o luto em mania, garantem ao artista e ao

    conhecedor uma adeso sublimatria sobre a coisa perdida. (KRISTEVA, 1987).

    Melancolia e mania

    Freud cita como a peculiaridade mais notvel da melancolia a tendncia a se

    transformar no estado sintomaticamente oposto: a mania. Segundo ele, ambas as

    afeces lutam com o mesmo complexo o ego sucumbe a ele na melancolia e o

    supera na mania.

    (...) na mania, o ego precisa ter superado a perda do objeto (ou o luto pela perda, ou talvez o prprio objeto) e desse modo todo o montante de contrainvestimento que o doloroso sofrimento da melancolia atrara do ego para si e ligara fica agora disponvel. Na medida em que, como um faminto, o manaco sai em busca de novos investimentos de objeto, ele nos demonstra de um modo inequvoco sua libertao do objeto que o fez sofrer. (FREUD, 2013)

    Kristeva tambm define a melancolia como uma fase de inibio e assimbolia

    que se instala no indivduo cronicamente ou alternadamente com a fase manaca de

    exaltao.

    Um dos primeiros a propor a alternncia entre mania e melancolia, segundo

    Foucault, foi o mdico ingls Thomas Willis, no sculo XVII. E a proposta no veio da

    observao de casos, mas da afinidade profunda que ele via entre esses dois estados:

    Da mania melancolia, evidente a afinidade: no a afinidade de sintomas que se encadeiam na experincia: a afinidade, bem mais forte e muito mais evidente nas paisagens da imaginao, que enlaa, num mesmo fogo, a fumaa e a chama. (FOUCAULT, 1978)

  • 34

    De que melancolia estamos falando?

    Kristeva afirma que os limites entre as definies de melancolia e de depresso

    so vagos. Ambas estariam relacionadas perda do objeto e modificao dos laos

    significantes. Apesar das semelhanas, segundo ela, a psiquiatria costuma denominar

    melancolia a doena irreversvel, que no responde aos remdios. J Urania Tourinho

    Peres afirma que a melancolia pode ser vista como um conceito romntico, enquanto a

    depresso, um estado de doena (PERES, 2003).

    O fato que, na medicina atual, o termo melancolia no tem espao. Se

    observarmos a Classificao Estatstica Internacional de Doenas e Problemas

    Relacionados Sade Dcima Reviso (CID-10), documento desenvolvido pela

    Organizao Mundial da Sade (OMS) que serve como parmetro mundial para

    diagnsticos, a melancolia no faz parte das doenas catalogadas. Ela tampouco

    aparece na verso mais recente do Manual Diagnstico e Estatstico de Transtornos

    Mentais (DSM-5), elaborado pela Associao Americana de Psiquiatria. Falar de

    melancolia hoje, portanto, no falar de uma doena especfica, de uma afeco

    passvel de ser diagnosticada com critrios objetivos.

    Apesar das muitas definies possveis para o termo, para Pigeaud, a viso

    ocidental da melancolia formada basicamente pela confluncia de trs tradies

    que se sedimentaram e misturaram de diversos modos (ARISTTELES; PIGEAUD,

    1998).

    A primeira a tradio de Hipcrates, que foi quem primeiro definiu o

    conceito. No 23 aforismo do livro VI dos Aforismos de Hipcrates, aparece a

    tentativa inicial de sistematizar o termo: Se tristeza (distimia) e medo duram muito,

    um tal estado melanclico. A segunda tradio consiste no texto Problema XXX, I,

    de Aristteles, sobre o qual este trabalho j versou.

    A terceira fonte so as Cartas do Pseudo-Hipcrates, em que aparece o

    personagem Demcrito, que apresenta sintomas de loucura e melancolia. A longa

    carta 17 para Damagetes continuamente citada, atravs dos sculos, como

    testemunha sobre o sentido da loucura, e particularmente da melancolia

    (ARISTTELES; PIGEAUD, 1998).

    Quando falo de melancolia neste trabalho, portanto, evoco toda a bagagem

    histrica do termo, desde seu surgimento no contexto da doutrina dos humores, no

  • 35

    sculo V a.C, at as definies mais modernas. No estou me referindo a um

    transtorno mental catalogado pela psiquiatria, mas a uma definio quase potica de

    um temperamento, de um estado de esprito especfico frequentemente associado aos

    artistas. Busco, desta forma, referir-me ao que o prprio Van Gogh tinha em mente

    quando usava o termo melancolia para definir suas emoes e seu trabalho ao longo

    de suas cartas.

    Em Esttica da melancolia, Lambotte (2000) afirma que a melancolia vem

    acompanhada de um discurso especfico, da capacidade do sujeito de dissertar sobre a

    legitimidade de sua prpria doena. A autora cita que Kirkegaard costumava discorrer

    em suas obras sobre seu prprio comportamento melanclico:

    (...) entretanto, como no se trata aqui de classificar nossos autores sob uma categoria psicolgica qualquer, nem de tirar partido de seus escritos em vista de uma interpretao que exceda sua significao literria ou imediata, recorreremos s descries que eles nos propem da melancolia e dos temperamentos que a ela se ligam, sem prejulgar sua intimidade com sua sintomatologia. (LAMBOTTE, 2000, p. 31)

    Tambm aqui, no se trata de identificar sintomas especficos na trajetria

    biogrfica de Van Gogh, nem de assumir a existncia de um diagnstico para o artista,

    mas apenas aceitar o que ele prprio tem a dizer sobre suas emoes.

    2.2 O artista se define como melanclico

    Com o objetivo de compreender melhor de que Van Gogh fala quando fala de

    melancolia, cabe retomar o histrico do uso desse termo em sua correspondncia.

    Uma das primeiras menes que Van Gogh faz melancolia aparece em uma

    carta enviada a Theo em 9 de setembro de 1875 (Carta 46). Na poca, aos 22 anos,

    trabalhava na filial da galeria Goupil & Cie em Paris e ainda no tinha planos de se

    tornar um artista. A passagem especialmente significativa, pois nela Van Gogh revela

    ao irmo uma frase dita pelo pai sobre o significado da melancolia na vida dos homens.

    Na carta anterior, Theo anunciara a morte de um conhecido de ambos e

    mencionara que o sujeito havia lido certo livro do escritor Jules Michelet, chamado

    L'Amour, sobre o qual conversara muito com Theo. Ele acrescentou que esse

  • 36

    conhecido amava muito a natureza e buscava nela uma melancolia quieta (Carta 45).

    Theo provavelmente menciona o livro porque Vincent, no ano anterior, havia indicado

    essa mesma leitura para ele e para a irm Willemien, dizendo que a obra tivera um

    carter de revelao.

    Existe uma melancolia quieta, certamente, graas a Deus, mas no sei se ns temos permisso para senti-la ainda, veja, eu digo ns: eu no mais do que voc. Papai escreveu para mim recentemente: A melancolia no machuca, mas nos faz ver as coisas com um olhar mais sagrado. Essa a verdadeira melancolia quieta, o ouro fino, mas ns ainda no chegamos to longe, ainda h um longo caminho. Vamos esperar e rezar para que cheguemos to longe e acredite em mim sempre. (Carta 46)

    Parece, portanto, que nessa poca Vincent via a melancolia quieta como um

    ideal de vida a ser alcanado a partir da evoluo espiritual. Na mesma carta, Vincent

    recomenda enfaticamente que o irmo no leia mais o livro de Michelet,

    anteriormente to recomendado por Vincent.

    Sweetman interpreta que essa mudana de ideia sobre o autor se deve a uma

    grande desiluso amorosa sofrida por Vincent na Inglaterra. Se o livro LAmour

    apresentava uma viso idealizada da mulher e de como deveria se desenvolver um

    relacionamento amoroso, sua experincia com o sexo oposto foi bem diferente.

    Apesar de no existirem cartas que registrem o fato, alguns bigrafos dizem que o

    artista fora rejeitado pela mulher por quem estava apaixonado. Esse acontecimento o

    levou primeira grande crise emocional de Vincent, que assumiu uma postura retrada

    e taciturna e passou a ser relapso e desinteressado no trabalho na galeria de arte

    Goupil & Cie.

    A abordagem de um estado de esprito melanclico feita de maneira

    particularmente insistente em uma carta escrita em junho de 1880, no momento em

    que ele se encontra na regio mineira do Borinage, na Blgica. Aos 27 anos, Van Gogh

    participa de uma misso protestante nessa rea extremamente pobre como meio de

    seguir seu propsito de se manter em uma vida religiosa, mesmo depois de ter falhado

    em entrar na faculdade de Teologia.

    Na ocasio, Van Gogh est prestes a tomar a deciso de se tornar um artista.

    Nesta carta para o irmo, ele tenta justificar seu comportamento, que vem sendo alvo

    de muitas crticas por parte da famlia, que o v como uma decepo. A vida

  • 37

    missionria que tinha escolhido j era uma alternativa menos digna carreira clerical

    de um pastor e mesmo essa funo no estava sendo bem executada por Van Gogh.

    Aos olhos de seus supervisores, ele se degradava ao dar tudo o que possua aos pobres

    mineiros e falhava na tarefa de evangelizao.

    possvel interpretar que a deciso de se tornar um artista resultou desse

    momento de reflexo profunda, angstia e melancolia.

    Logo no incio da carta, ele descreve seu sentimento ao sentar-se para escrev-

    la como um tanto melanclico e relutante. Ao falar de sua reao diante da falta que

    sentia dos livros e das pinturas de sua terra natal, estando ele no distante Borinage, ele

    introduz um conceito peculiar: o da "melancolia ativa".

    Em vez de sucumbir ao sentimento de saudade da ptria, eu disse a mim mesmo, o pas ou a ptria est em todos os lugares. Em vez de me entregar ao desespero, eu tirei vantagem da melancolia ativa enquanto eu tive fora para atividade, em outras palavras, eu preferi a melancolia que espera e que aspira e que busca, em vez daquela que desespera, montona e estagnada. (Carta 155)

    Van Gogh descreve seu maior tormento como a dvida sobre sua razo de

    viver, para que ele pode servir, em que poderia ser bom e til. Sem uma resposta para

    esses questionamentos, ele diz sentir melancolia, desnimo e um vazio onde deveriam

    estar as amizades e a as afeies.

    A figura da melancolia volta a aparecer na mesma carta, quando ele descreve a

    existncia de dois tipos de pessoas ociosas. O primeiro tipo o ocioso por preguia ou

    fraqueza de carter. O segundo, com o qual ele claramente se identifica, o ocioso

    que tem dentro de si "um grande desejo de ao, que no faz nada porque acha

    impossvel fazer qualquer coisa, estando ele aprisionado". Ele compara este ltimo

    tipo com um passarinho preso em uma gaiola, que acometido por um "ataque de

    melancolia" quando chega a poca da migrao, mesmo tendo tudo de que precisa

    dentro de sua gaiola.

    nesta carta que costuma ser citada pelas biografias como um ponto crucial

    na tomada de deciso rumo vida artstica que Van Gogh demonstra a certeza de

    que tm um propsito maior na vida.

  • 38

    Um sujeito como esse nem sempre sabe o que poderia fazer, mas sente instintivamente, eu sou bom em alguma coisa! Eu sinto que tenho uma razo de ser! Eu sei que poderia ser um homem totalmente diferente! Em que ento eu poderia ser til, a que eu poderia servir! H alguma coisa dentro de mim, o que isso ento! (Carta 155)

    Em carta de novembro de 1881, quando passava uma temporada na casa dos

    pais, em Etten, ele volta a falar sobre a melancolia que sente. Na poca, logo depois de

    um episdio no qual fora rejeitado pela prima Kee Vos ao declarar seu amor a ela, Van

    Gogh fala na importncia do trabalho duro para superar uma fase ruim.

    Talvez no seja uma coisa ruim eu ter vivido tanto tempo no 'subterrneo', por assim dizer. Que eu seja aquele 'que tem estado para baixo'. Mas agora eu no preciso retornar ao abismo e faria bem, eu penso, em arremessar toda a melancolia aos ventos e viver a vida um pouco mais livremente e alegremente com os ps no cho. E reviver relaes antigas tanto quanto possvel e comear novas. (Carta 189)

    Ele se define novamente como melanclico em carta de julho de 1882, quando

    tenta explicar ao irmo Theo a natureza de seu relacionamento com a prostituta Sien

    Hoornik, em oposio paixo que desenvolveu, no ano anterior, pela prima Kee Vos,

    por quem foi rejeitado. Aos 29 anos, ele j vive como um artista.

    No imagine que eu pense ser perfeito ou que eu acredite que no minha culpa que tantas pessoas me considerem um personagem desagradvel. Eu estou com frequncia terrivelmente e irreparavelmente melanclico, irritvel ansiando por simpatia como se com uma espcie de fome e sede eu me torno indiferente, afiado e s vezes at derramo leo sobre a chama se no recebo simpatia. Eu no gosto de companhia, e lidar com as pessoas, falar com elas, frequentemente doloroso e difcil para mim. (Carta 244)

    Van Gogh demonstra considerar que a melancolia uma condio natural de

    todos os homens. Essa viso expressada em carta escrita em maro de 1883 a Theo:

    Na minha opinio, todos ns temos momentos de melancolia, de estresse e de ansiedade, em uma extenso maior ou menor, e isso uma condio de toda vida humana autoconsciente. Alguns aparentemente no tm autoconscincia. Mas aqueles que tm momentos assim, apesar de s vezes em um estado de ansiedade, no so desafortunados por causa disso, e nada de incomum est acontecendo com eles. E s vezes h uma soluo, s vezes a nova energia interna vem e a pessoa se levanta a partir dela, at que talvez finalmente, um belo dia, a pessoa no mais se levanta assim seja mas

  • 39

    no h nada de incomum nisso e, eu repito, inerente vida humana, na minha opinio. (Carta 327)

    A referncia a uma melancolia boa volta a aparecer em carta de setembro de

    1883. Depois de deixar a companheira, Sien, em uma passagem pelo interior da

    Holanda, Van Gogh descreve ter visto figuras esplndidas no campo. E a melancolia

    que as coisas tm no geral de um tipo saudvel, como nos desenhos de Millet (Carta

    386).

    Em alguns momentos da correspondncia, ele se refere ao trabalho e

    melancolia como situaes antagnicas. Em carta de junho de 1882, por exemplo, ele

    se questiona que motivos teria para a melancolia e acrescenta, logo em seguida: Eu

    tenho meu trabalho, afinal de contas, e meu desfrute dele. Desde quando h alguma

    necessidade de vacilar ou hesitar ou ter o corao fraco? (Carta 234).

    J em setembro de 1883, ele afirma que seu trabalho lhe proporciona uma fuga

    da melancolia e que, quando o trabalho no se desenvolve, ele acometido por esse

    sentimento. E eu fico to intoleravelmente melanclico quando o trabalho no me

    proporciona uma distrao, como voc vai entender, eu devo trabalhar e trabalhar de

    forma constante esquecer-me no trabalho, caso contrrio eu ficaria oprimido (Carta

    391).

    Em certo ponto, em outubro de 1883, ao evocar sua melancolia, Van Gogh d

    um conselho ao irmo Theo que mais parece ser um conselho para si mesmo.

    (...) fazer-se escasso ou desaparecer nem voc nem eu podemos jamais fazer isso, no mais do que um suicdio. Eu mesmo tenho meus momentos de grande melancolia, mas o pensamento: desaparea, faa-se escasso, deve, eu repito, ser visto por mim e por voc como no benfico a ns. (Carta 401)

    Dessa forma, possvel observar que, se em determinados momentos a

    melancolia vista como uma qualidade, que leva a percepes mais profundas sobre o

    mundo e que o inspira na busca de sua verdadeira funo na vida, em outras ela vista

    como algo que precisa ser atirado para fora, algo que o torna menos digno diante de

    outras pessoas.

    Se em alguns momentos, a melancolia aparece como um impulso para seu

    trabalho como artista, em outros ela aparece em oposio ao trabalho, como o

  • 40

    sentimento que o acomete quando seu trabalho no est sendo executado de maneira

    satisfatria.

    2.3 Jornada at o sul da Frana

    O caminho de Zundert vilarejo holands onde Van Gogh nasceu at Arles

    onde o artista pintou algumas de suas principais telas foi longo e tortuoso. Van Gogh

    passou por sucessivos deslocamentos ao longo de seus 37 anos. Depois que saiu da

    casa dos pais, aos 16 anos, para trabalhar na galeria de arte de seu tio, em Haia, no

    permaneceu mais do que quatro anos seguidos vivendo na mesma cidade.

    As mudanas de casa refletiam os conflitos internos do artista. Apesar de

    sempre ter sentido que tinha um dom missionrio, demorou at escolher a pintura

    como sua verdadeira misso. Durante muito tempo, acreditou ter vocao para a

    religio e sofreu muitas frustraes por no conseguir por em prtica a atividade de

    pastor.

    Van Gogh nasceu em 1853, exatamente um ano depois de seu irmo, de

    mesmo nome, ter nascido morto em 30 de maro de 1852. A me, Anna, e o pai,

    Theodorus, ainda estavam de luto na ocasio de seu nascimento.

    Theodorus era o pastor da Igreja Reformada Holandesa no vilarejo de Zundert,

    na provncia de Brabant, na Holanda, perto da fronteira com a Blgica. Em Brabant, a

    maior parte da populao era catlica, o que fazia com que o pastor protestante

    tivesse pouco prestgio. Anna era uma artista amadora dedicada aos cuidados da

    famlia.

    A tradicional famlia Van Gogh era formada por clrigos, marchands e oficiais.

    Um dos membros mais abastados da famlia era o tio de Vincent, tambm chamado

    Vincent Willem van Gogh, o tio Cent. Foi tio Cent quem introduziu os irmos Vincent e

    Theo no mundo do comrcio de arte. Ele era scio da rede de galerias de arte Goupil,

    que tinha filiais em vrias cidades da Europa.

    Aos 16 anos, Van Gogh foi para Haia trabalhar em uma das unidades da Goupil.

    L, viveu durante quatro anos e passou a absorver tudo o que se relacionasse arte.

    Ele gostava, especialmente, das pinturas da escola de Barbizon, cujo princpio era

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    pintar diretamente da natureza, ao ar livre. Essa corrente rejeitava os temas clssicos e

    religiosos valorizados pelas academias. L passou a admirar Millet e tambm conheceu

    o pintor Anton Mauve, mestre na arte de captar a natureza de modo imediato.

    Nessa poca, Van Gogh continuava a ter aulas sobre a Bblia e sentia compaixo

    pelos pobres e desvalidos, da a admirao pela pintura de Millet, que retratava to

    bem a vida dos camponeses.

    A correspondncia com Theo comeou em 1872, depois de uma visita do irmo

    a Haia, ocasio em que tiveram a oportunidade de ficar mais prximos. Em 1873 foi

    enviado para a sucursal de Londres da Goupil, como uma promoo de seu cargo. L,

    passou a morar em um quarto a alugado e, segundo alguns bigrafos, apaixonou-se

    pela filha de sua senhoria, sofrendo a primeira decepo amorosa ao descobrir que a

    moa ficara noiva de outro homem. Passou da euforia para a tristeza e sua reao

    exagerada assustou toda a famlia.

    Em 1874, foi enviado para a sucursal da Goupil em Paris, em uma tentativa da

    direo da galeria de faz-lo motivar-se novamente pelo trabalho. L ficou at 1876,

    quando finalmente foi despedido. Seu estado de esprito no permitia que se

    dedicasse ao trabalho e ele passara a ser negligente com suas funes. Apesar de ser a

    poca em que ocorriam as primeiras exposies dos impressionistas em Paris, van

    Gogh no entrou em contato com esses trabalhos na ocasio. Estava alheio a toda a

    efervescncia cultural parisiense.

    Em seguida, mudou-se para Ramsgate, na Inglaterra, onde passou a dar aulas

    como professor voluntrio e, depois, mudou-se para Isleworth com a funo de

    assistente de um pastor. Preocupados com o futuro de Vincent, seus pais o chamaram

    de volta para casa e, em 1877, conseguiram para ele um emprego em uma livraria na

    cidade de Dordrecht, perto de Roterd, na Holanda. No mesmo ano, ele decidiu que

    queria ingressar na faculdade de Teologia. Seu sonho era seguir a profisso do pai e

    tornar-se um pastor. A famlia se mobilizou e o jovem foi a Amsterd viver com um tio

    e estudar para os testes.

    Depois de ser reprovado e passar um perodo como missionrio religioso na

    regio mineradora do Borinage, uma das mais pobres da Europa, finalmente decidiu

    dedicar-se pintura. De 1880 a 1885, passou por Bruxelas, onde estudou pintura, por

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    Etten, onde ento viviam os pais, novamente por Haia, para trabalhar no estdio do

    pintor Anton Mauve, e por Nuenen, de volta casa dos pais.

    Em 1885, mudou-se repentinamente para Paris para viver com o irmo Theo,

    onde finalmente entrou em contato com toda a cena artstica impressionista. L,

    conheceu Camille Pissarro, Henri de Toulouse-Lautrec, mile Bernard, Paul Gauguin,

    Paul Signac, entre outros. Foi l tambm que seu entusiasmo pelo Japo e pelas

    estampas japonesas atingiu o pice. Mas a agitao urbana e o consumo excessivo da

    bebida da moda, o absinto, fizeram mal ao pintor.

    Em 1888, decidiu que era hora de partir novamente. Mas, dessa vez, sua

    motivao foi quase puramente esttica. Alm do fato de que desejava fugir do

    ambiente conturbado de Paris, a ida para o sul se apresentava como uma

    oportunidade de conhecer as cores mais quentes da paisagem da regio, como

    descreve Sweetman:

    A primeira ideia de Vincent era ir para Marselha, a cidade natal de Monticelli, onde supunha que se originara algo do admirado colorido do artista. Ento John Peter Russel lhe falou sobre Arles e seus arredores, onde um amigo seu, o americano Dodge MacKnight, estava pintando. Pareceu-lhe que poderia ser um bom lugar para passar algum tempo antes de seguir para Marselha; afinal, Monticelli tinha pintado suas marinhas na vila prxima de Les Saintes-Maries-de-la-Mer. (SWEETMAN, 1993, p. 204)

    A motivao da escolha pela cidade de Arles motivo de controvrsia entre os

    bigrafos de Vincent. Para Naifeh e Smith (2012), Van Gogh escolheu Arles como exlio

    voluntrio de Paris no pelo calor, nem pela luz, nem pelas mulheres. A escolha

    priorizou, segundo os autores, o fato de que nessa cidade, o artista poderia se entregar

    ao trabalho sem outras distraes:

    Se tivesse ido para o lendrio Sul da Frana - o Midi - em busca de um clima mais quente, certamente teria ficado no trem e seguiria mais ao sul. (Pensou em ir at Tnger.) Em vez disso, desembarcou numa neve que lhe cobria os sapatos e se arrastou pelo inverno mais frio dos ltimos dez anos em Arles, procurando um quarto para alugar. Se tivesse ido procurar a 'luz brilhante do Midi' prometida por Lautrec e Signac, no teria escolhido como tema de sua primeira pintura um aougue numa travessa de Arles - uma cena urbana sem cu e sem sol que poderia encontrar em qualquer canto de Montmartre. Se tivesse ido apenas por causa das mulheres -, teria continuado at Marselha, apenas oitenta quilmetros adiante: o tipo de cidade porturia agitada, como

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    Anturpia, onde sempre havia todas as espcies possveis de mulheres. (NAIFEH e SMITH, 2012, p. 660)

    De qualquer forma, a expectativa em relao viagem era realmente alta,

    como ocorrera anteriormente em suas tantas mudanas de cidade. Sweetman assim

    descreve o entusiasmo que deve ter tomado conta de Van Gogh nesse momento:

    Como o Midi deve ser maravilhoso, com o sol da Provena,