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  • Revista Voluntas: estudos sobre Schopenhauer 2 semestre 2010 Vol. 1 N 2 ISSN: 2179-3786 - pp. 23-32

    Algumas consideraes sobre a questo do suicdio na filosofia de ArthurSchopenhauer

    lcio Jos dos SantosMestrando em Filosofia pela UFPR

    Para Viviane

    RESUMO: O objetivo do presente texto abordar algumas questes referentes posio deSchopenhauer acerca do suicdio. Se viver sofrer, somente a dor positiva, vida e morte so merasiluses. Se o mundo constitui o inferno, seria o suicdio a forma mais eficiente de escapar aomartrio da vida? De acordo com o filsofo, no. O suicdio no passa de um equvoco, pois aodestruir o corpo o indivduo no nega a Vontade, mas a afirma, sendo que o corpo apenas ofenmeno dessa Vontade. No entanto, tambm no h motivos para o suicdio ser considerado umcrime. A moral utilizada pelos filsofos europeus no tem bases para conden-lo, mas somente apartir de um ponto de vista asctico que podemos entender porque errado matar a si prprio.PALAVRAS-CHAVE: Suicdio; Sofrimento; Ascetismo.

    ABSTRACT: The purpose of this text is to address certain issues regarding the position ofSchopenhauer about suicide. If life is suffering, only the pain is positive, life and death are mereillusions, if "the world is a hell," would be suicide the most efficient way to escape the martyrdomof life? According to the philosopher, dont, suicide is just a mistake, because destroying the bodydoes not negate the individual's Will, but corroborate it, because the body is only the phenomenonof the Will. But there is no reason to consider suicide a crime, the morality used by Europeanphilosophers have no basis to condemnate it, but only from an ascetic point of view we canunderstand because its wrong to kill himself.KEYWORDS: Suicide; Suffering; Asceticism.

    S existe um problema filosfico realmente srio: o suicdio. Julgar se a vidavale ou no vale a pena ser vivida responder questo fundamental da

    filosofia. O resto, se o mundo tem trs dimenses, se o esprito tem nove ou dozecategorias, aparece em seguida.

    Albert Camus1

    1. O pesadelo da existncia e o sofrimento do mundo

    Se o sentido mais prximo e imediato de nossa vida no o sofrimento,nossa existncia o maior contra-senso do mundo. Pois constitui umabsurdo supor que a dor infinita, originria da necessidade essencial vida, de que o mundo est pleno, sem sentido e puramente acidental.Nossa receptividade para a dor quase infinita, aquela para o prazerpossui limites estreitos. Embora toda infelicidade individual aparea comoexceo, a infelicidade em geral constitui a regra.2

    1 CAMUS, Albert. O mito de Ssifo, p. 17.2 SCHOPENHAUER, A. P, Contribuies Doutrina do Sofrimento do mundo, 148, p. 277.

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  • SANTOS, lcio Jos dos

    Em sua obra magna, O Mundo Como Vontade e como Representao,

    Schopenhauer desenvolve uma rica argumentao acerca da condio do homem no

    mundo, de uma forma radicalmente oposta aos filsofos tidos como otimistas (como, por

    exemplo, Leibniz). Para Schopenhauer, a Vontade3 a precursora de todo o sofrimento do

    ser humano, desejo cego, irresistvel, tal como a vemos mostrar-se no mundo bruto, na

    natureza vegetal e suas leis e o que ela quer sempre a vida, isto , a pura manifestao

    dessa vontade. O mundo tal qual nos apresentado fenomenicamente nada mais que a

    objetivao dessa Vontade4 regida pelo princpio de individuao e pelo de razo suficiente.

    O primeiro princpio compreendido pelo espao e tempo, que permitem a pluralidade dos

    fenmenos e a sua sucesso; o segundo o princpio de razo, que aparece tambm como

    lei de causalidade5, e explica porque os fenmenos dados na representao se manifestam

    de uma determinada maneira e no de outra.

    Enquanto fenmeno - objetivao da Vontade - o indivduo deseja e, por desejar (no

    sentido de buscar por algo), sofre. Todo desejo condio preliminar de todo prazer e tal

    desejo s pode advir de uma privao, uma vez que no possvel desejar aquilo que j

    temos. Quando no obtemos algo que desejamos, sofremos, e todo sofrimento pode ser

    considerado uma dor. Bziau6 nos explica que, para Schopenhauer, enquanto coisa em si a

    Vontade una e indestrutvel, mas ao se objetivar no homem e na natureza ela se faz

    mltipla. Se cada objetivao particular tambm precisa se afirmar, o far negando as

    demais, em outras palavras, o mundo fenomnico pode ser considerado uma verdadeira

    arena de batalha entre fenmenos particulares que tentam se afirmar enquanto parte da

    Vontade. Schopenhauer nos mostra que a partir dessa individuao que surge o egosmo.

    Quando afirmamos nosso apego ao corpo de que somos dotados, quando afirmamos nossa

    3 Utilizo Vontade com a primeira letra em maiscula para efeito de distino entre o simples ato volitivo deum sujeito particular e o impulso cego, que anima o mundo.4 SCHOPENHAUER, A. MVR I, 54, p. 359.5 Schopenhauer adota a forma j empregada por Wolff: nihil est sine ratione, cur potius sit quam non sit (nada sem razo de ser ou no ser). Se encontra explicado de forma bastante detalhada em sua dissertao Sobre aqudrupla raiz do princpio de razo suficiente, 20: I call it the Principle of Sufficient Reason ofBecoming, principius rationis sufficientis fiendi. By it,all the objects presenting themselves within the entirerange of our representation are linked together, as far as the appearance and disappearance of their states areconcerned, i.e. in the movement of the current of Time, to form the complex of empirical reality. [Eu ochamo Principio de Razo Suficiente do Devir, principius rationis sufficientis fiendi. Por ele todos os objetossituados no campo de nossas representao total esto ligados, tanto na apario quanto no ocultamento, emcausa, isto , na direo do correr do Tempo, forma do complexo de realidade emprica.] - Traduo minha.6 BZIAU, J-Y. O suicdio segundo Arthur Schopenhauer, in Discurso, n28, 1997, p. 129.

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  • Revista Voluntas: estudos sobre Schopenhauer 2 semestre 2010 Vol. 1 N 2 ISSN: 2179-3786 - pp. 23-32

    vontade, nos isolamos dos outros, e essa uma atitude egosta ocasionada pela iluso da

    individuao.7 O sujeito acredita ser uno e distinto dos demais em sua essncia, mas sua

    natureza pertence mesma origem de todas as coisas que se apresentam no mundo, ou seja,

    apenas uma nfima parte da Vontade.

    Trabalho, aflio, esforo e necessidade constituem durante toda a vida asorte da maioria das pessoas. Porm se todos os desejos, apenasoriginados, j estivessem resolvidos, o que preencheria ento a vidahumana, com que se gastaria o tempo? Que se transfira o homem para umpas utpico, em que tudo crescesse sem ser plantado, as pombasrevoassem j assadas, e cada um encontrasse logo e sem dificuldade a suabem-amada. Ali em parte os homens morrero de tdio ou se enforcaro,em parte promovero guerras, massacres e assassinatos, para assim seproporcionar mais sofrimento do que o posto pela natureza. Portanto, parauma tal espcie, como a humana, nenhum outro palco se presta, nenhumaoutra existncia.8

    Na viso do filsofo, o ser humano um animal volitivo por excelncia9 e est

    inevitavelmente fadado ao sofrimento, visto que a felicidade (...) realmente e na sua

    essncia apenas algo de negativo; nela no h nada de positivo, pois a satisfao tem de

    ser a satisfao de um desejo ou trmino de uma dor, e o desejo (privao) a condio

    preliminar de todo prazer. Ora com a satisfao cessa o desejo, e, por consequncia,

    tambm o prazer.10 Como a Vontade impulso cego e, ao mesmo tempo, autofgica, os

    desejos s podem cessar por um breve perodo de tempo, donde sobrevm o tdio e, to

    logo cesse o tdio, o indivduo volta a querer e, consequentemente, a sofrer. Nas palavras

    de Schopenhauer: a vida oscila como um pndulo, para aqui e para acol, entre a dor e o

    tdio, os quais em realidade so seus componentes bsicos.11

    Segundo Schopenhauer, a soluo para o problema do sofrimento seria enxerg-lo

    tal como os homens santos e, atravs da vontade de afirmao do eu individual, tomar

    conscincia da iluso da individuao, compartilhando da dor do mundo inteiro. Ao

    compreender que a individuao apenas uma iluso e que somente a negao da Vontade

    de vida pode pr termo dor e ao sofrimento, o homem se torna livre. Um indivduo que

    7 SCHOPENHAUER, A. MVR I, 65, p. 462.8 SCHOPENHAUER, A. P, Contribuies Doutrina do Sofrimento do mundo, 152, p. 279.9 SCHOPENHAUER, A. MVR I, 57, p. 401.10 SCHOPENHAUER, A. MVR I, 58, p. 411.11 SCHOPENHAUER, A. MVR I, 57, p. 402.

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  • SANTOS, lcio Jos dos

    alcance tal estado de conscincia, por mais pobre, destitudo de alegria e cheio de privao

    que seja o seu estado quando visto de fora, , no entanto cheia de alegria interior e

    verdadeira paz celestial.12

    2. Suicdio x Ascese

    Diante de tantos horrores e da perspectiva de um destino que pode guardar

    doenas, perseguies, empobrecimento, fome, morte, mutilao, cegueira, loucura, dentre

    outras desgraas, uma alternativa que surge mente do indivduo o suicdio. Em O

    Mundo Schopenhauer nos apresenta sua teoria sobre o suicdio no 69, retoma ainda essa

    temtica nos captulos V e VII de Sobre o Fundamento da Moral, e no captulo 13 da obra

    Parerga e Paralipomena. Em O Mundo, se preocupa principalmente em nos esclarecer os

    aspectos fundamentais de seu sistema filosfico relacionando os temas entre si e, portanto,

    temos um texto mais tcnico e ligado ao restante da obra. Na obra Sobre o Fundamento da

    Moral preocupa-se basicamente em contrapor seu sistema tico ao de Kant, resultando em

    uma abordagem mais breve e de carter eminentemente crtico. Parerga e Paralipomena

    constituem seu trabalho mais maduro, pode-se notar um estilo mais elegante e

    independente, e no ensaio intitulado Sobre o Suicdio Schopenhauer ao defender o direito

    daquele que sofre de se libertar do sofrimento atravs do auto-homicdio, parece estar de

    acordo que o suicdio pode ser uma real alternativa para quem j chegou ao limite da dor.

    Para o pensador, a vida j tem seu destino traado: a morte; esta a mais segura

    certeza que podemos ter com relao ao destino de nossas vidas. Compara a vida a uma

    bolha de sabo, que sopramos animadamente apesar de ter a certeza de que ir estourar.13 O

    suicdio apresenta-se como um remdio para a doena que a vida mas, para

    Schopenhauer, como tentativa de negao da vontade intil e tolo,14 pois o real objetivo

    do suicida pr fim ao sofrimento, j que se pudesse viver de outro modo, assim o faria.

    praticamente impossvel algum pr fim prpria vida se no estiver diante de uma

    situao considerada insuportvel e sem sada, todavia, o suicdio no pode ser soluo para

    coisa alguma, pois a morte no um aniquilamento absoluto, mas um ltimo ato de

    12 SCHOPENHAUER, A. MVR I, 68, p. 494.13 SCHOPENHAUER, A. MVR I, 57, p. 401.14 SCHOPENHAUER, A. MVR I, 69, p. 504.

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  • Revista Voluntas: estudos sobre Schopenhauer 2 semestre 2010 Vol. 1 N 2 ISSN: 2179-3786 - pp. 23-32

    vigorosa afirmao da Vontade15, a qual o suicida acredita estar destruindo juntamente com

    seu corpo, mas permanece intacta. Segundo Schopenhauer, a reside o erro do suicida: ele

    toma o fenmeno pela coisa-em-si.

    Precisamente porque o suicida no pode cessar de querer, cessa de viver.A Vontade se afirma aqui pela supresso do seu fenmeno, pois no podeafirmar-se de outro modo. (...) O sofrimento se aproxima e, enquanto tal,abre-lhe a possibilidade de negao da Vontade, porm ele a rejeita aodestruir o fenmeno da Vontade, o corpo, de tal forma que a Vontadepermanece inquebrantvel. Eis por que todas as ticas, tanto filosficasquanto religiosas, condenam o suicdio, embora elas mesmas nada possamoferecer seno estranhos argumentos sofsticos.16

    Para Schopenhauer, tais argumentos sofsticos no possuem fora alguma sobre

    um indivduo desejoso de pr fim prpria vida. Ao fazer aluso s razes que Kant

    apresenta contra o suicdio ele nos diz: Temos de rir quando pensamos que tais reflexes

    teriam de arrancar o punhal das mos de Cato, de Clepatra, de Ccio Nerva (Tacitus,

    Anais 6, 26) ou de Arria de Paetos (Plnio, Epstolas 3, 16).17

    Parece haver ainda um segundo caminho para o suicdio: aquele advindo da

    negao da Vontade. Neste, a ascese atinge grau to elevado onde falta at mesmo a

    vontade necessria para a conservao da vida vegetativa do corpo por ingesto de

    alimento, o indivduo morre, mas permanece o puro sujeito do conhecimento. Tal ato

    raro e se consuma somente por meio do asceta que, j por inteiro resignado, cessar de

    viver, simplesmente porque cessou por inteiro de querer.18 Schopenhauer, no chama em

    sua obra tal ato de suicdio, mas v nele a nica maneira do indivduo alcanar a

    redeno. Todavia, possvel objetar que estando o asceta consciente de seu ato e das

    conseqncias que dele podem advir a saber, a morte como preo de sua redeno ele

    comete o nico verdadeiro suicdio.

    3. O suicdio como direito do ser humano

    15 SCHOPENHAUER, A. Metafsica de las costumbres, p. 185.16 SCHOPENHAUER, A. MVR, 69, p. 505.17 SCHOPENHAUER, A. MVR, 5, p. 32.18 SCHOPENHAUER, A. MVR, 69, p. 507.

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  • SANTOS, lcio Jos dos

    S ao homem que no , tal como o animal, limitado ao presente edeixado apenas merc do sofrimento corporal, mas a um sofrimentoincomparavelmente maior, o espiritual, tomado de emprstimo ao futuro eao passado, a Natureza concedeu, como compensao, a prerrogativa depoder pr um termo sua vida quando lhe aprouver, mesmo antes que elalhe estabelea um alvo e, portanto, a prerrogativa de viver no como umanimal, enquanto possa, mas tambm s enquanto queira.19

    Segundo Schopenhauer, o animal tem a vantagem sobre o homem de viver

    somente no presente, ou seja, no sente remorso por suas aes nem assombrado pela

    conscincia de sofrimentos vindouros e da morte certa e, por isso, sofre certamente muito

    mais de forma fsica. O homem, por outro lado, sofre ao se recordar dos sofrimentos

    passados e em pensar naqueles que ainda vir a sofrer, isto , ele capaz de sofrer

    duplamente, pois sofre tambm espiritualmente. Mas de acordo com o filsofo, ao homem

    foi concedido o poder de decidir o quanto quer viver e quando morrer, o que equivaleria a

    um presente funesto. Schopenhauer parece compartilhar da opinio de Plnio: que tambm

    Deus no pode tudo; pois ele no pode, mesmo se ele quisesse decretar a sua morte, o que

    ele concedeu ao homem como seu melhor dom, por meio de tantos sofrimentos da vida,

    etc.20

    Schopenhauer assegura no incio do seu ensaio sobre o suicdio que so apenas os

    adeptos das religies monotestas, isso , semticas, que consideram o suicdio como um

    crime, o que de se admirar, segundo ele, pois nem no Velho nem no Novo Testamento h

    alguma proibio, tampouco uma resoluta desaprovao do mesmo, podendo-se inferir que

    considerar o suicdio como crime com base na Bblia algo sem fundamento. Ele vai ainda

    mais longe e afirma que cada qual a nada mais no mundo tem um to indiscutvel direito

    quanto sua prpria pessoa e vida e, por isso, no tem sentido dizer que o suicdio

    injusto21.

    O filsofo de Dantzig condena a atitude da plebia e beata Inglaterra quando, ao

    considerar o suicdio como um crime, confisca o esplio do morto e lhe concede um

    funeral vergonhoso. Schopenhauer faz um elogio, um pouco adiante no mesmo ensaio, a

    David Hume:

    19 SCHOPENHAUER, A. M, 5, p.32.20 PLNIO, o Antigo. Apud: SCHOPENHAUER, A. Sobre o Suicdio, in Os Filsofos e o Suicdio. Grifo

    meu.21 SCHOPENHAUER, A. Sobre o Suicdio, p. 149.

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    As razes contra o suicdio, contudo, as quais so fornecidas pelo clerodas religies monotestas, isto , semticas, e pelos filsofos quecompartilham dessas razes, so fracas, sofismas fceis de refutar. A maisprofunda refutao delas foi apresentada por Hume em seu Essay onSuicide, que, apenas publicado depois de sua morte, de imediato foisuprimido na Inglaterra pela injuriosa beatice e pelo ignominioso poderdos padres; por isso, somente muitos poucos exemplares foram vendidos(...)22

    No referido ensaio, Hume se prope a provar que o suicdio no uma

    transgresso de nosso dever para com Deus, para tal, o pensador examina os fatos a partir

    de uma viso ctica e no mbito da Natureza simplesmente. Para ele, no governo do mundo

    material Deus estabeleceu leis gerais e imutveis, pelas quais todos os corpos, do maior

    planeta menor partcula da matria so mantidos em sua esfera e funo prprias23 e no

    governo do mundo animal dotou todas as criaturas vivas de poderes fsicos e mentais, de

    sentidos, paixes, apetites, memria e juzo, pelos quais so regulados ou impelidos ao

    curso da vida a que se destinam,24 sendo atravs dessas leis gerais que Deus a tudo

    governa. Uma vez que a tudo criou e concedeu capacidades especiais s criaturas vivas,

    Hume afirma que todos os eventos (...) podem ser ditos aes do Todo Poderoso e todos os

    eventos so igualmente importantes aos olhos daquele ser infinito,25 donde se segue que ao

    cometer suicdio, uma vez que o homem no usa seno as capacidades que Deus lhe

    concedeu, ele no pode incorrer em seu desagrado, pois no h ser algum que possua um

    poder ou faculdade que no tenha recebido de seu criador, nem um ser que, por uma ao,

    por irregular que ela seja, possa infringir o plano de sua providncia.26

    Assim, tendo em vista que a providncia guiou todas essas causas, e nada ocorre

    no universo sem o seu consentimento e cooperao, ento minha morte voluntria no

    acontece sem o seu consentimento,27 uma vez que se incorro no desagrado divino por tirar a

    minha vida, tambm incorreria em desagrado ao me desviar de uma rvore que desaba, ou

    construir casas ou navegar no oceano, pois essas aes visam preservar a minha vida e

    minha sade, e, assim, tanto em um caso como em outro, modifico o curso original da

    22 SCHOPENHAUER, A. Sobre o Suicdio, p. 153.23 HUME, D. Do Suicdio, p. 111.24 HUME, D. Do Suicdio, p. 111.25 HUME, D. Do Suicdio, p. 112.26 HUME, D. Do Suicdio, p. 116.27 HUME, D. Do Suicdio, p. 117.

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    natureza. Elas [as aes humanas] so todas, portanto, igualmente inocentes ou igualmente

    criminosas.

    Hume tambm acredita que nenhum homem jamais jogou fora a sua vida

    enquanto valia a pena mant-la, e, mais adiante no texto, conclui sua argumentao

    dizendo que se o suicdio no for um crime ambas, a prudncia e a coragem, deveriam nos

    envolver em nossa liberao sumria da existncia, quando ela se torna um fardo.28

    De acordo com Schopenhauer, que um tratado puramente filosfico, que com fria

    razo refuta os motivos correntes contra o suicdio (...) tenha existido secreta e

    furtivamente (...) mostra quo boa conscincia a Igreja possui sobre esse ponto.29 Nosso

    pensador condena a argumentao oferecida pelo clrigo contra o suicdio pois, segundo

    ele, apresentou no Mundo a nica razo moral justa contra o suicdio, que est contida no

    fato de que suicdio ope-se obteno do maior objetivo moral na medida em que ele

    substitui uma efetiva libertao deste lamentvel mundo por uma libertao aparente,30

    mas h, em sua opinio, um caminho muito longo entre considerar um erro se suicidar

    acreditando numa falsa libertao e taxar o suicdio de crime.

    No final do 69 do Mundo Schopenhauer admite, contudo, que a questo do

    suicdio difcil de explicar, principalmente a diferena entre essa morte voluntria

    resultante do extremo da ascese e aquela comum resultante do desespero,31 pois possvel

    que haja muitos graus diferentes e combinaes possveis entre os motivos capazes de levar

    o ser humano a suicidar-se.

    4. O que podemos esperar

    Diante das inmeras desgraas que o mundo abriga e da morte certa, angstia e

    desespero so reaes comuns do ser humano. Mas para Schopenhauer nada disso justifica

    o suicdio, que apenas uma pseudo-libertao. O produto do suicdio frente ao desespero

    difere enormemente daquele obtido pelo asceta: enquanto o santo passa atravs do vu de

    Maya e alcana o conhecimento da verdade do mundo, o suicida permanece na ignorncia e

    28 HUME, D. Do Suicdio, p. 121.29 SCHOPENHAUER, A. Sobre o Suicdio, p. 153.30 SCHOPENHAUER, A. Sobre o Suicdio, p. 153.31 SCHOPENHAUER, A. MVR I, 69, p. 508.

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    seu sofrimento no encontra fim na morte.32 Ademais, o suicdio um ato ftil, uma vez

    que no soluciona o real problema, expresso do mais extremo egosmo e falta de empatia

    para com o prximo33.

    Schopenhauer defende o direito ao suicdio como uma eutansia, mas alerta o

    agente para o fato de que somente pela via do ascetismo encontrar a paz que tanto busca.

    Mas se o suicdio no soluciona o problema da existncia, e a vida uma mercadoria ruim,

    um pesadelo, um verdadeiro inferno onde o homem o diabo do outro, seria a felicidade

    uma quimera? Para o pensador, sim. Porem isso no implica que no se possa viver bem.

    Nos Aforismos Para a Sabedoria de Vida o filsofo oferece uma srie de alternativas para

    se contornar o problema do sofrimento, dentre eles se destacando a prudncia e a

    serenidade, de modo a se viver da melhor forma possvel, no da mais desejvel: O

    prudente aspira no ao prazer, mas ausncia de dor.34

    Referncias bibliogrficas

    CAMUS, Albert. O mito de Ssifo. Traduo de Ari Roitman e Paulina Watch. 6 edio Rio de Janeiro: Record, 2008.

    BZIAU, Jean-Yves. O suicdio segundo Arthur Schopenhauer, in Revista Discurso,n28, 1997: p. 128-143.

    HUME, D. Do Suicdio, in Os Filsofos e o Suicdio. Trad. de Lvia Guimares.Organizao de Fernando Rey Puente. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

    SCHOPENHAUER, A. Aforismos Para a Sabedoria de Vida. Traduo de Jair Barboza.So Paulo: Martins Fontes, 2002.

    ________________. O mundo como Vontade e como Representao. Traduo: JairBarboza. So Paulo: Editora UNESP, 2005.

    ________________. Metafsica de las Costumbres. Traduo de Roberto RodriguezAramayo. Madrid: Editorial Trotta, 2001.

    ________________. On The Fourfold Root of the Principle of Sufficient Reason. Trad. deKarl Hillebrand. London: Cosimo Books, 2007.

    32 YOUNG, J. Schopenhauer, p.194.33 YOUNG, J. Schopenhauer, p. 195.34 SCHOPENHAUER, A. Aforismos para a sabedoria de vida, p. 140.

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  • SANTOS, lcio Jos dos

    ________________. Parerga e Paralipomena (Contribuies Doutrina do Sofrimentodo mundo), in Vol. Schopenhauer, Col. Os Pensadores. Trad. de Wolgfgang Leo Maar.So Paulo: Nova Cultural, 1999.

    ___________________ Sobre o Fundamento da Moral. Trad. de Maria Lcia MelloOliveira Cacciola. So Paulo: Martins Fontes, 2001.

    ___________________. Sobre o Suicdio. in Os Filsofos e o Suicdio. Trad. de FernandoRey Puente. Organizao de Fernando Rey Puente. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

    YOUNG, Julian. Schopenhauer. New York: Routlegde, 2005.

    Recebido: 08/10/10Received: 10/08/10

    Aprovado: 27/11/10 Approved: 11/27/10

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