v18n1a13 desvalorização

10
Introdução Este texto objetiva apresentar e discutir a teoria do reconhecimento social de Axel Honneth (2003, 2007) como ferramenta possível para a compreensão das práticas pedagógicas escolares. Mesmo que de modo preliminar, pretendemos explicitar o potencial dessa teoria para melhor compreender as relações intersubjetivas na cultura escolar e o processo de construção das identidades dos professores. A nossa aproximação com o debate sobre o reconhecimento, principalmente pela obra de Axel Honneth, deu-se em função de uma demanda por melhor compreensão das práticas pedagógicas por nós estudadas. Referimo-nos aqui ao estudo que realizamos anteriormente, intitulado: “Educação Física escolar: entre práticas inovadoras e o desinvestimento pedagógico”. Naquela ocasião, interessava-nos compreender como são construídas as práticas pedagógicas de professores de Educação Física (EF) escolar, tanto daqueles que estamos chamando de inovadores 1 (FARIA et al., 2010) quanto daqueles em estado de desinvestimento pedagógico 2 (MACHADO et al., 2010). Entre outras questões, pudemos perceber que alguns elementos da cultura escolar estão atrelados às dimensões do reconhecimento social dos sujeitos. Nesse sentido, tal categoria ganha centralidade na análise dos casos por nós estudados. Dessa maneira, levando em consideração nossos primeiros olhares sobre as dimensões do reconhecimento social e sua importância para a compreensão das relações intersubjetivas na 1 Estamos cientes do quão problemático é esse conceito. Daí a opção por utilizá-lo num sentido bem amplo, tomando-o como ponto de partida para o trabalho empírico. Inovação foi entendida, inicialmente, como toda e qualquer prática pedagógica que buscava superar a tradição instalada. 2 Esse conceito foi inspirado em Huberman (1995). No entanto, o desinvestimento é considerado por nós mais como um estado do que uma fase da carreira como em Huberman. No caso específico da EF, o desinvestimento, por nós adjetivado de pedagógico, corresponde àqueles casos em que os professores permanecem em seus postos, mas abandonam o compromisso com a qualidade do trabalho docente. Motriz, Rio Claro, v.18 n.1, p.120-129, jan./mar. 2012 Artigo Original A inovação e o desinvestimento pedagógico na Educação Física escolar: uma leitura a partir da teoria do reconhecimento social Bruno de Almeida Faria 1 Thiago da Silva Machado 1 Valter Bracht 2 1 Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil 2 Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil Resumo: Este artigo pretende discutir a teoria do reconhecimento social de Axel Honneth, objetivando explicitar o potencial dessa teoria para melhor compreender as relações intersubjetivas construídas na cultura escolar e o processo de construção das identidades dos professores de Educação Física. A condição de “segunda classe” da Educação Física na escola implica que a luta por reconhecimento se constitua num elemento fundamental da construção das identidades dos professores da área, uma vez que o sentido de “ser” professor de Educação Física tem uma relação estreita com as condições de reconhecimento da área/disciplina na escola. Palavras-chave: Educação Física. Reconhecimento. Ensino. Pedagogical innovation and divestment in school physical education: a social recognition theory-based approach Abstract: This article aims at discussing Axel Honneth’s theory of social recognition in order to highlight this theory's potential to better understand the intersubjective relationships built in school settings, as well as the construction of physical education teachers’ identities. The “second class” status of physical education means that the fight for recognition should represent a fundamental element in the construction of these teachers’ identities, as the sense of "being" a physical education teacher is closely related to the conditions for recognizing this subject/field in schools. Key Words: Physical Education. Recognition. Teaching.

description

kçsdça

Transcript of v18n1a13 desvalorização

  • Introduo

    Este texto objetiva apresentar e discutir a

    teoria do reconhecimento social de Axel Honneth

    (2003, 2007) como ferramenta possvel para a

    compreenso das prticas pedaggicas

    escolares. Mesmo que de modo preliminar,

    pretendemos explicitar o potencial dessa teoria

    para melhor compreender as relaes

    intersubjetivas na cultura escolar e o processo de

    construo das identidades dos professores.

    A nossa aproximao com o debate sobre o

    reconhecimento, principalmente pela obra de Axel

    Honneth, deu-se em funo de uma demanda por

    melhor compreenso das prticas pedaggicas

    por ns estudadas. Referimo-nos aqui ao estudo

    que realizamos anteriormente, intitulado:

    Educao Fsica escolar: entre prticas

    inovadoras e o desinvestimento pedaggico.

    Naquela ocasio, interessava-nos compreender

    como so construdas as prticas pedaggicas de

    professores de Educao Fsica (EF) escolar,

    tanto daqueles que estamos chamando de

    inovadores1 (FARIA et al., 2010) quanto daqueles

    em estado de desinvestimento pedaggico2

    (MACHADO et al., 2010). Entre outras questes,

    pudemos perceber que alguns elementos da

    cultura escolar esto atrelados s dimenses do

    reconhecimento social dos sujeitos. Nesse

    sentido, tal categoria ganha centralidade na

    anlise dos casos por ns estudados.

    Dessa maneira, levando em considerao

    nossos primeiros olhares sobre as dimenses do

    reconhecimento social e sua importncia para a

    compreenso das relaes intersubjetivas na

    1 Estamos cientes do quo problemtico esse conceito. Da

    a opo por utiliz-lo num sentido bem amplo, tomando-o como ponto de partida para o trabalho emprico. Inovao foi entendida, inicialmente, como toda e qualquer prtica pedaggica que buscava superar a tradio instalada. 2 Esse conceito foi inspirado em Huberman (1995). No

    entanto, o desinvestimento considerado por ns mais como um estado do que uma fase da carreira como em Huberman. No caso especfico da EF, o desinvestimento, por ns adjetivado de pedaggico, corresponde queles casos em que os professores permanecem em seus postos, mas abandonam o compromisso com a qualidade do trabalho docente.

    Motriz, Rio Claro, v.18 n.1, p.120-129, jan./mar. 2012

    Artigo Original

    A inovao e o desinvestimento pedaggico na Educao Fsica

    escolar: uma leitura a partir da teoria do reconhecimento social

    Bruno de Almeida Faria 1

    Thiago da Silva Machado 1

    Valter Bracht 2

    1 Programa de Ps-Graduao em Educao Fsica da Universidade Federal do Esprito

    Santo, Vitria, ES, Brasil 2 Centro de Educao Fsica e Desportos da Universidade Federal do Esprito Santo,

    Vitria, ES, Brasil

    Resumo: Este artigo pretende discutir a teoria do reconhecimento social de Axel Honneth, objetivando explicitar o potencial dessa teoria para melhor compreender as relaes intersubjetivas construdas na cultura escolar e o processo de construo das identidades dos professores de Educao Fsica. A condio de segunda classe da Educao Fsica na escola implica que a luta por reconhecimento se constitua num elemento fundamental da construo das identidades dos professores da rea, uma vez que o sentido de ser professor de Educao Fsica tem uma relao estreita com as condies de reconhecimento da rea/disciplina na escola.

    Palavras-chave: Educao Fsica. Reconhecimento. Ensino.

    Pedagogical innovation and divestment in school physical education: a social recognition theory-based approach

    Abstract: This article aims at discussing Axel Honneths theory of social recognition in order to highlight this theory's potential to better understand the intersubjective relationships built in school settings, as well as the construction of physical education teachers identities. The second class status of physical education means that the fight for recognition should represent a fundamental element in the construction of these teachers identities, as the sense of "being" a physical education teacher is closely related to the conditions for recognizing this subject/field in schools.

    Key Words: Physical Education. Recognition. Teaching.

  • A inovao e o desinvestimento pedaggico na Educao Fsica escolar

    Motriz, Rio Claro, v.18, n.1, p.120-129, jan./mar. 2012 121

    cultura escolar, pretendemos explorar, por meio

    de um ensaio especulativo, referenciado nos

    dados das pesquisas mencionadas, o potencial

    da teoria do reconhecimento de A. Honneth.

    A luta por reconhecimento: a renovao da teoria crtica da sociedade por Axel Honneth

    O debate contemporneo sobre o

    reconhecimento social muito influenciado pelos

    escritos de Hegel3 do perodo de Jena.

    4 Esses

    escritos, anteriores sua conhecida Filosofia do

    Direito, fornecem a base terica que permite aos

    autores construir suas renovaes e atualizaes

    da teoria social do reconhecimento. Um dos

    pensadores mais expoentes da chamada

    renovao terica dos escritos do jovem Hegel

    Axel Honneth, considerado como pertencente

    terceira gerao da Escola de Frankfurt.

    Honneth, na releitura que faz dos escritos de

    Hegel, indica algumas revises necessrias para

    que essa teoria tenha validade na produo do

    conhecimento no perodo da alta modernidade.

    Nesse sentido, aponta a necessidade de

    reconstruir a tese inicial de Hegel luz de uma

    psicologia social empiricamente sustentada

    (HONNETH, 2003). Alm da atualizao terica

    supracitada, Honneth (2003, p.121) indica outros

    dois aspectos necessrios renovao da teoria

    do reconhecimento social: o primeiro deles que

    antes que se possa retomar a tipologia elaborada

    por Hegel, [...] necessria uma fenomenologia

    empiricamente controlada das formas de

    reconhecimento, para que a proposta de Hegel

    possa ser analisada e corrigida; j o outro aspecto

    diz respeito possibilidade de se atribuir s

    respectivas formas de reconhecimento recproco

    experincias correspondentes de desrespeito

    social, assim como sobre a possibilidade de

    serem encontradas comprovaes histricas e

    sociolgicas para a ideia de que essas formas de

    desrespeito social foram, de fato, fonte

    motivacional de confronto social.

    3 Georg Wilhelm Friedrich Hegel um filosofo (1770-1831),

    considerado um dos principais tericos do idealismo alemo. Sua principal obra a Fenomenologia do Esprito. 4 A denominao Perodo de Jena uma caracterizao

    dada aos escritos da juventude de Hegel, os quais no foram desenvolvidos posteriormente pelo autor. Nessa fase, Hegel constri as bases para uma teoria da justia com aliceres na experincia do reconhecimento social. Os principais autores que nela se referenciam so Axel Honneth, Nancy Fraser e Charles Taylor.

    Honneth defende que, para a atualizao da

    teoria social de Hegel, preciso apresentar uma

    lgica moral dos conflitos sociais, tratando a luta

    social no mais por meio de uma teoria idealista

    da razo, mas sim adequando a teoria a um

    pensamento empirista, ps-metafsico.

    A nova formulao da Teoria Crtica de Axel

    Honneth tem como pressuposto embrionrio o

    apontamento de dficits sociolgicos nas

    formulaes anteriores da Teoria Crtica, desde

    Adorno e Horkheimer at Habermas. Na teoria

    habermasiana, por exemplo, o principal dficit

    apontado por Honneth que a dimenso do

    conflito social fica em segundo plano, no

    ressaltando o conflito em torno das violaes das

    pretenses de identidade adquiridas na

    socializao (WERLE, 2008).

    Honneth destaca, no cenrio atual, a

    importncia das relaes intersubjetivas de

    reconhecimento para a compreenso da dinmica

    das relaes e conflitos sociais. Quer dizer, na

    perspectiva desse autor, que o conflito social

    retoma seu lugar de prestgio na produo terica

    dos estudos frankfurtianos, principalmente, em

    funo de as lutas por reconhecimento derivadas

    desses conflitos se apresentarem como

    elementos centrais da teoria crtica da sociedade.

    Como observa Honneth (2003, p.155):

    O ponto de partida dessa teoria da sociedade deve ser constitudo pelo princpio no qual o pragmatista Mead coincidira fundamentalmente com o primeiro Hegel: a reproduo da vida social se efetua sob um imperativo de um reconhecimento recproco porque os sujeitos s podem chegar a uma auto-relao prtica quando aprendem a se conceber, da perspectiva normativa de seus parceiros de interao, como seus destinatrios sociais.

    O reconhecimento pelos demais membros de

    uma comunidade tratado pelo autor, portanto,

    como instrumento fundamental para a autonomia

    e a autorrealizao dos indivduos, uma vez que

    no reconhecimento social intersubjetivo que os

    indivduos e os grupos formam suas identidades.

    Entretanto, quando no h esse reconhecimento,

    desencadeada uma luta por reconhecimento na

    tentativa de restabelecer ou criar novas condies

    intersubjetivas de reconhecimento. O indivduo ou

    grupo no reconhecido visto como de segunda

    classe, pois seus papis e status se configuram

    diferentemente dos padres dominantes.

    A atualizao sistemtica da teoria do

    reconhecimento que Honneth se compromete a

  • B. A. Faria, T. S. Machado & V. Bracht

    Motriz, Rio Claro, v.18, n.1, p.120-129, jan./mar. 2012 122

    realizar tem o seu apoio fundamental na

    psicologia social de George Herbert Mead. A

    teoria de Mead equipara-se ao ideal de Hegel,

    como comenta Honneth (2003, p. 125): [...] ela

    tambm procura fazer da luta por reconhecimento

    o ponto referencial de uma construo terica que

    deve explicar a evoluo moral da sociedade,

    bem como ressalta que as relaes

    intersubjetivas esto interligadas experincia do

    reconhecimento.

    Honneth, embasado nos estudos psicolgicos

    de Mead, caminha em dois sentidos: o primeiro

    diz respeito retomada do elo entre a teoria

    crtica e os estudos da psicologia social; j o

    segundo sentido se refere funo assumida

    pela teoria psicolgica social de [...] esclarecer

    como surge a conscincia do significado das

    aes sociais (MATTOS, 2006, p. 88), fato que

    permite a Honneth compreender o processo de

    tomada de conscincia de si a partir do outro,

    aspecto necessrio fundamentao das

    relaes intersubjetivas de reconhecimento.

    A ideia central trabalhada por Mead a de que

    [...] s desenvolvo a minha identidade quando

    aprendo minha prpria ao na perspectiva do

    outro (MATTOS, 2006, p. 88). A teoria

    psicolgica de Mead tem seu ponto de apoio em

    trs conceitos bsicos, que lhe possibilitam

    explicar o processo de evoluo moral da

    sociedade. Os conceitos de Eu e Me,

    acompanhados, posteriormente, pelo conceito de

    outro generalizado,5 buscam interpretar como as

    relaes intersubjetivas de reconhecimento

    configuram a formao da autoconscincia

    humana. Argumentando nessa direo, Honneth

    afirma que [...] corresponde experincia do

    reconhecimento um modo de auto-relao prtica,

    no qual o indivduo pode estar seguro do valor

    social de sua identidade (HONNETH, 2003, p.

    137).

    O reconhecimento social entendido,

    portanto, como o motor para todo o

    desenvolvimento dos padres morais e ticos da

    sociedade e da formao das identidades dos

    indivduos. Cabe experincia do

    reconhecimento a afirmao positiva da

    identidade dos sujeitos. Mead procura explicar o

    processo de relao intersubjetiva entre os

    5 Esses conceitos sero tratados ainda neste texto. Nesse

    momento cabe apenas apresent-los a ttulo de

    indivduos pelo argumento de que, nas relaes

    interativas, o sujeito toma conscincia de sua

    prpria subjetividade. Um sujeito somente dispe

    de um saber sobre o significado intersubjetivo de

    suas aes quando ele est em condies de

    desencadear em si prprio a mesma reao que

    sua manifestao comportamental causou, como

    estmulo, no seu defronte (HONNETH, 2003, p.

    129). Da surge a defesa de que, nas relaes de

    reconhecimento, nas quais o sujeito se concebe

    como objeto na relao com o outro, o sujeito

    chega a uma conscincia de sua identidade.

    Honneth (2003) identifica trs dimenses do

    reconhecimento social, a autorrelao prtica do

    amor, do direito e da solidariedade. Para

    alm disso, apresenta tambm formas de

    denegao do reconhecimento, ou seja, formas

    de desrespeito decorrentes do no

    reconhecimento de alguma dessas dimenses de

    autorrealizao. Para Honneth, os padres de

    reconhecimento so necessrios para a

    manuteno da integridade do ser humano.

    Quando esses padres so violados, a identidade

    do sujeito ameaada,

    [] visto que a auto-imagem normativa de cada ser humano, de seu Me, como disse Mead, depende da possibilidade de um resseguro constante no outro, vai de par com a experincia do desrespeito o perigo de uma leso, capaz de desmoronar a identidade da pessoa inteira (HONNETH, 2003, p. 213-214).

    Quer dizer, a cada relao prtica de

    reconhecimento, podem ser percebidas

    categorias morais de desrespeito, que, para

    Honneth, no se configuram como relaes

    somente de injustia, nas quais os sujeitos so

    privados de sua liberdade, mas tambm de uma

    violao na compreenso que os prprios sujeitos

    tm de si mesmos. Nesse sentido, a cada forma

    de desrespeito vincula-se privao de

    determinadas pretenses de identidade: em

    relao ao amor, o desrespeito se d nas

    formas de maus-tratos fsicos e violaes; nas

    relaes jurdicas, por privaes de direito e

    excluso; e, em relao solidariedade, nas

    formas de degradao e ofensa (HONNETH,

    2003). 6

    esclarecimento das bases tericas mobilizadas por Honneth (2003). 6Essa sntese pode ser encontrada, mais especificamente, no

    fim do Captulo 5 dessa obra, no qual Honneth resume num quadro as dimenses do reconhecimento, suas autorrelaes prticas e formas de desrespeito.

  • A inovao e o desinvestimento pedaggico na Educao Fsica escolar

    Motriz, Rio Claro, v.18, n.1, p.120-129, jan./mar. 2012 123

    Visto esse delineamento da teoria de Axel

    Honneth, detalhamos a seguir as relaes

    prticas de reconhecimento social relacionadas

    com as dimenses do amor, do direito e da

    solidariedade, dimenses essas que se

    apresentam como fundamento para a construo

    das identidades coletivas e individuais dos

    sujeitos.

    Reconhecimento e desrespeito relativos s relaes afetivas

    A dimenso da vida social associada s

    relaes amorosas para Honneth a relao

    primria de reconhecimento intersubjetivo. O

    primeiro ponto que merece destaque o da

    ampliao do conceito de amor. Para o autor, o

    amor no deve ser entendido somente no seu

    sentido romantizado, mas sim por [...] todas as

    relaes primrias, na medida em que elas

    consistam em ligaes emotivas fortes entre

    poucas pessoas (HONNETH, 2003, p. 159).

    Esse tipo de relao depende

    necessariamente da existncia corporal do outro

    concreto, que demonstra na relao sentimentos

    de estima especial. Honneth comenta que a

    elaborao de Hegel estava baseada no conceito

    de ser-si-mesmo em um outro, uma vez que

    essa relao afetiva depende do equilbrio

    precrio entre autonomia e ligao. O equilbrio

    entre simbiose e autoafirmao, determinado

    pelas relaes intersubjetivas bem-sucedidas,

    para Honneth a ilustrao do amor como uma

    forma determinada de reconhecimento.

    No entanto, s no processo de conflito, no qual

    a criana se utiliza de atos agressivos com a me,

    a criana comea a se reconhecer como um ser

    autnomo, uma vez que a me se conduz

    amorosamente em relao ao filho. O

    reconhecimento do outro como uma pessoa

    independente permite que os indivduos possam

    estar s, mas terem a certeza de que suas

    carncias sero atendidas pelo outro. Essa

    relao de reconhecimento prepara o caminho

    para uma espcie de autorrelao em que o

    sujeito alcana uma confiana elementar em si

    mesmo.

    O reconhecimento nessa esfera permite, alm

    do alcance de uma segurana emotiva, tambm o

    desenvolvimento de todas as outras atitudes de

    autorrespeito (HONNETH, 2003). O

    reconhecimento na dimenso do amor, por meio

    das relaes primrias de amor e amizade,

    possibilita ao sujeito um sentimento de

    autoconfiana. Entretanto, quando h relao de

    desrespeito nessa esfera, por maus-tratos e

    violaes pessoais, o sujeito se sente ferido no

    s fisicamente.

    Assim, o argumento central que subjaz o

    reconhecimento social na dimenso afetiva que

    a ligao e o reconhecimento da autonomia do

    outro, estabelecidas entre os sujeitos, propiciam a

    criao de uma autoconfiana necessria para a

    participao autnoma na vida social (HONNETH,

    2003).

    A dimenso do reconhecimento jurdico: a autorrelao prtica do respeito

    A relao do reconhecimento jurdico tem de

    ser pensada, de acordo com Honneth,

    considerando o processo histrico de evoluo do

    direito. No decorrer do processo de evoluo

    moral da sociedade, fica evidente que, na

    modernidade, a questo do respeito se distingue

    em duas formas de reconhecimento, o direito e a

    estima social. Honneth defende que as lutas

    sociais atuaram como motores para uma

    evoluo gradual do direito, tal qual percebemos

    hoje, uma vez que as relaes de reconhecimento

    denegado confluram para que grupos

    desfavorecidos lutassem, no sentido de ampliar

    sua atuao poltica na sociedade.

    A dimenso do reconhecimento do direito est

    embasada no entendimento de que os sujeitos s

    se reconhecem como uma pessoa de direito

    medida que possuem um saber sobre quais

    obrigaes devem ser garantidas em face ao

    respectivo outro. medida que o indivduo

    compreende quais normas sociais so

    necessrias ao reconhecimento do outro como

    pessoa, inversamente esse pode reconhecer-se

    como moralmente imputvel perante a sociedade.

    Na sociedade moderna, as pretenses

    legtimas do indivduo so carregadas de

    princpios universalistas de uma moral ps-

    convencional (HONNETH, 2003). J nas

    sociedades tradicionais, o direito estava

    diretamente relacionado com o papel social

    desempenhado pelos indivduos na sociedade, ou

    seja, o direito era concebido de acordo com as

    qualidades individuais e o status que cada pessoa

    gozava na comunidade.

    A autorrelao prtica positiva na esfera do

    direito permite pessoa referir-se a si mesma

  • B. A. Faria, T. S. Machado & V. Bracht

    Motriz, Rio Claro, v.18, n.1, p.120-129, jan./mar. 2012 124

    como moralmente imputvel, assim possibilita

    que a pessoa construa um sentimento de

    autorrespeito. Na experincia do reconhecimento

    social na dimenso jurdica, [...] o sujeito adulto

    obtm a possibilidade de conceber sua ao

    como uma manifestao prpria da autonomia,

    respeitada por todos os outros (HONNETH,

    2003, p. 194).

    Em contrapartida, quando no garantida a

    concesso de direitos a uma pessoa,

    desencadeada uma relao de desrespeito. Essa

    relao negativa infringe no sujeito um no

    reconhecimento de si mesmo como uma pessoa

    que atua em p de igualdade com os outros

    membros da comunidade. Honneth ainda

    argumenta que o no reconhecimento jurdico

    priva o sujeito de ver-se como moralmente

    imputvel. Para o indivduo, a denegao de

    pretenses jurdicas socialmente vigentes

    significa ser lesado na expectativa intersubjetiva

    de ser reconhecido como sujeito capaz de formar

    juzo moral (HONNETH, 2003, p. 216).

    A estima social: o reconhecimento social da comunidade de valores

    A terceira dimenso do reconhecimento social

    refere-se estima social dos sujeitos, dimenso

    que lhes permite reconhecer positivamente suas

    capacidades e propriedades individuais. A estima

    social uma dimenso das relaes de respeito

    que foi desacoplada das questes jurdicas por

    meio da evoluo do direito na sociedade. Nesse

    sentido, o reconhecimento jurdico e a estima

    social so percebidos com traos distintos, mas

    como parte de uma mesma esfera de respeito

    social.

    Como na dimenso do direito, visto

    anteriormente, a estima social no pode ser

    entendida desvinculada da evoluo histrica dos

    valores socialmente partilhados por uma

    comunidade. A comunidade de valores, na qual

    esto atreladas as formas de reconhecimento por

    estima, orienta-se por critrios ticos e por

    formulaes de valores (HONNETH, 2003). Numa

    dada comunidade orientada por valores, os

    sujeitos encontram reconhecimento conforme o

    valor socialmente definido de suas propriedades

    concretas individuais, que, de certa forma,

    contribuem para a realizao de objetivos

    comuns.

    A principal distino que Honneth apresenta

    entre a dimenso da estima social e a do direito

    operada por meio do conceito de solidariedade

    empregado estima social. Para o autor, nas

    relaes de reconhecimento solidrias no h

    somente um respeito ou aceitao do outro como

    pessoa, mas sim [...] uma espcie de relao

    interativa em que os sujeitos tomam interesse

    reciprocamente por seus modos distintos de vida,

    j que eles se estimam entre si de maneira

    simtrica (HONNETH, 2003, p. 209).

    O reconhecimento solidrio pode ser

    concebido em duas facetas, a primeira delas

    relativa ao interior de grupos, que forjam

    identidades coletivas, e a outra no mbito

    individualizado de cada sujeito.

    O reconhecimento da estima social relativa

    aos grupos proporciona uma autorrelao prtica

    que permite aos indivduos um sentimento de

    orgulho de grupo ou de honra coletiva

    (HONNETH, 2003). O indivduo se v como uma

    pessoa pertencente a um determinado grupo, que

    compartilha uma identidade coletiva. O

    reconhecimento nessa dimenso permite ao

    sujeito perceber que suas propriedades e

    capacidades concretas tm valor para alcanar

    determinados objetivos coletivos e o indivduo se

    reconhece em condio de realizaes comuns.

    J no mbito individualizado, Honneth

    argumenta que podemos entender essa dimenso

    do reconhecimento por meio de duas expresses

    comumente usadas hoje que so: sentimento de

    valor prprio e autoestima. Nesse sentido, o

    reconhecimento proporciona uma autorrelao

    prtica em que o sujeito apresenta uma confiana

    de que suas capacidades e realizaes so tidas

    como valiosas pelos demais membros da

    sociedade (HONNETH, 2003).

    Quando no so garantidas as formas de

    respeito social relativas estima, os sujeitos no

    conseguem atribuir valor s suas capacidades

    individuais, uma vez que percebe que elas so

    vistas como de menor valor ou deficientes. Tal

    experincia de desvalorizao social leva o

    indivduo a uma perda de autoestima pessoal, no

    lhe possibilitando conceber suas capacidades

    individuais como importantes para alcanar

    objetivos comuns em dada comunidade.

    Luta por reconhecimento nas prticas pedaggicas

    O cotidiano escolar permeado por relaes

    intersubjetivas de reconhecimento entre os

  • A inovao e o desinvestimento pedaggico na Educao Fsica escolar

    Motriz, Rio Claro, v.18, n.1, p.120-129, jan./mar. 2012 125

    professores e alunos, entre os professores e os

    coordenadores pedaggicos, bem como entre os

    prprios professores das disciplinas. Tais

    relaes tm uma influncia significativa na

    formao das identidades dos professores, pois

    nelas os professores elaboram sua condio de

    ser professor, avaliam seu trabalho pedaggico

    e garimpam apoios para a realizao de seus

    projetos. Lembrando, ainda, que, como grupo ou

    classe, os professores tambm buscam

    reconhecimento social.

    Disso se depreende que as relaes de

    reconhecimento e de denegao do

    reconhecimento tm influncia sobre o processo

    de construo da prtica pedaggica pelos

    professores. Partindo desse princpio,

    analisaremos a seguir como as relaes

    intersubjetivas de reconhecimento influenciam

    diretamente a construo das prticas

    pedaggicas e a formao das identidades dos

    professores. Para a realizao de tal tarefa,

    discutiremos como a situao de segunda

    classe do magistrio incide sobre a formao das

    identidades docentes, bem como as relaes de

    reconhecimento se constituiram como categoria

    central de anlise em alguns estudos de caso por

    ns realizados.

    O magistrio como profisso de segunda classe na sociedade contempornea

    Ao considerarmos a situao atual do

    magistrio em nosso pas, percebemos que as

    formas de desvalorizao que perpassam o

    trabalho docente tm evidenciado a denegao

    do reconhecimento social dos professores. Nesse

    sentido, evocamos a possibilidade de

    compreender a formao das identidades dos

    professores a partir da perspectiva do

    reconhecimento social, uma vez que esta nos

    possibilita estabelecer um dilogo entre os

    conflitos sociais, provenientes das lutas por

    reconhecimento, e a formao do ser professor.

    Inmeras relaes de reconhecimento e de

    denegao do reconhecimento, que podem ser

    percebidas por situaes de desvalorizao,

    atuam sobre a imagem que os professores tm

    de si. Essa situao de no reconhecimento pode

    ser evidenciada claramente por meio das anlises

    da condio de trabalho e do prestgio social da

    profisso. A exemplo disso, percebe-se, hoje, um

    desprestgio social da profisso expresso, entre

    outras coisas, na condio de baixos salrios. A

    ttulo de ilustrao, tomemos a investigao de

    Gatti (2000), com professores de ensino

    fundamental, na qual foi possvel identificar que

    83% dos professores entrevistados apontam a

    questo salarial como principal fator de

    desvalorizao profissional.

    J Alvez-Mazzoti (2007), desenvolvendo um

    estudo sobre as representaes da identidade

    docente de 248 professores do Estado do Rio de

    Janeiro, percebeu que os professores estudados,

    atuantes no segundo nvel do ensino fundamental

    (5 a 8 sries), concebem o ser professor

    relacionado com a luta contra situaes

    dificultadoras. V-se fortemente, neste estudo,

    que os professores atrelam a identidade docente

    ao processo de luta por reconhecimento, para que

    situaes de desrespeito sejam diminuidas ou,

    at mesmo, estirpadas. Tal estudo nos permite

    vizualizar com mais clareza a relao entre os

    processos de luta por reconhecimento e a

    formao das identidades dos professores.

    Essa relao de luta por reconhecimento,

    parece-nos muitas vezes, estar no centro da

    motivao dos professores em relao ao ensino,

    pelo seguinte argumento: quando os professores

    so desrespeitados e no tm ganhos por meio

    da luta por reconhecimento acabam se fixando

    em uma situao de rebaixamento passivo, na

    qual se cria um sofrimento pela privao de

    direitos e degradao da autoestima; j quando o

    professor alcana reconhecimento pelo processo

    de luta, h um sentimento, por parte do sujeito,

    como indivduo de igual valor na sociedade que

    percebe seus projetos como significativos para o

    desenvolvimento social.

    A identidade, nesse sentido, deve ser

    entendida como um produto de lutas e conflitos

    estabelecidos nas relaes intersubjetivas no

    universo escolar, no como uma propriedade j

    dada, mas como um processo conflitante de luta

    por reconhecimento.

    A tentativa de perceber o processo de

    construo da identidade docente nos remete, em

    ltima instncia, tematizao das relaes de

    trabalho como uma categoria de anlise. Honneth

    (2008) aponta, no mbito das cincias sociais,

    nos ltimos anos, uma escassez de estudos que

    defendem e tematizam um conceito

    emancipatrio de trabalho. Para esse autor, a

    temtica do trabalho foi colocada num segundo

    plano, por uma perda de relevncia para os

  • B. A. Faria, T. S. Machado & V. Bracht

    Motriz, Rio Claro, v.18, n.1, p.120-129, jan./mar. 2012 126

    estudos sociolgicos. Entretanto, Honneth afirma

    que o trabalho nunca deixou de ser um elemento

    central na sociedade capitalista, uma vez que [...]

    a maioria da populao segue derivando

    primeiramente sua identidade do seu papel no

    processo organizado do trabalho (HONNETH,

    2008, p. 47). O principal argumento do autor

    que o trabalho no deve ser somente entendido

    como uma forma de assegurar a subsistncia dos

    indivduos, mas tambm como uma instncia que

    satisfaa individualmente o sujeito, que permita

    processos de autorrealizao pessoal.

    Nessa esteira, Honneth (2008), em

    contraposio a uma anlise meramente de

    dominao e alienao no trabalho, argumenta

    que os trabalhadores manifestam desejos de uma

    estruturao autnoma das relaes de trabalho,

    expressos em movimentos de resistncia. Os

    trabalhadores no somente temem pela

    manuteno dos seus postos de trabalho, mas

    tambm primam por uma melhora qualitativa das

    suas condies. Nessa perspectiva, para

    compreender o trabalho por meio da concesso

    de reconhecimento social, devemos entend-lo de

    maneira ampla, por meio de duas condies: a

    primeira de carter econmico, pois devem ser

    garantidas as condies salariais dos

    profissionais; e a segunda, mais relacionada com

    a autorrealizao, em que as atividades

    desenvolvidas no trabalho possam ser

    reconhecidas como uma contribuio para o bem

    geral da sociedade. A partir dessa compreenso

    do trabalho, podemos perceber as condies

    normativas de reconhecimento que atuam sobre

    os indivduos nas relaes intersubjetivas de

    trabalho, superando o vis exclusivamente

    econmico presente em muitas anlises.

    O reconhecimento na inovao e no desinvestimento pedaggico na Educao Fsica

    Ao analisar a prtica pedaggica dos

    professores inovadores e dos professores em

    estado de desinvestimento pedaggico, foram

    flagrantes as relaes de desrespeito vinculadas

    falta de reconhecimento da EF como

    componente curricular. Em estudos anteriores

    (FARIA et al, 2010; Machado et al, 2010), por

    meio do trabalho emprico, pareceu-nos

    perceptvel que a EF tida no meio escolar como

    uma disciplina de segunda classe. A viso que

    se tm da EF como auxiliar das outras

    disciplinas, uma espcie de apndice da escola.

    Essa desvalorizao configura-se, por vezes,

    numa forma de desrespeito nas dimenses do

    direito e da estima social dos professores, que os

    motivam a lutar por reconhecimento. importante

    deixar claro que a condio de segunda classe

    no exclusiva da EF. Outros componentes

    curriculares, como o caso de Artes, tambm

    no gozam de grande prestgio no universo

    escolar.

    Tambm naqueles estudos, no dilogo com

    diferentes aspectos da cultura escolar, pudemos

    observar que as escolas pesquisadas tm um

    entendimento de EF, em muito, diferenciado

    daquilo que a produo acadmica da rea vem

    construindo7. Parece-nos que a viso que ainda

    se tem da EF a de que uma atividade auxiliar

    das outras disciplinas, como se o momento da

    aula de EF fosse um espao de distrao para os

    alunos, no qual eles fogem ou compensam a

    tenso proporcionada pelo esforo intelectual em

    sala de aula. Quer dizer, os agentes escolares

    tm ainda grande dificuldade de perceber a aula

    de EF como um momento de aprendizado

    sistematizado e com objetivos prprios e

    relevantes para a educao dos alunos. Nesse

    sentido, apesar de estar presente na escola em

    funo de uma imposio legal, essa disciplina

    apresenta, no conjunto da cultura escolar, um

    dficit crnico de legitimidade.

    Tomando como referncia a teoria do

    reconhecimento de Axel Honneth, podemos

    afirmar que essa desvalorizao vivenciada pela

    EF e seus representantes na escola, os

    professores, potencialmente geradora de

    manifestaes de desrespeito (no

    reconhecimento). Em nosso entender, tanto nos

    casos dos professores inovadores quanto nos

    casos dos professores em estado de

    desinvestimento pedaggico, as situaes de

    desrespeito observadas afetam os docentes

    principalmente nas dimenses do direito e da

    solidariedade, como descritas por Honneth. A

    segunda forma de desrespeito a mais

    recorrente. Na verdade, no caso especfico da

    cultura escolar de EF, acreditamos ser possvel

    afirmar, inclusive, que ambas as formas de

    7 Referimo-nos s tentativas de uma determinada parcela da

    produo acadmica da rea da Educao Fsica que, mais intensamente a partir da dcada de 1980, buscou legitimar essa disciplina na escola como um componente curricular, em contraposio ao carter de atividade que lhe era reservado pelo decreto n 69.450, de 1971.

  • A inovao e o desinvestimento pedaggico na Educao Fsica escolar

    Motriz, Rio Claro, v.18, n.1, p.120-129, jan./mar. 2012 127

    desrespeito esto imbricadas de tal maneira que

    se torna difcil trat-las separadamente.

    Entendemos que a configurao de formas de

    no reconhecimento como estas so

    possibilitadas, justamente, pela ideia de

    inferioridade do saber mobilizado pela EF em

    frente s outras disciplinas. Isso porque, na

    maioria das vezes, as situaes de desrespeito

    mobilizadas pela cultura escolar parecem

    fundamentar-se no questionamento e crtica do

    prprio valor educativo e cultural da disciplina,

    colocando em xeque a sua legitimidade como

    componente curricular. Nessa esteira,

    acreditamos ser possvel afirmar, ainda, que o

    fato de ser tida, no meio escolar, como uma

    disciplina de menor status, ou de segunda

    classe possibilita tambm a configurao de

    situaes de desrespeito na esfera do direito. Da

    nossa afirmao anterior de que ambas as

    dimenses esto fortemente imbricadas; dito de

    outro modo, o imaginrio social construdo em

    torno da EF, e que a coloca como um

    componente curricular de menor valor, parece

    funcionar como um motor que, para alm de

    impulsionar situaes de no reconhecimento,

    pode, inclusive, legitimar tais aes.

    O no reconhecimento da EF escolar na

    esfera da estima social, ou seja, quando as

    formas de desrespeito observadas so tributrias

    de um no reconhecimento social da comunidade

    de valores da escola, remonta dificuldade que a

    escola e os membros da equipe pedaggica tm

    em perceber a contribuio dessa disciplina para

    a formao dos alunos. Talvez o exemplo mais

    clssico seja o fato de, por muito tempo e em

    diferentes culturas escolares, atribuir-se ao

    professor de EF a tarefa de ocupar o tempo dos

    alunos nos dias em que os demais docentes se

    renem para discutir algum projeto pedaggico

    coletivo.

    As formas de desrespeito, baseadas na ideia

    da inferioridade do saber mobilizado por

    determinado componente curricular, provocam

    nos professores um sentimento de rebaixamento,

    fazendo com que esses sujeitos se percebam

    com menor valor na coletividade da escola. Dessa

    forma, os professores que de algum modo se

    sentiam desrespeitados desencadeavam

    processos de luta, no sentido de obter o

    reconhecimento da comunidade escolar da

    importncia do saber mobilizado por sua

    disciplina. preciso destacar que o desrespeito

    ou denegao do reconhecimento no representa

    somente minimizaes nas liberdades de ao

    dos sujeitos, mas tambm um comportamento

    lesivo pelo qual as pessoas so feridas numa

    compreenso positiva de si mesmas (HONNETH,

    2003). dessa forma que podemos afirmar que a

    condio de segunda classe de certas

    disciplinas escolares, como a EF e Artes, incide

    diretamente na vida dos professores dessas

    reas, uma vez que eles tm a compreenso de

    si como docentes tambm de segunda classe.

    A denegao do reconhecimento desse tipo

    afeta sobremaneira a possibilidade de uma

    construo positiva das identidades dos docentes,

    uma vez que o indivduo oprimido por um

    sentimento de falta de valor prprio, e sua

    autoestima afetada negativamente, privando o

    docente de reconhecer suas capacidades e

    propriedades como valiosas socialmente.

    Existem indicadores, como destacaremos a

    seguir, de que tal condio de segunda classe

    produz impactos e gera reaes distintas nos

    professores. Tal evidncia aponta a necessidade

    de estudos mais sistematizados sobre as relaes

    de reconhecimento social na cultura escolar, no

    entanto, a partir de nossas investigaes, j foi

    possvel visualizar algumas caractersticas

    geradoras de hipteses. Nos casos de

    professores inovadores (FARIA et al, 2010), ficou

    evidente que as relaes de reconhecimento

    social se deram de duas maneiras distintas:

    quando os professores se sentiam desrespeitados

    era desencadeado um processo de luta por

    reconhecimento, que visava a estirpar as

    situaes de desvalorizao; j quando os

    professores so reconhecidos na cultura escolar,

    isso refora a motivao e o investimento na

    construo de sua prtica. Em outro sentido, no

    caso dos professores em estado de

    desinvestimento pedaggico, as formas de

    desrespeito levavam esses docentes a uma

    situao de rebaixamento passivamente tolerado,

    uma vez que no se mobilizavam no sentido de

    lutar pela melhoria de suas condies.

    Nos casos de desinvestimento pedaggico, a

    perspectiva de anlise que a teoria do

    reconhecimento nos oferece a seguinte: diante

    da condio de segunda classe da EF na cultura

    escolar, v-se provocado nos professores da

    disciplina um sentimento de rebaixamento, quer

    dizer, eles no mais concebem a si mesmos

  • B. A. Faria, T. S. Machado & V. Bracht

    Motriz, Rio Claro, v.18, n.1, p.120-129, jan./mar. 2012 128

    como sujeitos de valor igual aos demais membros

    da coletividade da escola. A repercusso disso

    perceptvel no somente no processo de

    construo da identidade desses docentes, mas

    tambm em sua prtica pedaggica e na

    dinmica curricular como um todo.

    Se, por um lado, como aponta Honneth (2003),

    as situaes de desrespeito podem desencadear

    no indivduo uma luta por reconhecimento no

    sentido de restabelecer ou criar novas condies

    intersubjetivas de reconhecimento, no caso dos

    professores em estado de desinvestimento

    pedaggico, a postura assumida parece ser bem

    mais uma posio de cansao ou acomodao.

    como se esses docentes, por razes que nos

    escapam, desistissem da busca por

    reconhecimento (talvez por encontrar

    reconhecimento em outros mbitos da vida, da a

    perda de centralidade do trabalho) ou,

    simplesmente, abdicassem de lutar, retornando

    ou permanecendo no que Honneth (2003) chama

    de situao paralisante de rebaixamento

    passivamente tolerado.

    Nos casos dos professores inovadores (FARIA

    et al, 2010), a luta por reconhecimento se

    ancorava em dois princpios: o da igualdade e o

    da diferena, pois, ao mesmo tempo em que os

    professores lutavam para que a EF fosse

    reconhecida como componente curricular de igual

    importncia, tambm buscavam legitimar sua

    especificidade em relao s outras disciplinas

    escolares.

    Contudo, quando os professores tinham seu

    trabalho reconhecido pela coletividade da escola,

    desencadeava-se uma srie de relaes

    intersubjetivas positivas fundamentais para a

    construo das prticas pedaggicas.

    Primeiramente, pode-se destacar que as relaes

    de reconhecimento se apresentam profcuas para

    a autoria do professor em relao construo de

    seu projeto de ensino. A valorizao do trabalho

    como importante para a formao humana dos

    alunos e o destaque que ele recebe no contexto

    escolar atuam como um forte motivador para o

    professor continuar a investir na sua prtica

    pedaggica.

    Queremos chamar a ateno para o fato de

    que na experincia do reconhecimento social

    que o indivduo encontra uma afirmao positiva

    do valor social de sua identidade. O

    reconhecimento alcanado pelos professores

    inovadores em seus contextos escolares

    possibilita-lhes conceberem-se como bons

    professores e construrem uma identidade

    profissional positiva. O reconhecimento pela

    comunidade escolar proporciona um destaque

    positivo da prtica pedaggica, nesse sentido,

    permitindo que os professores inovadores

    continuem a desenvolver seus projetos e a

    investir em suas prticas.

    Quando uma relao de reconhecimento

    estabelecida, permitido ao professor, alm de

    reconhecer-se como uma pessoa de direito,

    atuante em p de igualdade nas decises

    jurdicas da comunidade escolar, tambm

    reconhecer positivamente suas capacidades e

    propriedades pessoais, o que determina a

    construo de uma autoestima. Honneth (2003, p.

    209) argumenta:

    A auto-relao prtica a que uma experincia de reconhecimento desse gnero faz os indivduos chegar , por isso, um sentimento de orgulho do grupo ou de honra coletiva; o indivduo se sabe a como membro de um grupo social que est em condio de realizaes comuns, cujo valor para a sociedade reconhecido por todos os seus demais membros.

    Consideraes Finais

    No que diz respeito especificamente ao

    componente curricular EF, pode-se perceber um

    grande esforo dos professores para sua maior

    valorizao, tarefa que busca ampliar os padres

    de reconhecimento no imaginrio social dos

    agentes escolares. A condio de segunda

    classe da EF na escola implica que a luta por

    reconhecimento se constitua num elemento

    fundamental da construo das identidades dos

    professores da rea, uma vez que o sentido de

    ser professor de EF tem uma relao estreita

    com as condies de reconhecimento da

    rea/disciplina na escola.

    Isso nos leva a apontar que a teoria do

    reconhecimento social se apresenta, como uma

    importante possibilidade para a compreenso

    tambm do desinvestimento pedaggico (em

    outros estudos nomeado de abandono

    pedaggico), fenmeno no s presente no

    mbito da EF, mas no magistrio como um todo.

    No se trata, no entanto, de atribuir s relaes

    de reconhecimento e no reconhecimento a total

    responsabilidade pelo desencadeamento de tal

    fenmeno. Nesse sentido, o exerccio

    especulativo realizado aqui, mais do que oferecer

    respostas, permite-nos a construo de novas

    hipteses que, somadas aos resultados j

  • A inovao e o desinvestimento pedaggico na Educao Fsica escolar

    Motriz, Rio Claro, v.18, n.1, p.120-129, jan./mar. 2012 129

    encontrados e em constante tenso com aquilo

    que nos mostra a empiria, seguramente nos

    auxiliaro na busca de um maior entendimento do

    problema.

    Entendemos que uma das possveis

    contribuies da teoria do reconhecimento social

    para o campo de estudos sobre a formao de

    professores est localizada na possibilidade de

    conferir maior relevncia aos aspectos normativos

    e aos processos de conflito social que formam as

    identidades dos docentes nas relaes de

    trabalho. As relaes de reconhecimento como

    categoria de anlise nos permitiro visualizar

    como as dimenses morais e ticas confluem

    para o processo de construo da subjetividade

    dos professores.

    Para alm disso, uma srie de questes

    relevantes para compreender a prtica

    pedaggica merecem ser objeto de investigao:

    o reconhecimento social uma condio

    indispensvel para a construo da autonomia

    dos professores na escola? Os professores

    reconhecidos em determinada cultura escolar

    investem mais em seu trabalho docente? Como o

    desrespeito ou a denegao do reconhecimento

    despotencializa as prticas pedaggicas e

    provoca um rebaixamento dos professores, como

    docentes de segunda classe na escola?

    J possvel visualizar que, sendo o

    reconhecimento, em suas trs dimenses, um

    elemento central da vida dos professores nas

    escolas, as polticas educacionais,

    particularmente aquelas relativas formao

    continuada de professores, precisariam, alm da

    continuidade que demonstra respeito, envolver

    ativamente os professores na sua definio e

    gesto como forma de promover o autorrespeito,

    autoconfiana e autoestima fundamentais no

    processo de construo da autonomia dos

    docentes.

    Referncias

    ALVES-MAZZOTTI, A. J. Representaes da identidade docente: uma contribuio para a

    formulao de polticas. Ensaio: avaliao e

    polticas pblicas em Educao, Rio de Janeiro, v. 15, n. 57, p. 579-594, out./dez. 2007.

    FARIA, B. A.; BRACHT, V.; MACHADO, T. S.; MORAES, C. E. A.; ALMEIDA, U. R.; ALMEIDA, F. Q. Inovao pedaggia na educao fsica: o

    que aprender com prticas bem sucedidas. gora

    para la Educacin Fsica y el Deporte, Valladolid, v. 12, p. 11-28, 2010.

    GATTI, B. A. Formao de professores e

    carreira: problemas e movimentos de renovao. Campinas, SP: Autores Associados, 2000 (Coleo Formao de Professores).

    HONNETH, A. Trabalho e reconhecimento: uma

    tentativa de redefinio. Civitas, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 46-67, jan./abr. 2008.

    HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramtica moral dos conflitos sociais. So Paulo: 34, 2003.

    HUBERMAN, M. O ciclo de vida profissional dos

    professores. In: NVOA, A. (Org.). Vidas de

    professores. 2. ed. Portugal: Porto, 1992. p. 31-62.

    MACHADO, T. S.; BRACHT, V.; FARIA, B. A.; MORAES, C. E. A.; ALMEIDA, U. R.; ALMEIDA, F. Q. As prticas de desinvestimento pedaggico

    na Educao Fsica escolar. Movimento, Porto Alegre, v. 16, p. 129-147, 2010.

    MATTOS, P. C. A Sociologia poltica do

    reconhecimento: as contribuies de Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser. So Paulo: Annablume, 2006.

    WERLE, D. L. Reconhecimento e emancipao: a

    teoria crtica de Axel Honneth. Mente, Crebro e

    Filosofia, So Paulo, n. 8, 2008. Endereo: Bruno de Almeida Faria R. M. Eleonora Pereira, 175/102 Jd. da Penha Vitria ES Brasil 29060-180 e-mail: [email protected]

    Recebido em: 7 de outubro de 2010. Aceito em: 17 de junho de 2011.

    Motriz. Revista de Educao Fsica. UNESP, Rio Claro,

    SP, Brasil - eISSN: 1980-6574 - est licenciada sob

    Creative Commons - Atribuio 3.0

    mailto:[email protected]://creativecommons.org/licenses/by/3.0/http://creativecommons.org/licenses/by/3.0