Valorização do rural versus valorização do camponês ... · atenção para a necessidade da...

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Valorização do rural versus valorização do camponês: desenvolvimento, trabalho e cidadania 16/10/2008 Isabela Gonçalves de Menezes * Resumo Este artigo é uma análise crítica e teórica sobre o desenvolvimento rural, tema amplamente considerado nos meios acadêmico e científico, bem como sobre o engendramento de políticas públicas que incentivam o retorno e fixação do homem no campo, em contraposição à necessidade de valorização desse homem rural como cidadão e ator que desenvolve importante papel na sociedade brasileira. Destaca o fato de que, apresentar um discurso de valorização do rural, parece ser devido a certo desconforto com a migração do homem rural para as grandes cidades e, o motivo alegado para mantê-lo no campo, não se enquadra em um conceito de cidadania já que, no Brasil, o pensamento de que viver e desenvolver atividades produtivas no campo ainda está relacionado ao atraso. Assim, os projetos políticos de desenvolvimento local, como forma de luta contra o aumento de desemprego e do trabalho informal e contra a pauperização resultante do êxodo rural, questionam os sentidos do trabalho e da cidadania em um contexto pós-moderno de reestruturação produtiva. Dessa forma, pretende chamar atenção para a necessidade da valorização do homem rural como cidadão e mostrar a importância de seu trabalho para a sociedade, fundamentando-se no fato de que este homem é um ser de trabalho que, independente da ocupação social, da escolaridade e do lugar de habitação, reflete sobre sua prática social, toma decisões, cria, transforma e age de forma coletiva e organizada em busca de seus objetivos. Palavras-chave: Agricultura familiar. Cidadania. Desenvolvimento rural. Homem rural. Trabalho rural. Introdução Este artigo, resumo de trabalho apresentado no XI CISO - Encontro de Ciências Sociais do Norte Nordeste, Grupo de Trabalho Semi-Árido Brasileiro: Desenvolvimento e Sustentabilidade, sob o título “Valorização do rural versus valorização do camponês: como o pequeno agricultor do semi-árido sergipano percebe seu trabalho”, foi concebido com a finalidade de produzir uma análise crítica sobre desenvolvimento, trabalho e cidadania no espaço rural, à luz de conceitos e teorias sociológicos. Através do levantamento teórico, o fenômeno da desruralização, um dos marcos do século passado no Brasil, caracterizado pelo fluxo de migração de pequenos produtores rurais para as cidades devido à industrialização e o conseqüente desenvolvimento das metrópoles, cidades médias e urbanização das áreas litorâneas, é apresentado. Destaca que a modernização do Brasil, sobretudo a partir dos anos 1950s do século passado, trouxe desenvolvimento industrial e urbanização de cidades, fato que atraiu pequenos produtores rurais, os quais deixavam o campo na esperança de melhoria de vida. No caso do Nordeste, vários indicadores, ao mostrarem as condições de pobreza da maioria da população, denunciavam que as migrações rurais-urbanas e inter- regionais, para muitos trabalhadores, eram a única alternativa, visto que a região não oferecia condições de sustentabilidade social (MAGALHÃES, 2001). Durante algum tempo, a indústria e a construção civil, principalmente, absorveram mão-de-obra de baixo nível educacional reforçando a idéia de que os que iam para as grandes cidades conseguiriam emprego, com carteira assinada, sinônimo de progresso e qualidade de vida. Dessa forma, grandes contingentes populacionais migraram para as metrópoles, deixando nos municípios menores bolsões de pobreza, espaços econômicos

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Valorização do rural versus valorização do camponês: desenvolvimento, trabalho e cidadania 16/10/2008 Isabela Gonçalves de Menezes * Resumo Este artigo é uma análise crítica e teórica sobre o desenvolvimento rural, tema amplamente considerado nos meios acadêmico e científico, bem como sobre o engendramento de políticas públicas que incentivam o retorno e fixação do homem no campo, em contraposição à necessidade de valorização desse homem rural como cidadão e ator que desenvolve importante papel na sociedade brasileira. Destaca o fato de que, apresentar um discurso de valorização do rural, parece ser devido a certo desconforto com a migração do homem rural para as grandes cidades e, o motivo alegado para mantê-lo no campo, não se enquadra em um conceito de cidadania já que, no Brasil, o pensamento de que viver e desenvolver atividades produtivas no campo ainda está relacionado ao atraso. Assim, os projetos políticos de desenvolvimento local, como forma de luta contra o aumento de desemprego e do trabalho informal e contra a pauperização resultante do êxodo rural, questionam os sentidos do trabalho e da cidadania em um contexto pós-moderno de reestruturação produtiva. Dessa forma, pretende chamar atenção para a necessidade da valorização do homem rural como cidadão e mostrar a importância de seu trabalho para a sociedade, fundamentando-se no fato de que este homem é um ser de trabalho que, independente da ocupação social, da escolaridade e do lugar de habitação, reflete sobre sua prática social, toma decisões, cria, transforma e age de forma coletiva e organizada em busca de seus objetivos. Palavras-chave: Agricultura familiar. Cidadania. Desenvolvimento rural. Homem rural. Trabalho rural. Introdução

Este artigo, resumo de trabalho apresentado no XI CISO - Encontro de Ciências Sociais do Norte Nordeste, Grupo de Trabalho Semi-Árido Brasileiro: Desenvolvimento e Sustentabilidade, sob o título “Valorização do rural versus valorização do camponês: como o pequeno agricultor do semi-árido sergipano percebe seu trabalho”, foi concebido com a finalidade de produzir uma análise crítica sobre desenvolvimento, trabalho e cidadania no espaço rural, à luz de conceitos e teorias sociológicos.

Através do levantamento teórico, o fenômeno da desruralização, um dos marcos do século passado no Brasil, caracterizado pelo fluxo de migração de pequenos produtores rurais para as cidades devido à industrialização e o conseqüente desenvolvimento das metrópoles, cidades médias e urbanização das áreas litorâneas, é apresentado.

Destaca que a modernização do Brasil, sobretudo a partir dos anos 1950s do século passado, trouxe desenvolvimento industrial e urbanização de cidades, fato que atraiu pequenos produtores rurais, os quais deixavam o campo na esperança de melhoria de vida.

No caso do Nordeste, vários indicadores, ao mostrarem as condições de pobreza da maioria da população, denunciavam que as migrações rurais-urbanas e inter-regionais, para muitos trabalhadores, eram a única alternativa, visto que a região não oferecia condições de sustentabilidade social (MAGALHÃES, 2001).

Durante algum tempo, a indústria e a construção civil, principalmente, absorveram mão-de-obra de baixo nível educacional reforçando a idéia de que os que iam para as grandes cidades conseguiriam emprego, com carteira assinada, sinônimo de progresso e qualidade de vida. Dessa forma, grandes contingentes populacionais migraram para as metrópoles, deixando nos municípios menores bolsões de pobreza, espaços econômicos

rarefeitos, mercados anêmicos e não-integrados à região do País e ao resto do mundo e, por outro lado, provocando inchaço nas grandes cidades (LIMA, 1995).

Com o advento do processo de reestruturação produtiva, o mercado de trabalho começa a sofrer restrições internas e externas ao seu desenvolvimento (POCHMANN, 1999). Realmente, flexibilização e precarização do mercado de trabalho, bem como novas modalidades de gestão do trabalho, aliados à permanência da situação de baixas taxas de crescimento nas atividades econômicas do País no pós-1980 e à introdução de novos fundamentos competitivos, foram fatores extremamente desfavoráveis aos trabalhadores, resultando em desemprego e crescimento do mercado informal (POCHMANN, 1999). Essa heterogeneidade do mercado de trabalho tem preocupado os governantes e a sociedade civil como um todo, colocando o dilema da necessidade de criar muitos empregos – em um contexto tão difícil – como prioridade nacional.

De fato, em uma conjuntura pós-industrial, o desafio passa a ser a busca de soluções para a melhoria das condições da agricultura, agora envolvendo garantia de emprego e renda para trabalhadores urbanos e rurais.

Desse modo, temas como agricultura familiar, desenvolvimento rural sustentável e manutenção do homem rural em seu espaço de origem começam a ser amplamente considerados nos meios acadêmico e científico, bem como têm ocupado espaços privilegiados na agenda e nos discursos políticos por sua relevância como alternativa em um tempo de escassez de empregos.

Menciona que resultados de pesquisas apresentam um panorama das tendências demográficas brasileiras e internacionais contemporâneas que já apontam para migração de retorno em direção a pequenos municípios, com o crescimento da população rural em diversas regiões do País (ABRAMOVAY, 2000).

No entanto, certo desconforto com a presença dos mais pobres nas cidades é percebido e o motivo alegado para mantê-los no campo não parece se enquadrar em um conceito de cidadania, já que no Brasil o pensamento de que viver e desenvolver atividades produtivas no campo ainda está relacionado ao atraso.

Para boa parte da população brasileira, ainda persiste a opinião de que viver e desenvolver atividades produtivas no campo está relacionado ao atraso e que morar e trabalhar em grandes cidades seja no comércio, na indústria ou com prestação de serviços, está relacionado ao progresso, modernidade e evolução, ou seja, o trabalho do agricultor não é valorizado.

Dessa forma, pretende chamar atenção para a necessidade da valorização do homem rural como cidadão e mostrar a importância de seu trabalho para a sociedade, fundamentando-se no fato de que este homem é um ser de trabalho que, independente da ocupação social, da escolaridade e do lugar de habitação, reflete sobre sua prática social, toma decisões, cria, transforma e age de forma coletiva e organizada em busca de seus objetivos. Desruralização

O êxodo de pequenos produtores e trabalhadores rurais para a zona urbana foi um dos marcos do século XX no Brasil.

Este fenômeno – também conhecido como desruralização – pôde ser observado em outros países, como Rifkin (1997) salienta, ao afirmar que os Estados Unidos, há cem anos, eram um país agrícola, já que a maior parte dos trabalhadores estava nas plantações e que hoje, menos de 2% trabalham na agricultura.

Um dos motivos apresentados para a saída do homem do campo está na migração da força de trabalho para a indústria. Telles (2001), ao falar sobre o desejo da sociedade brasileira que se queria moderna, civilizada e cosmopolita, destaca que as luzes do progresso eram identificadas com o trabalho industrial e a urbanização.

De fato, a modernização do Brasil, sobretudo a partir dos anos 1950s do século passado, trouxe, além do desenvolvimento industrial, a urbanização de áreas litorâneas, cidades médias e das capitais regionais e metrópoles nacionais, para onde o êxodo rural do período se dirigiu (CALMON, 1998).

No caso do Nordeste brasileiro, o fato que determinou freqüentes migrações rurais e, em decorrência, levaram a redução das populações residentes no campo a um contingente mínimo, com taxas negativas de crescimento, supostamente, seria resultante da ocorrência de constantes secas associadas à atração das cidades, pela concentração dos investimentos industriais e urbanos (ARAÚJO, 2002). Segundo esta autora, pesquisadores, ao estudarem a problemática da migração no Nordeste, objetivaram retirar o mito da seca como a grande causa do êxodo rural. Recolocando-a em sua verdadeira dimensão, entretanto, o discurso e as práticas políticas e técnicas reforçam esta concepção.

Araújo (2002) também destaca que pesquisadores do Centro de Estudos Migratórios (CEM) ao negarem a questão da seca e enfatizarem à da terra, responsabilizam o Estado em sua atuação referente a esse fenômeno:

No Nordeste, tradicional área de expulsão, o que ocasiona o êxodo não é tanto a seca, mas sobretudo a cerca [grifos no original] [...] os projetos governamentais de combate à seca acabam desalojando número maior de famílias que as que conseguem se fixar na terra (CEM, 1986, p. 31 apud ARAÚJO, 2002).

Conforme esses autores, se o êxodo é decorrente da expropriação dos pequenos

produtores da terra, isto se deve ao “processo de transformação dos produtores diretos em trabalhadores livres, verificado no aumento dos trabalhadores assalariados” (CEM, 1986, p. 47 apud ARAÚJO, 2002).

Pode-se afirmar que a saída do homem do campo foi incentivada, também, pela valorização das terras e pelo Estatuto do Trabalhador Rural, promulgado em 1963, supostamente para dirimir questões da distribuição da terra no campo, mas que, a exemplo da Lei da Terra, teve efeito contrário, aumentou o desemprego e reduziu a mão-de-obra ocupada no rural, ou seja, aumentou a população volante e deu margem a novos fluxos migratórios para cidades. Dessa forma, as atividades no campo tornaram-se insustentáveis para os pequenos e médios fazendeiros (CALMON, 1998).

Até a década de 1960, a maioria da população brasileira ainda vivia na zona rural, fato que se inverteu no final do século passado: de acordo com o Censo 2000, “o êxodo rural fez do Brasil um dos países mais urbanizados do mundo. Dos 169,5 milhões de habitantes, 81,2% vivem nas cidades. Nos Estados Unidos a taxa é de 80%. Na América Latina, de 55%” (WEIS et. al., 2001).

À medida que os pequenos produtores migravam para as grandes cidades em busca de oportunidade de emprego nas indústrias, a produção de alimentos não poderia decrescer para abastecer os centros urbanos. Tal circunstância exigia que a produtividade agrícola aumentasse e isso só se tornou possível através de grandes investimentos e modernização do setor.

Na verdade, desde o final da Segunda Guerra Mundial, já se observava o início de um processo de declínio da agricultura tradicional praticada até então. Na década de 1960 começa a ser implantada uma agricultura moderna, que se caracteriza pelo uso de insumos externos, utilização de máquinas pesadas, adubação química e biocidas.

As tecnologias do paradigma da Revolução Verde aumentaram a produtividade, mas não eliminaram a pobreza rural e a fome. Pelo contrário, intensificaram o processo de fragmentação e de decomposição social e econômica da agricultura familiar que, por sua vez, acarretaram o aumento do desemprego rural e o êxodo rural. Dessa forma, esse fenômeno se acentua cada vez mais a partir da década de 1970 com a chegada da tecnologia às fazendas. A mecanização do campo expulsou famílias inteiras, que se dirigiram às cidades para tentar a sobrevivência, pois a modernização agrícola foi de caráter excludente e seletivo.

Couto Rosa (1999) considera que, no Brasil, durante muitas décadas, predominou um conceito de desenvolvimento rural que partia da suposição de que a tecnologia aliada ao capital é que promove o desenvolvimento. A partir dessa premissa, o

desenvolvimento rural passou a ser medido através do nível crescente da produtividade dos produtos agrícolas, do aumento do mercado exportador e da balança comercial. O modelo produtivista impunha uma fórmula e, para atendê-la, se convocava ciência, tecnologia e capital.

O pensamento dominante em relação ao êxodo rural era que quase nada se poderia fazer: afinal, o esvaziamento dos campos era uma questão de tempo, como prova a experiência dos países desenvolvidos. Mas, o fluxo migratório compromete o futuro. Famílias chegam à cidade grande e não encontram melhoria de vida. Assim, este fenômeno passa a ser visto como fonte dos problemas de concentração e de aglomeração das cidades provocados pela urbanização (ARAÚJO, 2002).

Realmente, o êxodo rural provocou o inchaço das grandes cidades e o surgimento de favelas. Sem condições de sobreviver no campo, as populações que foram viver nas cidades encontraram dificuldades, como falta de empregos, de moradia e de condições mínimas de saúde. Globalização e reestruturação produtiva

De outro lado, o mercado de trabalho vem passando em todo o mundo por grandes mudanças. Na atual fase de globalização da economia e reestruturação produtiva, transformações tecnológicas alteram profundamente o processo de trabalho, resultando no desemprego em massa e crescimento do mercado informal junto às formas desregulamentadas de vinculação capital-trabalho com suas conseqüências no Brasil e no Nordeste (ZALUAR, 1997).

O mundo saiu da era industrial e entrou na era da informação. Computadores sofisticados, tecnologias de telecomunicações, robôs e outras máquinas inteligentes vêm tomando o lugar de várias categorias de trabalho (CASTELLS, 1999).

Segundo Rifkin (1997), uma revolução tecnológica entra nas indústrias manufatureiras e de serviços trazendo sérias implicações para a sociedade civil. O autor cita o exemplo dos Estados Unidos onde menos de 17% dos trabalhadores americanos estão nas indústrias e, no entanto, o país continua sendo a primeira potência manufatureira do mundo pois, faz isso, com menos pessoas e mais máquinas. Incentivo à agricultura familiar

Diante deste quadro, tem-se questionado sobre quais políticas públicas devem ser implementadas para que o problema do desemprego seja minimizado, ou seja, buscam-se formas de se manter a população ocupada.

Tanto para o governo como para a sociedade, o desafio passa a ser a busca de soluções para a melhoria das condições da agricultura, agora envolvendo garantia de emprego e renda para os trabalhadores urbanos e rurais.

Do ponto de vista das soluções internas, os desafios são aumentar a produção de alimentos e, ao mesmo tempo, gerar novas oportunidades de trabalho e renda para os agricultores; defender os interesses nacionais e dos agricultores diante dos mercados globalizados. Os agricultores familiares, principalmente os excluídos do mercado da grande agricultura, defrontam-se com mais dificuldades, agravadas pela carência de alternativas como a oportunidade de trabalho nas cidades e no meio rural (COUTO ROSA, 1999).

Até a entrada dos anos 1990s, não se tinha muito claro o quê e como fazer pelos mais pobres e menos competitivos da agricultura. Governo e instituições se viam diante da ampliação dos problemas sociais no campo, mas com poucas perspectivas de identificar políticas nacionais eficazes (COUTO ROSA, 1999).

Hoje se fala muito em apoio ao pequeno agricultor e a agricultura familiar é defendida com base em razões econômicas, sociais, culturais e ecológicas. O agricultor, em tempo integral, e a capacidade produtiva da população residente no campo se expressam em “novas formas de atividade agrícola como uma alternativa ao êxodo rural, ao desemprego urbano e ao padrão de desenvolvimento agrícola dominante” (CARNEIRO, 1998 apud COUTO ROSA, 1999, p. 4).

Há uma busca por parte de organizações do Terceiro Setor em também contribuir para desencadear um processo que resulte na permanência do agricultor familiar e dos jovens no campo, pois se acredita que, mesmo com poucos recursos financeiros, a agricultura familiar é capaz de promover oportunidades de emprego da mão-de-obra disponível para produzir alimentos, bem como pode integrar ao desenvolvimento econômico e social grande parte dos brasileiros excluídos do processo de modernização em curso.

São vários autores e instituições que defendem a agricultura familiar e a fixação do homem no campo. Realmente, verifica-se uma mudança de paradigma.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, apresenta-se como um defensor da agricultura familiar. Lula considera a agricultura um dos pilares da economia brasileira. Por isso, prevê medidas de incentivo à agricultura familiar por meio da criação de cooperativas de crédito e de produção, justificando que, além de criar empregos e gerar renda, essas medidas reduziriam o êxodo rural (PEREIRA, 2002).

Ademais, há uma tendência de se voltar atrás em relação à Revolução Verde. A esse respeito, Del Grossi e Graziano da Silva (1998) dizem que, se antes o desenvolvimento produtivista da agricultura bastava, hoje a visão sistêmica exige que a produção também respeite a biodiversidade, a ecologia, o usuário das tecnologias desenvolvidas e o consumidor, pois a crença de que a revolução verde resolveria todos os problemas se desvaneceu.

Para Dollé (1997), é um novo paradigma que se institui, apontando para a necessidade de uma nova revolução verde, superverde ou duplamente verde, que depende de condições de acesso à terra de populações marginalizadas, crédito, meios de comunicação, transporte e condições elementares ao exercício da cidadania como acesso à educação, saúde e habitação. Novo padrão de desenvolvimento

De acordo com Abramovay (2000), os anos 1990s registram um fenômeno inédito na história do País: o ritmo do êxodo rural desacelera-se de maneira nítida e, ao final da década, já se registram tanto a migração de retorno em direção a pequenos municípios, como o crescimento da população rural em diversas regiões do País.

Por conta disso, os anos 1990s vêem o Estado Brasileiro inserir novos componentes em sua agenda do desenvolvimento. Em virtude do longo período de crises que caracterizou a década de 1980, tornou-se imperativo o processo de avaliação e transformação das políticas públicas relacionadas ao meio rural, buscando principalmente recuperar os principais instrumentos de desenvolvimento rural (ABRAMOVAY, 2000).

O desenvolvimento local sustentável, compreendido como um espaço dinâmico de ações locais, bem sucedidas, determinadas por metodologias de descentralização e pela participação comunitária, é que constrói as bases para o desenvolvimento rural efetivo, constituindo-se como uma estratégia de redefinição do desenvolvimento local (COUTO ROSA, 1999).

O Conselho da Comunidade Solidária define desenvolvimento local sustentável como

um novo modo de promover o desenvolvimento que possibilita o surgimento de comunidades mais sustentáveis, capazes de suprir suas necessidades imediatas, descobrir ou despertar suas vocações locais e desenvolver suas potencialidades específicas; e fomentar o intercâmbio externo aproveitando-se de suas vantagens locais [...]. O conceito de local não é sinônimo de pequeno e não alude necessariamente à diminuição ou redução [...]. O local não é um espaço micro, podendo ser tomado como um Município ou, inclusive, como uma

região compreendendo vários municípios (1998, p. 4 apud COUTO ROSA, 1999, p. 7).

De acordo com Couto Rosa (1999), é no local ou localidade onde ocorrem os

empreendimentos rurais agrícolas e não-agrícolas, tornando-se o espaço onde o processo de desenvolvimento rural. Matriz cultural

No entanto, para boa parte da população brasileira, ainda persiste a opinião de que viver e desenvolver atividades produtivas no campo está relacionado ao atraso e que morar e trabalhar em grandes cidades seja no comércio, na indústria ou com prestação de serviços, está relacionado ao progresso, modernidade e evolução.

A idéia que domina o imaginário das pessoas é de que nas grandes e médias cidades pode-se trabalhar e, ao mesmo tempo, desfrutar de conforto e lazer, bem como ter acesso à educação e toda uma infra-estrutura que permite uma melhor qualidade de vida.

O campo e, principalmente, o homem rural, não são valorizados pela sociedade brasileira. No Brasil, o pequeno agricultor é visto como jeca, matuto, tabaréu, caipira num tom pejorativo que o diminui a um status inferior, de cidadão de segunda classe: alguém que está no campo porque não conseguiu vencer na vida, não se modernizou, não acompanhou o progresso e não estudou.

A mídia reforça e explora esta visão: quando o agricultor aparece, sempre está no labor, com roupas simples, falando errado, em sua casinha modesta, cozinhando em fogão à lenha, em panelas de barro e, no caso do sertão nordestino, caminhando vários quilômetros para buscar um pouco de água que traz dentro de um pote, na cabeça.

De fato, o pequeno agricultor no Brasil, principalmente no Nordeste, em sua grande maioria não tem acesso aos bens de consumo da classe média, tais como, carro, TV a cabo, computador, microondas, máquina de lavar, internet, dentre outro produtos e facilidades que a tecnologia e a modernidade oferecem.

A estratégia de desenvolvimento endógeno, antes mencionada, é muito importante e necessária. O risco é associar o retorno e fixação dos mais simples no espaço rural porque são desqualificados e, indo para a cidade, irão para as periferias e favelas.

Em um de seus discursos, Luís Inácio Lula da Silva, então candidato à Presidência da República, falou:

Se a gente imaginar o benefício social para o nosso País com a manutenção do homem na sua terra natal e com a possibilidade dele trabalhar no campo, nós vamos chegar à conclusão que fica muito mais econômico para o País manter a agricultura familiar funcionando corretamente do que cuidar de um sem teto morando debaixo da ponte em Recife, em São Paulo, no Rio de Janeiro (PEREIRA, 2002, grifo nosso).

O discurso do hoje Presidente eleito do Brasil, apenas reforça o que a sociedade

como um todo pensa. A questão é que sub-cidadãos incomodam na cidade. É desagradável ver pessoas debaixo de pontes e, o mais grave, a falta de oportunidade de trabalho é considerada como uma das causas da violência urbana. Então, é de suma importância manter essas pessoas à distância.

Alguns aspectos interessantes podem ser percebidos no discurso da sociedade brasileira, do qual Lula foi o porta-voz: o primeiro é se ater apenas à economia de recursos, passando a idéia de que os pobres são tratados como coisas que podem ser alocadas de acordo com o que fica mais em conta para o País. Outro aspecto refere-se ao assistencialismo, já que é comum pensar que “os ignorantes só podem esperar a

proteção benevolente dos superiores ou então a caridade da filantropia privada” (TELLES, 2001, p. 42-43).

Uma das críticas dessa autora é de que

esses são os não-iguais, os que não estão credenciados à existência cívica justamente porque privados de qualificação para o trabalho. São os pobres, figuras clássicas da destituição. Para eles, foi reservado o espaço da assistência social, cujo objetivo não é elevar condições de vida mas minorar a desgraça e ajudar a sobreviver na miséria [...]. Esse é o lugar dos não-direitos e da não-cidadania. É o lugar no qual a pobreza vira ‘carência’, a justiça se transforma em caridade e os direitos, em ajuda que o indivíduo tem aceso não por sua condição de cidadania, mas pela prova de que dela está excluído (TELLES, 2001, p. 26).

É lamentável que se pense que os que trabalham e moram no campo são menos

cidadãos. A distinção feita por Hannah Arendt entre work e labor abordada por Silva (1998) e Bodstein (1997) parece se aplicar a este caso.

Em relação às pessoas do campo, seu trabalho estaria ligado ao que é definido para labor, ou seja, nessa perspectiva, o trabalho num escritório, por exemplo, poderia ser considerado superior a “tudo aquilo relacionado ao trabalho físico, desgastante e brutal próprio do homo laborans e não do cidadão” (BODSTEIN, 1997).

No entanto, de acordo com Zaluar (1997, p. 4), “a própria concepção de trabalho tem que ser modificada, recuperando as propostas de Keynes no início do século: não a idéia do trabalho produtivo economicamente (...), mas a idéia do trabalho socialmente útil”.

Retomando o início da fala do presidente Lula “Se a gente imaginar o benefício social para o nosso País com a manutenção do homem na sua terra natal...” (PEREIRA, 2002, grifos nossos), observa-se um terceiro aspecto, também muito importante:

Pode-se pensar em manter pessoas no campo como uma casta inferior porque se presume que estas não são qualificadas para habitar a cidade? É entender, desse modo, que estes homens “não têm vontade e são desprovidos da razão” (TELLES, 2001, p. 42).

Dentre as variadas perspectivas que abordaram o conceito de cidadania, enquanto direito a ter direitos, Thomas H. Marshall propôs uma teoria sociológica sobre os direitos de cidadania, apresentando os direitos civis, políticos e sociais (VIEIRA, 2001). Dessa forma, um direito básico de qualquer cidadão é o direito civil; o direito à mobilidade: ir e vir se assim o desejar.

Manter pessoas em algum lugar, qualquer que seja, foge a esse direito básico. E o que é preocupante: isto pode até gerar certa intolerância com os migrantes de regiões mais pobres por parte de habitantes de regiões mais prósperas economicamente. A esse respeito, Zaluar (1997) levanta a hipótese de que

reforçar as solidariedades e identidades locais [...] acabaria por deixar uma legião de pobres migrantes de fora, rejeitados pelos municípios mais ricos, como já acontece em vários estados do Sul, no interior de São Paulo e em alguns municípios de Minas Gerais. Isso representaria um retrocesso à política social inglesa dos séculos XVII e XVIII, que se caracterizou pela imobilização dos pobres nos seus municípios de origem [...] e por enormes diferenças intermunicipais (ZALUAR, 1997, p. 6).

Considerações finais

Diante do exposto, pode-se concluir que os projetos políticos de desenvolvimento local sustentável, como forma de luta contra o aumento de desemprego e do trabalho informal e contra a pauperização resultante do êxodo rural, questionam os sentidos do trabalho e da cidadania em um contexto pós-moderno de reestruturação produtiva.

Entretanto, a sociedade brasileira precisa reconhecer a importância do trabalho do homem rural para o País, pois, este homem é um ser de trabalho que, independente da ocupação social, da escolaridade e do lugar de habitação, reflete sobre sua prática social, toma decisões, cria, transforma e age de forma coletiva e organizada em busca de seus objetivos.

As pessoas que estão na zona rural também podem ser ou não criativas, inteligentes, competentes, como qualquer cidadão do mundo. Segundo Couto Rosa (1999), o ponto central a ser observado deve ser o desenvolvimento dos capitais humanos e sociais disponíveis, vistos não como beneficiários de políticas sociais compensatórias, mas como atores sociais, cidadãos participantes do processo de renovação e construção de uma sociedade.

Em vários países, tais como EUA, Japão e França, os pequenos agricultores são mais valorizados e compensados financeiramente para permanecerem no campo na produção agrícola e como guardiões da paisagem. No Brasil, não recebem subsídios diretos vinculados à produção, mas caridade governamental, embutida em políticas compensatórias que nem sempre valorizam o trabalho que desenvolvem, em detrimento de sua promoção como cidadãos e da sustentabilidade de sua atividade produtiva.

Não é pelo apoio genérico e indiferenciado ao setor agrícola que os pobres rurais poderão ver atendidas suas necessidades mais urgentes (ABRAMOVAY, 2000). O desenvolvimento rural sustentável deve ser promovido – e com muito atraso – não como uma alternativa porque as cidades já não comportam, não porque pessoas desqualificadas para conseguir emprego na indústria, nos serviços ou no comércio vão se tornar sem teto, mas porque é um direito do cidadão rural e uma obrigação do Estado. Nota * Resumo de trabalho apresentado no XI CISO - Encontro de Ciências Sociais do Norte Nordeste, Grupo de Trabalho Semi-Árido Brasileiro: Desenvolvimento e Sustentabilidade, de 05 a 08 de agosto de 2003, na Universidade Federal de Sergipe, sob o título “Valorização do rural versus valorização do camponês: como o pequeno agricultor do semi-árido sergipano percebe seu trabalho”. Referências ABRAMOVAY, Ricardo. Desafios impostos pela volta do homem ao campo. Gazeta Mercantil, p. A-3, 2 out. 2000. ARAÚJO, A. M. M. O êxodo dos trabalhadores rurais para cidades à luz de Lefevbre. Scripta Nova, Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, vol. VI, nº 119 (121), 2002. [ISSN: 1138-9788]. Disponível em <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn119121.htm>. Acesso em 03 dez 2002. BODSTEIN, Regina Cele de A. Cidadania e Modernidade: emergência da questão social na agenda pública. Cadernos de Saúde Pública. Vol. 13, nº 2. Rio de Janeiro, 1997. CALMON, Jorge. As Estradas corriam para o sul: migração nordestina para São Paulo. Salvador: EGBA, 1998.

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* Isabela Gonçalves de Menezes, especialista em Didática e metodologia no Ensino Superior, é professora de Metodologia do trabalho científico do Núcleo de Pós-Graduação da Faculdade São Luís de França. E-mail: [email protected].

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