Urbanismo No Brasil Império - Saúde Pública Em SP (Hospitais, Lazaretos e Cemitérios)

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  • KARINA CAMARNEIRO JORGE

    URBANISMO NO BRASIL IMPRIO:A SADE PBLICA NA CIDADE DE SO PAULO

    NO SCULO XIX (HOSPITAIS, LAZARETOS E CEMITRIOS)

    PUC-CAMPINAS2006

  • 2KARINA CAMARNEIRO JORGE

    URBANISMO NO BRASIL IMPRIO:A SADE PBLICA NA CIDADE DE SO PAULO

    NO SCULO XIX(HOSPITAIS, LAZARETOS E CEMITRIOS)

    PUC-CAMPINAS2006

    Dissertao apresentada como exigncia paraobteno de Ttulo de Mestre em Urbanismo, aoprograma de Ps-Graduao na rea de Arquitetura eUrbanismo, Pontifcia Universidade Catlica deCampinas.

    Orientadora: Profa. Dr. Ivone Salgado

  • 3Ficha CatalogrficaElaborada pelo Sistema de Bibliotecas e

    Informao - SBI - PUC-Campinas

    t711.4098161 Jorge, Karina CamarneiroJ82u Urbanismo no Brasil imprio: a sade pblica na cidade de So Paulo no sculo XIX (hospitais, lazaretos e cemitrios) / Karina Camarneiro Jorge. - Campinas: PUC-Campinas, 2006. 224p.

    Orientadora: Ivone Salgado. Dissertao (mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de Campinas, Centro de Cincias Exatas, Ambientais e de Tecnologias, Ps-Graduao em Urbanismo. Inclui bibliografia.

    1. Cidades e vilas So Paulo (SP) Sc XIX. 2. Sade pblica. 3. Cemitrios. 4. Hospitais. 5. Hansenase Hospitais. I. Salgado, Ivone. II. Pontifcia Universidade Catlica de Campinas. Centro de Cincias Exatas, Ambientais e de Tecnologias. Ps-Graduao em Urbanismo. III. Ttulo.

    22.ed.CDD t711.4098161

  • KARINA CAMARNEIRO JORGE

    nismo no Brasil Imprio: a sade Pblica na,de de So Paulo no sculo XIX: (Hospitais,

    Lazaretos e Cemitrios)"

    Dissertao apresentada ao Curso deMestrado em Urbanismo do Centro de CinciasExatas, Ambientais e de Tecnologias daPontifcia Universidade Catlica de Campinascomo requisito parcial para obteno do ttulode Mestre em Urbanismo.rea de Concentrao: Urbanismo.Orientadora: Prof!!. Dr.!! Ivone Salgado.

    defendida e aprovada em 13 de Dezembro de 2006 pela Comisso; .constituda dos seguintes professores:

    ~~

    e SalgadoDissertao e Presidente da Comisso Examinadorarsidade Catlica de Campinas

    p

    c

  • 5Aos meus queridos pais, Rosa e Nicolau,pela dedicao e empenho que tiveram

    e por possibilitarem que este importante passo fosse dado.

  • 6AGRADECIMENTOS

    Aos meus queridos pais, pelo carinho, ateno e apoio durante esses anos de pesquisa, pois,mesmo longe, estiveram intimamente envolvidos com todas as etapas desse trabalho.

    Aos meus irmos, Thais e Nicolau, pela pacincia, apoio e assistncia nos momentos denecessidade.

    Ao meu querido noivo, Leonardo, pela pacincia e incentivo nos momentos difceis do trabalho eprincipalmente, pelo carinho e dedicao com que me ajudou nos momentos finais dessemestrado.

    amiga Carolina Giordano, pelos momentos que dividimos, desde as nossas formaes nagraduao, como iniciantes cientficas e principalmente nesse trabalho. Companheira de pesquisanos arquivos, e todas as semanas nas reunies do grupo, ela parte desta pesquisa.

    minha querida orientadora, Ivone Salgado, pela dedicao, pacincia, e pelo carinho com queme orientou, desde a iniciao cientfica at este mestrado, sempre envolvida e comprometidacom todas as etapas do trabalho, tendo feito de mim a pesquisadora que sou.

    FAPESP, pela Bolsa de Mestrado, que foi de extrema importncia para a execuo dessapesquisa.

    Prof.Dr. Margareth da Silva Pereira, professora na UFRJ e coordenadora do grupo CulturaUrbana e Pensamento Urbanstico no Brasil, pela assessoria e disposio em me orientar naspesquisas realizadas nos arquivos do Rio de Janeiro.

    banca examinadora, Maria Stella Martins Bresciani e Paulo Csar Garcez Marins, peladisponibilidade e pela dedicao que prestaram ao examinarem este trabalho, cujas orientaesagregaram significativamente concluso deste mestrado.

    todos os funcionrios dos arquivos e bibliotecas consultados, pelo atendimento e auxilio naspesquisas.

    colega de pesquisa, Adriane Baldin, pela colaborao na pesquisa, acrescentando importantesinterpretaes, principalmente relacionadas s fotografias de Milito.

    amiga Ana Paula, pela amizade, incentivo e pelos momentos inesquecveis que dividimos nasdisciplinas cursadas em So Paulo e So Carlos.

    A todos aqueles que de alguma forma contriburam para a concluso deste mestrado.

  • 7RESUMO

    JORGE, Karina C. A Sade Pblica na Cidade de So Paulo no Sculo XIX Hospitais,

    Lazaretos e Cemitrios. Campinas, 2006. 231f. Dissertao (Mestrado) Programa de

    Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo, Pontifcia Universidade Catlica de

    Campinas. Campinas, 2006.

    O propsito dessa pesquisa foi o de investigar como na cidade de So Paulo, no decorrer

    do sculo XIX, a co-participao dos saberes mdicos, da engenharia, da arquitetura e

    a atuao dos administradores implicaram na modificao no tecido urbano da cidade e

    definiram uma nova estrutura de organizao e funcionamento. Investiga, sobretudo, o

    debate e as prticas relativas implantao dos hospitais, lazaretos, cemitrios e casas

    de misericrdia atravs do estudo histrico urbanstico da cidade de So Paulo.

    Procurou-se perceber como as prticas urbanas implementadas pelos administradores

    atravs dos mdicos e engenheiros aos seus servios estavam fundamentadas na teoria

    miasmtica. Estes edifcios, segundo a referida teoria, conteriam matria orgnica que ao

    se decompor exalavam miasmas e, portanto, deveriam se localizar fora do meio urbano

    definido na poca. Os estudos foram feitos sob o ponto de vista da sade pblica,

    investigando a origem e formao dos edifcios relacionados mesma e a relao desses

    edifcios com o meio urbano. Destaca-se nessa pesquisa tambm, como as prescries

    presentes nos tratados de medicina e arquitetura sobre a salubridade das cidades foram

    transferidas para a legislao, atravs das Posturas Municipais. Mediante a lei de 30 de

    agosto de 1828, que extinguiu os cargos de Fsico-mor e Cirurgio-mor, as Cmaras

    Municipais passaram a ser responsveis pela sade pblica e, atravs do Decreto

    Imperial de 1 de outubro de 1828, estabeleceu-se a forma das eleies dos membros

    das Cmaras Municipais e incluiu-se o primeiro Cdigo de Posturas na lei orgnica das

    respectivas Cmaras.

    Termos de indexao: configurao urbanstica, So Paulo, sculo XIX, sade pblica,

    hospitais, lazaretos, cemitrios, casas de misericrdia, teorias mdicas, salubridade.

  • 8ABSTRACT

    JORGE, Karina C. The public health in the city of So Paulo in the century XIX

    Hospitals, Isolation Hospitals e Cemiteries. Campinas, 2006. 231f. Dissertao

    (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo, Pontifcia

    Universidade Catlica de Campinas. Campinas, 2006.

    The intention of this research was to investigate as in the city of So Paulo, in elapsing of

    century XIX, the co-participation of knowing doctors to them, of engineering, of the

    architecture and the performance of the administrators they had implied in the

    modification in the urban configuration of the city and had defined a new structure in

    organization and functioning. It investigates, over all, the debate and practical the relative

    ones to the implantation of the hospitals, isolation hospitals, cemeteries and saint marries

    of mercy through the urban historical study of the So Paulo city. It tried to perceive how

    the urban practice implemented by the administrators through the doctors and engineers

    were based on the miasma theory. These buildings, according to related theory, would

    contain organic substance that when decomposing, exhaled miasmas, and therefore, they

    would have to be situated outside of the urban defined borders at that time. The studies

    had been made under the point of view of the public health, investigating the origin and

    formation of the buildings relating them, and the relation of these buildings with the urban

    way. It is also distinguished in this research, how the prescriptions in the medicine and

    architecture treaties about the salubrious of the cities, had been transferred to the

    legislation, through the Municipal Laws. By means of the law off August 30th of 1828, that

    it extinguished the positions of Physicist and Surgeon, the City councils had started to be

    responsible for public health and, through the Imperial Decree of October 1st of 1828,

    established it form of the elections of the members of the City councils and included the

    first Code of Positions in the organic law of the respective Chambers.

    Index terms: urban configurations, So Paulo, XIX century, public health, hospitals,isolation hospitals, cemeteries, saint marries of mercy, medical theories, salubrious.

  • 9SUMRIO

    1. INTRODUO...................................................................................................09

    2. AS TEORIAS MDICAS NA FORMAO DAS CIDADES.............................132.1. Os Contagionistas e os Infeccionistas.........................................................132.2. Os Preceitos Sanitrios e as Condies de Salubridade nas CidadesEuropias............................................................................................................152.3. O Higienismo nos Tratados de Medicina e de Arquitetura.......................... 192.4. As Teorias Mdicas no Brasil Imprio..........................................................22

    3. O DISCURSO HIGIENISTA EM SO PAULO NO INCIO DO SCULO XIX...263.1. A Ao da Administrao na Sade Pblica no Incio do Sculo XIX e oCombate Varola...............................................................................................273.2. A Assistncia Hospitalar em So Paulo A Santa Casa de Misericrdia, oHospital Real Militar e o Lazareto .......................................................................353.3. A Presena da Famlia Real no Brasil e as Mudanas no Controle daHigiene Pblica nas Cidades - A Implantao do Hospital da Santa Casa deMisericrdia na Chcara dos Ingleses................................................................663.4. A Atribuio da Responsabilidade sobre a Sade Pblica s CmarasMunicipais e as Comisses de Vistorias na Cidade de So Paulo.....................83

    4. ATUAO DOS MDICOS SANITARISTAS NO COMBATE S PRTICASCONSIDERADAS INSALUBRES: OS NOVOS MELHORAMENTOS..................88

    4.1. A Prtica de Enterramento no Interior dos Templos - O Cemitrio dos Aflitose dos Protestantes...............................................................................................914.2. As Epidemias e a Construo do Cemitrio Pblico da Consolao. .......1134.3. A Criao da Junta Central de Higiene, a Inspetoria de Higiene em SoPaulo e as Novas Melhorias O Hospcio de Alienados de So Paulo...........142

    5. AS NOVAS DESCOBERTAS CIENTFICAS E O AVAN DOSMELHORAMENTOS............................................................................................153

    5.1. A Busca por Melhorias na Administrao de Joo Teodoro Xavier de Matose O Cdigo de Posturas de 1875......................................................................1555.2. A Implantao de Novas Estruturas Hospitalares na Cidade: A BeneficnciaPortuguesa, o Hospital de Isolamento e o Novo Hospital da Santa Casa deMisericrdia no Arouche....................................................................................1635.3. A criao da Inspetoria de Higiene no final do sculo XIX e o Novo Cdigode Posturas de 1886.........................................................................................175

    6. CONCLUSO.................................................................................................181

    7. REFERNCIAS...............................................................................................189

    8. ANEXOS..........................................................................................................1928.1. Mapas.........................................................................................................1938.2. Documentos...............................................................................................199

    9. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA.....................................................................218

  • 10

    1. INTRODUO

    O sculo XVIII, especialmente na Europa, esteve marcado pelas

    discusses entre mdicos, engenheiros, arquitetos e administradores sobre a

    salubridade das cidades. As teorias mdicas sinalizavam sobre os agentes

    causadores das grandes epidemias nas cidades e, pautadas na teoria

    miasmtica, condenavam tanto a permanncia no interior da cidade de alguns

    edifcios julgados como propagadores das doenas, tais como hospitais,

    matadouros e lazaretos, assim como algumas prticas, como o depsito de lixo

    nas ruas ou os sepultamentos no interior dos templos, pois os corpos em

    putrefao seriam considerados produtores de miasmas pestilentos.

    Desta forma, os arquitetos, os engenheiros e os administradores,

    debatiam sobre uma nova maneira de pensar e intervir nas cidades. Em pases

    como a Inglaterra e a Frana, esses debates vinham sendo feitos, desde o sculo

    XVIII. O francs Pierre Patte, atravs de um tratado de arquitetura, sintetizou as

    reflexes do perodo e sistematizou, talvez pela primeira vez, as possveis

    respostas aos problemas que a cidade insalubre europia do sculo XVIII

    apresentava. Os saberes cientficos que se definiram a partir de ento, sobre os

    modos de operar a salubridade das cidades, eram difundidos entre os mdicos,

    os engenheiros, os arquitetos e os administradores da cidade, que passaram a

    coordenar as decises de uma forma edilitria, levando, segundo Alain Corbain,

    ao triunfo da concepo funcional da cidade-mquina que incitar uma toalete

    topogrfica, indissocivel da toalete social.

    Essas teorias difundidas, especialmente na Europa, repercutiram

    tambm no Brasil. Mediante o debate sobre a sade pblica, as cidades

    comeam a ser repensadas e redesenhadas pelo corpo de mdico e de

    engenheiros, assim como pela edilcia citadina, definindo-se uma nova

    configurao urbanstica s cidades.

  • 11

    O propsito desta pesquisa foi o de investigar como na cidade de So

    Paulo, no decorrer do sculo XIX, a co-participao dos saberes mdicos, da

    engenharia, da arquitetura e a atuao dos administradores implicaram na

    modificao no tecido urbano da cidade e definiram uma nova estrutura de

    organizao e funcionamento.

    O presente trabalho pretendeu, sobretudo, investigar o debate e as

    prticas relativas implantao dos hospitais, lazaretos, cemitrios e casas de

    misericrdia atravs do estudo histrico urbanstico da cidade de So Paulo.

    Procurou-se perceber como as prticas urbanas implementadas pelos

    administradores atravs dos mdicos e engenheiros aos seus servios estavam

    fundamentadas na teoria miasmtica. Estes edifcios, segundo a referida teoria,

    conteriam matria orgnica que ao se decompor exalavam miasmas, e portanto,

    deveriam se localizar fora do meio urbano definido na poca. Os estudos foram

    feitos sob o ponto de vista da sade pblica, investigando a origem e formao

    dos edifcios relacionados mesma e a relao dos mesmos com o meio urbano.

    Pretendemos destacar tambm, como as prescries presentes nos

    tratados de medicina e arquitetura sobre a salubridade das cidades foram

    transferidas para a legislao da cidade, atravs das Posturas Municipais.

    Mediante a lei de 30 de agosto de 1828, que extinguiu os cargos de Fsico-mor e

    Cirurgio-mor, as Cmaras Municipais passaram a ser responsveis pela sade

    pblica e, atravs do Decreto Imperial de 1 de outubro de 1828, estabeleceu-se a

    forma das eleies dos membros das Cmaras Municipais e incluiu-se o primeiro

    Cdigo de Posturas na lei orgnica das respectivas Cmaras.

    As questes sanitrias formavam a base das, assim denominadas,

    Posturas Policiais e buscavam assegurar a sade pblica da cidade com

    dispositivos legais fundamentados no saber especializado dos mdicos

    higienistas e nos preceitos tcnicos dos engenheiros. Mediante essas posturas

    procurava-se modificar tudo aquilo que era considerado, segundo as teorias de

    salubridade da poca, pernicioso sade da populao.

  • 12

    Porm algumas dessas modificaes no aconteceram de forma

    simples, principalmente quando se tratava de erradicar comportamentos

    costumeiros bastantes arraigados da populao e de interferir nos interesses

    privados, como foi o caso da prtica de enterramento no interior dos templos.

    Assim, podemos perceber no decorrer de todo o sculo XIX o esforo, dos

    profissionais ligados diretamente sade pblica, em conformar a cidade em

    moldes considerados modernos e civilizar a populao atravs da erradicao de

    hbitos costumeiros, incutindo-lhes urbanidade de acordo com a noo de

    Polcia em seu significado setecentista (BRESCIANI, 2006).1

    A pesquisa foi realizada atravs da investigao da bibliografia

    existente sobre o assunto, onde foram analisadas as diferentes posies dos

    autores sobre a discusso presente na pesquisa. Na investigao foram utilizados

    livros, peridicos, trabalhos acadmicos (dissertaes de mestrado, teses de

    doutorado), catlogos, almanaques. Tambm utilizamos material iconogrfico

    (fotos, gravuras, desenhos e mapas) referente ao perodo procurando analisar

    uma nova definio da malha urbana.

    Analisamos as narrativas sobre a histria da cidade de So Paulo

    baseadas nos discursos dos chamados memorialistas, tanto por seu volume

    significativo quanto pela recorrncia de seus estudos, e tambm os trabalhos

    recentemente produzidos sobre as questes urbanas e do urbanismo numa

    perspectiva histrica, abarcando olhares de arquitetos, urbanistas e de

    historiadores, com suas especificidades e complementaridades.

    Foram realizadas pesquisas em documentaes primrias,

    especialmente no Arquivo Municipal Washington Luis, no Arquivo do Estado de

    So Paulo, no Arquivo Histrico da Assemblia Legislativa de So Paulo e na

    Biblioteca Municipal Mrio de Andrade. Estas pesquisas permitiram nos colocar

    em contato com as Atas da Cmara Municipal de So Paulo; com os Cdigos de

    Posturas da Cidade de So Paulo; com os Relatrios dos Presidentes da

    1 BRESCIANI, Maria Stella Martins: Texto Particular. So Paulo: 2006.

  • 13

    Provncia de So Paulo; com as Correspondncias entre a Assemblia Legislativa

    da Provncia de So Paulo e a Cmara Municipal de So Paulo; e com os

    Relatrios da Inspetoria de Higiene na Provncia.

    Outros arquivos de extrema importncia para o entendimento do

    funcionamento poltico-administrativo da cidade de So Paulo no perodo, foram

    os localizados no Rio de Janeiro. Atravs das pesquisas realizadas na Biblioteca

    Nacional do Rio de Janeiro, na Academia Nacional de Medicina, nas Bibliotecas

    da Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Biblioteca da Fundao Oswaldo

    Cruz, pudemos pesquisar os Annaes da Academia de Medicina da poca, o

    Jornal O Patriota, e demais documentaes interessantes para o desenvolvimento

    desta pesquisa.

  • 14

    2. AS TEORIAS MDICAS NA FORMAO DAS CIDADES

    No decorrer do sculo XIX, mdicos e arquitetos adotavam com

    freqncia os princpios higienistas e sanitrios correntes em vrios pases

    europeus no sculo XVIII. Esses princpios eram traduzidos em dispositivos

    legais mediante os quais se faziam as intervenes nas cidades, desde a primeira

    metade do sculo XIX. A teoria miasmtica, de larga aceitao em todo o

    oitocentismo, e a subseqente teoria microbiana estabeleciam formulaes e o

    modo de aplicao de suas noes bsicas na definio do traado urbano, na

    reforma e construo de edifcios pblicos e particulares e nos hbitos das

    pessoas.

    Alain Corbain, se propondo a fornecer subsdios para a construo de

    uma verdadeira psico-histria, realiza estudo crtico sobre as prticas das

    autoridades francesas nos sculos XVIII e XIX e de seus discursos cientficos e

    normativos sobre a cidade. Para o autor, estas prticas se implementam a partir

    de uma percepo olfativa e revelam uma difcil separao entre o real e o

    imaginrio. Neste perodo, se desenvolve uma nova sensibilidade onde o fedor e

    a corrupo pelo excremento acumulado colocam em questo a existncia da

    cidade (CORBIN, 1987, p.43).2 A histria da morte tornar-se-ia ento uma

    obsesso entre os especialistas do sculo XVIII e orientaria a prtica higienista no

    sculo XIX.

    2.1. Os Contagionistas e os Infeccionistas

    Nesse contexto, no sculo XIX, as teorias mdicas sobre a origem e a

    expanso das doenas infecciosas, no que se refere ao debate terico e s

    concepes sobre o tema, distinguiam basicamente dois grupos de profissionais

    da sade: os contagionistas e os infeccionistas. Os contagionistas defendiam que

    a trasmisso das doenas acontecia pelo contgio, ou seja, pelo contato direto ou

    2 CORBIN, Alain: Saberes e odores. O olfato e o Imaginrio Social nos sculos XVIII e XIX. SoPaulo: Companhia da Letras, 1987. p.43.

  • 15

    indireto com objetos contaminados pelos doentes, ou pela respirao do ar que

    circundava o doente, que seriam suficientes para disseminar a doena a outras

    pesssoas. Uma vez produzido o contgio, no era necessria, para se propagar,

    a interveno das causas que o haviam originado; ele se reproduzia por si s, no

    obstante as condies atmosfricas reinantes. A varola era um exemplo muito

    citado pelos mdicos defensores da teoria contagionista, sendo considerada uma

    molstia eminentemente contagiosa. Os infeccionistas entendiam que as doenas

    eram transmitidas mediante a ao que substncias animais e vegetais em

    putrefao exerciam no ar ambiente, ou seja, a ao dos miamas no ar

    atmosfrico. A infeco, portanto, no atuava seno na esfera do foco do qual se

    emanavam os miasmas mrbidos, e a doena podia se propagar de um indivduo

    doente para outro so, na medida em que agia sobre o ar ambinete que os

    circundava. A malria era tida como um doena tipicamente infecciosa.

    Ambos derivavam suas concepes de uma fuso de antigos

    conceitos e observaes empricas. No decorrer do tempo, os dois pontos de

    vista se amalgamaram, produzindo uma posio intermediria. Em conseqncia,

    na maior parte do sculo XIX, podem-se distinguir trs posies tericas: a teoria

    miasmtica, o contagionismo estrito e o contagionismo limitado.

    Na teoria miasmtica, os surtos epidmicos de doenas infecciosas

    seriam causados pelo estado da atmosfera. As condies sanitrias ruins criariam

    um estado atmosfrico local, que viria a causar as doenas. No contagionismo

    estrito, os contgios especficos seriam as nicas causas de infeces e doenas

    epidmicas. J o contagionismo limitado era uma conformao entre a teoria

    miasmtica e a contagionista, pois embora seus adeptos admitissem que as

    doenas eram contagiosas em virtude dos agentes contagiantes, os proponentes

    dessa viso sustentavam que esses s poderiam agir em conjuno com outros

    elementos, como o estado da atmosfera, as condies do solo e os fatores

    sociais. 3

    3 ROSEN, George: Uma Histria da Sade Pblica. So Paulo: Ed. UNESP, 1994. p.223.

  • 16

    Foram os filsofos infeccionistas, que entendiam que as doenas

    eram transmitidas pela ao dos miasmas, que acabaram por produzir o

    arcabouo ideolgico bsico das reformas urbanas realizadas em vrias cidades,

    principalmente a partir da segunda metade do sculo XIX.

    As intervenes urbansticas adotadas pelo corpo mdico e pelo

    corpo de engenheiros responsveis pelo saneamento das cidades no Brasil

    durante o sculo XIX, encontram a sua fundamentao nessas teorias mdicas. A

    anlise dos tratados de medicina e dos tratados de arquitetura permite investigar

    como o discurso dos diferentes corpos profissionais se afinava.

    Desde meados do sculo XVIII, em diversos pases da Europa, as

    formulaes das referidas teorias ganharam ares de cincia. A teoria miasmtica

    fundamentava as propostas de interveno na cidade. Pases como Inglaterra,

    Frana e Alemanha passaram, no decorrer do sculo XIX, por reformas sanitrias

    que envolviam desde reformas urbanas de alargamento de vias, dessecamento

    de reas midas, implantao de redes de captao de esgoto sanitrio e de

    distribuio de gua potvel, at a criao de normas municipais que regulavam o

    uso da cidade, como tambm leis trabalhistas em prol da sade dos

    trabalhadores. Essas reformas contaram com a co-participao dos saberes

    mdicos e de engenharia. Assim como em alguns pases da Europa, tambm na

    Amrica existiam essas preocupaes com a salubridade das cidades, visando

    erradicar as to temidas epidemias que as assolavam e civilizar a sociedade.

    2.2. Os Preceitos Sanitrios e as Condies de Salubridade nas CidadesEuropias

    Antes de meados do sculo XVIII, em conseqncia das rpidas

    mudanas socioeconmicas de alguns pases europeus, a preocupao com as

    condies sanitrias das cidades ganhou uma dimenso diferente da que existia

    at ento. O rpido aumento da populao fez com que cidades, especialmente

    as da Inglaterra, comeassem a se deparar com condies precrias de vida da

  • 17

    populao. As epidemias e suas possveis causas norteavam as aes pblicas

    em busca de melhorias.

    Conforme George Rosen, em finais do sculo XVIII a ateno pblica

    comeou a ter a convico de que os problemas de sade e as doenas eram

    fenmenos sociais de muita importncia tanto para o indivduo como para a

    comunidade. Na Inglaterra, as idias de Jeremy Bentham forneceram o

    sustentculo terico para a poltica social e sanitria britnica, ao longo da maior

    parte do sculo XIX, ajudando assim a criar o movimento da moderna sade

    pblica.

    Segundo padres modernos, muitas cidades do sculo XVIII eram

    consideradas extremamente insalubres, sujas e impregnadas de odores

    nauseantes. Ruas e vielas viviam sujas e comumente arremessavam-se, pelas

    portas e janelas, guas de esgoto e refugos domsticos. Abatiam-se os animais

    em locais pblicos (ROSEN, 1994, p.127) Podemos verificar, nos versos do

    ingls Jonathan Swift, um retrato da realidade de que estamos falando:

    De todas as partes as sarjetas inchadas afluem, E enquantoavanam, ostentam seus trofus. Imundcies de todas as cores eodores parecem contar, Pelo aspecto e pelo cheiro, de que ruavelejaram. Refugos das tendas dos aougueiros, bosta, tripas esangue, Cezinhos afogados, arenques fedidos, todosencharcados na sujeira, Gatos mortos e folhas de nabo, rolamcorrente abaixo (ROSEN, 1994, p.127). 4

    A partir de 1760, primeiro Londres, e depois outras comunidades,

    desenvolveram e efetivaram esquemas para melhoramentos pblicos. As vias,

    antes estreitas e tortuosas, foram alargadas e tornadas planas. As ruas foram

    drenadas, pavimentadas e iluminadas. O exemplo de Londres se espalhou para

    as demais provncias e cidades, servindo de modelo para os outros pases.5

    4 ROSEN, George: Uma Histria da Sade Pblica. So Paulo: Ed. UNESP, 1994. p.127.5 Idem.

  • 18

    Segundo Maria Stella Bresciani (2006), podemos atribuir boa parte da

    orientao da poltica sanitria formulada e aplicada na Inglaterra Edwin

    Chadwick. Seguidor das idias de Jeremy Bentham, as quais citamos

    anteriormente, Chadwick avaliou os custos das epidemias em mortes de adultos e

    faltas ao trabalho e defendeu a adoo de medidas preventivas, alegando que

    seriam menos onerosas. Em suas pesquisas, a correlao entre os ambientes

    insalubres e as doenas estabelece uma parceria entre os mdicos, no cuidado

    dos corpos, e os engenheiros, nas aes de saneamento urbano. As aes dos

    mdicos e dos engenheiros combinavam a inspeo dos bairros e das moradias

    operrias, onde tinha havido mais vtimas da doena, com a formao de mapas

    dessas reas, de forma que, ao abstrair a materialidade da cidade, tornava-se

    possvel reduzir o ambiente a dados tcnicos, o que possibilitava traar rotas de

    interveno apoiadas em preceitos sanitrios.6

    Em finais do sculo XVIII e no incio do XIX, as condies de vida

    urbana nessas cidades passaram por uma melhora considervel, apesar de ainda

    haver muito que se fazer. No entanto, quando, sob o impacto do industrialismo, as

    cidades se desenvolveram em um ritmo cada vez mais acelerado, e no se

    conseguiu regular ou controlar este processo, os males suplantaram os benefcios

    iniciais.

    O interesse pela sade pblica como tema de poltica pblica entrou

    no continente europeu mediante a criao do conceito de polcia sanitria. Esse

    modelo de interveno estatal na sade teve suas origens, segundo Rodolpho

    Telarolli Junior, na Alemanha absolutista e cameralista do sculo XVIII, como

    resposta s demandas do poder nacional por uma populao densa e saudvel,

    sob o controle do governo. Inicialmente, essa polcia pretendia registrar, proteger

    e regular a populao, porm, sob a nfase do aumento do poder do Estado, em

    vez de pela melhoria nas condies de vida da populao. Esse modelo estaria

    logo superado pelo processo de industrializao, permanecendo de modo limitado

    na Europa, no mais como um rudimento de poltica social, mas como uma

    poro de medidas com um objetivo especfico: o controle administrativo das

    6 BRESCIANI, Maria Stella Martins: Texto Particular. So Paulo: 2006.

  • 19

    doenas transmissveis, mediante a organizao de mdicos, o saneamento do

    meio e a assistncia aos indigentes.7 sob essa conformao, mais localizada e

    voltada a um conjunto de tcnicas de controle de epidemias, que ser utilizado o

    modelo da polcia sanitria, em So Paulo, mais tarde.

    Segundo George Rosen (1994, p.136), alguns mdicos, influenciados

    pelas doutrinas dos filsofos polticos e dos tericos da cincia poltica, adotaram

    esse conceito de polcia e comearam a aplic-lo aos problemas de sade. Os

    estados germnicos se empenharam em aplicar esse conceito aos grandes

    problemas de sade, o qual teria alcanado seu pice nas obras de Johann Peter

    Frank (1748-1821) e Franz Anton Mai (1742-1814).8 O clnico, professor de

    medicina e administrador de hospitais, Peter Frank, conhecido como um

    pioneiro da sade pblica e da medicina social, tendo concebido, em 1779, um

    plano sobre as medidas que a administrao deveria tomar para proteger a sade

    pblica, mediante o conceito de polcia mdica. Nesse plano, constitudo de seis

    volumes, intitulado System, o autor afirma que no existe tarefa mais vital para as

    autoridades municipais do que a de manter limpas as cidades. Sobre os temas

    que nos interessam desenvolver nesta pesquisa, Frank discorre em seu plano, em

    trs volumes suplementares elaborados em 1822, 1825 e 1827, acerca das

    doenas epidmicas, comunicveis, e dos hospitais.

    Em uma tentativa de colocar em prtica as idias de Frank, o mdico

    e humanitarista, Franz Anton Mai, elaborou um esboo de um cdigo de sade,

    em 1800, dando maior nfase educao sanitria, no qual ele afirmava que os

    mdicos, parteiras e outros profissionais ligados sade pblica seriam como

    educadores sanitrios naturais e, portanto, deveriam instruir a populao sobre

    como manter e promover a sade.9 Embora este cdigo no tenha sido

    executado, as realizaes de Frank e Mai representam um ponto importante no

    desenvolvimento e na tentativa de implementao de uma poltica mdica.

    7 TELAROLLI JNIOR, Rodolpho: Poder e Sade As epidemias e a formao dos servios desade em So Paulo. So Paulo: Ed. UNESP, 1996. p.93 - 94.8 Conforme literatura consultada de George Rosen, ao que se sabe o termo polcia mdica foiutilizado pela primeira vez por Wolfgang Thomas Rau (1721-1772), em 1764.9 Ver mais sobre o tema em: ROSEN, George. Uma Histria da Sade Pblica. So Paulo: Ed.UNESP, 1994. p.136.

  • 20

    Esses problemas fundamentais sobre a organizao sanitria das

    cidades, definidos por Johann Peter Frank e pelos outros criadores deste

    conceito, sero enfrentados especialmente pela Frana e pela Inglaterra, no

    decorrer do sculo XIX, desenvolvendo-se e aplicando-se polticas de sade no

    mbito mais amplo, em esfera nacional.

    2.3. O Higienismo nos Tratados de Medicina e de Arquitetura

    Um saber erudito pautava a ao dos tcnicos e autoridades pblicas,

    que se propunham - e acreditavam ser capazes de - dar respostas adequadas

    aos novos desafios colocados pela cidade, j no sculo XVIII. Esses especialistas

    em questes urbanas acabaram por atribuir s cidades europias, no sculo

    XIX, sua configurao moderna, com base em dispositivos legais subsidiados por

    teorias e tcnicas em estreita sintonia com o que se apresentava de mais

    avanado no conhecimento cientfico. Assim, ao longo do sculo XIX, o dilogo

    entre especialistas de formao diversa em especial, arquitetos, mdicos

    higienistas e engenheiros sanitaristas deu lugar a um saber-atuar sobre a

    materialidade dos ncleos urbanos, trazendo, para o campo de ao,

    especialistas sobre as cidades. Segundo Foucault, na poca Moderna:

    [...] os mdicos eram, de certa forma, especialistas do espao.Eles formulavam quatro problemas fundamentais: o daslocalizaes [...], o das coexistncias [...], o das moradias [...], odos deslocamentos. Eles foram, juntamente com os militares, osprimeiros administradores do espao coletivo.(FOUCAULT, 1984,P.211).10

    Um dos tratados, no campo da medicina, que muito marcou o debate

    sobre a teoria mdica do perodo, a teoria miasmtica, foi o de Vicq dAzir, doutor

    em medicina, membro da Acadmie Francaise e da Academie de Sciences e,

    ainda, secretrio da Socit Royale de Mdicine. Em um tratado mdico de

    grande amplitude, com mais de 20 volumes, estaria includo o seu Essai sur les

    10 FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1984. p.211. 4 edio.

  • 21

    lieux et les dangers des sepultures, publicado em 1778 11. Esse tratado circulou

    no Brasil, visto que foi encontrado um exemplar completo, uma verdadeira

    enciclopdia, com seis volumes, no real Gabinete Portugus de Leitura no Rio de

    Janeiro. Nesse tratado, Vicq dAzir defende a necessidade de distanciar as

    sepulturas dos lugares habitados pelos homens, baseando-se nos danos aos

    quais eles estariam expostos pelas emanaes dos cadveres. Vicq dAzir

    procura demonstrar, pela convico de provas fsicas, os perigos das inumaes

    nas igrejas e no interior das reas amuralhadas da cidade, desenvolvendo os

    princpios da teoria miasmtica que fundamentava as propostas sobre o lugar

    adequado na cidade para os edifcios que exalavam mau cheiro12.

    Na teoria miasmtica, segundo Vicq dAzir, a fermentao era um

    movimento prprio das substncias vegetais e animais, ns quais a experincia

    havia demonstrado que degenerariam cedo, atravs da putrefao, se uma fora

    orgnica, cuja natureza era desconhecida, no interrompesse os efeitos dela.

    medida que a fermentao avanasse, o ar elementar se espalharia, sua livre

    comunicao com o ar atmosfrico lhe transmitiria todas as suas propriedades,

    dissolvendo-se e se tornando cada vez mais rarefeito. Isto diminuiria a aderncia

    das partes dos corpos nos quais se faria este trabalho, e, ao se desprender, esse

    ar levaria consigo as molculas, as mais sutis, sejam oleosas, sejam inflamveis,

    que ficariam em suspenso na atmosfera. O ar assim carregado de emanaes

    ptridas, se tornaria necessariamente mortal, se as exalaes diversas que

    emanam de certos corpos no corrigissem estes diferentes vcios, e se os ventos

    no dissipassem aos princpios de sua corrupo. Se o ar infectado ficasse

    parado e no se renovasse jamais e, principalmente, se ele fosse respirado por

    muito tempo, conseqncias danosas poderiam ser esperadas.

    11 VICQ DAZIR. Essai sur les lieux et les dangers des sepultures. in: Oevres de Vicq dAzir.Paris : L. Duprat-Duverger, 1805. Tome sizime. Trata-se de um tratado de medicina com seisvolumes, cujo exemplar consultado encontra-se no Real Gabinete Portugus de Leitura do Riode Janeiro.12 SALGADO, Ivone. A Cultura mdica nos Tratados de Arquitetura. Relatrio de pesquisa.Pontifcia Universidade Catlica de Campinas. Campinas, maro, 2004.

  • 22

    Para Vicq dAzir, se estivssemos convencidos desses princpios,

    compreenderamos facilmente por que todos os lugares subterrneos, baixos,

    pantanosos e cercados de montanhas e densas florestas, seriam pouco salubres;

    tambm por que as doenas seriam to freqentes e quase todas malignas nos

    lugares onde o ar estivesse impregnado por partculas ftidas.13

    As obras de engenharia nas cidades pautadas por essas

    recomendaes mdicas procuravam dessecar, portanto, os pntanos e lugares

    baixos e alagadios. Intervenes como drenagem de reas pantanosas,

    construo de valas de circunvalao, calamento de ruas, entre outras, eram

    recomendaes recorrentes do corpo de engenheiros.

    Vicq dAzir descreve vrios casos de morte e de epidemias em

    situaes em que o ar se encontrava ftido, como resultado de gazes, em

    conseqncia dos corpos em putrefao, defendendo a necessidade

    indispensvel de localizar os cemitrios pblicos fora das cidades. Estaria aqui a

    fundamentao para uma interveno radical na cidade, segundo a qual,

    atribuindo-se lugares especficos para a instalao de edifcios que pudessem

    conter matria orgnica em putrefao e condenando-se reas midas e

    pantanosas, conduziriam a prticas de interveno na cidade que alterariam o seu

    padro urbanstico no sculo XIX14.

    Um dos tratados de arquitetura de maior repercusso na Frana na

    segunda metade do sculo XVIII, tratado este que fundamenta suas propostas de

    interveno na cidade na teoria miasmtica, foi a obra de Pierre Patte que

    sintetiza as reflexes do perodo e sistematiza, talvez pela primeira vez, as

    possveis respostas aos problemas que a cidade insalubre do sculo XVIII coloca.

    Pierre Patte publica, em 1765, Monuments rigs en France la Gloire de Louis

    XV e, em 1769, Mmoires sur les objets les plus importants de IArchitecture.

    Trata-se de duas obras precursoras enquanto propostas de interveno planejada

    13 VICQ DAZIR. Op. cit., p. 78.14 SALGADO, Ivone. Op. cit

  • 23

    na cidade, nas quais se destacam: a dimenso esttica como fundamento para as

    novas remodelaes e a dimenso tcnica como princpio de interveno.

    Pierre Patte se prope, em seu Mmoires, apresentar as medidas

    para dispor uma cidade, destacando: os meios de operar sua salubridade; a

    distribuio adequada de suas ruas para evitar todo tipo de acidente; a maneira

    mais vantajosa de localizar seus esgotos e repartir suas guas; a melhor forma de

    construir casas visando a proteg-las dos incndios. Tambm apresenta uma

    teoria sobre o transbordamento dos rios e prope um deslocamento das

    atividades ruidosas, rudes e mal cheirosas (matadouros, triparias, cutelarias,

    curtumes, etc...), cujos edifcios eram focos de propagao de doenas, para os

    subrbios da cidade.15 Esta preocupao revela a sintonia das propostas de Patte

    com a teoria mdica do perodo a teoria miasmtica na qual a purificao do

    ar uma premissa. Neste contexto, Patte props, ainda, a eliminao da prtica

    de enterramento nas igrejas e recomendou que os cemitrios e hospitais fossem

    construdos em reas distantes da cidade. Suas propostas para a interveno na

    cidade, assim como as encontradas em outros tratados de arquitetura e

    engenharia do sculo XVIII, so as mesmas preconizadas pelo corpo mdico. 16

    Embora em seu trabalho Mmoires haja propostas precursoras sob o ponto de

    vista das intervenes realizadas na primeira metade do sculo XIX, nota-se a

    presena de uma forte orientao dos preceitos vitruvianos, nessas

    recomendaes.17

    2.4. As Teorias Mdicas no Brasil Imprio

    No mundo luso-brasileiro, o debate sobre essas mesmas questes

    teve incio no perodo entre o final do sculo XVIII e incio do sculo XIX, com a

    circulao da tratadstica sobre a cidade, quer na literatura mdica, quer na

    15 SALGADO, Ivone. Pierre Patte e a Cultura Urbanistica do Iluminismo Francs. Cadernos dePesquisa do LAP. So Paulo: jan-dez 2003.16 SALGADO, Ivone. Op. cit17 Trata-se das prescries vitruvianas presentes no verbete ville na Encyclopedie. DictionnaireRaisonn des sciences, des Arts et des Mtiers de Diderot e DAlambert, na edio de 1778.Citado por BRESCIANI, Maria Stella. Texto Particular . So Paulo: 2006.

  • 24

    literatura do corpo de engenheiros, sobretudo quanto s medidas necessrias

    para a reformulao das cidades.

    O citado adensamento da populao urbana na Europa no sculo

    XVIII colocou em pauta, de modo decisivo, a questo da salubridade,

    principalmente a das grandes cidades, sendo traduzida no sculo XIX em termos

    de aerao e limpeza, consideradas essenciais para expulsar delas os miasmas e

    as doenas. Uma das primeiras iniciativas seria, por exemplo, a transferncia dos

    sepultamentos do interior dos templos para os cemitrios extramuros, construdos

    fora do ncleo urbano, e a dos hospitais para fora dos limites da cidade.

    Segundo Ivone Salgado (2001)18, a primeira obra sobre o assunto,

    publicada em portugus, de que se tem notcia, atribuda ao brasileiro Vicente

    Coelho de Seabra Silva Teles, tendo sido publicada em Lisbo, em 1800, pela

    Officina da Casa Litteraria do Arco do Cego. Trata-se da Memoria sobre os

    prejuisos causados pelas sepulturas dos cadaveres nos templos, e methodode os prevenir.19 (grifo meu). Nota-se que a primeira obra circundante no Brasil

    sobre as teorias mdicas de salubridade traz uma preocupao com os danos

    causados por se fazerem enterramentos no interior dos templos. Essa prtica

    ser muito criticada tambm pelos mdicos brasileiros, que, cientes dessas

    teorias, condenaro tal hbito. Essa talvez tenha sido a prtica mais condenada

    por esses profissionais em So Paulo, no decorrer do sculo XIX, como veremos

    nesta pesquisa.

    18 SALGADO, Ivone. Introduo das idias de saneamento e da esttica neoclssica nas cidadesbrasileiras (1750-1900). Relatrio de pesquisa. Pontifcia Universidade Catlica de Campinas.Campinas: 2001.19TELLES, Vicente Coelho de Seabra Silva. Memria sobre os prejuisos causados pelassepulturas dos cadaveres nos templos, e methodo de os prevenir. Lisboa: Officina da CasaLitteraria do Arco do Cego, 1800. Silva Telles era natural da Provncia de Minas Gerais, ondenascera no ano de 1764, em Congonhas do Campo, e fora abastado fazendeiro. Era formado emFilosofia pela Universidade de Coimbra. Indagando sem descanso tudo quanto de novo eadiantado havia na cincia, desenvolveu uma aplicao tal que ainda estudante escreveu umcompndio de qumica, cujo primeiro volume foi publicado antes de sua formatura. Foi nessaocasio que foi admitido como scio na Academia Real das Sciencias de Lisboa. A seu turno, auniversidade, conhecendo e avaliando seu mrito, conferiu-lhe o lugar de lente substituto dezoologia, botnica, mineralogia e agricultura na Universidade de Coimbra.

  • 25

    O objetivo de Silva Telles, com a sua publicao, era o de procurar

    mostrar no s que a sepultura nos templos era nociva sade pblica, mas

    tambm ensinar quais os meios de remediar os seus maus efeitos, observando

    que seria desnecessria a presente Memria se as Luzes das Sciencias

    Naturaes estivessem essas espalhadas entre ns(TELLES, 1800, p.2).20

    Depois de descrever os efeitos fsicos e qumicos da putrefao dos

    cadveres, Telles discorreu tambm sobre os meios de evitar, ou diminuir, os

    maus efeitos das sepulturas fora e dentro dos templos e prope quatro maneiras

    de tratar os cadveres: I destruindo-os imediatamente aps a morte; II

    sepultando-os de tal forma e em tal stio que as suas emanaes ptridas fossem

    logo diludas pelos ventos e guas (esta a proposta que mais nos interessa,

    pois remete a uma localizao diferenciada dos cemitrios na cidade, proposta

    esta tambm considerada vlida pelo autor); III extraindo as terras

    infeccionadas das sepulturas dentro dos templos e substituindo-as por outras

    sadias e puras; IV lanando, nas novas sepulturas, ou nas renovadas,

    substncias que neutralizassem ou destrussem a m qualidade das emanaes

    podres.

    Ao desenvolver a segunda proposta, Telles sugere que se faam

    grandes e espaosos cemitrios fora das povoaes, em stios que:

    [...] possam ser bem lavados dos ventos, e humedecidos pelaschuvas, cujo terreno seja barrento, ou misturado com algumaara, ou terra calcarea e fazer as sepulturas fundas ao menos de7 palmos... por este modo os corpos apodrecem logo, e asemanaes nocivas se dissolvem e se diluem de tal sorte pelo ar,e gua, que se torno nullas (TELLES, 1800, p.24). 21

    Telles lembra que este era um meio j bem usado na Europa, na

    poca, e pelo qual os maus efeitos das emanaes dos cadveres eram evitados.

    J nas cidades coloniais brasileiras, o enterro fora das igrejas, em campos de

    20 TELLES, Vicente Coelho de Seabra Silva, op.cit. p. 2.21 TELLES, Vicente Coelho de Seabra Silva, op.cit. p. 24.

  • 26

    sepultamento ensolarados, era reservado apenas aos escravos, acatlicos,

    protestantes judeus e muulmanos.22

    Segundo Ivone Salgado (2001), a publicao inaugural sobre o

    assunto no Brasil, de que se tem conhecimento, a obra de Jos Corra

    Picano23, intitulada Ensaio sobre o perigo das sepulturas nas cidades e nos seus

    contornos. Foi publicada pela Imprensa Rgia em 1812 contendo 114 pginas.

    Essa obra seria uma traduo da j mencionada obra de Vicq dAzir publicada em

    Paris, a qual, por sua vez, seria uma verso da publicao italiana de Scipio

    Piatolli de 1774 Saggio in torno al luogo del seppellire.24

    Embora a obra de Picano no faa meno de Telles, ambos se

    referem a Vicq dAzir. No final de sua obra, Telles comenta, a ttulo de

    advertncia, que, aps ter escrito a sua memria, teve a satisfao de ler o

    Ensaio sobre os lugares, e os perigos das sepulturas, que teria sido traduzido do

    italiano por Vicq dAzir em 1778. Observa que a referida obra descreve os

    problemas relativos ao sepultamento, como epidemias e outras desgraas, bem

    como os fatos histricos ocorridos em decorrncia de tais prticas. Refere-se,

    ainda, a sbias leis e regulamentos, tanto civis como eclesisticos, publicados na

    Alemanha, Frana e Itlia, para prevenir to grandes danos causados

    humanidade.

    Presencia-se ento, no Brasil, uma mobilizao dos diversos campos

    de saberes em que os diversos profissionais discutiam as teorias mdicas, em

    busca de solues para os problemas da sade pblica. Mediante a legislao, as

    cidades comeam a ser repensadas e redesenhadas pelo corpo de mdicos,

    engenheiros e administradores locais, definindo-se assim princpios para uma

    nova configurao urbanstica s cidades.

    22 SALGADO, Ivone. Introduo das idias de saneamento e da esttica neoclssica nas cidadesbrasileiras (1750-1900). Relatrio de pesquisa. Pontifcia Universidade Catlica de Campinas.Campinas: 200123 Jos Corra Picano foi o Cirurgio-mor dos Exrcitos do Brasil nesse perodo e destacou-se nodebate e implementao de medidas no campo da sade pblica, que marcaro as intervenesna cidade a partir da vinda da corte portuguesa para o Brasil em 1808.24 PIATOLLI, Scipio. Saggio in torno al luogo del seppellire. 1774.

  • 27

    As principais cidades brasileiras, Rio de Janeiro, Recife e Salvador,

    apresentavam condies sanitrias precrias no sculo XIX, em vista desses

    preceitos25. O debate ocorrido no seio da administrao, envolvendo mdicos e

    engenheiros, visava uma interveno para alterar as condies de salubridade

    dessas cidades e seria marcado por forte intercmbio cultural com a Europa.

    Apesar das dificuldades de colocar em prtica algumas das propostas

    veiculadas pelos mdicos e engenheiros para a transformao da cidade, em

    conseqncia tanto de questes econmicas algumas dessas propostas

    implicavam investimentos vultosos como de questes culturais, como as

    alteraes de hbito que modificariam sobretudo as cerimnias religiosas e todo o

    culto religioso do mundo catlico, observamos que as cidades brasileiras sero

    objeto de intervenes urbanas, durante o sculo XIX, marcadas por essas

    concepes mdicas.

    3. O DISCURSO HIGIENISTA EM SO PAULO NO INCIO DO SCULO XIX

    Em So Paulo, essas teorias mdicas vo pautar as propostas de

    modificao na configurao da cidade, definindo uma nova estrutura de

    organizao e funcionamento da mesma ao longo do sculo XIX.

    Distante do litoral e apartada da costa pela Serra do Mar, a regio do

    Planalto em que a cidade de So Paulo se localizava, gozava de condies de

    salubridade mais favorveis ao povoamento do que as terras situadas no litoral.

    Ao contrrio do que acontecia em So Paulo, onde o clima era temperado, as

    terras situadas no litoral eram muito baixas, dominadas por mangues e pntanos

    inaproveitveis para a agricultura e propcias ao aparecimento de endemias

    tropicais. A localizao de So Paulo, nesse aspecto, protegia a cidade de

    determinadas doenas que grassavam26 em diversas cidades, como na capital

    25 SALGADO, Ivone. Introduo das idias de saneamento e da esttica neoclssica nas cidadesbrasileiras (1750-1900). Relatrio de pesquisa. Pontifcia Universidade Catlica de Campinas.Campinas: 2001.26 Termo utilizado na poca para definir: alastrar; propagar; difundir.

  • 28

    imperial, no sculo XIX.

    3.1. A Ao da Administrao na Sade Pblica no Incio do Sculo XIX e oCombate Varola

    Apesar de conservar suas caractersticas, a cidade de So Paulo, em

    finais do sculo XVIII e incio do sculo XIX, dera seus primeiros passos rumo

    intensificao da vida urbana. Muitas das obras pblicas27 que estaro

    aparelhando a cidade no perodo Imperial provm dos dias de capites-generais,

    que eram os encarregados, desde o restabelecimento da capitania, em 1765, de

    impor, por razes polticas, administrativas e militares, a presena da coroa

    lusitana na colnia.

    No incio do sculo XIX, o centro da cidade de So Paulo,

    compreendido entre os conventos do Carmo, de So Francisco e de So Bento,

    estava marcado pela situao de acrpole (figuras 01e 02).

    Segundo Richard Morse (1970), em sua obra Formao Histrica de

    So Paulo, a localizao da cidade de So Paulo, crista da serra do mar

    constituiu um ponto de distribuio para a ampla regio interior. A sua

    proximidade da cidade de Santos contribuiu para que ela dominasse

    estrategicamente as rotas terrestres e fluviais da rea, que, no sculo XIX, veio a

    ser o ncleo frtil da nao. A cidade de Santos portava-se apenas como um

    entreposto comercial. A cidade do planalto centralizou as funes polticas,

    industriais e culturais da provncia.

    27 Essas obras, frutos da atuao de engenheiros militares portugueses, mantiveram-se teis einsuperveis at, ao menos, a segunda metade do sculo XIX. Edifcios pblicos de grande porte(Casa de Cmara e Cadeia e Quartel dos Voluntrios Reais), pontes de pedra (do Lorena, ou doAcu, e do Carmo), chafariz monumental (da Misericrdia) e monumento comemorativo (Pirmidedo Piques) acabaram por se tornar smbolos de um perodo bastante positivo da administraocolonial.

  • 29

    Do ponto de vista da sade pblica, at o final do sculo XVIII, a ao

    da administrao voltava-se quase exclusivamente ao combate da varola 28 e da

    lepra, sob um enfoque distinto daquele que ser adotado no perodo

    subseqente. Assim como nas demais capitanias, nesse perodo, a ao da

    administrao colonial acontecia quando se deflagravam as epidemias, no

    havendo continuidade de atuao fora desses perodos. Essa maneira de lidar

    com a sade pblica, sem aes preventivas, perdurou at os primeiros anos do

    Imprio, tendo como uma de suas medidas caractersticas a implantao

    provisria das quarentenas, ou seja, a separao dos doentes do convvio

    urbano, at que a epidemia chegasse ao fim.

    Para Maria Fernanda Bicalho (2003, p.242), no Brasil do sculo XVIII,

    as cidades estavam submetidas a um controle pela administrao central,

    segundo a qual:

    [...] o imperativo de esquadrinhamento, hierarquizao,policiamento e criao dos espaos de incorporao e exclusode indivduos e grupos na cidade colonial obedecia no apenass necessidades de impedimento, controle, vigilncia e puniodos desvios e do no cumprimento das ordens metropolitanas.Atuava tambm em prol do bem comum e da sade dos povos,sempre de acordo com as regras de higiene (BICALHO, 2003,p.242).29

    A autora destaca que a maior parte da literatura sobre o Rio de

    Janeiro, na segunda metade do sculo XVIII, apresenta a iniciativa do marqus

    de Lavradio, que ordenou a transferncia definitiva do mercado de escravos

    desembarcados da frica para a praia do Valongo, como uma atitude de

    saneamento, ilustrada, e sem precedentes. Livrou-se, dessa forma, da viso

    cotidiana de negros seminus nas ruas da cidade: sentados em umas tbuas, que

    ali se estendiam, ali mesmo faziam tudo que a natureza lhes lembrava, no s

    causando o maior ftido nas mesmas ruas e visinhanas, mas at sendo o

    28 De acordo com Arouche, a epidemia de 1797 fez desaparecer cerca de um dcimo dapopulao da cidade de So Paulo. In: Ribeiro, Maria Alice Rosa: A cidade de So Paulo e aSade Pblica (1554-1954), So Paulo: 2004, p. 319.29 BICALHO, Maria Fernanda. A Cidade e o Imprio. O Rio de Janeiro no sculo XVIII. Rio deJaneiro: Civilizao Brasileira, 2003. p.242.

  • 30

    espetculo mais horroroso que se podia apresentar aos olhos (BICALHO, 2003,

    p.243).30 O incmodo causado pela presena dos escravos nas ruas das cidades

    brasileiras no perodo colonial pode ser comparada ao da classe trabalhadora na

    Inglaterra.

    Segundo Roberto Machado (1978, p.56.), as aes mdicas em So

    Paulo, no final do sculo XVIII, assim como no incio do perodo imperial, tinham

    como objetivo combater os males. A sade no aparecia como algo que pudesse

    ser cultivado e organizado. Embora encerrasse o mximo de positividade, s era

    percebida negativamente pela presena da realidade representada pelas

    doenas. 31

    Um dos primeiros indcios referentes ao receio do contgio pelos

    miasmas e indicadores das futuras mudanas que vrios costumes iro sofrer, o

    relativo s mudanas nos ritos fnebres, j no incio do sculo. Em 1801, o vice

    rei Dom Fernando Jos, de Portugal, enviou para o Brasil um decreto no qual o

    ento Prncipe Regente D. Joo32 descrevia a necessidade de se implantarem

    Cemitrios pblicos nas cidades, para que neles fossem sepultadas todas as

    pessoas, e que, portant, se encerrasse a prtica de enterramentos no interior das

    Igrejas:

    30 Relatrio do Marqus do Lavradio. In: BICALHO, Maria Fernanda. Op. cit. p.243.31 MACHADO, Roberto. Danao da Norma Medicina Social e Constituio de Psiquiatria noBrasil. 1978. p.56.32 D. Joo (1767-1826), segundo filho de D. Maria I e D. Pedro III, se tornou herdeiro da Coroacom a morte do primognito D. Jos em 1788. Passou a governar desde 1792, no impedimentoda me, que foi considerada louca. Porm s se tornou prnciper a partir de 15 de julho de 1799.Foi sob o governo do ento prncipe regente D. Joo, que Portugal enfrentou srios problemascom a Frana de Napoleo Bonaparte, sendo invadido pelos exrcitos franceses em 1807. Comodecorrncia da invaso francesa em Portugal, a famlia real e corte lisboeta partiram para o Brasilem novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dom Joo s foi coroadoem 6 de fevereiro de 1818, dois anos aps a morte da sua me. A partir da coroao, seu ttuloficou sendo Dom Joo VI, rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. A cerimniaaconteceu no Rio de Janeiro. Dentre as medidas tomadas por D. Joo em relao ao Brasil esto:a abertura dos portos s naes amigas; liberao para criao de manufaturas; criao do Bancodo Brasil; fundao da real biblioteca; criao de escolas e academias, e uma srie de outrosestabelecimentos dedicados ao ensino e pesquisa, representando um importante fomento parao cenrio cultural e social brasileiro. Em 1821, retornou com a corte para Portugal, deixando seufilho D. Pedro como regente. Deu-se, ainda, sob o seu governo, o reconhecimento daindependncia do Brasil no ano de 1825.

  • 31

    [...] tendo chegado a minha prezena huma atendvelreprezentao sobre os dannos a que est exposta a SaudePublica, por se enterrarem os Cadaveres nas Igrejas que ficodentro das Cidades Populozas dos Meus Domnios ultramarinos:visto que os vpores que de s exhalo os mesmos Cadaveresimpregnando a Atmosphera vem a ser cauza de que os vivosrespirem um ar corrupto e inficionado, e por isso estejo sujeitosa muitas e que repetidas vezes padeo molestias epidemicas eperigozaz (...) sou servido ordenar vos que logo receberdes estaCarta regia, procureis de acrdo com o Bispo dessa Diocezefazer construir em Sitio Separado dessa cidade (...) hum, oumais Cemiterios, onde hajo de ser sepultados, semexcepo, todas as Pessoas que falecerem [...] 33 (grifo meu).

    Cientes dessas recomendaes e do que prescreviam as teorias

    mdicas de salubridade do perodo, os mdicos brasileiros condenavam a prtica

    de enterramento no interior dos templos, em busca da medicalizao da cidade.

    Mas esse processo ocorrer de modo lento, conforme veremos adiante, e, no

    caso de So Paulo, essa prtica deixou de acontecer somente em meados do

    sculo XIX, com a fundao do primeiro cemitrio pblico da cidade, o da

    Consolao, em 1858.

    No incio do sculo, a administrao da capitania de So Paulo estava

    sendo feita pelo Capito-General Antnio Jos da Franca e Horta (1802-1811).

    Sua administrao distinguiu-se da de seus antecessores pelo fato de no trato

    das questes assistenciais, ter assumido a iniciativa de destinar recursos, mesmo

    oficiais, para a criao de uma estrutura mdica para a cidade. Segundo Laima

    Mesgravis (1976)34, Franca e Horta foi o primeiro e o ltimo governador do

    perodo colonial a revelar um interesse to grande e continuado pelos problemas

    de assistncia social, que antes s haviam merecido atenes espordicas e

    pouco eficientes. Mas, embora a sua administrao apresentasse uma

    preocupao com a melhora da estrutura de atendimento sade pblica, no

    encontramos referncias sobre medidas tomadas em relao aos sepultamentos

    no interior dos templos e sobre a inteno de fundar um cemitrio pblico, apesar

    do decreto de 1801.

    33 Coleo IHG/RJ, documento 03, lata 10.34 MESGRAVIS, Laima. A Santa Casa de Misericrdia de So Paulo (1599? 1884). Contribuioao estudo da assistncia social no Brasil. So Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1976.(coleo cincias humanas, 3).

  • 32

    Dentre as aes relacionadas sade pblica, implementadas por

    Franca e Horta, destaca-se a difuso da vacina antivarilica na capitania.

    Segundo Lourival Ribeiro, a varola afligiu a populao do Brasil desde a metade

    do sculo XVI at a sua extino, no fim do sculo XX. A vacina antivarilica foi

    introduzida no Brasil em 1804, pouco tempo aps ter sido descoberta, na

    Inglaterra, por Edward Jenner.35 O cirurgio Hrcules Octaviano Muzzi,

    responsvel pela conservao e aplicao da vacina no Rio de Janeiro, na poca,

    narrou o acontecimento da chegada do pus vacnico ao Brasil em seu Compndio

    sobre vacina:

    Em outubro do mesmo ano (1804) chegou pela primeira vez aesta cidade (Rio de Janeiro), vindo um cirurgio militar vacinandoa indgenas, e pretos escravos do mesmo marques por toda aviagem: e chegou em perfeito estado. O marques de Aguiar,ento vice-rei, ordenou aos mdicos, cirurgies-mores, eajudantes da guarnio da Praa comparecessem no Palcio doGoverno e a comeou-se a vacinar nas quintas-feiras e nodomingos. O concurso tornou-se extraordinrio, muitoprincipalmente, porque chegando a quadra das bexigas, viram omelhoramento deste flagelo.

    Estabelecida a opinio a favor da vacina, ordenou o Vice-Rei queo trabalho fosse feito na Casa da Cmara, nomeando parapresidi-lo o coronel Manoel dos Santos de Carvalho, encarregadoda Polcia da cidade. A este sucedeu o Exmo. Marechal MiguelNunes Vidigal e se nomearam dois cirurgies-ajudantes paravacinar, e um oficial inferior para a escriturao, ficando todos osmais dispensados: os nomeados fui eu, e Francisco Bonifcio daSilva: ao mesmo tempo mandou-se um cirurgio-mor para asvilas da Ilha Grande, e Parati, a fim de ali estabelecer a vacina;mandou igualmente em vidros para as provncias de Minas,

    35 Segundo Rodolpho Telarolli Junior (1996), a vacina antivarilica, em sua forma moderna, foidesenvolvida em 1796 por Edward Jenner. Apesar da existncia de referencias muito anteriores aexperincias bem sucedidas de vacina. Ela foi criada com base na constatao emprica de que acow-pox, uma forma bovina da doena, conferia imunidade contra a varola quando contrada pelohomem. A partir dessa constatao, foram criadas duas tcnicas para a produo e aplicao davacina, tendo sido a primeira, mais primitiva, a brao-a-brao, utilizada no Brasil at o final dosculo XIX. Constitua-se na inoculao do material retirado de uma pstula humana, denominadode pus vacnico, criado a partir do vrus da varola bovina. Esse mtodo foi empregado por Jenner,e suas principais limitaes estavam na possibilidade de transmisso da sfilis simultaneamente aomaterial da vacina, e no transporte da vacina de um lugar para outro, que s poderia se dar porpessoas. As pstulas tinham de ser transmitidas periodicamente de uma pessoa para outra, jque, depois de um tempo, havia a cura espontnea da leso. Foi desta forma que a vacina foitrazida de Portugal para o Brasil, transferindo-se o pus entre sete escravos, durante uma viagem,de brao a brao.

  • 33

    So Paulo, Santa Catarina, e Rio Grande do Sul (RIBEIRO,1992. p.158).36 (grifo meu)

    Em So Paulo a vacina foi introduzida no ano seguinte ao de sua

    chegada ao Brasil, em 1805, tendo a administrao ordenado, em 13 de setembro

    de 1805, aos capites-mores das vilas, que reunissem os chefes de famlia,

    parentes, agregados e escravos na Cmara ou na Matriz, para serem vacinados,

    sob pena de priso daqueles que no o fizessem. A administrao havia

    destinado para a ocasio uma sala do Palcio do Governo, onde funcionaria o

    primeiro posto de vacinao de So Paulo.37

    Os poderes municipais eram auxiliados pelo governo da Capitania na

    gesto da sade pblica, na tentativa de cumprir a difcil tarefa de evitar a

    propagao das epidemias, sobretudo a da varola, que j vinha sendo motivo de

    preocupao durante todo o sculo XVIII. As polticas adotadas por essas duas

    instncias do governo visavam implementar a inoculao, passando a

    responsabilidade sobre a sade da populao a ser partilhada por ambas. Mas a

    inoculao da vacina no foi uma ao aceita facilmente pela populao, que,

    amedrontada com a novidade, evitava de todas as formas a vacinao. Dentre os

    prprios mdicos, havia discordncias com relao eficcia da vacina. Um

    exemplo disso foi o relatrio feito pelo mdico portugus Heliodoro Jacinto de

    Arajo Carneiro. Enviado pelo Prncipe Regente Dom Joo a pases estrangeiros

    para observar, em hospitais e clnicas, os resultados desse preservativo, o mdico

    mal informado, ou segundo Lourival Ribeiro (1992, p.158), de m f, publicou, em

    1808, em Londres, a memria Reflexes e observaes sobre a prtica da

    inoculao da vacina e as sua funestas conseqncias feitas em Inglaterra,

    dizendo que:

    Eu era um dos que jamais me podia conformar uma idia toextravagante, como livrar a humanidade de uma molstia (aliscausada e produzida por variaes e constituies daatmosfera) por meio de uma matria morbosa originada em umanimal de uma natureza to diferente, a vaca; o que muito mais

    36 RIBEIRO, Lourival. O Baro do Lavradio e a Higiene no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed.Itatiaia LTDA, 1992. p.158.37 Ribeiro, Maria Alice Rosa, op. cit. p. 321.

  • 34

    me era dificultoso depois do desgraado acontecimento umadas principais famlias do Reino, e outros casos mais, que eu viem Lisboa. (RIBEIRO, 1992. p.158) (grifo meu)

    Ao afirmar que a doena era causada e produzida por variaes e

    constituies da atmosfera, o mdico refere-se aos temidos miasmas e, por

    acreditar que essa seria a origem da doena, no entendia a vacina e no

    acreditava nela. Esses mdicos, desacreditando na vacina, s iro compreender o

    funcionamento e a eficincia desse recurso aps algum tempo, mediante a

    comprovao real de que os casos da doena haviam diminudo

    significativamente. Contudo, at que chegue esse momento, seus discursos

    serviro como barreiras ao progresso da vacinao, que era temida pela

    populao.

    As aes da administrao de Franca e Horta, no campo da sade

    pblica precedem uma srie de aes que tero incio no sculo XIX, em busca

    da medicalizao da cidade, que, segundo os preceitos de salubridade da poca,

    era considerada insalubre e dotada de inmeros focos de doenas, entre eles, a

    presena das vrzeas alagadias, dos costumes considerados perniciosos

    sade (tal como o de se fazerem enterramentos no interior dos templos), da m

    localizao de determinados equipamentos cujas funes propiciam a emanao

    de miasmas ptridos (como matadouros, curtumes e hospitais) e da prpria rotina

    de uso da cidade (passagem de gado e tropas no interior da cidade, despejo dos

    lixos nas ruas, etc.)

    No captulo seguinte, pretendemos discutir com que estrutura de

    assistncia sade a populao de So Paulo contava no incio do sculo XIX.

    Nesse sentido, consideramos o perodo que antecede a chegada da Famlia Real

    ao Brasil, em 1808, pois, a partir desse momento, as questes relacionadas a

    sade pblica tomam uma dimenso diferente, passando a ser discutidas sob

    uma esfera nacional.

  • 35

    Figura 01. Esta planta mostra a cidade de So Paulo em 1810, na ltima fase do perodocolonial, apenas doze anos antes da Independncia. Foi traada pelo capito Rufino JosFelizardo e Costa, engenheiro-militar a servio da Capitania. Nela destaca-se o que chamamosde Tringulo Histrico da cidade de So Paulo, compreendido pelos Conventos do Carmo,So Bento e So Francisco. Planta da Cidade de So Paulo 1810. Comisso do IV Centenrioda Cidade de So Paulo; So Paulo Antigo Plantas da Cidade; So Paulo; 1954; Ed. Melhoramentos.

    So FranciscoSo Bento

    Carmo

    Figura 02. A Cidade de So Paulo vista da Vrzea do Carmo. Desenho de Thomas Ender,1817. Reis Filho, Nestor Goulart: So Paulo: vila, cidade, metrpole. So Paulo: Prefeitura Municipal daCidade de So Paulo, 2004. p41.

    Carmo Igreja da S Ptio do Colgio

  • 36

    3.2. A Assistncia Hospitalar em So Paulo A Santa Casa de Misericrdia,o Hospital Real Militar e o Lazareto

    No que se refere assistncia hospitalar em So Paulo, no incio do

    sculo XIX, pode-se dizer que, durante muitos anos, a nica forma de

    atendimento hospitalar da capitania se deu por parte da Santa Casa de

    Misericrdia. No incio de sua instituio, no encontramos documentaes que

    discorressem sobre a necessidade de se construir, junto Irmandade, um

    hospital. Mas, sabe-se que o atendimento aos enfermos era realizado na casa

    dos prprios doentes, ou no consistrio da prpria Igreja da Misericrdia. 38

    Com o passar dos tempos, a evoluo do trabalho dessa instituio e

    a amplitude que foi tomando, perante a cidade, comearam a conduzir para a

    necessidade de uma estrutura para esse tipo de atendimento especializado.

    Segundo Glauco Carneiro (1986, p.193), um dos primeiros indcios

    sobre a necessidade de se fundar um Hospital da Santa Casa de Misericrdia foi

    uma advertncia feita pelo Padre Antnio Vieira, no plpito da Bahia, na qual,

    julgando insuficiente o atendimento que era prestado aos doentes em suas

    prprias casas ou no consistrio das Igrejas, props:

    [...] melhor fora no haver na Misericrdia Igreja, que no haverhospital, porque a imagem de Cristo que est na Igreja umaimagem morta, que no padece, porque a verdadeira imagem deCristo so os pobres, so imagens que padecem [...] se nohouver outro modo, converta-se a Igreja em hospital, que Cristoser mui contente.(CARNEIRO, 1986, p.193) 39

    38 No sculo XVI a populao de So Paulo era assistida praticamente apenas pelos padres daCompanhia de Jesus, que atendiam em seu colgio todos aqueles que no pudessem ou nosoubessem remediar-se, mesclando, na prtica, seus prprios conhecimentos com aquelesaprendidos junto aos ndios. Os jesutas exerceram a chamada medicina emprica, que associavaprticas europias e substncias locais no combate s doenas, e criaram boticas para suprir demedicamentos a populao. Com os jesutas que tem incio verdadeiramente a assistncia sade na Colnia. No incio do sculo XVIII, o atendimento sade pblica na cidade de SoPaulo era feito apenas por dois cirurgies e pelo hospital da Santa Casa.SILVA, Kleber Pinto.Hospital, arquitetura: Uma histria. Revista SINOPSE, N 33, FAU-USP,So Paulo, p. 5639 CARNEIRO, Glauco. O Poder da Misericrdia A Santa Casa na Histria de So Paulo. SoPaulo: Press Grafic e Ed Grfica, 1986. p.193.

  • 37

    Em So Paulo, no incio do sculo XVIII, a Santa Casa de Misericrdia

    contava apenas com a estrutura de uma casa semelhante s que se usavam para

    moradia, sendo destinada somente queles enfermos que no pudessem ser

    atendidos em suas prprias casas. A enfermaria localizou-se primeiramente no

    Ptio do Colgio e era chamada de Confraria da Misericrdia de So Paulo dos

    Campos de Piratininga.40

    Nesse perodo, a Santa Casa reclamava, junto administrao da

    Capitania, a ausncia de um hospital adequado:

    [...] esta casa de misericrdia, a nica que h em toda acapitania de serra acima, no tem hospital em que possam serrecolhidos e curados os forasteiros e soldados que alichegavam... 41 (SILVA, p.56) (grifo meu)

    A necessidade da fundao de um hospital da Santa Casa, em So

    Paulo, ocorreu tambm em razo da mudana social e econmica pela qual a

    cidade estava passando, em conseqncia do ciclo de minerao.

    Com o xodo paulistano para Minas, a Vila de Piratininga foi

    ocupada por forasteiros, quase sempre miserveis, que igualmente procuravam

    ouro. O progresso poltico administrativo 42 pelo qual So Paulo passou, a partir

    de ento, acabou por alterar o perfil de sua populao. Esses novos habitantes,

    que no tinham laos de parentesco ou nem mesmo amizade com os antigos

    habitantes, necessitavam do amparo de uma instituio pblica, em caso de

    doena. Segundo Laima Mesgravis, So Paulo agora se encontrava em situao

    40 A data da fundao da Santa Casa de Misericrdia de So Paulo no pode ser rigorosamenteestabelecida. Em 1560 deu-se a possvel criao da Confraria de Misericrdia de So Paulo.Encontrou-se um legado de 5 de outubro de 1599, no valor de hum mil ris para a Misericrdia e,em 1607, h o registro de outro legado. Alguns historiadores, como Nardy Filho, erudito historiadorituano, asseguram que, em data anterior a 1600, constava a existncia de um hospital da SantaCasa.41 SILVA, Kleber Pinto. Hospital, arquitetura: Uma histria. Revista SINOPSE, N 33, FAU-USP,So Paulo, p. 5642 Criao da Capitania de So Paulo, no dia 3 de novembro de 1709, a elevao de vila paracidade em 24 de julho de 1711 e a criao do bispado.

  • 38

    de porto, ao qual arribavam aventureiros de todas as partes, e era preciso ter

    meios para acudir essa nova parcela de populao.

    A iniciativa mais concreta em relao implantao de um hospital

    da Santa Casa em So Paulo se deu em 31 de dezembro de 1714. Ciente dessas

    novas mudanas pelas quais a cidade estava passando e da necessidade de se

    ter uma estrutura para o atendimento da populao, o ento provedor da Santa

    Casa de Misericrdia de So Paulo, Izidro Tinoco de S, props na sesso da

    mesa daquele dia, a criao de um hospital da Santa Casa de Misericrdia para

    So Paulo:

    Aos trinta ehum dias do ms de Dezembro de mil e setecentos ecatorze annos nesta Santa Casa de Miz. e no concistorio dellaestando junto o Irmo Provedor e mais Irmos da Meza p. setratar do que pertencia a esta Sta Caza eaum.to della,eseasentou q sedesse principio a o hospital e se recolhecenelle hua mulher pobre com sua filha to bem enferma q fizerapetio esse apresentaro duas peties de horfas p. secazarem em dia de S. Izabel ambas filhas de Irmos, e sedespacharo nove peticoens depobres a oito patacas cada hua.43(grifo meu)

    Algumas semanas aps essa reunio, em 24 de abril de 1715, foi

    assinado, por vinte e sete irmos da Santa Casa de Misericrdia o Termo de

    Mesa que seria considerado, segundo Raul Votta (1951, p.19), a certido de

    batismo do hospital. Tal termo seria a consolidao da proposta feita no termo de

    31 de dezembro do ano anterior. Nele, haveria no apenas a consolidao da

    criao do hospital, mas tambm as obrigaes que decorreriam de sua

    manuteno:

    Aos vinte e Aos vinte equatro dias do mez de Abril de mil esetesentos equinze annos nesta Santa Caza da mizericordia, emconsistrio della estando junto oirmo Provedor, e mais Irmosda meza p. se tratar do q pertencia aesta Sta. Caza, e aumentodella, e por cada hum e todos juntos aSentaram econcordaramque na Sta. Caza da mizericordia ouveSse ospital parasempre, para remedio e foturo dos mais pobres e indigentes

    43 Arquivo Histrico do Museu da Irmandade da Santa Casa de Misericrdia de So Paulo. Livro n1, Termo de Mesa do dia 31 de dezembro de 1714.

  • 39

    como com efeito se deu principio logo, pondo camas, erecolhendoSe neste mesmo dia aSima declarado huma molherpobre com hum brao podre para tratar doSeu remdio, e nestaforma se aSeitaram os neSeSitados como aSima esta ditofazendo petio a meza manifestando sua neeidade, daqualsetomava emformao, se tem com q sepoSa onestamte curarfora emSuas cazas sendo somente vizitadas pella caridade destaSanta Caza; porq azq estiverem com conheSida pobreza, q nemainda vizitadas poSam ser curadas em suas cazas, estas peSoassetrataram, digo setraram p.a o ospital e p.a os gastos daemfermaria, se deparam edepararam os rendimtos das tumbas,e entradas dos irmos, eoutras ezmolas qsederemoudeixarem aesta Santa Caza, no sendo nomeadamente p.aalmas, ou Igria conforme avontade do doador, tirandoSe daztaisesmollas somte os gastos daSancristia, eofisio aniverSario dosirmaos defuntos a Saber, sera, miSsaz, salmear dos clerigos: eoutro sim azesmolas q setiram nas mizas se aplicaram p.aaesta emfermaria eSeus gastos, entendendoSe q os gastosda emfermaria compreende medico, sirurgiam, Butica,sangrador, ecamas, e emfermeiro; pera oq se devem eleger,emfermeros capazes e esmoleres que com diligencia facamsuas obrigaSoens; pedindo os esmoleres esmolas cadasomana pellas ruas como se costumam nas outras sidadesp.a os gastos da emfermaria; e tambm sedevem eleger logono prinSipio do governo em meza, enomearSe por pauta osirmaos aquem toque por mes acudir com o Sustento dos en-fermos, nomeandoSe tambm por eleio dous procuradores qalternadamte zelem dos emfermos, se lhes faz o comer a temposeos curam e holham delles com adevida caridade, eq aSistamquando vier oSurgiam, ou medico p.a fazer dar a exzecuSam oqreceitar: E depois q esta Santa Caza tiver rendaz convenientessealiviaram os irmos desta Assistncia dos mantimentos, e p.aq fique este aSento perpetuo em seu vigor e duraoemviolavel sem q pello tempo adiante nenhum Irmao, Provedor,ou perdido, ou por toda ameza poSa hir contra oq aqui sedetermina, se faz aSaber atoda airmandade aSim juntaefigurada no irmao provedor prezente, os irmaos da mezacomo dividida por cada hum irmao emparticular e maior partedelles, q este termo se faz e doq seaSeita com as clauzullas,econdiSoens aSinadas, edeclaradas, eSelhes manda ler,eaSinar p.a q no alegem inorania pelo tempo adiante;tambem seaSenta em meza q os irmos q de novo entrarem selhes leu este termo p.a q oSaibam, eSeaSinem nelle, ao menosestes pri-meros dez annos, p.a q emtudo via firmeza evalidade epuriSo se leu em meza, eavista dos irmaos juntos em voz clara eemtelegivel e emvirtude de q oaSeita-vam aope delle se asinarame eu escrivam Ignacio de Siqueira Ferro o fiz escrever esobescrevi. O pdor Izidro Tinoco de Saa. (VOTTA, 1951, p.19 -21).44 (grifo meu)

    44 VOTTA, Raul. A Irmandade da Santa Casa de Misericrdia de So Paulo nos Primrdios de suaExistncia contribuio para a Histria Hospitalar de So Paulo. So Paulo: Tipografia IrmoDupont. 1951. p.19 - 21.

  • 40

    Este seria, portanto, o primeiro hospital da cidade de So Paulo.

    Nele deveriam ser atendidas todas aquelas pessoas que no pudessem ser

    tratadas em suas prprias casas, os pobres e os indigentes. Conforme pudemos

    verificar, nesse documento, os gastos do hospital seriam com os mdicos, os

    cirurgies, a butica, o sangrador, as camas e os enfermeiros. Estes seriam

    pagos com as esmolas recebidas da populao, com as rendas que a

    irmandade arrecadava por meio dos aluguis das tumbas para os

    sepultamentos da cidade e tambm com as contribuies populares feitas nas

    missas.

    Quanto sua localizao na cidade, no se sabe precisamente qual

    seria. Mas, segundo Laima Mesgravis (1976), um registro geral da Cmara

    Municipal de So Paulo faz meno a uma solicitao feita pela Santa Casa de

    Misericrdia em julho de 1716, ou seja, um ano aps o termo que citamos

    anteriormente, na qual se aprova a construo do hospital e onde a Santa Casa

    pede a doao de um terreno devoluto prximo da Igreja da Misericrdia. No dia 4

    desse mesmo ms, a Santa Casa recebeu uma carta de Data de chos devolutos,

    na Rua Direita, prximo ao Largo da Misericrdia, para que neles fosse construda

    uma igreja e um hospital. Pois, conforme define Maria Fernanda Bicalho (2003,

    p.202), s cmaras coloniais cabiam inmeras tarefas ao que poderamos

    chamar - e de fato se chamava na poca de polcia da cidade (BICALHO,

    2003, p.202)45; dentre elas a de aforar e distribuir os chos urbanos, cobrando

    foros e laudmios.

    Um ano aps o recebimento dessa carta de datas, em 3 de julho de

    1717, a Santa Casa contratou o capito Pedro Fernandez para fazer a construo

    de igreja, sacristia, corredor e hospital. A construo teria sido realizada, pois,

    conforme Glauco Carneiro (1986), os registros da Cmara Municipal do a

    entender que as covas abertas para a retirada do barro destinado a essa

    construo foram utilizadas para depsito de lixo.

    45 BICALHO, Maria Fernanda. A Cidade e o Imprio. O Rio de Janeiro no sculo XVIII. Rio deJaneiro: Civilizao Brasileira, 2003. p.202.

  • 41

    Raul Votta (1951, p.27)46, afirma que o hospital foi instalado ao lado

    da Igreja da Misericrdia, em alguma das casas antigas que a rodeavam. Essa

    hiptese se d pelo fato de em um termo de mesa de 11 de fevereiro de 1742, ter

    sido cogitada a compra de quatro casas contguas Igreja, a fim de adapt-las

    para o recebimento de doentes, o que se poderia considerar uma ampliao das

    instalaes anteriores do hospital.

    Antnio Egdio Martins (1911/12, p.182), em seu livro So Paulo

    Antigo, informa que tendo a direo da Santa Casa se preocupado com a

    adaptao de um prdio para a fundao de um hospital na cidade, foi proposta a

    compra de

    [...] quatro moradas contguas igreja, do lado da rua daquitanda. Esta igreja, logo conhecida como da Misericrdia,estava situada no pequeno largo do mesmo nome, no ponto dejuno do Comrcio e Direita. Esta mais precisamente ruaDireita de So Bento para So Francisco e dessa poca emdiante rua Direita da Misericrdia para Santo Antnio.(MARTINS,1911/12, p.183)47 (grifo meu)

    Conforme podemos notar no mapa de So Paulo de 1810, a Igreja

    da Misericrdia localizava-se na poca exatamente na esquina entre a Rua Direita

    e a Rua do Comrcio, localizao esta confirmada pela descrio de Antnio

    Egdio Martins, dando uma de suas faces para a Rua Direita, local onde, segundo

    Laima, situavam-se as terras doadas Irmandade, destinadas construo do

    seu hospital. Esta localizao coincide com aquela citada por Raul Votta (1951,

    p.27), das casinhas compradas mais tarde. Portanto, acreditamos que esta seria

    de fato a localizao do primeiro hospital da Santa Casa de Misericrdia (figuras

    03, 04 e 05).

    46 VOTTA, Raul. A Irmandade da Santa Casa de Misericrdia de So Paulo nos Primrdios de suaExistncia contribuio para a Histria Hospitalar de So Paulo. So Paulo: Tipografia IrmoDupont. 1951. p.27.47MARTINS, Antonio Egydio. So Paulo Antigo (1554-1910). So Paulo: Ed. Paz e Terra, 1911/12.p.183.

  • 42

    Desde o incio de sua implantao, o hospital da Santa Casa sofreu

    com a falta de recursos, inicialmente para o trmino de suas obras e mais tarde,

    para se manter. Por diversas vezes, a Santa Casa pediu auxlio Corte

    Portuguesa para a continuidade das obras, alegando que ali existia o nico

    hospital de toda a Capitania de Serra acima, muito freqentado pela multido de

    forasteiros enfermos que para ali acorria. Mas esse apelo parece no ter surtido

    efeito, visto que os pedidos freqentemente feitos pela Santa Casa eram

    negados, principalmente no que se refere ao pedido para que a Santa Casa de

    Misericrdia de So Paulo pudesse gozar das obrigaes e direitos que as

    demais casas de misericrdia do Reino, sob sua proteo, gozavam.

    Representamos a V. Magde com a mais profunda Submisso erespeito o Provedor e Irmo da Meza da santa Caza daMizericordia desta cidade; que incitados do desamparo, em quecontinuamente se v aos pobres enfermos assim naturaes, comoforasteyros chegando aperder os enfermos assim as vidas ainpulso da neceSsidade, freqentando isto amuita pobreza emque se acha esta cidade e lugares de Sua comarca,empreendemos fazer hu hospital para azilo dos pobres naSuas enfermidades, e com efeito damos principio levando aobra athe onde pudero as tenuas forcas desta pobre caza elimitadas Esmolas dos fieis; e vendonos com a obra emprincipio sem poSses para continuar a falta de patrimniopara a despeza de semelhantes cazas a interrompemos hamais de um anno conservando a esperanca de que Deos aseu tempo daria Providencia para a prosseguirmos athe queconcordamos por naprezenca de V. Mgde o estado dest obra,rogando com h umildade defieis VaSsalos Se digne V.Magde ser fundador deste hospital que por muitosprencipios se faz digno da Real proteccao de V. Magde. Poisnelle se hade exercitar a caridade em tantas obras deMizericordia as quais So podem ter urigem da Real grandezade V. Magde.48 (grifo meu)

    Nesse documento, a administrao da Santa Casa de Misericrdia

    de So Paulo pede que passe a contar com a Real proteo que as demais

    Santas Casas do Reino possuam, tendo, desta forma, direitos e regalias de que,

    at ento, no dispunham.

    48 Termo de Mesa da Santa Casa de Misericrdia da cidade de So Paulo. 12 de agosto de 1752.

  • 43

    Embora no seja objeto desta pesquisa o estudo da histria da

    Irmandade da Santa Casa de Misericrdia em So Paulo, importante sabermos

    com que estrutura de atendimento hospitalar a cidade contava em finais do sculo

    XVIII e incio do XIX, para que possamos compreender a dimenso que a questo

    da assistncia sade pblica iria tomar no sculo XIX, quando, a partir de 1828,

    conforme veremos, seu controle nas cidades passar responsabilidade das

    Cmaras Municipais.

    O hospital da Santa Casa de Misericrdia de So Paulo era

    constitudo, portanto, pelas quatro casas, adquiridas em 1744, e que haviam

    passado, durante quinze anos, por reformas e adaptaes. A estrutura que essas

    casinhas ofereciam para o atendimento prestado pela Santa Casa assemelhava-

    se mais de uma enfermaria do que propriamente um hospital, em virtude de sua

    precariedade e falta de recursos financeiros para sua manuteno.

    Na segunda metade do sculo XVIII, a Coroa portuguesa recrutava

    constantemente os paulistas para participarem da vida militar, por meio da guerra

    aos castelhanos, no sul, e da implantao da fortaleza do Iguatemi. Uma carta do

    Morgado de Mateus de 1767 revelava o seu empenho para atrair os

    piratininganos para a vida militar: ...Consegui diminuir-lhes o horror do nome de

    soldado, facilitei-lhes as comodidades desta profisso, fiz-lhes a estimao e a

    honra dela, e consegui levantar seis corpos de milcias, quatro de infantaria e dois

    de cavalaria...(MESGRAVIS, 1986, p.203).49

    A partir de ento, a cidade de So Paulo passou a contar com uma

    populao de militares, que necessitariam de uma estrutura hospitalar para os

    Regimentos de Mexias e para os Voluntrios. Entre 1774 e 1801, as casinhas

    que compunham o hospital da Santa Casa de Misericrdia de So Paulo seriam

    destinadas a esse fim, funcionando como enfermarias militares at 1801, data em

    que foi inaugurado o Hospital Militar da cidade, visando atender as tropas

    49 MESGRAVIS, Laima. O Primeiro Hospital do Serto e a Corrida do Ouro. Revista de Histria.n 94, So Paulo: 1973. p. 560. Citado em: CARNEIRO, Glauco. O Poder da Misericrdia ASanta Casa na Histria de So Paulo. So Paulo: Press Grafic e Ed Grfica, 1986. p.203.

  • 44

    militares. Durante o perodo em que as instalaes da Santa Casa serviram de

    hospital aos militares, foi determinado que se instalasse um outro hospital, para

    os pobres, em duas casinhas na rua Direita, j que o hospital grande estava

    ocupado pela Fazenda Real. As obras de adaptao dessas duas casinhas

    tiveram incio somente em 1796, mas, trs anos depois, o Provedor da Santa

    Casa e Capito-General da Capitania, Antnio Manoel de Mello e Castro

    Mendona, ordenou que se alugassem tais casas, visto que, por ordem do rei,

    seria construdo na capitania um Hospital Militar, dispensando, deste modo, o da

    Santa Casa de Misericrdia.

    O Hospital foi devolvido Santa Casa somente em 1801, quando se

    inaugurou o Hospital Militar da Cidade. Nesse perodo, o da Santa Casa

    encontrava-se em condies precria