Utilitarismo

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DIMENSÃO ÉTICA | Texto 14 Utilitarismo e consequencialismo A civilização técnica multiplicou as possibilidades da acção humana e também a sua complexidade. Hoje pede-se constantemente o veredicto de comissões éticas, porque os critérios tradicionais já não respondem aos novos problemas. Com frequência, deparamo-nos com situações-limite em que está em jogo a vida e a morte, domínios inéditos nos quais a aplicação normativa dos princípios clássicos já não funciona, pois a tradição nada nos diz sobre essas situações. Para resolver essa carência costuma-se recorrer a um princípio moral que se apresenta como o único do qual se pode deduzir um modo de proceder correcto em todas as situações possíveis. Trata-se do utilitarismo ou consequencialismo, denominado também princípio moral teleológico. A sua novidade é esta: a correcção ou incorrecção duma acção depende unicamente das suas consequências efectivas ou prováveis. Isto significa que uma acção é correcta se produz tanto bem como qualquer outra, e é obrigatória se produz mais bem que qualquer outra. Uma variante deste utilitarismo limita-se a exigir que se sigam aquelas regras cujas observância geral acarrete no seu conjunto mais utilidade que dano. O utilitarismo parece um critério ético claro e verificável, mas os seus fundadores não estão de acordo na definição do que é o útil. Jeremy Bentham, que idealizou um cálculo hedonístico para medir a maior felicidade possível para o maior número possível, considerou a nascente e revolucionária doutrina dos direitos humanos como um «pomposo disparate», pois só o prazer é para ele a fonte genuína da felicidade. Por seu lado, John Stuart Mill fez uma distinção entre prazeres inferiores e superiores, segundo um célebre critério qualitativo: «É melhor ser um Sócrates desgraçado do que um porco ditoso». (…) A tese fundamental da ética consequencialista está em contradição com as instituições morais da maioria dos Homens. O consequencialismo afirma, contra todas as tradições éticas, que o fim justifica os meios: porque a qualidade moral das acções depende agora do seu valor de meio para alcançar o fim da optimização. A quem quer o melhor tudo é permitido. Com isto quebra-se especialmente a tradição ética ocidental. (…) A transformação dos imperativos morais em imperativos técnicos deixa a responsabilidade aos especialistas capazes de avaliar as complexas consequências. E estes especialistas já não terão em conta a dignidade do indivíduo, mas sim abstracções: o mundo e a ciência. (…) O consequencialismo, ao permitir que o princípio de utilidade anule os nossos princípios, remove um obstáculo que acarretará qualquer enormidade: Auschwitz ou Vietname. O utilitarismo, que aparece como um critério para distinguir o bem e o mal, conduz-nos a admitir que nenhuma acção, por mais vil que seja, é má em si ou é proibida enquanto tal. Todas as acções serão avaliadas em função das suas consequências. E se essas consequências forem favoráveis para a felicidade geral, essas acções – seja a execução de inocentes, ou o assassínio de crianças – estariam justificadas. O consequencialismo converte-se, em última instância, na justificação fácil que permite começar qualquer guerra. Na justificação das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki, porque – como se disse – arrasar alguns milhares de japoneses evitou uma guerra supostamente interminável, com incontáveis perdas na outra parte. Outro problema do consequencialismo é a impossibilidade de prever perfeitamente as

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DIMENSÃO ÉTICA | Texto 14

Utilitarismo e consequencialismo

A civilização técnica multiplicou as possibilidades da acção humana e também a sua complexidade. Hoje pede-se constantemente o veredicto de comissões éticas, porque os critérios tradicionais já não respondem aos novos problemas. Com frequência, deparamo-nos com situações-limite em que está em jogo a vida e a morte, domínios inéditos nos quais a aplicação normativa dos princípios clássicos já não funciona, pois a tradição nada nos diz sobre essas situações. Para resolver essa carência costuma-se recorrer a um princípio moral que se apresenta como o único do qual se pode deduzir um modo de proceder correcto em todas as situações possíveis. Trata-se do utilitarismo ou consequencialismo, denominado também princípio moral teleológico. A sua novidade é esta: a correcção ou incorrecção duma acção depende unicamente das suas consequências efectivas ou prováveis. Isto significa que uma acção é correcta se produz tanto bem como qualquer outra, e é obrigatória se produz mais bem que qualquer outra. Uma variante deste utilitarismo limita-se a exigir que se sigam aquelas regras cujas observância geral acarrete no seu conjunto mais utilidade que dano. O utilitarismo parece um critério ético claro e verificável, mas os seus fundadores não estão de acordo na definição do que é o útil. Jeremy Bentham, que idealizou um cálculo hedonístico para medir a maior felicidade possível para o maior número possível, considerou a nascente e revolucionária doutrina dos direitos humanos como um «pomposo disparate», pois só o prazer é para ele a fonte genuína da felicidade. Por seu lado, John Stuart Mill fez uma distinção entre prazeres inferiores e superiores, segundo um célebre critério qualitativo: «É melhor ser um Sócrates desgraçado do que um porco ditoso». (…) A tese fundamental da ética consequencialista está em contradição com as instituições morais da maioria dos Homens. O consequencialismo afirma, contra todas as tradições éticas, que o fim justifica os meios: porque a qualidade moral das acções depende agora do seu valor de meio para alcançar o fim da optimização. A quem quer o melhor tudo é permitido. Com isto quebra-se especialmente a tradição ética ocidental. (…) A transformação dos imperativos morais em imperativos técnicos deixa a responsabilidade aos especialistas capazes de avaliar as complexas consequências. E estes especialistas já não terão em conta a dignidade do indivíduo, mas sim abstracções: o mundo e a ciência. (…) O consequencialismo, ao permitir que o princípio de utilidade anule os nossos princípios, remove um obstáculo que acarretará qualquer enormidade: Auschwitz ou Vietname. O utilitarismo, que aparece como um critério para distinguir o bem e o mal, conduz-nos a admitir que nenhuma acção, por mais vil que seja, é má em si ou é proibida enquanto tal. Todas as acções serão avaliadas em função das suas consequências. E se essas consequências forem favoráveis para a felicidade geral, essas acções – seja a execução de inocentes, ou o assassínio de crianças – estariam justificadas. O consequencialismo converte-se, em última instância, na justificação fácil que permite começar qualquer guerra. Na justificação das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki, porque – como se disse – arrasar alguns milhares de japoneses evitou uma guerra supostamente interminável, com incontáveis perdas na outra parte. Outro problema do consequencialismo é a impossibilidade de prever perfeitamente as

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consequências de todos os actos humanos.

J. R. Ayllón,LucesenlaCaverna, Ed. Martínez Roca, Barcelona, pp. 104-108 (trad.).