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36 Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006 As forças no avião P ara os físicos, as forças da natu- reza são quatro: a forte, respon- ável pela coesão nuclear, a fraca que produz a radioatividade, a eletro- magnética que está relacionada à maio- ria dos fenômenos com os quais con- vivemos no cotidiano e finalmente a gravitacional que atua entre quaisquer corpos que possuem massa. No jargão aeronáutico também se costuma falar em “quatro forças”. A menção obviamente restringe-se ao mundo particular de quem lida com o vôo e seu conhecimento é funda- mental para que os pilotos possam voar apropriadamente. O vento fluin- do em uma determinada direção em relação ao avião produz uma força sobre o aeroplano chamada de força aerodinâmica total. Uma outra gran- deza intimamente ligada à força aero- dinâmica e também muito importante na descrição do vôo é o ângulo de ataque definido como o ângulo formado pela direção do vento (chamado usualmente de “vento rela- tivo”) e a direção do avião. A força aerodinâmica total pode ser decomposta em duas componen- tes: a sustentação e o arrasto. Além desta, atuam sobre o avião o peso e a força de tração (ou propulsão). Podemos definir mais especifica- mente as quatro forças envolvidas na física do vôo como • Sustentação (S) é a componente da força aerodinâmica perpendicular à direção do movimento do vôo; • Arrasto ( R), essencialmente uma força de atrito, é a componente da força aerodinâmica paralela à dire- ção de vôo; • Peso é a força da gravidade (P=mg) atuando sobre o avião e diri- gida para o centro da Terra; • Tração (T) é a força produzida pelo motor e é dirigida ao longo do eixo longitudinal do avião. Antes de discutir o movimento do avião, é instrutivo calcular as forças de sustentação e arrasto na simples experiência com uma pipa. Para nos- sos propósitos, é suficiente considerar a pipa como uma placa plana de área A. Na Fig. 1, apresentamos as forças atuando sobre a pipa suposta em re- pouso. Nesta situação, a tensão no fio exercida por quem empina a pipa deve ser igual à resultan- te das forças. Consi- derando o sistema ortogonal de coor- denadas orientado na direção da Terra, obtemos , (1) . (2) Se você medir com um dinamô- metro a força sobre o fio T e o ângulo de inclinação θ, você terá uma boa es- timativa das forças de sustentação e de arrasto. É importante notar que o ângulo θ destas equações é o ângulo que o fio da pipa faz com a relação à horizontal e não deve ser confundido com o ângulo que a pipa faz com relação a esta mesma horizontal. Este último é o chamado ângulo de ataque e embora não apareça explicitamente Nelson Studart Departamento de Física, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos e-mail: [email protected] Sílvio R. Dahmen Instituto de Fisica, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre e Physikalisches Institut, Universität Würzburg, Würzburg. e-mail: [email protected] e [email protected] O vôo tem inspirado a imaginação do homem desde tempos remotos. Antes algo restrito a pou- cos, hoje os aviões se tornaram um meio de transporte acessível, fato este comprovado pelo crescimento espantoso do transporte aéreo nos últimos anos. Mesmo com esta popularização a fascinação pelo vôo continua. Assim é sur- preendente como a descrição do vôo não tenha sido usada intensamente em livros didáticos e na sala de aula para demonstrar em todos os níveis de escolaridade a aplicação de princípios básicos da Física em exemplos atraentes. Nada contra as roldanas, os planos inclinados e outros exemplos ideais, que ainda são importantes como maneira de se treinar a abstração e reduzir problemas a seus elementos fundamentais. Mas um exemplo prático de um dia-a-dia cada vez mais próximo das pessoas desempenha sem dúvida um papel essencial ao mostrar para os alunos uma física presente na sua vida. Neste artigo, propomos o exemplo prático e fascinante do vôo para ilustrar conceitos e leis da Física. A física do vôo na sala de aula No jargão aeronáutico costuma-se falar em “quatro forças”: • Sustentação • Arrasto • Peso • Tração

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aerodinamica

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36 Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006

As forças no avião

Para os físicos, as forças da natu-reza são quatro: a forte, respon-ável pela coesão nuclear, a fraca

que produz a radioatividade, a eletro-magnética que está relacionada à maio-ria dos fenômenos com os quais con-vivemos no cotidiano e finalmente agravitacional que atua entre quaisquercorpos que possuem massa.

No jargão aeronáutico também secostuma falar em “quatro forças”. Amenção obviamente restringe-se aomundo particular de quem lida como vôo e seu conhecimento é funda-mental para que os pilotos possamvoar apropriadamente. O vento fluin-do em uma determinada direção emrelação ao aviãoproduz uma forçasobre o aeroplanochamada de forçaaerodinâmica total.Uma outra gran-deza intimamenteligada à força aero-dinâmica e tambémmuito importante na descrição do vôoé o ângulo de ataque definido como oângulo formado pela direção do vento(chamado usualmente de “vento rela-tivo”) e a direção do avião.

A força aerodinâmica total podeser decomposta em duas componen-tes: a sustentação e o arrasto. Alémdesta, atuam sobre o avião o peso e aforça de tração (ou propulsão).

Podemos definir mais especifica-mente as quatro forças envolvidas nafísica do vôo como

• Sustentação (S) é a componenteda força aerodinâmica perpendicularà direção do movimento do vôo;

• Arrasto (R), essencialmenteuma força de atrito, é a componenteda força aerodinâmica paralela à dire-ção de vôo;

• Peso é a força da gravidade(P = mg) atuando sobre o avião e diri-gida para o centro da Terra;

• Tração (T) é a força produzidapelo motor e é dirigida ao longo doeixo longitudinal do avião.

Antes de discutir o movimento doavião, é instrutivo calcular as forçasde sustentação e arrasto na simplesexperiência com uma pipa. Para nos-sos propósitos, é suficiente considerara pipa como uma placa plana de áreaA. Na Fig. 1, apresentamos as forçasatuando sobre a pipa suposta em re-pouso. Nesta situação, a tensão no fio

exercida por quemempina a pipa deveser igual à resultan-te das forças. Consi-derando o sistemaortogonal de coor-denadas orientadona direção da Terra,obtemos

, (1)

. (2)

Se você medir com um dinamô-metro a força sobre o fio T e o ângulode inclinação θ, você terá uma boa es-timativa das forças de sustentação ede arrasto. É importante notar que oângulo θ destas equações é o ânguloque o fio da pipa faz com a relação àhorizontal e não deve ser confundidocom o ângulo que a pipa faz comrelação a esta mesma horizontal. Esteúltimo é o chamado ângulo de ataquee embora não apareça explicitamente

Nelson StudartDepartamento de Física, UniversidadeFederal de São Carlos, São Carlose-mail: [email protected]

Sílvio R. DahmenInstituto de Fisica, UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul, PortoAlegre e Physikalisches Institut,Universität Würzburg, Würzburg.e-mail: [email protected] [email protected]

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O vôo tem inspirado a imaginação do homemdesde tempos remotos. Antes algo restrito a pou-cos, hoje os aviões se tornaram um meio detransporte acessível, fato este comprovado pelocrescimento espantoso do transporte aéreo nosúltimos anos. Mesmo com esta popularizaçãoa fascinação pelo vôo continua. Assim é sur-preendente como a descrição do vôo não tenhasido usada intensamente em livros didáticos ena sala de aula para demonstrar em todos osníveis de escolaridade a aplicação de princípiosbásicos da Física em exemplos atraentes. Nadacontra as roldanas, os planos inclinados e outrosexemplos ideais, que ainda são importantescomo maneira de se treinar a abstração e reduzirproblemas a seus elementos fundamentais. Masum exemplo prático de um dia-a-dia cada vezmais próximo das pessoas desempenha semdúvida um papel essencial ao mostrar para osalunos uma física presente na sua vida. Nesteartigo, propomos o exemplo prático e fascinantedo vôo para ilustrar conceitos e leis da Física.

A física do vôo na sala de aula

No jargão aeronáuticocostuma-se falar em

“quatro forças”:• Sustentação• Arrasto• Peso• Tração

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nas Eqs. 1 e 2, ele entra implicitamentenas fórmulas que determinam asustentação S e o arrasto R. Além dis-so quem já empinou sabe que a ten-são no fio depende da velocidade dovento. Assim também as forças desustentação e arrasto, como veremosmais à frente.

Voltemos ao avião. A Fig. 2 é umarepresentação esquemática das quatroforças quando o avião está subin-do [1].

A Fig. 3 mostra o avião na descidarápida com o motor fornecendo aindaalguma potência.

Para um avião que está niveladoem vôo de cruzeiro com velocidadeconstante (cerca de 900 km/h a10.000 m de altitude) a resultante dasforças é nula e devemos obter S = P eT = R.

No entanto na subida ou nadescida a situação é bastante diferente.Por exemplo, na subida a uma veloci-dade constante e a uma taxa de ascen-

são constante, o diagrama de forçasreferente às forças da Fig. 2 com osistema de coordenadas orientado nadireção longitudinal do avião (eixo x)indica que

, (3)

. (4)

Durante a descida e novamentesupondo que não existe aceleração emqualquer direção temos que

S - P cosθ = 0, (5)

T + P senθ - R = 0. (6)

A Eq. 4 indica que, na descida, asustentação é menor do que o peso doavião, como se pode supor à primeiravista, já que a força da gravidade deveser a responsável pela “queda” do avião[2]. Curiosamente, o mesmo acontecena subida. Para qualquer ângulo de ata-que, a sustentação é menor do que opeso como mostram a Eqs. 4 e 6, setornando igual apenas para vôonivelado. Este resultado deve surpre-ender muitos estudantes que, em ge-ral, têm a idéia preconcebida de quepara que um avião suba, a força de sus-tentação deve exceder o peso do avião.Pergunte a opinião de seus estudantesantes de iniciar a aula.

A situação acima discutida é aná-loga ao caso, descrito na ampla mai-oria dos livros didáticos, de blocossendo arrastados para cima ou escor-regando em rampas com atrito. Aforça normal neste caso correspondeà força de sustentação e curiosamentenão nos surpreendemos com o fatoda normal N (o análogo à força S nonosso caso) ser menor que o peso P. A

diferença marcante é que enquanto asforças aerodinâmicas dependem davelocidade e do ângulo de ataque, aforça normal e a força de atrito sãoconstantes.

Há dois outros pontos interessan-tes que merecem uma discussão: tal-vez para os alunos seja mais “intuiti-vo” decompor as forças nos eixos x ey num referencial do observador nosolo e não em um referencial relativoaos eixos do avião. Neste caso asEqs. 3 e 4 passam a serem escritas naforma

, (7)

. (8)

Neste caso podemos ver pela Eq. 8que se a tração for maior que o ar-rasto, então a diferença (T - R) sen θ éexatamente o termo extra que se adi-ciona à sustentação para contrabalan-çar o peso. Pergunte aos seus alunoso que aconteceria se T = R. O aviãolevantaria vôo?

Um outro ponto interessante quepode gerar alguma confusão deve serdestacado. A posição do avião naFig. 3 é típica de um procedimento dedescida rápida e não de pouso. Pode-mos imaginar as conseqüências se umavião pousasse nesta posição. Por estemotivo pouco antes da aterrissagemo avião se posiciona como na Fig. 2.Para ilustrar este ponto realçamos naFig. 4 as forças atuando sobre umaeroplano em uma descida lenta parapouso em atitude de nariz elevadocom o motor ainda gerando uma pe-quena tração.

Neste caso, embora as Eqs. 3 e 4

A física do vôo na sala de aula

Figura 1. Forças atuando sobre uma pipade seção reta com área A.

Figura 2. Forças sobre um avião no procedimento de subidacom velocidade constante e taxa de ascensão constante.

Figura 3. Forças sobre um avião no procedimento de descidacom velocidade constante e taxa constante.

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continuem válidas (ou as Eqs. 7 e 8,dependendo do referencial que esco-lhermos), a analogia com o planoinclinado deixa de ser válida emfunção da direção do vôo, isto é, domovimento do avião. Outro pontofundamental é que durante o proce-dimento de pouso o avião muda aconfiguração das asas (usando oschamados flaps), tornando assim aárea efetiva da asa maior. Isto temconseqüências importantes para osvalores das forças de sustentação earrasto, que dependem da geometriadas asas e da velocidade do avião,como já pudemos explicar. Assim osvalores de S, T e R que aparecem nasequações são diferentes das outrassituações discutidas.

Sugerimos que, na discussão dasleis de Newton, o equilíbrio de forçasseja discutido de um modo maisatraente e motivador usando umobjeto tão fascinante como o avião pa-ra ilustrar um aparato tradicionalcomo o “bloco sobre o plano incli-nado”.

Forças dependentes davelocidade

É comum associarmos o nome deIsaac Newton (1642-1727) à mecâ-nica, em particular à mecânica decorpos rígidos ou à teoria da gravita-ção, bem como à óptica. Porém suascontribuições à dinâmica de fluidos eà hidrostática foram fundamentais,embora nem sempre tão lembradasquanto suas outras contribuições.Este “esquecimento” é algo recorrentena história das ciências, uma vez quegrandes cientistas muitas vezes pro-vocam mudanças tão profundas emseus campos de trabalho que outrascontribuições também importantespor eles dadas acabam ficando em se-gundo plano.

A mecânica de fluidos era um im-portante tema de pesquisa à epoca deNewton em particular não menos de-vido à teoria do éter. Embora possa-mos encontrar asraízes do conceitode éter na filosofiados pensadores gre-gos, foi René Des-cartes (1596-1650)quem pela primeiravez tentou introdu-zir de forma des-critiva o conceito deéter em Física comoum elemento indis-pensável à realidade física do universo.Para Descartes toda a matéria douniverso era formada a partir de umaproto-matéria que se manifestava detrês formas: a matéria da qual eramformados o Sol e estrelas, a matériaque formava os planetas e cometasbem como um meio intermediário,que preenchia todo o espaço e inter-mediava as forças entre todos os cor-pos. Por isso a necessidade de se desen-volver uma teoria deste “meio inter-meário”, uma tentativa que manteveos físicos ocupados até a segunda me-tade do século XIX. Segundo o histo-riador John Anderson Jr. em suacelebrada obra A History of Aerody-namics (Cambrigde University Press,1997), o interesse em hidrodinâmicapor parte de Newton não foi devido arazões práticas, mas com o intuito demostrar a inadequação do modelo deDescartes para o sistema solar que erabaseado na hipótese de que o éter mo-via-se como vórtices em torno dosplanetas. A única explicação possívelpara o movimento regular e periódicodos planetas, de acordo com as obser-vações de Johannes Keppler (1571-1630), era que os corpos celestes mo-vendo-se no éter não sofreriam arras-

to aerodinâmico. Newtondevotou-se a mostrar quesempre existiria um arrastofinito sobre os corpos (inclu-sive os celestes) movendo-seem um meio contínuo.

As contribuições deNewton para aerodinâmicaaparecem no livro II dosPrincipia que trata exclusi-vamente da dinâmica dos

fluidos e da hidrostática. Na Proposi-ção 33 ele mostrou que corpos mo-vendo-se em um fluido sofrem“resistências em uma razão composta

da razão do quadra-do de suas veloci-dades, e uma razãodo quadrado de seusdiâmetros e umarazão simples dadensidade das partesdos sistemas”. Estaé a lei do quadrado-da-velocidade para aforça aerodinâmicade um corpo em um

fluido. Ao mesmo tempo, Newtonmostrou que esta força era propor-cional à área da seção reta A (“a razãodo quadrado de seus diâmetros”) evaria diretamente com a densidade (“arazão simples das densidades”). Emnotação moderna, podemos escrever

Fr ∝ ρAv2. (9).

Ao final do século XIX, a essênciadesta fórmula estava justificada tantodo ponto de vista teórico como expe-rimental. As equações para as forçasde sustentação e arrasto podem, en-tão, ser escritas como

, (10)

e

, (11)

em que CL e CR são os coeficientes desustentação e arrasto respectivamentee o fator 1/2 foi introduzido por con-venção. A questão crucial era (e per-manece de certo modo até hoje!)determinar como estes coeficientes de-pendem do ângulo de ataque. FoiNewton o primeiro a calcular esta de-pendência. O modelo de Newton paraum fluido correspondia a uma coleçãode partículas individuais que ao sechocar diretamente contra a superfíciede um corpo perdiam as componentesdos momentos lineares na direçãonormal e seguiam na direção tangenteà superfície do corpo. Com base nestemodelo, ele mostrou na Proposição 34que

Fr = ρv2A sen2θ. (12)

Esta é a lei do seno-quadrado de

A física do vôo na sala de aula

Figura 4. A direção das quatro forças em uma descidapara pouso em atitude de nariz elevado.

É comum associarmos onome de Isaac Newton àmecânica, em particular àmecânica de corpos rígidosou à teoria da gravitação,bem como à óptica. Porém

suas contribuições à dinâmicade fluidos e à hidrostática

foram fundamentais, emboranem sempre tão lembradas

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Newton. Adaptando este resultadopara uma asa na forma de uma placaplana, como a pipa ilustrada na Fig. 1,e decompondo a força aerodinâmicaem suas componentes temos que(Fig. 5)

S = Fr cosθ = ρv2Asen2θcosθ, (13)

R = Frsenθ = ρv2Asen3θ, (14)

e, finalmente,

. (15)

Estes cálculos de Newton levarama predições muito pessimistas comrelação à possibilidade de vôo do mais-pesado-que-o-ar porque elas previamuma força de sustentação muitopequena, para pequenos ângulos deataque, por causa da dependência dotipo seno-quadrado. Se a opção fosseaumentar o ângulo de ataque θ, a ra-zão S/R decresceria bastante. A outraopção seria aumentar a área da asa.Neste caso seriam necessárias asasgigantescas que tornariam imprati-cáveis as máquinas voadoras. O mo-delo do Newton não descreve de modoadequado um fluido e, portanto, feliz-mente suas predições estavam erra-das. Mas, mesmo assim, estes argu-mentos foram utilizados pelos físicosao final do século XIX para descartara possibilidade concreta de vôo domais pesado-que-o-ar.

Atenção! O modelo de Newtonde um fluido constituído de umacoleção de partículas colidindo comparedes na forma exposta acima estáerrado. Alguns textos ainda incorremno erro de explicar sustentaçãoatravés dos choques das moléculas doar incidindo sobre as asas. Um fluidoé corretamente descrito através de ummodelo descrito em termos de funçõescontínuas como velocidades, densi-dades e campos de tensão. As equações

equivalentes às equações do movi-mento de Newton para partículas sãoas equações de Euler referentes à con-servação da massa, do momento e daenergia.

Fator de carga gOutra situação que merece discus-

são em sala de aula é o movimento doavião durante uma curva [3]. Quandoas asas se inclinam de um ângulo φ,como mostrado na Fig. 6, uma com-ponente da força de sustentação apon-ta na direção do centro da curvaoriginando uma força centrípeta Fc =mv2/r, em que m é a massa do avião, va sua velocidade e r o raio da trajetóriacircular.

Do equilíbrio das forças temos que

, (16)

P = mg = S cosφ, (17)

de forma que

. (18)

O ângulo de inclinação é, portan-to, determinado de maneira única pa-ra uma determinada curva. Outraconclusão muito interessante pode serobtida substituindo a velocidade naEq. (16) pelo seu valor na Eq. (18). Oresultado é

S = mg secφ = mg’, (19)

tal que

g’ = g secφ. (20)

Este é o valor efetivopara a aceleração dagravidade em um aviãorealizando uma curvaque é maior que a ace-leração da gravidadepor um fator de secφ.Para uma curva comângulo de inclinação de60° corresponde a 2g.Este fator de carga (nojargão aeronáutico) quea estrutura do aviãodeve suportar e os pilo-tos (assim como os pas-sageiros) “sentem” temconsiderável importân-

cia prática. Os aviões de caça (F16, porexemplo) chegam a atingir inacre-ditáveis 9g.

SustentaçãoDas quatro forças, a mais funda-

mental para o vôo é a força da sus-tentação. E a explicação, em termossimples, de como ela pode ser enten-dida tem sido alvo de inúmeras con-trovérsias na literatura e conceitoserrôneos têm sido empregados [9]. Eisa questão: Princípio de Bernoulli ouleis de Newton para explicar como asasas de um aeroplano “realmente”funcionam? Na verdade, Newton eBernoulli não se contradizem e tantoas leis de Newton quanto o “princípio”de Bernoulli são perfeitamente com-patíveis. Aliás a equação de Bernoullié facilmente obtida como uma equa-ção de conservação de energia a partirdas leis de Newton. A raiz da discórdiaé que cada lado da disputa exige queapenas a sua interpretação deva serensinada, posto que seria “a correta”.Ambas as descrições podem e devemser usadas. O ar, ao ser defletido pelaasa, é acelerado para baixo exercendoforça sobre a asa (2ª lei de Newton).Esta por sua vez, exerce uma força dereação (3ª lei de Newton) que originaa sustentação. Por outro lado, aslinhas de corrente acima da asa estãomais comprimidas que as linhas abai-xo da asa. Como conseqüência, a velo-cidade do ar acima da asa é maior doque a de baixo da asa. É como apertara saída de uma mangueira: a água jor-ra com mais velocidade [5]. Pela

A física do vôo na sala de aula

Figura 5. Decomposição da força aerodi-nâmica atuando sobre uma placa planapara ilustrar a lei do seno-quadrado deNewton.

Figura 6. Avião em uma curva de raio r inclinado lateral-mente (movimento conhecido como rolamento).

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equação de Bernoulli P + (1/2)ρv2 =constante, onde P é a pressão e ρ adensidade do ar, há uma diferença depressão que causa a força de susten-tação.

Dois graves erros carecem ser real-çados. O primeiro que aparece em vá-rios livros didáticos (talvez a explica-ção mais popular) usa a hipótese deque os tempos de trânsito do ar, porcima e por baixo da asa, são iguais.Daí, como a superfície superior da asaé, em geral, mais longa, a velocidadedo ar acima é maior do que a veloci-dade abaixo. A solução numérica dasequações da aerodinâmica e a expe-riência demonstram que esta hipótese,embora plausível, é falsa. A Fig. 7

mostra as linhas de corrente sobre umaerofólio em um túnel de vento emque o fluxo torna-se visível devido àintrodução de fumaça. Evidencia-seclaramente que a concepção de “tem-pos iguais” ou “distância percorridamaior por cima da asa” é uma falácia.Na verdade o ar que flui pelo extra-dorso (a parte superior) da asa chegaao bordo de fuga antes que o ar queflui ao longo do intradorso (a parteinferior).

É muito comum encontrar-se emlivros didáticos e sítios na Internetuma explicação baseada na descriçãode uma força sobre a asa que não cau-sa nenhuma perturbação na correntede ar. Observe a Fig. 8. A ilustraçãomostra que as linhas de corrente apóso bordo de fuga, são paralelas às li-nhas do fluxo incidente. Se, sobre aasa, age uma força para cima paracompensar o peso do avião, o ar deveser acelerado para baixo de modo aproduzir a força de reação (a susten-tação), Assim, o fluxo após a saídada asa nunca pode estar na direçãoparalela ao fluxo incidente. Uma sim-ples aplicação das leis de Newton.

A discussão da Fig. 8 na sala deaula pode possibilitar uma aprendi-zagem mais significativa das leis de

A física do vôo na sala de aula

Figura 7. Linhas de corrente do ar atravésde uma asa em túnel de vento.

Figura 8. Distribuição esquemática das li-nhas de corrente através de uma asa.ERRADO!

Newton.O cenário correto é mostrado na

Fig. 9 em que as linhas de fluxo acom-panham a superfície superior e se-guem para baixo após deixarem o bor-do de fuga. A Fig. 9 ainda exibe clara-mente o fato de que o espaçamentoentre as linhas na parte superior émenor do que na parte inferior, que éessencial para o emprego correto doprincípio de Bernoulli na explicaçãoda sustentação das asas.

Movimento relativoOutra aplicação interessante do

vôo para fins didáticos concerne aomovimento relativo. É um temapouco abordado no ensino da mecâ-

Embora a discussão a seguir es-teja um pouco acima do nível dealunos do Ensino Médio, é importan-te que façamos alguns comentáriosa respeito dos coeficientes de arrastoe sustentação em situações práticas(o projeto de aviões) por uma ques-tão de completeza. Na vida real asEqs. 10 e 11 são normalmente usa-das como as definições dos coeficien-tes de sustentação CL e de arrasto CR,que podem então ser determinadosexperimentalmente, uma vez queseu cálculo teórico pressupõe umasérie de idealizações e nos dá resul-tados que podem diferir sobremanei-ra quando tratamos de aviões reais.A maioria dos livros-texto de mecâ-nica de fluidos que trazem umcapítulo sobre “aerofólios” normal-mente introduzem para tanto o fa-moso teorema de Kutta-Joukovski

que relaciona l, a sustentação porunidade de comprimento da asa (suaenvergadura) com a chamada circu-lação Γ do ar em torno da asa, maisespecificamente,

l = ρ v Γ (B1)

em que v é a velocidade do vento rela-tivo. Esta circulação é definida de ma-neira semelhante à circulação do cam-po elétrico ou magnético em eletro-magnetismo, com a diferença que aintegral da circulação é sobre a velo-cidade do ar ao longo de uma curvafechada. Com este teorema é possívelcalcular CL. Porém a teoria de aerofó-lios (e o teorema acima) parte do pres-suposto que a asa tem envergadurainfinita pelo simples motivo que nestecaso o perfil das linhas de corrente dear são iguais ao longo da envergadurada asa - em aviões de verdade o perfil

de correntes varia à medida que nosdeslocamos sobre a asa, da fuse-lagem até a sua ponta, o que tornaassim o cálculo da circulação de certomodo pouco útil. Esta variação dacirculação é inclusive um dos moti-vos pelos quais aviões modernospossuem uma extensão vertical naponta das asas (as chamadaswinglets) que contribuem para umaumento efetivo da área das asas etêm um papel importante na mini-mização de vórtices que normal-mente se formam na ponta de asasnormais e afetam a sustentação. Co-mo dissemos, podemos “definir” ocoeficiente de arrasto da Eq. (11)como

. (B2)

Sustentação e arrasto em asas reais

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Figura 9. Distribuição esquemática das li-nhas de corrente através de uma asa.CERTO!

Figura 10. Composição de velocidades no referencial do solo.

A física do vôo na sala de aula

nica do Ensino Médio, mas de funda-mental importância para a discussãodo princípio da relatividade de Galileu,mais conhecido como a lei da inércia.A velocidade de um corpo depende dosistema de referência. A composiçãodas velocidades leva à conhecida lei daadição de velocidades de Galileu (quevai ser modificada por Einstein na teo-ria da relatividade especial). Na aero-dinâmica a velocidade relativa é umconceito-chave, pois, como vimos, aforça aerodinâmica depende do qua-drado da velocidade relativa do objetoem relação ao ar.

Na Fig. 10 o sistema de referência

O termo ρv2/2 é conhecido comopressão dinâmica e por definiçãopodemos dizer que o coeficiente dearrasto é assim a razão entre o ar-rasto e a força resultante do produtoda pressão dinâmica pela área (apressão dinâmica quando mul-tiplicada pela área de nosso corpo éa força que sentimos nos voltandocontra o vento). A área A nestaequação é a chamada “área de refe-rência” que pode ser tanto a área realda superfície da asa como a chamada“área frontal do avião”, que seria aárea que o avião ocupa quando oolhamos de frente. Para aviões reaiscostuma-se separar a Eq. B2 em doistermos

(B3)

em que o termo CR0 é a parte do coe-ficiente que depende da viscosidadedo ar e da forma da asa. O segundotermo é o chamado “arrasto indu-zido” e surge nas asas devido à sus-tentação. Como ele surge? Bem, com

a diferença de pressão do ar que fluipelo extradorso e o intradorso, naponta da asa, onde estas duas “lâmi-nas” de ar se encontram, o ar de baixo(pressão maior) é empurrado paracima (onde a pressão é menor), o queacaba provocando um redemoinho(turbulência) que contribui para oarrasto - e agora fica claro o porquêdos aviões modernos utilizaremwinglets, cuja função é eliminar esseefeito na ponta da asa. As outrasgrandezas no segundo termo da Eq.(B3) são a razão de aspecto da asa e ofator de eficiência de envergadura. Arazão de aspecto é a razão entre oquadrado da envergadura s2 e a áreada asa A, ou seja, Ar = s2/A. Destemodo, se quisermos diminuir oarrasto induzido, temos que aumen-tar a razão de aspecto (aumentar aenvergadura e diminuir a área). Porisso planadores têm uma asa longa edelgada, pois uma vez que não pos-suem motor, eles têm que tentar dimi-nuir ao máximo o arrasto induzidoproduzido pela sustentação. O fator

de eficiência e depende de como a sus-tentação varia ao longo do compri-mento da asa. A maioria dos aviõesatuais possui e < 1. Porém, o grandepioneiro da aerodinâmica, LudwigPrandtl, mostrou que se a corda deuma asa variasse elipticamente dafuselagem à ponta, então e = 1 eneste caso era possível diminuir o ar-rasto induzido. Ou seja, olhando aasa de baixo ela tem o perfil de umaelipse. Uma forma aproximada de“asa elíptica” foi usada durante a IIGuerra Mundial nos famosos caçasSpitfire ingleses e nos bombardeirosHeinkel 111 alemães. Embora vanta-josa do ponto de vista de eficiência,estas asas apresentam um proble-ma: sendo a sustentação pratica-mente constante ao longo do com-primento da asa, quando o aviãoentra em condições de estol (termotécnico para designar a perda desustentação) ele o faz simulta-neamente em todo ponto da asa, oque pode levar a uma perda súbitado controle da aeronave.

é o solo e, portanto temos que

vavião-ar = vavião-solo - vvento (21)

No caso em que o sistema de refe-rência é o avião não podemos medirdiretamente a velocidade do vento,mas podemos calculá-la a partir darelação entre as velocidades do aviãocomo

vvento = vavião-ar - v avião-solo (22)

A importância da velocidade rela-tiva explica por que os aviões decolame aterrissam em diferentes pistas depouso em diferentesdias. Os aviões visam afazer a decolagem eaterrissagem contra ovento que exige umamenor velocidade emrelação ao solo para sertransportado no ar. Istosignifica uma distânciamais curta a ser per-corrida ao longo dapista. Como as pistastêm comprimento fixo,é conveniente que o

avião esteja no ar tão rápido quantopossível na decolagem e consiga parartão cedo quanto possível na aterris-sagem. No caso da aterrissagem eletem que, uma vez em solo, desacelerare isto é possível com um forte ventocontra (maior arrasto). Também osaviões modernos utilizam os “contro-les de superfície de asa”, que são partesmóveis que no pouso servem comobreques aerodinâmicos.

Peça a seus alunos também que,se um dia tiverem a oportunidade devoar, que olhem as informações de

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42 Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006

Notas e Referências[1] G.J. Flynn, The Physics Teacher 25,

setembro, 368 (1987).

[2] Pilotos profissionais costumam dizer,jocosamente, que um pouso nadamais é que uma queda controlada - oque não deixa de ser uma verdade!Obviamente, como as equações acimanos indicam, trata-se de uma queda avelocidade constante.

[3] N.H. Fletcher, Physics Education 10,julho, 385 (1975).

[4] Sobre a sustentação das asas, veja osartigos de Anderson e Eberhardt (p.43) e Eastlake (p. 53) bem como o deKlaus Weltner, Martin Ingelman-Sundberg, Antonio Sergio Esperidiãoe Paulo Miranda na Revista Brasileirade Ensino de Física 23, 429 (2001).Deve-se mencionar que o Prof. Welt-ner tem sido um dos mais insistentescríticos do uso da equação de Bernoullipara a explicação do fenômeno dasustentação aerodinâmica. Na Ref. 6,você encontrará uma lista de suaspublicações sobre o tema.

[5] Ver artigo de Eastlake neste número,p. 53.

[6] O sítio http://www.physics.umd.edu/lecdem/services/refs/refsf.htmapresenta uma lista exaustiva deartigos e sítios sobre a física do vôo.

[7] O sítio da Nasa http:www.grc.nasa.gov/WWW/K-12/airplane/ contémmaterial de excelente qualidade paratodos os níveis escolares. Os appletspodem ser baixados gratuitamente.

vôo normalmente fornecidas nos mo-nitores de bordo ou transmitidas pelocomandante. A referência é sempre à“velocidade em relação ao solo”, por-que para um passageiro na verdade estaé a que importa, pois determinaquando ele chegará ao objetivo dese-jado. Esta velocidade pode ser muito di-ferente da velocidade do avião em re-lação ao ar em função da presença doschamados ventos de proa ou ventos depopa. Para viagens de longa distância,estes ventos podem aumentar ou dimi-nuir a duração da viagem em horas.

Observe que as velocidades consi-deradas são grandezas vetoriais. Destemodo, o material aqui discutido podeentão ser estendido para tratar proble-mas de navegação aeronáutica queenvolvem composição vetorial de

Figura 11. Composição de velocidades no referencial do avião.

acordo com os objetivos do programaestabelecido para a série escolar.

ConclusõesDiscutimos neste artigo como a

Física do vôo pode ser usada para ilus-trar alguns conceitos como composi-ção de forças, forças dependentes davelocidade e sistemas de referência emum exemplo bastante prático e inte-ressante [6,7]. Procuramos chamartambém a atenção para alguns con-ceitos errôneos comumente propa-gados em livros didáticos, como ochamado “princípio dos tempos detrânsito iguais”. Embora alguns dosassuntos aqui discutidos, em particu-lar a questão do coeficiente de arrastoe sustentação, possam estar umpouco além da compreensão de alu-

nos do nível médio, éimportante que os pro-fessores tenham estesconceitos em menteuma vez que as teoriasde aerofólios encontra-das nos livros-texto ser-vem de pontos de refe-rência e são desenvolvi-das a partir de idealiza-ções de casos reais. Porfim, este artigo nãoconstitui uma contri-buição original ao ensi-no de Física, no sentido

A física do vôo na sala de aula

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em que os temas já foram abordadosnas referências aqui citadas.