USINA ITAICÍ MATO GROSSO: HISTÓRIA, TRABALHO E … · trabalho na produção do açúcar de forma...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EMILENE FONTES DE OLIVEIRA USINA ITAICÍ MATO GROSSO: HISTÓRIA, TRABALHO E EDUCAÇÃO (1897-1930) CUIABÁ MT 2019

Transcript of USINA ITAICÍ MATO GROSSO: HISTÓRIA, TRABALHO E … · trabalho na produção do açúcar de forma...

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

EMILENE FONTES DE OLIVEIRA

USINA ITAICÍ – MATO GROSSO:

HISTÓRIA, TRABALHO E EDUCAÇÃO

(1897-1930)

CUIABÁ – MT

2019

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

EMILENE FONTES DE OLIVEIRA

CUIABÁ – MT

2019

EMILENE FONTES DE OLIVEIRA

USINA ITAICÍ – MATO GROSSO:

HITÓRIA, TRABALHO E EDUCAÇÃO

(1897-1930)

Tese apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Educação da Universidade

Federal de Mato Grosso, como requisito para

obtenção do título de Doutor em Educação na

Área de Concentração Educação, Linha de

Pesquisa Cultura, Memória e Teorias em

Educação.

Orientadora: Profª. Dra. Elizabeth Figueiredo

de Sá

Coorientadora: Profª Drª. Margarida Louro

de Felgueiras. (Universidade do Porto-

Portugal).

CUIABÁ – MT

2019

O48u Oliveira, Emilene Fontes de.

Usina Itaicí - Mato Grosso : História, Trabalho e Educação (1897-1930) / Emilene Fontes de Oliveira. -- 2019

225 f. ; 30 cm.

Orientadora: Elizabeth Figueiredo de Sá. Co-orientadora: Margarida Louro Felgueiras. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Educação,

Programa de Pós-Graduação em Educação, Cuiabá, 2019. Inclui bibliografia.

1. Educação escolar e não escolar. 2. Primeira República. 3. Usina Itaicí. I. Título.

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.

RESUMO

OLIVEIRA, Emilene Fontes de. Usina Itaicí – Mato Grosso: História, Trabalho e Educação

(1897-1930). Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Mato Grosso,

Programa de Pós-Graduação em Educação, Cuiabá, 2019.

Esta tese tem como objeto de estudo a Usina Itaicí, uma usina de produção de açúcar criada

no final do século XIX no município de Santo Antonio de Leverger – MT. Esta investigação

foi desenvolvida por meio do Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória da

Universidade Federal de Mato Grosso. O ponto central desta pesquisa é analisar a educação

de maneira mais ampla, pontuando os elementos presentes no âmbito da educação escolar e

não escolar. Para isso, optou-se por utilizar as categorias espaço, escolarização e trabalho, por

permitirem olhar para educação na sua pluralidade. Isso foi possível por meio da operação

historiográfica que envolve ações como localizar, selecionar, reunir, cotejar, analisar, enfim,

apropriar de um corpus documental que contêm informações importantes acerca das ações de

cunho educativo fabricadas no contexto da Usina Itaicí. No campo da educação escolar, a

ênfase foi dada na escolarização das crianças, buscando evidenciar a criação, organização e

funcionamento da Escola de Itaicí enquanto uma instituição de ensino primário, fomentada a

priore pela iniciativa privada empresarial, e mais tarde pela administração pública. Também;

voltamos o olhar para alguns aspectos da cultura escolar da Instituição. Este estudo busca

também refletir acerca das perspectivas da história da educação para além da escola com base

nos compartilhamentos de saberes e fazeres direcionados à educabilidade de homens,

mulheres e crianças para a convivência nos moldes hierárquicos da sociedade coronelística,

que atuavam com base nas práticas clientelísticas pensando na adequação das famílias para o

trabalho na produção do açúcar de forma industrial e para o modo de vida na usina. Tomam-

se como referência nessa investigação os anos de 1897 a 1930 que se explica por serem os

anos do auge do funcionamento da usina, sem desconsiderar que o referido recorte trata-se do

limiar da República, momento de muita tensão política no estado. Esse cenário certamente

influenciou a formação da sociedade que tinha que conviver com a implantação dos ideários

republicanos diante de práticas fortemente oligárquicas. A tese, ao tratar da educação dentro e

fora da escola, partiu do olhar da história cultural com foco nos conceitos de representações e

apropriações no sentido de compreender a dimensão educativa produzida na usina de forma

plural, observando como se deu a formação de valores, hábitos, costumes e comportamentos.

Recorremos ao conceito de práticas considerando as maneiras como as pessoas faziam uso das

práticas e dos lugares de poder. A partir da operação historiográfica, a narrativa histórica

aponta a variedade de representações, apropriações e práticas que configuraram as maneiras

de compreender a educação no contexto da primeira república no estado de Mato Grosso, e

especificamente, no universo da Usina Itaicí. Nessa construção, constatou-se que o contexto

histórico pautado na cultura coronelística delineou princípios, padrões e condutas que

influenciaram na formação dos atores sociais por meio das práticas culturais presentes na

usina, observáveis na produção do espaço, na cultura do trabalho, nas práticas de punição e

resistência, como também na escolarização das crianças.

Palavras-Chave: Educação escolar e não escolar. Primeira República. Usina Itaicí.

ABSTRACT

This research has as object of study the Usina Itaicí, a sugar production plant created at the

end of the 19th century in the municipality of Santo Antonio de Leverger - MT. This research

was developed through the research group history of education and memory at the Federal University

of Mato Grosso.The central point of this thesis is to analyze education in a broader way,

punctuating the elements present in the scope of school and non-school education. For this,

we chose to use the categories space, schooling and work, for allowing look at education in its

plurality. This was possible through the historiographic operation that allowed to locate,

select, gather, collate, analyze, finally, appropriate a corpus of documents that contain

important information about educational actions made in the context of the Itaici plant. In the

field of school education, emphasis was placed on the schooling of children, seeking to

highlight the creation, organization and functioning of the Itaicí School as a primary

education institution, priored by private enterprise and later by public administration, as well

as , we look back at some aspects of their school culture. This study also seeks to reflect on

the perspectives of the history of education beyond school based on the sharing of

knowledges and actions directed to the educability of men, women and children for the

coexistence in the hierarchical molds of the clientelistic society, that acted on the basis of the

clientelistic practices thinking about the adequacy of families to work on sugar production in

an industrial way and the way of life in the plant. It is taken as reference in this investigation

the years from 1897 to 1930, which explains why it is the peak of the operation of the plant,

without disregarding that this cut is the threshold of the Republic, moment of much political

tension in the state. This scenario certainly influenced the formation of society that had to

coexist with the implantation of Republican ideas in the face of strongly oligarchic practices.

The thesis on education within and outside school started from the perspective of cultural

history with a focus on the concepts of representations and appropriations in order to

understand the educational dimension produced in the plant in a plural form, observing how

the formation took place values, habits, customs and behaviors. We turn to the concept of

practices considering the ways in which people used practices and places of power. From the

historiographical operation, the historical narrative points out the variety of representations,

appropriations and practices that shaped the ways of understanding education in the context of

the first republic in the state of Mato Grosso, and specifically, in the universe of Itaicí Power

Plant. In this construction, it was observed that the historical context based on the coronel

culture delineated principles, standards and behaviors that influenced the formation of social

actors through the cultural practices present in the plant, observable in the production of

space, in the culture of work, in the practices of punishment and resistance, as well as in

schooling of children.

Keywords: School education and school No. First Republic. Itaicí Plant.

Esta tese é dedicada às famílias que

construíramsua história no universo da Usina

Itaicí.

Agradecimentos

À Deus, pela vida e pelas oportunidades que me são dadas a cada novo dia. Por me

permitir sonhar, e mais ainda, por me permitir realizar os desejos mais ousados.

Aos meus amores, meu esposo Marcelo, e meus filhos Jair Neto e Sophia, pelo

incentivo, pela motivação e, sobretudo, pela compreensão sincera, por suportar as ausências

até mesma na presença.

Aos meus pais, Maria e Estalin, e aos meus irmãos Aracely e Antonio Carlos por me

acompanharem em todas as trajetórias da minha vida, sonhando junto comigo, me ajudando

no cuidado com a minha família nos momentos de jornada intensa. À vocês todo o meu amor

e gratidão.

À minha querida e mui admirada orientadora Profª Drª Elizabeth Figueiredo de Sá, ou

simplesmente Beth, como gosta de ser chamada - agradeço por confiar e acreditar em mim.

Sou grata pela parceria no processo de pesquisa, leitura e escrita; enfim, pelas orientações

sábias e enriquecedoras. Gratidão pela atenção, pela liberdade intelectual e autonomia. Muito

Obrigada!

À Profª Drª. Margarida Louro Felgueiras, toda gratidão por ter aceitado coorientar a

minha tese. Obrigada pela interlocução, pela atenção com o meu trabalho e por dividir o seu

tempo e sabedoria comigo.

Às professoras Alessandra Cristina Furtado, Betânia de Oliveira Laterza Ribeiro,

Lúcia Helena Gaeta Aleixo e ao professor Edson Caetano, membros da Banca Examinadora,

gratidão pela leitura atenciosa do meu trabalho e pelas preciosas contribuições.

Aos colegas do Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória – GEM/UFMT,

quero que saibam o quanto eu sou grata pela colaboração na pesquisa, pela amizade, bom

humor, por compartilhar comigo os momentos de alegria, angústias e descobertas históricas,

sem falar das interlocuções, especialmente nas aventuras durante as viagens para os encontros

e congressos.

Aos funcionários do Arquivo Público de Mato Grosso, Casa Barão de Melgaço,

Núcleo de Documentação e Informação histórico regional e, Secretaria Municipal de

Educação de Santo Antonio de Leverger, agradeço a atenção, a presteza e as trocas de

saberes.

À Profª Drª Nileide Souza Dourado obrigada por oportunizar o acesso precioso aos

bancos de dados do Projeto Arquivo Foto fonográfico - Memória social da cuiabania da

Coleção: Martha Arruda Paiva, no qual pude conhecer vozes silenciadas. Obrigada pelo

convite para participar de uma das etapas desse projeto e de poder vivenciar do meu lugar e

do lugar do outro tamanha experiência.

Agradeço a todos e todas que direta e indiretamente dividiram seu tempo comigo e

com o meu desejo de trilhar pelos caminhos da História da Educação mato-grossense.

Recebam minha eterna gratidão!

Pode-se supor que essas operações multiformes e fragmentárias,

relativas a ocasiões e a detalhes, insinuadas e escondidas nos

aparelhos das quais elas são os modos de usar, e, portanto,

desprovidas de ideologias ou de instituições próprias, obedecem

a regras. Noutras palavras, deve haver uma lógica dessas

práticas. Isto significa voltar ao problema, já antigo, do que é

uma arte ou ―maneira de fazer‖.

Michel de Certeau (1994)

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Igreja Matriz. ........................................................................................................................ 60

Figura 2 - Santo Antonio do Rio Abaixo em 1906 ................................................................................ 61

Figura 3 - Santo Antonio do Rio Abaixo 1906 – Rua da Matriz ........................................................... 62

Figura 4 - Mapa do município de Santo Antonio de Lever ................................................................... 63

Figura 5 - Conflitos políticos ................................................................................................................ 67

Figura 6 - Rota das usinas ..................................................................................................................... 80

Figura 7 - Casa de Máquinas Usina Flexas ........................................................................................... 82

Figura 8 - Proprietários da Usina Flechas ............................................................................................. 83

Figura 9 - Usina Aricá ........................................................................................................................... 84

Figura 10 - Usina Conceição ................................................................................................................. 85

Figura 11 - Usina Itaicí.......................................................................................................................... 87

Figura 12 - Casa de Máquinas Usina Maravilha ................................................................................... 88

Figura 13 - Cel. Antonio Paes de Barros ............................................................................................. 102

Figura 14 - Trabalhadores e crianças na limpeza de garrafas na Usina Itaicí. .................................... 116

Figura 15 - Professores e Alunos da Escola de Itaicí. ......................................................................... 129

Figura 16 - Ata de solicitação da abertura da Escola de Itaicí. ........................................................... 132

Figura 17 - Sobre o indeferimento da Escola de Itaicí. ....................................................................... 133

Figura 18 - Relação das escolas em área particular. ............................................................................ 135

Figura 19 - Atestado de trabalho ......................................................................................................... 138

Figura 20 - Solicitação de material escolar ......................................................................................... 139

Figura 21 - Lista de material escolar da Escola Ambulante mista de Itaicí de 1931........................... 140

Figura 22 - Lista de materiais da Escola Mista Ambulante de Tamandaré. ........................................ 142

Figura 23 - Solicitação de Licença para tratamento de saúde. ............................................................ 144

Figura 24 - Resumo geral de ponto. .................................................................................................... 145

Figura 25 - A Escola de Itaicí. ............................................................................................................. 150

Figura 26 - A Escola de Itaicí e o setor comercial .............................................................................. 151

Figura 27 - Aula de música. ................................................................................................................ 154

Figura 28 - A banda de música de Itaicí. ............................................................................................. 155

Figura 29 - Vista aérea da Usina Itaicí. ............................................................................................... 170

Figura 30 - Fachada da Usina Itaicí. ................................................................................................... 171

Figura 31 - Casa de máquinas da Usina Itaicí. .................................................................................... 173

Figura 32 - Equipamentos da Usina Itaicí. .......................................................................................... 173

Figura 33 - Trabalhadores da Usina Itaicí na lavoura de cana. ........................................................... 192

Figura 34- Foto mais recente da Usina Itaicí ...................................................................................... 218

Figura 35 - A farmácia ........................................................................................................................ 219

Figura 36 - A Capela da Usina Itaicí ................................................................................................... 220

Figura 37 - Relato do Sr. Luiz Pereira Duarte – Ex-aluno da Escola de Itaicí .................................... 221

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Referente à relação de mensagens, relatórios e regulamentos emitidos pelos Presidentes de

Estado e Diretores da Instrução Pública do Estado de Mato Grosso. ................................................... 29

Quadro 2 - Relação das fontes manuscritas referente à Escola de Itaicí. .............................................. 30

Quadro 3 - Jornais: Assuntos diversos. ................................................................................................. 31

Quadro 4 - Número de fontes iconográficas ......................................................................................... 34

Quadro 5 - Obras memorialísticas de Mato Grosso. ............................................................................. 34

Quadro 6 - Usinas de Mato Grosso em 1914 ........................................................................................ 79

Quadro 7 - Usinas localizadas em Santo Antonio do Rio Abaixo ........................................................ 79

Quadro 8 - Usinas existentes em Mato Grosso. Organizado pela pesquisadora ................................... 80

Quadro 9 - Composição social .............................................................................................................. 99

Quadro 10 - Lista dos moradores ........................................................................................................ 131

Quadro 11 - Lista das ambulantes do Município de Santo Antonio do Abaixo .................................. 136

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - População de Mato Grosso .................................................................................................. 97

Tabela 2 - Rotina dos trabalhadores nas usinas de açúcar do Rio Abaixo .......................................... 195

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Coeficiente da população de Mato Grosso ......................................................................... 97

Gráfico 2 - Coeficiente da população de Santo Antonio do Rio Abaixo de 1920 ................................. 98

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACBM – Arquivo da Casa Barão de Melgaço

APMT – Arquivo Público de Mato Grosso

BN – Biblioteca Nacional

CEL – Coronel

GEM – Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IHGMT – Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso

NDIHR – Núcleo de Documentação e Informação de História Regional da UFMT

SAL – Santo Antonio de Leverger

UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso

Sumário INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 19

I O PERCURSO ................................................................................................................................ 20

II A PESQUISA ................................................................................................................................ 24

III A NARRATIVA HISTÓRICA .................................................................................................... 45

CAPÍTULO I ......................................................................................................................................... 48

CORONELISMO, CLIENTELISMO E HISTÓRIA LOCAL .............................................................. 48

1.1 A política em jogo ....................................................................................................................... 49

1.2 O passado Histórico .................................................................................................................... 59

CAPÍTULO II ....................................................................................................................................... 75

NAS TRILHAS DO AÇÚCAR E DA SOCIEDADE CORONELÍSTICA .......................................... 75

2.1 O ciclo do açúcar em Mato Grosso ............................................................................................. 76

2.1.1 Usina Flexas ............................................................................................................................. 82

2.1.2 Usina Aricá ............................................................................................................................... 84

2.1.3 Usina Conceição ....................................................................................................................... 85

2.1.4 Usina Itaicí ............................................................................................................................... 86

2.1.5 Usina Maravilha ....................................................................................................................... 87

2.2 Os atores e seu papel social ......................................................................................................... 95

2.2.1 Os Coronéis do açúcar.............................................................................................................. 99

2.2.2 Os agregados e os camaradas ................................................................................................. 107

2.2.3 As crianças em foco ............................................................................................................... 111

CAPÍTULO III .................................................................................................................................... 118

A ESCOLA DE ITAICÍ E A ESCOLARIZAÇÃO DAS CRIANÇAS .............................................. 118

3.1 A Escola de Itaicí: da iniciativa privada à gestão do estado...................................................... 119

3.2 Aspectos da Cultura escolar ...................................................................................................... 146

CAPÍTULO IV .................................................................................................................................... 159

A DIMENSÃO EDUCATIVA DA USINA ITAICÍ PARA ALÉM DA ESCOLA ........................... 159

4.1 A educação (re)inventada .......................................................................................................... 160

4.1.1 O espaço ................................................................................................................................. 161

4.2 As convivências ........................................................................................................................ 176

4.3 Trabalho, Educação, Punições e Resistências ........................................................................... 183

4.3.1 A cultura do trabalho .............................................................................................................. 183

4.3.2 Vestígios da formação para o trabalho ................................................................................... 190

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................... 204

REFERÊNCIAS .............................................................................................................................. 208

ANEXOS......................................................................................................................................... 218

APÊNDICE ..................................................................................................................................... 224

INTRODUÇÃO

I O PERCURSO

...Os projetos abandonaram os atores donos de nomes próprios

e de brasões sociais para voltar-se para o coro dos figurantes

amontoados dos lados, e depois fixar-se enfim na multidão do

público. Sociologização e antropologização da pesquisa

privilegiam o anônimo e o cotidiano onde zooms pesquisa

detalhes metonímicos – partes tomadas pelo todo.

(CERTEAU, 1994, p. 57)

Historiadora de formação e de coração, vejo-me diante de um exercício de pesquisa

que faz parte de um objetivo de vida - Historiar. Este passa pelo desejo de investir na busca de

elementos e vestígios indicativos de histórias e memórias que se encontram enclausuradas nos

documentos, nas fotografias, nas páginas dos jornais, no imaginário, aguardando por uma

narrativa que seja capaz de dar vida ao passado e dele ressurgir através do lugar do outro.

Para a realização desta pesquisa, busca-se inspiração na compreensão de operação

historiográfica apresentada por Certeau (2002) a qual passa primeiramente pelo exercício de

se indagar: O que fabrica o historiador quando faz história? Para quem trabalha? O que

produz? Para o autor, historiar tem a ver com a ―particularidade do lugar de onde falo e do

domínio em que realizo uma investigação‖ (CERTEAU, 2002, p. 65). O lugar social ressalta a

atividade de pesquisa e representa um aspecto importante a ser observado nos princípios da

História Cultural pelo qual este estudo é pautado.

Nesse sentido, o lugar no qual me apresento é o de professora de História, atuando na

Educação Básica do estado de Mato Grosso e como membro do Grupo de Pesquisa História

da Educação e Memória.

O envolvimento com a pesquisa científica ocorreu na graduação em História, no

momento em que fui selecionada para participar como bolsista (CNPq) no Projeto

Catalogação de Fontes documentais para História da Educação de Mato Grosso, que foi

elaborado pelo Profº. Dr. Nicanor Palhares Sá e pela Profª. Drª Elizabeth Madureira Siqueira

no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e

desenvolvido no Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória.

Com o fim do projeto, optei por permanecer no referido grupo de pesquisa porque me

apaixonei pela experiência com as investigações sobre os processos educacionais, pelos

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estudos da cultura escolar e dos referenciais teóricos e metodológicos voltados para a História

da educação e para a História Cultural.

O resultado dessa permanência motivou a elaboração do projeto de Mestrado sob o

título: Cultura Brasileira e a Memória da construção da Identidade Nacional no Grupo

Escolar Leônidas de Matos (1937-1930) defendido em 2005. Essa experiência me instigou a

refletir como o grupo escolar propagou os ideais do Estado Novo na perspectiva da

construção da identidade nacional, com base na construção de sentimentos patrióticos e da

ideia do homem novo.

Após a defesa de mestrado, por motivos pessoais, me ausentei por um período das

atividades de pesquisa. Esse afastamento me fez perceber o quanto as experiências

acadêmicas faziam parte de mim, da minha vida, do meu ser. Passei por alguns anos distante

do exercício de localizar os documentos, inquiri-los; enfim, foi um momento que me levou a

repensar certas escolhas e voltar para o lugar da pesquisa.

Em 2015 regressei ao GEM/UFMT como aluna especial e com o sentimento de

aperfeiçoar, revisar teorias e métodos e retomar as atividades de pesquisa. Voltei com a

intenção de elaborar um projeto de doutorado para investigar a história da Escola de Itaicí,

uma escola primária que foi criada numa usina de produção de açúcar chamada Usina Itaicí1.

Essa usina foi implantada no município de Santo Antonio de Leverger – Mato Grosso, que na

época era denominado Santo Antonio do Rio Abaixo, e ficava especificamente na

comunidade de Melgaço. Essa usina funcionou pelo período que correspondente ao ano de

1897 até a década de 1950.

Foi com esse objetivo que ingressei no Doutorado em Educação pela Universidade

Federal de Mato Grosso na Linha de Pesquisa Cultura, Memória e teorias em Educação. No

entanto, notou-se logo que seria necessário alterar o objeto, uma vez que a educação presente

no universo da Usina Itaicí não se restringia apenas à escola em si. Ao adentrar no cotidiano

da usina, percebeu-se que a educação se expressava na organização do espaço, nas relações de

convivência, no trabalho, como também na escolarização das crianças.

Então, alterou-se o objeto de pesquisa para a Usina Itaicí, voltando o olhar para o

estudo da educação de natureza escolar e não escolar, com foco nos vestígios da educação

construída na lógica do cotidiano, que nesta pesquisa destaca-se por meio do recrutamento de

famílias para o trabalho. A educação será, então, analisada sob a configuração do modelo de

1 A denominação Itaicí varia na sua ortografia. Encontramos nas documentações e referências historiográficas as

seguintes construções ortográficas: Itaici, Itaicí e Itaicy. Optamos pela ortografia Itaicí por ser a ortografia

registrada na ata do lançamento da pedra fundamental da usina, porém, manteremos a ortografia registrada nos

documentos ao referenciá-los.

22

sociedade coronelística tendo como base as práticas clientelísticas. A sociedade coronelística

aqui pode ser compreendida como um:

[...] dos princípios do patrimonialismo, que correspondem à extensão do

mando doméstico (patriarcal) para o mando público (patrimonial). Neste

caso, o poder dos coronéis alcança as famílias e/ou parentela, desde os

parentes mais distantes até os agregados, os funcionários das casas

comerciais e os camaradas das fazendas, ou, aos comandados nos batalhões e

companhias da Guarda Nacional (PORTELA, 2009, p. 63).

Diante disso, apresenta-se a seguinte questão: como historiar uma sociedade tão

complexa, envolvida em muitos silêncios, com uma trajetória que se afirma por meio de ações

autoritárias e de sociabilidades forjadas? Busca-se, deste modo, entender essa sociedade, suas

finalidades e o significado que as atividades desenvolvidas nesse espaço tiveram para as

famílias e, sobretudo, compreender a dimensão educativa fabricada nesse locus.

Nessa perspectiva, buscou-se mais uma vez suporte em Certeau quando este diz

―Antes de saber o que a história diz de uma sociedade, é necessário saber como funciona

dentro dela‖ (2002. p. 76).

Tal é a dupla função do lugar. Ele torna possíveis certas pesquisas em

função de conjunturas e problemáticas comuns. Mas torna outras

impossíveis; exclui no discurso aquilo que é sua condição num momento

dado; representa o papel de uma censura com relação aos postulados

presentes (sociais, econômicos, políticos) na análise. Sem dúvida, esta

combinação entre permissão e interdição é o ponto cego da pesquisa

histórica e a razão pela qual ela não é compatível com qualquer coisa. É

igualmente sobre esta combinação que age o trabalho destinado a modificá-

la (CERTEAU, 2002, p. 76-77).

A escolha em investigar uma sociedade que ainda se encontra cercada de silêncios,

tornou-se, do meu ponto de vista, assertiva por entender a necessidade de desmistificar o não-

dito, dar visibilidade a outros espaços educativos, fazendo com que a história da educação,

entre outras áreas das Ciências Sociais, dialogue em direção a novas possibilidades

investigativas. Mas Certeau nos alerta:

[...] que não se trata apenas de fazer falar estes imensos setores adormecidos

da documentação e dar voz a um silêncio, ou efetividade a um possível.

Significa transformar alguma coisa, que tinha sua posição e seu papel, em

alguma outra coisa que funciona diferentemente. Da mesma forma não se

pode chamar ―pesquisa‖ ao estudo que adota pura e simplesmente as

classificações do ontem que, por exemplo, ―se atêm‖ aos limites propostos

pela série H dos Arquivos e que, portanto, não define um campo objetivo

23

próprio. Um trabalho é ―científico‖ quando opera uma redistribuição do

espaço e consiste, primordialmente, em se dar um lugar, pelo

―estabelecimento das fontes‖ – quer dizer, por uma ação instauradora e por

técnicas transformadoras (2002, p. 82).

Se este estudo instaurou e/ou aplicou técnicas transformadoras, não tenho certeza. Mas

não tenho dúvidas que não faltaram tentativas em trilhar novos caminhos, levantando questões

de pesquisa importantes para a história da educação e ousando entrar em um espaço de areia

movediça por se tratar de um estudo voltado para um locus polêmico no cenário da história de

Mato Grosso.

Contudo, para mim existe um caráter todo especial em realizar esta pesquisa

abordando o locus - Usina Itaicí, o trabalho, a educação, porque estes fazem parte da história

do Município de Santo Antonio de Leverger. Eu fui criada neste município. Cresci ouvindo as

histórias do Rio Abaixo. Cresci ouvindo a história da minha família que também tem ligação

com a história das usinas de açúcar, tanto pelo lado dos proprietários, a exemplo da Usina

Aricá que foi de propriedade de Maria Marques de Fontes, como do lado dos trabalhadores,

como foi o caso dos meus bisavôs que trabalharam e moraram por anos na Usina Itaicí.

No imaginário popular local, a história da usina vem sendo passada de geração para

geração conforme as representações e apropriações produzidas ao longo do tempo, cada um se

expressando por meio do seu lugar social. As famílias ligadas aos ex-proprietários das usinas

fabricam as suas versões, bem como as famílias mais próximas dos trabalhadores também têm

a sua. Estas histórias são entendimentos plurais, assim, as suas versões surgem de forma

positiva e negativa.

Refletir historicamente acerca do trabalho e da educação no universo da Usina Itaicí,

tendo com base a sociedade coronelística e as relações clientelísticas, significa explorar um

campo ainda em construção. Para isso, o estudo exigiu caminhar por trilhas não muito

lineares, mas que permitiram um percurso rumo a novas descobertas.

Pensar na rota que nos leva a novas descobertas não é tarefa fácil, propõe um exercício

acadêmico sistêmico, metódico, às vezes paradoxal, mas, sobretudo, proporciona uma viagem

no tempo, no espaço, na cultura. E cuja trajetória apresenta a oportunidade de ampliar

horizontes, romper fronteiras e inovar.

Para tanto, foi pensada uma trilha que nos permitisse adentrar no dia a dia da usina,

24

observando os discursos, as práticas sociais e culturais2, (re)significadas na formação de

homens, mulheres e crianças, com o objetivo de prepará-los para o trabalho e adequá-las à

vida na sociedade coronelística.

Assim, o processo educativo presente na tese tem como base a cultura produzida pelo

fenômeno coronelista em Mato Grosso, voltando o olhar para as atividades desenvolvidas nas

invenções do cotidiano da Usina Itaicí, as quais envolvem a questão do trabalho a priore,

porque as pessoas eram recrutadas pelos usineiros para tal fim, e, por meio disso, nos é

desvelado um cenário possível de ações notadamente pedagógicas, uma vez que a educação

pode ser analisada e compreendida nos mais variados espaços e situações como também por

meio das relações sociais, da educação na família, da educação produzida nas igrejas, nos

internatos, ou, como neste caso, que trata da educação produzida no espaço de uma usina.

Esta pesquisa, por sua vez, não foi realizada isoladamente, pelo contrário, a nossa

jornada é sempre coletiva, nossas decisões vêm de uma série de discussões, embates,

construções e (re)construções compartilhadas na trajetória de vida, nas disciplinas, no grupo

de pesquisa, nas orientações, nos congressos, nos arquivos e acervos, enfim, nas relações com

todos os outros e outras, que de forma direta ou indireta também participaram das nossas

fabricações em prol do exercício de historiar. Segundo Certeau (2002, p. 72) ―é como o

veículo saído de uma fábrica, o estudo histórico está muito mais ligado ao complexo de uma

fabricação específica e coletiva do que ao estatuto de efeito de uma filosofia pessoal ou à

ressurgência de uma realidade passada. É o produto de um lugar‖. Então, para historiar, foi

necessário adentrar no mundo dessas fabricações, revisitando os lugares, dialogando e

analisando os múltiplos processos educativos que foram fundamentais na tessitura da presente

tese.

II A PESQUISA

Esta tese se insere no campo da História da Educação e da História Cultural3. Analisa-

se o trabalho e a educação no contexto da Usina Itaicí sob a ótica da sociedade coronelística,

que por sua vez tinha como costume a utilização de práticas clientelísticas nas relações entre

patrões, empregados e suas famílias, algo comum no limiar da República em Mato Grosso.

2 As práticas culturais e sociais são aqui entendidas como os modos de vida de uma determinada sociedade, as

atitudes (acolhimento, hostilidade, vigilância, desconfiança) ou as normas de convivência (caridade,

discriminação, repúdio, repressão) (BARROS, 2011, p. 48). 3 Os estudos nesta abordagem procuram demonstrar renovação de objetos, temas e fontes de pesquisa, dando

atenção aos aspectos do cotidiano.

25

A delimitação geográfica compreende o Estado de Mato Grosso. Especificamente,

trata-se da localização da Usina Itaicí no antigo distrito de Cuiabá denominado Santo Antonio

do Rio Abaixo4. Optou-se por essa delimitação por duas razões: a primeira consiste no

interesse de investigar alguns aspectos da história local; e a segunda deve-se ao fato de que a

Usina Itaicí foi um espaço muito representativo na história de Mato Grosso. Deste modo, a

intenção é poder contribuir com o estudo da temática proposta provocando um diálogo sobre a

educação produzida no cotidiano, nas relações, nos afazeres, de modo que o trabalho será

analisado como uma espécie de espinha dorsal na compreensão da dimensão educativa desse

locus, tendo em vista que os trabalhadores moravam na usina em função do trabalho nos

canaviais e na produção do açúcar e da aguardente, e a percepção de que os trabalhadores e

sua família também serviram nas articulações políticas coronelísticas locais e regionais pelo

fato do voto ter sido um importante ponto de interesse.

A delimitação temporal corresponde os anos de 1897 a 1930 por se tratar,

respectivamente, do momento da inauguração da Usina Itaicí pelo empresário Antonio Paes

de Barros, mais conhecido como Coronel Totó Paes, e ao processo de desarticulação do poder

dos usineiros no estado. O período também está relacionado ao período da Primeira República

que reporta a instituição de um novo regime político e a um cenário marcado por tensões e

instabilidades, culminando com a revolução de 1930.

Refletir sobre a Usina Itaicí e sua dimensão educativa significa compreender como

essa empresa de produção de açúcar e aguardente foi planejada e organizada para o trabalho

em escala industrial, mas, sobretudo, entender como a mesma utilizou de estratégias para

instruir e educar trabalhadores (as) e crianças para a convivência numa sociedade

hierarquizada, sem ignorar o fato de que essas famílias foram seduzidas no sentido de criar

laços afetivos e de lealdade para com os seus patrões. Então, entende-se a importância de

desvelar como se deu a interação entre os sujeitos e destes com o meio, na construção de

saberes, nas atitudes que se formaram trazendo em si as marcas de cada tempo vivido por uma

população e os signos impressos no cotidiano daqueles que um dia fizeram história no espaço

e no tempo desta usina.

A escolha da Usina Itaicí como objeto de pesquisa, com ênfase na História, no

trabalho e na educação, faz parte do meu interesse em investigar a educação com outros

4 O Distrito de Santo Antonio do Rio Abaixo foi desmembrado do Município de Cuiabá em 1900, momento da

sua emancipação política e continuou com a mesma denominação até o ano de 1948 quando esta foi alterada

para Santo Antonio do Leverger, denominação atual.

26

olhares e demonstrar que é possível pensar a educação configurada em espaços diversos, com

outras pedagogias, metodologias e finalidades.

Este estudo partiu da intenção, interesse e curiosidade em compreender esse universo

maior dos processos educativos que tem a ver com o desejo e a sensibilidade em entender a

diversidade dos espaços que educam tal qual acontece no exercício desta pesquisa no espaço

da Usina Itaicí, onde se colocaram as pessoas, às vezes, como única opção de sobrevivência.

A problematização parte da seguinte questão: quais as estratégias utilizadas pelos

proprietários da usina para formar e adequar homens, mulheres e crianças, na condição de

trabalhadores (as) da usina, ao modo de vida da sociedade coronelística?

Partindo dessa pontuação central inquirimos enquanto elementos de investigação:

Como a Usina Itaicí foi organizada para administrar centenas de trabalhadores e

trabalhadoras? Como era o dia a dia na usina? Quais as relações estabelecidas entre patrões e

empregados (as)? Quais eram as atividades propostas e/ou impostas pelos proprietários?

Como a educação foi configurada no espaço da usina? Enfim, esses são alguns

questionamentos que evocam elementos de pesquisa e que ajudam a pensar a educação nesse

locus.

Nessa perspectiva, temos como objetivo geral compreender a atuação dos

proprietários, trabalhadores (as) e suas famílias na formação de valores, costumes,

comportamentos e sentimentos produzidos na sociedade coronelística. A esse objetivo insere-

se mais alguns de caráter específico, a saber:

a) Entender o projeto da usina e seu funcionamento;

b) Conhecer a história da Usina Itaicí sob a ótica da educação;

c) Analisar as práticas clientelísticas e políticas, bem como suas influências na formação

dos trabalhadores e de suas famílias;

d) Demonstrar que o espaço da Usina Itaicí também é representativo enquanto espaço

educativo além de um espaço empresarial.

Em face de tudo isso, a tese que aqui será defendida é de que a educação configurada

no universo da Usina Itaicí era mediada pelos seus proprietários que atuavam em função do

trabalho e da política, entre o espaço social mais amplo, o familiar e o escolar, fazendo com

que por meio das normas estabelecidas por eles, das práticas clientelísticas e de interesses

políticos, determinadas ações fossem produzidas com caráter educativo a fim de preparar os

trabalhadores (as) e as famílias conforme os princípios de uma sociedade coronelística.

Três hipóteses sustentam a tese: a primeira observa que a educação produzida no

27

espaço da Usina Itaicí envolvia a fabricação de valores, costumes, hábitos, atitudes e

sentimentos que adequavam às famílias ao modo de vida das sociedades coronelísticas por

meio de práticas clientelísticas e políticas em função do trabalho. A segunda é de que os

proprietários da usina tiveram condições maiores de imprimir as suas representações em torno

da educação sob a ótica de uma sociedade hierarquizada. A terceira é de que as ações

fabricadas em função dessas adequações tornavam-se educativas na medida em que

satisfaziam interesses e necessidades diversos.

Pensando nos possíveis caminhos para responder as inquietações, recorreu-se às

relações clientelísticas como o fio condutor para compreender como o trabalho e a educação

estavam interligados na formação de hábitos, costumes e nas condutas dos trabalhadores (as)

e de suas famílias.

Sabendo que o Clientelismo ―indica um tipo de relação entre os atores políticos que

envolvem concessão de benefícios públicos, na forma de empregos, benefícios fiscais,

isenções em troca de apoio político, sobretudo na forma de voto‖ (CARVALHO, 1997, p. 2),

esse movimento de trocas e benefícios implicava em ter um ambiente favorável na concessão

de favores.

A Usina Itaicí parece ter sido um ambiente propício para determinada prática à medida

que o coronel tinha forças necessárias para este fim; ou seja, tinha em suas mãos, na forma de

laços de lealdade ou até mesmo por imposição, uma espécie de exército a seu dispor.

Observa-se também que a comunidade de Itaicí era formada por centenas de trabalhadores

(as) e isso certamente representava inúmeros votos, importantes enquanto elemento de troca.

Deste modo, percebe-se que o espaço da usina sugere mais do que um lugar de

empreendimento no ramo do açúcar. Os proprietários tiveram condições de fazer com que as

pessoas vinculadas a eles fossem conduzidas a pensar e agir da sua maneira, e por que não

dizer de acordo com seus interesses e para seus benefícios.

Durante o período em questão foram produzidas representações acerca do trabalho e

da vida nas usinas de açúcar de Mato Grosso, incluindo a Usina Itaicí, sendo que por meio

dessas fontes foi possível tecer uma narrativa da dimensão educativa no contexto da Usina

Itaicí.

Com o estudo é ancorado na História da Educação e na História Cultural, recorremos à

metodologia da pesquisa qualitativa de abordagem histórica. A abordagem histórica faz parte

de uma operação que proporciona localizar, inventariar, reunir e analisar um corpus

documental referente a atas, ofícios, mensagens, relatórios, regulamentos, imprensa periódica,

28

obras memorialísticas, fotografias, relatos, entre outros, os quais permitem visualizar os mais

diversos contextos no ambiente da usina.

Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar

em ―documentos‖ certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova

distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em

produzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou

fotografar estes objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu

estatuto (CERTEAU, 2002, p. 80).

Escrever uma narrativa sobre a educação por meio de ações fabricadas no contexto da

Usina Itaicí é se deparar com a problemática das fontes a serem transformadas em

testemunhos a interrogar. Sabemos que na pesquisa histórica é necessário um pouco mais de

coragem, paciência e criatividade para superar os bloqueios que às vezes o tempo impõe sobre

a documentação disponível.

Nesse sentido, o trabalho investigativo nos arquivos sabe compensar a quem se dedica

a ele, porém, nem toda empolgação esconde que aquilo que se encontra num primeiro

momento é material bruto, ou como o designava Duby: ―uma massa inerte, o enorme

amontoado de palavras escritas mal extraídas das pedreiras de onde os historiadores se

abastecem, selecionando, recortando, ajustando, para construir em seguida o edifício cujo

projeto conceberam provisoriamente‖ (DUBY, 1993, p. 21).

Essa massa ―inerte‖ espera por uma narrativa capaz de atribuir-lhe vida, intencionando

trazer a tona os interesses, as experiências, os saberes, daqueles que no turbilhão de sua

existência, ora tranquila, ora mais hostil, produziram um material ou foram fabricados a partir

dele. Esse esforço historiográfico sugere ―reencontrar o sabor do passado, a vida, os

sentimentos, as mentalidades de homens e de mulheres, mas em sistemas de exposições e

interpretações de historiadores do presente‖ (LE GOFF, 2007, p. 103).

Nessa perspectiva, foi feito um percurso na busca do corpus documental em vários

acervos existentes em Mato Grosso e via online, tais como: Arquivo Público de Mato Grosso

(APMT), Arquivo da Casa Barão de Melgaço (ACBM), Núcleo de Documentação e

Informação Histórica Regional (NDIHR/UFMT), acervo do Grupo de Pesquisa História da

Educação e Memória (GEM), acervo da Biblioteca Nacional (BN), Secretaria de Cultura de

Santo Antonio de Leverger – MT.

Para análise dos dados empíricos, realizou-se um entrelaçamento dos dados contidos

nas fontes, sem deixar de cotejá-los com as produções especializadas. Os documentos e as

29

leituras do período contribuíram para compreensão do contexto histórico, político e

educacional.

Ao revisitar as fontes oficiais no Arquivo Público de Mato Grosso (APMT) por meio

de um trabalho em equipe realizado pelos mestrandos e doutorandos do Grupo de Pesquisa

História da Educação e Memória, foi possível observar as ações governamentais expressas nas

normas, leis e decretos, e as referências relativas ao modelo de sociedade e de educação que

se pensava naquele período. A legislação foi analisada com foco nas representações sociais e

educacionais presentes naquele contexto, para assim obtermos uma melhor compreensão da

ação do Estado na constituição de um modelo de sociedade e de educação. Aqui, entendemos

a legislação como fruto de relações sociais e como fator importante na constituição das

deliberações.

Dentro do período de 1897 a 1930, às vezes ultrapassando um pouco essa margem de

forma pontual, foi possível explorar os Relatórios e Mensagens dos governantes do Estado, as

Regulamentações da Instrução Pública (1896, 1910 e 1927), os Relatórios da Diretoria da

Instrução Pública, e ainda, atas, ofícios, atestados referentes à Escola de Itaicí.

Esses documentos estão disponíveis no Arquivo Público de Mato Grosso e no acervo

do Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória. Essas fontes permitem visualizar

representações sobre o que se pensava acerca da sociedade da época e o funcionamento da

escola, oferecendo elementos acerca das representações da sociedade, da educação, formação,

como também sinalizam aspectos das ações desses atores sociais (governantes, políticos,

diretores, inspetores, professores etc). Segue os quadros que informam o levantamento

realizado:

Quadro 1 - Referente à relação de mensagens, relatórios e regulamentos emitidos pelos

Presidentes de Estado e Diretores da Instrução Pública do Estado de Mato Grosso.

A

Ano

Mensagens

A

Ano

Relatórios

Ano/Regulamentos

1

1897

Dr. Antonio Corrêa

da Costa 1

1920

Dom Aquino Corrêa

da Costa

1896 – Decreto nº

68 de 20 de junho

de 1896 1

1899

Coronel Antonio

Cesário de

Figueiredo

1

1938

Sr. Augusto Moreira

da Silva Filho 1910 – Decreto nº

265 de 22 de

outubro de 1910 1

1900 a

1903

Antonio Pedro de

Barros

1927 – Decreto nº

759 de 22 de abril

de 1927. 1

1905

Coronel Antonio

Paes de Barros

1

1910

Coronel Pedro

Celestino Correa da

30

e

1

1911

Costa

1

1913 a

1915

Dr. Joaquim

Augusto da Costa

Marques

1

1928

Estevão Alves

Correia

1

1930

Dr. Annibal Toledo

Fonte: APMT/Livros/legislações.

Quadro 2 - Relação das fontes manuscritas referente à Escola de Itaicí.

ANO DOCUMENTO ASSUNTO

1890 a

1935

Ementário Relação das escolas Santo Antonio e da Usina Itaicí

1910 Ata Solicitação dos moradores de Melgaço para criar

uma Escola em Itaicí

1910 Jornal O Commércio Sobre a negação da criação da Escola de Itaicí

1910 Jornal O Commercio Sobre a solicitação da criação da Escola de Itaicí

1910 Jornal o Commercio Continuando a falar sobre a solicitação da Escola de

Itaicí

1911 Jornal O Commércio Sobre a criação da Escola de Itaicí

1912 Jornal o Mato Grosso Descrevendo sobre a escola e a usina

1912 Jornal o Mato Grosso Sobre a apresentação da banda de música

1929 Oficio Comunicando junta médica, como membro dr.

Alberto Novis

1930 Atestado Comunicando que a profª Maria de Souza Escola

Itaicí encontra-se enferma

Vários Livro Com quadros das escolas particulares do estado de

Mato Grosso, tem Itaicí 1928

1930 Atestados Profª Maria de Souza referente aos meses de maio,

agosto, setembro e outubro informando que

trabalhou na Escola de Itaicí

1931 Recibo de pagamento Pagamento do Professor de Itaicí com dedução de

salário

1931 Portaria de nomeação Nomeação do professor Francilino de Souza Filho

Escola Itaicí, mês de fevereiro

1931 Atestado Reforçando que a profª Maria de Souza Escola de

Itaicí esteve em gozo de férias

1931 Atestado Informando que a profª Maria de Souza Escola de

Itaicí esteve em gozo de férias

1931 Atestado Informando que o profº Fabilino de Souza filho

trabalhou exercendo o magistério em Itaicí/Melgaço

e a escola era de propriedade particular

1931 Atestado Informando que a profª Maria de Souza Escola de

Itaicí esteve em gozo de férias mês de janeiro

1931 Oficio Profº José Fabilino de Souza Filho solicitando

31

passagem para Campo Grande a fim de descontar

em seu vencimento

1931 Solicitação Profº interino de Itaicí solicitando material escolar

para o almoxarifado do estado Fonte: Acervo do Arquivo Público de Mato Grosso e Hemeroteca Digital – Biblioteca Nacional.

As pesquisas realizadas no APMT envolveram também um trabalho intenso de

localização e digitalização das fontes relacionadas à história da educação de Mato Grosso.

Além do objetivo de encontrar as documentações referentes à Usina Itaicí e à educação entre

os anos 1897 a 1930, nos disponibilizamos para criar um acervo de documentação digitalizada

com todas as fontes encontradas em arquivos específicos da Instrução Pública de Mato Grosso

e em arquivos avulsos, os quais continham fontes da educação e de outras secretarias do

estado.

A criação do referido acervo foi idealizado pela nossa orientadora - profª Dra.

Elizabeth Figueiredo de Sá, com o objetivo de deixar registrado no site do GEM um banco de

dados com documentos correspondentes ao período de 1930 a 1950. Os documentos seguem

na fase de catalogação para em seguida serem incluídos no acervo online do grupo de

pesquisa.

Dando continuidade as informações específicas desta pesquisa, vimos que as leituras

dos jornais contribuíram para localizar outras informações, principalmente do cotidiano das

usinas de açúcar de Mato Grosso e da Usina Itaicí. Nessas fontes, encontramos notícias

referentes à inauguração da usina, sobre a produção, sobre as pessoas que circulavam por lá,

trabalho, escola e denúncias de maus tratos.

Os jornais apontam elementos de representação e ações acerca das usinas de açúcar e

constituem espaço de expressão de atores diversos (políticos, comerciantes, governo,

intelectuais, poetas, e também, de pessoas comuns, trabalhadores, etc). Mas a característica

principal desse tipo de fonte é a possibilidade de visualizar as vozes ausentes nos documentos

oficiais. Segue o quadro do levantamento realizado:

Quadro 3 - Jornais: Assuntos diversos.

ASSUNTOS

JORNAL

ANO

ASSUNTO

A capital

A cruz

Autonomista

O Brasil

O Commercio

O Mato Grosso

O Mato Grosso

1926

1962

1904-

1909

1906

1910

1917

Terras da usina

Falando sobre Inauguração da usina

Propaganda da usina

Violências e descaso

Chamadas para trabalhar na usina

Produção

Visitas de autoridades

32

Usina Itaicí

O Republicano

O Republicano

O pharol

O Commercio

O Commercio

1920

1897

1898

1909

1910

Chegada das máquinas

Importância do desenvolvimento da

usina

Associação da usina à metrópole

Firma Almeida e Cia

Jorge Reinners

Santo Antonio do

Rio Abaixo

A Cruz

O Mato Grosso

1930

1931

1930

1930

1931

1930

Prefeitos e intendentes

Intervenção em Santo Antonio

Observações sobre o leito do rio

Cuiabá de SAL até Pirayn

Sobre a vida em SAL

Problemas políticos

Antonio Paes de

Barros

O Republicano

1932

1899

1898

1898

1899

1897

1918

Sobre a pessoa de Totó Paes

Totó Paes se desculpando aos amigos

Presença de Totó Paes em Cuiabá

Retorno de Totó Paes

Presença de Totó Paes em Cuiabá

Totó Paes em evento em de 22 de

abril de 1897

Instrução e escola

Itaicí

A Luz

A Cruz

A Cruz

A Cruz

O Commercio

O Commercio

O Mato Grosso

O Mato Grosso

O Mato Grosso

O Commercio

A Cruz

1924

1937

1911

1948

1910

1910

1912

1912

1911

1910

1910

Instrução primária rural

Sobre educação

Escola sem Deus

Primeira comunhão nas escolas rurais

Sobre indeferimento da Escola de

Itaicí

Criação da escola

Escola de Itaicí descrição

Apresentação da banda de música

Itaicí

Instrução pública

Criação da escola

Religião e educação

Escravidão

A Semana

A Semana

1924

1926

Denuncia de escravidão nas usinas de

SAL

Vendas de escravos

O Mato Grosso

A Luz

A Cruz

A Plebe

A Reação

A Luz

A Capital

A Capital

A Capital

A Cruz

A Luz

A Noticia

1917

1915

1934

1928

1928

1924

1924

1925

1934

1924

1925

19927

Discurso de Azeredo

Denúncia de maus tratos

Grito de sangue

Críticas de Mário e Pedro Celestino

Trabalho nas usinas

Destruindo calúnias e mentiras

Patrões e empregados

Partidários usineiros

Benfeitorias do cel. Palmiro Paes de

Barros

Denúncia de feudalismos dos coronéis

Grito de sangue na usina Aricá

Denunciante Ignotus

Criação batalhão de Cuiabá e de SAL

33

Conflitos

A Plebe

A Plebe

A Plebe

A Plebe

A Reação

A Reação

A Semana

A Semana

A Tribuna

O Democrata

O Mato Grosso

O Mato Grosso

O Mato Grosso

O Mato Grosso

O Mato Grosso

1927

1927

1927

1928

1927

1928

1924

1926

1927

1910

1916

1917

1917

1933

1928

Assinatura de uma lista

Depoimento de operário

Censura da imprensa

Maus tratos

Cobrança de impostos causa

indignação

Poema sobre atrocidades nas usinas

SAL

Usinas em SAL

Conflitos em jornais republicanos e a

reação

Fugitivos das usinas

Respondendo ao jornal o democrata

Propaganda para trabalhar nas usinas

Conflito na usina Aricá

Baia do Garcez

Sobre cartões

postais

O Mato Grosso

1913

Coleções de cartão postais de Itaicí

Embarcações

O Commercio s/d Embarcações Lucy

Infância

A Capital

O Debate

O Pharol

A Capital

Correio do

estado

O Jornal

A Capital

A Luz

Correio do

estado

O Debate

O Debate

O Pharol

O Pharol

O Jornal

O Jornal

1926

1911

1902

1946

1921

1930

1925

1924

1923

1911

1913

1902

1903

1907

1930

Capital, escotismo e infância

Congresso sobre infância

Infância rural

Vagabundagem

Representação da infância

Furtos de escolares em Cuiabá

Infância brasileira

Sobre as usinas

Censo crianças em idade escolar

Educação

Poesia sobre infância

Importância da educação para

progresso e trabalho

Educação da infância e combate ao

trabalho infantil

Escolas particulares

Infância ociosa

Poesias

O Mato Grosso

O Mato Grosso

O Republicano

O Republicano

O Republicano

1915

1916

1917

s/d

1926

Sobre o estado de Mato Grosso

Visita do deputado Carlos Gomes

Borralho em Itaicí

Dedicada à Salvador Albuquerque

(despedida)

Vozes de Cuiabá

Para Mario Correa da Costa Fonte: Hemeroteca Digital – BN.

34

As fontes iconográficas, em particular as fotografias, certamente são uma

possibilidade a mais de leitura e interpretação do espaço educativo que propomos investigar.

Entendemos as fotografias enquanto fontes, elas se posicionam como instrumento de

memória, permitindo dar visibilidade para as pessoas, os objetos, as ruas, as casas, a

sociedade, enfim, para o espaço e ao tempo. Enquanto representação, a fotografia nos revela

sinais, símbolos, segredos, mistérios ou o obvio. Segue quadro da quantidade de fontes

iconográficas localizadas:

Quadro 4 - Número de fontes iconográficas

FIGURAS

34 Elaborado pela pesquisadora.

Foram utilizadas também algumas obras consideradas memorialísticas que nos

auxiliaram com informações pertinentes a vida na Usina Itaicí. Essas obras são ricas em

representações e dados referentes ao cotidiano na usina. São elas:

Quadro 5 - Obras memorialísticas de Mato Grosso.

AUTOR OBRA ANO

Virgílio Corrêa Filho As indústrias mato-grossenses 1945

Virgílio Corrêa Filho História de Mato Grosso 1969

Antonio Fernandes de Souza Antonio Paes de Barros e a Política de Mato

Grosso

1958

Lenine Póvoas O ciclo do açúcar e a Política de Mato Grosso 2010 Fonte: Elaborada pela pesquisadora.

Os testemunhos utilizados foram localizados da seguinte forma: a) na pesquisa da

Profª Drª Marlene Gonçalves, b) acervo de família, c) acervo do NDIHR. Os testemunhos

localizados na tese de doutorado de Gonçalves (2011) tratam de relatos de ex-funcionários das

usinas de açúcar de Mato Grosso. Encontramos em um acervo de família o testemunho do Sr.

Luiz Pereira Duarte, ex-aluno da Escola de Itaicí, que foi registrado por escrito no ano de

1995 e devidamente assinado por ele. Esse senhor morou e estudou na Usina Itaicí entre os

anos de 1924 a 1928. A referida fonte foi gentilmente cedida pela sua família para a

pesquisadora e disponibilizada para o acervo do Grupo de Pesquisa (GEM/UFMT).

Os testemunhos localizados no acervo do NDIHR dizem respeito ao Projeto: Arquivo

Foto fonográfico - Memória social da cuiabania, coleção: Martha Arruda Paiva, o qual se

encontra em fase de catalogação pelo Núcleo de Documentação Histórico Regional

(NDIHR/UFMT). Na oportunidade, fui convidada para participar do processo de catalogação

35

nos anos de 2017 e início de 2018, colaborando voluntariamente com a elaboração de resumos

das transcrições dos testemunhos. Trata-se de testemunhos de ex-trabalhadores das Usinas de

Açúcar de Mato Grosso, inclusive da Usina Itaicí, e também constam outros depoimentos

referentes às temáticas voltadas para a história do estado de Mato Grosso.

Após uma série de buscas nesses arquivos e acervos foi possível reunir um corpus

documental expressivo que será interrogado ao longo desta tese. De forma concreta, essas

memórias do passado serão aqui apresentadas a partir de três categorias que possibilitaram

direcionar o olhar para empiria.

A primeira categoria que elencamos trata-se do espaço. O espaço é analisado com

base em Certeau:

Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o

circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade

polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. [...] Em

suma, o espaço é o lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida

por um urbanista é transformada em espaço pelos pedestres. Do mesmo

modo, a leitura é o espaço produzido pela prática do lugar constituído por

um sistema de signos – um escrito. [...] Organizam também os jogos das

relações mutáveis que uns mantêm sobre os outros. São inúmeros esses

jogos, num leque que se estende desde a implantação de uma ordem imóvel

[...] até a sucessividade acelerada das ações multiplicadoras de espaço (1994,

p. 202-203).

Certeau (1994) procura tratar do espaço habitado. Esse espaço habitado resulta, para

ele, de três operações: a produção de um espaço próprio, o estabelecimento de um não tempo

com relações às tradições, bem como, a criação de um sujeito universal e anônimo que é a

própria cidade (Idem,1994). O lugar praticado segundo a lógica de Certeau (1994) tem a ver

com a espacialidade, com as atitudes humanas, vivências e convivências fabricadas no

cotidiano, uma vez que ele entende que o espaço é composto por práticas.

O ponto de interesse no conceito de espaço de Certeau (1994) está em observar os

modos de ver e fazer dos proprietários, moradores (as) e trabalhadores (as) da população de

Itaicí. Dá-se atenção aos aspectos de apropriação do espaço diante das relações exercidas no

fluxo dos movimentos dos atores sociais, configurados em meio a uma relação de poder,

observando a construção de identidades, sentimentos, sensibilidades, símbolos e, imaginários,

os quais potencializam o olhar para o espaço como um elemento pedagógico.

A segunda categoria é a escolarização. Mesmo tendo como prioridade um estudo

referente às ações produzidas em um espaço considerado pouco convencional para fins

educativos, não se ignorou nesta pesquisa o espaço escolar configurado na Escola de Itaicí,

36

por entender que a escola é uma ferramenta de formação fomentada pelos proprietários da

usina, direcionada para alfabetização das crianças e, portanto, se integra ao conjunto de ações

de cunho educativo produzidos nesse locus.

Tal perspectiva possibilita pensar a história da educação e a história da escola,

conforme Faria Filho (2002), associada à constituição de mecanismos internos e de uma

materialidade própria à escola, como também, à produção do entendimento de educabilidade

da infância. Ressaltando:

A escola, ao constituir-se como agência responsável pela educação e

instrução das novas gerações o faz não de forma pacífica e consensual, mas

de forma conflituosa, buscando agressivamente resgatar a infância de outros

espaços-tempos de formação, notadamente a família, a religião e o trabalho

(FARIA FILHO, 2002, p. 1).

Pretende-se investigar com isso a função social da escola, seu papel diante da

proposição de instruir e educar, as intencionalidades, e, portanto, busca-se apreender os

vestígios da história da instituição, isto é, a história da Escola de Itaicí e a formação das

crianças, observando como ―a ação escolar fez-se sentir além de seus ‗muros‘, irradiando para

o conjunto da sociedade, constituindo-se em referência importante para a definição de

identidades pessoais e coletivas, públicas e privadas, políticas e profissionais, dentre outras‖

(FARIA FILHO, 2003, p. 2).

Então, para melhor esclarecimento, entende-se por escolarização ―o processo e a

paulatina produção de referências sociais tendo a escola, ou a forma escolar de socialização e

transmissão de conhecimentos, como eixo articulador de seus sentidos e significados‖

(FARIA FILHO, 2003, p. 2). Nessa direção, procura-se por indícios da cultura escolar

fabricada na usina por meio da Escola de Itaicí.

A terceira categoria é o trabalho. A intenção é investigar as atividades produtivas

presentes no universo da Usina Itaicí, em especial, o processo de produção do açúcar, bem

como, as representações e apropriações inerentes à construção da cultura do trabalho. As

fontes referentes ao trabalho indicam que os trabalhadores (as) passavam por uma rotina

organizada através de horários e tarefas específicas. Isso envolvia uma variedade de trabalho

existente na usina para homens, mulheres e crianças, como as atividades nos canaviais, a

produção industrial do açúcar, o trabalho doméstico, o trabalho docente, comercial, religioso e

administrativo, e etc. Nesta perspectiva, intenciona-se aqui compreender a cultura do trabalho

fabricada na usina, voltando o olhar para a formação de valores, hábitos, comportamentos e,

37

técnicas, que se apresentam por meio de normas e regras, cronogramas, condutas

disciplinares, e também por meio de saberes e experiências adquiridas ao longo da vida.

A cultura do trabalho será o elemento norteador para o entendimento da formação dos

trabalhadores (as) da usina para o trabalho e para adequação ao modo de vida das sociedades

coronelísticas. Para tanto, fundamenta-se no aporte teórico apresentado por Palenzuela:

Las centralidade del trabajo em la vida social no sólo está sustentada em la

universidad de la actividad de bienes y servicios para la subsistência material

de cualquier forma de organizacíon social, sino también em la enorme

eficácia que, a los afetos de la reproducción social, cobra el conjunto de

construcciones ideáticas que sobre el trabajo han elaborado Las tradiciones

idelólogicas (PALENZUELA, 1995, p. 3).

Portanto, busca-se analisar o trabalho na usina como:

un conjunto de aciones intencionales y no instintivas, individuales o

coletivas, encadenadas y ordenadas, que relacionan la fuerza del trabajo com

los medios de producción y com los instrumentos de trabajo al objeto de

conseguir un resultado final que responda a uma necessidade social

(PALENZUELA, 1995, p. 4).

Com isso, percebe-se que os direcionamentos apresentados por Penzuela (1995),

ambos complementares, evidenciam a funcionalidade do trabalho tanto no aspecto material

quanto ideológico, de modo que se aproxima do estudo de elementos condizentes à história

cultural, perceptíveis no cotidiano desses trabalhadores (as) na forma como os fabricam,

representam e apropriam-se de determinados valores e habilidades ligados à cultura do

trabalho, que por sua vez, traz consigo os componentes de uma pedagogia, ou seja, o espaço,

os horários (tempo), as atividades, os mediadores, as ferramentas, o conteúdo, a metodologia,

a avaliação, entre outros.

Ao tratar da educação na escala que propomos, assumimos que é um esforço que se

apresenta como um grande desafio. Ao verificar as produções sobre História da Educação no

Brasil, vimos que na maioria das vezes, as pesquisas estão direcionadas aos estudos referentes

aos processos de escolarização, vistos sob diferentes ângulos e variadas fontes, abarcando as

mais diversificadas delimitações temporais.

Contudo, pesquisadores de destaque da história da educação têm evidenciado que as

experiências educativas ocorridas fora da escola precisam ser exploradas, ressaltando que a

história da educação não pode ficar reduzida a história da escolarização.

Bastos (2016), Monarcha (2007), Gondra e Schueler (2008); Galvão e Lopes (2010), e

38

Gohn (2006) da área da sociologia, são alguns dos pesquisadores que sinalizam a perspectiva

de estudos sobre a educação a partir das abordagens: formal e informal, institucionalizados ou

não, processos educativos e escolares.

Bastos (2016) retoma o debate referente à História da educação, uma vez que a autora

considera que a busca por resposta para essa indagação aparentemente simples é bem

complexa e provisória.

A autora assinala o diálogo positivo com a historiografia da História e da História da

Educação, em termos nacionais e internacionais, bem como, a diversidade de temas e

abordagens teórico-metodológicas que decorre da formação multidisciplinar dos

pesquisadores que produzem na área.

Dessa forma, aproveitamos para salientar que a própria maneira como Bastos (2016)

trata os estudos em educação, ou seja, como memória educacional e escolar indica um olhar

plural para os processos educativos, não limitados ao conhecimento da educação escolarizada.

Inclusive, uma das abordagens que muito nos interessa, apontada pela autora, trata-se da

relação História Cultural e História da Educação apresentada por Cunha quando diz que essa

relação ―promove um alargamento das possibilidades investigativas, indo além dos espaços

mais formais da educação, em direção a outros campos do conhecimento, sujeitos e objetos

até então inexplorados‖ (CUNHA, 1999, p. 41 apud BASTOS, 2016, p. 49).

Nesse sentido, Bastos5 há alguns anos vem despertando os pesquisadores da História

da Educação a pensar acerca de outros processos educativos que caminham junto com a

educação escolarizada, uma vez que esse olhar plural reflete as ações do cotidiano de todos os

atores sociais e, essas ações são produtoras de cultura, conforme o lugar que cada um

(individual e coletivamente) ocupa na sociedade.

Monarcha (2007) traz algumas reflexões acerca do desenvolvimento da pesquisa e

produção do conhecimento histórico em educação no Brasil a partir de 1930. A parte que

chama atenção dentro do nosso campo de interesse é quando o autor relata que a partir dos

anos 70 e, mais consideravelmente, dos anos de 1990, novas clivagens na paisagem

intelectual, seguidas também de reorientações enfáticas nos estudos históricos em educação,

explicitaram o desejo de diferentes atores, dos discursos acadêmicos, de produzir outro tipo de

conhecimento histórico em educação.

Nessa perspectiva, Monarcha (2007) aponta ainda que gradativamente se foi

delineando uma fundamentação de que tudo é objeto histórico. Segundo o autor, foram

5 Ver Maria Helena Câmara Bastos (2006, 2009, 2011); Bastos & Almeida (2013).

39

acolhidos e legitimados nos estudos em educação, outros temas e objetos de conhecimento,

como, gênero, infância, identidades, tempo, disciplinas e formas escolares, modos de ler,

métodos de ensino, profissão docente, instituições escolares, periodismo pedagógico e,

sobretudo, cultura escolar, temas que se encontram hoje amplamente trivializados no sistema

intelectual acadêmico.

De outra parte, Monarcha (2007) afirma que na contemporaneidade a produção do

conhecimento histórico em educação como em outros campos das Ciências humanas e sociais,

encontra-se sobressaltada pela crise dos ismos e pelas vagas sucessivas de modelos teórico-

explicativos e métodos críticos ―provocando desaparecimento e surgimento de temas e objetos

de investigação pelo aparente esgotamento de esquemas analíticos legitimados‖

(MONARCHA, 2007, p. 74).

Assim, o autor conclui:

Contudo, podemos dizer que, neste momento, estamos diante de um certo

paradoxo, a saber: em consequência do descarte da noção de totalidade (que

obviamente não deve ser confundida com abordagem macrossocial), boa

parte da expansão dos estudos históricos vem se processando graças à

retração tendente a reduzi-los ao estudo da escola e fenômenos derivativos.

Todavia, não é desejável e oportuno reduzir tais estudos à esfera escolar

fechada sobre si mesma (MONARCHA, 2007, p. 74).

A consideração de Monarcha no sentido de não reduzir as pesquisas em História da

Educação à esfera da escola nos apresenta como suporte para pensar nos demais espaços de

convívio social, que por sua vez, tornam-se educativos através de representações e ações

produzidas coletivamente. Produções do cotidiano que também são formativas e que por sua

vez chegam à escola. Um exemplo deste tipo de pesquisa é a tese de Juarez Anjos (2015) que

trata da educação da criança pela família no século XIX.

Gondra e Schueler (2008) fazem uma reflexão acerca dos projetos e experiências de

escolarização a partir de suas relações com Forças, Formas e Sujeitos distintos. A intenção

dos autores é possibilitar uma melhor compreensão de outros tempos e do presente,

combatendo muitos esquecimentos e problematizando o que já foi narrado sobre aquelas

vivências.

Nesta operação os autores evidenciam, entre outras coisas, a necessidade de pensar a

história em sua historicidade, destacando que diferentemente do que foi (e é) escrito acerca

deste passado, os vestígios e pistas dão a ver embates, projetos, lutas e experiências.

Um apontamento relevante para esta pesquisa é a noção de educação apresentada por

40

Gondra e Schueler (2008), que assumem como válida a compreensão de educação como

―experiências educativas institucionalizadas ou não institucionalizadas, de forma a dar a ver

ações do convívio privado, sociabilidades, festas etc‖ (Idem, 2008, p. 704). Ficam

evidenciadas também análises voltadas para as iniciativas do estado como pela igreja, pelos

comerciantes, intelectuais, filantropos. Para os autores é possível notar nos novos estudos de

história da educação que esta é uma tentativa de romper com as perspectivas até então

hegemônicas, que priorizam apenas agências centrais na escolarização (o estado e a Igreja). E

ainda, deixam claro que ―ao contrário, estiveram preocupados em destacar a exigência de

diversos outros tipos de processos educativos, formais ou informais‖ (GONDRA;

SCHUELLER, 2008, p. 74).

No campo da sociologia, Gohn (2006) apresenta várias pesquisas que abordam a

questão da educação não-formal. Para a autora, quando tratamos da educação não-formal, a

comparação com a educação formal é quase que inevitável. Nesse sentido, ela procura

demarcar e distinguir as diferenças entre os conceitos de educação formal, informal e não-

formal. Sendo assim:

A educação formal é aquela desenvolvida nas escolas, com conteúdos

previamente demarcados; a informal como aquela que os indivíduos

aprendem durante seu processo de socialização – na família, bairro, clube,

amigos etc., carregada de valores e culturas próprias, de pertencimento e

sentimentos herdados; e a educação não-formal é aquela que se aprende "no

mundo da vida", via os processos de compartilhamento de experiências,

principalmente em espaços e ações coletivos cotidianas (GOHN, 2006, p.

25).

A educação de natureza não escolar discutida neste estudo segue na direção da

Educação não-formal apresentada por Gohn (2006), a qual considera as aprendizagens no

cotidiano, na vida, nos compartilhamentos de experiências nos espaços mais variados.

O educador é o outro, aquele com quem interagimos ou nos integramos. Os

espaços educativos localizam-se em territórios que acompanham as

trajetórias de vida dos grupos e indivíduos, isto é, fora das escolas, locais

onde há processos interativos intencionais, guiado à luz das diretrizes desses

grupos. O método surge a partir de problematização da vida cotidiana; os

conteúdos emergem a partir dos temas que se colocam como necessidades,

carências, desafios, obstáculos ou ações empreendedoras a serem realizadas.

São construídos no processo. O método passa pela sistematização dos modos

de agir e de pensar o mundo que gira em torno das pessoas. A educação

insere-se, contudo, no campo do simbólico, das orientações e representações

que conferem sentido e significado às ações humanas (GOHN, 2006, p. 29).

41

No contexto de Mato Grosso, segundo balanço realizado por Sá e Siqueira (2004),

observa-se que desde os primeiros trabalhos desenvolvidos em História da Educação no

estado foram priorizadas pesquisas com foco nas temáticas voltadas para educação

escolarizada. Nos estudos de Virgílio Alves Corrêa Filho que em 1925 publicou Questões do

ensino, encontramos uma abordagem histórica da educação no estado referente ao período do

século XVIII a meados do XX, traçando um panorama do cenário educacional mato-

grossense.

Em seguida Gervásio Leite, em 1940, propôs-se a escrever Um século de instrução

pública (História do ensino primário em Mato Grosso), publicado somente em 1970. Em 1960

foi publicada História do ensino em Mato Grosso de Humberto Marcílio Reinaldo. Segundo

Sá e Siqueira (2004) foi uma das obras mais completas naquele momento. Esses autores

representaram a primeira tentativa de reconstituição da trajetória da História da Educação de

Mato Grosso ―tendo sido fundamental para cimentar e dar base e apoio às produções que se

seguiram, nascidas no interior das universidades e cuja autoria se deve a educadores ou

historiadores de formação‖ (SÁ; SIQUEIRA, 2004, p. 55).

Os autores mostram que a partir de 1970 as produções passaram a ser realizadas não

mais do ponto de vista clássico que enfatizava os trabalhos através de uma visão

―panorâmica‖ da educação. Os trabalhos que sucederam essa primeira geração de produções

na área foram elaboradas a partir do ponto de vista acadêmico. Sá e Siqueira (2004) ressaltam

que os programas de pós-graduação serviram como alavancas para desencadear uma nova

produção no campo da historiografia da educação e ao lado desse fator se configura o esforço

dos grupos de pesquisas em História da Educação que vêm ao longo do tempo investindo na

localização, catalogação e divulgação dos acervos documentais existentes no estado.

Desta forma, o grupo de pesquisa História da Educação e memória existente a mais de

20 anos na Universidade Federal de Mato Grosso, priorizou um trabalho de levantamento de

fontes capaz de dar suporte aos pesquisadores da área da história da educação. Na trajetória

do grupo de pesquisa foram desenvolvidas dissertações e teses voltadas para os processos de

escolarização pública e privada, com foco nos aspectos institucionais, expansionistas,

formação, culturas escolares, entre outros.

Dentre essas, duas pesquisas foram desenvolvidas no campo da educação vista de

forma mais ampla, abordando aspectos da educação configurados através das práticas sociais

e culturais, com ênfase nos estudos da educação escolar e não escolar. Assim, temos as

pesquisas da Drª Nileide Souza Dourado (2014) que investigou as Práticas Educativas

42

Culturais e Escolarização na Capitania de Mato Grosso e do Dr. Gino Buzato (2015) que trata

sobre Transformações Urbanas em Cuiabá e a formação do cidadão moderno.

A tese de Dourado (2014), intitulada Práticas educativas culturais e escolarização na

capitania de Mato Grosso (1748-1822), analisa diversas modalidades educacionais de

natureza escolar e não escolar. No campo da educação formal o destaque foi para as reformas,

com foco na instituição de aulas régias em Cuiabá e Vila Bela, nos concursos para provimento

das cadeiras e no deslocamento de alunos mato-grossenses para os estudos superiores em

Portugal. O estudo também nos chama a atenção para a dimensão não escolar, que se

manifestou pela circularidade de saberes necessários para o desenvolvimento de atividades

técnicas de engenharia militar e de ensino de ofícios, que segundo Dourado (2014), eram

imprescindíveis na construção e garantia da segurança na fronteira oeste. Para isso, se fez

necessário ampliar as abordagens tendo como base as relações de sociabilidade presentes no

território mato-grossense, tanto pelo ponto de vista do âmbito escolar quanto na dimensão não

institucional.

A pesquisa de Buzato (2015), Transformações urbanas em Cuiabá e a formação do

cidadão moderno (1937-1945), consiste em uma análise da dimensão educativa da cidade de

Cuiabá – MT no período do Estado Novo e a formação de um perfil de cidadão dinamizado

pelas relações entre a população e a administração pública, na construção e reconstrução da

cidade enquanto materialização de espaços educativos. O principal objetivo foi analisar a

formação do cidadão moderno na capital, no âmbito da produção do espaço e da convivência

urbana, promovida na gestão do interventor Júlio Müller. Para o autor,

As transformações realizadas na cidade de Cuiabá, promovidas pelas ações

governamentais, ao se materializarem em novos elementos da paisagem

urbana, visavam formar cidadãos modernos em contraposição ao cidadão

com hábitos rurais (BUZATO, 2015, p. 11).

Essas pesquisas tiveram como proposta explicar a educação através das ações do

cotidiano, das práticas sociais e culturais presentes na sociedade mato-grossense em períodos

diferentes, buscando dar visibilidade para a educação em espaços diversos.

Sobre as produções acerca das usinas de açúcar de Mato Grosso, temos os trabalhos de

Siqueira; Costa; Carvalho (1990); Siqueira (1997); Aleixo (1984; 1995); Póvoas (2010);

Correa Filho (1945; 1969); Souza (1958); Silva (1997). Dentre essas obras temos as de cunho

historiográfico e memorialísticas, que destacam ora aspectos da história de Mato Grosso, ora

tratam da história das indústrias mato-grossenses, como também, destacam a produção e a

43

vida nas usinas de açúcar, o trabalho escravo e o trabalho livre nas lavouras de cana de açúcar,

sem deixar de registrar a participação dos usineiros na política de Mato Grosso.

Siqueira et al em O Processo Histórico de Mato Grosso (1990) esclarece sobre as fases

da história do estado partindo da análise de fatores sociais, econômicos, políticos e culturais.

O livro está dividido em quatro unidades correspondentes as seguintes temáticas: sistemas

produtivos, movimentos sociais, fronteiras e abastecimento e a questão indígena. A parte que

nos chama a atenção é sobre a produção açucareira no estado, a qual destaca o momento dos

engenhos e das usinas de açúcar, relata sobre o trabalho, as instalações e o tempo nas usinas.

As autoras apresentam informações importantes para pensar a dimensão educativa da Usina

Itaicí.

Outro trabalho de Siqueira (1997), A ocupação pioneira do Rio Cuiabá Abaixo, analisa

aspectos do povoamento dessa região do estado, e busca evidenciar como foram concedidas

as cartas de sesmaria, a formação da comunidade de Santo Antonio do Rio Abaixo, o tráfego

pelo Rio Cuiabá e, sobretudo, trata da instalação e funcionamento das usinas do estado.

A obra de Aleixo (1984), Mato Grosso Trabalho escravo e trabalho livre (1850-1888),

analisa como o capital mercantil organizou as relações de trabalho na província de Mato

Grosso. A autora procura dar visibilidade na forma como essa atividade conseguiu absorver a

força de trabalho escravizada e livre. Essa leitura ajuda a pensar o que permaneceu e o mudou

nas relações de trabalho entre o regime imperial e o republicano, ou entre a província e o

estado.

Já em Vozes no Silêncio: subordinação e trabalho em Mato Grosso, Aleixo (1995),

trata sobre a exploração do trabalho no cenário mato-grossense no período de 1888-1930. A

autora faz ecoar as vozes dos trabalhadores e as suas representações acerca do tratamento

dado nas usinas de açúcar, como também procura dar destaque aos momentos de resistências

à exploração do trabalho e a organização da classe trabalhadora nos principais centros

urbanos. Sobre a vida nas usinas, a autora relata que não era difícil perceber como os coronéis

tinham o poder sobre a vida de cada trabalhador, e como o mesmo estava condenado a uma

espécie de servidão.

Lenine Póvoas (2010) na obra O Ciclo de Açúcar e a Política de Mato Grosso dá

atenção aos aspectos da vida cotidiana de experiência industrial em ambiência predominante

rústica. O livro traz informações sobre a organização das usinas de açúcar, relata como era a

produção, quem eram os proprietários, e não dispensa atenção em falar do tratamento dado

aos trabalhadores, e por fim, o autor faz um apanhado da participação dos usineiros na política

44

mato-grossense.

As indústrias de Mato Grosso, livro do autor Corrêa Filho (1945), destaca as principais

indústrias existentes no estado naquele período. Ele também relata sobre a atuação das usinas

de açúcar na economia, buscando mostrar a supremacia do Rio Abaixo no cultivo da cana e na

produção do açúcar. Para ele as estatísticas mostravam certa monopolização do Rio Abaixo.

A produção de Souza (1958), denominada Antonio Paes de Barros e a Política de

Mato Grosso, propõe não silenciar acerca das suas impressões sobre os fatos da política mato-

grossense e como testemunha dos acontecimentos que agitaram a vida social e política de

Mato Grosso. O seu livro, segundo o autor,

É em homenagem à memória daquele que no cenário da atividade industrial

e como homem político, muitos serviços prestou à coletividade, não tendo

sido compreendido pelos seus conterrâneos, os ainda não lhe fizeram a

necessária justiça. (SOUZA, 1958, p. 3).

Essa homenagem foi uma forma de combater a imagem negativa do proprietário da

Usina Itaicí – Cel. Antonio Paes de Barros, seu amigo, deixada pela família de Generoso

Ponce, principalmente em livro publicado com o título de Generoso Ponce – Um Chefe

(1952), o qual se destinou a circular uma imagem demonizada do referido empresário do ramo

do açúcar.

Desta forma, Souza (1958) fez uma versão da história com o propósito de priorizar os

aspectos que para ele aram mais positivos sobre a pessoa de seu amigo e chefe Cel. Totó Paes.

Assim, ele buscou mostrar, segundo a sua representação, quem era o industrial Antonio Paes

de Barros, a sua origem, o espirito de iniciativa, a obra (usina), a vida na usina, o ingresso do

empresário na política e a sua atuação como Presidente de estado entre os anos de 1903 a

1906.

Da mesma forma, Silva (1997) publicou A visão dos vencidos: Totó Paes cem anos

depois. Esse livro foi em comemoração ao centenário da Usina Itaicí (1897-1997). O objetivo

foi mostrar a visão dos vencidos, uma vez que a versão predominante na historiografia de

Mato Grosso foi a imagem negativa repassada por Ponce sobre a atuação do Cel. Totó Paes

como empresário e como político, caracterizando-o como espécie de ―encarnação do mal‖. O

coronel recebeu um legado deixado pelos poncistas como um homem sanguinário, assassino e

violento. A versão do referido autor tenta andar na contramão desse legado, remetendo a uma

representação mais positiva.

A Usina Itaicí, colocada em destaque nesta pesquisa, com foco no trabalho e na

45

educação, é compreendida por meio de uma rotina que envolve elementos presentes na

produção de culturas, como as influências da cultura coronelística e das práticas clientelísticas

na vida dos proprietários, dos trabalhadores (as) e moradores (as) da usina e, bem como, na

cultura do trabalho (―livre‖ ou semiescravo) e na cultura escolar.

A reflexão segue no sentido de perceber como a educação pode ser analisada a partir

do contexto de uma usina de açúcar, evidenciando os modos de ver e fazer de uma sociedade.

Observa como se relacionavam, interagiam, comunicavam, produziam e interpretavam o

mundo.

A nossa inquietação direciona-se no estudo do modo de vida de uma sociedade

desigual, localizada no meio rural de Mato Grosso, onde se observa uma espécie de

confinamento, imbuído de ações autoritárias, disciplinadoras e de assujeitamento,

características marcantes de um passado histórico que ainda sobrevive nas sombras do

presente. Conforme Nunes e Sá (2006, p. 7) ―As instituições são os instrumentos de

confinamento, e nesses espaços fechados os indivíduos circulam incessantemente. Eis

algumas instituições típicas: a família, a escola, a caserna, a fábrica, o hospital, a prisão‖.

Assim, interessa-nos aqui a apreensão do movimento dessas forças materiais,

humanas, simbólicas, coercitivas, sensíveis e, sobretudo, pedagógicas, provocadoras de

representações, apropriações e práticas, próprias do modo de vida das sociedades

coronelísticas.

A relevância de investigar a Usina Itaicí a partir do trabalho e da educação na

perspectiva da história da educação e da história cultural, acontece ao poder dar maior

visibilidade à educação na sua pluralidade, à medida que ―da educação ninguém escapa‖

(NUNES, 2003, p. 115) ―seja ela qual for e como for‖ (ANJOS, 2015, p. 48).

III A NARRATIVA HISTÓRICA

Conforme a pesquisa no universo da Usina Itaicí foi tomando forma, acercaram-se de

mim homens, mulheres e crianças na condição de empresários (as), políticos, trabalhadores

(as), domésticas, alunos (as). Não se podia ignorá-los. Então, optou-se por estudar esses atores

com o olhar voltado para educação, uma vez que ao conhecer as histórias da produção de

açúcar no estado de Mato Grosso e, especificamente, na Usina Itaicí, observou-se logo o

potencial desse locus enquanto produtor de culturas.

46

A partir do momento que as fontes ligadas ao problema da pesquisa foram localizadas,

surgiram os atores com fragmentos de suas vidas ajudando a compor uma trama do passado,

na qual esta pesquisa reflete um esforço de investigação. Por esse motivo, esses protagonistas,

tal qual nos registros que nos uniram, compareceram de diferentes formas na difícil tarefa de

pensar a educação e o trabalho no universo da Usina Itaicí.

A tese está dividida em quatro capítulos e apresenta-se nas próximas páginas como

narrativa histórica. Os capítulos foram organizados pensando no entendimento das questões

políticas, econômicas e sociais, na cultura local, na identidade das usinas de produção de

açúcar instaladas no município de Santo Antonio de Leverger, com destaque para a Usina

Itaicí, nos protagonistas da história e na configuração da educação de natureza escolar e não

escolar, expressando-se por meio do processo de escolarização e da formação de valores,

costumes, hábitos e comportamentos produzidos no cotidiano de homens, mulheres e

crianças.

No primeiro capítulo, o olhar está voltado para o contexto republicano no cenário de

Mato Grosso, dando destaque para o fenômeno do coronelismo, que neste caso trata-se de

uma cultura política presente nas comunidades formadas em torno da produção do açúcar, que

por sua vez, apropriaram-se de práticas clientelísticas visando maiores prestígios, controle e

manutenção do poder.

A sociedade coronelística foi formada por meio de princípios hierárquicos,

disseminando uma visão de mundo delineada por tratamento desigual. Assim, problematizou-

se o contexto histórico imbuído de diferenças, tensões, conflitos e instabilidades, de modo que

o modelo de sociedade coronelística, as práticas clientelísticas e interesses políticos,

permitissem uma análise sobre a educação com base nas intencionalidades, observando como

pano de fundo o ambiente de trabalho que produziu bem mais que açúcar e aguardente.

O segundo capítulo trata sobre as usinas de açúcar de Mato Grosso. Procura-se dar

ênfase ao período do ciclo do açúcar no estado, destacando cada uma das usinas e os atores

sociais protagonistas da história e o perfil de cada uma delas.

O terceiro capítulo refere-se os estudos referentes à educação de natureza escolar, isto

é, procura-se dar visibilidade para a Escola de Itaicí e para a escolarização das crianças. Trata-

se de reflexões acerca da criação, organização e da função social da escola e da produção da

cultura escolar.

O quarto e último capítulo diz respeito à dimensão educativa para além da escola.

Busca-se a apreensão da educação sobre vários ângulos, mostrando estratégias fabricadas no

47

espaço da usina, as quais envolviam criar condições para que os trabalhadores (as) e suas

famílias permanecessem na usina sob a ótica de uma liberdade controlada. De todo modo, as

pessoas que optaram por viver na usina seguiram regras rigorosas e apropriaram-se de

costumes, hábitos e comportamentos construídos como algo necessário para a convivência em

grupo naquele momento e para aquele modelo de sociedade.

A conclusão, sem pretender esgotar a temática, sintetiza os aspectos principais da

pesquisa, dando destaque para a defesa da tese que mesmo sendo uma versão provisória da

historiografia da educação de Mato Grosso certamente irá contribuir com os elementos de

pesquisa levantados diante do desafio apresentado na operação historiográfica.

48

CAPÍTULO I

CORONELISMO, CLIENTELISMO E

HISTÓRIA LOCAL

49

1.1 A política em jogo

Os coronéis em Mato Grosso, cujas bases econômicas podiam,

então, porvir tanto da grande propriedade rural, como de um

patrimônio urbano (coronéis pecuaristas, usineiros, agricultores,

comerciantes grandes ou pequenos, etc) exerciam o poder de

decisão efetivamente a nível local ou estadual, mantendo o

controle dos empregos públicos e outros privilégios econômicos

e sociais, e dispunham também de uma grande capacidade de

mobilização de forças sob seu comando direto.

(CORRÊA, 2006)

A afirmação de Corrêa (2006) leva-nos a refletir sobre a atuação dos coronéis em

Mato Grosso e sobre as narrativas utilizadas para explicar o fenômeno do coronelismo.

Começar por essa pontuação leva a refletir sobre as formas como as sociedades rurais foram

organizadas e estruturadas no contexto da Primeira República no estado, considerando que

muitas dessas sociedades passaram pela experiência da cultura política coronelística.

Entende-se que esse seja o primeiro passo para compreender a configuração social da

população de Itaicí, ou seja, assumir que a cultura política coronelística produziu valores,

hábitos e comportamentos gerados por princípios e atitudes hierarquizados.

Segundo Portela (2009), o coronelismo foi um fenômeno característico da Primeira

República brasileira, considerando que este fez parte do folclore político nacional com seus

coronéis de casaca ou terno de linho, calçando botina, de rosto sisudo, arrematando eleitores,

trocando favores, distribuindo cargos, exercendo poder em um determinado município do

interior.

Mas a pesquisa do autor (2006) discute o coronelismo em Mato Grosso muito além

desse estereótipo, ele propõe uma releitura do coronelismo a partir do entendimento que ele

ocorreu como uma figuração específica da Primeira República, isto é:

O fenômeno do coronelismo tem balizas temporais rigorosamente definidas:

inicia-se com a proclamação da República em 1889, se estruturando no

governo de Campos Salles (1898-1902) e termina com a Revolução de 1930,

que pôs fim à Primeira República e sua experiência federalista. Deste modo,

o coronelismo deve ser definido pelo federalismo implantado a 15 de

novembro de 1889 e, principalmente, pelo arranjo político orquestrado por

Campos Salles que deu feição e estabilidade à República brasileira por mais

de trinta anos, estabelecendo novas relações de interdependências entre

poder local (os coronéis, em si, e os chefes políticos locais), entre o conjunto

dos estados, e o governo federal. O espaço geográfico do coronelismo é,

pois, local: municipal e estadual. Mas sua influência é nacional (PORTELA,

2009, p. 21).

50

Compartilho da concepção de Portela (2006) por tratar da mesma fonte de Carvalho

(1997, p. 1), o qual afirma ―o fato político é o federalismo implantado pela República em

substituição ao centralismo imperial. O federalismo criou um novo ator político com amplos

poderes, o governador de estado‖.

A entrada dessa personagem no cenário político brasileiro, isto é, o governador,

ajudou a formar uma nova rede de relações que implicou na política dos estados ou dos

governadores. Todavia, de modo diferente do entendimento de Portela, ao dizer que a

experiência federalista nos moldes orquestrados por Campo Sales representou estabilidade à

República, entendemos que no caso de Mato Grosso, houve a ocorrência de uma série de

tensões e conflitos por disputa de poder, o que envolvia também as escolhas dos grupos

políticos aliados ao governador.

Reconheço que a política dos governadores foi uma estratégia do poder central que

tinha como intenção garantir certa governabilidade a partir de uma rede de alianças que

envolvia o presidente da república, governadores, prefeitos e o povo. Essa governabilidade

tinha como elemento de sustentação a troca de favores entre esses atores políticos, que muitas

vezes iniciava-se pelo presidente da república por representar maior poder de barganha,

depois numa linha decrescente este era seguido pelos governadores, e respectivamente, pelos

chefes municipais, coronéis e o povo.

Essa configuração em que a emergência dos poderes locais, ocasionada pelo

federalismo, permitiu ditar uma nova realidade política, demonstra que a política dos

governadores conduziu arranjos e disputas em Mato Grosso, considerando que o

fortalecimento dos poderes locais por meio de promoções da Guarda Nacional, composta por

civis, forneceu ao coronel, grande peso nas relações políticas locais e nacionais, imprimindo

sua condição de poder e liderança diante de uma sociedade hierárquica.

Essa rede de relações deu protagonismo ao fenômeno do coronelismo que na visão de

Leal (1993) é um sistema político, uma complexa rede de relações que vai desde o coronel até

o presidente da República, envolvendo compromissos recíprocos.

Inspirado em Leal, Carvalho (1997, p. 2) afirma que:

[...] o coronelismo é, então, um sistema político nacional, baseado em

barganha entre o governo e os coronéis. O governo estadual garante, para

baixo, o poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais, sobretudo

cedendo-lhe o controle dos cargos públicos, desde o delegado de polícia até

a professora primária. O coronel hipoteca seu apoio ao governo, sobretudo

na forma de votos. Para cima, os governadores dão apoio ao presidente da

República em troca do reconhecimento deste de seu domínio no estado.

51

O coronel, por sua vez:

(...) é o chefe político local por ser proprietário de terras, ou seja, um

latifundiário. Neste sentido, estão a ele tutelados clientes, funcionários,

agregados rurais e outros, que invariavelmente votam com ele. Seu poder

político consiste, portanto, em utilizar-se de seu prestígio (afinal é ele quem

provê as necessidades imediatas dessa população no município) e mando

para manipular o eleitorado em troca da complacência do Estado (LEAL,

1993, p. 53-54).

Com isso, nota-se que a atuação dos coronéis na esfera local se dava com o uso da

força política para manutenção da ordem. Utilizava-se também a força de milícias que

atendiam muitas vezes interesses particulares. Em uma sociedade em que o espaço rural era

considerado o grande palco das decisões políticas, o controle dessas decisões fazia do coronel

uma autoridade quase inquestionável. A historiografia brasileira tem mostrado que durante as

eleições os favores e ameaças tornavam-se instrumentos de realização da ―democracia‖ no

país.

Arruda (2013) afirma que o sistema coronelista abrangia três esferas de poder: o

municipal, o estadual e o federal. Sendo assim, ele considera que o coronelismo não é

meramente um fenômeno da política local. Caracteriza-se quando a política local está

articulada nacionalmente. Esta afirmação levanta um ponto importante tratado por Leal:

O coronel não era funcionário do governo, mas tão pouco senhor absoluto,

independente, isolado em seus domínios. Era um intermediário. Sua

intermediação sustentava-se em dois pilares. Um deles era a incapacidade do

governo de levar a administração, sobretudo da justiça, à população.

Constrangido ou de bom grado, o governo aliava-se ao poder privado,

renunciando o seu caráter público. (...) a lei parava na porteira das fazendas.

O outro era a dependência econômica e social da população (LEAL, 1993, p.

276).

A afirmação de que o coronel do contexto da Primeira República não era um senhor

absoluto, muito menos isolado, mas talvez um intermediário entre administradores públicos e

a população, pressupõe, segundo Arruda (2013), que haja uma pequena margem de

urbanidade dos domínios rurais. Arruda (2013) afirma também, que isso pode explicar a

ampliação do espaço urbano e o crescimento do número de municípios durante a Primeira

República, os quais destaca-se muitas vezes surgiam a partir das fazendas dos coronéis,

fomentando seu poder. Sendo assim, percebe-se que se a vida social ainda ocorria

52

predominantemente nas fazendas, ou como no nosso caso – na usina, o coronel dependia de

certo modo de um polo urbano, geralmente de onde podia realizar parte do jogo de relações,

articulando com os órgãos públicos ―para fazer justiça aos amigos e aplicar a lei aos

adversários‖ (LEAL, 1993, p. 242).

Essa falta de autonomia política integrava aos processos onde os governadores,

deputados, entre outros, se perpetuavam no poder. Os hábitos políticos dessa época vinham da

chamada política dos governadores, porque a política tornava viável por meio da ação

coronelística. Assim, percebe-se que agindo de forma hegemônica na república oligárquica, o

coronelismo tornou-se um traço da cultura política brasileira no período da Primeira

República, sendo que em Mato Grosso não foi diferente.

A troca de favores entre os chefes (coronéis, de partidos, governantes, entre outros) e a

manipulação de votos são dois exemplos de como o poder político nesse modelo de sociedade

impediam a consolidação de princípios morais definidos nos processos eleitorais e na ação de

escolha dos representantes políticos.

No contexto de Mato Grosso é necessário retratar as práticas políticas das elites mato-

grossenses durante a Primeira República, considerando que elas provocaram intensos debates

e tensões visando preservar a hegemonia nas tomadas de decisão, bem como, mostrar suas

estratégias de manutenção de poder, mas, sobretudo, é nessa abordagem que se passa a

constituir, no cenário político e econômico mato-grossense, a família Paes de Barros,

particularmente, o proprietário da Usina Itaicí – O Coronel Antonio Paes de Barros.

Segundo Franco (2014), na composição da fração civil do universo político que se

formava à época, muitos dos novos atores eram proprietários das usinas de açúcar instaladas

às margens do Rio Cuiabá, como exemplo, os Paes de Barros - proprietários das usinas

Conceição e Itaicí, os Costa Marques - donos da Usina Ressaca, e José Marques Fontes - da

Usina Aricá. E ainda:

Senhores de um vasto complexo de produção que incluía a posse da terra, os

meios, os instrumentos, a força de trabalho e a organização para o comércio,

os usineiros materializavam a face mais evidente da intercomplementaridade

que forjou a natureza urbano-rural das classes dominantes em Mato Grosso

(NEVES, 2006. p. 89).

Foi comum a circulação dos usineiros no contexto da política em Mato Grosso. É

possível observar que famílias inteiras, por gerações, mantinham fortemente um fluxo de

53

atividades econômicas e políticas, concentrando o voto enquanto dispositivo de controle e

empoderamento. Sobre isso:

Oriundos de famílias que, não raro, já desempenhavam papel na política

local, os proprietários dos empreendimentos que se modernizaram no limiar

do século XX, ligados à produção de açúcar e seus derivados,

gradativamente, tomaram parte ativa das disputas políticas ocorridas em

Mato Grosso após a Proclamação da República, notadamente, no período em

análise neste estudo. Havia ainda nomes ligados ao comércio e profissionais

liberais. Dentre os que alcançaram visibilidade e tornaram-se figuras centrais

na política mato-grossense, após Proclamação da República, estão: Generoso

Paes Leme de Souza Ponce, comerciante, e Joaquim Duarte Murtinho,

profissional liberal e empresário que, embora com vínculos familiares e

políticos com Mato Grosso, sempre atuou a partir do Rio de Janeiro, para

onde havia seguido ainda jovem (FRANCO, 2014, p. 65).

Uma dessas especificidades regionais marcadas na história de Mato Grosso até

meados do século XX ficou conhecida como a história do povo armado. ―A região foi

consumida por um nativismo violento. As raízes desse legado baseadas em conflitos e

violência nas primeiras décadas do século XX marcaram o domínio de coronéis e bandidos‖

(CORRÊA, 2009, p. 67).

É nesse cenário que o coronelismo surgiu como força política presente em todo o país,

inclusive em Mato Grosso. Foi um período no qual vigorava uma política controlada e

comandada pelos ricos fazendeiros, donos de grandes faixas de terras conhecidos como

coronéis. Como a base da economia brasileira era vinculada à produção agrícola, com um

latifúndio, esses homens possuíam um grande poder, tanto financeiro quanto político.

Os coronéis possuíam muitos funcionários, com isso podiam ter o controle dos votos,

sendo que na época da política isto era muito bem explorado. Muitos dos trabalhadores eram

analfabetos. No período eleitoral nota-se o uso de ameaças, elemento que esses latifundiários

utilizavam muitas vezes para eleger a si ou os seus candidatos. Geralmente as pessoas não

revidavam os interesses dos coronéis, a escolha de seu candidato, pois poderiam sofrer

perseguições.

Os coronéis de Mato Grosso dispunham de bases econômicas distintas, constituídas

por patrimônio de largas faixas de terras ou provindas do comércio. Suas ações eram

dominantes na concessão ou não de privilégios e na questão moral e física num cenário de uso

de sua influência. Dessa forma, encontravam-se presentes no meio urbano e rural, embora

mais intensamente no campo, e, assumiam inúmeras funções como a de empregador, protetor,

compadre, festeiro, juiz, dentre outras funções (SIQUEIRA, 2009, p. 40).

54

A imagem do coronel que ficou representada no imaginário mato-grossense foi a de

uma figura emblemática, revestida de ações positivas e negativas. Ao mesmo tempo em que

eram endeusados por uns, eram também demonizados6 por outros. Os coronéis tinham muita

atuação na política e na economia do estado, o que fortalecia seu poder de decisão sobre

questões locais e regionais.

Para garantir esse posicionamento político, percebe-se que ações consideradas

violentas serviram de mecanismo para tal fim. A violência e a instabilidade influenciaram o

modo de vida da população que convivia em meio a tensões e conflitos como algo

corriqueiro. ―O banditismo em Mato Grosso floresceu atrelado às lutas coronelistas como

parte integrante de suas forças e sobrevivendo na órbita dos coronéis‖ (CORREA, 2009, p.

67). Essa relação coronéis-bandido evidenciou uma fase conhecida como banditismo,

identificando-se as disputas pelo poder local e pela posse da terra.

Por ocasião do início do período republicano em Mato Grosso não ter apresentado

mudanças significativas que pudessem transformar as relações socioeconômicas e culturais da

região e caracterizar uma nova situação em relação à violência, permaneceu a situação pré-

existente no contexto das lutas pelo empoderamento a nível local e regional. Esse momento

também representou a intensificação do clima de violência e abriu espaço para atuação

declarada do coronelismo. Mato Grosso passou a ser conhecido como terra sem lei onde a

única lei existente obedecia ao artigo 44, isto é, a lei do calibre 447.

O banditismo foi reforçado pelas disputas políticas, envolvendo bandidos em conflitos

político-partidários locais. O relacionamento direto ou indireto entre coronéis e bandidos

tornou-se comum a todos os movimentos revolucionários a partir de 1891, de tal forma que

em relação a Mato Grosso, ambos os fenômenos - coronelismo e banditismo - não podem ser

compreendidos separadamente (CORRÊA, 2009).

A relação coronel-bandido, tendo em vista o contexto político do início da república,

tornou-se mais evidente mediante a prática de chefes locais trazerem para si homens armados.

Essa capacidade de arregimentação foi um dos mecanismos dos coronéis usados na intenção

de impor ou manter seu poder em momentos mais críticos de conflitos político-partidários ou

na administração de suas fazendas.

6 Expressão utilizada por Gilmara Franco em sua tese de doutoramento intitulada A ordem republicana em Mato

Grosso: disputas pelo poder e rotinização das práticas políticas (2015, p. 173), no sentido de exprimir uma das

formas de representação da imagem do Coronel Totó Paes que ficou popularizada no imaginário dos mato-

grossenses. 7 Termo usado em comparação com o revolver de calibre 44, caracterizando tamanha violência ocorrida no

estado naquele momento.

55

Os elementos egressos do banditismo e da marginalidade, ostensivamente

convocados por coronéis, tornaram-se então aliados e/ou agentes de facções

políticas que, ora estavam lutando para assumir o poder, ora estavam

defendendo a manutenção do status quo e a ordem pública. Assim, as lutas

coronelistas podiam ser revolucionárias quando objetivavam a ascensão de

uma facção de coronéis ao poder, ou inversamente, contra-revolucionárias

quando tratavam de preservar os cargos e os postos conquistados

anteriormente na política regional (CORRÊA, 2009, p. 69).

Segundo Neves (2006), as disputas ocorriam pelo domínio dos aparatos públicos, num

momento em que a fragilidade de Mato Grosso perante a União ficava clara na dependência

de cargos e verbas públicas, pois a economia não era dinâmica. Nas cidades mato-grossenses,

os empregos restringiam-se aos cargos públicos: ―O prestígio de um grupo mediava-se pela

quantidade de seus correligionários em postos de mando no estado, nos municípios e nos

cargos federais existentes‖ (MENEZES, 2007, p.15).

As lutas armadas coronelistas em Mato Grosso não foram somente observadas pelas

suas dimensões políticas. Segundo Corrêa (2009, p. 61) ―elas adquiriram também dimensão

econômica na medida em que geravam benefícios e privilégios, tais como remuneração

(soldos), indenizações, desapropriações de Bens e resgates, etc‖. Para o autor, essa função

econômica da luta armada tornou-se um meio de vida de uma parcela substancial da

população mato-grossense, ocupando um grande contingente de mão de obra ociosa e

desprovida de posse de terras e do processo de produção da região.

Outra observação feita pelo autor é que essa situação de violência não envolveu tão

somente coronéis e bandidos, mas outros segmentos da sociedade a eles vinculados. À

exemplo: as forças militares tiveram um papel destacado nesse processo nas primeiras

décadas do período republicano, aparecendo envolvidas diretamente nas lutas coronelistas.

Assim, percebe-se que Mato Grosso nesse período configurou-se também pela

impunidade e a inoperância do estado em segurança pública e controle do poder regional. Para

Corrêa (2009), a tolerância à violência dos revolucionários e do banditismo demonstrou. por

outro lado, o quanto eram sutis os limites que separavam o crime e a transgressão às leis das

práticas políticas e atuação repressiva das autoridades locais. Nesse sentido, as ações do

governo estadual que pressupunham a manutenção da ordem, da segurança individual e da

tranquilidade pública estavam desacreditadas.

Outra violência tolerada foi a da utilização do modelo de trabalho compulsório ou

análogo ao trabalho escravo. A existência desse tipo de ação em algumas usinas do norte foi

marcada pelo sistema repressivo, com destaque para os troncos e casas de suplício.

56

Desta forma, observa-se que o fenômeno coronelista foi se constituindo na qual uma

das principais fontes de riqueza era a posse da terra. As relações de trabalho fundamentaram

em obrigações pessoais ocasionadas por troca de favores. À medida que a posse da terra era

concentrada nas mãos de poucos que se enriqueciam a olhos vistos e representavam uma elite

de proprietários de terra, a maioria da população se via marginalizada desse processo,

restando como alternativa oferecer a sua força de trabalho. Mas é preciso salientar que estas

relações não se concretizaram de forma explicita na forma de contrato de trabalho, mas na

prática, uma espécie de obrigação que tornou o trabalhador um agregado do proprietário da

terra que se esforçava para executar todo tipo de serviço (CORRÊA, 2009).

As considerações de Correa (2009), a nosso ver, representam a utilização de práticas

clientelísticas pelos proprietários da usina. O clientelismo na sua forma mais comum é

compreendido como prática política de trocas de favores. Sendo assim, fazendeiros,

empresários e políticos concentravam seus projetos e funções no objetivo de prover os

interesses de indivíduos ou grupos com os quais mantinham uma relação de proximidade

muitas vezes para benefício próprio.

Em meio a essa relação de troca é que o político recebe os votos que busca para se

eleger no cargo desejado. Desta forma, o clientelismo diz respeito às trocas de bens privados

entre atores que se colocam em posições sociais desiguais. A origem dessa relação possui suas

raízes na sociedade rural tradicional, assim como os laços latifundiários e camponeses

fundados na reciprocidade, confiança e lealdade.

É possível entender o conceito básico de clientelismo como um tipo de relação entre

atores políticos envolvendo a concessão de empregos públicos, da formação de empregos,

benefícios fiscais, isenções e trocas de apoio político permanecendo na sua forma clássica que

envolve a negociação do voto (CARVALHO, 2017). Na literatura internacional esse é o

sentido em que o conceito foi mais difundido. Desta forma, traduz um fenômeno de relação

cuja dominação é maior do que as que ocorrem em outros fenômenos similares, como por

exemplo, o coronelismo. O clientelismo tem como objetivo amarrar politicamente o

beneficiário.

Contudo, buscou-se aprofundar a análise. Bahia (2003) em seu livro O poder do

clientelismo: raízes e fundamentos da troca política propõe uma revisão do conceito de

clientelismo e soma esforços a uma tendência de repensar as percepções correntes sobre um

fenômeno que possui abrangente tradição na produção historiográfica nacional.

57

Para o autor (2003), uma determinada percepção de que seríamos um país atrasado

com relação às conquistas de liberdade e igualdade, características importantes de uma ordem

exitosa nos países industriais modernos, sugere uma interpretação das mazelas nacionais. No

seu entendimento, isso ocorre a partir da estreita relação entre as formas clientelistas de

dominação e o fenômeno do atraso que foram associadas em sua forma clássica. Assim, essa

identificação acaba por desagregar o valor heurístico do conceito, muitas vezes confundido

com as características do patrimonialismo e do mandonismo.

É nesse ponto que Bahia (2003) realiza uma ruptura com algumas interpretações

correntes. Para ele, a característica fundamental a toda organização será a produção de

hierarquias e assimetrias de poder presentes no âmbito da troca política. As outras formas de

troca serão autorizadas por uma hierarquia de poder legitimada por leis, consensos e

costumes. Deste modo, segundo o autor, a assimetria é um fator endógeno à troca política e o

clientelismo será caracterizado como um tipo de troca política assimétrica, marcado por uma

série de especificidades que precisam ser observadas.

Em sua pesquisa, ele recorre a um conjunto de trabalhos procurando identificar os

aspectos constituintes das características fundamentais do fenômeno. Suas buscas nas

literaturas mais recentes apontam um entendimento comum de que o clientelismo é endógeno

à organização e ao fenômeno do poder, onde o que se troca é apoio político e lealdade por

benefícios (BAHIA, 2003). Para o autor, a forma tradicional do clientelismo dá lugar a um

clientelismo organizacional, cujas características se afastam um pouco dos traços originais,

mas mantém a essência do fenômeno. Partindo desses elementos, nota-se que o clientelismo

na concepção de Bahia (2003) é um fenômeno relacionado ao acesso e à exclusão de bens e

serviços não regulados diretamente pela ordem jurídica e pelos valores de mercado. Os

mecanismos de trocas não dão garantias legais, não constituem direitos, mas são tolerados nas

relações sociais.

Quem também trata sobre a cultura do clientelismo é Mateus Malvestio (2015) em seu

artigo A cultura política do clientelismo: uma análise no Brasil contemporâneo no qual

estabelece uma análise das relações clientelísticas, bem como traça um paralelo com outras

conjunturas de trocas e beneficiamento mútuo. Esse autor segue na linha de Bahia (2003), ou

seja, o conceito utilizado identifica o clientelismo como uma configuração por relações de

trocas assimétricas, no qual essas trocas são caracterizadas por trocas políticas. Em outras

palavras, entende-se que as relações clientelísticas estabelecem interações entre atores de

58

poder e status desiguais e por fundamentar-se no princípio da reciprocidade. Sendo assim, o

clientelismo:

[...] é um fluxo de utilidades que se processa através de mecanismos de

interação específicos e que depende do retorno, a prazo, da lealdade da

clientela ao patrão. Para que isso se dê é necessário que, de fato ou por

manipulação simbólica, o patronus seja visto como detentor do monopólio

da distribuição das utilidades (MALVESTIO, 2015, p. 117).

As desigualdades nas relações de trocas são relevantes para o entendimento das

relações clientelísticas, uma vez que a assimetria de poder se configura como fator que se

origina no interior de determinada instituição. A usina pode ter sido um exemplo disso. Pode-

se dizer que a desigualdade social e nas relações será características marcantes ao longo da

sua história. No sentido mais preciso, ―esse fluxo de utilidades ocorre de trocados bens

clientelísticos‖ (BAHIA, 2003, p. 219), como também aponta Aleixo ―Laços estreitos de

compadrio e de favores conduziram este homem8 ao respeito e a obediência. O resultado não

poderia ser outro: acabaram por se curvar diante do capital‖ (ALEIXO,1995, p. 65).

Contudo, deve-se atentar que o clientelismo se configura também como formas de

relações simbólicas de poder. Conforme destaca Neves (2006), ao apontar que o benefício

ultrapassa as simples trocas econômicas, o clientelismo vai além dessa relação e não pode ser

entendido apenas como troca por bens materiais, tendo em vista que deve ser analisado

também como troca simbólica, uma ajuda, um apoio de poder e influência.

Deste modo, nota-se que as práticas clientelísticas, observadas tanto do ponto de vista

voltado para as trocas de bens materiais quanto simbólicas, deixa claro a manutenção e até

mesmo a adaptação de formas de relações desiguais com fins de benefício. É notório o uso

dessas práticas na história recente e discutir o processo histórico que desencadeou tal

configuração é importante como instrumento de reflexão e descontinuidade. Por isso, é

relevante à utilização do conceito de clientelismo como uma das ferramentas norteadoras

desta pesquisa por se tratar de uma atividade que permeia os processos históricos que insistem

muitas vezes na permanência de práticas ultrapassadas, com um forte potencial de

manutenção das desigualdades sociais.

Enfim, pode-se dizer que tensões, lutas armadas, empoderamento de coronéis, práticas

clientelísticas, entre outros múltiplos fatores, fizeram parte do advento da República,

permitindo que Mato Grosso vivenciasse um dos períodos mais tumultuados de sua história.

8 Referente ao homem pobre.

59

A história da Usina Itaicí, por sua vez, evidencia esse movimento na sua internalidade e nas

suas relações em âmbito regional e local. Desta forma, percebe-se que a população era

submetida a uma rígida disciplina, que pretendia torna-la passiva e obediente. Para tal

objetivo, era necessário um conjunto de ações capaz de manter a ordem. Esse conjunto de

ações, a nosso ver, implica-se na relação coronelística, nas práticas clientelísticas, bem como

nas formas de educar, sejam elas formais ou informais.

1.2 O passado Histórico

A história de um povo ou de uma comunidade dificilmente pode ser analisada sem que

se observe as culturas produzidas pelos atores sociais, especialmente se há pouca atenção ao

lugar em que essas pessoas ocupam na sociedade, de onde falam, sobre o que pensam e como

se apropriam historicamente.

Santo Antonio do Rio Abaixo, atualmente denominado Santo Antonio de Leverger, foi

desmembrado do Município de Cuiabá. O início da sua história mostra que as terras do Rio

Abaixo9 foram povoadas desde 1721, conforme registram as cartas de Sesmarias doadas pelo

então governador da Capitania de São Paulo Rodrigo César de Menezes.

No século XVIII as regiões auríferas dos rios Coxipó e Cuiabá com intensa atividade

mineradora dependiam das roças e sítios circunvizinhos para garantir seu abastecimento.

Coube à região do Rio Abaixo a função de produtora de alimentos necessários à subsistência

do Arraial.

O povoamento da área do rio Cuiabá abaixo foi expressivo. Os trajetos fluviais feitos

pelos sertanistas para chegar ao Arraial cuiabano passava necessariamente pelo Pantanal do

rio Cuiabá Abaixo. Segundo relato do primeiro cronista setecentista, a passagem por esta zona

pantaneira:

Da barra d‘este rio serão vinte ou vinte e dois dias de viagem. Ao quarto dia

ou quinto dia se chega ao Arraial Velho, ou registro, que vem a ser uma roça

com muito bom bananal; dia e meio mais acima desta roça está outra

também povoada, e d‘esta até os Morrinhos, que serão sete ou oito dias de

viagem, há outras duas que dão bastante milho e feijão; porém dos

Morrinhos até a vila que são sete dias, quase todo este rio está cercado de

roças e fazendas [...] (COELHO, 1976 apud SIQUEIRA, 1997, p. 33).

Conforme os registros das terras de Santo Antonio, em 1734 ergueu-se uma capela

9 Foi comum o uso da expressão Rio Abaixo também como identificação de Santo Antonio do Rio Abaixo (Cf.

SIQUEIRA, 1997, p. 11).

60

onde hoje está situada a cidade de Santo Antonio de Leverger. Essa capela foi criada em

homenagem a Santo Antonio (FERREIRA, 1997). Não foram encontradas imagens da antiga

capela, mas localizamos registro da igreja Matriz que foi construída posteriormente:

Figura 1 - Igreja Matriz.

Fonte: Página do Blog da comunidade do distrito de Varginha10

.

A história do município em seus primórdios envolveu um misto de mitos e lendas

acerca da imagem de Santo Antonio. Permaneceu a representação no imaginário popular de

que a imagem do santo queria ficar nas terras que constituíram a cidade. Esse episódio foi

incorporado à cultura regional e transmitido por gerações até o presente momento. Nas

memórias populares ficou registrado que:

Rompia de arrepio as corredeiras de água barrentas do rio Cuiabá, em plena

enchente, uma monção que demandava às minas descobertas por Pascoal

Moreira Cabral e Sutil. Vinha desfalcada de algumas canoas e de vários de

seus componentes, afundadas e sacrificadas na refrega com os índios

canoeiros ―guató‖. Penetraram um certo entardecer por uma boca de água

remansosa, acompanhando à beira do sangradouro para o pernoite. Refeitos

na manhã seguinte aprestaram-se novamente para o reinicio da viagem

quando um dos ―batelões‖ fica preso como se encalhado em banco de areia,

não havendo como sair, à força de remos e ―zingas‖. A superstição apodera-

se dos rudes canoeiros e por sugestão de um deles é desembarcada a imagem

10

Disponível em: www.http://varginha-news.criarumblog.com. Acessado em 06/09/ 2016.

61

de Santo Antonio que transportavam. O resultado foi surpreendente, pois em

seguida a embarcação tomou impulso e seguiu viagem. Outra monção por ali

de passagem, querendo transportar o Santo, o mesmo fenômeno se repetiu.

Foi então levantada, à beira do rio, uma tosca cobertura de palha onde

instalaram-no justamente no local em que se ergueu a primitiva igreja, que

não mais existe e se construiu uma nova, elegante em suas linhas sóbrias e

originais (BRASIL, IBGE, 1958, p. 289).

O território do município naquele momento concentrava-se nas áreas em que hoje

correspondem aos municípios de Santo Antonio de Leverger e de Barão de Melgaço11

. Entre

um movimento de alternância na denominação e no regime administrativo

(vila/freguesia/distrito/cidade) esses municípios ajudaram a construir a história do povo

ribeirinho do Pantanal Norte.

O distrito de Santo Antonio do Rio Abaixo foi criado pela Lei provincial nº 11, de 26

de agosto de 1835. Por efeito da Lei estadual nº 211, de 10 de maio de 1899, foi criado o

município de Santo Antônio do Rio Abaixo com território desmembrado de Cuiabá e o

primeiro em Mato Grosso a ser criado após a Proclamação da República. Sua implantação

data de 13 de junho de 1900.

Segue abaixo fotos da cidade de santo Antonio do Rio Abaixo nos anos iniciais à sua

emancipação, destacando uma das ruas principais da cidade que dava acesso ao porto.

Observa-se um cenário que apresenta como característica a paisagem de uma cidade bucólica,

pacata, de casas simples, no qual verifica-se algumas casas com portas e janelas abertas e a

rua marcada pela memória da estrada de chão.

Figura 2 - Santo Antonio do Rio Abaixo em 1906

Fonte: AYALA; SIMON, [1914] 2011, p. 361.

11

Antes denominado Distrito de Melgaço.

62

Figura 3 - Santo Antonio do Rio Abaixo 1906 – Rua da Matriz

Fonte: AYALA; SIMON, [1914] 2011, p. 279.

Na figura acima observa-se a mesma rua, porém, sob outro ângulo, o qual proporciona

um olhar mais amplo da Praça da Matriz com a Igreja de fundo, evidenciando outros

elementos importantes na constituição do espaço, como a iluminação pública, faixadas das

casas padronizadas, área de laser e de religiosidade, concentrados num dos espaços de maior

circulação de pessoas. Embora as fotos não evidenciem essa movimentação, pode-se dizer que

ela era uma das ruas principais da Vila, pois era rota do comercio local e de acesso ao rio.

O município de Santo Antonio de Leverger está situado no planalto cuiabano e no

início do pantanal mato-grossense. Localiza-se em um território que faz parte do Vale do Rio

Cuiabá. Faz limite com os municípios de Nossa Senhora do Livramento, Várzea grande,

Cuiabá, Rondonópolis, Itiquira e Barão de Melgaço. A cidade está localizada à margem

esquerda do rio Cuiabá e fica a 30 quilômetros da Capital. Segue abaixo a localização do

município de Santo Antonio em relação ao estado.

63

Figura 4 - Mapa do município de Santo Antonio de Lever

Fonte: Enciclopédia dos municípios brasileiros – IBGE; FERREIRA, 1958, p. 291.

Esclarecidas as questões de topônimos e de localização, destacamos outro elemento

importante para compreensão do lugar, que tem a ver com a cultura da população do Rio

Abaixo, que é o rio. É necessário enfatizar o lugar que o rio reservou na experiência de vida

dos povos ribeirinhos de outrora pela relevância que teve na vida das pessoas dessas

comunidades.

Segundo Suíse Bordest (2014) propõem uma análise acerca da oportunidade de

relacionar percepções e lugares para refletir onde estamos, onde nos situamos, como parte da

espacialidade que contém uma sociedade. Desta forma, encontramos nesta proposta mais um

olhar sobre o lugar e os atores que ajudaram a construir a história do município de Santo

Antonio de Leverger.

A proposta da autora é tratar sobre leituras cartográficas não convencionais, leituras

que possam ser vistas com diferentes olhares, incluindo o olhar das margens, do periférico. O

seu olhar começa pela população ribeirinha do rio Cuiabá. Ela procura demonstrar os sentidos

que ecoam quando investigamos a representação do passado. Para a autora ―as pessoas olham

64

para trás por várias razões, mas uma é comum a todos, ou seja, a necessidade de adquirir um

sentido do eu e da identidade‖ (BORDEST, 2014, p. 94).

A autora aponta a circulação das pessoas pelo Rio Cuiabá desde os primórdios,

procurando responder a pergunta que lançou ―o que poderia ser visto nas margens do rio

Cuiabá ao longo do tempo?‖ (BORDEST, 2014. p. 94).

Procurando possíveis respostas, ela inicia sua trajetória afirmando que o rio Cuiabá foi

o grande e maior atrativo do processo migratório para o arraial minerador, em cujas margens a

população se estabeleceu na esperança de enriquecimento. A circulação se deu pelo sistema

monçoeiro, que do rio Tietê, atingia o rio Cuiabá. Esse caminho fluvial foi utilizado durante

todo o século XVIII. Foi também nas margens do rio que foram estabelecidas as agências de

cobrança de impostos de mercadorias, ouro e escravos.

No século XIX, com a abertura da navegação pelo rio Paraguai, considerando a

hidrovia Estuário do Rio da Prata, rio Paraguai e rio Cuiabá, o porto de Cuiabá foi

dinamizado, uma vez que Mato Grosso havia ingressado no movimento do capital, e esse

movimento se dava muitas vezes sob o Rio.

Siqueira (2009) também relata sobre a vida em torno do rio, considerando que desde a

fundação de Cuiabá no século XVIII já se registrava presença expressiva de população às

margens dos rios. Esta se estabeleceu inicialmente pelo rio Coxipó-Mirim, para mais tarde,

com as descobertas das Lavras do Sutil, no rio Cuiabá, parte desse contingente se deslocar

para o novo veio aurífero.

Em relação ao contexto de Santo Antonio do Rio Abaixo, uma das representações

dessa circulação pelo rio está associada à implantação das usinas de açúcar. Essa

representação sugere um olhar cartográfico das margens do Rio Cuiabá do ponto de vista de

Bordest (2014), de modo que o rio não poderia ser entendido somente como possibilidade de

tráfego fluvial, pois é dele que vinham os elementos necessários para adubação do solo por

meio das enchentes, o que resultou nas safras de cana plantadas às margens do rio Cuiabá.

Como consequência muitos proprietários de engenhos de açúcar investiram na criação de

usinas nestas localidades, impulsionando um movimento migratório para região no final do

século XIX como também a economia do estado de Mato Grosso.

A Usina Itaicí é reconhecida historicamente como a usina que mais se destacou na

modernização da produção da cana de açúcar, álcool e aguardente. Tanto na plantação de cana

quanto na industrialização, Itaicí mostrou-se a maior produtora do estado de Mato Grosso.

65

Uma das pioneiras nessa direção modernizadora foi a Usina do Itaicí, de

propriedade do empresário e politico mato-grossense Antonio Paes de Barros

(Totó Paes). Ali, ele implantou um complexo industrial moderno, suficiente

para produção de açúcar e aguardente de qualidade, além de rapaduras, tão

apreciadas em Mato Grosso. Foi também na Usina do Itaicí que floresceu

uma das mais antigas escolas rurais, onde foi instalada a primeira banda de

musica e local onde foi cunhada moeda própria, intitulada tarefa, utilizada

nas transações comerciais efetivadas no interior do estabelecimento

industrial. Foi também local de muita festa popular, batizados, casamentos e

enterramentos, mas também repleta de ideário místico, muitos deles

relacionados diretamente ao rio Cuiabá (BORDEST, 2014, p. 99).

O rio teve e ainda tem um papel relevante para as comunidades ribeirinhas de Santo

Antonio, dele vinha também grande parte do sustento das famílias. Além de ter sido um

importante elemento de locomoção, o rio deixou seu legado na cultura desse povo que tem

sua identidade como população ribeirinha do pantanal mato-grossense.

O Ciclo do açúcar, por sua vez, foi um momento muito próspero para economia de

Mato Grosso, tanto em nível de estado como em nível local. Somados aos fatores naturais

como a fertilidade do solo, o espírito empreendedor dos fazendeiros locais – logo, usineiros

do açúcar, a mão de obra barata, o incentivo do estado, viu-se a expansão de várias usinas e o

aumento da produção do açúcar.

Porém, essa prosperidade beneficiou apenas pequenos grupos, geralmente, as elite

mato-grossenses, entre elas, situam-se os coronéis do açúcar. Na questão local, foi observada

uma população pobre, desassistida socialmente e pouca esperançosa.

Em um relato anônimo publicado no Jornal o Mato Grosso (1930), relato cujo autor

foi identificado apenas como um leitor assíduo, percebe-se a indignação com o tratamento

dado pelo diretor das Escolas Reunidas12

aos alunos, consideramos o fato dele dar ênfase na

pobreza dessa população frente às exigências feitas pelos mestres da escola que visavam

apenas cumprir com as regras vindas da Diretoria da Instrução Pública, sem se solidarizar

com as limitações na condição de vida daqueles citadinos. O que queremos aqui é evidenciar

o contraste apontado anteriormente, uma vez que entre uma sociedade muito produtiva se vê

uma distribuição de renda desigual e injusta. Esse relato aponta referências importantes que

demonstram a disparidade entre a população rica e a população menos favorecida, mesmo em

circunstâncias de prosperidade econômica. Conforme o relato:

12

As Escolas Reunidas citada no relato referem-se a uma escola localizada no município de Santo Antonio de

Leverger.

66

Deveis conhecer de perto a cidade de Santo Antonio do Rio Abaixo e,

conhecendo-a, não vos será difícil fazer uma ideia da vida, da riqueza e da

falta de recursos da maioria dos habitantes d‘esta cidade. Incontestavelmente

este município é um dos mais prósperos e ricos do nosso estado; mas,

infelizmente as pessoas que dispõem de grandes recursos são – os usineiros e

fazendeiros. [...] De modo que a população é pobre, digo mal – paupérrima.

No entanto, o diretor das escolas reunidas está com a phobia das exigências

que terá em resultado o despovoamento das escolas, si os altos poderes não

tomarem em consideração o apoio devido à infância desvalida. Todos os dias

os pobres meninos, envergonhados, ouvem do mestre estas duras palavras:

digam a seus paes que os quero uniformizados, do contrário serão expulsos

ou suspensos. Que homem sem coração! Banir da escola uma creança que

procura o pão-do-espírito! Que magoa não entra pungente nos corações dos

paes que mal podem sustentar e vestir seus filhos, com a imposição tyranica

de um indivíduo fanfarrão, que ignora ou finge ignorar as aperturas dos

deserdados da fortuna! Pelo modo malfazejo de pensar do irascível diretor,

deduz-se facilmente que só os abonados e os ricos podem educar seus filhos

na visinha cidade de S. Antonio. Oxalá estas palavras cheguem aos ouvidos

dos homens que dignamente dirigem a Instrução Pública em nosso estado e

eles, usando da necessária energia que o caso requer o aconselhem o diretor

a ser mais patriota e menos energúmeno, menos moralista e mais conciliador

(O MATO GROSSO, 1930, p. 2).

Como se não bastasse a condição de vida limitada da população do Rio Abaixo,

observa-se ainda a convivência em meio às tensões e conflitos políticos constantes. Conforme

documento encaminhado aos Coronéis Joaquim C. Peixoto de Azevedo, Antonio Manoel

Moreira e Dr. João da Costa Marques, em 24 de julho de 1916, pelos correligionários Virgínio

Nunes Ferraz, Manoel da Silva Fontes, Miguel Angelo de Oliveira Pinto e Luiz da Costa

Ribeiro Fontes que trata de ameaças por motivo de conflito político-partidário, observa-se a

informação de que o Presidente do estado de Mato Grosso estava organizando ―força‖ - [...]

―gente mandado por Prótones se acha no Mimoso reunindo cavalhada. [...] pessoas vindas de

lá garantiram ter mais de 40 cavalos presos para transportar forças de Cuiabá para vir atacar‖

(RIO ABAIXO, ofício, 1924). Eles ressaltaram no documento que mesmo entendendo que

não havia motivo para tal agressão, eles estavam unidos e dispostos a defender os seus lares,

bem como, destacaram que no quadro de safra, qualquer movimento ameaçava a paralização

das usinas, o que ocasionaria prejuízos incalculáveis. Essas são representantes da oposição.

67

Figura 5 - Conflitos políticos13

Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso (APMT), Lata, 1916 A.

13

Transcrição do documento: Cópia – Rio Abaixo, 24 de julho de 1916. (inelegível) seus leais coronéis Joaquim

Caracciolo Peixoto de Azevedo, Antonio Manoel Moreira e Dr. João da Costa Marques. Cordiais Saudações.

Constou nos que os senhores Protógenes Francisco da Costa e João Reis Dias de Moura receberam ordem do

Exmo. General Presidente de Estado para organizarem força, a essa noticia não demos crédito. Acontecendo

porém, verificamos que gente mandada por Protógenes se acha no Mimozo reunindo cavalhada, tanto que pessoa

de lá vindo hoje, nos garantem já terem mais de 40 cavallos prezos e que nesse número existem cavalos dos

fazendeiros Constantino de Queiroz, Pedro Dias de Moura e Cesário José Maria e que esses cavalos vão para

transportar força de Cuiabá para nos vir atacar, e que João Bem Dias também reúne força para o mesmo fim.

Esta inesperada notícia nos veio alarmar e por em verdadeiro sobresalto. Conferem recomendação desse

diretório, até hoje nos temos conservado na maior calma, cuidando exclusivamente de nosso serviço de safra,

não havendo portanto motivo que justifiquem essa pretendida agressão, que no ao ser levada a feito estamos,

unidos e dispostos a defender os nossos lares. No quadro atual, épocha da safra, qualquer movimento de força

obrigará as usinas a paralisarem o serviço o que nos accasionará prejuízos incalculáveis. De V. V. Excia. Amigos

e correligionários. Virginio Nunes Ferraz, Manoel da Silva Fontes, Miguel Angelo de Oliveira Pinto, Luiz da

Costa Ribeiro Fontes. Está conforme a original. Francisco Santiago – Official maior.

68

Apesar do ofício, os meses se passaram e o conflito permaneceu. Em 14 de dezembro

de 1916, representantes da situação da Câmara de Vereadores de Santo Antonio do Rio

Abaixo encaminharam um ofício destinado ao Presidente de estado Caetano de Albuquerque

relatando que são testemunhas da tenacidade da oposição, que:

[...] à mão armada, movem há longos meses alguns desnaturados mato-

grossenses que, de posse de altas posições políticas abusam em seu

exclusivo proveito pessoal e em detrimento dos altos interesses do estado,

que desejam ―reduzir a uma simples feitoria sua, os [...] assinados,

representantes legaes deste vasto e florescente município, que infelizmente

tem servido de cenário aos atos de depredações e terras praticados pelo

caudilhismo dos maus filhos da nossa pátria‖. Por fim, despedem garantindo

o apoio ao governo (MATO GROSSO, Ofício, 1919, p.1).

Outros conflitos por questões políticas ocorriam entre os proprietários das usinas com

membros da mesma família. Outros eram mais evidentes na luta por empoderamento, onde os

coronéis trabalhavam em conjunto com os juízes e delegados de polícia para fazer valer as

suas leis. Sobre isso, o jornal o Mato Grosso de 1917 relata a presença do Cel. Henrique Paes

de Barros e de seus capangas na Vila de santo Antonio do Rio Abaixo. A versão transmitida

diz:

A Vila de Santo Antonio do Rio Abaixo chegou em 23 do corrente, o

Coronel Henrique Paes com o reduzido pessoal que o terror ainda obriga a

acompanha-lo. São indivíduos residentes nas proximidades da sua fazenda e

sujeitos aos seus instintos ferozes, esses que ali trouxera com o intuito de

alista-los. Não excedendo de duas dezenas. Entretanto, a comitiva do

famigerado déspota é mais numerosa, composta dos seus celebres capangas

ali desembarcados com grau de provisão de armas e punições. O terror que

se apoderou do famoso heroe do Itaicy e do Aricá, fel-o pedir garantias para

chegar ao theatro das suas antigas façanhas, ali nas proximidades da Bahia

do Garcez. Mas, desconfiado dos seus próprios crimes, veio em pé de guerra,

do qual podem originar-se lamentáveis conflitos, devido a prevenção

daquela população ordeira e pacífica contra a trahição e instintos

sanguinários do celebrizado desordeiro, a cujo encontro partiram os seus

comparsas da tragédia que o azeredismo vem representando no Estado (O

MATO GROSSO, 1917, p. 2).

Para compreender melhor o contexto histórico local no período delimitado, partimos

do entendimento de que o regime republicano não promoveu alterações significativas no

aspecto econômico, social, político e cultural, e muito menos ingressou o Brasil no processo

da república imediatamente. A República também não promoveu o desfecho das questões

religiosas, militares, nem tampouco o fim dos excessos cometidos pela Coroa, bem como a

69

solução para a insatisfação dos fazendeiros com a abolição da escravatura. O regime

republicano não foi fruto de uma antiga aspiração republicana que se manifestara desde os

movimentos revolucionários ocorridos depois da Independência; nem foi a expressão do

desejo libertário de segmentos desprovidos de participação política efetiva e com menor

qualidade de vida ou dos anseios liberais de uma nascente classe média urbana que os

militares representavam, embora esses grupos de forma alguma estivessem alheios ao

processo (VIOTTI, 1994).

Desta maneira, percebe-se que as alterações no campo político foram resultantes da

cisão de elites que se configuraram no cenário social e político ainda no Segundo Reinado,

uma vez que as tensões que movimentaram o país em direção ao novo regime tiveram origem

na quebra de unidade da classe política brasileira em razão de mudanças econômicas que

ocorreram a partir da metade do século XIX. Os conflitos que desencadearam o fim do regime

monárquico não se deram somente entre as intensões de um Brasil moderno, progressista,

desejoso de democracia, representado pelas classes médias urbanas, e um Brasil conservador,

afeito as concepções políticas totalitárias, representado pelas classes oligárquicas do Império.

Foi uma luta de novos atores por espaços de poder (ARRUDA, 2013).

O estado de Mato Grosso no início da república vivenciou momentos de tensões e

conflitos. O período foi marcado por confrontos armados, em um dos quais foi tirada a vida

de um governador - neste caso, o governador era o proprietário da Usina Itaicí que

administrou o estado no período de 1903 a 1906.

Além dos confrontos, havia saques a cidades (como em Santana do

Parnaíba-MS), eliminação dos opositores (massacre da bacia do Garcez, em

1901), ação de bandos armados pela região (o mais conhecido foi o do

Silvino Jaques), luta entre coronéis por poder, por terras e outros bens, além

de conflitos armados reivindicando a divisão do Estado (em 1907, feito pelo

coronel Bento Xavier). Até que em 1917 houve uma intervenção federal

encerrando a estratégia da luta armada com finalidade de ascensão política e

econômica (CORREA, 2006, p, 137).

Na Primeira República três conflitos ganharam destaque na história de Mato Grosso ao

evidenciarem as tensões, disputas e embates por poder político no estado. São eles: o

Massacre da Baía do Garcez (1901), o Movimento de 1906 e a Caetanada (1916).

O Massacre da Baía do Garcez está ligado com o proprietário da Usina Itaicí. O

contexto que engendrou o referido movimento teve por ocasião a eleição mato-grossense de

1898, onde o partido republicano tendo à frente Generoso Ponce indicou a candidatura a

governo do estado João Felix Peixoto de Azevedo. José Murtinho não concordou com essa

70

indicação e lançou outro candidato. Isso sinalizou o primeiro desentendimento entre os

Ponces e os Murtinhos, cujas famílias tinham muita representatividade na política mato-

grossense.

O candidato que venceu as eleições foi o representante de Generoso Ponce com longa

margem de votos. No entanto, José Murtinho não conformado com o resultado, com apoio do

poder federativo, organizou uma reação através da chamada Legião Campos Sales, da qual

participou o usineiro Antonio Paes de Barros (Cel. Totó Paes). E esse exército civil invadiu

Cuiabá e cercou a Assembleia Legislativa, pressionando-a para que fossem anuladas as

eleições. A pressão funcionou e os deputados anularam o pleito e convocaram novas eleições

(SIQUEIRA, 2009).

O resultado da nova eleição apresentou-se como vencedor Antonio Pedro Alves de

Barros, candidato apoiado por José Murtinho. Segundo Siqueira (2009), a sua administração

foi marcada por disputas e violência, tendo este chegado a montar força armada com o nome

de Divisão patriótica visando perseguir seus adversários políticos. Sobre o movimento sabe

que:

Em outubro de 1901, esse exército paramilitar ficou sabendo da existência

de um reduto oposicionista junto à Usina Conceição, cujo proprietário era

João Paes de Barros, irmão de Totó Paes. Mesmo assim, a Divisão

Patriótica, sob o comando desse último, invadiu a fazenda, prendeu 17

oposicionistas que seriam conduzidos de volta para Cuiabá. No meio do

caminho, às margens da Baía do Garcez, entre Santo Antonio de Leverger e

Cuiabá, estes presos foram mortos, com requintes de crueldade. Seus coros

foram abertos e jogados na baía, para ficarem submersos, encobrindo, dessa

forma, os assassinatos. O crime foi revelado um ano depois, quando as águas

da Baía do Garcez secaram e as ossadas constituíram a prova. No entanto,

esse ato hediondo ficou sem punição (SIQUEIRA, 2009, p. 41).

Esse episódio mostra a forma como eram resolvidos os problemas políticos naquela

época. As ações de violência foram comuns e se estenderam até meados do século XX, por

isso a punição era praticamente inexistente, uma vez que a própria polícia era conivente com

atitudes como essa. Os grupos políticos eram temidos pela força bélica e também pelo poder

simbólico que representavam através da figura dos coronéis, importantes aliados.

Em 1903 Antonio Paes de Barros (Totó Paes) assumiu o governo do estado de Mato

Grosso e teve como bandeira uma política de modernização do estado para torná-lo conhecido

nacional e internacionalmente. Ele buscou auxílio de jornalistas, advogados e intelectuais.

Naquele momento, tinha-se o entendimento de que a modernização do país seria

possível se priorizassem a Política dos Governadores, e assim, ocorreu a continuidade dessa

71

política através do Presidente Rodrigues Alves. A situação não deixou de ser complexa,

porque a política dos governadores fortalecia o poder central apenas com o apoio de um

grupo, tendo contra si a oposição.

Mas um detalhe importante a se destacar trata-se do distanciamento de Totó Paes com

os Murtinhos, grupo que ajudou a elegê-lo, subestimando essa força regional, porque contava

com o apoio do Presidente da República. Com isso, os Murtinhos reaproximaram-se dos

Ponces, antes rivais, mas que representavam, por sua vez, a maior expressão do Partido

Republicano em Mato Grosso. Essa reaproximação tinha um objetivo: derrubar Totó Paes do

poder estadual e retomar a direção política do estado. Coligação foi o nome dado à união

Ponce/Murtinho em 1906, com participação de Pedro Celestino Corrêa da Costa, Joaquim

Azevedo e Joaquim da Costa Marques. Esse cenário já previa o que ia acontecer em 06 de

julho de 1906, ou seja, o confronto e a morte de Totó Paes.

Assim, de um lado estavam as forças da Coligação chefiada por Generoso Ponce, e de

outro as forças governistas, tendo Totó Paes na liderança política e enquanto Governador do

estado. Essas duas frentes desencadearam lutas acirradas. Cuiabá, Poconé, Cáceres e Corumbá

presenciaram o terror levado por essas disputas.

Em Corumbá houve uma rebelião em 16 de maio de 1906, na qual as forças

oposicionistas ―destruíram o comando policial, assumindo-o para si‖ (SIQUEIRA 1990, p.

155). O objetivo era a interrupção das comunicações das cidades de Cuiabá, Corumbá e

Cáceres, impedindo a circulação de informações destas cidades com o Rio de Janeiro – capital

do país à época.

Depois disso, o confronto seguiu-se para Cuiabá, onde forças da Coligação já

contavam com aproximadamente 4.000 homens. Os dois lados organizaram vários cercos na

capital. A Coligação conseguiu avançar até os pontos principais da cidade enquanto Totó Paes

aguardava reforço federal, solicitado ao Presidente da República Rodrigues Alves.

Considerando os avanços vitoriosos dos inimigos, Totó Paes resolveu-se retirar-se com um

pequeno grupo para o Coxipó, na intenção de aguardar a chegada do reforço. Não houve

rendimento por parte do Presidente de estado. Em 06 de julho de 1906, sem o reforço, o grupo

governista foi descoberto pelas forças oposicionistas. Os revoltosos abriram fogo no local –

fábrica de pólvora do Coxipó – ocasião em que morreu Totó Paes, encerrando o conflito.

Consta no Jornal O Brasil de 1906 sobre o discurso pronunciado na Câmara dos Deputados na

sessão de 18 de outubro de 1906:

72

O Snr. Costa Marques – A revolução em Mato Grosso, não foi inspirada pelo

desejo ou pela ambição de conquistar o poder. Não. A Revolução em Mato

Grosso representou a justa defesa de um povo que se achava debaixo da mais

terrível e insuportável opressão. O Coronel Antonio Paes de Barros, Snr.

Presidente, fazia do seu arbítrio a lei única do seu governo. Não era naquele

Estado respeitada nenhuma das garantias constitucionais, e o direito de vida;

o direito da propriedade, como que já não existia no estado de Mato Grosso.

Muitos crimes horrorosos foram ali perpetrados nos últimos dias daquele

nefasto governo; entretanto, Snr. Presidente, nem um só dos autores desses

graves delitos foi levado perante os tribunaes para soffrer as penas da lei,

apezar de ser muitos deles apontados pelo clamor público (O BRASIL, 1906,

p. 2).

O terceiro conflito desencadeado em Mato Grosso por questões políticas ficou

conhecido como Caetanada. Esse conflito decorreu por motivo da formação de uma nova

composição política entre Generoso Ponce e Pedro Celestino, fundando um novo partido com

o nome de Partido da Coligação, representante, em âmbito regional, do Partido Republicano

Conservador.

Por divergências políticas, Generoso Ponce e Pedro Celestino se desligaram desse

partido e fundaram outro com a denominação - Partido Republicano Mato-grossense (PRMT).

Com esse fato, Ponce se desligou dos Murtinhos que até então eram acionistas majoritários da

Companhia Mate Laranjeira. Ponce e Pedro Celestino não concordavam com os

arrendamentos feitos pelo estado à Companhia. O rompimento aconteceu quando os

Murtinhos solicitavam da Assembleia aprovação do arrendamento das terras ervateiras por

mais 22 anos, e autorizaram nesse momento que seus proprietários estabelecessem leis

internas da empresa, montando força policial própria. Ponce e Celestino discordavam dessa

proposta alegando que a Companhia, pelo poder e riqueza que tinha, representava um estado

dentro do estado de Mato Grosso. Esse desentendimento ocasionou na organização de

exércitos civis de ambos os lados na defesa de seus interesses (SIQUEIRA, 2009).

Caetano Manuel de Faria e Albuquerque foi eleito Governador do estado no ano de

1915 pelo Partido Republicano Conservador, liderado por Senador Azeredo. Assediado por

integrantes do Partido Republicano Mato-grossense, opositores foram chamados pelo

governador para ocupar cargos administrativos na sua gestão. Colocar membros da oposição

no seu governo gerou intrigas e muita pressão sob Caetano Albuquerque, e a partir disso,

como de comum, também organizou grupos armados em sua defesa. Membros do PRMT

cercaram o Hotel Cosmopolita em Cuiabá, motivo que levou os membros do partido opositor

a se refugiarem em Corumbá. Wenceslau Brás, Presidente da República na época, ―frente à

delicada situação política de Mato Grosso e temendo que os grupos armados, de lada a lado,

73

se confrontassem ainda mais, pressionou Caetano Albuquerque para que renunciasse. [...] Foi

o que ocorreu‖ (SIQUEIRA, 2009, p. 43).

Com a renúncia, o Bispo de Cuiabá D. Francisco de Aquino Corrêa assumiu o governo

depois de muitos debates e perigo de intervenção federal, por ser considerada uma pessoa

neutra e capaz de instaurar a paz e minimizar a violência entre os grupos oponentes. Com

isso, manteve-se a hegemonia das oligarquias do Norte do estado. Segundo Siqueira (2009),

ficou famosa a frase pronunciada por D. Aquino Corrêa à Assembleia Legislativa de Cuiabá,

em 13 de maio de 1918, ao reconhecer a função pacificadora que lhe fora outorgada: ―querem

parecer-me últimas labaredas do fogo ainda latente sob as cinzas de um grande incêndio que

se apaga‖ (Idem, 2009, p. 43).

Mesmo com a situação de conflitos, as elites mato-grossenses e a população viram o

advento da República de forma otimista e as oligarquias viram uma oportunidade de ascender

ao poder. A nova elite mato-grossense também tinha perfil heterogêneo: oriundos dos mais

diversos ramos da economia que após 1870 se desenvolveu na província, incluiu-se militares

e profissionais liberais que possuíam formação educacional variada. ―O ponto em comum é

que eram, em sua maioria, cuiabanos‖ (FANAIA, 2006, p. 81).

As famílias que dominaram a frente da elite política no período foram os Ponce,

Corrêa da Costa, Paes de Barros e os Murtinhos. Ainda no Império, um nome que já se

destacava era o de Generoso Ponce, prestigiado junto ao Partido Liberal. Enquanto que o

ilustre mato-grossense Joaquim Murtinho não teve o mesmo sucesso, tentou por várias vezes

ser eleito deputado por Mato Grosso e foi preterido (FARIA, 1998).

A família Paes de Barros foi uma das que tiveram maior protagonismo na história de

Mato Grosso e local. Esta foi uma família de fazendeiros produtores de açúcar desde a

fabricação em engenhos no século XIX e depois modernizou a produção com investimentos

em usinas de açúcar no século XX. Foi uma prática que passou de pai para filhos. Um dos

nomes mais conhecido é do Cel. Antonio Paes de Barros, proprietário da Usina Itaicí, que

ganhou destaque por ser de uma família do ramo do açúcar, e ter implantado uma das maiores

indústrias no estado naquele momento, além de ter exercido a função de Presidente de estado

de Mato Grosso. Boa parte da sua história e trajetória ocorreu no Rio Abaixo.

De modo geral, observa-se que Santo Antonio do Rio Abaixo sentiu os reflexos do

período de instabilidade que o estado de Mato Grosso enfrentava por ocasião das mudanças

pretendidas com a instituição do modelo republicano. Era muito difícil o diálogo entre as

elites mato-grossenses. As disputas eram aguerridas pelo domínio político no estado. Não foi

74

observado alterações nos privilégios das oligarquias; mas, foi possível visualizar a circulação

das elites no poder. Isso acontecia ―em detrimento da participação popular e das instituições

democráticas, já que nas disputas oligárquicas eram desrespeitados os resultados de eleições e

desfeito governos legalmente constituídos‖ (ARRUDA, 2015, p. 13). Arruda (2015) entende

que as disputas significaram a alternância de grupos e até mesmo a divisão das elites, o que

justificava a dimensão das tensões e conflitos.

Assim, apreende-se que Santo Antonio do Rio Abaixo ficou conhecido na história de

Mato Grosso durante o século XVIII por exercer a função de região abastecedora para zona

aurífera das Minas de Cuiabá. No final do século XIX passou por uma reestruturação

direcionando as atividades econômicas para produção de açúcar em escala industrial, o que

provocou uma mudança no modo de vida das comunidades ribeirinhas, uma vez que estas se

viram-se atreladas a uma rotina evidenciada no ritmo das máquinas, por uma extensa jornada

de trabalho em troca de um retorno financeiro muito baixo. Todavia, o trabalho nas usinas de

açúcar era praticamente uma das poucas possibilidades de renda naquele momento, portanto,

representava um meio de sobrevivência, fato que levava as famílias do Rio Abaixo a se

sujeitarem, em parte, ao modo de vida nas usinas de açúcar de Mato Grosso como veremos

mais detalhadamente nas trilhas do açúcar.

75

CAPÍTULO II

NAS TRILHAS DO AÇÚCAR E

DA SOCIEDADE

CORONELÍSTICA

76

2.1 O ciclo do açúcar em Mato Grosso

Hoje conhecida como uma cidade pacata e hospitaleira, berço do pantanal mato-

grossense, Santo Antonio de Leverger tem a sua história marcada pela agricultura, pela pesca

e, pelo folclore, mas foi com a introdução da cultura da cana de açúcar e sua industrialização

que o município deixou seu legado na história de Mato Grosso.

Esse foi um momento histórico de prosperidade para uns e pobreza para outros. Um

período marcado, de um lado, por avanços compreendidos pela aquisição de equipamentos

modernos para industrialização do açúcar e pelo empreendedorismo e, de outro, pela relação

de subserviência representada através de práticas clientelísticas, como também pelo trabalho

análogo ao escravo, além da situação de tensões e conflitos constantes.

Na história das usinas de açúcar do estado, temos como destaque as usinas do Pantanal

Norte, concentrava-se a maioria das usinas. Sobre o Pantanal Norte, Borges (2011) elucida

que a área de pantanal situa-se na parte central da América do Sul, particularmente em três

países: Brasil, Bolívia e Paraguai. No Brasil, ele está localizado nos estados de Mato Grosso e

Mato Grosso do Sul. A autora se detém apenas ao estudo do Pantanal Norte banhado pelos

rios Cuiabá e São Lourenço. Acerca dos aspectos físicos, observa-se que:

Um fator importante para entender esta extensa área alagável diz respeito aos

seus aspectos físicos peculiares, relacionados aos ciclos de cheias e de

vazantes, dividido em quatro momentos: enchente (outubro a dezembro),

cheia (janeiro a março), vazante (abril a junho) e estiagem (julho a

setembro). Diante disso, temos de ter em mente que a paisagem pantaneira

anualmente se transformava, uma vez que seu extenso território era tomado

por corredores aquáticos de diversos tamanhos, que cobriam as áreas mais

baixas, ao mesmo tempo em que as matas se tornavam mais fechadas

(BORGES, 2011, p. 1).

Consideramos neste estudo a região do Pantanal Norte banhado pelo rio Cuiabá,

especificamente a parte que corresponde às áreas ribeirinhas do município de Santo Antonio

de Leverger, tendo em vista que foi a rota em que se proliferaram as usinas de açúcar.

Um dado importante levantado por Borges (2011) é sobre o cultivo da cana nas margens

do rio pela influência do ciclo das águas do Rio Cuiabá (enchentes, cheias, vazantes e

estiagem). Esse fenômeno natural foi fundamental para que o plantio da cana prosperasse,

pois esse movimento de cheias e vazantes fazia com que as terras fossem naturalmente

adubadas, tornando-se férteis e favoráveis para o cultivo da cana. ―As canas usuais nesse

77

período eram a caiana, a salangor, a rosa, cristalina e até a roxa, originária da Bolívia‖

(SIQUEIRA, 1997, p. 64).

Com a prosperidade no cultivo da cana surgiram primeiramente os engenhos. Os

engenhos primitivos existentes desde o século XVIII no estado eram construídos de madeira e

sua força motriz era à base de roda hidráulica ou tocada a animal (SIQUEIRA, 1997, p. 64).

Virgílio Corrêa Filho, em sua obra História de Mato Grosso14

apontou a existência de

engenhos no estado desde a Capitania (período colonial). Relatou que foram criadas na região

de Cuiabá 24 engenhos de aguardente e 22 de açúcar e rapadura. Mas esse cenário foi alterado

com o episódio da Guerra do Paraguai. Muitos habitantes do rio Cuiabá abaixo foram

recrutados e as propriedades ficaram abandonadas, o comércio também ficou estremecido

(CORRÊA FILHO, 1969, p. 694).

Contudo, o fim do conflito representou uma nova fase para Mato Grosso. O estado

ingressou numa próspera fase comercial devido à abertura da navegação pelo rio Paraguai.

...a partir de 1880 a Freguesia de Santo Antonio do Rio Abaixo, cujos

proprietários, estimulados pela navegação a vapor, intensificaram a produção

do açúcar com a mecanização de seus engenhos que se tornaram os embriões

das usinas de açúcar na região, no século seguinte (CORRÊA FILHO, 1969,

p. 174).

A ênfase dada por Corrêa Filho para Freguesia de Santo Antonio do Abaixo se deve ao

fato de que essa região transformou-se em sede das grandes usinas açucareiras do estado. Os

antigos proprietários de engenhos resolveram investir em maquinarias importadas da Europa,

suporte para o novo modelo de empreendimento, o industrial. Segundo Siqueira, ―Os

equipamentos importados, especialmente da Inglaterra, eram movidos a vapor e foram muitos

deles adquiridos através de firmas Importadoras e Exportadoras fixadas na Argentina‖

(SIQUEIRA, 1997, p. 67).

Outra obra de Corrêa Filho – As indústrias de Mato Grosso15

– também destacou a

supremacia do Rio Abaixo no cultivo da planta e na produção do açúcar. O autor relata que as

estatísticas mostravam certa monopolização do Rio Abaixo. As outras usinas eram a Ressaca -

no Vale do Paraguai nas vizinhanças de Cáceres; de Santa Fé - no município de Poconé;

Santo Antonio Limitada - em Miranda; além das engenhocas em geral agrupadas às margens

do Rio Cuiabá, cujas terras eram preferidas pelos plantadores de cana.

14

Obra de cunho memorialista que abarca acerca da história do estado de Mato Grosso (CORRÊA FILHO,

1969). 15

Obra que trata sobre a história das indústrias de Mato Grosso e dos principais aspectos políticos associados à

temática (CORREA FILHO, 1945).

78

Sobre as indústrias de açúcar do estado, percebe-se que elas não eram apontadas como

de grande porte se comparadas às usinas do Nordeste. Eram fábricas cuja produção abastecia

o estado de Mato Grosso, considerando que não há registros expressivos da exportação do

produto para outras unidades da federação ou para outros países (SIQUEIRA, 1997).

No entanto, as usinas de açúcar representaram um empreendimento de grande porte e

de muita importância para os mato-grossenses. No contexto de Mato Grosso elas se tornaram

símbolos de modernização e prosperidade. As instalações não eram simplórias para o contexto

de Mato Grosso. Os investimentos não foram poucos. O modo de vida não era barato, pelo

contrário, as pessoas vivenciaram um momento que era de muito glamour para uns e de inópia

para outros.

O emblemático Coronel era o proprietário da usina e usando da representação do título

de coronel criava suas próprias leis, determinando ações e fazendo cumpri-las muitas vezes

sob o peso da violência. Sua família, esposa e filhos revessavam a estadia entre a usina e a

cidade devido à escolarização dos filhos. Tinham uma vida de fartura e alto padrão. Os

funcionários das usinas eram trabalhadores rurais, livres e pobres que moravam na própria

usina ou arranchados, ou ainda residiam em suas imediações16

.

Lenine Póvoas em seu livro O Ciclo do açúcar e a Política de Mato Grosso17

discorre

sobre as usinas de açúcar do Rio Abaixo, sua produção, como também fala das características

de cada uma das usinas, destacando, também, a presença dos usineiros na política mato-

grossense. Esse trabalho apresenta uma visão geral acerca das usinas do Rio Abaixo.

Póvoas (2000) desenvolveu o estudo mais completo sobre a história das usinas de

Mato Grosso, embora ele mesmo considere que não foi possível realizar um trabalho mais

aprofundado. Contudo, entende-se que ele elaborou a obra sob a ótica dos proprietários,

familiares e funcionários de cargos mais elevados e próximos aos donos; e que eram, de certa

forma, pessoas que também faziam parte das relações de convivência do autor.

Para Póvoas (2000) foi tão marcante a influência econômica, social e política dessa

atividade na vida do estado que pode-se dizer que Mato Grosso viveu o ciclo do açúcar

posterior ao ciclo do ouro. Assim, ―a indústria do açúcar gerou uma elite que liderou a vida

social, ocupando os espaços e se projetando na história econômica e política mato-grossense‖

(PÓVOAS, 2000, p. 18).

16

A caracterização dos sujeitos especificada encontra-se nos trabalhos de Siqueira (1990, p. 36); Ana Carolina

da Silva Borges (2011, p. 5) e Lenine Póvoas (2000, p. 12). 17

O autor considera Ciclo do açúcar por configurar-se o modelo de produção industrial que surgiu com

intensidade no final do século XIX e sobreviveu aproximadamente até a década de 30 em Mato Grosso

(PÓVOAS, 2000).

79

O número de usinas no estado em 1914 era:

Seis usinas a vapor, de sistema duplo e tríplice efeito, regularmente

montadas, cinco à margem do rio Cuiabá a saber – São Gonçalo, Conceição,

Aricá, Flexas e Itaicí – e uma a margem do rio Paraguai, a da Ressaca que

nos pertence. Em quase todas elas existem, além dos aparelhos modernos

para o fabrico do açúcar, alambiques contínuos e aperfeiçoados para a

destilação do álcool e da aguardente. A produção média diária de cada uma

dessas usinas varia entre 2.000 a 5.000 quilogramas de açúcar e média da

produção total, por safra, monta em um milhão de quilogramas ou 1.000

toneladas [...] (PÓVOAS, 2000, p. 22).

No quadro abaixo constam as usinas em funcionamento com as devidas localizaçôes:

Quadro 6 - Usinas de Mato Grosso em 1914

Nº USINAS LOCALIZAÇÃO/RIO

1 São Gonçalo Rio Cuiabá

2 Conceição Rio Cuiabá

3 Aricá Rio Cuiabá

4 Flexas Rio Cuiabá

5 Itaicí Rio Cuiabá

6 Ressaca Rio Paraguai Fonte: PÓVOAS, 2000, p. 22.

Na década de vinte, havia nove usinas instaladas em Santo Antonio do Rio Abaixo,

dentre elas, três funcionavam apenas como destilarias de álcool e aguardente:

Quadro 7 - Usinas localizadas em Santo Antonio do Rio Abaixo

Nº USINAS DESTILARIA

1 São Sebastião

2 Maravilha

3 Aricá

4 Conceição

5 Itaicí

6 Flexas

7 São Gonçalo

8 São Miguel

9 Tamandaré Fonte: PÓVOAS, 2000, p. 22.

Essas usinas foram instaladas nas margens do Rio Cuiabá numa rota que tinha como

referência o percurso descendo o Rio, começando pela capital com a usina de São Gonçalo

chegando até a Usina de Flexas em Melgaço, conforme figura abaixo

80

Figura 6 - Rota das usinas

Fonte: PÓVOAS, 2000, p. 20.

Segue a relação das principais usinas de açúcar instaladas em Mato Grosso,

considerando a localização, período de fundação, produtos e os primeiros proprietários:

Quadro 8 - Usinas existentes em Mato Grosso. Organizado pela pesquisadora

Usina Localização Fundação Produtos Proprietários

Aricá Rio Cuiabá/Santo

Antonio de Leveger

1896 Açúcar/aguardente/álcool Maria Marques

Fontes

Conceição Rio Cuiabá Santo 1888 Açúcar/aguardente Joaquim José

81

Antonio de Leveger Paes de Barros

Flexas Rio Cuiabá/Santo

Antonio de Leveger

1884 Açúcar/aguardente/álcool Cesário Correa da

Costa

Itaicí Rio Cuiabá/ Santo

Antonio de Leveger

1897 Açúcar/aguardente/álcool Antonio Paes de

Barros

Maravilha Rio Cuiabá 1928 Açúcar/aguardente/álcool Alberto Garcia e

Palmiro Paes de

Barros

Ressaca Rio Paraguai/Cáceres 1902 Açúcar/aguardente/álcool Francisco

Villanova

São

Gonçalo

Rio Cuiabá/Cuiabá 1914 Açúcar/Aguardente

São Miguel Rio Cuiabá/ Santo

Antonio de Leveger

Aguardente/álcool

São

Sebastião

Rio Cuiabá/ Santo

Antonio de Leveger

Aguardente/álcool

Tamandaré Rio Cuiabá/ Santo

Antonio de Leveger

1818 Aguardente/álcool Antonio Joaquim

Moreira Serra

Fonte: SIQUEIRA ET AL, 1990, p. 42.

O quadro mostra que a maioria das usinas em funcionamento em Mato Grosso no final

do século XIX e começo do XX foi instalada em Santo Antonio do Rio Abaixo, nas margens

do Rio Cuiabá. A Usina Ressaca foi a única implantada em outra região, no caso, em Cáceres,

no Rio Paraguai.

No tempo presente ainda é possível avistar nas margens do rio Cuiabá as instalações

das usinas de açúcar, algumas que ainda resistem fortemente a sua temporalidade, outras que

de alguma forma, resistem também através das suas ruínas, porque certamente são todas

sobreviventes.

Sobreviventes nos manuscritos, nas narrativas, no imaginário popular e ao tempo,

enfim, sobrevivem na memória de um povo permitindo (re)significar os encantos e

desencantos das trajetórias de vidas marcadas pela cultura da sociedade coronelística.

Essas memórias possibilitam repensar os espaços que serviram de cenário para uma

das formas produtivas mais intensas da história de Mato Grosso com base no que podemos

visualizar no presente. Estas foram intensas porque deixaram legados, marcaram vidas,

fabricaram um cotidiano de práticas diversas que produziram culturas.

Deste modo, é possível adentrar no universo das usinas de açúcar, começando pela

composição do espaço. Casa das maquinas, Casa de vivenda, Casas dos Colonos, escolas,

armazéns, depósitos, serrarias e moendas. Esses são os espaços demarcados no universo das

usinas que ajudaram a fabricar o modo de vida da população ribeirinha que vivenciou o

processo da industrialização da cana- de-açúcar e viu-se inserida nele.

82

A arquitetura mais proeminente dentro da usina era a Casa das máquinas,

denominação referente ao local onde era desenvolvida a maior parte do

processo produtivo. A Casa de vivenda era a residência do proprietário da

usina e de seus familiares. Para os trabalhadores foram reservadas pequenas

casas geminadas, conhecidas como Casas dos colonos (SIQUEIRA, 1997, p.

71-72).

Essas instalações fizeram com que os proprietários conseguissem manter, na maioria

das vezes, uma conjuntura que levava os funcionários e moradores a permanecerem na usina,

e assim garantiam o processo produtivo.

Cada usina tinha a sua identidade. Elas não eram padronizadas. Apesar de ser comum

que em todas elas houvesse quase as mesmas instalações, elas se diferenciavam na

organização e nas práticas. Siqueira (1997) aponta informações importantes referentes às

usinas de açúcar do Rio Abaixo, relacionadas à localização, área de extensão, produção e

estrutura. São informações pontuais que possibilitam ter uma ideia da dimensão de cada uma

delas.

2.1.1 Usina Flexas

O primeiro dos grandes estabelecimentos produtores de açúcar a ser instalado foi a

Usina Flexas, criada em 1884. Situada à margem direita do Rio Cuiabá sentido Melgaço,

possuía uma área correspondente a 18.700 hectares, acrescentados de mais 2 hectares de terras

vizinhas adquiridas de Juca da Ilha (PÓVOAS, 2000).

Figura 7 - Casa de Máquinas Usina Flexas

Fonte: PÓVOAS, 2000, p. 30.

83

Figura 8 - Proprietários da Usina Flechas

Fonte: PÓVOAS, 2000, p. 72.

Esta usina foi fundada pelo Cel. Cesário Correia da Costa, e mais tarde foi vendida

para João Pedro de Arruda, fazendeiro da região de Cuiabá, em sociedade com a mãe do

mesmo e como cunhado, Antonio Paes de Barros, pai do médico Agrícola Paes de Barros.

A usina Flexas produzia uma média de 4.000 mil sacas de 60 kl de açúcar por safra,

1.000 litros de álcool e aguardente. A mão de obra contava com aproximadamente 120

homens no período da safra e de 50 a 60 homens no período da entressafra.

Nessa usina havia a casa de vivenda, casa da balança, casa das Máquinas, depósitos,

Armazém, oficinas, casa de trabalhadores casados, casa de trabalhadores solteiros

(repúblicas), ranchos de palha para agregados, e padaria. Havia também empregados

especializados, a saber: 1 encarregado geral, 1 guarda-livros, 1 encarregado do armazém, 1

encarregado do depósito, 1 mecânico, 1 fazendeiro e 1 padeiro (SIQUEIRA, 1997). A

comercialização era feita em Cuiabá e Corumbá.

Em 1910 a sociedade foi desfeita, de forma que João Pedro de Arruda tornou-se único

dono. Em 1942 a usina foi vendida para o filho Palmiro Ponce de Arruda e, em 1945, este a

transferiu para uma sociedade composta por Fause Scaff Gattass e Salim Moisés Nadaf, e, por

fim, a propriedade foi vendida a um grupo de empresários Paulistas.

84

2.1.2 Usina Aricá

Localizada à margem direita do Rio Cuiabá, abaixo da localidade da Barra do Aricá,

encontra-se a Usina Aricá fundada em 1896: ―Com 4.000 hectares de terras, boas para o

plantio da cana. Era uma das usinas de maior produção no estado, tanto de açúcar como de

álcool e aguardente‖ (PÓVOAS, 2000, p. 33).

Figura 9 - Usina Aricá

Fonte: Secretaria Municipal de Cultura de santo Antonio de Leverger.

A origem dos proprietários desta usina remonta ao período colonial, conforme uma

sequência cronológica deixada por Américo Pinto Brasil (SIQUEIRA, 1997), que informa que

inicialmente a propriedade pertenceu a Dona Maria Marques de Fontes, mãe do Cel. José

Marques de Fontes (apelidado de sinhozinho) que era também político – deputado e

Presidente da Assembléia Constituinte, eleito no pleito de 3 de janeiro de 1891, que

posteriormente foi anulado.

A referida proprietária foi a única mulher a administrar uma usina de açúcar em Mato

Grosso nesse período. O Sr. Américo Pinto Brasil deixou registrado o que ele considera

enquanto perfil dessa proprietária: ―Senhora de uma inteligência organizadora, a par de uma

energia máscula, promovendo vários melhoramentos de proveitosos alcances atinentes às

novas modalidades exigidas pela evolução da usina açucareira‖ (BRASIL, 1943, p. 151 apud

SIQUEIRA, 1997, p. 78).

85

Em 1920, a referida usina foi vendida para o Cel. Francisco Pinto de Oliveira e logo

depois para o seu sogro Cel. Virgínio Nunes Ferraz, isto é, o Cel. Vivi, que a explorou por

muitos anos.

A maquinaria foi adquirida pelo Cel. Antonio Manuel da Silva Fontes, vinda da cidade

de Campos (RJ) da Firma F. E. M Torres & Cia, pelo Cel. José Marques de Fontes, em 23 de

julho de 1835. Esta compra objetivava organizar uma sociedade que não chegou a se

concretizar.

Quanto à mão de obra, consta que era de aproximadamente 80 a 100 empregados por

ocasião da safra. A estrutura foi montada com 70 casas de moradia para funcionários efetivos

e eventuais. A produção era comercializada na Praça de Cuiabá.

2.1.3 Usina Conceição

A usna Conceição localizava-se à margem direita do rio Cuiabá, pouco acima do porto

da cidade de Santo Antonio de Leverger. Foi fundada em 1888. O primeiro proprietário foi o

Comendador Joaquim José Paes de Barros, pai de Antonio Paes de Barros (o Totó Paes,

fundador da Usina Itaicí) e avô de Palmiro Paes de Barros que construiu a Usina Maravilha.

Com o falecimento do Comendador, a direção passou aos seus filhos, e, mais tarde, ao Cel.

João Paes de Barros (irmão de Totó Paes)18

.

Figura 10 - Usina Conceição

Fonte: PÓVOAS, 2000, p. 23.

18

Cf. PÓVOAS, 2000, p. 23-24.

86

Essa usina possuía uma área de 14.000 hectares, equivalente a sete sesmarias. A sede

da usina foi construída em um terreno elevado devido às enchentes. O Porto estava localizado

numa curva do rio Cuiabá, o qual contava com razoável profundidade para receber

embarcações. Os maquinários foram importados da Inglaterra e a Produção aproximava-se de

14 a 15 mil arrobas de açúcar por safra e 120 a 140 mil litros de álcool e aguardente. O

número de empregados geralmente era de 150 homens durante a safra. A estrutura foi

montada com base nas seguintes instalações: casa de vivenda, casa da balança, casa das

máquinas, depósitos, armazém, rancho.

Onze anos depois foi criada a Usina Itaicí. A pedra fundamental foi lançada em 11 de

junho de 1896. Com o aceleramento das obras, em 1º de setembro de 1897 ocorreu a sua

inauguração. A Usina Itaicí teve como primeiro proprietário o Cel. Antonio Paes de Barros. O

Cel. Totó Paes chegou a exercer a função de Presidente de estado de Mato Grosso no período

de 1903 a 1906.

2.1.4 Usina Itaicí

Com base na tradição de família no ramo da produção de açúcar, o Cel. Totó Paes

construiu um empreendimento considerado bastante moderno para época. Para isso, ―dirigiu-

se à República da Argentina à procura de conhecimento técnico e auxílio financeiro que lhe

permitisse a ousada iniciativa‖ (PÓVOAS, 2010, p. 26).

Nesta viagem, o proprietário conseguiu fechar negócio com o alemão Otto Franke, o

qual lhe ofereceu o financiamento necessário ao empreendimento através da sua firma com o

objetivo de que o pagamento fosse realizado com a produção da indústria, ou seja, em açúcar

e álcool. Esse financiamento propiciou a construção da Usina Itaicí.

87

Figura 11 - Usina Itaicí

Fonte: AYALA; SIMON, [1914] 2011, p. 279.

Segundo Póvoas (2010), a usina possuía caldeiras de tríplice efeito a vácuo que eram

acionadas por motores com força de 330 cavalos, de forma que em 1913 produzia 225

toneladas de açúcar e 5.000 canadas de aguardente. O autor destaca que a Usina Itaicí chegou

a ocupar a quarta posição no país na produção de açúcar.

Cel. Totó Paes criou uma estrutura que continha funcionários de alta

administração, vinte empregados técnicos e centenas de trabalhadores.

Possuía, além do edifício da fábrica com uma chaminé de 51 metros de

altura, mais sessenta casas, das quais quarenta e cinco eram residências de

trabalhadores (PÓVOAS, 2010, p. 26-27).

Após a inauguração, o grupo Almeida & Cia. estabelecido em Cuiabá, em

conformidade com o proprietário, indenizou a firma Otto Franke correspondente ao valor do

financiamento, tornando-se assim a única credora. Com a morte de Cel. Totó Paes em 1906, a

propriedade da usina passou para o grupo Almeida & Cia.

2.1.5 Usina Maravilha

Depois da Usina Itaicí, foi criada a Usina Maravilha em 1928, localizada às margens

do Rio Cuiabá, a qual começou as atividades como destilaria de aguardente. Esta era de

propriedade de Alberto Garcia que se uniu em sociedade com Palmiro Paes de Barros, dando

88

início à construção da usina. Mais tarde, Palmiro Paes de Barros tornou-se o único

proprietário.

A Usina Maravilha possuía Casa de vivenda, Casa da balança, Casa das

Máquinas, depósitos, Armazém, 20 casas para os trabalhadores fixos. A mão

de obra no período de safra correspondia a 120 homens, entre funcionários

graduados, operários e camaradas. A comercialização do produto era

realizada na Praça de Cuiabá. Nessa usina, o Sr. Bertier de Carvalho

trabalhou por quase 20 anos como encarregado geral, este era braço direito

do Cel. (PÓVOAS, 2000, p. 29).

O proprietário Palmiro Paes de Barros explorou a atividade canavieira e a produção de

açúcar até o ano de 1961, depois a usina foi vendida para um grupo de fazendeiros mineiros

da cidade de Araguari (MG), liderado por Walter Nader que após dois anos de safra encerrou

as atividades da usina (SIQUEIRA, 1997). Atualmente a usina encontra-se deteriorada pela

ação do tempo.

Figura 12 - Casa de Máquinas Usina Maravilha

Fonte: PÓVOAS, 2000, p. 28

A necessidade de reportar a cada uma das principais usinas de açúcar do Rio Abaixo

deu-se pelo fato de mostrar, mesmo que de modo geral, o perfil de cada uma delas visando dar

visibilidade ao que tinham em comum e em dissonância. Como podemos perceber, elas

tinham em comum as instalações, a gestão - que era comandada por coronéis, o quadro de

funcionários, mas se diferenciavam no tratamento e no investimento. Foi com base nessas

especificidades que optamos pela Usina Itaicí, que nesses quesitos se destacou por ser

89

considerada a de maior porte, a mais moderna do estado, mais produtiva, contendo o espaço

industrial mais influente, enfim, pela representação da usina e de seu proprietário. A escolha

também foi feita em virtude do modo de vida configurado nos moldes da sociedade

coronelística, o qual envolvia tratamentos diferenciados, no qual se misturavam atitudes hostis

e de sociabilidades, que nos chamou a atenção enquanto importantes elementos de pesquisa

para pensar na formação das pessoas daquela comunidade e na educação fabricada nesse

contexto.

Feita a exploração de caráter geral, voltamos o olhar para alguns fatores mais

específicos que dão indícios da cultura produzida nas usinas de açúcar, que por sua vez

sinalizam discursos e condutas próprios das sociedades coronelistas e de sua dimensão

educativa.

Algumas representações legitimadas acerca das usinas de açúcar do Rio Abaixo dizem

respeito à ideia de terem sido as mais produtivas do estado, as mais modernas, e também, as

mais violentas nas relações de trabalho e convivência, além da exploração aplicada à mão de

obra.

Com base nessas pontuações apontamos através de pesquisas existentes e de jornais,

os olhares plurais acerca das usinas de açúcar, com destaque para os depoimentos de ex-

funcionários e ex-moradores das usinas e das notícias presentes nos jornais mato-grossenses,

utilizados também como instrumento de denúncia de práticas de maus tratos exercidos pelo

poder de mando dos coronéis.

A tese de Gonçalves (2011) trata sobre a memória subterrânea das usinas de açúcar:

Aricá, Conceição, Flexas e Maravilha, todas localizadas no município de Santo Antonio de

Leverger, as quais ajudaram a compor a rota das usinas de açúcar existentes no estado. O

estudo mostra a construção da memória das usinas através do ponto de vista dos

trabalhadores, distanciando da visão mais tradicional que predominava na versão histórica.

A autora pontua que o silêncio da memória coletiva imposto pela historiografia oficial

tanto no que se refere à vistoria realizada nas usinas Aricá e Conceição, quanto no que diz

respeito à continuidade das relações de trabalho escravo nessas e nas demais usinas, é

rompido por meio dos depoimentos dos ex-trabalhadores e dos ex-moradores das usinas. Para

ela, esses atores fazem imergir ―a voz dos vencidos cuja história foi sepultada pela

historiografia tradicional‖ (GONÇALVES, 2011, p. 16).

Utilizando a metodologia da memória oral, a autora registrou uma série de

depoimentos com ex-trabalhadores e ex-moradores das usinas de açúcar. As narrativas

90

lançadas por eles mostram sob outra perspectiva as vivências diárias, as experiências, as

convivências sob as ordens do coronel. Coronel este que ora era temido e odiado, ora também

era admirado pela personificação de um chefe que quando se aproximava de forma um pouco

mais gentil, mudava a representação que o vinculava à hostilidade.

Nas lembranças dos depoentes apreende-se que o cotidiano não existia sem a presença

do coronel. Era comum que se reportassem à pessoa do coronel e suas ações, considerando

como ele comandava a usina e a vida das pessoas inseridas nesse contexto. A leitura que se

faz desses depoimentos é que os trabalhadores eram tratados de forma variada, ou seja, ora

eram tratados como coisas/objetos, ora eram tratados gentilmente, às vezes até como

membros da família, mas, sobretudo, na visão do proprietário, apreendemos que os

trabalhadores acima de tudo eram indispensáveis como mão de obra na produção do açúcar e

nas articulações políticas, onde conseguir o voto de cada trabalhador era muito importante

para a manutenção do seu poder político.

A maioria dos depoentes retratou o lado mais cruel dos coronéis do açúcar, mostrando

uma versão sobre a vida no interior das usinas. Segundo os depoentes identificados na

pesquisa como (A, F, Q e W):

Ele [coronel] falava: nunca mandei matar ninguém, mas, surra eu mandei

dar, isso ele contava dar surra.

[...] Batia, batia, ele batia, as pessoas de lá falavam, (...) a senhora não fica

com medo de seu Palmyro bater na senhora como bateu no (cita o nome)?

Ele não é besta, eu tinha um canivetinho pequeno no bolso do vestido e

mostrava para ele, ele só ficava me espiando.

[...] Eu nasci no tempo que o coronel João Pedro de Arruda, no tempo que

ele era o dono de lá, lá era escravidão. [...] Naquele tempo a dona princesa

Isabel deu a liberdade para o povo do Brasil, mas só no papel, positivo

mesmo todo mundo ficou como escravo, não é, ainda apanhava (acentuou

bem a palavra apanhava), aí depois que Getúlio Vargas chegou, acabou com

tudo isso.

[...] Naquele do tempo do coronelismo ele era o coronel Palmyro, rico e

bravo (GONÇALVES, 2011, p. 56).

Os depoimentos indicam que os coronéis do açúcar agiam ainda com a mentalidade

dos senhores de engenho. Não por acaso, pois não podemos ignorar que muitos deles

descendiam dos mesmos. Essas práticas apontadas nos depoimentos eram comuns nos

engenhos como o ato de castigar, punir, aprisionar ao tronco.

A continuidade dessas práticas aos trabalhadores livres insere-se a um processo

histórico que não foi interrompido pelas determinações legais, ao contrário, atravessaram as

91

fronteiras da demarcação do tempo, uma vez que o trabalho análogo ao escravo resistiu a Lei

da abolição e aos princípios republicanos.

A punição foi tema recorrente nos depoimentos. Ela não decorria somente nas relações

de trabalho. As lembranças trazem a tona que os castigos eram aplicados no dia a dia, pelo

simples fato dos proprietários questionarem atitudes corriqueiras como um ato de descuido ao

tirar leite da vaca, uma mordida de cachorro, falhar um dia de serviço, entre outros. A

exemplo disso, observa-se no relato de um ex-morador da Usina Flexas que ainda criança

tinha como incumbência tirar leite das vacas especiais para servir a família do coronel.

Então uma vaca chamada Natália, ela me deu um coice na canela, cortou

minha canela, eu não vi nem o coronel nem o preto que batia, chamava (cita

o nome), ainda estava escuro, eu não vi. Quando acabei de tirar o leite às 10

horas, levei aquele balde de leite para a cozinha, seu (cita o nome) me disse:

você vai apanhar, falei por que? Você bateu na vaca, o preto e o coronel

viram, estão esperando você, eu tinha treze anos. O coronel falou: vem aqui

para nós conversarmos. Fui conversar com o coronel e o batedor (cita o

nome) já estava na porta só esperando ordem dele. Quando eu entrei, vi que

tinha duas palmatórias grandes, ajoelhei, o coronel falou: porque você bateu

na minha vaca? Eu falei: bati porque ela cortou minha perna, aí ele falou:

então você vai apanhar. Falei pode bater, estiquei a mão, pá, pá, pá, pá,

quando completou uma dúzia aqui tampou tudo [...], inchou tudo, quase

quebrou todas as juntas, era aquela dor que... aí mandou eu ir embora, cortou

a boia (alimentação). (GONÇALVES, 2011, p. 61-62).

Depois desse relato o depoente informa que quando o coronel ordenou que fosse

embora significou que nenhuma família podia acolhê-lo, deste modo, acrescentou o depoente,

―fui para o mato, não tinha onde ficar, fui para o mato como se fosse um bicho‖

(GONÇALVES, 2011, p. 62).

No entanto, a ordem de suspender a alimentação não foi cumprida pelos empregados

por uma questão de transgressão à ordem, ―seu [...] que servia a mesa da casa grande, botava

sempre uns pedaços de carne no bolso e de noite [...], ele ia lá onde eu estava e eu comia, se o

coronel viesse a saber eu apanhava de novo e seu [...] também‖ (Depoente Q)

(GONÇALVES, 2011, p. 62). Isso mostra que para as estratégias dos coronéis também

haviam as táticas dos empregados. A preservação da ordem do coronel não era unanime.

Como dizia Certeau ―gestos hábeis do fraco na ordem estabelecida pelo forte, arte de dar

golpe no campo do outro, astúcia de caçadores‖ (1994, p. 104).

Os atos de maus tratos eram denunciados por meio da imprensa escrita. São inúmeras

notícias que registram com riqueza de detalhes as barbáries ocorridas nas usinas de açúcar do

92

Rio Abaixo. A saber, o Jornal A Luz (órgão independente) de 22 de agosto de 1924, trouxe

uma reportagem assinada por Agrícola P. B.19

sobre a escravidão nas usinas de açúcar:

Rio Abaixo, onde passei os mais belos dias de ezistencia, meus dez

primeiros anos, minha infância!... Sim, é lá nesse rico espaço de Mato

Grosso que se passa a mais bárbara das escravidões. É lá que o camarada

labuta mais de 12 horas no dia, comendo pouco, ganhando quase nada,

comprando tudo por uma exorbitância e tendo ainda por paga, o tronco, o

pau, a palmatória. (A LUZ, 1924, p. 1).

O Sr. Agrícola Paes de Barros aponta um lado menos otimista da história das usinas de

Mato Grosso, comentando sobre as atrocidades cometidas em nome da modernização e do

enriquecimento a qualquer custo. Palavras estas que denunciam práticas de castigos, torturas,

maus-tratos e violência.

Do mesmo modo, o jornal A Luz de 05 de setembro de 1924 publica uma carta de uma

pessoa identificada como Ignotus (desconhecido), escrita em Santo Antonio do Rio Abaixo no

dia 30 de agosto do mesmo ano. Essa carta denuncia uma versão do que procedia na

internalidade da Usina Conceição, que, segundo o escritor, leva impropriamente o nome da

―mãe da Virgem‖.

O autor da carta relatou que percorreu o estabelecimento onde as pessoas derramavam

sangue e lágrimas. ―Fui, vi e derramei amargas lágrimas‖ (A LUZ, 1924, p. 2). O autor da

denúncia diz ter entrado no calabouço onde estavam dois presos, um deitado no chão com as

pernas [ilegível], [...] ―pocilga onde os carrapatos e outras fedentinas são os companheiros

inseparáveis destes miseráveis‖ (A LUZ, 1924, p. 2).

Ignotus discorre também sobre uma notícia de um artigo que leu num jornal sobre o

Santo Antonio do Rio Abaixo, o qual relata que os filhos desses camaradas nascem devendo e

desde meninos experimentam a influência do álcool. Ele ainda acrescentou, ―nascem

escravos, morrem escravos sem experimentar a liberdade‖ (A LUZ, 1924, p. 2).

A respeito da mulher, consta na carta que ela é companheira inseparável do homem

que dizem ser ―a parte fraca subjugada e como qualquer objeto vil, é mais ainda alcoolizada e

obrigada a um trabalho superior as suas forças. Elas trabalham na carpição, no corte da cana e

ainda em atravessar a mesma em barcos de uma usina para outra‖ (A LUZ, 1924, p. 2).

19

Agrícola Paes de Barros, falecido em 1969, era um médico humanista e atendia de graça a população carente

de Mato Grosso. Além disso, fundou vários jornais em Cuiabá - A Luz, O Fifó, A Plebe e Brasil Oeste.

Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/1997/11/04/julio-campos-homenageia-agricola-

paes-de-barros. Acessado em 30 de setembro de 2017.

93

Para o denunciante esses procedimentos apagaram todo o sentimento de humanidade.

Ignotus relatou relatou que nasceram sem ele, e que talvez morrerão sem o mesmo, se o grito

de liberdade não ecoar na horrível senzala. Esta carta foi destinada ao que parece ser o editor

do jornal que tem como codinome Zelito.

Por outro lado, nem todas as memórias apontam apenas para a representação mais

cruel dos proprietários e da vida nas usinas, como podemos observar através do relato da

Senhora Maria de Arruda Muller, publicado no livro de Maria Manuela Renha de Novis

Neves (2001). Lembramos que Maria Muller fala do lugar da elite mato-grossense e enquanto

filha do usineiro da Usina Flexas.

A sua versão acerca do modo de vida nas usinas de açúcar vai de encontro com a

versão anterior referente aplicação de maus tratos. Maria Muller relata que:

Eu posso dar a ideia a você de como era a vida do usineiro. Eu sou filha de

usineiro (Usina Flexas). Falavam muito que os usineiros maltratavam os

empregados, os trabalhadores. Dizem que mesmo depois da abolição da

escravatura, os trabalhadores ainda viviam em regime de escravidão.

Naquele tempo não havia meios para trazer os filhos dos escravos para

Cuiabá. Mas havia aqueles que se apegavam aos senhores, e mesmo livres,

não queriam abandoná-los. Criavam-se laços de amizade muito fortes, coisa

que hoje dificilmente ainda se vê (NEVES, 2001, p. 243).

As versões plurais demonstram que as memórias são construídas a partir de um lugar,

uma vez que os registros são lançados conforme seus sentimentos, sensibilidades, sua posição

social, suas práticas, enfim, e partem de um conjunto de fatores que possibilitam analisar de

vários ângulos um determinado objeto.

Aqui as usinas foram abordadas através da historiografia que nos dá uma visão geral

da criação e funcionamento das mesmas e argumenta sobre a sua representatividade no

cenário econômico e político no estado de Mato Grosso. Pode-se observar essa construção

através dos relatos apresentados na pesquisa de Gonçalves (2011), no qual visualizamos o

modo de vida nas usinas sob a ótica dos trabalhadores que apresentaram uma rotina exaustiva

de trabalho e de castigos, assuntos também abordados nos jornais mato-grossenses dos órgãos

independentes, uma vez que eram eles que publicavam as denúncias de maus tratos ocorridas

nas usinas. Também se fez notar os depoimentos em defesa da causa dos coronéis usineiros,

ressaltando os laços criados entre patrões e empregados.

A nossa intenção é dar visibilidade às mais variadas formas de entendimento do

contexto das usinas de açúcar do Rio Abaixo, cujo momento histórico permite apontar

discursos, conflitos, espaços e práticas como elementos importantes para reflexão do universo

94

das usinas, em especial, da Usina Itaicí, a partir de uma proposta de análise da sua dimensão

educativa.

Essas memórias reportam a uma trajetória que começa a ser estremecida a partir de

1930. A historiografia de Mato Grosso registra que a partir desse ano, o poder político e

econômico dos coronéis passou por uma intervenção por parte de Mena Gonçalves -

interventor federal no estado, o qual agiu com ações repressoras sobre os grandes

proprietários, principalmente, os coronéis do açúcar. Essas ações foram direcionadas para o

combate ao trabalho semiescravo nas fazendas e nas usinas (CORRÊA, 2009), embora não se

pode ignorar que também envolviam questões fortemente políticas e disputa pelo poder.

Porém, Gonçalves (2011) aponta que os depoimentos dos ex-trabalhadores das usinas

mostraram que apesar de ter ocorrido uma série de ações contra os coronéis do açúcar,

combatendo o modo de trabalho nas usinas e a política exercida pelos proprietários, os

depoentes relataram que não houve um rompimento imediato da cultura coronelista mesmo

com as intervenções. Inclusive, a autora destaca que há registro de que a intervenção não

ocorreu em todas as usinas e não enfrentou todos os coronéis.

O Interventor Federal Cel. Antonio Mena Gonçalves, em 1931, iniciou uma

campanha contra o trabalho escravo nas usinas nortistas. Com o auxílio de

uma força militar invadiu a Usina Conceição, prendendo seu proprietário, o

coronel João Celestino Corrêa Cardozo, encontrando nessa fazenda ―um

tronco em que eram presas suas vítimas‖ ocorrendo o mesmo na Usina Aricá

de Virgílio Nunes Ferraz. A intervenção federal no estado, após a revolução

de 1930, em contraposição à realidade mato-grossense, esboçava uma

tentativa de fortalecimento do estado. As humilhações impostas pelo Cel.

Antonino aos velhos coronéis, muitos deles inclusive sendo amarrados em

troncos, significava a presença e a força do estado nos feudos coronelistas

(CORRÊA, 2009, p. 38).

Desta forma, outras usinas importantes ficaram de fora dessa vistoria como Flexas,

Itaicí e Maravilha. Essa atitude demonstra parcialidade, levando a entender que o interventor

federal fez escolhas. Optou por bater de frente com determinado grupo de coronéis usineiros e

outros não. Esta ação pode estar ligada ao fato de que o contexto político prevaleceu sobre a

questão da gestão, ou seja, as questões de rivalidades entre os próprios coronéis. Nota-se,

também, o fato de que os coronéis usineiros vistoriados eram opositores ao regime político no

país, o que levou a inspeção a ocorrer de forma pretenciosa (GONÇALVES, 2011).

Lenine Póvoas (2010) também se reportou ao período sinalizando que a revolução de

1930 não foi fator determinante para interromper o prestígio dos usineiros. Segundo o autor, o

gesto de ―libertar todos os camaradas das usinas, enchendo lanchas e transportando-os para

95

Cuiabá, em cujas ruas ficaram vagando, sem ocupação, para depois voluntariamente

retornarem às suas antigas moradas, não abalou a força política dos coronéis‖ (POVÓAS,

2010. p. 76).

Seja pela ótica dos usineiros, das memórias dos depoentes (ex-trabalhadores das usinas

de açúcar), seja pela do interventor, observa-se que o Interventor Mena Gonçalves foi

reconhecido como o gestor que enfrentou os usineiros e coronéis do açúcar. Embora ele

tivesse direcionado a sua gestão conforme os princípios da Revolução, o de combater as

oligarquias mato-grossenses, isso não se concretizou de imediato, considerando que o poder

político do estado continuou por alguns anos sob o comando dos coronéis, porém, não com a

mesma representatividade. Observa-se que a partir da década de 40 e 50 foi tornando-se mais

perceptível o encerramento das atividades nas usinas açucareiras.

2.2 Os atores e seu papel social

Um dos conceitos mais centrais na sociologia é o

de “papel social”, definido com base nos padrões

ou normas de comportamentos que se espera

daquele que ocupa determinada posição na

estrutura social.

Peter Burke (2002, p. 70)

O entendimento de que o papel social tem como base os padrões ou normas de

comportamentos possibilita ampliar e tencionar as evidências históricas que dispomos acerca

das representações dos atores e seu papel social na rotina da Usina Itaicí. Nesse ponto, a

história dos coronéis do açúcar, em particular, do Cel. Totó Paes, e dos trabalhadores

observada em registros memorialísticos, nos jornais e na historiografia mato-grossense é

relevante no sentido do que pode ter sido a experiência desses atores ao serem inseridos no

ritmo de vida voltado para o trabalho em escala industrial, que sem dúvida provocou uma

adequação dessa sociedade a um espaço que foi reformulado em função das máquinas, a um

novo patrão, a nova rotina de trabalho e a outros modos de ver a realidade e a outras maneiras

de fazer dar certo a vida imersa no universo das usinas de açúcar de Mato Grosso.

O cenário histórico-social e cultural fabricado no contexto das sociedades

coronelísticas, no nosso entendimento, tem a ver com o que Gilberto Freyre (2003) observou

em Casa Grande & Senzala sobre a formação do Brasil, enfatizando os seus atores e suas

formas íntimas: Senhores de Engenho, autoritários e absolutos; Sinhás passivas, submissas,

entregues ao espaço do lar e da igreja; Sinhozinhos entusiasmados com as mocinhas;

96

Sinhazinhas virtuosas e obedientes; e Escravos domésticos que exerciam diversas funções

ligadas à intimidade e ao cotidiano da casa-grande, a música, o canto, a culinária, e que

conviviam com as famílias patriarcais como cúmplices, companheiros e confidentes. Neste

cenário múltiplo no sentido social, desenvolveram-se relações político-econômicas, sociais, e

religiosas resultantes dos encontros impetuosos e ao mesmo tempo confraternizantes entre a

Casa-Grande e a Senzala.

O livro Casa-Grande & Senzala inspira pela multiplicidade, descrição e análise

pormenorizada de temas sociais que muito nos interessa. Freyre (2003) construiu sua narrativa

a partir dos detalhes e de cada personagem do cenário histórico-social. Retratou um contexto

multifacetado, dando ênfase as formas políticas, sociais, econômicas, religiosas, sexuais,

subjetivas, violentas, afetivas, e etc.

O autor revelou a seu modo os brasileiros e seus sentimentos no cotidiano social, na

sua intimidade, nos comportamentos, e realizou uma reflexão com base na sua versão do

nosso passado colonial. Versão que ao mesmo tempo é rica nos detalhes acerca da

composição social e do modo de vida naquela sociedade, suscita atenção e cuidado no

entendimento de Freyre (2003) quando lançou um olhar positivo para o processo de

colonização portuguesa no Brasil. Porém, acredita-se que a sua força está em mostrar como as

estruturas econômicas, políticas e sociais foram vivenciadas no cotidiano segundo a

representação de Freyre.

É sobre os legados que se pretende-se tratar acerca da relação social fabricada na

Usina Itaicí. Observa-se que representações e práticas comuns ao período colonial, depois

com o Império, perpetuaram até a primeira fase do período republicano. De modo parecido à

gênese de formação da sociedade colonial brasileira, cujas relações estão intimamente ligadas

à casa-grande, à senzala, ao senhor de engenho, à família patriarcal, à igreja católica, aos

escravos, vimos que as relações sociais construídas na Usina Itaicí vivenciaram uma

conjuntura parecida. Todavia, seus atores, os espaços e as práticas ganharam outras

denominações e funções. Entram em cena além dos coronéis do açúcar, os trabalhadores

―livres‖ e toda rede de convivências construídas às margens do Rio Cuiabá. O que nos faz

lembrar da composição populacional mato-grossense.

A população de Mato Grosso no período compreendido entre de 1890 e 1920 era

composta por um público bastante jovem, apresentando-se na faixa etária de 5 a 39 anos, com

maior concentração entre 15 a 29 anos conforme pode ser verificado no gráfico abaixo:

97

Gráfico 1 - Coeficiente da população de Mato Grosso

Organizado pela pesquisadora. Fonte: Recenseamento do Brasil de 1920.

A população mato-grossense ficou por muito tempo estagnada, mas a partir do final do

século XIX apresenta um crescimento devido a inserção de imigrantes atraídos pela expansão

de algumas atividades produtivas.

Tabela 1 - População de Mato Grosso

Ano Nº de habitantes

1890 92.827

1900 118.025

1920 246.612

1930 349.857

Organizado pela pesquisadora. Fonte: BORGES, Fernando. T. de M., 1992.

Ainda que o crescimento populacional de Mato Grosso na transição do século XIX

para o XX tenha sido significativo para o estado, em nível de Brasil era a menor densidade

populacional. A população mato-grossense cresceu, porém, este crescimento concentrou-se

próximo aos núcleos urbanos importantes em contraste com uma vasta área desocupada.

Este foi o caso de Santo Antonio do Rio Abaixo que teve uma concentração

populacional mais significativa por estar próxima a capital e por se estabelecer como região

produtiva. A população de Rio Abaixo, segundo o recenciamento de 1920, possuía uma

população de aproximadamente 13.714 habitantes, sendo 7.036 representados por homens e

6.678 por mulheres. Era também uma população bem jovem como pode ser observado no

0

50

100

150

200

250

300

0-4 5-9 10-14 15-29 30-39 40-49 50-59 60-69 70-79 80-89 90-99 100+

Idade

1890 1900 1920

98

gráfico abaixo, na qual a maior concentração se encontrava na faixa etária primeiramente de 1

a 9 anos, seguidos de 30 a 39 e de 15 a 20. E esses dados possibilitam ter uma ideia do perfil

dessa população.

Gráfico 2 - Coeficiente da população de Santo Antonio do Rio Abaixo de 1920

Organizado pela autora. Fonte: Censo de 1920.

A composição social de Mato Grosso entre os anos de 1890 e 1930 trouxe elementos

novos, embora isso não tenha representado uma transformação na sociedade formada na

província.

A sociedade republicana mato-grossense foi composta por uma elite local diminuta em

número, no entanto detentora de grande influência política e econômica em comparação aos

grupos constituídos por homens livres. Algumas redefinições podem ser observadas através

dos vários segmentos como: comerciantes, bancários, fazendeiros, proprietários de usinas e de

grandes companhias que exploravam a borracha e a erva mate, empresários estrangeiros e

nacionais (CORRÊA, 2006), além dos funcionários públicos que assumiam cargos de

confiança e dos militares de alta patente.

Essa composição mostra uma sociedade heterogênea em que os grupos econômicos

começavam a se alinhar no pós-guerra com o Paraguai. Alguns procuravam reafirmarem-se,

outros lutavam por espaço entre as atividades mais desenvolvidas no estado e na política.

Entretanto, a região do pantanal norte não ficou de fora dessas modificações, uma vez

que passou por algumas alterações no tocante aos grupos rurais da região, bem como na

relação construída entre si e o meio.

0500

1000150020002500300035004000

Idade

Homens Mulheres Total

99

Mas que papel social era conferido a esses atores na sociedade coronelística? É no

contexto de uma sociedade coronelista que os atores compunham uma relação social marcada

por divergências e reciprocidades. Diante disso, compreender a dinâmica das relações nesse

sistema social é importante para o entendimento da educação fabricada nesse espaço.

As relações sociais na Usina Itaicí eram construídas conforme o critério de hierarquia,

configuração atribuída conforme o modelo das sociedades coronelistas. Partimos do

pressuposto de que práticas voltadas para relações de poder se disseminaram por toda a

estrutura social. Desse modo, a figura do Coronel ocupava o primeiro posto, assumindo o

lugar de destaque e domínio sobre os demais, sendo o último lugar nessa configuração

reservado aos camaradas. Essa sociedade desigual evoca os atores e a função que cada qual

exerceu. Eles representam uma história em tessitura, cuja memória possibilita uma análise

daquele modo de vida.

Quadro 9 - Composição social

Posição Função Atividades

1ª Coronel Chefe

Encarregado Geral

Autoridade responsável pelas deliberações na

ausência do proprietário (Coronel)

Encarregados Supervisão e Execução

Chefe da fábrica

Cuidava das atividades da casa das máquinas

Contador

Financeiro

Encarregado do depósito Cuidava do armazenamento da produção

3ª Capatazes Responsáveis por liderar um grupo de

trabalhadores braçais

4ª Operários Trabalhadores da fábrica

5ª Camaradas Trabalhadores que se dedicavam à lavoura e

outros trabalhos pesados

Elaborado pela pesquisadora. Fonte: Póvoas, 2000, p. 45-47.

No quadro acima é apresentada a posição e as atividades que cada um ocupava nessa

sociedade e em seguida, abordamos sobre cada um dos grupos que compõem a sociedade

coronelista no universo da Usina.

2.2.1 Os Coronéis do açúcar

Como foi construída a personalidade do Senhor de usina e seu papel social? Com base

no entendimento de Lenine Póvoas (2000), precisa-se situar no tempo e no espaço em que

atuavam esses atores sociais. Segundo o autor (2000), Mato Grosso, nas primeiras décadas do

100

século XX, possuía uma vasta extensão territorial e um vazio demográfico. A população

amiúde sinalizava um distanciamento entre as comunidades, particularmente, nas áreas rurais,

como é o caso da localização da Usina Itaicí e das demais. Muito embora a área que

corresponde da capital sentido Rio Abaixo e Melgaço fosse uma das mais povoadas, os

núcleos habitados eram distantes uns dos outros e ainda conviviam com a dificuldade de

transporte e comunicação. Desta forma ―as usinas constituíam uma comunidade isolada no

meio da imensidão verde dos campos e das matas e do intrincado dos rios, ribeirões, baías e

lagoas‖ (PÓVOAS, 2000, p. 50).

A sua lógica segue no sentido de mostrar que as usinas se organizavam visando uma

autossuficiência, uma vez que as adversidades levaram-nas à necessidade de produzir tudo

para o seu abastecimento. O autor ainda relata que no armazém da usina se comercializava

tanto os produtos produzidos nela, quanto roupas, calçados, tecidos, fumo, objetos de uso

pessoal e remédios. Segundo o autor ―esse era o meio em que atuava o senhor de usina‖

(PÓVOAS, 2000, p. 51). Tudo isso foi pensado pelo coronel.

No Brasil foi habitual atribuir-se o título de Coronel a pessoas de destacada posição

social e boa situação financeira. Em Mato Grosso essa prática foi bastante evidente, sobre

isso, Póvoas explica que:

Esses postos se estendiam desde a patente de Tenente, passando por Capitão,

Major, Tenente-Coronel e Coronel, conforme a idade da pessoa e a projeção

social conquistada no decorrer dos anos. À vista disso, os coronéis adquiriam

respeito e estima, mesmo que esses valores fossem conquistados a base da

força imposta pelo poder que o título impunha, a qual era de grande

representação simbólica sob o ponto de vista político e econômico, além da

imposição pela força armada (PÓVOAS, 2000, p. 53).

Corrêa Filho (1945), ao versar sobre a figura do coronel apresenta um ponto de vista

convergente ao de Póvoas, isto é, relata sobre a supremacia dos coronéis do açúcar do Rio

Abaixo comparando essa personagem ao dos senhores medievais. O autor destaca o poder que

este ator social tinha dentro e fora do seu estabelecimento, fazendo com que suas deliberações

fossem respeitadas e cumpridas. Sobre isso ele argumenta:

O usineiro consciente do seu poderio, não se limitaria a exercer o mando

somente na sua propriedade, onde, por vezes, não ingressaria a autoridade

policial, senão mediante prévia licença. Dentro do seu território, lembrava o

fidalgo medievo, que diligenciava estender às vizinhanças o influxo da sua

supremacia, à que os agregados se dobravam, quando não preferiam abrigar-

se a outra sombra, ou no afastamento, a libertação do constrangimento

humilhante (CORRÊA FILHO, 1945, p. 32).

101

Para Duarte (1997), o coronel é reconhecido como chefe de uma parentela. Não é a

única expressão do poder político, mas sim a expressão de uma rede de relações de

dominação que ultrapassa o político, como também ultrapassava a estrutura socioeconômica.

Todavia, a força política provinha dos eleitores controlados por um coronel, ou até mesmo de

uma família que tinha no coronel a pessoa que ocupava a maior posição em sua hierarquia.

Nessa rede de relações, o voto era um instrumento importante de barganha que

envolvia uma relação de reciprocidade. Porém, como aponta Queiroz (1997) não se

descartava o uso da coerção, contudo, este era evitado pelos coronéis que conquistavam seus

eleitores através de favores e proteção. Deste modo, o coronel devia possuir a capacidade de

prestar favores. É daí que extraia o seu prestígio perante o eleitorado, considerando o voto um

bem a ser barganhado.

Neste sentido, a autora (1997) afirma que a fortuna pessoal é fundamental e poderia

ser conseguida através da herança (principalmente terras), do casamento ou mesmo do

comércio. E, neste sentido, as atividades comerciais pareciam concorrer para um maior

prestígio ao coronel do que a posse de terras.

Nessa perspectiva, nota-se que o Coronel do açúcar assumiu uma jornada rumo à

liderança movida a uma rede de relações que tinha em jogo a prestação de favores, mas

quando era contrariado, percebe-se uma relação movida muitas vezes a ferro e fogo, porém

estrategicamente suavizada pelo paternalismo, uma vez que as práticas de gentileza, cortesia,

apadrinhamentos, balanceavam um cotidiano também marcado por ações consideradas hostis.

Desta forma, era entendido que ―para os vassalos, que lhe entrassem na simpatia, abria-se

generosamente a bolsa dadivosa do usineiro, bem como a proteção amantadora de quaisquer

delinquências‖ (CORRÊA FILHO, 1945, p. 33).

A vida na Usina Itaicí girava em torno do trabalho, na maioria das vezes, compulsório.

A prioridade era garantir o funcionamento no ritmo das máquinas. Para isso era necessário à

distribuição de tarefas organizadas ao modo do patrão. Todos eram trabalhadores e soldados a

serviço do coronel, o qual impunha uma relação similar à escravidão, dificultando aos

trabalhadores qualquer alternativa de sobrevivência fora da usina.

A posição de líder ocupada pela figura do coronel fez com que ele assumisse o posto

das deliberações e comandasse as atividades realizadas na usina. Refiro-me atividade laboral e

as práticas de convivência. Desta forma, ele criou um conjunto de regras e de ações que cada

sujeito deveria cumprir naquela comunidade. Assim, organiram-se os horários de trabalho, os

102

momentos das atividades domésticas e do laser de forma que nada pudesse sair de seu

controle.

Nesta pesquisa o coronel tem nome – Antonio Paes de Barros, mais conhecido como o

Cel. Totó Paes. Este senhor entrou para a história de Mato Grosso como o industrial do

açúcar20

e homem público. Sua memória é circunstanciada por muita polêmica, porém, nunca

esquecida ou despercebida pelos mato-grossenses. A ênfase dada para este ator histórico

deve-se ao fato de que ele foi o idealizador e primeiro proprietário da Usina Itaicí. A

representação da Usina Itaicí está vinculada diretamente a pessoa do Cel. Totó Paes. Mesmo

ela tendo sido vendida várias vezes, passando por muitos proprietários, a memória da usina é

marcada pelo seu projetista. Por isso, acreditamos ser importante mostrar as representações

acerca do Cel Totó Paes, uma vez que ele foi um dos maiores responsáveis por tornar a Usina

Itaicí um centro comercial e industrial, além de ter proporcionado a comunidade de Itaicí

elementos que só se encontravam em área urbana, atribuindo a ela características de cidade à

localidade.

Pois bem, quem foi o Cel. Totó Paes? Segundo informação obtida no site da família

Paes de Barros21

, sua origem está ligada aos Paes de Barros de Sorocaba, representados pelos

irmãos Fernando e Arthur Paes de Barros, os quais entraram para a história de Mato Grosso

como desbravadores no período colonial.

Figura 13 - Cel. Antonio Paes de Barros

Fonte: Secretaria Municipal de Cultura de Santo Antonio de Leverger, s/d.

20

O termo o industrial foi utilizado na obra de Souza (1958) e a expressão do açúcar foi acrescida pela

pesquisadora devido ao contexto. 21

Disponível em <www.https://ospaesdebarrossaopaolo.blogspot.com.br>. Acessado em março de 2016.

103

Totó Paes era filho do Comendador Joaquim José Paes de Barros e de D. Maria da

Glória Vieira de Barros. Seu pai foi o primeiro usineiro de Mato Grosso ao instalar a Usina

Conceição, produtora de açúcar e aguardente. A priorie o Cel. Totó Paes auxiliou no

funcionamento dessa usina juntamente com seus irmãos, e somente mais tarde conseguiu

comprar a Usina Itaicí com a experiência adquirida através dos negócios da família.

Sobre a representação do Cel. Antonio Paes de Barros, encontramos maiores

informações no relato de João Bosco Paes de Barros publicado em seu blog22

em resposta a

sua sobrinha Regina, a qual lhe pedira para visitar a terra de origem (Mato Grosso) e deixar

uma amostra da história dos Paes de Barros, demonstrando que muitos fatos ainda não foram

escritos.

Sob o ponto de vista de João Bosco Paes de Barros, o Cel Totó Paes, bisneto dos dois

irmãos desbravadores, não era um político e nem os seus irmãos, ele era um capitalista e

empreendedor. Todavia, no sentido de resolver uma disputa entre as lideranças políticas

cuiabanas e mato-grossenses, foi envolvido na vida pública e desta maneira foi eleito

Presidente do estado de Mato Grosso atuando no período de 1903-1906.

Na sua gestão, a prioridade foi organizar primeiramente os fatores de ordem

econômico-financeira, depois se dedicou ao setor de explorações, apoiou às missões

estrangeiras, auxiliou as missões salesianas, participou de exposições internacionais

projetando Mato Grosso no exterior; incentivou a cultura, e ainda, investiu na criação da

revista O Arquivo. No setor social, o presidente de estado Totó Paes procurou revitalizar as

praças da capital com iluminação, bancos nas alamedas, bem como, fundou o clube

internacional, demonstração de que não se limitou ao caráter administrativo, mas teve muita

habilidade no quesito inovação, proporcionando a Mato Grosso conhecer propostas mais

modernas em muitos setores (Souza, 1958).

Essas pontuações feitas por Souza (1958), amigo e pessoa de confiança de Antonio

Paes de Barros, priorizaram os aspectos positivos acerca da pessoa, do político e do

empresário Totó Paes. Porém, o lado mais obscuro ficou por conta do imaginário popular

fabricado pelos adversários políticos, e por conta de uma série de assassinatos pelos quais ele

foi acusado de ser o mandante, e, principalmente, pelo episódio do massacre da Baía do

Garcez, já mencionado anteriormente, onde foram mortos dezenas de opositores políticos na

região do Rio Abaixo, motivo que causou muito ódio e desencadeou um espírito de vingança

que viera a ocasionar o assassinado do coronel Totó Paes em julho de 1906, quando ainda

22

Disponível em: http://joaoboscopaesdebarros.blogspot.com.br. Acessado em março de 2016.

104

estava na função de presidente de estado, em meio a uma tensão que tinha como objetivo

destituí-lo do poder, embora o seu destino evidenciou o pior – seu assassinato.

O jornal O Estado de Mato Grosso de 1958 descreveu a morte do coronel da seguinte

maneira:

Nas imediações da fábrica de pólvora do Coxipó do Ouro é morto o

Presidente Antonio Paes de Barros sendo o seu corpo horrivelmente

mutilado. [...] Fábrica de pólvora do Coxipó, 6 de julho de 1906. Exmo Sr.

Pedro Leite Osório, 1º vice presidente do Estado de Mato Grosso – Acaba de

ser descoberto o cadáver do coronel Antonio Paes de Barros, vosso digno

antecessor no governo do estado. Levando com a máxima urgência possível

esse fato ao vosso conhecimento, peço-vos as providências que julgardes

mais oportunas, ante a gravidade do fato, pois o cadáver apresenta ferimento

que evidenciaram morte violenta, tendo sido levado à pequena distância do

ponto em que provavelmente se deu o homicídio (O ESTADO DE MATO

GROSSO, 1958, p. 6).

Pela descrição é possível observar que o presidente de estado não ia ser mesmo

poupado. Afinal, o momento era de grande tensão e os conflitos se estendiam tanto por parte

da situação como da oposição criando um clima de terror em Mato Grosso, portanto, sem

sinais de trégua. No entanto, a morte do Cel. Totó Paes não pôs um fim aos embates que os

adversários travaram contra ele. A revolução de 1906 que ocasionou na sua morte significou

uma vitória em relação à sua pessoa, todavia começava-se outra trajetória rumo ao seu legado

material e político.

Quanto a isso, conferimos no campo das representações que a imagem do Cel. Totó

Paes passou de industrial empreendedor para o de governador assassino. Embora haja

registros apontando o lado positivo do coronel considerando o seu espirito empreendedor, o

que permaneceu mais proeminente foi a versão negativa.

Isso é bastante evidenciado em A visão dos vencidos23

, no qual é discutida a

interpretação da pessoa do coronel pelo ponto de vista dos vencedores, isso quer dizer, de

Generoso Ponce. Este foi o responsável por transmitir uma história à sua maneira, imagem

essa bastante negativa do presidente, visão que permanece até os dias atuais.

O autor do livro, Paulo Pitaluga Costa e Silva afirma que por questão de poder, os

opositores ditaram da forma que bem entendiam uma história que do seu ponto de vista

―infelizmente se consolidou, exaltando uns e aniquilando outros‖ (Idem, 1997, p. 13). Usando

um tom favorável às condutas do presidente, a escrita mostra que nesse contexto quem teve

perdas foi somente o coronel Antonio Paes de Barros que ―perdeu a revolução, perdeu o

23

Ver SILVA, Paulo P. C. e. A visão dos vencidos: Totó Paes cem anos depois. IHGMT, Cuiabá-MT, 1997.

105

poder, perdeu a vida, e o pior, teve sua moral, a sua dignidade, a sua honradez, a sua imagem

eternamente abalada pela interpretação dada aos acontecimentos pela gente de Generoso

Ponce‖ (Ibidem).

O coronel recebeu um legado deixado pelos poncistas como sanguinário, assassino,

violento. Um legado que passou a se sustentar com o discurso de que a revolução que ele

comandou em 1899 foi ilegítima; de que era o único responsável pelo massacre da Baía do

Garcez; e que a sua usina alojava legiões de bandidos e foragidos da justiça; como também,

havia escravidão branca e de que ele era desleal na política para com seus amigos e

correligionários (SILVA, 1997).

Para reforçar sua discussão com base no que foi construído pelos Ponces acerca do Cel

Totó Paes, o autor traz alguns tópicos retirados do livro de Generoso Ponce Filho ―Generoso

Ponce – Um chefe‖ que demonstram a visão dos então vencedores:

―Roiam-lhe a alma sentimentos corrosivos‖.

―Adubavam-no fertilizantes ressentimentos recalcados. Abundante,

proveitosa colheita. Totó Paes está maduro para a traição‖.

―A exaltação de Totó Paes e de seu estado Maior toca as raias da alucinação.

Ali só se fala em cortar cabeças e matar‖.

―Pedro Celestino está alarmado com as perspectivas sanguinárias que antevê.

Estivera no foco do totopaesismo. Sentira os ânimos daqueles inimigos

ferozes, capazes de tudo‖.

―No Itaicy continuam em pé de guerra os seus homens, cujas armas provêm

do Depósito Bélico Militar de Corumbá...‖ (PONCE FILHO, 1952 apud

SILVA, 1997, p. 15-16).

Segundo Franco (2014, p. 173), antes mesmo da sua morte essas interpretações

resultaram na construção de uma imagem demonizada de Totó Paes, e depois de seu

assassinato transformaram o coronel numa espécie de ―encarnação do mal‖. Ela mostra a

exemplo disso que o jornal A coligação reforçava a imagem com a qual Antônio Paes de

Barros passou a ser identificado, ou seja, como tirano, rústico e assassino.

A narrativa de Corrêa Filho também é significativa e simbólica na reapresentação

acerca da imagem de Totó Paes. Para ele, o empresário revivia anacronicamente o regime

feudal desprezando o princípio civilizador (CORRÊA FILHO, 1946, p. 9).

No que se refere à relação estabelecida com seus empregados, a postura de Totó Paes

não era diferente da que os outros usineiros praticavam comumente na região. Como visto por

Valmir Corrêa (2006) até o início dos anos 1930 em muitas usinas e fazendas ainda havia

regimes de trabalho análogos à escravidão. Muitos proprietários mantinham troncos no pátio

central e casas de suplício.

106

Mas o fato de Corrêa Filho (1946) fazer críticas pesadas à pessoa de Totó Paes se

justifica por um lado, por possuir laços familiares com o grupo opositor. Pois, sendo filho de

um dos líderes do levante - o coronel Virgílio Corrêa - e sobrinho de Antônio e Pedro

Celestino Corrêa da Costa, dois dos principais aliados de Generoso Ponce, a análise de Corrêa

Filho promove a defesa do grupo que se consagrou vitorioso (FRANCO, 2014).

Por outro lado, Antonio Fernandes de Souza (1958) foi um dos primeiros a contestar a

imagem negativa e pejorativa feita a Antonio Paes de Barros com o objetivo de reparar sua

memória. Antonio F. de Souza foi um intelectual e era muito próximo de Tóto Paes, e

inclusive trabalhou para ele na Usina Itaicí e no governo do estado, se dedicando a

organização da revista O Archivo.

O texto que produziu é de caráter memorialístico e trata da biografia de Totó Paes,

elevando a sua personificação, o trabalho e a dedicação à vida pública. O texto representa,

sobretudo, o seu olhar acerca da atuação do ex-presidente do estado de Mato Grosso no

interior do universo dos coronéis do açúcar ao qual pertencia, com a ressalva que ele fala de

um amigo.

O jornal A cruz de 1932 publicou um artigo intitulado Memorias de um cuiabano,

assinado por Tacito de Tacape. O assunto dá destaque à eleição do Coronel Antonio Paes de

Barros à Presidência do estado de Mato Grosso e de sua postura enquanto empreendedor e

industrial de prestígio, a notícia enfatiza a figura do coronel através de uma representação

positiva.

Quatro nomes de destaque no momento. É de presumir, porém, apenas o

primeiro resista a ação do tempo, como fundador da indústria açucareira em

Mato Grosso. [...] Prestativo por índole, generoso e servidor, o seu valimento

no município de Santo Antonio do Rio Abaixo firmou-se por consenso

unanime (A CRUZ, 1932, p. 2).

Contudo, a trajetória do Cel Totó Paes relacionada ao contexto de enfrentamentos

armados em Mato Grosso foi marcada pelo que chamam de seu lado sanguinário, apontada

por essa imagem transmitida pelos seus opositores. Tais narrativas conferem legitimidade a

esse discurso, inclusive atribuindo a esses o caráter de fundadores e defensores da República

mato-grossense.

Dantas Barreto (1907) resume que ―da sua Usina do Itaici,‖ Antônio Paes de Barros

―passou às atraentes chamas do inferno político‖ (BARRETO, 1907 Apud FRANCO, 2014, p.

177), ao subestimar a capacidade de reconstituição de seus oponentes, assim, tornou-se vítima

107

da sua vontade política e perdeu-se nesse território moldado a base de articulações, conflitos e

hostilidades.

As ocorrências que marcaram a história de Antônio Paes de Barros, bem como os

enfrentamentos armados que ocorreram desde a Proclamação da República, apontam o

predomínio da violência no tratamento das questões políticas no estado de Mato Grosso,

principalmente nos primórdios do regime republicano.

Os enfrentamentos entre grupos oligárquicos e partidários, todavia, não foram

exclusivos da política mato-grossense. No Brasil, o fenômeno do coronelismo está associado

à luta pela manutenção do poder, desencadeado pela instituição do regime republicano. Assim

sendo, esses episódios de confronto armado não revelam uma violência casual, desenraizada,

mas apontam para uma identificação cultural. Como mostra, por exemplo, Franco (1997, p.

30) ao analisar as relações sociais dos homens livres no Brasil do século XIX, ―o ajuste

violento se integra nas modalidades tradicionais do agir‖.

Diante desse campo minado, percebe-se que prevaleceu a representação sobre Antônio

Paes de Barros como uma pessoa violenta, sanguinária e assassina. A construção dessa

imagem serviu para justificar a razão de seu assassinato, pois visto como autoritário,

truculento e alguém que adotava práticas de barbárie era mais fácil convencer a opinião

pública de que a versão dos seus opositores talvez fosse a melhor opção (ARRUDA;

JUNIOR, 2011).

2.2.2 Os agregados e os camaradas

Com a construção das usinas de açúcar e o aumento do número de fazendas, houve um

acréscimo do número de trabalhadores rurais na região. ―As camadas subalternas do meio

rural, de modo geral, eram compostas por índios (Bororos, Guatós e Guanás) e por negros e

mestiços‖ (BORGES, 2011, p. 5).

Corrêa Filho (1946) denomina esses trabalhadores rurais de plebe rural. Não temos

nenhuma intenção de incorporar nesta pesquisa o referido termo por entendermos que não

seria adequado, mas acreditamos ser pertinente ao mostrar, a partir de uma obra

memorialística, as representações acerca dos trabalhadores naquele momento. Corrêa filho

(1946) ao tratar sobre o trabalho nas fazendas busca caracterizar o que ele chama de plebe

rural:

108

[...] se desenvolve o trabalho coletivo, indispensáveis as operações de maior

escala e o aparecimento da classe de inferior nível social, constituída pelos

agregados, camaradas e os que não se alistam em nenhum destes grupos,

embora vivam desprovidos de haveres, como os ribeirinhos modestos.

Incluem-se os primeiros no rol de pretendentes a morar em gleba pertencente

a outrem, cujos favores são distribuídos periodicamente por meio de

trabalho. Em geral, o proprietário de terras, que lhe sobejam, consente na

ocupação de pequeno lote a quem solicitar, mediante condições variáveis de

um para outro estabelecimento. Terá ou não direito a criar algumas cabeças

de gado, abrir roças, até certos limites, mas quase sempre será obrigado a

atender aos avisos para auxiliar os trabalhos principais do senhorio

(CORRÊA FILHO, 1946, p. 122).

Essa composição social é bem presente no contexto de Santo Antonio do Rio Abaixo,

nas usinas de açúcar e na Usina Itaicí. O coronel, os agregados e, os camaradas

compartilhavam suas experiências no ambiente da usina.

Sobre o coronel já tratamos nas páginas anteriores, mas como eram representados os

agregados e os camaradas? No ponto de vista de Corrêa Filho (1946), os agregados

juntamente com a sua família eram as pessoas que possuíam a relação mais próxima com os

proprietários (usineiros), estes tinham permissão para circularem pela residência do patrão e

autorização para desenvolver algumas atividades autônomas como a plantação e criação de

animais. Segundo o autor, os agregados eram denominados também como os ―mais

graduados‖.

A relação de proximidade construída entre os agregados e seus patrões era marcada

por práticas relevantes para a ordem desenvolvida no cotidiano da usina, fortalecendo uma

convivência baseada na ajuda mútua. As relações de confiança eram estabelecidas pensando

na construção de uma relação de fidelidade, a qual orientava as ações e relações

desenvolvidas entre eles, contudo, essa relação não era desprovida de tensões e embates. Essa

relação não foi a todo tempo a base da harmonia e da boa conduta.

Não podemos deixar de salientar que o período da primeira república em Mato Grosso

era tenso no estado inteiro. Em Santo Antonio do Rio Abaixo não foi diferente, sobretudo nas

usinas de açúcar, afinal essa carga de embates e conflitos políticos, as disputas pela liderança

política e econômica, disputa por espaços de poder, geravam práticas de violência que se

estendiam ao setor político, passando pelo econômico e também no social. Por isso, as

relações não foram construídas a base de uma harmonia permanente.

Ser agregado significava, contudo, poder trabalhar com um pouco mais de garantia, no

intuito de permanecer realizando as atividades rurais, auxiliando no trabalho nas usinas e,

sobretudo, mantendo a sua sobrevivência. Uma vez que nessa condição corriam menos risco

109

de uma indefinição, como era o caso dos camaradas, como afirma Corrêa Filho (1946) ―Fora

dos compromissos periódicos, vivem em relativa independência, ao contrário dos camaradas,

a quem cabe um quinhão maior nos campeios e demais diligências, que se intensificam nas

estiagens até o começo da época das águas‖ (Idem, p. 122).

As informações sobre caracterização do trabalhador denominado camarada não são

muito detalhadas no período em questão, sabe-se que esta atribuição já existia desde o período

colonial de Mato Grosso e continuou presente tanto no período provincial como no começo da

república. Desde a inserção do trabalho dos camaradas na história de Mato Grosso, percebe-se

a sua presença na zona urbana e rural. Eles desenvolviam tarefas variadas nos engenhos,

fazendas, propriedades com lavoura, em atividades de mineração/extração. Os camaradas

eram definidos como trabalhadores pobres livres ou libertos, estes eram contratados para

desenvolver uma determinada atividade. Os acordos de trabalho poderiam ser temporários ou

não. Esses trabalhadores poderiam saber algum ofício específico, sendo contratados para tal,

ou apenas empregados para desenvolver atividades diversas (SENA, 2010).

Segundo Virgílio Corrêa Filho:

Empregam-se de acordo com as normas vigentes, mediante remuneração

ajustada. Na região sulina já os nomeiam de peão, por influência forasteira.

Quando se iniciou a pecuária pantaneira, ser-lhe-ia diminuto o número, em

confronto com a dos escravos, que então constituíam a maioria dos

trabalhadores rurais. À medida, porém, que os segundos se reduziam,

beneficiados pela alforria, aumentava aqueles em proporção (CORRÊA

FILHO, 1946, p. 122-123).

Deste modo, podemos considerar que os camaradas eram os trabalhadores que com a

abolição da escravatura compunham a sociedade mato-grossense como um dos grupos sociais

mais desfavorecidos dentro da relação de trabalho constituída no estado, e, por sua vez, no

contexto da Usina Itaicí e das usinas de açúcar do Rio Abaixo, estes ocupavam um lugar

próximo ao do trabalho escravo. Nos trabalhos desenvolvidos nas fazendas, nos engenhos

como nas usinas, estes inclusive se diferenciavam do trabalho dos agregados, uma vez que era

reduzido o compromisso de fidelidade com o patrão.

Nas atividades realizadas nas usinas, os camaradas tiveram presença marcante, tendo

em vista que representavam a maioria dentre os trabalhadores nessas propriedades, como foi

em Itaicí, principalmente nos períodos de safra.

A relação dos camaradas com os usineiros era praticamente voltada para o trabalho.

Eles conseguiam o serviço e a partir disso criavam uma convivência baseada nas jornadas de

110

trabalho e na dependência que tinham desse locus e de seus patrões. Isso significava

sobrevivência, tanto que se sujeitavam às regras estabelecidas pelos patrões como assumirem

uma jornada de trabalho intensa, e ainda adquiriam dívidas no setor de serviço das usinas por

causa dos altos preços dos produtos que não correspondiam com a realidade do que os

camaradas podiam pagar. ―Chamados de camaradas, apesar de assalariados, deixavam quase

tudo que recebiam na usina, pois eram obrigados a fazer compras nos armazéns que ali

existiam. Neles eram comercializados roupas, calçados, tecidos [...] até mesmo a cachaça‖

(SIQUEIRA, 1997, p. 68). Como também pode ser observado no relato de uma enteada ao

tratar sobre a vida de seu padrasto em uma das usinas: ―Meu padrasto, coitado, morreu de

tanto trabalhar e nunca soube o quanto ganhava porque estava sempre devendo no armazém‖

(GONÇALVES, 2011, p. 95).

Muitas vezes, em razão das dívidas contraídas com despesas de alimentação, moradia,

vestuário, bebidas, produtos de higiene, esses trabalhadores tinham seus nomes anotados em

cadernetas24

, onde se registravam os débitos, tornando-se assim aprisionado ao patrão até que

encontrasse alguma maneira de saldarem as dívidas, o que geralmente era muito improvável.

Como também salienta Siqueira (1997):

Como os salários eram baixos, os camaradas estavam sempre devendo ao

usineiro e ainda afirma que presos economicamente à usina estavam também

presos os seus corpos, pois mesmo que desejassem abandonar o emprego,

não poderiam fazê-lo livremente (Idem, p. 68).

Esse fato foi constatado por outros autores da historiografia regional25

. Há registros

nos jornais de trabalhadores que fugiam das usinas de açúcar e iam para a capital (Cuiabá)

denunciarem os patrões, como exemplo temos a publicação do Jornal A Semana de 10 de

outubro de 1926, este já citado anteriormente, onde três escravos fugiram das usinas de açúcar

do Rio Abaixo para delatar sobre os maus tratos do ―Patrãozinho de prestígio junto aos

poderosos‖ aplicados aos trabalhadores. Nota-se por meio dos relatos dos ex-trabalhadores

das usinas, que muitas ordens que eram dadas pelo patrão aos encarregados não eram

cumpridas, isso ocorria sem que o mesmo percebesse, como foi o caso já citado de uma

criança incumbida de tirar o leite, que foi machucada por uma vaca e acabou agredindo-a no

24 Trata-se de um caderno de anotações dos débitos feito pelos trabalhadores e moradores da usina. Para maiores

informações ver BORGES, Ana Carolina S. Os senhores da área alegável: ruralidade e diversidade social do

Pantanal Norte (1870-1930). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho, 2011.

25 Póvoas (2010), Aleixo (1987), Corrêa (1991).

111

impulso da dor, e como o fato foi observado pelo patrão, que não gostando da atitude

deliberou para o seu encarregado punisse o menino, todavia, isso não ocorreu.

Observa-se que os trabalhadores procuravam corresponder às regras e normas

estabelecidas pelo patrão, mas faziam a sua maneira, ora sujeitando-se em algumas situações e

ora resistindo em outras. A relação de trabalho foi se constituindo em meio a um jogo de

poder, onde os patrões agiam de forma mais impositiva para garantir a sua posição de chefe,

de mando e de dominação sobre os seus empregados e, por sua vez, os trabalhadores sentiam-

se empoderados visto que atuavam discretamente em prol de seus próprios interesses à revelia

do patrão.

2.2.3 As crianças em foco

O modo de ver e ler a infância nos tempos contemporâneos pode ser compreendido

pelo que diz Sarmento sobre o processo de reinstitucionalização da infância. O autor afirma

que ―a infância exprime-se e revela-se nos planos estrutural e simbólico. Deste modo, as

culturas da infância são também objecto de pluralização e diferenciação‖ (SARMENTO,

2003, p. 1). Sarmento nos faz pensar no lugar que a contemporaneidade reservou para a

criança, lugar em que a criança constrói sua interação mútua, a edificação do seu mundo e de

suas culturas.

Deste modo, nos reportamos à criança como um ator social e não um mero produto

dos adultos. Por isso compartilhamos da compreensão que o lugar da infância é um entre-

lugar (Bhabha, 1998), um espaço entre dois modos, ou seja, o que é configurado pelos adultos

e o que é reinventado no modo de vida das crianças, entre dois tempos, o passado e o futuro.

Sá (2007), ao abordar sobre as representações da infância, demonstra que na infância

elas eram visualizadas como infantes, crianças, alunos, expostos, órfãos, desvalidos, petizes,

peraltas, vadios, capoeiras, menores, entre tantos outros nomes atribuídos à infância brasileira

no final do século XIX e inicio do XX. A autora (2007), afirma ainda que essas

representações dizem respeito à classe social, à faixa etária, ao grupo cultural, à raça, ao

gênero e às diferentes situações em que se encontrava, como a de abandono, exclusão na

família, na escola e na rua. Como podemos observar, são múltiplas as representações da

infância. São múltiplos os discursos, as práticas. Como também são múltiplos os olhares para

a criança e para infãncia.

112

A consciência social da existência da infância dentro da abordagem historiográfica

emergiu de vários autores, detre eles Arìes (1978) que configurou-se um clássico no assunto.

No entanto, a construção histórica da infância foi resultado de um processo complexo de

fabricação de representações sobre as crianças no seu dia a dia.

Essa nova configuração de análise da infância levantada na contemporaneidade volta o

olhar para os vários processos inseridos no contexto da criança, seja urbano ou rural, pobre ou

rica, sadias ou enfermas, enfim, possibilita dar visibilidade para as diversas formas de se

compreender o mundo infantil a partir da abordagem histórica e educacional.

A visibilidade que pretendemos dar aqui é para a infância de Mato Grosso, em direção

à infancia rural, pois é uma temática que se encontra em construção no estado. Deste modo,

procuramos pela cultura da criança ribeirinha, pantaneira, inserida no modo de vida da Usina

Itaicí. Para isso, buscamos uma narrativa da história dessa infância através das representações.

A população infantil de Mato Grosso era constituída de índios, brancos, negros e

pardos. As crianças negras escravas, eram consideradas recém-nascidas até a idade de dois a

três anos, e, conforme o Termo de Declaração, eram citadas como produções, crias,

crioulinhos (as), mulatinhos (as), etc. Em área urbana, a condição de criança escravizada era

percebida dos 7 aos 8 anos, e então esta passava a ser vista como mercadoria pronta para

exercer atividade produtiva (SÁ, 2007).

Em relação à zona rural, a autora destaca que ―a condição de criança escrava iniciava-

se mais cedo, de cinco anos em diante, mostrando que a infância dessas crianças era

abreviada, entrando bem pequenas no mundo do trabalhador‖ (SÁ, 2007, p. 61).

Havia diferença nos lugares de circulação das pessoas conforme o grupo social que

estas ocupavam, isso incluía as crianças. As crianças da elite

[...] independente da cor, residiam predominantemente na freguesia da Sé ou

no 1º Distrito, que era composto pelas ruas centrais de Cuiabá. Essa infância

não tinha uma cor que a caracterizasse, [...] já que grande parte da população

cuiabana era considerada parda (SÁ, 2007, p. 62).

A população indígena geralmente não era informada nas estatísticas. A informação

que se tem, segundo Sá (2007), se reporta a um relatório do Diretor Geral dos Índios datado

de 1848, presente no Albúm Gráphico de Mato Grosso de 1914, o qual relaciona 33 etnias

conhecidas e declaradas, dentre elas: bororos da Campanha, bororos cabeçaes, cayapós,

coroados, Parecis, entre outros.

113

As representações do cotidiano das crianças cuiabanas podem ser observadas através

das obras memoralísticas que sinalizam vestígios dessa infância e foi assim apresentado por

Sá:

As crianças se incubiam de levar mais longe as raias da vinhança, entrando

nas casas com toda familiaridade, muitas vezes, sem bater palmas para

aununciar, já que as portas de entrada permaneciam sempre abertas. As

convivencias entre famílias, compreendendo adultos e crianaças, se davam

no fim no dia, quando, à luz da lamparina de querosene, os vizinhos

colocavam suas cadeiras na calçada para tirar uma prosa (SÁ, 2007, p. 68).

Em relação às brincadeiras, estas encontravam inspiração nas festas religiosas, como a

festa do Divino, nas touradas, cavalhadas e no carnaval:

...a criançada brincava com uma cabeça de boi espetada numa vassoura e

vários atacantes, reproduzindo, cada um de sua maneira, o espetáculo que se

sucedia à festa do Divino Espírito Santo. As brincadeiras das crianças

variavam de acordo com o calendário festivo ou com as variações climáticas,

invadindo as ruas da capital. Em agosto, época de vento, os meninos

empinavam as pandorgas e, no fim do ano, a fartura do milho verde trazia as

petecas. [...] As meninas brincavam de rodas, cirandas, quitutes e também de

―pegador‖ (SÁ, 2007, p. 71-72).

Pensando no cotidiano ribeirinho, Borges (2010) entende que ele pode ser observado

por meio dos relatos de viajantes, os quais apresentam algumas representações acerca do

modo de vida da população da região do Pantanal Norte, uma vez que esses relatos apontam

algumas práticas do cotidiano ribeirinho.

A autora (2010) observa que houve um silenciamento construído nas narrativas dos

viajantes, entendendo que isso não era imparcial, tendo em vista que agiam deslegitimando o

acesso às terras e aos recursos disponíveis por parte dos moradores que nesses espaços se

encontravam. Para ela:

...uma vez deslegitimado esse processo de fixação, os discursos visavam

oferecer aos grupos de investidores nacionais e estrangeiros um aparato que

se configurava em um conjunto de ideias, pensamento e valores, necessários

para exploração econômica das florestas, dos rios e do solo. Pouco

menciodos nos relatos de viagens, aos trabalhadores livres pobres desses

ambientes e suas práticas diárias era conferida uma visão negativa,

especialmente, sobre aqueles moradores localizados nas margens dos rios.

[...] A utilização local dos recursos disponíveis era criticada pelos

estrangeiros, porque não se enquadrava na visão utilitarista da ideologia do

―progresso‖. (BORGES, 2010, p. 61-62).

114

A autora aponta que havia, por um lado, uma visão negativa acerca dos trabalhadores

pobres ribeirinhos e, por outro, uma visão mais positiva em relação aos grandes proprietários

de terras. Ela ressalta que a visão sobre as atividades rurais e o compartamento da elite agrária

estava longe de receber as mesmas características despendidas aos trabalhadores

financeiramente desfavorecidos, principamente, sobre os ribeirinhos.

Para Borges (2011), em Mato Grosso, a elite era dententora de grande influência

econômica e política em relação aos grupos cosntituídos por libertos e escravos, esta era

composta por vários segmentos: proprietários de usina, fazendeiros, bancários, comerciantes e

empresários estrangeiros e nacionais.

Com a construção das usinas de açúcar nas margens do rio Cuiabá aumentou a

quantidade de trabalhadores rurais que tinham uma condição de vida menos favorável. Esses

trabalhadores submetiam-se a viver com sua família em terras de outras pessoas por meio do

trabalho como garantia de sobrevivência.

[...] se desenvolve o trabalho coletivo, indispensável às operações de maior

escala e o aparecimento da classe de inferior nível social, constituída pelos

agregados, camaradas e os que não se alistam em nenhum destes grupos,

embora desprovidos de haveres, como os ribeirinhos modestos. Incluem-se

os primeiros no rol de pretendentes a morar em gleba pertencente a outrem,

cujos favores são retribuídos periodicamente por meio de trabalho. Em geral,

o proprietário de terras, que lhe sobejam, consoante na ocupação de pequeno

lote a quem solicitar, mediante condições variáveis de um para outro

estabelecimento. Terá ou não direito a criar algumas cabeças de gado, abrir

roças, até certos limites, mas quase sempre será obrigado a atender aos

avisos para auxiliar os trabalhos principais de senhorio (CORRÊA FILHO,

1946, p. 122).

De modo geral, os ribeirinhos, principalmente aqueles vinculados às usinas de açúcar,

tinham um grau de dependência desse estabelecimento e se comprometiam com as regras e

normas do proprietário a fim de garantir um meio de trabalho e de sobrevivência. As famílias

ribeirinhas viviam da roça feita em pedaço de terra cedidos pelos proprietários da usina em

troca da produção, e, sobretudo, do trabalho na mesma, o que rendia a família uma jornada de

trabalho intensa, sendo que nem mesmo as crianças fugiam das tarefas.

Sobre a infância rural há poucos estudos em Mato Grosso. O dia a dia dessa infância,

as brincadeiras, a rotina e, a cultur, ainda são pouco exploradas se considerarmos as

especificidades locais e a diversidade cultural que cada uma delas possui. Essa temática

encontra-se em construção e certamente por si só merece um esforço de pesquisa, o que não

foi possivel aprofundar neste estudo.

115

Na tentativa de estabelecer algum diálogo sobre a infância a partir da interlocução

criança-aluno, encontramos uma fase da vida infantil inserida no contexto das usinas de

açúcar do Rio Abaixo representada através do trabalho para os patrões, para a família e na

escola.

Em relação ao trabalho na usina é de conhecimento que o modelo adotado estava

vinculado ao trabalho semiescravo. Esse foi o caso dos trabalhadores das usinas de açúcar de

Mato Grosso. Pois, muitos usineiros submetiam os trabalhadores ao seu domínio. O trabalho

nas usinas não se restringia a população adulta, mas incluía toda família, até mesmo as

crianças:

As crianças inclusive participavam do trabalho na roça, na confecção dos

sacos, nos teares, na fabricação da farinha, nas tarefas de descascar arroz e

até mesmo no transporte da cana. O trabalho infantil não era legalmente

permitido, porém, no interior das usinas, vigorava a lei estabelecida pelo

coronel (SIQUEIRA, 2009, p. 36).

A imagem abaixo aponta indícios de trabalho infantil ao apresentar crianças com

garrafas na mão ao lado de tanques de água, juntamente com os adultos, sugerindo o exercício

de uma atividade comum na época nas usinas de açúcar, que também produziam aguardente,

que era a limpeza das garrafas para reaproveitamento na indústria.

116

Figura 14 - Trabalhadores e crianças na limpeza de garrafas na Usina Itaicí.

Fonte - Acervo da Secretaria Municipal de Cultura de Santo Antonio de Leverger.

Essa imagem evidencia, sobretudo, toda a sujeição a um tipo de trabalho que era

realizado em condições insalubres, com poucos recursos, aparentemente perigoso,

principalmente para as crianças, por se tratar de um espaço que não era plano, podendo

acarretar acidentes em caso de desiquilíbrio. Percebe-se que a possível sinalização de que as

crianças estavam em um ambiente de trabalho, demonstra como as leis do patrão era

prioridade nesse espaço. Os adultos também certamente deviam sentir todo tipo de pressões,

em ter que realizar um trabalho desprovido do mínimo de conforto, de proteção e de garantias

de rendimento.

Desta maneira, pouco se sabe acerca do cotidiano da infância rural do Pantanal Norte

no período em questão, mas pressupõem-se uma vida ligada ao rio, ao trabalho nas usinas, e

também à escola.

De modo geral vimos que a região do Rio Abaixo apresentou-se dentro de um

universo plural, a começar pela diversidade dos grupos sociais que colaboraram para as

espacializações locais no período correspondente ao final do século XIX a primeira metade do

século XX. Esses grupos, de forma distinta, deixaram suas marcas na composição social

117

ribeirinha e de Mato Grosso. Entre proximidades e distanciamentos, reciprocidades e

hostilidade, as pessoas que vivenciaram o modo de vida da sociedade coronelista, hierárquica

e adepta a mão de abra compulsória, trilharam seus caminhos entre a necessidade de uma

sujeição tática e os embates que decorriam em denúncias contra o patrão e às fugas. São esses

atores sociais e suas trajetórias que inspiram a tessitura de uma narrativa da educação para

além da escola.

118

CAPÍTULO III

A ESCOLA DE ITAICÍ E A

ESCOLARIZAÇÃO DAS

CRIANÇAS

119

A escolarização das crianças era uma das formas de educação presente no universo da

Usina Itaicí e neste capítulo propomos refletir sobre a escola de Itaicí, voltando o olhar para a

história dessa instituição escolar, para sua função social, sua identidade, para as finalidades e

a cultura produzida na mesma. Tem-se como base a criação da escola, organização e produção

de uma cultura escolar com foco no processo de escolarização das crianças e na formação de

ofícios conforme os indícios nos indicam.

3.1 A Escola de Itaicí: da iniciativa privada à gestão do estado

A história da Escola de Itaicí marca o início da ação educativa escolarizada no

contexto da Usina Itaicí. É a história de meninos e meninas ribeirinhos, inseridos num projeto

privado empresarial considerado moderno em sua estrutura, mas arcaico nas suas relações.

Esse projeto evidencia uma sociedade de controle, ou seja, a centralidade que as instituições

escolares tiveram no processo de disciplinarização, com suas estratégias ancoradas na

produção de saberes e comportamentos e a produção de identidades, que neste caso se destaca

pelo modo de vida das sociedades coronelísticas.

A análise destas representações, apropriações e práticas desvela o papel

desempenhado pela instituição escolar na fabricação de um ator social alfabetizado e os

processos de assujeitamento nela produzidos, demonstrando o aspecto contraditório da

modernidade anunciada com a implantação da República.

Ao adentrar no interior da escola, onde as relações entre professor, alunos e

comunidade foram estabelecidas, e, a partir das quais se constituíram o espaço e o tempo

escolar e os saberes que compõem a cultura da escola, reconstitui-se aqui uma história que

envolve uma instituição privada empresarial, uma escola de ensino primário, comunidades

ribeirinhas, projetos em disputa, estratégias e práticas de formação escolarizada em

consonância com os processos socioculturais mais amplos, como por exemplo, a formação de

ofícios.

Essa reconstituição partiu de questões pertinentes para análise da educação

escolarizada e da história dessa instituição de ensino, tais como: Como se deu a criação da

escola? Como foi organizada? Qual a sua finalidade? O que ela fabricou?

Partindo das reflexões existentes sobre a história das instituições educativas e/ou

escolares, nos respaldamos nas concepções de Magalhães (2004) e Gatti Junior (2002), dentre

outros autores no campo da história da educação, uma vez que eles direcionam o olhar para os

120

elementos que devem ser observados na produção da história das instituições de ensino. Esses

elementos se configuram na construção da identidade da escola e na sua relação com a

sociedade, nas normas e no cotidiano escolar.

Segundo Magalhães (2004, p. 20) ―a educação é processo de humanidade e via de

humanitude‖ e o ofício de historiar uma instituição passa por:

Compreender e explicar os processos e os ―compromissos‖ sociais como

condição instituinte, de regulação e de manutenção normativa, analisando os

comportamentos, representações e projetos de sujeitos na relação com a

realidade material e sociocultural do contexto (MAGALHÃES, 2004, p.58).

Nessa perspectiva, observa-se que as instituições escolares devem ser historiadas a

partir de seu contexto, de fatores sociais e culturais, ou seja, do ambiente no qual se

encontram inseridas. Nesse sentido, as práticas educativas e a relação da escola com a

sociedade reverberam a discussão sobre a intencionalidade dos processos educativos na

formação social e dos corpos individuais dos professores e alunos, bem como todos os demais

envolvidos no processo educacional, tomando forma e cultura escolar como conceitos

operatórios para uma análise (SOUZA; VALDEMARIN, 2005). Deste modo, entende-se a

importância de contextualizar a instituição escolar, sua integração com a comunidade, sua

razão histórica, e o modo como se constituiu cultural e historicamente.

Investigar a escola através da sua memória histórica e tentar descortinar a sua cultura,

seja ela, imaterial, material ou simbólica, passa também pela lógica compartilhada por Silva

de que:

Existem inúmeras características que aproximam os comportamentos das

escolas, bem como as investigações sobre ela, e há uma infinidade de outras

que os/as diferenciam. No entanto, parece não haver inconvenientes em

considerar a escola como uma instituição com cultura própria. Os principais

elementos que desenhariam essa cultura seriam os atores (famílias,

professores, gestores e alunos), os discursos e as linguagens (modos de

conversação e comunicação), as instituições (organização escolar e o sistema

educativo) e as práticas (pautas de comportamento que chegam a se

consolidar durante um tempo) (SILVA, 2006, p. 202).

Partindo da compreensão de que a escola deve ser historiada a partir da sua

multidimensionalidade e da relação escola/sociedade, nos voltamos para a internalidade das

instituições educativas. Segundo Gatti Junior (2002) a história das instituições educativas

investiga o que se passa no interior da escola pela:

121

(...) apreensão daqueles elementos que conferem identidade à instituição

educacional, ou seja, daquilo que lhe confere um sentido único no cenário

social do qual fez ou ainda faz parte, mesmo que ela tenha se transformado

no decorrer dos tempos (GATTI JUNIOR, 2002, p. 20).

Desta maneira, envolve análise sobre a trajetória das instituições, considerando a

criação, desenvolvimento, elementos da arquitetura, perfil de seus agentes, corpo docente,

funcionários, apoio, projetos e propostas pedagógicas, dentre outras.

Desta maneira, ao olhar para uma instituição escolar entendemos que muitos aspectos

são primordiais na análise da sua cultura, a partir dos quais se busca a compreensão e a

explicação da existência histórica de uma instituição. Isso permite reescrever o itinerário de

vida na sua multidimensionalidade, conferindo à instituição um sentido histórico (VIDAL,

2009), de modo que optamos por analisar a escola a partir da instituição, organização e dos

aspectos da cultura escolar - seus espaços, as práticas, o tempo, as normas - seguindo na

direção de Agustín Escolano (1998) ao dizer que nem o espaço, nem o tempo escolares são

dimensões neutras do ensino, não são simples esquemas formais ou estruturas vazias da

educação. Ou seja, estas ―Operam como uma espécie de discurso que institui, em sua

materialidade, um sistema de valores, um conjunto de aprendizagens sensoriais e motoras e

uma semiologia que recobre símbolos estéticos, culturais e ideológicos‖ (ESCOLANO, 1998,

p. 26). A escola observada por meio de seus elementos constitutivos nos apresenta também

―como pedagogias permitindo a interiorização de comportamentos e de representações

sociais‖ (FARIA FILHO, 2000, p. 20).

Ao considerar que os elementos educativos presentes no ambiente escolar não são

neutros, que esses mesmos elementos caracterizam pedagogias (ensinam e educam de algum

modo) a partir de representações e comportamentos, e que ainda atuam como elementos

destacados na construção social da realidade, significa dar atenção ao que a escola fez, como

fez, para quem fez e por que fez.

É bom lembrar que as ações educativas construídas no ambiente escolar são resultados

de um contexto que envolve práticas econômicas, políticas, sociais e culturais. No caso de

Mato Grosso:

Com a implantação do sistema de governo republicano, a liderança da

administração do estado de Mato Grosso ficou, de forma alternada, nas mãos

de dois grupos oligárquicos: do norte, representada pelos senhores de

engenho e, posteriormente, usineiros de açúcar: e a do sul, composta de

grandes pecuaristas e pelos comerciantes (SÁ; SÁ, 2011, p. 29).

122

Assim, ao adentrar no universo da Escola de Itaicí nos deparamos primeiramente com

uma situação específica, isto é, a educação para as crianças. O que logo nos remete a infância.

Segundo Sá (2007), esta caminhou paralelamente a historia das instituições escolares ao

inserir a criança no espaço escolar, ensinando-a a ser aluno. ―O desenvolvimento da escola

primária inventou uma nova tradição e condição da infância, a criança-aluno‖ (SÁ, 2007, p.

18).

A infância de que trata este estudo é a infância rural, na qual as crianças foram

inseridas no contexto de uma usina de açúcar e vivenciaram a experiência de criança-aluno

(SÁ, 2007), crianças trabalhadoras e/ou apenas crianças, embora essa infância de ser somente

criança foi a menos observada, pois não se identificou vestígios das práticas dessa infância

constituída em casa, nos quintais, na relação com o rio, no contato com a natureza, nas

brincadeiras, etc., o que seria comum tendo vista a vida em área rural. Talvez tenha sido pela

própria circunstância, permeada de controle, trabalho e cerceamentos.

O tempo das crianças e o tempo da escola revelam ―o modo como em diferentes

tempos e espaços uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler‖

(CHARTIER, 1990, p. 17); nessa perspectiva, entende-se que a Escola de Itaicí em particular

fugiu um pouco dos padrões estabelecidos para época.

A escola constituiu-se nos primeiros anos de funcionamento26

da Usina Itaicí como

uma escola de ensino primário de iniciativa privada empresarial que atendeu a infância rural

ribeirinha e foi agenciada, a priorie, por uma figura emblemática - o Cel. Totó Paes - e, mais

tarde pelo estado.

Segundo Araújo (2013), a institucionalização da educação escolar primária no Brasil

baseada na diversidade de modalidades, pedagogias, métodos, programas de estudos variados,

classes homogêneas, ensino simultâneo, uniformização do tempo e da idade escolar foi

decorrente do regime republicano. Para a autora, os preceitos de laicidade, financiamento,

regulação social, disciplinamento comum, obrigatoriedade de frequência, uniformização

pedagógica e de igualdade jurídica elevaram-se como fundamentos embasadores da educação

escolar primária na formação de uma sociedade civil republicana.

Nesse cenário, a Escola de Itaicí destacou-se como uma das primeiras instituições de

ensino implantada em uma usina de açúcar do estado de Mato Grosso, em ambiência de uma

26

Não foi possível localizar o ano exato de criação da referida escola. Mas há indícios de que a escola foi

implantada nos primeiros anos de funcionamento da usina, especificamente entre os anos de 1897 e 1906,

período em que se encontraram menções sobre a existência da escola de Itaicí na historiografia mato-grossense e

nos jornais.

123

fábrica, voltada para a alfabetização das crianças e para a formação de alguns ofícios como

alfaiataria e música.

A trajetória da escola remonta ao período de 1897 à década de 1950, sendo que a

escola começou seu funcionamento como uma escola de iniciativa privada, e, em 1928, foi

configurada como Escola Ambulante de Itaicí. A partir de 1930 recebeu um novo formato –

Escola rural mista de Itaicí. Essas alterações acompanhavam as mudanças na legislação

educacional do estado que propunham uma escola única e homogeneizante.

A legislação da Instrução Pública de Mato Grosso refletia os princípios republicanos

que nasceram ―da crença na necessidade de remodelar a ordem social, política e econômica e

da convicção de que a educação seria o mais forte instrumento de consolidação do regime e

alavanca na construção de um país moderno‖ (PAES, 2012, p. 82).

Para Alves (1998) ―com o advento da República e do regime democrático, primou-se

pela expansão de escolas como garantia da democracia e como forma de diminuir o número

de analfabetos intencionando elevar o Brasil em relação aos países desenvolvidos‖ (idem,

1998, p. 12). Nesse estudo destaca-se a ação dos professores, diretores de Instrução Pública e

governantes, no âmbito das relações socioeconômicas e políticas do estado. Então em Mato

Grosso:

[...] esse processo de expansão do ensino trilhou pelos (des)caminhos da

interferência política. Isso ocorreu devido à própria formação político-social

do estado e em decorrência da atuação dos coronéis rurais – grandes

proprietários e fazendeiros – e os coronéis urbanos – comerciantes das

―Casas comerciais‖. Estes coronéis constantemente entravam em conflito

pelo poder de mando aos níveis local e regional, intensificando o clima de

violência e abrindo maior espaço à atuação declarada do Coronelismo. Desta

forma, ao longo das décadas de 1910 a 1940, com exceção de algumas

conquistas, o ensino sofreu as consequências do predomínio do poder

político em que o professor era um elemento de mediação, na cadeia

interminável de dominação política e cultural (ALVES, 1998, p. 13).

A autora faz referência às interferências dos coronéis até mesmo nas questões

educacionais e demonstra o quanto isso era determinante enquanto elemento de

empoderamento e controle. Essa característica percorre todo o período, ora mais acentuado,

ora mais ameno, todavia o poder dos coronéis estava sempre presente de alguma maneira.

Essa relação pode ser observada no contexto das fazendas de erva-mate de Mato

Grosso, que também foram representativas para a economia do estado, como foi o caso da

124

Companhia Mate Laranjeira que atuou no sul do estado entre os anos 1880 a 1940, se

destacando nesse setor por ter sido detentora do monopólio do extrativismo de erva-mate.

Nos ervais, de modo parecido ao da Usina Itaicí, segundo Brasil e Trevisan (2015):

[...] as relações de trabalho entre patrões e camaradas ―mineiros‖ eram as

piores possíveis. Grande parte da literatura compulsada sobre a lida nos

ervais indica a utilização dos nativos como mão de obra barata, submetidos a

condições extremas de espoliação (idem, 2015, p. 37).

No que se refere a Ponta Porã, havia uma visível ―luta de braços‖ entre

políticos, governo e a Laranjeira Mendes e Cia pela hegemonia do poder

regional. No bojo dessa luta a imprensa local, indubitavelmente vinculada

aos interesses de políticos opositores à ―Mate‖ e ao Governo, estampava em

suas páginas os problemas educacionais do espaço ponta-poranense (ibden,

p. 41).

Os autores destacam que a escola era impensável para o segmento subalternizado e a

criança nessa situação era envolvida em atividades vinculadas à vida nos ervais. Tanto que as

crianças que conseguiam frequentar a escola iam para o lado paraguaio, pois as escolas

brasileiras praticamente não funcionavam por falta de professores (BRAZIL; TREVISAN,

2015). Essa era a situação nos primórdios da história da empresa Mate Laranjeira.

A iniciativa de instalação de um grupo escolar nessa região ocorreu em 1923, e foi

denominado Grupo Escolar Mendes Gonçalves. Embora a empresa Mate Laranjeira tenha

ganhado o crédito devido a doação do terreno para a construção da escola, nota-se que:

De certo modo, um dos artífices do GEMG em Ponta Porã, foi a população

que, por meio de constantes pressões, cobrava dos governantes a instalação

de um GE na cidade. Entretanto, de forma concreta, o principal responsável

pela construção foi o administrador da Laranjeira Mendes & Cia, Heitor

Mendes Gonçalves, o qual encampou a instalação do edifício para abrigar o

GE (BRAZIL; TREVISAN, 2015, p. 51).

Mais uma vez, observa-se aqui as interferências do poder dos coronéis na relação com

a população, atuando no lugar do estado, tendo em vista de que se trata de uma escola pública

primária agenciada por uma empresa. Manter essa relação com a população e também com os

políticos e governantes parece ter sido primordial para garantir ―a futura renovação dos

contratos de arrendamento‖ (BRAZIL; TREVISAN, p. 55). Para tanto, a escola serviu como

um dos elementos propulsores dessa força advinda do fenômeno coronelista em Mato Grosso.

Isso remete ao entendimento de que o ensino ―passou a ser um dos pontos principais, e

a escola ocupou relevante papel social, pois as técnicas de leitura e escrita haviam se tornado

125

instrumentos necessários à integração social dos indivíduos‖ (ALVES, 1998, p. 22). Aqui se

destaca o fato de que o ideário republicano anunciava um regime de participação política no

qual previa ―o mínimo de escolarização comum, para se ter garantia do voto [...] a educação

se tornou pauta indispensável nos discursos políticos, e a ideia de escola para todos se

proliferou em todo o país, apesar de que na maioria das regiões não se tenha concretizado‖

(ALVES, 1998, p. 22).

Conforme a primeira legislação educacional da República em Mato Grosso, a de 1896,

expedida pelo Presidente de estado Dr. Antonio Corrêa da Costa, para a organização e

funcionamento das escolas na época, definiu-se que as classes seriam ministradas em escolas

denominadas elementares e complementares. A legislação delibera que ―haverá escolas

elementares em todas as cidades, vilas, freguesias e povoados existentes no estado, e

complementares na Capital e cidades principais, devendo ser consideradas tais aquelas de

maior desenvolvimento e densidade de população‖ (MATO GROSSSO, REGULAMENTO,

1896, p. 66).

Segundo o Artigo 4º do referido regulamento, o ensino elementar é obrigatório para

todas as crianças de sete a dez anos de idade. Para isentarem os filhos e tutelados da

frequência da escola elementar, deveriam os pais e tutores provar que as crianças recebiam o

ensino exigido pelo Regulamento, através dos pais ou de aulas particulares, ou pelo fato dos

filhos e tutelados apresentarem moléstia ou defeito físico que os impedisse de frequentar a

escola.

Esse regulamento aponta que os pais e tutores eram obrigados a comunicar à

autoridade competente que os filhos que atingissem a idade prescrita estavam sendo instruídos

em casa ou em aula particular, ou comunicar o motivo pelo qual não lhes proporcionavam o

ensino elementar. O artigo 6º trata sobre uma multa para quem descumprisse tal

procedimento: ―A falta de comunicação ou a inverdade dela, verificada pela autoridade

competente, sujeita os pais e tutores a multa de 5$000 a 20$000 réis, e ao dobro na

reincidência provada de três em três meses‖ (MATO GROSSO, REGULAMENTO, 1896, p.

66).

Em Mato Grosso é possível observar pela legislação educacional a coexistência de três

modalidades de ensino: a pública, a particular e a doméstica. A primeira era custeada pelo

estado; a segunda, pelas das famílias, e/ou pelos professores, e, no caso da Escola de Itaicí,

especificamente, custeada por uma empresa; e a terceira ―distribuída na residência dos alunos

por seus pais, ou por professores estipendiados por estes‖ (SÁ; SIQUEIRA, 1998, p. 115).

126

O ensino primário particular em Mato Grosso, conforme Siqueira (2009) ganhou

expressão na década de 1880, tomando a iniciativa na proposição do ensino misto, do ensino

de música e do sistema de internato.

Reis (2011) relata que desde longa data há notícias da existência e atuação das escolas

particulares no estado de Mato Grosso. A autora apresenta alguns dados observados no

relatório de 1859 da Inspetoria Geral, e aponta que no período provincial, essas escolas

estavam distribuídas da seguinte forma: em dois municípios e suas respectivas freguesias: 1)

Município de Cuiabá – freguesias: Pedro 2º, Santo Antonio, Livramento, Diamantino,

Rosário, Poconé, Vila Maria, Mato Grosso; 2) Município de Miranda – freguesia:

Albuquerque. Essas escolas funcionaram tendo turmas masculinas em algumas e, outras com

turmas femininas, sendo a maior parte delas com turmas masculinas, abrangendo um total de

250 alunos.

Pe. Ernesto Camillo Barreto afirma no Relatório da Inspetoria Geral de 1878 que:

É dificílimo, senão impossível, pelo que já em outro lugar expus ter dados

exatos não só do número de alunos que frequentam escolas particulares

como daqueles que o Regulamento Orgânico denomina domésticas. Como

estas últimas gozam de pleníssima liberdade, muitos instrutores, sofismando

a Lei, procuram passar seus estabelecimentos particulares por escolas

domésticas, a fim de se subtraírem as inspeções e aos poucos e ligeiros ônus

que mesma Lei lhes impõe (MATO GROSSO, RELATÓRIO, 1876, p. 6).

Percebe-se que mesmo sem ter como organizar uma estatística mais fidedigna em

relação às escolas particulares, o governo incentivava a iniciativa particular, tendo em vista

que não dispunha dos elementos necessários para garantir a expansão da instrução pública

para todas as crianças em idade escolar no estado.

Conforme Paião (2006) havia crescente interesse das autoridades públicas sobre as

escolas particulares, posto que estas poderiam auxiliá-las com suas estruturas, corpos docentes

e experiências pedagógicas na tarefa de aumentar a malha escolar, tornando-a mais acessível à

população.

No início da República, os relatórios e mensagens apontam inúmeras reclamações a

respeito da falta de informação sobre as escolas particulares. O Relatório de 1897 da Diretoria

da Instrução Pública, apresentado por José Estevão Correa para o Presidente do estado de

Mato Grosso Antonio Corrêa da costa, mostra o quanto se ignorava sobre a situação da

instrução primária no estado no que dizia respeito à ausência de informação das demais

escolas existentes. Para as autoridades públicas os responsáveis por essas escolas se negavam

127

a prestar as informações necessárias de seu funcionamento, assim, ficava omisso o número de

matriculas, frequência e estatísticas. Conforme informações do relatório de 1897:

Assim, é que com respeito a Escola da Vila de Miranda, denominada ―Cristóvão Colombo‖, cuja estatística é conhecida nesta repartição, tudo o

mais se ignora relativamente ao movimento escolar das demais Instituições

congêneres espalhadas pelo Território do Estado e incluídas entre elas as

próprias Escolas Particulares desta Capital. Nem é infelizmente de hoje que

tal sucede. Nos Regulamentos anteriores e notadamente no de 4 de março de

1880, já se sujeitaram as disposições regulamentares do Ensino Público, em

tudo quanto se relacionasse com a estatística higiene e moral dos mesmos

estabelecimentos. Mas, a verdade é que nada se soube então, como nadas se

sabe ainda hoje, a respeito da população escolar do Estado, pelo fato de não

serem conhecidas a matrícula e a frequência de tais escolas. Multas se tem

decretado contra os Diretores de Colégios e Escolas Particulares, que se

mostrarem revés no cumprimento daqueles deveres impostos pelas Leis e

Regulamentos, mas são penas essas que só existem nas coleções sem terem

tido jamais nenhuma aplicação real e efetiva (MATO GROSSO,

RELATÓRIO, 1897, p. 7-8).

Segundo Mensagem do 2º Vice Presidente do estado Coronel Antônio Cesário de

Figueiredo à Assembléia Legislativa de 1899:

Em relação aos estabelecimentos de ensino particular existentes no estado, e

alguns dos quais está subvencionados pelos cofres públicos; deixando os

seus diretores de fornecer à Diretoria da Instrução pública às informações

necessárias relativas às frequências, à higiene e a moral, apesar da multa, que

por esta lhes é imposta, mas da qual zombam por estarem certos da sua

inefetividade (MATO GROSSO, MENSAGEM, 1899, p. 01).

A mensagem de 1901 aponta um discurso citando o exemplo norte americano como

uma nação que desenvolve ações mais efetiva em prol da educação naquele país. O Presidente

relata sobre uma fala do senhor Honorato Mann a propósito da preocupação dos estadistas

norte-americanos de desenvolver por todos os meios a educação nacional. Segunda o discurso

de Mann:

O primeiro dever dos nossos magistrados e dos chefes da nossa república é

subordinar tudo a esse interesse supremo. Em nossos países e em nossos

dias, ninguém é benemérito do título de homem de Estado, se a educação

prática do povo não tem o primeiro lugar no seu programa. Pode um homem

ser eloquente, conhecer a fundo a história, a diplomacia, a jurisprudência, o

que lhe basta alias para pretender a elevada condição de homem de Estado;

mas, se suas palavras, seus projetos, seus esforços não forem por toda parte

constantemente consagrados à educação do povo, ele não é, não pode ser

homem de Estado Americano (MATO GROSSO, MENSAGEM, 1901, p.

89).

128

Nessa mensagem o estadista de Mato Grosso compartilhou o discurso americano e

finalizou dizendo que

o único meio de salvar a nova geração brasileira do contágio da lepra moral,

que lavra pelo país, é educa-la. Sendo assim, educá-la fisicamente, para se

ter homens fortes; moralmente, para se ter homens honestos;

intelectualmente, para se ter homens ilustrados. Educá-la convenientemente,

para se ter grandes homens (MATO GROSSO, MENSAGEM, 1901, 89).

A mensagem de 1903 apresenta informações referentes à criação de 04 escolas

primárias, número de matrículas e frequência, constando que houve uma sensível diminuição

em relação aos números de matrícula e frequência no ano anterior. Lamentando a situação, o

presidente do estado acreditava que a explicação para isso devia-se a agitação dos espíritos

em face dos últimos movimentos e do aparecimento das epidemias de varíola e bubônica.

Nas mensagens de 1905 e 1906, dirigida à Assembléia Legislativa pelo Presidente do

estado Coronel Antonio Paes de Barros (Totó Paes), discorre-se pouco sobre a instrução

pública e mais sobre eleições estaduais e federais.

O que foi apontado nas mensagens e relatórios, muitas vezes subsequentes, são

informações referentes à precariedade do ensino no estado de Mato Grosso. O que se

apresentou nos relatos sobre a situação de falta de informação referente às atividades das

escolas particulares também se estende a outras escolas. Tanto no critério de não haver uma

boa estatística que pudesse dar um direcionamento mais efetivo às atividades educacionais,

como no empenho em investir de forma mais contundente nesta área que se apresentava como

uma das mais importantes.

Neste cenário, percebe-se que a Escola de Itaicí seguiu numa direção diferenciada

como se pode observar a partir dos estudos sobre a escola. Começando pelo estudo da

historiografia mato-grossense, autores como Souza (1958), Siqueira (1990), Gonçalves (2011)

relatam a existência dessa escola desde os primeiros anos de funcionamento da usina, mas as

suas pesquisas não se aprofundaram na organização e na cultura escolar dessa instituição. As

informações trazidas por esses autores decorrem de estudos acerca das memórias das usinas

de açúcar de Mato Grosso atreladas à sua composição histórica do ponto de vista

socioeconômico.

De modo mais detalhado, Souza (1958) transcreveu do jornal O Paiz de 1906 a

representação dos visitantes sobre o funcionamento da usina Itaicí, e não ignoraram a

existência da escola. Segundo o referido jornal:

129

[...] Visitamos em primeiro lugar a escola onde o professor ministrava o pão

do espírito a mais de 40 meninos filhos dos empregados, notando-se a maior

disciplina e ordem entre os alunos. Havia ali também a escola de música que

funcionava juntamente com a de primeiras letras. Passamos em seguida a

biblioteca, fundada há pouco tempo, dispondo de variada coleção de livros

sobre ciências, artes, literatura etc, instituição essa mantida para beneficio

não só dos empregados mais graduados como do operário (SOUZA, 1958, p.

8).

A imagem abaixo evidencia alguns traços observados e citados por Souza:

Figura 15 - Professores e Alunos da Escola de Itaicí.

Fonte: Álbum Gráfico de Mato Grosso de 1914.

Observa-se também pelo olhar do fotógrafo que havia a pretensão de passar uma

imagem de organização, disciplina e suntuosidade, uma vez que percebe-se o capricho nas

vestimentas de todos e todas, em particular representa algo que não era possivelmente

habitual para os alunos que eram filhos de operários e trabalhadores braçais, que se pressupõe

não ser o vestuário que fazia parte da rotina da escola e dos estudantes. O destaque para a

separação dos meninos e das meninas, sendo que a maioria dos meninos encontram-se

posicionados no alto e as meninas abaixo dos meninos, demonstrando de certa forma uma

posição hierárquica comum para esse modelo de sociedade. Percebe-se que essa imagem é a

representação de uma foto oficial, de modo que há uma necessidade de demonstração de

poder.

130

Siqueira et al (1990), ao informar sobre as instalações existentes na Usina Itaicí,

registrou acerca da Casa das máquinas, Casa de Vivenda, armazém, depósitos, serrarias,

moinhos e sobre a escola:

A arquitetura de maior porte dentro da usina era, sem dúvida, a Casa das

Máquinas [...] local onde era desenvolvida a maior parte do processo

produtivo: moendas, balanças, decantadores e caldeiras. Além dessa fábrica,

existia uma ―casa grande‖. [...] Ali residia o dono da usina com sua família.

Aos camaradas eram reservadas pequenas casas, geralmente germinadas.

Além das construções para residência, existiam ainda, dentro das usinas de

maior porte, escolas, armazém, depósitos [...], serrarias, moinhos e máquinas

de beneficiar arroz (SIQUEIRA, 1990, p. 39).

A pesquisa de Gonçalves (2011) tem como objetivo registrar a partir da memória dos

ex-trabalhadores como era a vida nas usinas, as relações de convivência, trabalho, sujeição,

como também a escolaridade dos trabalhadores; desta forma, ela cita a existência de escolas

nas usinas. ―Tivemos a preocupação de registrarmos o grau de escolaridade dos depoentes,

uma vez que havia escolas em três usinas (Conceição, Aricá e Itaicí). Todavia, a escola só

surgia integrada ao cotidiano‖ (GONÇALVES, 2011, p. 31).

Essa escola fez parte de um contexto marcado pela vida rural, porém, dinamizada pelo

ritmo das máquinas, atendendo assim a infância atrelada a uma rotina que envolvia

escolarização, trabalho e tensões envolvendo o proprietário da usina, o Cel. Totó Paes, que de

personalidade forte, construiu uma cidade em torno da usina, abrigando centenas de

funcionários que eram a mola propulsora de seu grande empreendimento – A usina Itaicí.

Esse proprietário integrou a escola no projeto da usina. No entanto, depois da sua

morte em 1906, ao que tudo indica, parece ter paralisado as atividades da escola. No acervo

do Arquivo Público de Mato Grosso há um abaixo assinado dos moradores da comunidade de

Melgaço referente ao ano de 1910 solicitando a criação de uma escola na Usina Itaicí:

Ao Ex. Senr. Coronel Pedro Celestino Corrêa da Costa – M, D, Presidente

do Estado: os abaixo assinados, representantes de várias classes sociais,

todos residentes no distrito de Melgaço, município de Santo Antonio de Rio

Abaixo, vêm com todo o acatamento levar ao conhecimento de V. Ex. o fato

que passam a expor, e para cuja solução pedem a preciosa atenção de V, Ex.

Sendo já crescido o número de meninos que em toda zona da vila de

Melgaço e adjacências deixam de frequentar a escola, uns por extrema

pobreza dos respectivos pais e educadores, outros pela distância em que

residem do distrito, e já existindo na Usina Itaicy uma escola apropriada para

nela funcionar uma escola e material destinado ao mesmo fim, os abaixo

assinados pedem a V. Ex, que ouvida a autoridade escolar, se digne a ceder à

131

criação de uma escola na referida usina do ―Itaicy‖, cuja instalação os

signatários desta se comprometem a efetuar a expensas próprias.

Compenetrados do interesse que V, Ex. dedica as coisas do ensino, os

signatários confiam que o pedido melhoramento mereça a aprovação de V.

Ex. a quem apresentam os mais elevados protestos de estima e consideração

(MATO GROSSO, 1910, s/p) 27

.

Segue abaixo o quadro com o nome de todos os moradores que assinaram a

solicitação.

Quadro 10 - Lista dos moradores

Francisco Pinto de Oliveira Virgínio Nunes Ferraz Junior Vicente Ferreira de Paula

Francisco de Assis

Albuquerque

Olimpo de Assis Pinto José Maria Nunes de Campos

Aparício Silvino Peixoto Joaquim Pinto Guedes Antonio João da Silva

Jorge Nunes da Conceição Antonio Fernandes de Mello Sebastião Batista de

Assardos

Jeronimo Nunes Jorge Reiner Antonio Plinio

de Barros

Bernardo Antonio de

Oliveira

João Lima

Joaquim Pinto de Oliveira Pedro José Machado Elaborado pela autora. Fontes: APMT, Lata 1910 B – pasta avulsa.

27

Acervo Arquivo Público de Mato Grosso (APMT). Lata de 1910 B, pasta Instrução Pública.

132

Figura 16 - Ata de solicitação da abertura da Escola de Itaicí.

Fonte: APMT, Lata 1910 B – pasta avulsa.

133

Porém, o jornal O Commercio de 30 de junho de 1910 trouxe uma nota informando

que o a solicitação da criação da escola de ensino primário na Usina Itaicí foi indeferida pelo

poder público, tanto por parte do Presidente de estado como pela Diretoria da Instrução

Pública. Segundo a nota:

Estamos informando que levada a dita representação à direção da instrução,

para informar, o respectivo chefe desse departamento de serviço opinou pelo

indeferimento da justa pretensão dos signatários da referida representação,

procedimento esse que estranhamos tenha partido de um provecto educar,

como folgamos em reconhecer assim o Sr. Major José Estevão Corrêa, tão

tão devotado à causa da instrução pública, opinião aliás que vai de encontro

ao programa do governo tendente a alargar, desenvolver e propagar o ensino

primário (O COMMERCIO, 1910, p. 2).

Figura 17 - Sobre o indeferimento da Escola de Itaicí.

Fonte: Jornal O Commercio, 1910, p. 2. BN.

134

O referido indeferimento não foi localizado, mas pressupõe-se que ele pode ter sido

ocasionado pelo fato de que o Regulamento da Instrução Pública de 1910 estabelece que as

escolas criadas em áreas particulares sejam de responsabilidade dos proprietários. Outro

entendimento é de que os fatores políticos também refletiam nas tomadas de decisões, e neste

sentido, lembramos que a história da Usina Itaicí foi marcada por intensas disputas de poder,

o que acarretava em tensões e conflitos constantes. A história da usina ainda carrega esse

legado, dessa forma, não é difícil imaginar o indeferimento como uma atitude de retaliação.

A falta de fontes e informações sobre o funcionamento da escola entre 1910 e 1928

nos impede de avançarmos mais. Porém, com base no relato de 1995 do ex-aluno da Escola

de Itaicí, o Sr. Luiz Pereira Duarte (1995), sabe-se que ele estudou nessa escola em 1924:

―Em 1924 mudamos para a Usina Itaicí. [...] Itaicí tinha uma boa escola. [...] Fui para a

escola‖. Isso indica que ela não ficou paralisada por todo esse período.

A partir de 1928 há registro de que a escola funcionou como escola ambulante.

Conforme o Decreto 797, de 14 de março de 1928 – fl. 151 e 152, ―Cria-se uma escola

ambulante mista de instrução primária no lugar denominado Itaicy, no município de Santo

Antônio do Rio Abaixo‖ (MATO GROSSO, DECRETO, 1928). O Presidente do estado de

Mato Grosso atendeu a representação dos moradores de Itaicí, no município de Santo Antônio

do rio Abaixo [fl.151] sobre a necessidade de ser ali criada uma escola mista dada a existência

de muitas crianças em idade escolar, e tendo em vista as informações prestadas a respeito

pelas autoridades competentes. Conforme o Art. Único:

O Presidente do Estado de Mato Grosso, atendendo a representação que lhe

dirigiram os moradores do Itaicy, no município de Santo Antônio do rio

Abaixo sobre a necessidade de ser ali criada uma escola mista dada a

existência de muitas crianças em idade escolar, e tendo em vista as

informações prestadas a respeito pelas autoridades, competentes.

Decreta:

Art. Único – Fica criada, nos termos do art. 253, do Decreto regulamentar n.º

759, de 22 de abril de 1927, no lugar denominado Itaicy, município de Santo

Antônio do Rio Abaixo, uma escola ambulante mista de instrução primária;

revogadas as disposições em contrário. Palácio da Presidência do Estado, em

Cuiabá, 14 de março de 1928. Mário Corrêa da Costa (MATO GROSSO,

DECRETO, 1928, p. 151).

O livro abaixo informa a relação de escolas criadas em área particular, observa-se que

a Escola de Itaicí consta na lista. O documento apresenta também a data de criação de cada

escola e o nome dos professores. Outra característica importante informada na referida fonte é

um espaço para observações no qual são apontadas algumas situações que as escolas se

135

encontravam como: a escola ainda não foi provida, têm móveis, não têm móveis, etc. No

entanto, nota-se que não há registros dessas informações sobre a Escola de Itaicí.

Figura 18 - Relação das escolas em área particular.

Fonte: APMT, Caixa 1930 H.

Não foi possível localizar muitos registros referentes às características e

funcionamento das escolas ambulantes de Mato Grosso. As pesquisas de autores que

trabalham com a história da educação no estado como Alves (1998), Siqueira (2000), Sá

(2007), REIS (2011), Silva (2014), entre outros, não mencionam referências sobre esse

modelo de escola. Apenas o Regulamento de 1927 que traz no capítulo II das disposições

gerais, art. 253 uma única menção – ―Nas zonas de pequenos núcleos de população, poderá o

governo criar escolas rurais ambulantes, circunscrevendo-lhes o raio de ação, os pontos de

136

localização e o tempo de funcionamento em cada um desses pontos‖ (MATO GROSSO,

REGUAMENTO, 1997, s/p).

As informações mais específicas das quais se tem conhecimento acerca de escolas

ambulantes, parte dos estudos de Souza (2015) que ao tratar sobre a diferenciação espacial das

escolas isoladas em São Paulo afirma que:

Em 1904 foi ratificada a classificação das escolas primárias conforme a

localização e o uso legal do termo escola isolada. A Lei n. 930, de 13 de

agosto, estabelece que o ensino preliminar seria ministrado em escolas

ambulantes, em escolas isoladas situadas em bairros ou distritos de paz e na

sede de municípios, nos grupos escolares e na escola modelo preliminar

anexa à escola normal da Capital. Para a autora o regulamento estabelecido

para a execução dessa lei (Decreto n. 1.239, de 30 de setembro de 1904)

especificou a compreensão de cada uma dessas escolas. ―Eram consideradas

ambulantes as escolas isoladas situadas em bairros vizinhos, servidos por via

férrea, que estivessem entre si na distância máxima de 6 Km‖. Desta forma,

as aulas nas escolas ambulantes seriam ministradas alternadamente um dia

em cada bairro. Por último, ―a autora mostra que o regulamento estabelecia

que o ensino nas escolas ambulantes teria a duração de três anos,

determinando, assim, uma primeira diferenciação das escolas em razão do

tempo de duração do curso primário‖ (SOUZA, 2015, p. 297).

Essa foi a definição de escola ambulante encontrada. Embora seja referente ao estado

de São Paulo, ela ajuda a ter um entendimento da organização das escolas nesse modelo de

ensino, tendo em vista que São Paulo sempre serviu de referência na elaboração das reformas

educacionais no estado de Mato Grosso.

Os registros sinalizam que a Escola Ambulante Mista de Itaicí parece ter atuado entre

os anos de 1928 até aproximadamente 1933, momento em que aparecem informações

referentes à outra denominação de escola primária em Santo Antonio do Rio Abaixo, isto é,

Escola Rural Mista.

Foram criadas ao todo 06 escolas ambulantes no município de Santo Antonio do Rio

Abaixo, sendo elas:

Quadro 11 - Lista das ambulantes do Município de Santo Antonio do Abaixo

Nº ESCOLA ANO LOCALIDADE

01 Escola primária ambulante mista de Itaicí 1928 Usina Itaicí

02 Escola primária ambulante mista de

Tamandaré

1929 Usina Tamandaré

03 Escola primária ambulante mista de Porto

Pintos

1929 Porto Pintos

04 Escola primária ambulante mista de 1929 Furado

137

Furado

05 Escola primária ambulante mista de Aricá 1931 Usina Aricá

06 Escola primária ambulante mista de

Flexas

1931 Usina Flexas

Fonte: Ementário de 1890 a 1935. Arquivo Público de Mato Grosso.

Nota-se que foram criadas 04 escolas ambulantes em usinas de açúcar, a Escola de Itaicí

foi a primeira escola ambulante criada no município. Como já foi dito, infelizmente não

identificamos informações específicas sobre o funcionamento desse modelo de escola em

Mato Grosso, nem mesmo da Escola Itaicí, porém, houve um esforço em não ignorar as

poucas fontes existentes, que a nosso ver, são importantes para o conhecimento, análise e

apreensão dos elementos que compõem a historicidade das instituições de ensino. Alguns

desses elementos localizados foram: a identificação de dois professores.

Com base em atestados de trabalho28

e solicitação de material escolar foi possível

identificar o nome de dois professores que atuaram na escola ambulante mista de Itaicí, são

eles: Maria Pereira de Souza e José Fabelino de Souza Filho, como se pode observar nas

figuras abaixo:

28

Foram localizados atestados referentes ao período de agosto a outubro de 1930.

138

Figura 19 - Atestado de trabalho

Fonte: APMT, Caixa de 1930, pasta provas escolares.

139

Figura 20 - Solicitação de material escolar

Fonte: APMT, Caixa 1931 12 C.

140

Figura 21 - Lista de material escolar da Escola Ambulante mista de Itaicí de 1931.

Fonte: APMT, Caixa 1931 12 C.

141

Além da identificação dos professores, o atestado traz outro elemento importante, ou

seja, o fato de que a escola funciona em um prédio de propriedade particular, acentuando que

mesmo a escola estando sob a gestão do estado havia participação dos proprietários da usina

no agenciamento da instituição escolar, mostrando também poder.

Em relação à solicitação de materiais, observa-se uma lista restrita de aquisição de

materiais para fins de documentar a vida escolar, observa-se assim que não foi solicitado

nesse momento nenhum material para fins didáticos, pedagógicos ou equipamentos.

Diferentemente da solicitação do professor da Escola Mista Ambulante da Usina Tamandaré.

142

Figura 22 - Lista de materiais da Escola Mista Ambulante de Tamandaré.

Fonte: APMT, Caixa, 1930 H.

143

Também há registro de uma solicitação de Licença para tratamento de saúde da

professora interina Maria Pereira de Souza da Escola Ambulante de Itaicí com a data de 28 de

setembro de 1930. Nela consta:

A abaixo assinada, professora interina da escola ambulante mixta da

povoação de Itaicí, no município de Sant Antonio do Rio Abaixo,

achando-se doente e por isso, impossibilitada de continuar no

exercício do seu cargo, vem respeitosamente pedir a V. excia. Se

digne de conceder dois meses de licença, para seu tratamento,

deixando de apresentar atestado médico por não existir facultativo

nesta localidade (MATO GROSSO, SECRETARIA DA

PRESIDENCIA, REQUERIMENTO, APMT, CAIXA 1930 H).

144

Figura 23 - Solicitação de Licença para tratamento de saúde.

Fonte: APMT, Caixa 1930 H.

145

Não se sabe ao certo se a solicitação foi atendida, todavia, a partir de 1931 o professor

José Fabelino de Souza Filho assume as aulas em substituição à professora Maria Pereira de

Souza, que mais tarde passa a lecionar como professora efetiva do grupo escolar Leônidas de

Matos.

Figura 24 - Resumo geral de ponto.

Fonte: APMT, Caixa 1938.

A falta de elementos importantes para maior compreensão da escola, tais como: livro

de matrículas, relação dos livros utilizados, registros de algum tipo de punição, cadernos de

alunos e/ou professores, provas, enfim, qualquer outro tipo de material capaz de indicar

maiores informações sobre a organização da escola e da cultura escolar, impediu-nos de

aprofundar no universo dessa escola, pois certamente esses vestígios ajudam a elucidar parte

da história da educação de Mato Grosso.

Diante dessa conjuntura, nota-se que a escola se destacou no contexto da história da

educação de Mato Grosso por oferecer escolarização para infância rural, com prédio próprio

para o funcionamento da escola, atendendo uma média de 40 crianças, o que era bastante

significativo para uma época na qual a expansão escolar acontecia a passos lentos, e, ainda,

146

por oferecer um currículo que ia além do estabelecido nas normativas, ou seja, a instituição

proporcionou aulas de música, biblioteca e formação de uma banda para os alunos e

trabalhadores (as).

Por outro lado, o fato de ter acesso à escolarização não dispensou as crianças do ritmo

de trabalho na usina. Com autorização de seus pais, praticamente toda a infância foi vinculada

á rotina de trabalho e á escolar, porque não sabemos ainda em quais condições foi reservado

para as crianças o tempo de brincar.

3.2 Aspectos da Cultura escolar

Pode-se dizer que a escola de Itaicí era única, tinha sua própria identidade, a sua

história e a sua cultura escolar. A escola apresentava características modernas, oportunidades

e esperança para uma população empobrecida e muitas vezes subordinada aos interesses dos

patrões. O lugar que a escola primária ocupou na usina e na vida daquela infância foi muito

relevante, tendo em vista as circunstâncias pelas quais esse público escolar e a comunidade

eram submetidos.

Ter acesso ao curso primário era uma oportunidade para que as crianças se

apropriassem dos processos de leitura e escrita, essenciais para a vida. Mesmo num contexto

complexo, a escola teve seu lugar. Porque produziu valores, hábitos, costumes, e estes uma

vez produzidos e apropriados sinalizavam novos caminhos, novas possibilidades.

As culturas fabricadas no contexto da Usina Itaicí através da escola de ensino primário

e de música têm a ver com os modos de pensar, agir, ou melhor, com modos de ver e ler o

mundo, com os modos de ser, de conviver socialmente. Mas o legado que a função social da

escola proporcionou na vida de uma comunidade vai além do ato de pensar, ser, ter, ou agir;

ele sugere sonhar, mesmo que os dias parecessem tempestuosos. A Escola de Itaicí é

permeada de representações configuradas por um lugar, um espaço, uma cena (CERTEAU,

2002).

Deste modo, entende-se que o lugar trata-se da representação de uma instituição

voltada para o ensino primário. A escola por sua vez é o espaço projetado, arquitetado e

operacionalizado para a ação educativa, na qual foram-se constituindo as cenas que

delinearam a cultura escolar, como pode ser observado a partir da estrutura da escola, da sua

arquitetura, de seus objetos, das aulas, do currículo escolar, bem como, a partir das pessoas

envolvidas nesse processo de fabricação de identidades que marcaram as formas da educação

147

do passado. Assim, a escola ocupa o lugar legítimo para educação das crianças, tomando

grande parte dos tempos da vida de meninos e meninas.

O estudo da cultura escolar dá visibilidade às mudanças e permanências presentes nos

modelos de escola, nas reformas educacionais, na atuação de professores e alunos, nos modos

de ensinar e aprender. Para Gallego (2015):

Ao debruçar sobre a questão O que a escola faz pelos/com os sujeitos que

passam tantos anos nessa instituição?, é notável, no âmbito da sua

organização temporal, como os tempos individuais, dos alunos e dos

professores, especialmente, vão se esquadrinhando por uma arquitetura

minuciosa de tempos, ritmos e rituais à qual os estudantes e os professores

devem aderir para permanecer no interior da escola, ainda que isso não se

faça sem resistências, burlas e discordâncias (GALLEGO, 2015, p. 253).

Detendo atenção sobre a questão do espaço, especificamente da escola e de sua

estrutura física e arquitetônica, percebe-se que estes se configuram como elementos da cultura

material escolar a partir de um anseio de intervenção na apropriação de uma linguagem

estética e um sentido de funcionalidade, sem deixar de considerar o aspecto simbólico,

disciplinar e de controle, características das escolas da primeira república.

Segundo Barros (2004), a História da Cultura Material é a modalidade que estuda os

objetos em sua interação com os aspectos da vida humana, desdobrando-se por domínios

históricos que vão do estudo dos utensílios, alimentação, vestuário, moradia e das condições

materiais do trabalho humano. Para o autor (2004), a noção que atravessa este campo é a da

matéria ou do objeto, que pode ser tanto o de tipo durável, como no caso dos monumentos e dos

utensílios, como do tipo perecível, como no caso dos alimentos. Contudo, este campo deve

examinar não o objeto material tomado em si mesmo, mas os seus usos, as suas apropriações

sociais, as técnicas, a sua importância econômica e a sua necessidade social e cultural. E ainda

destaca que:

Desta forma, o historiador da cultura material não estará atento apenas aos

tecidos e objetos da indumentária, mas também aos modos de vestir, às

oscilações da moda, às suas variações conforme os grupos sociais, às

demarcações políticas que por vezes se colam a uma determinada roupa que

os indivíduos de certas minorias podem ser obrigados a utilizar em

sociedades que aproximam os critérios da ―diferença‖ e da ―desigualdade‖

(BARROS, 2004, p, 30).

Ao admitir que a arquitetura seja um elemento importante na constituição da cultura

escolar, segue-se no entendimento de que:

148

A arquitetura trabalha com criação de espaço e, por consequência, com a

interface ambiente construído-homem. A fim de atender às diversas

necessidades humanas que são, de forma geral, morar, ter acesso à saúde,

educação, lazer e trabalho, uma série de espaços foram criados, com

elementos e organização específicos, variáveis de acordo com a proposta de

uso. Além da variação pelo uso, histórica e geograficamente esses espaços

também têm seus aspectos modificados como reflexo das mudanças de

pensamento, interação e estilo de vida de cada época e local (SOUZA, 2018,

p. 56).

Para Cunha:

O espaço, portanto, é um território de subjetividades múltiplas, no qual o

homem elabora conteúdos conscientes e inconscientes, de acordo com as

características específicas de determinado universo ambiental. O cotidiano

do processo de elaboração do espaço aparece como uma constante troca

entre o homem e o meio ambiente, engendrando um redimensionamento de

variáveis culturais, econômicas, físicas, psicológicas e sociais que permitirão

a apuração do sentido desse espaço. A natureza do espaço é nomeada de

inúmeras maneiras. Cada lugar está associado a um determinado tipo de

experiência humana, quando sentimentos e pensamentos respondem por um

lugar e o qualificam. Assim sendo, um lugar transmite uma imagem para o

usuário em função da experiência humana acerca desse lugar. De fato, os

espaços podem ser alegres, felizes, tristes, angustiantes, altivos, enfadonhos,

opressores, temerosos, duvidosos, sofridos, enfim, uma multiplicidade de

qualificações decorrentes de uma multiplicidade de qualidades e produções

humanas (CUNHA, 2009, p. 34-35).

Este autor se dedicou á pesquisa sobre a arquitetura escolar, tendo como objeto de

estudo a Escola Normal e Escola Modelo ―Palácio da Instrução de Cuiabá‖. Ele destaca que:

O prédio do Grupo Escolar, Palácio da Instrução em Cuiabá, proporcionou a

quem utilizou seus espaços internos uma série de sentimentos, registros e

experiências, modelando o seu caráter e seu modo de ver o cotidiano. O

próprio edifício em sua concepção física-arquitetônica trousse como

primeira preocupação republicana o aspecto da suntuosidade e da

monumentabilidade em relação a cidade, isso ficou impresso na percepção

dos habitantes, o que com certeza desvirtuou o papel principal que deveria

ser a educação para um maior numero de alunos possível, sem exclusão,

logo contrariando os objetivos primeiro do espaço escolar como o conteúdo

humano a ele relacionado (CUNHA, 2009, p. 35).

O projeto do ―Palácio da Instrução‖, em Cuiabá, atendeu rigorosamente no

aspecto social, à organização capitalista de escola, já que a questão

republicana prioritária não era prover de ensino um grande número de alunos

(embora o discurso fosse de educação popular), mas sim, levar o

conhecimento a alguns poucos privilegiados, mantendo-os entre as paredes

das salas de aulas, submetidos ao olhar vigilante do professor o tempo

necessário para terem seu caráter domado e seu comportamento

149

convenientemente formado, até que fossem transformados em cidadãos e

trabalhadores educados, de bom caráter e lhes fossem atribuídas qualidades

servis, mostrando-se preparados para ocupar cargos de mando e no mercado

de trabalho que surgia. No que diz respeito à concepção espacial do prédio,

esta acompanhou os conceitos de Berthan, escritor, jurista e utilitarista inglês

que escreveu e propôs, em 1787, ―O Panóptico‖ (The Panoptico), segundo o

qual os edifícios dessa natureza se fundamentariam no princípio da inspeção

central, da vigilância integral e generalizada, 60 sendo idealizado

objetivamente para ser uma prisão. A perspectiva panóptica foi codificada e

apropriada em 1875 por Banard, autor do manual ―School Architect‖, que

pregava a distribuição dos espaços de forma detalhada, estanque e rígida,

com vistas ao estabelecimento do controle absoluto sobre os alunos e

professores (CUNHA, 2009, p. 36)

Cunha (2009) entende que a organização do espaço escolar conforme esse modelo

pedagógico intencionava o controle, a coerção, a subordinação e a disciplina discente,

determinando as classes e horários, implantação da sala do diretor geralmente no centro do

edifício, assim como fixar o mobiliário no chão, tudo isso como indicativo, segundo ele, de

um planejamento arquitetônico inovador em que o controle do espaço determinou um lugar

para cada indivíduo, estabelecendo a submissão dos corpos e a fiscalização dos menores

movimentos.

Nessa perspectiva, segue-se em direção do contexto da Escola de Itaicí, dando

visibilidade aos aspectos da cultura material a partir da arquitetura da escola, especificamente,

sobre a imponente fachada, conforme a imagem abaixo evidencia:

150

Figura 25 - A Escola de Itaicí.

Fonte: Acervo da Secretaria Municipal de Cultura de Santo Antonio de Leverger.

O destaque da imagem está na fachada da escola. A palavra ESCOLA ganhou notória

visibilidade. Isso sugere pensar que o prédio foi construído para esse mesmo fim, ou seja, a

escolarização das crianças. Ao que indica, o espaço foi projetado e destinado ao

funcionamento de uma instituição escolar, algo inusitado para época. Segundo Felgueiras

(2005) ―Se as ideias e teorias pedagógicas podem ser conhecidas através de escritos, às rotinas

do quotidiano escolar e das vivências da condição de criança, de aluno e a de professor terão

de ser investigadas através das memórias e materiais a elas associados‖ (FELGUEIRAS,

2005, p. 92).

A escola Itaicí tinha uma localização privilegiada e, por sinal, estratégica. Ela foi

instalada numa área destinada ao setor comercial, distribuído em casas geminadas, onde

funcionavam além da escola, a farmácia, a padaria e o mercado. A escola ficava na esquina e

os cômodos grandes abrigavam a sala de aula e o curso de música, onde também ficavam os

instrumentos musicais. Outro fator relevante, que a imagem não mostre, é que a escola ficava

próxima a casa do proprietário, com visão privilegiada, o que permite pressupor o olhar

panóptico, sugerindo uma condição de controle.

151

A imagem abaixo ilustra o espaço demarcado pela escola, sendo visualizada da

primeira casa da direita para esquerda, onde se encontrava um grupo se pessoas,

possivelmente trabalhadores da usina, o professor de música e os alunos. Os outros domicílios

geminados foram destinados ao setor comercial.

Figura 26 - A Escola de Itaicí e o setor comercial

Fonte: Acervo da Secretaria Municipal de Cultura de Santo Antonio de Leverger.

Outro fator também que chama a atenção de certa forma é a monumentalidade da

arquitetura da Escola de Itaicí, como já detectado no estudo de Cunha (2009) sobre a Escola

Normal e Modelo de Cuiabá, o qual chama a atenção pela estrutura da fachada e os detalhes

de ―estilo neoclássico‖ (CUNHA, 2009, p. 74),

Nesse sentido, percebe-se, segundo Arruda (2010), que no início da República, a

arquitetura do Brasil era pensada na direção do uso do edifício projetado para personalizar o

governante. Esse processo de personalização da arquitetura encontrava no edifício público um

aliado poderoso, pois a arquitetura de qualidade apresentava-se como um elemento de

prestígio político ao governo e, dessa forma, deveria conter algumas características essenciais,

como localização, visibilidade, escala de monumentalidade e principalmente o vocabulário

empregado no estilo utilizado.

152

Nota-se que a Usina Itaicí (fabrica), as casas dos funcionários, a área comercial, a

capela, a escola, de certa forma, projetava essa personalização afirmada por Arruda (2010).

Uma vez que é observado no espaço da Usina Itaicí os critérios presente na intencionalidade

de projeção do proprietário, que neste caso foi um elemento importante de projeção tanto

empresarial como política.

Arruda (2010) também destaca sobre a questão do estilo arquitetônico que predominou

no início da república no Brasil e segue na direção apontada por Cunha (2009) e discutido

anteriormente. Dessa forma Arruda (2010) discorre:

O estilo arquitetônico em voga no início da república caminhava pelo

neoclassicismo francês, que se instalou no Rio de Janeiro a partir de 1808 e

pelo ecletismo de viés italiano, que chegou a São Paulo pelas mãos dos

construtores e fachadistas migrantes e esses estilos espalharam-se pelas

diversas cidades brasileiras com uma enorme velocidade (ARRUDA, 2010,

p. 111).

Pode-se dizer que a escola também acompanhou as mudanças estruturais e

arquitetônicas realizadas nos prédios públicos nos primórdios da república. Mas o destaque

foi para a construção dos grupos escolares. As escolas isoladas, principalmente as rurais, não

tiveram a mesma ressonância, com algumas exceções como a Escola de Itaicí, que devido ao

seu contexto foi agenciada com uma estrutura diferenciada.

Quase não há registros sobre a Escola de Itaicí vista por dentro. Ou estes ainda não

foram localizados. Porém, as imagens indicam que a escola era um cômodo grande, talvez

dividido em dois cômodos para abrigar a escola primária e escola de música. O que se sabe é

que a escola atendeu as duas funções no mesmo prédio.

A escola construiu uma cultura voltada com base no compromisso e a finalidade de

alfabetizar. Porém, as práticas fabricadas no contexto da referida escola, projetaram além do

ensino de leitura, escrita e aritmética, outras práticas como aulas de música e alfaiataria.

Percebe-se assim a produção de uma cultura escolar como objeto histórico, compreendida

como:

...um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a

inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses

conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas

coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas, finalidades

religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização (JULIA, 2001, p.

10).

153

Essa cultura escolar que se manifestou também por meio das aulas de música fazia

parte do currículo da Escola de Itaicí evidenciado na prática, que se constituiu em um

diferencial em relação ao currículo padrão para o ensino primário da época. Segundo o

parágrafo Único do Regulamento da Instrução Pública de 1896, as disciplinas estabelecidas

para o ensino primário eram: leitura de impressos e manuscritos; elementos de Gramática

portuguesa e composição em prosa; elementos de Aritmética; caligrafia e escrita; noções de

Geografia; noções de História do Brasil; trabalhos de agulhas e de prendas domésticas.

Podemos notar que não há aula de música no currículo escolar oficial.

No Regulamento de 1910 em seu art. 4° consta que as disciplinas a serem ofertadas

para o ensino primário eram: leitura, escrita, cálculo aritmético sobre números inteiros e

frações, língua materna, geografia do Brasil, deveres cívicos e morais, trabalhos manuais

apropriados à idade e ao sexo dos alunos; e para o secundário além das disciplinas do

primário, somam-se ainda: gramática elementar da língua portuguesa, leitura de prosa e verso,

escrita sob ditado, caligrafia, aritmética até regra de três, sistema legal de pesos e medidas,

morfologia geográfica, desenho a mão livre, moral prática e educação cívica, geografia geral e

história do Brasil, cosmografia, noções de ciências físicas, químicas e naturais, e leitura de

música e canto.

Percebe-se que nesse Regulamento de 1910 aparece a disciplina de música e canto, no

entanto ela fazia parte do currículo do ensino secundário e não do ensino primário.

Percebemos assim que a Escola de Itaicí ofertou as aulas de música no ensino primário, para

as crianças, mesmo sem esta ser uma exigência prevista na legislação.

No regulamento de 1927 - art. 6º estabelece-se que a escola rural tem por fim ministrar

a instrução primária rudimentar; seu curso é de dois anos e o programa constará de leitura,

escrita, as quatro operações sobre números inteiros, noções de História Pátria, Corografia do

Brasil e especialmente de Mato Grosso e noções de Higiene. Mas uma vez as aulas de música

ficaram de fora do currículo para o ensino primário, o que evidencia a importância dessa

atividade no contexto da usina Itaicí, sendo que esta foi criada nos primeiros anos da

república e permaneceu até aproximadamente o final da década de 1920, mantendo a

formação de uma banda de música.

As aulas de música eram ministradas na escola de música que na prática foi inserida

na rotina da escola primária, estabelecendo uma relação entre prática social e prática escolar.

A escola de música funcionava no prédio da escola primária. Foi uma atividade que ocorria

concomitante com as aulas regulares e, por sua vez, representava uma atividade inovadora

154

para época em termos de currículo para alunos de escola rural, que mesmo sem constar no

currículo oficial ocorreu enquanto prática e cultura escolar.

A implantação da escola de música foi tão importante que o proprietário criou uma

banda de música composta por operários da usina e pelos alunos da escola. A imagem abaixo

é da escola de música. Nessa imagem é possível observar o ambiente dessa escola, a

variedade de instrumentos de sopro, os alunos, os professores, os livros, as vestimentas, e uma

observação mais minuciosa pode ser feita, considerando que aparentemente os alunos de

maioria branca estão posicionados do lado esquerdo, e os alunos negros se posicionam do

lado direito, pressupondo uma espécie de segregação. Neste caso não seria algo que pudesse

causar espanto por se tratar de uma sociedade hierarquizada. Salvo engano, a imagem vem

evidenciar que embora todos tivessem acesso à aula, à escola, à música; no campo social e

cultural, o tratamento era desigual.

Figura 27 - Aula de música.

Fonte: Secretaria Municipal de Cultura de Santo Antonio de Leverger, s/d.

Historicamente, a formação dessa banda de música consta desde os primórdios da

usina, quando ainda se encontrava sob o comando do Cel. Totó Paes. Segundo Souza (1958),

o Jornal O Paiz de 1906 relatou a existência da banda quando uma equipe do referido jornal

155

visitou a Usina Itaicí. O Jornal Correio do estado29

, um órgão do partido Republicano,

também noticiou sobre a banda de Itaicí, cuja publicação de um artigo intitulado Santo

Antonio em festa destaca ―As corretas bandas de música dos menores da usina do Itaicy e da

Força Pública do estado abrilhantando sobre modo todas as solenidades‖ (CORREIO DO

ESTADO, 1925, p. 2). Os menores de que trata a notícia do jornal eram as crianças da usina

na condição de alunos da escola. A banda era conhecida como a banda dos menores de Itaicí.

Figura 28 - A banda de música de Itaicí.

Fonte: Álbum Gráphico de Mato Grosso, 1914, p. 279.

O ex-aluno da escola, o Sr. Luiz Pereira Duarte30

, deixou para a família um relato

sobre a sua trajetória de vida que sem dúvida representa um testemunho do passado no qual

há uma interpretação de si e do mundo no qual estava inserido. Ele nos permitiu adentrar na

povoação de Chacororé, na Igrejinha dedicada a Nossa Senhora das Dores, na sua casa que

ficava a beira do carvoal, na sua escola.

Foi possível ouvir as valsas e os tangos nas festas de santo, enfim, ele nos conduziu a

um encontro com as suas memórias de modo que elas provocaram em nós experiências

positivas com os seus sentimentos, suas paixões e suas emoções. Seu testemunho vem das

lembranças do passado e das dimensões experienciais da memória pautada na sua trajetória de

vida, todavia, com foco na realização de um sonho, a sua formação em música. As suas

lembranças tem a ver com o que Ecléa Bosi discute em Memórias de velhos ao se relata que

29

Jornal Correio do Estado, Ano III, Cuiabá, de 05 de dezembro de 1925, nº 231, publicação semanal. 30

DUARTE, Luiz Pereira. Relato. E o sonho realizou. Datilografado. Santo Antonio de Leverger, 06 de Outubro

de 1995, p. 1-3.

156

―(...) neste momento de velhice social resta-lhe, no entanto, uma função própria: a de lembrar.

A de ser a memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade‖ (BOSI, 1994, p. 63).

A autora (BOSI, 1994) chama a atenção para o momento da velhice, para o fato de que

este tem uma função própria que é a de lembrar. Essas lembranças, por sua vez, remetem às

experiências da vida familiar e atravessam esse universo adentrando nas memórias que são

sociais.

Compartilhando das ideias de Bosi (1994), nota-se que é bem isso que percebemos nas

memórias do Sr. Luiz Duarte, memórias de um ―velho‖ que se preocupou em preservar a sua

história escrevendo no ano de 1995 um texto datilografado em três páginas devidamente

assinado por ele.

A sua narrativa segue na direção de seus sentimentos e suas emoções ao tratar das

memórias, iniciando com as lembranças da sua infância, as quais nos fazem voltar no tempo,

no ano de 1916 quando ele veio ao mundo numa família composta por oito filhos. Ele nasceu

na povoação de Chacororé que fica próxima a cidade de Barão de Melgaço em Mato Grosso,

e que antes pertencia ao município de Santo Antonio do Rio Abaixo, lugar em que morou boa

parte do seu tempo se dedicando à música e sustentando a família através dela.

As suas primeiras lembranças se iniciam a partir da escolha do seu nome, uma vez que

que no dia 6 de outubro de 1916 foi chamado de Bruno, porém os pais alteraram para o nome

de Luiz Pereira em memória de seu avô materno. Ele lembra que naquela época a povoação já

tinha uma igrejinha dedicada a Nossa Senhora das Dores situada na encosta do morro com

frente para o rio, e contou ainda que ele foi batizado neste local pelo Padre João Xavier que

vinha de Santo Antonio de canoa.

Em seguida, esse testemunho da história reporta as memórias da sua casa e das festas

de santo, dizendo que:

Nossa casa ficava na beira do Carvoal, bem atrás da rua, mas além ficava a

Baía do Recreio e o Tijucal no caminho que subia para o Acorizal. [...] Uma

das grandes atrações de Melgaço era a festa de Nossa Senhora das Dores,

quando vinha o Padre de Santo Antonio e a Banda de Música de Cuiabá

(TESTEMUNHO, DUARTE, 1995, p. 2).

Essa representação também nos faz pensar no seu modo de vida, a convivência em

uma comunidade rural, em meio à fumaça da produção de carvão, povoação que

possivelmente muitas vezes se via desprovida de recursos básicos, algo comum naquele

contexto. Contudo em sua memória optou por eleger apenas as boas lembranças. Essa

157

observação se faz presente em praticamente todo o texto. Por exemplo, quando ele trata da

iluminação da festa, relata que:

Desde o páteo da igrejinha em toda a extensão da rua, forma fila de

postezinho de taquara de um metro de altura com um espaço de dois metro

um do outro, duas laterais com uma avenida entre as laterais, nos postes era

colocado um copo feito de uma laranja azeda sem os gomos, e dentro dela

um pavio de algodão embebido em azeite e ateia fogo para clarear a noite.

Durante a iluminação a Banda de Música executava valsa, tango, maxixe,

mazurca e a polca, que era o ritmo daquele tempo (TESTEMUNHO,

DUARTE, 1995, p. 2).

Seu testemunho reflete a memória:

[...] do homem que já viveu sua vida. Ao lembrar o passado ele não está

descansado, por um instante, das lidas cotidianas, não está se entregando

fugitivamente às delícias do sonho: ele está se ocupando conscientemente e

atentamente do próprio passado, da substância mesma da sua vida (BOSI,

1994, p. 60).

Contudo, não se pode ignorar que a evocação das lembranças do passado, partindo

daquilo que se tem enquanto essência desse passado, é (re)significada e reconstruída pelo fato

das memórias recorrerem às representações com base nos acontecimentos mais recentes para

tecer uma leitura ou releitura do passado.

Nesse sentido, observa-se na continuidade da sua narrativa que as memórias afetivas o

acompanham a todo o momento. Ao abordar sobre a vida na Usina Itaicí, lugar onde morou

por cinco anos, e que foi onde realmente teve o seu encontro com a música, ele usa de muito

sentimento e paixão ao relatar sobre empresa que também era uma comunidade, registrando

da seguinte forma:

Em 1924 mudamos para a Usina Itaicí, que fica rio acima de Melgaço, uma

distância considerável, subindo o rio: - Rancharia, Piuva, Sangradouro-

Grande, Croará, Varadouro, Santa Maria, Tamandaré, e mais duas volta do

rio e ... eis Itaicí. Como é atraente Itaicí, com um amontoado natural de

pedras que quase atravessa o rio, e subindo uma rampa toda gramada, o

grande prédio onde funciona a fabricação de açúcar, ao lado a imponente

chaminé, a expelir rolos de fumaça para o alto, e o vapor a estourar das

caldeiras, e as grandes moendas a prensar a cana donde jorra o precioso

caldo que vai para os grandes tachos para ser transformado em melaço

(TESTEMUNHO, DUARTE, 1995, p. 2).

No ponto de vista do Sr. Luiz Duarte ―Itaicí tinha uma boa escola, uma banda de

música composta de jovem, era um lugar alegre, e eu me sentia feliz‖ (TESTEMUNHO,

158

DUARTE, 1995, p. 2). Nota-se que as suas pontuações têm muito de sentimento afetivo e

demonstra uma interação com o lugar.

A sua representação sobre a Escola de Itaicí está associada ao acesso à escola, á

lembrança do mestre e suas múltiplas funções, ao ingresso na banda de música e á formação

de ofícios. Segundo seu relato ―fui para a escola e conheci o Mestre João M. da Fonseca que

exercia três funções: Ensinava leitura, música e alfaiate‖ (TESTEMUNHO, DUARTE, 1995,

p. 2).

Ainda relata que logo se ingressou na banda de música, onde tocava prato, mas

começou a estudar instrumento de sopro sendo interrompido pela morte do seu professor e

mestre. O senhor Luiz Duarte acrescentou que com a morte de João Marinho a banda de

música decaiu, e mesmo que outros mestres chegassem, estes não conseguiram reerguê-la, e a

banda de Itaicí deixou de existir. Mas o aluno que aprendeu tocar instrumentos musicais na

escola Itaicí se tornou um grande músico. Foi a sua profissão. Entrou para história do

município como um grande instrumentista.

Desta maneira, encontramos pistas31

da escolarização das crianças da Usina Itaicí cuja

finalidade era instruir, mas também educar. Nessas circunstâncias, as crianças usufruíram de

um currículo diferenciado, uma vez que não era comum aula de música como prática escolar

no início do período republicano, principalmente em escolas localizadas em área rural. Além

das aulas de música, as crianças puderam participar da formação de uma banda juntamente

com os operários da usina, que permitiu uma integração deles com a música, a vida

comunitária e muito além, pois essa integração ultrapassou o espaço da escola e da usina. Essa

foi uma das poucas atividades que por alguns momentos distanciavam os sujeitos de um

cotidiano fabricado para o trabalho.

31

Cf. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais. São Paulo:

Companhia das Letras, 1989, p. 152.

159

CAPÍTULO IV

A DIMENSÃO EDUCATIVA DA

USINA ITAICÍ PARA ALÉM DA

ESCOLA

160

4.1 A educação (re)inventada

Quando fazemos novas indagações a respeito do passado, sobre quais ações

evidenciaram-se e quais os modos de pensar numa determinada época, direcionamos nossa

atenção para a história cultural. As perguntas exigem uma nova postura, novos objetos de

estudos e novos desafios.

Aqui se propõe revisitar um cenário carregado de uma herança cultural produzida

através do modelo das sociedades coronelísticas, cujas memórias remetem a um passado ora

hostil, ora acolhedor e oportuno.

Diante disso, o presente capítulo abordará sobre a educação de natureza não escolar no

espaço da Usina Itaicí, analisando como ela foi configurada no cotidiano, possibilitando a

formação de hábitos, costumes e comportamentos construídos culturalmente.

Deste modo, percebe-se a educação voltada para os trabalhadores da usina e para as

suas famílias a partir: a) Do espaço – que demarcava a paisagem, a circulação das pessoas e o

seu caráter simbólico, b) Da convivência – considerando que a educação voltava-se para uma

formação visando a transmissão de valores, hábitos e condutas com base em princípios

hierárquicos construídos no cotidiano e na relação com os grupos; e c) Do trabalho – de

modo que a educação envolvia a adequação ao ritmo das máquinas, inserindo uma rotina de

horários, tarefas nos canaviais (plantação e colheita), na produção de açúcar e aguardente,

bem como observa-se também a utilização de coação e violência em caso de transgressões às

regras da usina, evidenciadas na forma de punições e algumas resistências.

A nossa intenção aqui é ampliar o olhar demonstrando outras possibilidades de

construções narrativas na área da historiografia da educação para além dos processos

escolares, buscando (re)significar os espaços, os saberes e as formas pelas quais instruímos e

educamos historicamente, dentro e fora da escola. A educação abordada aqui confere a

modalidade de educação não escolar, remetendo às representações e apropriações adquiridas

de forma diversificada, num ambiente em que toda a arquitetura da Usina foi forjada para

fornecer uma educação intencional, institucionalizada, ideologicamente construída, cujo

assujeitamento favorecia a manutenção dos trabalhadores cativos.

A educação observada por esse ângulo é desafiadora porque se realiza muitas vezes de

forma imperceptível, principalmente aos olhares dos que consideram que a educação se dá

pelos processos de escolarização. Nesse sentido, o entendimento de educação será concebido

de forma ampla, abarcando as práticas culturais construídas no ambiente de uma sociedade

hierarquizada inserida no contexto de uma usina de produção de açúcar, envolvendo

161

cumprimento de regras, disciplinamento e penalidades, visando á formação e adequação dos

trabalhadores (as) para o trabalho, como também, para o modo de vida na usina.

4.1.1 O espaço

O espaço enfocado nesta pesquisa é o da Usina Itaicí que se apresenta num universo

que foi projetado, elaborado, executado, a fim de tornar presente uma tradição referente ao

modo de produção industrial do açúcar, desvelando um espaço produtor de culturas imbuídas

de tensões e conflitos. Todavia, o projeto e a construção da usina não refletiam apenas a

finalidade econômica de um representante da elite mato-grossense. A Usina Itaicí, a nosso

ver, foi também um espaço com características pedagógicas.

Certeau (1994), ao tratar sobre relatos de espaços no livro A invenção do cotidiano,

iniciou com uma citação de Pierre Janet: ―o que criou a humanidade foi a narração‖ (JANET,

1928, p. 261 apud CERTEAU, 1994, p. 199).

A nossa apreensão segue no sentido de que Certeau (1994) ao explicar questões sobre

espaço e lugar utilizou como objeto os relatos, que representam narrativas. Ele utilizou uma

metáfora referente à rede de transportes coletivos32

na qual ele compara os relatos aos

transportes coletivos para dizer que da mesma forma que o transporte serve para levar as

pessoas para o trabalho, voltar para a casa, de ônibus ou de trem, ―os relatos poderiam

igualmente ter esse belo nome: todo dia, eles atravessam e organizam lugares; eles os

selecionam e os reúnem num só conjunto; deles fazem frases e itinerários. São percursos de

espaços‖ (CERTEAU, 1994, p. 199).

A proposição de Certeau (1994) nos ajuda a adentrar no espaço da usina e tentar

explicar através da dimensão educativa um lugar que nos é apresentado por meio de relatos

localizados nas obras memorialísticas, nos testemunhos, nos jornais e por que não dizer nas

fotografias, uma vez que para nós elas também discursam a partir do olhar de quem as vê e as

observa.

Apropriando das incursões de Certeau (1994) seguimos em direção rumo às estruturas

e as ações. Esse direcionamento permite analisar a organização do espaço, suas demarcações e

as representações simbólicas construídas naquele núcleo populacional.

32

Certeau destaca que na Atenas contemporânea os transportes coletivos são chamados de metaphorai ou

―metáfora‖ e compara-os com os relatos (CERTEAU, 1994, p. 199).

162

Olhar para o espaço como um elemento educativo é partir do entendimento de que ―o

espaço é um lugar praticado‖33

. Esse entendimento tem a ver com o que Certeau diz que o

espaço é existencial e a existência é espacial. Desta forma:

Essa experiência é relação com o mundo; no sonho e na percepção, e por

assim dizer anterior a diferenciação, ela exprime ―a mesma estrutura

essencial do nosso ser como ser situado em relação com um meio‖ – um ser

situado por um desejo, indissociável de uma ―direção da existência‖ e

plantado num espaço de uma paisagem. Deste ponto de vista, ―existem

tantos espaços quantos experiências espaciais distintas‖ (CERTEAU, 1994,

p. 202).

Num exame das práticas do dia a dia da usina que articulam essas experiências,

podemos remeter á duas espécies de determinações: uma, por objetos (as ruas, as casas, a

fábrica, o mobiliário, a vila, etc), e outra, por operações (setorização, demarcações,

delimitações, simbologias, etc.).

O espaço se torna educativo na medida em que adentramos no universo da sua

espacialidade, apreendemos a sua composição ou até mesmo a transformamos, ou quando

partilhamos ou não de seus elementos constitutivos e das experiências vivenciadas. Fazendo

uma analogia entre espaço da usina e espaço da cidade, partilhamos das ideias de Faria Filho

(1998) discorrendo sobre a cidade de Belo Horizonte/MG quando ele nos chama a atenção

para:

[...] a sua monumentalidade, sua aparência, sua forma de distribuir e

controlar - tudo isso deveria servir de elemento educativo, principalmente

para as populações pobres e trabalhadoras. Como pedagogias, em que o

espetáculo se transformava em experiência de aprendizagem, a cidade se

apresentava como o palco e a cena (FARIA FILHO; 1998, p.143).

Nessa direção buscamos demonstrar a relação entre educação e espaço considerando

as representações da Usina Itaicí no contexto de Mato Grosso, para que se possam conhecer

os olhares plurais sobre o nosso objeto e locus de pesquisa. A partir disso, nosso esforço se

concentrará nas maneiras como o espaço da usina foi delineando ações, representações e

apropriações.

Nesta perspectiva, a Usina Itaicí se apresenta através de representações e começamos

pelo Jornal O Pharol de 16 de outubro de 1909 que diz: ―Para mitigar-nos as amarguras que a

33

Cf. Certeau (1994, p. 202).

163

ausência nos tem causado, veio especialmente do Itaici à metrópole mato-grossense...‖ (O

PHAROL, 1909, p. 02).

A notícia do jornal mato-grossense O pharol nos reporta a uma das representações

construídas sobre a Usina Itaicí como – A metrópole mato-grossense. O entendimento que a

Usina Itaicí tinha como característica a dimensão de cidade era fator comum. Mas pensar essa

espacialidade34

significa voltar o olhar para os aspectos culturais que cada sociedade produz

através das intencionalidades, das experiências e da construção de identidades.

A realidade pensada e vivida sob o ponto de vista das representações gira em torno dos

significados construídos pelo homem, pois é partir dessa leitura que o historiador cultural se

inspira, podendo apreender sobre o modo de vida e as formas de pensar de uma sociedade.

A História Cultural serve-se de marcas, signos, símbolos e representações para realizar

uma leitura de uma dada época e sociedade. Segundo Roger Chartier (1990) a representação é

a maneira como os esquemas intelectuais criam representações que conferem um sentido ao

mundo e que possibilitam decifrarmos como historicamente os homens expressaram a si

próprios e o mundo, pois as representações são matrizes de conduta e constituintes de práticas

de uma sociedade.

Desta forma, o autor também reforça a não existência de uma neutralidade nas

representações, mostrando que as mesmas devem ser tomadas como construções históricas

surgidas por relações de lutas, disputas e conflitos. Dessa maneira, ―as representações do

mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado

na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam‖ (CHARTIER,

1990, p. 17).

Nesse sentido, o universo da Usina Itaicí sugere elementos de contrastes, disputas,

conflitos e certas vaidades, ou seja, sugere uma luta de representações. Essas representações

podem ser observadas pelo menos por duas vertentes, ou seja, a representação da Usina Itaicí

enquanto A metrópole mato-grossense, a qual aponta uma versão mais otimista e positiva

acerca de seu funcionamento, e outra, considerada pelo ponto de vista mais negativo, aponta

como esse espaço se configurou na ocorrência de ações autoritárias, violentas e punitivas.

A representação da Usina Itaicí enquanto metrópole foi construída em torno da

estrutura montada pelo seu primeiro proprietário – Cel. Antonio Paes de Barros. Este, por sua

vez, aproveitando a herança recebida de seu pai adquiriu as terras de Itaicí às margens do Rio

34

Utilizamos o termo ―espacialidade‖ com base em Certeau (1994, p. 202) – o termo representa um ―estudo

onde o espaço é composto por práticas que se realizam por meio de operações que orientam, circunstanciam e

temporalizam os lugares, ou seja, o espaço é um lugar praticado‖. Deste modo, entendemos que a espacialidade,

ou seja, a área em estudo representa o conjunto das ações humanas, suas vivências e práticas cotidianas.

164

Cuiabá numa região de usinas de açúcar, e ―já tinha a intenção de montar a melhor e a mais

moderna usina de açúcar e aguardente de Mato Grosso‖ (SILVA, 1997, p. 19).

Em 1º de setembro de 1897 foi inaugurado o empreendimento industrial do Cel. Totó

Paes. O investimento foi aplicado através de um financiamento sob o custo de

aproximadamente 450:000$00035

(Quatrocentos e cinquenta contos de réis). O Jornal O

Republicano de 1897 publicou sobre a inauguração da Usina Itaicy:

[...] no dia 22 do corrente inaugurou-se o novo engenho da Usina Itaicy, à

margem direita do rio Cuyabá, estabelecimento de propriedade do nosso

prestimoso amigo o Sr. Coronel Antonio Paes de Barros. [...] pelas 9 horas

da manhã teve logar a festa de inauguração, perante um crescido número de

assistentes pertencentes a nossa melhor sociedade, fazendo sobressahir um

grande número de gentis senhoras, que com os seus loilets davão real valor a

festa. [...] A banda de música do Arsenal de Guerra fazia-se ouvir com

enthusiasmo. [...] A hora indicada o Rvmº Padre Solari procedeu a benção do

novo estabelecimento. [...] O ilustre Dr. Otto Franke, engenheiro contratante

da referida usina, pediu a palavra e com expressões de enthusiasmo, saudou

esse grande motor da indústria que, sob os auspícios do distinto proprietário,

acabava de levantar o felicitou ao ilustre Vice-Presidente do Estado pelo

facto de ter sido na sua administração que teve logar esse faustoso

acontecimento (O REPUBLICANO, 1897, p. 2).

Conforme o referido jornal, a inauguração foi em clima festivo e contou a presença de

muitas autoridades políticas e seus familiares, e de autoridades religiosas, porém, não se

mencionou a participação das pessoas da comunidade e dos empregados. A inauguração foi

marcada pela oratória, pelo banquete oferecido pelo proprietário aos seus convidados, pela

apresentação da banda de música do Arsenal de Guerra, e também, com efeito surpresa, foi

inaugurada a luz elétrica na usina:

[...] sob a influência dos raios da luz elétrica, que culminava todo aquelle

viveiro de festivas criaturas, parecião verdadeiras nymphas. Que esplêndido

efeito produziu a luz elétrica. Que espetaculosa e verdadeira surpresa da

inauguração da luz elétrica em Itaicy (O REPUBLICANO, 1897, p. 2).

Contando com uma infraestrutura imponente e inovadora para época, a Usina Itaicí foi

considerada a mais moderna entre as empresas do gênero no estado, uma vez que o seu

proprietário inovou adquirindo equipamentos importados da Europa. O Jornal O Republicano

de 03 de março de 1898 publicou um artigo acerca da organização do estado de Mato Grosso

35

SILVA, Paulo P. C., 1997, p. 19-20.

165

sob o ponto de vista econômico. Entre outras empresas, o destaque para a Usina Itaicí foi feito

da seguinte forma:

As machinas a vapor, de fabrico de assucar e aguardente, não obstante a

esmagadora baixa do cambio, vão sendo introduzidas, rivalizando a usina de

assucar do Itaicy com as mais importantes da União, quer quanto ao seu

aperfeiçoamento, quer quanto à capacidade de produção; já conseguimos

despertar a atenção dos capitais estrangeiros para exploração de várias

indústrias (O REPUBLICANO, 1898, p. 1).

O Cel. Totó Paes não criou somente a fábrica em si, ele executou um projeto maior, no

qual planejou uma variedade de espaços destinados ―aos diversos ramos de serviços, a base de

uma administração liberal, da ordem e da disciplina‖ (O PAÍS, 1906, s/p apud SOUZA36

,

1958, p. 10).

O projeto executado contou com a construção da fábrica, moradias individuais para 90

empregados, acomodações coletivas capazes de alojar mais de 150 empregados. Foram

também construídos mercado, padaria, farmácia, capela, escola, serraria e marcenaria,

armazém, biblioteca, e ainda foi instalada uma rede ferroviária, onde os vagões puxados a

burro percorriam todo o canavial, transportando os empregados e as canas cortadas até os

depósitos, essa rede férrea era chamada Decauville. E como se não bastasse, o empresário

mandou cunhar moeda própria denominada tarefa, trata-se de um vale metálico produzido em

Buenos Aires – Argentina, nos valores correspondentes a 2, 1 e ½ tarefa de cana. Estas, eram

aceitas e circulavam em Cuiabá e nas localidades adjacentes à Usina Itaicí. Foi implantada

também a luz elétrica na Usina37

.

A moeda, por sua vez, também teve um efeito social muito forte, à medida que se

apropriavam dela, criava-se também uma dependência maior ao lugar e ao acesso à moeda,

submetendo às pessoas cada vez mais àquele universo. Assim, os empregados se viam

praticamente obrigados a consumirem na usina, gerando endividamento na maioria das vezes;

sem falar do caráter simbólico que isso representava, ou seja, ―sujeição‖ às regras e as leis do

coronel. A nosso ver, a inserção do uso de uma moeda própria na usina também teve um

efeito educativo no sentido de ter produzido hábitos de consumo exclusivamente na usina,

porém isso gerou certa dependência ao lugar e as relações constituídas através desse recurso.

36

O referido autor trata-se da pessoa de Antonio Fernandes de Souza, que registrou em sua obra memorialística

as memórias da Usina Itaicy, utilizando de documentos, relatos e também da sua experiência enquanto alguém

que trabalhou diretamente na usina com o chefe e amigo Totó Paes. 37

Cf. SILVA, 1997, p. 20-21.

166

Todos esses fatores em conjunto fizeram com que a Usina Itaicí fosse vista como

sinônimo de modernidade. Ela foi considerada modelo, não só pelos indicadores industriais,

como também pelas atividades inseridas naquele contexto. ―Realmente, uma usina modelo,

não só pelos padrões técnicos industriais adotados, mas também, pelos equipamentos e

serviços sociais lá implantados, bem demonstrando a visão pioneira, avançada, sensível e a

bem dizer, altamente civilizada de seu proprietário‖ (SILVA, 1997, p. 21).

O pioneiro foi Antonio Paes de Barros. [...] visitou, na Argentina, as grandes

importadoras, assim como modernas usinas montadas naquele país.

Entusiasmado com o que viu, Paes de Barros encomendou, da firma Otto

Franke, a importação de máquinas a vapor e outros equipamentos modernos

capazes de transformar seu antigo engenho em moderna usina açucareira.

[...] equipou o estabelecimento, também com construções que pudessem

garantir uma efetiva e constante mão-de-obra. Para isso, mandou edificar,

além da sede da usina – residência da família do proprietário -, casas para os

empregados mais graduados, dos guardas livros e do gerente, casas para

empregados sem graduação, padaria, escola, farmácia, barracão comercial,

onde eram vendidas as mercadorias de que os funcionários necessitavam,

tais como roupas, remédios, bebidas, cigarros etc. Assim, a fazenda era

autossuficiente (SIQUEIRA, 2009, p. 45).

Todo o investimento numa estrutura moderna, com aquisição de equipamentos com

tecnologia avançada para época, geração de emprego, com oferta de setores de serviço, luz

elétrica, moeda própria, tudo num só lugar, pode ser entendido, por um lado, como indicativo

de fruto do trabalho de uma pessoa com espírito fortemente empreendedor, audaz, destemido,

o qual encontrou na indústria do açúcar uma forma de construir seu patrimônio, como

também, foi um meio encontrado para garantir autossuficiência tendo em vista que a usina

estava localizada no interior do município de Rio Abaixo, portanto, distante da sede da Vila e

da capital, fato este que imprime a necessidade de criar condições para atender as suas

demandas. Contudo, nota-se também que foi um canal encontrado capaz de integrar o Cel.

Totó Paes na política mato-grossense.

Por conseguinte, em 15 de agosto de 1903, o coronel tomou posse no cargo de

Presidente do estado de Mato Grosso após uma disputada campanha eleitoral. Segundo

Estevão de Mendonça, ao escrever Datas mato-grossenses em 1919, ―é ainda cedo para se

pronunciar sobre o Cel. Antonio Paes de Barros, como administrador; entretanto, do mais

ligeiro exame de seu governo, se colhe desapaixonadamente esta verdade: foi um dos nossos

mais inteligentes administradores‖ (MENDONÇA, 1919, s/p apud SILVA, 1997, p. 23).

167

Sua gestão ocorreu num dos momentos mais tumultuados da história da Primeira

República em Mato Grosso, em que os grupos políticos locais competiam para preencher os

espaços novos devido à destituição do Império. Era um momento de transição e de muita

instabilidade. E foi perante esse cenário que sucedeu a morte do Coronel Antonio Paes de

Barros em 1906, em plena gestão governamental. Sua morte é um tema polêmico na historia

de Mato Grosso.

Com a morte do Cel. Totó Paes, os reflexos foram sentidos tanto na parte política

quanto na administração da usina. Quem assumiu a propriedade e o empreendimento foi a

firma Almeida & Cia, credora da herança.

A firma Almeida & Cia foi uma empresa de importação, exportação e bancária

fundada em 1870 em Cuiabá. Essa firma possuía muitos empreendimentos dos quais se

destacaram em especial, nas áreas de agropecuária e industrial. Nesse contexto, a Cervejaria

Cuiabana e a Usina Itaicí também se destacavam nesse complexo empresarial38

.

O Dr. Alberto Novis e a usineira Antonieta de Almeida Novis – sua esposa, donos da

firma Almeida & Cia, foram os novos proprietários da Usina Itaicí após a morte de Totó Paes.

A gestão da usina por essa família não alterou a organização do espaço, do trabalho e das

relações de convivência. Aparentemente, percebe-se uma redução de práticas autoritárias e

violentas por volta da década de 30 do século XX, momento em que se acentuou o combate às

políticas oligárquicas no estado.

De todo modo, a Usina Itaicí ganhou notoriedade desde a sua implantação em 1897. O

nome do Cel. Tóto Paes, por ter sido o primeiro proprietário e criador do projeto que foi a

Itaicí tornou-se conhecido no estado, no país e no exterior. Isso fez com que a imponência da

usina ultrapassasse as fronteiras da produção tornando-se um ícone de Mato Grosso

juntamente com seu proprietário, demonstrando que mais do que produtiva ela teve um

caráter simbólico e histórico.

No entanto, essa notoriedade parece ter ocultado algumas práticas de caráter mais

negativo sobre a usina, como a utilização de coação e punições severas contra os

trabalhadores ―transgressores‖. O padre Jacomo Vicenzi com base numa visita realizada por

ele nas usinas de açúcar do Rio Abaixo em 1918, a qual proporcionou a publicação de um

livro, afirma que ocorriam fugas de operários, e em caso de captura, eles eram presos ou

mortos. Disse ainda:

38

Cf. o artigo intitulado ―Comerciante: atividade que acompanha a evolução da humanidade‖ escrito por Pedro

Nadaf, na época, era Secretário de Indústria, Comércio, Minas e Energia e presidente do sistema

Fecomércio/Sesc/Senac – MT. Disponível em www.gazetadigital.com.br. Acessado em 05 de junho de 2016.

168

Si o desventurado é preso, levam-no para a usina onde, [...] sofre um castigo

de vinte, trinta ou quarenta dias, com trabalhos forçados, de dia, e

suportando, durante a noite, o suplicio do tronco, encerrado dentro de um

quarto, para que, com menos facilidade, se ouçam seus gemidos (VICENZI,

s/d, p. 137).

Existem outros registros de violência apontados nos jornais mato-grossenses. O Jornal a

Luz de 22 de agosto de 192439

, apresentava uma reportagem que tinha como manchete

Município de Santo Antonio do Rio Abaixo, assinada por Agrícola P. B.40

e que trata sobre

maus tratos e escravidão nas usinas de açúcar:

Rio Abaixo, onde passei os mais belos dias de ezistencia, meus dez

primeiros anos, minha infância!... Sim, é lá nesse rico espaço de Mato

Grosso que se passa a mais bárbara das escravidões. É lá que o camarada

labuta mais de 12 horas no dia, comendo pouco, ganhando quase nada,

comprando tudo por uma exorbitância e tendo ainda por paga, o tronco, o

pau, a palmatória. (A LUZ, 1924, p. 1).

O Sr. Agrícola Paes de Barros aponta um lado menos otimista da história das usinas de

Mato Grosso, relatando sobre as atrocidades cometidas em favor do enriquecimento dos

usineiros a qualquer custo. São palavras que denunciam práticas de castigos, torturas, maus

tratos e violência.

O jornal A plebe de 1927 publicou um artigo de quase uma página referente a um

depoimento feito por Manoel Nunes, um paulista de 40 anos, o qual foi trabalhar numa usina

de açúcar. O artigo não apresenta o nome da usina, porém, esta é uma característica comum

nos relatos, uma vez que nestes quase sempre não aparece o nome das usinas, pois o medo era

um sentimento constante. Esse trabalhador relatou sobre o martírio pelo qual estava passando.

Ele começa o artigo dizendo que foi trabalhar numa determinada usina no Rio Abaixo,

na qual trabalhou por muito tempo e ressalta que o tratamento foi razoável porque ele comia e

bebia, mas não via a cor do dinheiro. Ele relata que certa vez, no Governo de Costa Marques

(1911-1915), houve uma briga, o patrão armou força e mandou atacar uma força da polícia,

ele não quis participar e fugiu para a mata. Diante da fuga, foi posta uma escolta com ordem

para mata-lo. Diz ele que foi encontrado e recebido com descarga de balas, o que acabou

39

Jornal A Luz, de 22 de agosto de 1924, Cuiabá, nº 300, publicação semanal. 40

Agrícola Paes de Barros, falecido em 1969, era um médico humanista e atendia de graça a população carente

de Mato Grosso. Além disso, fundou vários jornais em Cuiabá - A Luz, O Fifó, A Plebe e Brasil Oeste.

169

arrancando o seu dedo médio e quebrando o anelar da mão esquerda. Depois disso, ele

ressalta que o deixaram num quarto, sem remédio, até que cicatrizasse o ferimento, e

acrescenta que perdeu o dedo médio e outro dedo ficou paralítico.

As representações da usina indicam que ela traz consigo novas relações e papéis. Ela

diversifica a produção e o consumo e amplia o status. Os tachos de cobre foram substituídos

pelas turbinas. O senhor de engenho pelo coronel do açúcar. A mão de obra escrava pelo

―trabalho livre‖, ao menos era o que se pressupunha. Na usina havia escola, ambulatórios,

linhas férreas, energia elétrica, que somados a outros elementos representavam a mudança no

modo vida do menino de engenho41

agora situado num contexto alterado pelo universo da

Usina42

e pelo ritmo das máquinas.

Porém, as usinas do Rio Abaixo, inclusive a Itaicí, ao mesmo tempo em que

propiciavam uma produção em larga escala, refletindo no crescimento de Mato Grosso,

abrigando os funcionários, garantindo trabalho para uma população empobrecida, ofertando

escolarização, entre outros, faziam isso em prol de vantagens e enriquecimento. A oferta de

tais condições não representou melhoria significativa no bem estar social das pessoas daquela

comunidade. A modernização se encontrava mais proeminente na aquisição dos equipamentos

modernos, na estrutura física da usina, no empreendimento em si, na lucratividade, mas as

práticas de convivência na vida social e no trabalho eram arcaicas. Nota-se que predominava a

manutenção de uma sociedade desigual e hierárquica.

A educação observada a partir da espacialidade nos faz pensar na fabricação da

estrutura dos ambientes da usina, visualizando-a tanto no plano físico quanto no seu aspecto

simbólico e das experiências. Deste modo, voltamos o olhar para a configuração da Usina

Itaicí.

41

Inspirado na obra de José Lins do Rego que narra a história de Carlos Melo, mais conhecido como Carlinhos,

um menino que morava no engenho e presenciava as desigualdades sociais entre os senhores de engenho e os

seus empregados. 42

Inspirado na obra Usina de José Lins do Rêgo, este romance descreve a vida nos engenhos de cana de açúcar e

nos canaviais do nordeste. Na segunda parte do livro, há o desenvolvimento do enredo na usina, quando os

acontecimentos envolvem o Engenho Santa Rosa, antiga propriedade do Coronel José Paulino, após a fuga de

Carlos Melo em decorrência da incapacidade de administrá-lo, deixando, assim, seu patrimônio para parentes. O

Engenho Santa Rosa se transforma na Usina Bom Jesus

170

Figura 29 - Vista aérea da Usina Itaicí.

Fonte: Site de jornalismo Zucaratto43

Essa imagem permite visualizar a composição do espaço da Usina Itaicí, a considerar a

visão estratégica do proprietário em setorizar os ambientes. Essa setorização também tem um

caráter educativo por criar estruturalmente e simbolicamente delimitações e limitações que

refletiam na construção de representações e condutas.

Sendo assim, percebe-se que a ―divisão do espaço permitia uma prática panóptica a

partir de um lugar de onde a vista transforma as forças estranhas em objetos que se podem

observar e medir, controlar e, portanto, incluir na sua visão‖ (CERTEAU, 1994, p. 100),

embora, como também salienta Certeau (1994), a visão panóptica é ilusória, pois não é

possível ver tudo, controlar tudo, o sentimento de que o controle é possível permite criar

determinadas estruturas para esse fim. Diante disso, observa-se na imagem que à direita está o

setor produtivo, onde foi construída a fábrica ao lado da enorme chaminé, e mais ao fundo o

depósito.

Do lado esquerdo, encontra-se o setor das casas principais, bem em frente ao rio, ou

seja, onde ficavam os alojamentos dos funcionários de confiança (encarregados) e, sobretudo,

43

Ver em Site de jornalismo Zucaratto, disponível em: http://www.zuccaratto.jor.br/blogs/turismo-e-cia/fit-

pantanal-2016-dragagem-de-trecho-do-rio-cuiaba-pode-gerar-projeto-de-turismo/. Acessado em julho. 2017.

171

a casa do Coronel, estas se concentravam ao lado os canaviais. Mais ao fundo, o espaço foi

direcionado ao setor de serviços e à vila dos trabalhadores. Com destaque para a construção

da escola primária, que ocupou um lugar privilegiado, situada numa localização de esquina,

com acesso ao setor de serviço e ficava próxima à casa do coronel. Um detalhe a ser

observado é que a casa do coronel foi posicionada de forma que se podia ter uma visão de

vários os ângulos da usina. Ao lado, avista-se a fábrica de onde pelos fundos, podia-se

observar os outros setores. Porém, isso não significou controle de todas as práticas, tensões e

conflitos ocorridos na usina.

Em relação ao ambiente localizado ao centro da imagem, trata-se de uma construção

recente, que foi destinada para ser o museu da usina, porém não se encontra em

funcionamento.

Projetada com uma arquitetura imponente para época, a usina chama a atenção pelos

traçados europeus assemelhando-se ao estilo Inglês, bem como pela estrutura das maquinarias

e equipamentos importados adquiridos para garantir a produção em larga escala. A chaminé

também não passou despercebida devido a sua proeminência, uma vez que fora criada

medindo 51 metros de altura, o que ocasionava admiração, sensibilidade esta também

extensiva à usina.

Figura 30 - Fachada da Usina Itaicí.

Fonte: Site João Bosco Paes de Barros44

44

Disponível em: http://joaoboscopaesdebarros.blogspot.com.br/ Acessado em junho. 2016.

172

O jornal O Paiz de 1906, mencionado no trabalho de Souza (1958) traz informações

sobre o que a equipe viu e sentiu ao conhecer a Usina Itaicí em pleno funcionamento,

transcrevendo da seguinte forma:

À chegada fomos impressionados por um rumor confuso proveniente de sons

diversos que indicavam um centro de trabalho em febril atividade. Eram

pesados vagões que rodavam sobre os trilhos, transportando para os grandes

depósitos o açúcar saído das turbinas; eram marteladas cadenciadas do

ferreiro, ao longe, sobre a bigorna e a dos carpinteiros que trabalhavam à

sombra de grandes árvores; eram ruídos secos das polias e correias

transmitindo a força do vapor às engrenagens da serraria, das máquinas de

beneficiamento de arroz, tudo movido a um só tempo e por um mesmo

propulsor; eram apitos, sirenes e sons diversos que se misturavam às vozes

dos operários (O PAIZ, 1906, s/p apud SOUZA, 1958, p. 7-8).

As imagens e os sons produzidos na usina e internalizados pelos visitantes podem ser

associados à ideia de grandeza, suntuosidade. Afinal, talvez não seja insensato interpretar que

a Usina Itaicí foi construída mediante tal intencionalidade. Ela não foi pensada para ser

pequena ou só mais uma entre as demais. Ela representava a mesma imponência do seu

proprietário: ―[...] Sr. Coronel Antonio Paes de Barros, poderosa influência política no distrito

de Melgaço e progressista industrial matto-grossense‖ (O REPUBLICANO, 1898, p. 1).

Todavia, os sons de apitos e sirenes são códigos relativos à dinâmica de trabalho e indicam

uma relação de aprendizagem uma vez que era necessário o entendimento desses códigos para

execução ou interrupção de alguma atividade ou qualquer outro movimento nesse sentido.

A representação referente à grandiosidade da usina pode também ser observada nas

imagens abaixo, uma vez que a primeira mostra o interior da usina, especificamente, a casa

das máquinas, possibilitando visualizar a extensão do ambiente, os andares, bem como parte

dos equipamentos entre alguns dos funcionários encarregados, que diz respeito aos

funcionários de confiança. A imagem seguinte, mais recente, mostra o mesmo espaço entre

outras ferramentas, porém, condicionada pela ação do tempo. Todavia, as condições das

intemperes ainda não foram capazes de apagar o registro dessa memória, pois se encontra tão

imponente como outrora.

173

Figura 31 - Casa de máquinas da Usina Itaicí.

Fonte: Site João Bosco Paes de Barros

45

Figura 32 - Equipamentos da Usina Itaicí.

Fonte: Site de jornalismo Zucaratto

46

―Visto à distância, destaca-se o majestoso vulto do importante edifício de dois andares

com grandes janelas rasgadas amplamente na face principal e no flanco esquerdo do edifício

sendo a fachada voltada para o rio‖ (O PAIZ, 1906, s/p apud SOUZA, 1958, p. 8). A fábrica

45

Disponível em: http://joaoboscopaesdebarros.blogspot.com.br/. Acessado em junho. 2016. 46

Imagem recente do interior da usina, aproximadamente entre os anos de 2015 e 2016. Disponível em:

http://www.zuccaratto.jor.br/blogs/turismo-e-cia/fit-pantanal-2016-dragagem-de-trecho-do-rio-cuiaba-pode-

gerar-projeto-de-turismo/. Acessado em setembro. 2017.

174

certamente foi um dos ambientes mais monumentais que o proprietário construiu. E precisava

ser — no sentido de que esta foi projetada para ocupar a frente da usina, de modo que é a

primeira a ser vista. Desta forma, estava num lugar estratégico, num ponto que ela não

passava despercebida, de forma que até mesmo os que só passavam pelo rio avistavam a

metrópole mato-grossense.

No entanto, outros ambientes também foram pensados de forma estratégica. A

impressão que temos é a de que nada foi despretensioso, porque o proprietário tinha a

necessidade de obter uma situação de controle, algo muito comum na época. Desta forma, as

relações desiguais marcam e demarcam profundamente a fábrica. Nessa situação, percebe-se

que ―patrões não são simplesmente patrões, [...] mas são proprietários das casas onde residem

os operários, assim como toda rede de serviços‖. (CIAVATTA, 2007, p. 118).

A composição do espaço físico reflete a configuração do modelo de sociedade

hierárquica na qual a Usina Itaicí fazia parte. A setorização não parece ter se efetivado

somente por questão de organização. É mais do que isso. Ela cria delimitações que

circunscrevem a que lugar se pertence dentro dessa hierarquia social. As delimitações, de

forma direta ou indireta, posicionam as pessoas naquela sociedade, uma vez que conferem a

cada um seu lugar e sua função, isso reflete na criação de hábitos e valores que são agentes de

condutas, que neste caso parece direcionar para um tratamento desigual.

A pesquisa de Gino Buzato47

que trata sobre a cidade e sua educabilidade no período

do Estado Novo converge no sentido de que apresenta aspectos da educação mostrando as

formas pelas quais a cidade se torna um elemento educativo.

Pode-se considerar então, que todos os projetos modernizadores das cidades

abordadas neste estudo, também foram acompanhados de intenções

educativas por parte dos governantes referentes à formação de uma nova

cultura de hábitos e costumes por parte da população citadina, que

expressassem o sentido de atualidade da gestão política enquanto

representação de progresso e desenvolvimento, enfim, de modernidade.

Essas intenções encontram-se expressas na literatura trabalhada neste estudo,

pelos conceitos: ―civilizador‖, ―formação de uma nova sensibilidade‖,

―reeducação dos sentidos‖, ―nova conduta‖, ―civilidade‖, ―educabilidade‖,

―reforma do povo‖, ―novas práticas sociais‖, entre outros (BUZATO, 2015,

p. 13).

47

A pesquisa de Gino Buzato foi realizada no Programa de Pós-graduação da Universidade federal de Mato

Grosso no Grupo de Pesquisa História da Educação e memória/UFMT, sendo a primeira a tratar de educação em

espaço não escolarizado nesse universo de pesquisa.

175

A educação sugere um ensinamento com base em intencionalidades. A educação não é

neutra. Ela se constrói a partir de um contexto que envolvem objetivos e direcionamentos.

Diante desta lógica, verifica-se que os proprietários da Usina Itaicí se organizaram de modo a

criar um projeto que preparasse as pessoas para a vida naquela sociedade.

Assim, os espaços passam a desempenhar uma função educativa que se manifesta no

estilo da Usina Itaicí. Isto é, percebe-se que nesse espaço se promove uma educação voltada

para o trabalho, para a disciplina e para a manutenção da ordem por se tratar de um núcleo

populacional. Nesse sentido, o grande desafio era criar estratégias para uma harmonização

que via de regra fosse incorporada de valores, costumes e práticas próprios da sociedade

coronelista e que fosse capaz de dinamizar o trabalho e a produção.

Este propósito é evidenciado por Souza (1958):

Devo, porém, desvendar alguns aspectos e episódios que refletem o

ambiente de confiança, harmonia e cordialidade criado pela afabilidade do

trato, bom humor e tolerância que caracterizavam o Cel. Antonio Paes de

Barros e que de certo modo amenizava, ali, os rigores que a disciplina

impunha naturalmente (SOUZA, 1958, p. 11).

Ao que tudo indica, na direção de Faria Filho:

[...] à cidade como projeto pedagógico era dada tanta atenção e depositada

tanta confiança nas suas possibilidades para desempenhar a árdua tarefa de

transformar "súditos em cidadãos", desocupados em trabalhadores,

"bárbaros em civilizados" [...] (1998, p. 143).

Compreende-se que na definição desse espaço, busca-se projetar também uma

educação que pretende efetivar uma homogeneização na construção dos costumes e tradições

coronelísticas, utilizando-se de mecanismos que evidenciem e controlem as diferenças. De

modo que não podemos ignorar a dimensão espacial na forma que a Usina Itaicí se impunha,

pois, seguindo a explicação de Frago (1995) sobre a dimensão espacial ―[...] como a dimensão

temporal ou a comunicativo-linguística, ela é um traço que toma parte de sua natureza mesma.

Não é que a condicione e que seja condicionada por ela, mas sim que é parte integrante da

mesma; é educação‖ (FRAGO, 1995, p. 69).

No seu conjunto, o espaço educativo materializado no universo da Usina Itaicí

produziu e foi produto de uma nova cultura, como bem disse Faria Filho (1998) em relação ao

espaço dos grupos escolares de Minas Gerais: ―em seu movimento de constituição, foi o palco

176

e a cena de apropriações diversas, produzindo e incorporando múltiplos significados para um

mesmo lugar projetado pela arquitetura escolar‖ (1998, p. 157).

Portanto, a Usina Itaicí pode ser compreendida através da dimensão educativa pelo

fato de se ter produzido nesse locus ensinamentos práticos, de cunho pedagógico, como de

costumes e disciplina. Assim, observa-se que a aprendizagem podia se realizar nos espaços de

convivências, de trabalho ou da vida cultural.

4.2 As convivências

A relação de convivência entre os patrões e trabalhadores e as famílias inseridas no

contexto das usinas de açúcar do Rio Abaixo foi marcada por momentos de sociabilidades e

de hostilidades. Eram comuns atitudes de obediência ao patrão (coronel) e às regras

estabelecidas por ele, porém, percebe-se que às vezes as regras eram quebradas gerando

alguns conflitos entre patrão e empregados, bem como Gilberto Freyre observou ao fazer o

prefácio do livro de Lenine Póvoas: ―a atenção a cotidianos de vivência industrial, no caso,

predominantemente rústico‖ (FREYRE, 2010 Apud PÓVOAS, 2010, p. 11) tem a ver com

lançar mão de um modo de vida moderno, mas ainda atrelado às práticas arcaicas.

As relações construídas no ambiente da Usina Itaicí, como nas outras usinas de açúcar

do Rio Abaixo, parecem ter começado a partir do momento em que homens, mulheres e

crianças eram arregimentados para o trabalho na usina. Essa relação era delineada numa rede

de relações que envolviam o coronel do açúcar, delegados de polícia, políticos, juiz de direito

e a própria sociedade constituída. Conforme uma das narrativas, esse recrutamento se dava a

duras penas:

[...] os trabalhadores das usinas eram arregimentados entre gente humilde

presa pela política e trocada pelo delegado de Polícia por sacas de açúcar...

Deus permita que triunfe logo a legalidade para podermos extinguir essa

nova escravidão no Rio Abaixo (MENDONÇA, 1973, p. 137).

Segundo um relato de jornal, contraventores eram encaminhados para uma das usinas

de açúcar do Rio Abaixo sob deliberação do delegado de polícia. Consta que um homem

acusado de ter cometido um roubo de uma espingarda e mais uns contos de réis estava pra ser

enviado para as usinas de Santo Antonio do Rio Abaixo, a saber: ―Uma vez, pouco tempo,

pegaram o Chico Roxo pra manda pro Rio Abaixo, o Chico correu na minha casa e falou: ora

177

seu B. A (delegado), eu tenho mulher e fios e agora querem me manda pra Maravilha ou

Itaicy‖ (A LUZ, 1924, p. 2). Outro exemplo é a nota sobre a ação de um Juiz de direito que

foi publicada no jornal A Reação: ―Quanto ao Sr. Juiz de Direito, apenas lamentamos se haja

entregue a faina da corrupção que em nosso Estado vem tudo avassalando: saúde, caráter,

finanças, direito e justiça‖ (A REAÇÃO, 1928, p. 1).

Nota-se que existia uma espécie de conivência da força policial com os coronéis pelo

fato que nesse contexto esta se via constantemente ameaçada, porque não tinham condições

de revidar em se tratando de uma autoridade constituída. Segundo Schroeder (2008), a polícia

tinha conhecimento da existência dos grupos armados, conheciam os responsáveis pelos

bandos e tinha clareza que era uma atividade ilegal, mas devido a força desproporcional da

polícia frente a dos coronéis, a única coisa que a ela poderia fazer no seu entendimento era

aconselhar o responsável em dissolver os grupos, uma vez que a polícia não tinha estrutura

suficiente para reprimir estas práticas ilegais.

As relações eram construídas conforme os grupos sociais existentes no ambiente da

usina, ou seja, para os operários que trabalhavam diretamente na casa das máquinas e aos

agregados havia um tratamento diferenciado em relação aos camaradas, isto é, os que faziam

os trabalhos mais pesados, geralmente nos canaviais e nos trabalhos domésticos.

Os funcionários agregados mais graduados como o Encarregado Geral, o Guarda

livros, entre outros, tinham uma relação muito próxima com o coronel e por este motivo eram

sempre convidados para estar presente a mesa com o proprietário e sua família para o café da

manhã e demais refeições, e, os outros funcionários também de sua confiança eram servidos

nas dependências da usina com o café e pão, além da aguardente que era distribuída como

estímulo para o trabalho. Como podemos observar abaixo:

A todos era servida uma dose de aguardente (pinga) fabricada na própria

casa, para dar maior estímulo para o trabalho... Mais tarde, para os

funcionários mais graduados e operários da fábrica era servido café com pão.

[...] Na sede, que geralmente era a Casa Grande, onde residia o proprietário

com sua família, era servido o almoço. Mesa tradicionalmente farta. Ali

tomavam assento o dono da usina com seus familiares e seus funcionários

mais graduados, como o Encarregado Geral, etc. (PÓVOAS, 2010, p.

45).

No entendimento de Póvoas (2010) esse era um momento importante porque além de

demonstrar uma relação que envolve laços de confiança, respeito e fidelidade, ―era, inclusive,

178

a hora em que conversavam ou debatiam certos problemas e algumas ordens eram

transmitidas‖ (Ibden, p, 45).

Percebe-se que havia uma interação construída por meio de partilha, laços de amizade,

fidelidade, como também em momentos de hostilidade quando esses laços de confiança eram

estremecidos ou rompidos. O testemunho da senhora Maria de Arruda Muller mostra a vida

do usineiro do Rio Abaixo sob o ponto de vista da depoente, a qual afirma:

Eu posso te dar uma ideia a você como era a vida do usineiro. Eu sou filha

de usineiro (Usina das Flexas). Falam muito que os usineiros maltratavam os

empregados, os trabalhadores. Dizem que mesmo depois da abolição da

escravatura, os trabalhadores ainda viviam em regime de escravidão.

Naquele tempo, não havia meios para trazer os filhos de escravos para

Cuiabá. Mas havia aqueles que se apegavam aos senhores, e mesmo livres,

não queriam abandoná-los. Criavam laços de amizade muito fortes [...]

(NEVES, 2001, p. 243).

Na Usina Itaicí, a família do proprietário geralmente passavam temporadas mais

longas na cidade, morando em palacetes, pela necessidade de conforto e da manutenção dos

filhos nas escolas de nível secundário, grau de escolaridade que não era oferecido na usina.

Estes desfrutavam de um padrão de vida elevado (PÁVOAS, 2010).

Sendo assim, a família do patrão passava pouco tempo na usina e a relação de

convivência com os outros grupos sociais era menor. Entende-se que o coronel era quem

permanecia mais tempo na usina e a ele era conferido o princípio de manutenção da harmonia

e da ordem em prol da moral e da produtividade. Como se pode notar no relato de Souza:

―empenhado na direção de seu estabelecimento industrial, tinha o Cel. Antonio Paes de Barros

sua residência habitual na própria usina onde vivia‖ (SOUZA, 1958, p. 11).

Já os trabalhadores, ao menos os casados, residiam com suas mulheres nas casas que

lhes eram destinadas na própria usina. Os solteiros se acomodavam nas repúblicas. Havia os

que somente iam para trabalhar e depois retornavam aos seus lares. ―A vida sexual para os

solteiros era mais difícil, porque meretrizes, nas usinas, raramente apareciam‖ (PÓVOAS,

2010, p. 46). ―Era sempre o coronel que definia os hábitos que esse ambiente gerava e a

mentalidade que formava, influindo no seu caráter e na sua personalidade‖ (Ibden, 2010, p.

50).

O jornal A Luz de 05 de setembro de 1924 traz uma notícia referente ao tema Patrões

e empregados. Diz respeito à forma como os patrões devem formar um bom empregado. No

nível das representações, segundo o jornal:

179

A primeira qualidade de um bom patrão é não se imaginar essencialmente

diferente dos que o servem. A diferença é de condição; às vezes, de instrução

e educação. A condição social inferior pode deixar o indivíduo sem

instrução, sem educação, o que não impede de ter bons sentimentos. É um

ser humano em grau socialmente inferior, mas no caminho do progresso, se

bem servir. Servir é a obrigação do empregado. Pagar-lhe o serviço e trata-lo

com paciência é o dever do patrão. Não há castas. A humanidade é uma só.

A escravidão foi uma monstruosidade que desapareceu (A LUZ, 1924, n. 4,

p. 1).

Nessa perspectiva, entende-se que a representação da relação patrões e empregados do

ponto de vista da imprensa católica, embora faça uma tentativa de se aproximar de uma

linguagem mais igualitária e afetiva, apresenta um entendimento de que os empregados são

membros inferiores da sociedade, seja pela condição, pela instrução ou educação. O discurso

apresenta uma representação contraditória uma vez que ressalta não haver castas, que a

humanidade é uma só, ao mesmo tempo em que se argumenta que a condição social inferior

dos empregados não os impedem de ter bons sentimentos.

Dentro dos limites de sua propriedade a palavra do patrão era lei. Era ele quem ditava

as normas, trançava os limites, os direitos, julgava e punia. ―Era amparado apenas no respeito

que a sua autoridade infundia‖ (PÓVOAS, 2010, p. 21), uma vez que a figura do

patrão/coronel era a que estabelecia as regras. Ele atuava entre os interesses da usina, senão os

seus próprios, e nos interesses dos trabalhadores desde que não fosse a sua revelia.

Algumas das formas pelas quais tal aprendizado se dava era através da prática do

clientelismo que envolvia ações paternalistas. Deste modo, o patrão oferecia moradia, espaço

para construir um roçado, escola, atendimento médico, acesso a bens de consumo, entre

outros, tudo em troca de respeito e fidelidade, obediência no trabalho, como também na

política. Isso se dava à base da disciplina (sistema impositivo e de controle). Os membros do

jornal O Paiz que visitaram a Usina Itaicí em 1906 observaram que:

É sobre maneira notável o cunho superior e inteligente orientação

habilmente imprimidos à direção geral e aos diversos ramos do serviço em

uma das usinas mais centrais da América do Sul, onde se vê, à par de uma

administração altamente liberal, a ordem, a disciplina e a dedicação ao seu

proprietário por parte do pessoal (O PAIZ, 1906, apud SOUZA, 1958, p.

10).

A prática clientelística podia ser uma forma de equilibrar as forças impositivas

provenientes dos patrões, além de estabelecer simbolicamente que havia uma dependência

180

entre patrões e empregados, embora note-se que isso se apresentava de forma que o patrão

ocupava necessariamente o lugar de provedor. Contudo, percebe-se que ambos ocupavam

papel prioritário e relevante nesse contexto histórico, mesmo que muitas vezes o trabalhador

apareça nas narrativas como um elemento subalterno.

O uso de ações paternalistas, característica marcante do clientelismo, contrabalanceava

com as práticas impositivas mais afetivas, com o laser, com a abertura para manifestações

culturais, como o exemplo abaixo:

Era habitual a realização de retretas aos domingos e quintas-feiras à noite,

pela banda de música de menores que, sob a direção do maestro Francisco

Ferreira Mendes, executava não só músicas regionais como trechos de

autores clássicos. Essas retretas eram assistidas pelos operários que se

agrupavam no pátio e o próprio Cel. Antonio Paes de Barros a elas

comparecia invariavelmente, com pessoas de sua família, amigos e

empregados mãos categorizados. Entre os números musicais mais apreciados

destacava-se, pela singularidade, o trecho denominado Eco da floresta, para

cuja execução era previamente colocado, à certa distância e oculto entre as

árvores marginais do rio, um pistonista que repetia o solo do pistonista da

banda, como se fosse eco do mesmo (SOUZA, 1958, p. 11-12).

Aos domingos e nas datas cívicas a banda executava a alvorada e em seguida percorria

as ruas principais tocando dobrados marciais e despertando festivamente nos moradores48

.

Outras manifestações culturais eram direcionadas apenas para a família e amigos íntimos,

deixando de fora outros grupos sociais.

Por vezes, a monotonia das noites era quebrada por espetáculo original e de

tom poético, quando o Cel. Antonio Paes de Barros promovia passeios

fluviais, em noite de luar, fazendo-se transportar em embarcações

adequadas, com pessoas de sua família, seus íntimos e conjunto musical, em

visita aos amigos dos estabelecimentos mais próximos. Tais visitas eram

retribuídas em ocasiões propícias, quase sempre rematadas por agradáveis

bailes. Relembro com saudade o magnifico sarau realizado no vasto salão da

residência, animado por excelente conjunto musical, ao qual compareceram

distintas famílias das localidades vizinhas (SOUZA, 1958, p. 12).

Sobre o assunto, o cônego Jacomo Vicenci observou que:

Aos sábados, depois das seis horas da tarde, é facultado um festim que

consiste em batuque e maxixe de homens e mulheres: uma verdadeira orgia

despejada. Em tais ocasiões, há sempre brigas, ferimentos e mortes.

Entretanto, os armazéns das usinas estão sempre abertos com todo o pessoal

ao balcão para vender aguardente ao preço de mil réis a garrafa! Alguém,

48

Cf. Souza, 1958, p. 12.

181

com conhecimento de causa, asseverou-me que o dominador de Mato Grosso

e seu pior escravizador é o Parati (possivelmente o coronel). E tem razão!

Muitos desses infelizes com grande satisfação dos seus senhores gastam em

aguardente, num sábado, o que ganharam durante toda a semana. Reparemos

bem na ingenuidade requintada contida no que estou escrevendo. Uma

garrafa de aguardente, que talvez custe ao proprietário dois a três vinténs, é

vendida ao pobre operário em troca de dezoito horas de suores e sofrimentos

impelindo-o para o vicio da embriaguez, para melhor o poder dominar!

(VICENCI, s/d, 137-138).

Percebe-se que nesses momentos havia socialização do conhecimento como forma

cultural através da música e das danças. Ocorriam transmissões de saberes que iam desde a

música clássica, das retretas até os batuques e o maxixe. Mostra-se também um momento de

interação que envolvia troca de saberes, hábitos e comportamentos. Isso demonstra um certo

avanço no que diz respeito às questões culturais, uma vez que as manifestações representadas

pelo batuque e o maxixe eram reprimidas historicamente, como podemos observar:

Com relação à música, a repressão senhorial, aconteceu pela proibição do

batuque, folguedo imperante no interior das camadas pobres e especialmente

praticado pelo segmento escravo. [...] homens livres e pobres e até indígenas

utilizavam do espaço urbano – preferencialmente as imediações das fontes

d‘água – para se reunirem em diversão. [...] Luís de Albuquerque publicou

um bando em que ―com graves penas, se proibia os ‗batuques‘ e

ajuntamentos de escravos como fontes fonte de discórdias e perturbações

públicas‖ (DOURADO, 2014, p. 165).

A autora também enfatiza que segundo Freyre (1978)49

o rigor foi despropositado.

Houve falta de compreensão do que fossem os tais batuques. Mas se nota-se que pelo fato de

que nessas diversões movidas à música, dança e bebidas, os excessos geravam conflitos e

violência, como foi lembrado pelo Padre Vicenci (s/d), situação indesejada pelas elites.

Outro fator a se considerar é o de que até mesmo nos momentos que sugerem mais

sociabilidades e afetos, os trabalhadores ainda assim eram explorados. Os momentos de

descontração não eram organizados sem que os armazéns estivessem abertos para que os

trabalhares continuassem contraindo dívidas, ou, por outro lado, como relatou o padre Vicenci

―impelindo-o para embriagues, deste modo, tornava-se presa fácil do patrão e ao que tudo

indica, facilitava também sua sede por dominação‖ (VICENCI, s/d, p. 138).

No campo religioso, Souza (1958) se refere à visita de um sacerdote católico em

missão – o padre salesiano José Solari. Diz o autor que o padre foi recebido com toda a

consideração. Ele foi convidado para se senta a mesa como hóspede de honra da família do

49

Freyre (1978, p. 156-157) apud Dourado (2014, p. 165).

182

Cel. Totó Paes. Como de costume entre os religiosos, este fez a oração antes da refeição que

foi ouvida com atenção e respeito pelos presentes. O sacerdote permaneceu no

estabelecimento durante alguns dias realizando muitos batizados, casamentos e outros atos

religiosos que tinham início com a celebração da missa e eram assistidos pelo pessoal da

Usina e da circunvizinhança.

Esse episódio foi rememorado por Souza (1958) para dizer que apesar do proprietário

da usina ser um maçom, ele respeitou a prática do missionário católico e suas obrigações de

eclesiástico. Sobre isso relatou:

A maçonaria tem por princípio o Supremo Arquiteto do Universo, que é

Deus sob a égide da fraternidade, sendo o seu lema a liberdade de crença e

de opinião e os costumes para combater o erro e o obscurantismo e praticar o

Bem e a Benevolência. A doutrina cristã, ou cristianismo, pregada por Jesus

Cristo, o meigo Rabi da Galileia – que instruía o povo com seu verbo

inspirado no Amor e no Perdão, conforme se lê no Evangelho, e ensinava às

multidões que dele se acercavam para ouvir a sua palavra de fé e esperança:

Amai-vos uns aos outros tanto quanto lhes disse: Ide a todas as coisas e ao

próximo como a vós mesmos. [...] O fato aqui narrado, exemplificando a

possibilidade do exercício harmonioso dos dois princípios – o mação e o

religioso cristão, põe em evidencia o espirito liberal do mação (SOUZA,

1958, p. 13).

Verifica-se que uma das práticas culturais presentes na usina era a devoção aos

princípios do catolicismo. Na usina foi construída uma capela onde eram realizadas as missas,

batizados, os casamentos. A capela era utilizada por todos, tanto pelos moradores da usina

como pelos moradores das comunidades mais próximas. Inclusive era comum o

coronel/patrão ser padrinho dos filhos dos trabalhadores como parte da prática de

apadrinhamento, demostrando uma relação mais próxima com o objetivo de criar os laços

afetivos, seguidos dos laços de fidelidade.

O fato do patrão adotar práticas de boa convivência com a igreja católica era um

procedimento necessário para transmitir por um lado uma boa impressão, e por outro o

entendimento de que a fé cristã também refletia como um elemento educativo nas relações de

convivência, cuja função como se pensava, era ensinar o amor ao próximo, a esperança e a fé.

Isso pressupunha talvez poder lidar com pessoas mais receptivas, afáveis, solícitas, e menos

rebeldes.

Em que pese à formalidade das práticas, as apropriações realizadas com base nas

representações que mais lhes interessavam resultaram na proposição de valores, hábitos e

comportamentos diferentes. Desse processo, aponta-se uma educação movida por interesses e

183

experiências de grupo, ao agirem como filtros culturais produziram bricolagens permitindo

retirar de diversas representações aqueles elementos que melhor atendiam seus objetivos

(CERTEAU, 1994). A nosso ver, isso serviu tanto para os proprietários como para os

trabalhadores.

No cotidiano da usina, a nosso ver, o sentido de educação se fundamenta a partir de

valores e princípios liberais e positivistas. Conforme Hilsdorf (2003), a absorção das ideias

positivistas na sociedade brasileira deveu-se não apenas por sua proposta progressista com

base na ciência, mas também nas concepções de organização social que assinalam com

clareza a diferença entre os grandes homens e os sujeitos que precisam ser orientados.

Desta maneira, compreende-se que o estudo da educação produzida no universo da

Usina Itaicí busca análises possíveis acerca da complexidade das relações que marcaram esse

sistema. Essas relações são ao mesmo tempo fabril e sociocultural, envolvem tanto relações

de trabalho quanto as relações além da fábrica, em um fluxo e jogo de relações que envolve a

usina, o espaço doméstico, o setor comercial, social, cultural, etc. Assim, a usina vista a partir

desse complexo pode ser compreendida como uma forma particular de organização ao modo

capitalista, funcional, lucrativa para o patronato industrial, mas também produtora de traços

culturais presentes nas experiências de vida dos protagonistas (proprietários, trabalhadores,

famílias, crianças). As relações foram construídas com base no processo disciplinar,

considerando a priorie a distribuição das pessoas nessa espacialidade que era feita com a

intenção de regular o tempo, o espaço, as práticas e os atores sociais.

4.3 Trabalho, Educação, Punições e Resistências

4.3.1 A cultura do trabalho

Os olhares para a história cultural nem sempre se preocuparam com os modos de ver,

pensar e agir de todos os grupos sociais. Por muito tempo o que se viu foram reflexões acerca

de histórias elitizadas, dando atenção apenas para os sujeitos da elite, seus feitos e os

materiais que produziram historicamente.

Negligenciava-se o fato de que toda a vida cotidiana está

inquestionavelmente mergulhada no mundo da cultura. Ao existir, qualquer

indivíduo já está automaticamente produzindo cultura, sem que para isto seja

preciso ser um artista, um intelectual, ou um artesão. A própria linguagem, e

as práticas discursivas que constituem a substância da vida social, embasam

184

esta noção mais ampla de Cultura. ―Comunicar‖ é produzir Cultura, e de

saída isto já implica na duplicidade reconhecida entre Cultura Oral e Cultura

Escrita (sem falar que o ser humano também se comunica através dos gestos,

do corpo, e da sua maneira de estar no mundo social, isto é, do seu ‗modo de

vida‘) (BARROS, 2005, p. 3).

Com respaldo nos estudos de Chartier (1990) e Certeau (1994) e dos elementos que

esses autores utilizam a partir de reflexões das diversas fases da Escola dos Annales, a história

cultural ganhou um olhar plural, diversificado e multifacetado. Os estudos não se depreendem

mais em uma só cultura, mas nas culturas fabricadas por meio dos atores sociais, sem

distinção. Com isso, várias temáticas ocuparam espaço relevante nos estudos de história e das

ciências sociais como um todo. Homens, mulheres, crianças, indígenas, pobres, ricos, objetos,

espaços e lugares variados entraram em cena. Esses públicos, por sua vez, vêm manifestando

angústias, lutas, tensões, conflitos, movimentos, como também alegrias, desejos, esperança e

sentimentos que delineiam suas história de vida e a história social e cultural.

Neste sentido, observa-se que as noções de cultura constituídas no universo de

abrangência da História Cultural, segundo Barros (2005), um estudioso dos conceitos da

história cultural com base em Chartier (1990) e Certeau (1994), ―são as de linguagem (ou

comunicação), representações, e de práticas (práticas culturais, realizadas por seres humanos

em relação uns com os outros e na sua relação com o mundo)‖ (BARROS, 2005, p. 3).

Os meios através dos quais estes se produzem também desvelam elementos

importantes na observação da trajetória histórica das sociedades, como as práticas e os

processos, as visões de mundo, sistemas de valores, sistemas normativos, os modos de vida

relacionados aos vários grupos sociais, as concepções relativas aos vários grupos sociais, as

ideias disseminadas através de correntes e movimentos de diversos tipos (BARROS, 2005).

Estes movimentos permitem olhar para as práticas culturais comuns como os modos como,

em uma dada sociedade, os homens falam e se calam, comem e bebem, sentam-se e andam,

conversam ou discutem, solidarizam-se ou hostilizam-se, morrem ou adoecem, tratam seus

loucos ou recebem os estrangeiros.

As representações para Chartier (1990), inserem-se em um campo de concorrências e

de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. Estas lutas

imprimem inúmeras apropriações de acordo com os interesses sociais, imposições e

resistências políticas, motivações e necessidades que por si só são conflituosas, consigo e com

o mundo. O modelo cultural de Chartier (1990) passa pela noção de poder, de modo que o

185

poder se desvela nas ideologias, na simbologia, nas representações e nas práticas, configurado

nos modos de ver e fazer de cada sociedade.

Segundo Chartier (1990), a apropriação procura compreender as práticas que

constroem o mundo como representação. Nesse ponto de vista, percebe-se que a História

Cultural defendida por ele está atenta às influências entre práticas e representações, e a

apropriação presente nos desdobramentos políticos, sociais, econômicos e culturais.

A História Cultural entendida a partir dessa perspectiva permite olhar para os mais

variados aspectos das culturas produzidas, de modo que aqui se optou em dar maior

visibilidade à cultura do trabalho e às formas como essa cultura foi fabricada, uma vez que o

trabalho faz parte de uma das necessidades humanas e historicamente aparece a partir do

desenvolvimento de pequenas ferramentas de pedra, em que as sociedades primitivas

começam a buscar meios para sua sobrevivência.

Palenzuela corrobora para os estudos acerca da cultura do trabalho. Para o autor:

Las culturas del trabajo, em su doble dimension material e ideática tienen su

origen y su àmbito de reproducción em los processos de trabajo. Es decir,

que los saberes técnicos, las habilidades y percepciones y tempo del trabajo.

Los indivíduos que, desde sus respctivas posiciones em las relaciones

sociales de roduccíon, participan regularmente em determinados processos

de trabajo formando um bloque sócio-tecnológico, construyen e interiorizan

valores como la solidariedd, la cooperacion e la competência y elaboran

significaciones sobre la propia actividad y su pertencia a um universo laboral

determinado (PALENZUELA, 2014, p. 69).

Diante disso, se faz necessário verificar as ideologias, as internalidades das atividades

laborais, as intencionalidades, cujas estratégias implicam na formação econômica, social,

educacional, e inspiram produção de culturas.

Com base em Thompson (1987), observa-se que a sua análise acerca da experiência

humana auxilia nas reflexões sobre a própria vida humana e suas relações. Refletir sobre as

experiências, o trabalho e a educação significa, portanto, pensar sobre essas práticas sociais e

culturais como dimensões históricas indissociáveis.

Para apreensão das práticas sociais há uma relação direta entre pensamento e

realidade, uma vez que a experiência surge no ator social com base no que se pensa, e como

resultado produz representações pautadas ao que acontece tanto do ponto de vista individual

como coletivo, que envolve os atores sociais e a sua relação com mundo (THOMPSON,

1981).

186

As reflexões sobre a experiência histórica desvelada por Thompson a partir das

análises referentes à formação da classe operária inglesa revelam o caráter exploratório de

uma temática voltada para cultura popular, de pessoas comuns, que são protagonistas da

história.

Sua análise dá ênfase ao modo de vida característico dos trabalhadores que estão

ligados ao modo de produção e aos valores partilhados. Nota-se um estado voltado para as

experiências cotidianas.

Se detemos a história num determinado ponto, não há classes, mas

simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de

experiências. Mas se examinarmos esses homens durante um período

adequado de mudanças sociais, observaremos padrões em suas relações, suas

ideias e instituições (THOMPSON, 1987, p. 11).

Isso se refere à experiência humana, uma vez que:

Pela experiência os homens se tornam sujeitos, experimentam situações e

relações produtivas como necessidades e interesses, como antagonismos.

Eles tratam essa experiência em sua consciência e cultura e não apenas a

introjetam. Ela não tem um caráter só acumulativo. Ela é

fundamentalmente qualitativa (THOMPSON, 1981, p. 188).

A experiência humana de que Thompson (1981) trata passa pelo interesse de

investigar o trabalho. Nesse sentido, percebe-se que trabalhar tem a ver com uma atividade

que tem um propósito, podendo ter como finalidade a produção de bens materiais que supram

as necessidades de sobrevivência como moradia, alimentação e segurança, ou necessidades

culturais, como a arte, lazer, educação, etc.

Atualmente, o trabalho está associado à busca de uma expressão pessoal e posição

social. Busca-se por um trabalho perfeito que seja bem remunerado, reconhecido, estimulante.

É muito comum a ideia de que para se alcançar a realização ou a felicidade, é necessário

trabalhar com prazer, fazendo-se o que gosta. Mas nem sempre foi assim. Em sua raiz, o

termo trabalho é associado à dor e sofrimento. No entendimento de Edgar de Decca (2004) até

a época moderna, o trabalho foi sinônimo de penalização e de cansaços.

É a partir desde ponto que pretendemos tratar, tendo em vista que uma das

problemáticas mais relevantes na história do trabalho no Brasil atualmente refere-se ao

processo de transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Isso tem a ver com a formação

do mercado de trabalho assalariado que está relacionado com o desenvolvimento do

187

capitalismo no país. Schroeder (2008) afirma que o trabalho assalariado é ―o regime de

trabalho que mais se ajusta aos objetivos do sistema capitalista e a economia de mercado, que

é aumentar a produtividade e consequentemente o lucro do capitalista‖ (SCHROEDER, 2008,

71).

Historicamente, o capitalismo foi marcado pela apropriação privada dos meios e bens

de produção. O processo produtivo passou então a ser organizado com o objetivo da geração

de lucros. O mercado de trabalho assalariado teve como base uma mão de obra caracterizada

por pessoas que foram inseridas no processo de expropriação, cujos trabalhadores (as)

despossuídos (as) dos meios de sobrevivência, sem alternativa, serviram de mão-de-obra no

mercado de trabalho.

Mas refletir sobre a mão de obra assalariada no Brasil é lembrar que ela esteve por

muito tempo associada ao trabalho análogo ao escravo, como foi o caso de Mato Grosso.

Ocorreram muitos casos em que os trabalhadores (as) ―livres‖ e assalariados (as) viviam em

regime de semiescravidão, uma vez que os seus rendimentos eram submetidos a uma espécie

de escravidão por dívidas, ocasionando no aprisionamento do salário pelos patrões, como

também seu próprio aprisionamento, considerando que os mesmos eram impedidos de se

desvincularem da empresa enquanto as dívidas não fossem saldadas, gerando por certo uma

liberdade controlada.

Schroeder (2008) ressalta que o Brasil foi o último país da América Latina a abolir a

escravidão o que ocorreu somente no final do século XIX. Para ele, a escravidão era a forma

mais degradante da existência, pois os escravos eram tratados como coisas, homens sem

vontade, não podiam escolher suas moradias, onde ou quando trabalhar, e eram sujeitos às

brutalidades de um controle violento sobre o seu trabalho.

Após a abolição da escravidão, as relações de trabalho que foram estabelecidas

estavam ligadas ao poder dos coronéis, sustentadas na violência do regime coronelístico e no

paternalismo, este último caracterizado pelas práticas clientelísticas que serviam como meio

de arregimentar os trabalhadores (as) e garantir a oferta de mão de obra para os diferentes

trabalhos.

Na sociedade industrial, os patrões buscavam disciplinar os trabalhadores, por meio do

discurso do tempo útil e da crítica a ociosidade. Os discursos eram direcionados para a

valorização do trabalho, e deste modo foi criado um sistema de controle e disciplinarização

dentro do sistema de fábrica. As mudanças que ocorreram na Revolução Industrial identifica

na sociedade transformações mais amplas do que apenas o surgimento da fábrica e o uso das

188

máquinas na produção, com destaque para as alterações na relação de trabalho (DE DECCA,

2004).

Segundo Schroeder (2008), desde a metade do século XIX em Mato Grosso, já havia

um discurso que condenava a ociosidade e que valorizava o trabalho, e que via como função

do poder público, através das leis, reprimir a vadiagem e recompensar ―as pessoas

industriosas e laboriosas‖:

Ainda que o amor do trabalho se recomenda por si mesmo e pelas

inapreciáveis vantagens que delle tudo resultão aos indivíduos e a sociedade,

não será contudo supérfluo, e nem inútil, que as leis e os legisladores

empreguem o seu zelo e autoridade em inspira lo e persuadi lo aos povos, já

prometendo e distribuindo com discrição adequados prêmios e recompensas

ás pessoas industriosas e laboriosas, já castigando com justa severidade a

inerte ociosidade dos preguiçosos (ECHO CUIABANO, 1840, s/p, apud,

SCHROEDER, 2008, p. 86).

O autor também destaca que estes discursos sobre a vadiagem e a valorização do

trabalho buscavam a sua justificação em argumentos que pesavam os aspectos morais e

religiosos. Para ele, o trabalho por sua vez refletia a índole das pessoas, as pessoas que não

trabalhavam estariam propensas a cometer crimes ou se entregarem ao vício, mais um motivo

para que as autoridades se preocupassem em incentivar o trabalho e reprimir a vadiagem.

O trabalho é o espelho onde se refletem a índole laboriosa e a actividade das

nações. Um povo trabalhador é necessariamente feliz. É pelo trabalho que se

desconhece a miséria (...) é o melhor antídoto contra a hipocondria e até

mesmo contra o crime, enquanto que a inércia é sempre prejudicial e funesta

em seus efeitos. (...) é a parte integrante da vida humana para que possa ser

amena, alegre, venturosa (O REPUBLICANO, 1896, s/p, apud Schroeder,

2008, P. 87).

As crianças também aparecem como alvos de ações do governo, sinalizando que desde

cedo elas deveriam ser preparadas para o trabalho. Os filhos de trabalhadores deveriam ter

acesso à educação, mas uma educação que através da prática lhes oferecesse uma profissão. A

opção mais procurada pelas famílias pobres era a profissionalização de seus filhos no Arsenal

de Guerra e no Arsenal da marinha onde existiam as Companhias de Aprendizes e Artífices,

que aceitavam crianças comprovadamente pobres, jovens libertos e descendentes de escravos

(SCHROEDER, 2008).

A escola aparece nesses discursos como uma instituição disciplinadora, que

deveria preparar as pessoas para o mercado de trabalho em dois sentidos.

189

Num aspecto por que ensinava conhecimentos e desenvolvia certas

habilidades que poderiam ser instrumentalizadas numa profissão ou funções

a serem desenvolvidas. Em outro sentido por que a escola introduzia a

pessoa num regime disciplinar que se assemelhava ao regime do trabalho

assalariado, ou seja, o cumprimento do horário, a realização de tarefas pré-

determinadas, a obediência aos superiores (SCHROEDER, 2008, p. 89).

As Companhias de Aprendizes Artífices recrutavam meninos pobres com objetivo de

transformá-los em operários, mestres e contramestres das oficinas dos Arsenais da Marinha.

As Companhias de Aprendizes Marinheiros, envolvendo crianças e adolescentes (10-17 anos),

buscavam a formação de marinheiros para os navios. Os aprendizes submetiam-se a uma dura

jornada que começava às 5 horas da manhã e encerrava-se às 10 horas da noite. José Carlos

Barreiro lembra que as duas companhias de aprendizes subordinavam os alunos a uma

disciplina regular e uniforme e dotavam os alunos das características de asseio e subordinação

(MELO, 2009):

Tal educação, oferecida a bordo de navios, deveria permitir aos meninos o

menor tempo possível de permanência em terra para que se desviassem das

distrações e se libertassem do domínio dos vícios e das paixões. Em meados

do século [19], um Comandante Geral da Marinha do Rio, ao solicitar a

criação de mais uma Companhia de Aprendizes Marinheiros, apresenta bons

resultados ao Ministro da Marinha, quanto à transformação de meninos

abandonados em bons marinheiros (BARREIRO, 2005, p. 6 apud MELO,

2009, p. 115).

Como no Arsenal da Marinha de Mato Grosso, por exemplo, as instituições militares

do Império, ao desenvolverem uma política de recrutamento de menores, assumiam a

responsabilidade de inserir essa mão de obra no mercado produtivo.

Pode-se sugerir, para o caso de menores livres, que a política de

recrutamento desafoga a pressão de braços ociosos em lares pobres; para o

caso dos menores libertos, representou uma oportunidade de inseri-los no

mundo do trabalho livre remunerado, facilitando-lhes a transição de um

mercado marcado pela herança escravocrata para uma outra relação de

trabalho (SOUZA, 1958, 35 apud MELO, 2009, p. 117).

Nessa perspectiva, Crudo (2005) explica que o ensino de ofícios agenciado pelos

militares, estaria articulado a uma política de mão de obra livre, capaz de substituir a mão de

obra escrava, com a intenção de atender as necessidades de uma economia emergente.

No contexto da segunda metade do século XIX em Mato Grosso, deu-se início ao

desenvolvimento da indústria açucareira, como já é de conhecimento, de modo que estas

190

foram se instalando às margens do rio Cuiabá, e em cujas as condições de trabalho eram

degradantes e análogas à condição de escravidão.

Diante dessa realidade, o trabalhador (a) não tinha um rendimento que de certa forma

o (a) protegesse dos abusos dos coronéis, pecuarista e empresários. Portanto, a população

estava a mercê do poder dos grandes coronéis, que usavam da violência de grupos de homens

armados que se colocavam a seu serviço, ou mesmo da força da polícia para impor o seu

domínio sobre os trabalhadores (as) (SCHROEDER, 2008).

―Nós pobre, sem nada pra vive, calava com as mortes, trabalhava, não tinha voz

naquele silencio que defendesse nós. Delegado de polícia nem pensa, era afilhado ou coroné e

nós trabalhava quieto, comia quieto, morria quieto‖ (ALEIXO, 1995, p. 165). Neste

testemunho percebe-se a indignação do trabalhador Bento Rafael, diante de uma realidade que

não tinha a quem recorrer.

Bento Rafael relata conforme as suas representações como era o dia a dia dos

trabalhadores (as) nas usinas:

A usina deu trabalho, deu vida pro pobre que não tinha comida. Ai o homem

virava inté bicho, só fazia gemê e chorá, pra comê tinha que inté suá sangue.

Tinha coroné que ajudava a gente, arguns era mardito, ruim mandava batê e

mata tudo aqueles que não queria fica na usina pra trabalha (ALEIXO, 1995

p.164).

Nota-se que o coronel tinha o poder sobre a vida de cada empregado, e este estava

condenado à servidão. Deste modo, observa-se que decorreram mais de dois séculos para que

o trabalhador fosse reconhecido como aquele que constrói a riqueza do Estado. Mas vale

lembrar que o testemunho de um trabalhador de uma usina de açúcar é importante na

apreensão da história e da memória do trabalho, dos trabalhadores (as) e das relações de

trabalho constituídas, como foi o caso da Usina Itaicí, onde centenas de trabalhadores estavam

inseridos num contexto no qual predominavam representações e práticas de uma liberdade

controlada, mediada por atitudes que desencadeavam um sentimento de subordinação,

disciplinamento e coerção.

4.3.2 Vestígios da formação para o trabalho

A cultura do açúcar envolvia a condição de empoderamento do usineiro, e para

garantir o poder, privilégios, controle e a ordem foi necessário fabricar um ambiente propício

191

para este fim, que a nosso ver significou criar estratégias baseadas na condição de

assujeitamento por parte dos trabalhadores (as) e das famílias.

Os indícios da preparação dos trabalhadores para a convivência na usina e para o

trabalho estão evidenciados nos afazeres cotidiano50

. O dia a dia dos trabalhadores da usina

foi marcado pelo ordenamento do espaço, do tempo e das pessoas, criando um ambiente de

trabalho controlado. Esse regime de controle foi uma característica que se destacou na:

[...] instauração de uma nova ordem que buscava, através de transformações

econômicas e tecnológicas, dotar a região de potencial responsável pela

supremacia da indústria açucareira sobre as demais atividades econômicas.

[...] A usina surge, à época, como a principal formadora e disciplinadora da

mão de obra. Ela representou a força de dominação e poder. Com seu

aparato tecnológico, conseguiu dar nova feição à economia local (ALEIXO,

1995, p. 169).

Os sinos, os gestos, a fragmentação do tempo, o espaço, as regras, as aulas na escola

cotidianamente repetidas possibilitam a apropriação de valores, hábitos, posturas e condutas

requeridas, como também dota de eficiência a presença reguladora do patrão. Esse conjunto

de representações e práticas indicava o ordenamento espaço-temporal que refletia o controle

das atividades, mas, sobretudo, a luta contra o ócio, a vadiagem, a criminalidade e o

analfabetismo, uma vez que o combate a estas atividades negadoras do progresso requeria

habilidade no processo de instruir e educar os trabalhadores (as), combinando esse

entendimento à valorização do trabalho com a disciplina.

Sinalizada por um espaço e tempo prescritos, a formação dos trabalhadores (as) e das

famílias era ocupada nos afazeres cotidianos. Aprendiam a trabalhar, exercendo o trabalho.

Não havia formação especializada. Ocupavam-se dos ofícios que aprendiam na lida nos

canaviais, no manuseio das máquinas, no ritmo das fornalhas, por meio das experiências que

trocavam com os demais trabalhadores (as). Todavia, essa aprendizagem se dava sob as

deliberações e regulações do patrão.

Siqueira (2009, p. 46) afirma que ―a maioria dos trabalhadores braçais era analfabeta‖,

com isso não queremos dizer que esse possa ter sido o motivo de não haver uma formação

especializada, de modo algum, mas se trata de uma informação relevante para a compreensão

do contexto social e educacional.

Geralmente a oferta de cursos técnicos envolvia acesso ao conhecimento escolarizado,

de modo que a ausência de formação escolar dificultava a implantação de tal procedimento.

50

Cf. (CERTEAU, 1994) O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia ou que nos cabe em partilha.

192

Mas compreendemos que esse é apenas um dos fatores. A ausência de uma formação mais

específica para esse público era algo distante da realidade. Na própria usina, os proprietários

deram atenção à escolarização das crianças, mas não olharam para os adultos sem

escolarização. Mesmo assim, pode-se observar que os trabalhadores foram se apropriando de

conhecimentos necessários para lidar com a terra, com a lavoura, com a produção do açúcar,

enfim, com as tarefas delegadas no universo da usina.

Figura 33 - Trabalhadores da Usina Itaicí na lavoura de cana.

Fonte: Acervo da Secretaria Municipal de Santo Antonio de Leverger, s/d.

A foto acima foi feita durante a passagem dos fotográficos Francisco Solano Salcedo

(Paraguaio) e Miguel Perez (Espanhol) na Usina Itaicí na primeira metade da década de 1910

a serviço do Governo de estado de Mato Grosso para a elaboração de um álbum gráfico que

foi produzido na Alemanha e publicado no ano de 1914, com o objetivo de ser utilizado como

―guia de investimentos [...], como portadora de um inventário que contém a descrição dos

aspectos físicos dessa porção do território nacional e de elementos relacionados ao passado

local‖ (FRANCO, 2015, p. 13).

193

Observa-se na imagem uma das representações sobre a produção do açúcar no estado,

na qual é possível perceber os trabalhadores na lavoura de cana, possivelmente capatazes

montados nos cavalos, administradores da usina, como também o cenário que envolve a

grandeza dos canaviais, e não podemos ignorar o objeto símbolo de modernidade - pesados

vagões que rodavam sobre os trilhos à tração animal o Decauville.

Temos diante dos olhos um retrato convencional na representação dos fotógrafos

estrangeiros. Nos vagões se encontram, provavelmente, os administradores da usina e seus

funcionários mais graduados, algumas crianças que podiam ser seus filhos ou parentes (pois

as vestimentas dos adultos e das crianças não os associam aos trabalhadores). Verifica-se

também o destaque para a cana de açúcar, onde algumas pessoas aparecem com elas na mão

em direção elevada evidenciando a relevância da cultura canavieira para o estado.

Era por olhar na maior parte do tempo para esse idealismo e convicção que os

usineiros propunham intencionalmente um modelo de educação que a tomava por instância

efetivadora. Ocorre que os agentes dessa instituição não levavam em consideração alguns

detalhes relativos às condições das pessoas inseridas nesse contexto, detalhes que são

observáveis quando são trazidas para o primeiro plano as peculiaridades de cada grupo social

na sua condição de trabalho e de trabalhador. Detalhes que, em princípio, como a imagem

consegue-se identificar, são os fatores hierárquicos que se encontram presentes, os

administradores entre outros funcionários de sua confiança apresentam-se centralizados ou ao

lado e no alto, seja através dos vagões símbolo de modernidade e prosperidade, ou em cima

dos cavalos representando autoridade e controle, todavia, os trabalhadores encontram-se

embaixo, provavelmente numa representação que evidencia a característica de hierarquia e

poder da sociedade da época.

O fator hierárquico é uma característica advinda das relações sociais construídas desde

o período da colonização no Brasil, fundamentado na diferenciação entre grupos sociais com

base nas questões raciais, econômicas e culturais. Observa-se que essa característica

influencia na formação da mão de obra desde a formação do Brasil e ainda predomina na

Primeira República. A diferença no tratamento entre os grupos sociais acaba direcionando

cada um em um lugar de pertencimento, ou seja, os negros, livres e pobres geralmente

ocupavam funções subalternas, com baixos salários e sem margem para ascensão social. Os

brancos, empresários, fazendeiros, políticos, diferentemente, possuíam melhores condições

financeiras e condições de mobilidade social. Estes últimos representavam uma pequena

parcela da população mato-grossense.

194

Nessa perspectiva, vimos que após a abolição da escravidão criou-se um problema de

mão de obra. Havia a preocupação da elite em como fazer com que os trabalhadores livres

submetessem a disciplina do trabalho assalariado ao invés de garantir por si mesmo a sua

sobrevivência, ou seja, de forma mais autônoma. A solução era uma questão complexa.

Segundo Schroeder (2008), para submeter os trabalhadores livres nesse modelo de

trabalho criava-se relações sociais de produção que estabelecia o domínio de quem detinha os

bens de capital sobre os que detinham a força de trabalho. Essa relação prejudicava o

desenvolvimento de atividades autônomas pelos trabalhadores livres, condicionando-os a

incorporar-se no processo produtivo. Para o autor, os trabalhadores livres eram:

[...] todas as pessoas que eram pobres e que portanto deveriam trabalhar para

garantir a sua sobrevivência. Chamamos estes trabalhadores de livres para

diferencia-los dos escravos, entretanto não podemos esquecer que muitos

destes compartilhavam semelhantes condições de vida e exploração dos

cativos (SCHROEDER, 2008, p. 49).

É importante ressaltar que segundo o autor, ao definir este grupo como trabalhadores

não significa dizer que estes eram, necessariamente, empregados de alguém ou mesmo que

estes tinham uma consciência de pertencimento a uma mesma categoria social. Sendo Assim,

existia uma variedade de situações. No caso dos trabalhadores livres, estes se diferenciavam

na relação com o mercado de trabalho, pois parte deste grupo era formade por pessoas que

estavam inteiramente inseridas nesse contexto, por viverem sob a dependência direta de

algum grande proprietário, como empregados assalariados ou trabalhando na terra dos

grandes fazendeiros. E essa relação foi bastante comum no estado e nas usinas de açúcar.

Conforme Siqueira (2009), esse foi o caso dos trabalhadores das usinas de açúcar de Mato

Grosso, em que muitos usineiros, com raras exceções, submetiam-nos ao seu domínio e

vontade.

Deste modo, as relações de trabalho que se constituíram em Mato Grosso após o

período de escravidão estavam diretamente ligadas ao poder dos coronéis, apoiados em

práticas clientelísticas que serviam como meio de arregimentar trabalhadores e garantir a

regularidade da oferta de mão-de-obra para as diferentes frentes de trabalho e para os grandes

proprietários (SCHROEDER, 2008). Tanto que o jornal O Commercio de 20 de março de

1910 leva uma nota referente à oferta de trabalho na Usina Itaicí: ―TRABALHADORES –

precisa-se de trabalhadores na USINA ITAICY, com casa e meza‖ (O COMMERCIO, 1910,

p. 1).

195

Desta forma, como era essa rotina de trabalho e como ela foi produzindo cultura?

A concepção de trabalho no Brasil no período da Primeira República ainda tinha como

referência o trabalho escravo existente no país por quase 400 anos. Deste modo, após a

oficialização da libertação dos escravos pela Lei Aurea, os proprietários de terra ainda

continuaram a conceber as relações de trabalho como escravagistas (SIQUEIRA, 2009), isto

é, as relações de trabalho que se constituíram nas usinas de açúcar do estado não se

diferenciaram muito do trabalho escravo, apresentando características de trabalho

compulsório, o que geralmente é caracterizado como um sistema de semiescravidão ou

escravidão por dívida.

O trabalho no contexto da Usina Itaicí tem uma espacialidade própria definida nos

limites da fábrica e de todo aquele núcleo populacional em situação de confinamento. Então,

nota-se que essa espacialidade é representada por uma rotina de trabalho intensa,

principalmente no período das grandes safras. Esta envolve saberes e experiências para lidar

com a produção de açúcar, sem falar do regime de controle, começando pela apropriação da

rotina de trabalho organizada conforme o cronograma abaixo:

Tabela 2 - Rotina dos trabalhadores nas usinas de açúcar do Rio Abaixo

4:00 hs Badalavam os sinos: despertar. Quebra-torto (café da

manhã reforçado).

5:00 hs Início dos trabalhos

9:00 hs Café com pão – servido a todos os trabalhadores no

local de trabalho.

11:00 hs Almoço.

13:00 hs Recomeçavam os trabalhos

20:00 hs Término dos trabalhos – período de plantio e

entressafra.

23:00 hs Término dos trabalhos por ocasião das safras.

Elaborado pela pesquisadora. Fonte: Siqueira et al, 1990, p. 38-39.

O jornal O mato Grosso de 07 de abril de 1912 traz uma publicação intitulada ITAICY

que trata sobre o modo de vida nessa usina e sua rotina de trabalho. Verifica-se que de modo

parecido com a rotina apresentada por Siqueira (1990), o autor do artigo denominado Paulo,

ao que tudo indica, visitou a usina e aproveitou para descrever o que viu e sentiu.

Primeiramente ele expõe o seu ponto de vista sobre a usina Itaicí dizendo que esta

usina não é propriamente um sítio, ela corresponde a um povoado. Ressalta que ela possuía

uma escola em que o número de alunos matriculados, moradores os sítios e os

196

estabelecimentos açucareiros, excedem a 50 pessoas, possuindo também grande número de

casas próprias ao abrigo confortável dos trabalhadores. Em seguida, ele relata a seu modo o

que presenciou na rotina de trabalho na Usina Itaicí:

De manhã, apenas os primeiros raios do sol anunciam o amanhecer, da cama

ouve o visitante, após o badalar da sineta, o apontador, em alta voz, fazer a

chamada dos empregados. A proporção que respondem, recebem, cada qual,

o seu pão, e de enxada ao ombro, desfilam para os serviços que lhes são

determinados pelo encarregado, um bom conhecedor, pela longa prática, dos

segredos da vida agrícola.

O sol já vae alto; o meio dia se avizinha; badala de novo a sineta e os

trabalhadores afluem para receber a refeição, prodigamente distribuída. Na

feição de todos transparece a alegria natural a volta do trabalho que nobilita

e esparge a felicidade no lar, remanso sagrado da vida.

A tarde cahe.

O silencio, a monotonia chegam; não vencem; porém, o visitante se deleita

ouvindo os trechos suaves da música que se faz ouvir e que apezar de ser

feita pelos pequenos que ali vão se instruir, nada deixa a desejar.

As avançadas horas da noite obrigam-no a procurar o leito, Dorme. De

manhã nova chamada e o dia principia portador de novas fainas e surpresas.

(O MATO GROSSO, 1912, p. 2).

Bem diferente dessa versão, encontramos o testemunho de Ignotus (codinome)

publicado no jornal A Luz de 04 de outubro de 1924. Esse cidadão presenciou o cotidiano das

usinas de açúcar do Rio Abaixo e passou a relatar através de cartas encaminhadas para o

editor do referido jornal, José A. Bouret Filho, conhecido como Zelito, as suas impressões

acerca do funcionamento das usinas, principalmente sobre o trabalho. O artigo apresenta uma

narrativa de uma testemunha ―aterrada, acabrunhada e penalizada como não se podes

imaginar‖ (A LUZ, 1924, n.4, p. 4) – e usa a seguinte expressão: ―a usina é um inferno, os

operários são domados, e, os patrões são os satanazes terríveis e desalmados‖ (A LUZ, 1924,

n. 4, p. 2). Vimos que no primeiro parágrafo essa testemunha já dá o tom da sua narrativa que

não tem nada de visão romantizada. A saber:

Às 4 horas da manhã as badaladas sinistras de um sino arrancam do sono dos

operários para chamá-los ao trabalho; faz-se a chamada... infeliz de quem

não responder; manda-se logo uma escolta atrás e uma vez alcançado a

distribuição das penas conforme o código draconiaco da usina.

Uns dias de tronco ou de solitária, diminuição da comida já infame que

recebem todos e agravação da dívida pelas supostas custas que ocasionaram

[...] Durante todo o dia vêm-se os operários atrelados como alimaria ao

trabalho mais penoso, sempre tendo os capatazes ao lado com injurias e

ameaças de novas súplicas [ilegível] (A LUZ, 1924, n. 4, p. 2).

197

Tanto o artigo de Paulo como o de Ignotus, bem como os apontamentos de Siqueira

(1990) e Schroeder (2008), apresentam indícios da rotina de trabalho na usina. Reforçam as

evidências do cronograma das atividades desenvolvidas no dia a dia, com destaque aos

horários e aos ofícios. Mas é curioso notar como as representações se diferenciam ao

relatarem sobre esse cotidiano dos trabalhadores. Isso de certa forma demonstra que o ponto

de vista sobre a Usina Itaicí e o modelo de trabalho desenvolvido variava dependendo de que

lugar cada ator falava. Não é difícil observar nas fontes que havia versões positivas e

negativas.

Em meio a essas representações, os trabalhadores da usina seguiam uma rotina que

envolvia o conhecimento sobre plantação da cana-de-açúcar, dos tipos de cana, da forma de

produção em nível industrial, envolvia conhecer também o posto de cada ator social, sua

função e as regras estabelecidas.

O testemunho do Sr. Antonio Isidoro da Silva, trabalhador das usinas Conceição,

Maravilha, Aricá, Ressaca e Itaicí relata como ocorria todo o processo da produção do açúcar,

desde a preparação da terra até a comercialização. Esse senhor era um trabalhador braçal que

realizava tarefas como carpir e cortar cana; mas relata que depois aprendeu a trabalhar com a

máquina.

Segundo o seu testemunho, o processo da industrialização do açúcar e a rotina dos

trabalhadores, entre outras curiosidades, se davam da seguinte forma:

Preparação da terra: primeiro tinha que carpir, destocar e, varrer pra poder fazer

balizamento, fazer a cova num espaço de quatro palmos uma da outra;

Plantar: plantava na cova de dois palmos e 20 cm.

Variedades da cana: tinha a cana cristalina, java, cambatória e peroji. A caiana quase

não tinha;

Colheita: A primeira colheita ocorria entre os meses de março e abril, depois de um

ano a colheita era feita em maio. Nesse momento, os trabalhadores faziam a limpeza

das estradas e assentavam os trilhos para colocar os vagões.

Ferramentas: eram utilizados machados, foices, enxadas, o arado.

Tarefas: cada tarefa era contabilizada a partir de 60 feixes de 30 paus de cana; os

trabalhadores deixavam as enfeixadas, depois vinham seis homens para encher os

vagões. Eram seis vagões. Depois disso, passava para a balança e em seguida eram

encaminhados para a moenda. Havia quatro homens para jogar as canas na esteira.

198

O encarregado: o encarregado era quem tomava conta do trabalhador, fiscalizava;

A industrialização do açúcar: as máquinas funcionavam a vapor. Eram três caldeiras

na Usina Itaicí e duas caldeiras na Usina Conceição. Havia fornalha a lenha, e dois

homens ficavam embaixo para carregar as caldeiras, tinha também dois homens em

cima para empurrar o bagaço e um para puxar o couro da boca da fornalha. Eram três

cilindros atravessados. Havia defecadeira (taxo) e vaporadeira. Então, fervia-se o

caldo da cana, depois ia para defecadeira; em seguida era coado a garapa, esquentava,

descia para a vaporadeira, fervia e ia a vaco para fazer o cristal do açúcar. Depois de

feito o melaço, descia para o tanque embaixo para fazer o açúcar. Tinha um homem

responsável para cavar, para pôr no vagonete e para ir em cima de uma bica e para a

turbina. Da turbina ia para o depósito e depois eram ensacadas para a comercialização.

Ele ressalta que na Usina Itaicí tinha um batedor automático para secar o açúcar.

Produto: do melaço fabrica o açúcar, do açúcar o melado totó para ir temperado com

água para fazer o álcool. O melaço era fervido para fazer o garapão que ia para o

alambique e assim era transformar em álcool. O teor de álcool era de 42/43 até de

44%.

Comercialização: ensacava e ia para Cuiabá. O transporte era feito no batelão

(transporte fluvial) para atravessar de um lado para o outro (rio), depois o produto

seguia de caminhão para um depósito na capital e depois era feita a distribuição;

Canada: a canada era quando tinha o garrafão. Esse garrafão era chamado de uma

canada;

Praga: Tinha a broca, ruía e matava a cana, mas não era muito. Tinha o capim que

quando ia plantar já ruía a cana também, antes de nascer.

O tempo de duração de cada plantação: demorava algum tempo, às vezes fazia de

cinco a seis cortes de cana, ai morria, tinha que replantar. Às vezes ficava fininha.

Infere-se que nos espaços de trabalho da Usina Itaicí se fazia presente a circulação de

saberes e práticas referentes aos procedimentos de produção da cana e de seus derivados.

Tratava-se de lugares compreendidos enquanto espaços que exerciam uma função pedagógica,

tendo em vista que não eram todos os trabalhadores que detinham o conhecimento do ofício

que exerciam, mas foram se apropriando do processo no dia a dia. Este espaço se configurava

como propício ao desenvolvimento de ações educativas não escolarizadas, uma vez que as

técnicas eram apropriadas com base em trocas, representações e ensinamentos adquiridos na

relação com o outro e pela construção de signos próprios daquele período histórico, como se

199

pode observar no entendimento do fenômeno coronelístico e das práticas clientelística, pelas

quais se percebe que por convenção, construíam signos que representavam ou substituíam

outro. Os signos correspondem à influência recebida por algo ou alguém. A nosso ver, os

coronéis imprimiam com força maior essa influência. Por exemplo, a autoridade do coronel,

seu poder de mando e controle, a relação de subserviência dos trabalhadores, é uma espécie de

signo impresso no período coronelístico.

Segundo Deleuze (2003, p. 21) ―nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de

qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos‖, assim é possível observar o

movimento dos grupos de trabalhadores na realização das tarefas, no contato com os outros,

desempenhando vários ofícios, permitindo que mesmo na rotina intensa de trabalho houvesse

momentos de aprendizagens, permitindo que práticas educativas fossem desenvolvidas

quando não era possível uma intervenção formal. Nesse mesmo ponto de vista, cabe ressaltar

que as várias atividades produtivas e de serviço permitiram aos trabalhadores demonstrar suas

habilidades e trocar conhecimentos, mesmo em território considerado muitas vezes hostil.

A hostilidade estava ligada a ações de punição e violência praticadas pelos

patrões/coronéis e fazia parte do cotidiano desses trabalhadores como ação coercitiva e

reguladora do controle do tempo e do espaço. A descrição abaixa é elucidativa ao que não se

pode ignorar:

[...] centenas de criaturas derramaram e estão derramando sangue e lagrimas.

Veni, vivi et lagrymas effadi. Fui, vi e derramei lágrimas. Se o teu coração

tão sensível às dores do próximo me tivesse acompanhado, tu terias

derramado uma lágrima. Bárbaros!51

(A LUZ, 1924, p. 2).

Como te disse na minha última [carta], fugi daquele inferno horroroso,

estava porém indeciso e não sabia que rumo ia [ilegível]52

.

(A LUZ, 1924, p. 2).

Sangue e lágrimas são expressões que simbolizam dor, terror, tortura se observadas

dentro dessa interlocução... Vistas a partir dessa perspectiva, essas duas palavras apontam

indícios de punições nas usinas de açúcar do Rio Abaixo. Como também a expressão fuga

sinaliza resistência.

51

O jornal A Luz de 04 de outubro de 1924 publicou a 1ª carta de um cidadão de codinome Ignotus. Este relata

em suas cartas o seu ponto de vista acerca das atrocidades cometidas nas usinas de açúcar de Mato Grosso,

especificamente, as do Rio Abaixo onde havia maior concentração de usinas açucareiras. Este recorte trata-se da

sua passagem pela Usina Conceição e as informações são referentes ao que presenciou lá. 52

O jornal a Luz de 05 de setembro de 1924 publicou a terceira carta de cidadão Ignotus. Nesta carta ele

continua relatando sobre a sua saga pelas usinas de açúcar, não deixa claro de qual se trata, pois as suas cartas

demonstram que ele passa por várias usinas, em algumas ele identifica a usina outras não.

200

A nossa observação se anuncia dentro do contexto da Primeira República em Mato

Grosso, no qual imperava os princípios coronelistas. Somente analisando desse lugar

podemos aprofundar nessa questão.

É insuficiente saber que os patrões/coronéis se apropriaram das práticas de punições

como forma de lidar com os trabalhadores da usina. É preciso saber o que faziam com elas ou,

para usar mais uma vez a expressão de Certeau (2002) saber o que fabricavam.

O proprietário representado por sua instituição (a usina), conforme visto

anteriormente, era a instância de deliberação das práticas punitivas, pois eram vistos como

representantes de uma instituição histórica que tinha suas próprias deliberações. O que não

refletia da mesma forma com os trabalhadores, por estes não possuírem poder de voz,

repetindo o testemunho do ex-trabalhador da usina – Bento Rafael: ―não tinha voz naquele

silenço que defendesse nós‖ (ALEIXO, 1995, p. 278).

Nesta perspectiva precisamos fazer algumas escolhas. Optamos por investigar as

práticas punitivas que apareceram de forma mais frequente nas representações observadas nas

obras memorialísticas e nos relatos de maus tratos, e também nas representações de

resistências notadas nas notícias de fugas presentes nos jornais mato-grossenses.

Generoso Ponce Filho relata sobre o que se passava na Usina Itaicí sobre as práticas de

castigos e punições, e a sua representação apresenta-se da seguinte maneira:

O senhor do Pindaival, a celebérrima fazenda, que como o Itaicy, possui o

tranco e toda a coleção de instrumentos de suplício desse Torquemada do

sertão.

Itaicy é então o centro irradiador daquelas bárbaras expedições punitivas.

A célebre Usina do Cel. Antonio Paes não produz a época, apenas açúcar e

aguardente. Saem dela ordens truculentas, mercenários e bandidos.

...vem-lhe da Usina, dos hábitos medievais da sua Usina, onde sempre foi

senhor de baraço e cutelo (PONCE FILHO, 1952 apud SILVA, 1997, p. 15-

16).

Os elementos trazidos por Ponce Filho – tronco e instrumentos de suplício, expedições

punitivas, hábitos medievais, senhor de baraço e cutelo – são indicativos que as práticas

punitivas e castigos eram realizados na Usina Itaicí. Mesmo que Ponce Filho relatasse com

sentimentos que envolvem o lugar de seu pai, adversário político e crítico ferrenho de Totó

Paes, parece ilustrar práticas que não eram comuns somente na Usina Itaicí, mas em todas as

usinas de açúcar do Rio Abaixo, como já demonstrado pela historiografia regional. Está certo

que a fala de um adversário político de Totó Paes possa ser bastante suspeita, contudo, é fato

201

que essas práticas foram comuns e a ênfase dada por Ponce Filho às barbáries ocorridas em

Itaicí tem a ver com as inúmeras intrigas entre Generoso Ponce (pai) e o Cel Totó Paes.

Mas outras pessoas também fizeram apontamentos que seguem nessa direção, o padre

Vicenci afirma que ―as usinas têm grandes armamentos e munições, e por isso os governos,

politiqueiros e comodistas, sentem-se impotentes para reprimir-lhes os excessos‖ (VICENCI,

s/d, p. 138).

No jornal A Luz de 04/10/1924, o mesmo citado anteriormente, Ignotus descreve

como algumas punições eram aplicadas:

O homem para eles é um bruto e pensam que podem à beneplácito decidir

sobre a vida e a morte do coitado. Entrei no calabouço onde estiveram dois

presos, um deitado no chão com as pernas presas [ilegível], verdadeira

pocilga onde os carrapatos e outras fedentinas os companheiros inseparáveis

destes miseráveis. O segundo de pé com o pescoço preso entre duas

madeiras, mais erguido como Christo na cruz, não para remir o gênero

humano, mas tão somente simples victima de vingança para servir de joguete

por causas fúteis nas mãos de tyrampetes sem alma (A LUZ, 1924, p. 3).

Ignotus continua seu relato dizendo que concorda com o autor do artigo ―Município de

Santo Antonio do Rio Abaixo‖, o qual destaca que os filhos dos camaradas nascem devendo e

desde meninos experimentam a influência do álcool. Mas Ignotus salienta – ―eu acrescentei,

nascem escravos, morrem escravos sem experimentar uma hora as auras deliciosas da

liberdade, nascem com uma alma racional e pode-se dizer que vivem e morrem irracionais‖

(A LUZ, 1924, p. 3).

Ignotus parenta profundamente incomodado com a situação dos trabalhadores das

usinas de açúcar. Ele demonstra-se indignado com as práticas de castigos e torturas, quando

não com as questões de morte. As suas cartas são ricas em elementos que sinalizam uma vida

sofrida e temorosa.

Mas no Jornal A Luz de 22 de agosto de 1924, o Sr. Agrícola Paes de Barros aponta

elementos de resistência. O fato de identificarmos sinais de reação contra essas práticas

mostra o outro lado, isto é, que as pessoas não eram de todo modo passivas a esse tipo de

situação e, mesmo que elas não tivessem liberdade para demonstrar no cotidiano as suas

forças reacionárias, as que conseguiam se expressar de alguma forma traziam esperança, e

significava muito porque representava a voz de um grupo. Do mesmo modo Certeau (1994) se

refere à formalidade das práticas mostrando que elas ―colocam em jogo [...] uma maneira de

pensar investida numa maneira de agir‖ (CERTEAU, 1994, p. 42). Sobre as maneiras de agir

observa-se a partir do seguinte relato:

202

Hoje, o espirito de revolta vem chegando sobre eles, já conhecem alguma

cousa sobre o direito das gentes e por isso, em blocos, bandos, em sinal de

protesto, como os pretos escravos, outrora para os ―Palmares‖ vão em

demanda para à Palestina, a terra prometida, o nosso Araguaia ou a Chapada;

preferem a mata à Capital, julgam-se mais seguros lá, aqui dizem eles,

poderão ir a cadeia e ser ainda espancados, como o Tobias o foi. Andam só a

noite para fugirem às emboscadas; são perseguidos por escoltas como se

esses homens que fogem ao cativeiro fossem feras ou animais bravios (A

LUZ, 1924, p. 1).

O padre Vicenci observou como era administrado o caso de fuga, ele afirma que

―Quando um camarada foge, o patrão o manda perseguir por dois ou três companheiros. Estes

nada percebem pelo trabalho, mas si o fugitivo for preso, é debitado para com a usina em

20$000 mil réis diários (ou mais) por cada dia perdido de cada um seus perseguidores‖

(VICENCI, s/d, p. 137).

Da mesma forma Corrêa Filho (1945) destaca que

caso o tentassem, em fuga desesperada, lá estaria a guarda façanha, pronta a

seguir-lhes o rastro e capturá-los de novo e leva-los ao castigo a que fossem

condenados, pela tentativa de se furtarem à corveia derreante, nos citos em

que lhes era exigida pelo feitor, a tarefa costumeira‖ (CORR~EA FILHO,

1945, p. 33).

Os movimentos de resistência não aparecem com frequência, mas os indícios de fuga

sinalizam que parte dos trabalhadores não aceitava as condições de trabalho e de vida na

usina. As fugas demonstram resistência às deliberações dos proprietários e a não sujeição às

regras impostas.

Nesse contexto, percebe-se que os proprietários da Usina Itaicí agiam como instâncias

mediadoras na formação e adequação dos trabalhadores ao modelo de sociedade coronelística

e ao trabalho em nível industrial, para o qual se dirigiam representações sociais para então

efetivá-las. Entende-se que a Usina Itaicí também era uma instituição histórica que exerceu

uma função pedagógica. A forma para compreender esse ponto de vista em termos histórico e

educacional, e evitando generalizações, foi nos determos na redução da escala de análise no

universo da Usina Itaicí, demarcando como se dava a educação construída no dia a dia.

É preciso considerar nesse processo de representações, apropriações e experiências o

lugar social ocupado pelos proprietários e pelos trabalhadores. Os proprietários falam do lugar

de uma rede oligárquica, uma elite agrária e política, a qual utilizava de um poder legitimado

para formar e adequar os trabalhadores à sociedade coronelística. De outro lado, homens,

203

mulheres e crianças – trabalhadores livres e pobres - apropriavam-se de práticas que

configuravam uma nova forma de trabalho, com horários definidos, tarefas específicas e

cumprimento às regras da usina, uma instituição de controle.

Todo o movimento que envolveu trocas de saberes, experiências, práticas, por meio de

representações e apropriações, foi construído na relação entre os trabalhadores, proprietários e

as famílias. Mesmo em um contexto em que a democracia legitimada ainda se encontrava

mais como uma ideia do que uma realidade, onde o coronelismo predominava enquanto

instância política e social, nos interessa observar como a educação se fazia presente, tanto a

educação de natureza escolar quanto de natureza não escolar. O resultado foi explorar um

pouco mais o campo de análise na área da História da Educação, trazendo para o debate

elementos do cotidiano, instituições e dos atores sociais.

204

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta tese, Usina Itaicí: História, Trabalho e Educação, procurou-se refletir sobre a

história da Usina Itaicí com ênfase nos diferentes modelos de educação vivenciados por

trabalhadores (as) da indústria do açúcar no estado de Mato Grosso no período da Primeira

República, abarcando os processos educativos de natureza escolar e não escolar no cotidiano

de homens, mulheres e crianças inseridos no contexto produzido pelo fenômeno do

coronelismo em Mato Grosso.

O processo do qual tratamos se expressa nos espaços da Usina Itaicí, compreendendo a

educação no espaço da escola e nos ambientes de convivência e trabalho, instâncias estas que

permitiam a produção de cultura e de identidades próprias do modelo de sociedades

coronelísticas.

Este estudo aborda os aspectos da história da educação no período republicano em

Mato Grosso, tendo como foco a escolarização das crianças e a educação para além da escola

numa escala reduzida ao da Usina Itaicí, porém, não menos importante que os estudos

realizados em escala maior.

Fica o registro do grande desafio que foi enveredar por um tema ainda pouco

explorado e de certa forma ousado na tentativa de pensar numa narrativa da educação que

ultrapassasse os limites da escola. Todavia, foi possível encontrar análises importantes acerca

da usina na historiografia de Mato Grosso que nos serviu de ponta pé inicial para adentrar no

universo da usina sob a ótica da educação.

Deste modo, a opção foi a de investigar como a educação se dava no espaço da Usina

Itaicí por meio das categorias espaço, trabalho e escolarização, bem como a de apreender as

estratégias lançadas pelos proprietários na formação e adequação dos trabalhadores no ritmo

de vida da usina.

Nesse núcleo populacional, que em situação de confinamento, desenvolveram-se

experiências educacionais por diferentes agentes: proprietários, trabalhadores braçais,

lavradores, maquinistas, capatazes, professores, músicos, familiares, etc. Desse conjunto, foi

possível examinar por meio de representações e apropriações os processos educativos

escolarizados e os construídos culturalmente através do cotidiano, mediante as experiências

dos atores históricos, do seu modo de ver e fazer, de suas práticas, representadas pelos

aprendizados escolares e pelas trocas no âmbito cultural de costumes, hábitos, condutas e de

técnicas.

205

Entrar no cotidiano, no saber e nas experiências desses grupos e nesse espaço

específico foi possível pela abordagem da história cultural, a qual nos atentou para a

observação dos detalhes, de pormenores, dos aspectos do dia a dia, como as práticas políticas,

o modo de vida na usina, a rotina de trabalho e a escolarização das crianças. Assim, foi

possível adentrar na trama da vida social e cultural desses atores históricos. Desta forma,

procurou-se descortinar as relações cotidianas na intenção de elucidar os diferentes atores e

seus saberes e experiências educativas.

Nesse sentido, retoma-se a questão central a que esta pesquisa procurou responder:

quais as estratégias utilizadas pelos proprietários da usina para formar e adequar os

trabalhadores ao modo de vida da sociedade coronelística?

De modo geral, pudemos confirmar que, a nosso ver, as estratégias utilizadas para

formação e adequação dos trabalhadores (as) e as famílias ao modo de vida na sociedade

coronelística envolvia: 1) criar um espaço de confinamento; 2) criar as próprias regras; 3)

arregimentar os trabalhadores (as) por meio de práticas clientelísticas; 4) ofertar escolarização

para as crianças visando um direcionamento segundo os ensejos dos proprietários da usina; 5)

forjar o sentimento de liberdade num espaço de controle.

A educabilidade das crianças revisitada nesta tese operou-se em torna da educação

escolar, especificamente no contexto da Escola de Itaicí, uma instituição que conduziu o

processo de alfabetização além de implantar aulas de música no currículo escolar. O acesso à

escolarização possibilitava acesso à cultura letrada, no sentido das crianças apreenderem os

processos de leitura, escrita, as operações matemáticas, o ensino de música, ferramentas

necessárias e primordiais nos moldes republicanos e incorporados pelos proprietários da

usina, que não intencionavam somente isso, à nosso ver, a escola nasceu com objetivos

determinados por um projeto civilizador.

A educabilidade de natureza não escolar pôde ser observada com base no que Aleixo

(1995) constatou no contexto da primeira república em Mato Grosso, principalmente em se

tratando do cenário das usinas de açúcar e ambiente de trabalho - ―a educação pela força,

obrigatória, sem que o indivíduo interferisse no seu destino, de moralização pelo trabalho,

através da proposta do enclausuramento nos corpos policiais‖ (ALEIXO, 1995, p. 222). E

mais:

Ao ser conduzido à educação pela força, o homem foi levado a obedecer às

normas, regulamentos, e se submeteu ao poder da hierarquia superior.

Acabou por se tornar um elemento ―útil‖ à sociedade, incorporando as

propostas da força moralizadora pelo trabalho. [....] Então, a educação se

206

configurou como um elemento de controle, agindo como instrumento

disciplinador e, ao mesmo tempo, transformando-o em educando útil ao

capital (ALEIXO, 1995, p. 223).

O controle do tempo e do espaço fazia parte das medidas de disciplinamento. Esse

controle demarcava o limite entre a condição de empregador e empregado e as hierarquias no

geral, pois nenhum espaço é neutro, nem naquele sistema e nem atualmente. Cada lugar tem

suas normas de ocupação. Mais que um lugar, indicava-se também um tempo, dividido entre

as horas de trabalho e horas de lazer, todos controlados, uma vez que este controle reprimia o

ócio, a vadiagem, favorecendo melhor eficiência do uso do tempo para o trabalho.

Além do controle do tempo e do espaço, as formas pelas quais se davam a apreensão

dos afazeres também é outro elemento importante. Nesse sentido, constatou-se que os

trabalhadores, na maioria analfabetos, executavam as suas tarefas por meio das trocas de

experiências que estabeleciam entre eles, mas sob o comando dos proprietários e de seus

funcionários de confiança. Com isso, a educação se materializou por meio da relação desses

atores no espaço da usina, das relações de convivência e da relação de trabalho, pelos objetos

produzidos e pelas técnicas aplicadas, sem deixar de fora os usos e costumes, experiências e

práticas de sociabilidades e principalmente as de controle.

Os castigos, o tronco, os espaços de tortura, bem como, as práticas clientelísticas e a

escola, eram formas de submeter esses trabalhadores (as) ao poder dos proprietários. Eram

formas de mostrar empoderamento e superioridade.

No universo da usina foram desenvolvidas atividades com o caráter de instruir e

educar a população para a vida na usina e para o mundo do trabalho. Tais ensinamentos

aconteciam na escola, nos canaviais, na fábrica, nos ambientes sociais, em momentos de laser

e recreação e nas relações sociais.

No geral, a pesquisa sobre a Usina Itaicí apontou como esse núcleo industrial se

estabeleceu em meio ao contexto histórico do país e do estado de Mato Grosso. É interessante

perceber esse movimento histórico.

Nota-se o predomínio da produção do açúcar que permitiu um expressivo crescimento

econômico do estado e de vários usineiros que inclusive se mantiveram no poder por décadas.

E também, os proprietários da usina não perderam a oportunidade de fazer seu

patrimônio crescer, administrando um complexo industrial imponente e considerado moderno

para os padrões da época, mantendo em seu domínio um contingente de trabalhadores que

lhes eram fiéis.

207

Este entendimento é feito a respeito do domínio que os proprietários da usina tinham

sobre todos os espaços (sociais, culturais, políticos, educacionais e no trabalho) presentes no

núcleo industrial, desde os processos de produção até os processos de socialização dos seus

trabalhadores (as).

Todavia, a concepção de educação no ambiente da Usina Itaicí estava relacionada ao

disciplinamento, difusão de uma ideologia hierarquizada, formação e continuidade para o

trabalho, forjando um pensamento voltado na obediência à ordem hierárquica da usina, que

foram concebidos no sentido de dar continuidade a um projeto de desenvolvimento e

crescimento econômico e político da referida empresa.

Este estudo, por sua vez, nos conduziu por uma trilha que possibilitou novas leituras

de histórias até então adormecidas, preenchendo lacunas na história da educação, e certamente

levantando elementos provocativos para novas investigações, que tendo como inspiração as

contribuições de Maria da Glória Gohn (2006), nos leva a indagar principalmente no campo

da educação não escolar: Onde se educa? Quem são os educadores? Qual a finalidade? Como

se educa? Em qual contexto? O que fabricam?

Enfim, Penso que a conclusão de uma tese segue na direção apontada por Loriga

(2012) que diz quando o historiador volta do passado não é mais o mesmo, ele mudou suas

possibilidades de pensar. Desta forma, finalizamos esta pesquisa dizendo que apesar das

lacunas ainda existentes, este estudo chega ao fim com o entendimento de que fomos

conduzidos pela certeza contida na citação de Michel de Certeau (1994) presente na

introdução desta tese, que é o olhar que faz a história. Agora a narrativa segue a espera de

novas leituras, olhares e interpretações.

208

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SOUZA, R. F. de e VALDEMARIN, V. T. (orgs.). A Cultura Escolar em Debate. Questões

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2005.

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Bottmann. 2. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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FONTES

Ementário

216

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Arquivo Público de Mato Grosso, 1994.

Recenseamento

BRASIL, MINISTÉRIO DA INDÚSTRIA E COMÉRCIO, DIRETORIA GERAL DE

ESTASTÍSTICA. Recenseamento do Brasil de 1920, volume IV, Rio de Janeiro, 1920.

Regulamentos

MATO GROSSO. Governo. Regulamento da Instrução Pública Primária. Arquivo Público

de Mato Grosso – APMT, Cuiabá – MT, 1896.

______. ______ Regulamento da Instrução Pública Primária. Arquivo Público de Mato

Grosso – APMT, Cuiabá – MT, 1910.

______. ______ Regulamento da Instrução Pública Primária. Arquivo Público de Mato

Grosso – APMT, Cuiabá – MT, 1927.

Mensagens

MATO GROSSO, Mensagem à Assembleia Legislativa de Mato Grosso, 1899. APMT.

______. ______ Mensagem à Assembleia Legislativa de mato Grosso, 1901. APMT.

______. ______ Mensagem à Assembleia Legislativa de mato Grosso, 1903. APMT.

Relatórios

MATO GROSSO. Direção Geral da Instrução Pública. Relatório apresentado ao Exmo. Sr.

Dr. Manoel Paes de Oliveira, Secretário de Estado dos Negócios do Interior Justiça e Fazenda,

pelo Major José Estevão Corrêa, Diretor Geral da Instrução Pública do Estado de Mato

Grosso. Cuiabá, 1876. APMT.

______. ______. Relatório de 1878. O Diretor Geral da Instrução Pública, Pe. Ernesto

Camillo Barreto apresenta relatório ao Presidente da Província, Dr. Hermes Ernesto da

Fonseca. Cuiabá, 25 de fevereiro de 1897. APMT.

______. ______. Presidente de Estado. Relatório de 1920. Apresenta relatório Assembléia

Legislativa. Cuiabá, 07 de setembro de 1920. APMT.

Decreto

MATO GROSSO. Estado. Governo. Decreto nº 797, de 14 de março de 1928, fl. 151-152.

Cria uma Escola Ambulante e Mista na povoação de Itaicí no município de Santo Antonio do

Rio Abaixo.

Correspondências

217

SANTO ANTONIO DO RIO ABAIXO. Ofício. De Virgíneo Nunes Ferraz, Manoel da Silva

Fontes, Miguel Angelo de Oliveira Pinto e Luiz da Costa Ribeiro Fontes para os coronéis

Joaquim C. Peixoto de Azevedo, Antonio Manoel Moreira e Dr. João da Costa Marques

referente a conflitos no município. Santo Antonio do Rio Abaixo. 1924. APMT – Lata 1916

A.

SANTO ANTONIO DO RIO ABAIXO. Ofício enviado da Escola Ambulante Mista de Itaicí.

Solicitação de material escolar. 1931. APMT – Caixa 1931 12 C.

SANTO ANTONIO DO RIO ABAIXO. Comunidade de Melgaço. Ata. Solicitação de criação

da Escola de Itaicí. 1910. APMT – Lata 1910 B.

SANTO ANTONIO DO RIO ABAIXO. Ofício enviado da Inspetoria escolar de Melgaço.

Atestado de trabalho referente ao mês de setembro da professora Maria Pereira. 1930. APMT

– Lata 1916/provas escolares.

Jornais

O COMMERCIO. Órgão Particular (Amarílio Alves de Almeida) Cuiabá, 1910-1911. Acervo

BN/APMT/NEDHIR.

A CRUZ. Jornal da Liga Católica, Cuiabá, 1932. Acervo da BN/APMT/NEDHIR.

A LUZ. Órgão Particular. Cuiabá, 1924-1942. Acervo BN/APMT/NEDHIR .

A REACÇÃO. Órgão da Liga Mato-grossense de Livre Pensadores. Cuiabá, 1926-1928.

Acervo BN/NDIHR/ACBM.

O MATTO-GROSSO. Cuiabá, 1917-1930-1932. Acervo NDIHR/BN.

O ESTADO DE MATO GROSSO. Órgão Independente. Cuiabá, 1958. Acervo BN.

REPUBLICANO. Órgão do Partido Republicano Conservador. Cuiabá, 1897 e 1899. Acervo

NDIHR/ ACBM/ BN.

O CORREIO DO ESTADO. Órgão do partido republicano de Mato Grosso. Cuiabá, 1925.

Acervo NDIHR/BN/APMT.

O PHAROL. Particular e literário. Cuiabá, 1909. Acervo NDIHR/BN/APMT.

A PLEBE. Cuiabá, 1927. Acervo NDIHR/BN/APMT.

Testemunhos

SANTO ANTONIO DE LEVERGER. Testemunho. 1995. Relato escrito. Sr. Luiz Pereira

Duarte. Acervo de família.

Catalogo de depoimentos orais: história de vida. (orgs.) Eliane Oliveira Morgado; Nileide

Souza Dourado. Cuiabá – MT. Série: História de vida (2018, no prelo).

218

ANEXOS

Figura 34- Foto mais recente da Usina Itaicí

Fonte: www.rdnonline.com.br

219

Figura 35 - A farmácia

Fonte: http://www.zuccaratto.jor.br/blogs/turismo-e-cia/fit-pantanal-2016-dragagem-de-trecho-do-rio-cuiaba-

pode-gerar-projeto-de-turismo

220

Figura 36 - A Capela da Usina Itaicí

Fonte: http://www.zuccaratto.jor.br/blogs/turismo-e-cia/fit-pantanal-2016-dragagem-de-trecho-do-rio-cuiaba-

pode-gerar-projeto-de-turismo

221

Figura 37 - Relato do Sr. Luiz Pereira Duarte – Ex-aluno da Escola de Itaicí

222

223

Fonte:

224

APÊNDICE TRANSCRIÇÃO

ARQUIVO PÚBLICO DE MATO GROSSO

FUNDO: SECRETARIA DE INSTRUÇÃO PÚBLICA

SÉRIE: ABAIXO ASSINADO

LOCAL: ISINA ITAICÍ

DATA: 1910

LOCALIZAÇÃO DO DOCUMENTO: LATA DE 1910 B, PASTA DA INSTRUÇÃO

PÚBLICA

Exc. Sr. Coronel Pedro Celestino Corrêa da Costa

Os abaixo assinados, representantes de várias classes sociais, todos residentes no

distrito de Melgaço, município de Santo Antonio do Rio Abaixo, vêm com todo o acatamento

levar ao conhecimento de V. Ex. o fato que passam a expor, e para cuja solução pedem a

preciosa atenção de V. Ex..

Sendo já crescido o número de meninos que em toda a zona da Vila de Melgaço e

adjacências deixam de frequentar escola, uns por extrema pobreza dos respectivos pais e

educadores, outros pela distância em que residem do distrito, e já existindo na Usina do

Itaicy uma escola com prédio apropriado para nele funcionar uma escola e material

destinado ao mesmo fim, os abaixo-assinados pedem a V. Ex. que ouvida a autoridade

escolar, se digne a ceder a criação de uma escola na referida usina do Itaicy, cuja instalação

os signatários desta se comprometem a efetuar a expensas próprias.

Compenetrados do interesse que V. Ex. dedica às coisas do ensino, os signatários

confiam que o pedido de melhoramento da V. Ex. a quem apresentam os mais elevados

protestos de estima e consideração.

Dr. Aberto Novis Neves

Francisco Pinto de Oliveira

Francisco de Assis Albuquerque

Apparicio Silvino Peixoto

Jorge Nunes da Conceição

Jeronimo Nunes

225

Joaquim Pinto de Oliveira

Virginio Nunes Ferraz Junior

Olimpio de Assis Pinto

Miguel Angelo de Oliveira Pinto

Joaquim Pinto Guedes

Antonio Fernandes de Mello

Jorge Reiner

Antonio Plinio de Barros

João Lima

Pedro José Machado

Vicente Ferreira de Paula

José Maria Nunes de Campos

Antonio João da silva

Sebastião Barros

Frederico de Assis

João Batista de Assardos

Tamandaré, 5 de junho de 1910.