Universo expandido

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MAIO DE 2015 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR Ilustração do supertelescópio GMT, com inauguração prevista para 2021 Universo expandido Parcerias internacionais e investimentos de R$ 200 milhões nos próximos 10 anos fortalecem a astrofísica em São Paulo VEGETAÇÃO NATIVA Caatinga encolheu o equivalente à área de Portugal ACERVOS Imagens, documentos e jornais digitalizados aperfeiçoam trabalho de pesquisadores LITERATURA Estudos procuram definir parentescos culturais e estilo de Carolina de Jesus ENTREVISTA NANUZA DE MENEZES A intimidade das plantas revelada pela anatomia

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Pesquisa FAPESP nº 231

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maio de 2015 www.revistapesquisa.fapesp.br

ilustração do supertelescópio GMt,

com inauguração prevista para 2021

Universo expandidoParcerias internacionais e investimentos de R$ 200 milhões nos próximos 10 anos fortalecem a astrofísica em São Paulo

Vegetação natiVaCaatinga encolheu o equivalente à área de Portugal

acerVosImagens, documentos e jornais digitalizados aperfeiçoam trabalho de pesquisadores

LiteratUraEstudos procuram definir parentescos culturais e estilo de Carolina de Jesus

entreVistananUZa de meneZesA intimidade das plantas revelada pela anatomia

O que a ciência

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PESQUISA FAPESP 231 | 3

A orquídea discretaFoi por cacoete de biólogo que o olhar de Carlos Eduardo

de Siqueira se prendeu no ponto esbranquiçado do

tronco sobre o qual crescia uma orquídea, foco de seu

mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina,

em Florianópolis. Olhando de perto, viu que se tratava

de um talo de 8,5 milímetros (mm) com sete flores,

cada uma delas com menos de 2 mm. Convocou o colega

Edlley Pessoa, da Universidade Federal de Pernambuco,

e juntos descreveram a nova espécie, Campylocentrum

insulare. A diminuta planta sem folhas, com poucas raízes

e uma inflorescência que está entre as menores

conhecidas em orquídeas, ainda não voltou a ser

encontrada na natureza.

Foto enviada pelo biólogo Carlos Eduardo de Siqueira

FotolAb

Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para [email protected], com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

1mm

2mm

4 | maio DE 2015

CAPA18 Parcerias e investimento de quase R$ 200 milhões devem impulsionar a astrofísica

ENTREVISTA26 Nanuza de MenezesBotânica ajudou a estabelecer a anatomia vegetal como área de estudo no país

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

32 InfraestruturaDigitalização de acervos ajuda a aperfeiçoar o trabalho de pesquisadores

39 ExperimentaçãoCientistas debatem como reduzir uso de animais em testes

40 InovaçãoCentro vai integrar áreas para avaliar e promover o bem-estar

42 BiocombustíveisComitê sugere que é possível expandir bioenergia sem gerar danos ambientais

CIÊNCIA

46 AmbienteImagens de satélite indicam perdas na Caatinga e no Cerrado

52 EcologiaModelos matemáticos reconstroem ação de animais hoje extintos na dispersão de sementes

54 BioquímicaBactéria Xanthomonas citri combate microrganismos competidores

57 EtologiaMachos de libélulas avaliam a própria força e a do oponente para definir estratégia de confronto

58 ImunologiaAlteração em gene desencadeia doença autoimune em bebês durante a gestação

60 FísicaExperimento usa redes aleatórias de cilindros de carbono para realizar operações matemáticas

TECNOLOGIA

62 PecuáriaNovas técnicas mapeiam a função de proteínas, carboidratos e lipídeos para obtenção de embriões bovinos melhores

68 MineraçãoNanopartículas podem ser usadas para a captura de metais

70 Pesquisa empresarialCom corpo técnico qualificado, Bradar desenvolve radares

75 Química analíticaAparelho portátil emprega radiação infravermelha para certificar a qualidade de produtos

HUMANIDADES

78 LiteraturaPesquisas buscam parentescos culturais de Carolina de Jesus

82 HistóriaO papel de negociantes de Lisboa nas operações com escravos em Angola

86 História da ciênciaO intercâmbio científico entre o Brasil e a Alemanha nazista

18

46

SEçÕES

3 Fotolab5 Cartas6 On-line7 Carta do editor8 Dados e projetos9 Boas práticas12 Estratégias14 Tecnociência88 Memória90 Arte92 Ficção94 Resenhas97 Carreiras99 Classificados

FoTo dA CAPA FusãO DE FOTO DE BABAK TAFREsHI / sCIENCE PHOTO LIBRARY (vIA LáCTEA) E ILusTRAçãO DE GIANT MAGELLAN TELEsCOPE – GMTO CORPORATION (GMT)

maio 231

PESQUISA FAPESP 231 | 5

na agricultura, fornecendo água e nu-trientes minerais e orgânicos às culturas, ao mesmo tempo que representa uma opção ambiental aceitável. Essa possi-bilidade esbarra em algumas particula-ridades. Em primeiro lugar, poucas cida-des no país têm ETE. Quando existem, raramente estão localizadas em locais que possam favorecer sua destinação às poucas culturas recomendadas pela legislação em vigor. Em segundo lugar, a alternativa para sua incorporação aos sistemas de irrigação por gotejamento não pode ser considerada satisfatória pelas seguintes razões: a) para evitar a obstrução dos gotejadores, a água de reúso deve ser submetida a um eficiente sistema de filtragem, o que pode elimi-nar grande parte de seus nutrientes; b) os sistemas de irrigação por gotejamen-to, em geral, são mais caros que outros sistemas alternativos e, por essa razão, recomendados para culturas com maior valor econômico; c) em encontros téc-nico-científicos sobre este tema, che-gou-se a um consenso que consiste em recomendar o sistema de irrigação por sulcos como o mais indicado para a dis-posição da água de reúso, como ocorre em vários países do mundo. Edmar José Scaloppi

FCA/Unesp

Botucatu, SP

Kits científicos A criação de kits para o ensino de ciên-cias (“Ciência ao alcance das mãos”, edi-ção 228) traz à tona uma preocupação com a falta de aulas práticas laboratoriais dentro das escolas públicas. Isso vem se tornando um problema porque muitos professores não têm essa cultura de la-boratório e acabam, depois de formados, despreparados para iniciar tal atividade por falta de capacitação específica. Marte Ferreira da Silva

Atibaia, SP

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

cArtAS [email protected]

Etelvino BecharaA entrevista com o professor Etelvino Bechara (edição 229) é uma aula de va-lorização à escola e aos educadores. Num momento em que se busca a valorização dos professores dos ciclos básico, funda-mental e médio, o professor Bechara, ao recordar e citar uma professora do giná-sio, nos lembra da forma mais eficiente de valorização, que é o reconhecimento. Quando esse renomado cientista retorna à sala de aula onde recebeu os ensina-mentos fundamentais, ele resgata a im-portância da escola para a sociedade. A entrevista, que aponta a generosidade deste professor e cientista, deveria ser lida em cada sala de aula e em todas as escolas, devido ao seu elevado apelo em favor da escola. Acredito que todos nós tivemos professoras Ilza Sad em nossas trajetórias. Eu tive esta sorte e, coinci-dência ou não, na mesma Manhuaçu do professor Bechara.Arcilan Assireu

IRN-Unifei

Itajubá, MG

Água de reúsoAinda que com características moder-nas e de inovação, a reportagem “A con-tribuição do campo” (edição 229) faz lembrar dos projetos da década de 1980 que combinavam o vinhoto (do proces-samento da cana para etanol) com es-goto doméstico. A acidez de um com a alcalinidade do outro tornaria a mistura praticamente inócua, com a mortandade de bactérias e outros vetores patógenos presentes no esgoto e a adequação do pH do vinhoto. A mistura poderia ser até lançada em corpos d’água – o oceano era o receptor previsto – sem maiores da-nos ambientais, além da carga orgânica. Assunto interessante a ser resgatado, do ponto de vista histórico da evolução da indústria sucroalcooleira em nosso país.Adilson roberto Gonçalves

Campinas, SP

Tem sido divulgadas (inclusive em Pes-quisa FAPESP) as vantagens associadas à utilização da água proveniente das es-tações de tratamento de esgoto (ETE)

cONtAtOS

Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra. No site também estão disponíveis reportagens traduzidas e as edições internacionais da revista em inglês, francês e espanhol

Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação pelo e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727 – 10º andar CEP 05415-012 São Paulo, SP

Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail para [email protected] Ou ligue (11) 3087-4237 De segunda a sexta das 9h às 19h

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Classificados: (11) 3087-4212 [email protected]

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6 | maio DE 2015

youtube.com/user/PesquisaFaPesP

on-linEw w w . r e v i s t a P e s q u i s a . F a P e s P. b r

x Pesquisadores do Laboratório de imunologia molecular da universidade rockefeller, estados unidos, obtiveram resultados promissores em testes com anticorpos humanos que combatem o vírus Hiv, causador da aids. em estudo publicado na Nature, eles relatam a diminuição em até 300 vezes da carga do vírus no sangue de pessoas infectadas ao administrarem doses do anticorpo 3bNc117. essa é a primeira vez que ele foi testado em humanos. segundo os pesquisadores, os resultados sugerem que esse anticorpo poderia se tornar uma nova ferramenta para o tratamento de pessoas infectadas com o vírus Hiv.

x artigos, equipamentos e manuscritos de pesquisas, entre outros materiais pessoais do professor e geneticista bernardo beiguelman, estarão em breve disponíveis ao público no centro de memória e arquivo da Faculdade de ciências médicas (Fcm) da unicamp. No dia 15 de maio será realizado no salão Nobre da Fcm um colóquio sobre o legado do geneticista, com palestras que abordarão aspectos de sua trajetória e a importância de seu acervo pessoal para a preservação da memória científica do país.

Exclusivo no site

Vídeos do mês

Pesquisadores criam modelo de fenômeno atmosférico luminoso com bolhas de sabão e ponteira a laser

Dispositivo é capaz de levitar objetos usando apenas o som

Léo

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conheça mais sobre o trabalho de biólogos na identificação de espécies que habitam as cavernas do brasil

Assista ao vídeo:

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Sociólogo José de Souza Martins explica o fenômeno dos linchamentos no Brasil

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ESTRATÉGIAS

Suporte para biotérios

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entre 20 e 24 de abril no perfil de Pesquisa FAPESP

PESQUISA FAPESP 231 | 7

cArtA do EdItor

A comunidade de astrofísicos de São Paulo deseja já há muito tempo au-mentar a produção científica e o

tamanho da pós-graduação na área, obter mais horas de observação nos principais telescópios do mundo e conseguir maior inserção e reconhecimento internacional. Embora essas aspirações venham se reali-zando, agora o objetivo é ir além: espera-se um salto qualitativo sem precedentes com o desenvolvimento de projetos realizados em parceria com consórcios de universi-dades do exterior e a participação em ob-servatórios em construção ou expansão na América do Sul e na Europa. Para tanto, a FAPESP investirá cerca de R$ 200 milhões nos próximos 10 anos, que deverão propiciar as condições para tornar São Paulo um polo internacional de astronomia.

A estratégia é unir-se aos que melhor fazem astrofísica no mundo e dividir com eles o custo de empreendimentos caros. Foi o que fizeram os pesquisadores de São Paulo ao fechar um acordo em torno de quatro grandes projetos que garantem a participação dos astrônomos em traba-lhos na fronteira do conhecimento sobre os quais pouco se sabe, como, por exemplo, a natureza da matéria e da energia escuras. O Giant Magellan Telescope (GMT), de 24,5 metros – que será o maior telescópio terrestre em 2021, quando ficará pronto –, o Cherenkov Telescope Array (CTA), o Javalambre Physics of the Accelerating Universe Astrophysical Survey (J-PAS) e o Large Latin American Milimeter Array (Llama) são projetos de pesquisa ambicio-sos, nos quais o Brasil entra como parceiro de vários países.

Os astrofísicos paulistas representam um terço da comunidade no país e res-pondem por 50% da produção científica da área. Além das quatro iniciativas ci-tadas, há várias outras, que também re-cebem financiamento da FAPESP e de

outras agências de fomento. Ao olhar o conjunto de projetos, é fácil ver que to-dos contribuirão para o avanço do setor. Uma das boas consequências de todo esse investimento é o fato de que o país estará bem aparelhado para fazer boa ciência astronômica pelos próximos 15 anos, se-gundo avaliam os pesquisadores. O editor especial Marcos Pivetta conta essa histó-ria a partir da página 18.

Outro investimento que traz contribui-ções relevantes para a pesquisa científica é a multiplicação de projetos de digitaliza-ção de acervos de bibliotecas, arquivos e museus, relata o editor de Política, Fabrício Marques (página 32). O que só era possível conhecer por meio de visitas agendadas, in loco, hoje se faz com tranquilidade a distância. Não há novidade nisso – o que é novo é o resultado desse esforço. A disse-minação dos acervos digitalizados facilita o trabalho do pesquisador, potencializan-do a qualidade da busca ou permitindo conhecer remotamente a amplitude dos documentos disponíveis. Os novos pes-quisadores já estão sendo formados nesse contexto de maior acesso às informações.

As facilidades da comunicação trazem também notícias pouco alvissareiras. Es-tudo realizado por centros de pesquisa do Brasil e da Suíça utilizando imagens de satélite indica que a Caatinga perdeu 9 milhões de hectares de vegetação nativa entre 1990 e 2010. O desmatamento está associado à agropecuária e ao uso de ma-deira como fonte de energia em residên-cias e indústrias, conta o editor especial Carlos Fioravanti (página 46). Dos seis biomas brasileiros, a Caatinga está entre os que recebem menos atenção, embora sua área se estenda por 10 estados, qua-se todos no semiárido nordestino. Talvez esse trabalho ajude a jogar luz sobre a rica diversidade biológica da região e as transformações pelas quais tem passado.

Os próximos 15 anosNeldson Marcolin | editor-chefe

celso laferPresidente

eduardo Moacyr Kriegervice-Presidente

coNSElho SUPErIor

celso lafer, eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, horácio lafer Piva, joão grandino rodas, Maria josé soares Mendes giannini, Marilza vieira cunha rudge, josé de souza Martins, Pedro luiz Barreiros Passos, suely vilela saMPaio, yoshiaKi naKano

coNSElho técNIco-AdMINIStrAtIvo

carlos henrique de Brito cruzdiretOr científicO

joaquiM j. de caMargo englerdiretOr AdministrAtivO

coNSElho EdItorIAlcarlos henrique de Brito cruz (Presidente), caio túlio costa, eugênio Bucci, fernando reinach, josé eduardo Krieger, luiz davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo leite, Maria hermínia tavares de almeida, Marisa lajolo, Maurício tuffani, Mônica teixeira

coMItê cIENtíFIcoluiz henrique lopes dos santos (Presidente), anamaria aranha camargo, carlos eduardo negrão, celso lafer, fabio Kon, francisco antônio Bezerra coutinho, joaquim j. de camargo engler, josé roberto de frança arruda, josé roberto Postali Parra, lucio angnes, Marie-anne van sluys, Mário josé abdalla saad, Paula Montero, roberto Marcondes cesar júnior, sérgio robles reis queiroz, Wagner caradori do amaral, Walter colli

coordENAdor cIENtíFIcoluiz henrique lopes dos santos

dIrEtorA dE rEdAção alexandra ozorio de almeida

EdItor-chEFE neldson Marcolin

EdItorES fabrício Marques (Política), Marcos de oliveira (Tecnologia), ricardo zorzetto (Ciência); carlos fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe ciais); Bruno de Pierro e dinorah ereno (Editores-assistentes)

rEvISão daniel Bonomo, Margô negro

ArtE Mayumi okuyama (Editora), ana Paula campos (Editora de infografia), Maria cecilia felli e alvaro felippe jr. (Assistente)

FotógrAFoS eduardo cesar, léo ramos

MídIAS ElEtrôNIcAS fabrício Marques (Coordenador) INtErNEt Pesquisa FAPESP onlineMaria guimarães (Editora)rodrigo de oliveira andrade (Repórter)

rádIo Pesquisa BrasilBiancamaria Binazzi (Produtora)

colAborAdorES alexandre affonso, alexandre teles, alice giraldi, daniel Bueno, daniel Kondo, elisa carareto, evanildo da silveira, fabio otubo, francisco Bicudo, igor zolnerkevic, juliana sayuri, liliana laganá, Márcio ferrari, orlando Margarido, Patrícia Birman, renato Moriconi, yuri vasconcelos

é ProIbIdA A rEProdUção totAl oU PArcIAl dE tExtoS E FotoS SEM PrévIA AUtorIzAção

PArA FAlAr coM A rEdAção (11) [email protected]

PArA ANUNcIAr Midia office - júlio césar ferreira (11) 99222-4497 [email protected] Classificados: (11) 3087-4212 [email protected]

PArA ASSINAr (11) 3087-4237 [email protected]

tIrAgEM 43.200 exemplaresIMPrESSão Plural indústria gráficadIStrIbUIção dinaP

gEStão AdMINIStrAtIvA instituto unieMP

PESQUISA FAPESP rua joaquim antunes, no 727, 10o andar, ceP 05415-012, Pinheiros, são Paulo-sP

FAPESP rua Pio Xi, no 1.500, ceP 05468-901, alto da lapa, são Paulo-sP

secretaria de desenvolviMento econôMico,

ciência e tecnologia govErNo do EStAdo dE São PAUlo

issn 1519-8774

fundação de aMParo à Pesquisa do estado de são Paulo

8 | maio DE 2015

DaDos E projEtos

temáticosUtilização de nanocarreadores contendo fármacos fotossensibilizantes e outros ativos aplicados a terapia celular e tratamento de patologias do sistema nervoso centralPesquisador responsável: Antonio Claudio Tedescoinstituição: FFCLRP-USPProcesso: 2013/50181-1Vigência: 01/01/2015 a 31/12/2019

estudos com Bunyaviridae causadores de doençaPesquisador responsável: Luiz Tadeu Moraes Figueiredoinstituição: FMRP-USPProcesso: 2014/02438-6Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2019

Geocronologia do Quaternário da costa sudeste e sul do BrasilPesquisador responsável: Shigueo Watanabeinstituição: IF-USPProcesso: 2014/03085-0Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2018

temáticos e JoVem PesQUisador recentesProjetos contratados em março e abril de 2015

rearranjos cromossômicos e sua importância na etiologia das doenças genéticas: investigação citogenômica e molecularPesquisadora responsável: Maria Isabel de Souza Aranha Melaragnoinstituição: EPM-UnifespProcesso: 2014/11572-8Vigência: 01/05/2015 a 30/04/2019

esfera pública e reconstrução: sobre a constituição de um paradigma reconstrutivo no campo da teoria críticaPesquisador responsável: Marcos Severino Nobreinstituição: CebrapProcesso: 2013/50181-1Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2020

JoVens PesQUisadoreseficácia terapêutica de nanopartículas de ouro em glioblastoma multiforme ou encefalopatia séptica em camundongasPesquisador responsável: Stephen Fernandes de Paula Rodriguesinstituição: ICB-USPProcesso: 2014/05146-6

Vigência: 01/03/2015 a 28/02/2019

arsênio e arroz: monitoramento e estudos de (bio)remediação para segurança alimentarPesquisador responsável: Bruno Lemos Batistainstituição: CCNHumanas-UFABCProcesso: 2014/05151-0Vigência: 01/03/2015 a 28/02/2019

investigação do papel da sinalização química e de mecanismos auxiliares na virulência de salmonella enterica sorovar Typhimurium e outros enteropatógenosPesquisador responsável: Cristiano Gallina Moreirainstituição: FCF de Araraquara-UnespProcesso: 2014/06779-2Vigência: 01/03/2015 a 28/02/2019

investigação da regulação epigenética em tumores sólidos pediátricosPesquisadora responsável: Mariana Maschiettoinstituição: CNPEM-MCTI

Processo: 2014/10250-7Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2018

o efeito da fragmentação sobre as funções ecológicas dos primatasPesquisadora responsável: Laurence Marianne Vincianne Culotinstituição: IB de Rio Claro-UnespProcesso: 2014/14739-0Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2019

Fatores antioxidantes do colostro bovino na proteção celularPesquisadora responsável: Debora Botequio Morettiinstituição: Esalq-USPProcesso: 2014/14937-7Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2019

seleção de microrganismos isolados de tilápia para utilização como probiótico em peixesPesquisadora responsável: Danielle de Carla Diasinstituição: IP/SAASPProcesso: 2014/15390-1Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2018

Formação de engenheiros no Brasil Graduação em engenharia no país: cursos, ingressantes e concluintes, redes pública, privada e total (2000-2013)

Fonte: 2000-2012 – Dados Engenharias 1991-2012, Inep/MEC, 2014; 2013 – Microdados Censo do ES 2013, Inep/MEC

Cursos Ingressantes ConCluIntes

ano Pública Privada total Pública Privada total Pública Privada total

2000 349 339 688 20.909 29.071 49.980 9.233 8.401 17.634

2001 354 391 745 22.207 34.725 56.932 9.549 8.228 17.777

2002 366 443 809 22.686 41 .113 63.799 10.515 9.087 19.602

2003 392 470 862 24.434 39.401 63.835 11.229 10.301 21.530

2004 435 519 954 25.670 39.125 64.795 12.533 10.969 23.502

2005 446 591 1.037 25.827 45.802 71.629 12.981 13.350 26.331

2006 485 668 1.153 28.602 52.239 80.841 13.865 16.090 29.955

2007 5 3 1 753 1.284 31.184 63.228 94.412 15.269 16.420 31.689

2008 583 912 1.495 33.139 80.433 113.572 15.433 16.510 31.943

2009 733 1.180 1 .913 41.831 88.727 130.558 16.333 20.944 37.277

2010 864 1.366 2.230 49.342 111.973 161.315 16.947 23.974 40.921

2011 936 1.604 2.540 51.952 147.347 199.299 18.371 26.404 44.775

2012 1.038 1.775 2.813 57.354 210.158 267.512 20.601 33.441 54.042

2013 1.038 2.087 3.125 58.091 227.683 285.774 20.156 40.420 60.576Variação

2000-2013 197% 516% 354% 178% 683% 472% 118% 381% 244%

ingressantes e concluintes por categoria administrativa em cursos de graduação na área, 2013

n Pública Federal

n Pública Estadual

n Pública Municipal

n Privada sem fins lucrativos

n Privada com fins lucrativos

inGressantes conclUintes

38%

15% 4%

1%

42%

24% 22%

10%

1%43%

n Pública Federal

n Pública Estadual

n Pública Municipal

n Privada sem fins lucrativos

n Privada com fins lucrativos

PESQUISA FAPESP 231 | 9

Má conduta no início da vida acadêmica

Expurgo de artigos controversos

Boas práticas

O vice-chanceler da Universidade de Sydney, Michael Spence, criou uma força-tarefa coordenada por ele próprio para rever estratégias de prevenção contra casos de má conduta acadêmica entre seus alunos de graduação. A decisão foi uma resposta a um dos maiores escândalos já registrados envolvendo fraudes nos primeiros anos de formação acadêmica. Mais de mil estudantes de 16 universidades australianas contrataram os serviços de um site, o MyMaster, que cobrava até mil dólares australianos, o equivalente a R$ 2,3 mil, para escrever trabalhos acadêmicos, relatórios ou apresentações de powerpoint e responder a testes on-line. O caso foi revelado pela rede de jornais, revistas e emissoras de rádio Fairfax Media, que teve acesso a 700 recibos de depósitos na conta bancária do MyMaster, num total de 160 mil dólares australianos só no último ano.

Enquanto outras quatro universidades da Austrália – Newcastle, Macquarie, Tecnológica de Sydney e NSW – já haviam flagrado alunos usuários do serviço fraudulento com a ajuda do software antiplágio Turnitin, a Universidade de Sydney, que é a mais antiga e uma das mais respeitadas do país, mostrou-se incapaz de detectar casos. Em novembro, a Fairfax Media apresentou à universidade 40 trabalhos acadêmicos fraudulentos encomendados por seus estudantes, mas apenas cinco alunos foram identificados numa investigação interna. “Nossos processos de avaliação foram criados para minimizar a possibilidade de má conduta, mas

o advento de novas tecnologias tem criado formas inovadoras de fraude e um pequeno número de estudantes insiste em utilizá-las”, disse Spence ao jornal The Sydney Morning Herald. “Vamos considerar novos métodos de detecção de plágio e fraude e mudar processos de avaliação para reduzir o risco de que alunos sejam desonestos, a fim de fomentar uma cultura que valorize a integridade científica.”

A MyMaster iniciou suas atividades em 2012 e divulgava seus serviços em banheiros de universidades e em redes sociais. Os estudantes faziam encomendas no site e informavam o conteúdo e as referências que deveriam constar no trabalho, pagando 50% do serviço. A encomenda era repassada a ghostwriters, que entregavam metade da

A revista Meccanica, vinculada à editora Springer, anunciou a retratação de 11 artigos científicos de autoria de Alberto Carpintieri, professor da Universidade politécnica de Turim e ex-diretor do Instituto Nacional de pesquisa em Metrologia da Itália (Inrim). A justificativa é que o processo editorial que levou à publicação dos artigos estava comprometido. A revista era editada, até o ano passado, pelo próprio Carpintieri, figura polêmica da ciência italiana. Em 2012, mais de mil cientistas assinaram uma petição pedindo o seu afastamento do comando do Inrim e a suspensão do financiamento de pesquisas sobre a fissão piezonuclear, controversa forma de geração de energia proposta pelo professor

que seria resultante da compressão de rochas, por exemplo, em terremotos. Outros pesquisadores tentaram reproduzir os experimentos do italiano que lastreavam seu achado, mas não conseguiram. Carpintieri também propusera num artigo científico de 2013 que o Sudário de Turim, pano de linho que teria sido usado como mortalha de Jesus Cristo segundo a crença católica, realmente tem mais de 2 mil anos, mas a datação do carbono 14, que o aponta como mais novo, teria sido comprometida por um terremoto ocorrido em Jerusalém no início da era cristã. Esse, aliás, foi um dos artigos que tiveram a publicação suspensa pelos editores da Meccanica.

encomenda. Se o usuário gostasse do resultado, pagava a outra metade e recebia o trabalho inteiro. O site saiu do ar depois do escândalo.

da

niE

l b

uEn

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Tecnologia Social Fundo Rotativo Solidário no Sertão Baiano, fi nalista do Prêmio em 2013.Tecnologia Social Fundo Rotativo Solidário no Sertão Baiano, fi nalista do Prêmio em 2013.

Ideias que mudam a realidade dos brasileiros merecem ser reconhecidas. Inscreva as iniciativas da sua comunidade que representam efetivas soluções de transformação social e compartilhe as boas práticas com todo o país.

Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social 2015Leve para todo o país as soluções que transformaram a sua comunidade.

R$600 mil em prêmiosInscrições até 31 de maio no site fbb.org.br/tecnologiasocial

Realização:

A N O S

Patrocínio:Parceria Institucional:

Multilateral Investment FundMember of the IDB Group

Tecnologia Social Fundo Rotativo Solidário no Sertão Baiano, fi nalista do Prêmio em 2013.Tecnologia Social Fundo Rotativo Solidário no Sertão Baiano, fi nalista do Prêmio em 2013.

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12 | maio DE 2015

Estratégias

Laços estreitos entre Brasil e Argentina

O índice de colaborações entre a Argen-tina e o Brasil é um dos mais altos do mundo e segue crescendo. Era de 4,94 em 1997 e chegou a 5,81 em 2012 (ver quadro), como mostra o relatório Scien-ce and Engineering Indicators 2014 pu-blicado pela National Science Foundation (NSF). Segundo a metodologia adotada pela NSF, valores maiores que 1 indicam colaboração superior ao que seria espe-rado levando-se em conta o perfil dos parceiros, enquanto valores menores que 1 revelam colaborações aquém da expectativa. “Apesar de a cooperação entre o Brasil e a Argentina ser intensa,

tem muito espaço para crescer”, diz Mar-celo Knobel, coordenador adjunto de colaborações em pesquisa da FAPESP. “São Paulo está a apenas duas horas de avião de Buenos Aires. O grau de matu-ridade da ciência dos dois países, os laços culturais e históricos e a proximi-dade da língua mostram que é possível ampliar as colaborações.” O relatório da NSF mostra que colaborações científicas entre países latino-americanos são mais intensas do que a média mundial. O ín-dice entre a Argentina e o México foi de 3,88 em 2012. Já entre Brasil e Estados Unidos o índice registrou 0,96.

Pesquisadores de São Paulo e da Argentina reuniram-se em Buenos Aires entre 7 e 10 de abril para discutir novas parcerias e intensificar as colaborações científicas já em curso. O simpósio FAPESP Week Buenos Aires, organizado pela FAPESP e o Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet) da Argentina, apresentou avanços obtidos pela ciência paulista e portenha em áreas como astronomia, alimentos funcionais, energia, nanotecnologia, informação quântica e saúde. “Levamos a Buenos Aires um número significativo de pesquisadores do estado de São Paulo, o maior entre as edições da FAPESP Week”, diz

Diálogo em Buenos Aires

Marcelo Knobel, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador adjunto de colaborações em pesquisa da FAPESP. No primeiro dia do evento, foi inaugurada no Palácio Pereda a exposição Brazilian Nature, dedicada à divulgação da biodiversidade brasileira. Uma mesa-redonda no dia 8 de abril discutiu parcerias em grandes projetos, como o Sirius, a nova fonte brasileira de luz síncrotron que deve entrar em operação em 2019. Pesquisadores da Argentina são os principais usuários estrangeiros da fonte atual no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas, em operação desde 1997. Também foram debatidas iniciativas no campo da

Mesa-redonda no simpósio (acima) e inauguração da exposição Brazilian Nature, com a presença do presidente da FAPESP Celso Lafer e o embaixador do Brasil na Argentina, Everton Vieira Vargas

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* Valores maiores que 1 indicam mais colaboração que o esperado; menores que 1, colaboração aquém do esperado

Fonte SCIENCE AND ENgINEErINg INDICATOrS 2014/NSF

astronomia que reúnem os dois países, como o projeto Llama e o observatório de raios cósmicos Pierre Auger (leia reportagem à página 18). Um dos dias do simpósio foi dedicado integralmente às humanidades, campo em que as colaborações entre pesquisadores de São Paulo e Argentina são fortes. No último dia,

um dos destaques foi o debate sobre cooperação entre universidades e empresas. “O rico histórico de parcerias existente entre pesquisadores da Argentina e do estado de São Paulo torna natural um aprofundamento dessa antiga relação que, além de duradoura, é bastante profícua”, disse o presidente da FAPESP, Celso Lafer.

Índice de coLABorAção gLoBALRegião Parcerias 1997* 2012*

Américas Argentina-Brasil 4,94 5,81

México-Argentina 2,50 3,88

Canadá-EUA 1 , 1 9 1 , 1 4

EUA-Brasil 0,83 0,96

Atlântico norte EUA-reino Unido 0,68 0,77

EUA-Alemanha 0,67 0,72

EUA-França 0,57 0,66

europa Noruega-Suécia 4,38 4,61

França-Alemanha 0,75 1,06

Alemanha-reino Unido 0,70 0,98

Pacífico norte Japão-EUA 1,00 0,86

China-EUA 0,79 1 ,10

Coreia do Sul-EUA 1,38 1,25

Ásia/Pacífico Sul Austrália-Nova Zelândia 4,33 3,65

Coreia do Sul-Japão 2,20 1,93

Índia-Japão 0,78 1,06

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PeSQUiSA FAPeSP 231 | 13

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A União Africana, que congrega 54 países do continente, vai criar até julho uma agência de combate ao vírus ebola. Com sede em Adis Abeba, na Etiópia, os African Centres for Disease Control and Prevention (ACDC) contarão com uma rede de laboratórios espalhados por vários países, nos moldes do European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC), em Estocolmo. A ACDC terá um orçamento de US$ 6,9 milhões até dezembro de 2016 e 11 funcionários. Segundo especialistas ouvidos pela revista Nature, as condições iniciais do projeto estão muito aquém do que seria necessário para

colocar em operação uma agência de saúde com atuação em todo o continente. “O orçamento e o quadro de funcionários são desproporcionais aos objetivos da agência”, disse Lawrence gostin, professor de Saúde Pública da Universidade de georgetown, em Washington. Em editorial, a Nature classificou o projeto como oportuno, mas de formato inadequado: “É bem-vinda a ideia de um centro para o controle do ebola em todo o continente. Mas para que ela sobreviva e deixe de ser apenas uma promessa são necessários mais recursos”. O editorial cita a estrutura do norte- -americano Centers for

Programa do cérebro mergulha em crise

O comitê executivo do Projeto do Cérebro humano (hBP, na sigla em inglês), esforço de € 1 bilhão lançado em 2013 pela Comissão Europeia para impulsionar a pesquisa em neurociência e computação, foi dissolvido em meio a uma crise que deve provocar mais mudanças na iniciativa. O problema eclodiu no ano passado, quando um grupo de 100 neurocientistas acusou os dirigentes do programa de má gestão e ameaçou boicotá-lo. Um comitê de avaliação foi convocado para examinar as queixas e concluiu que muitas

delas são procedentes. Uma das críticas está relacionada à decisão da administração do programa de restringir a participação de pesquisadores do campo da neurociência cognitiva, que estuda a base biológica de processos mentais, como memória e aprendizagem. A ausência de cientistas dessa área nas próximas etapas do projeto, diz o relatório, “subverte as ambições de integrar e validar abordagens múltiplas para simular o funcionamento do cérebro”. O documento também pede que sejam incluídos experimentos

Agência contra o ebola

O engenheiro Carlos Américo Pacheco deixou a reitoria do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos (SP), para assumir a direção geral do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas, organização social ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) que reúne os laboratórios nacionais de Luz Síncrotron (LNLS), de Biociências (LNBio), de Ciência e Tecnologia de Bioetanol (CTBE) e de Nanotecnologia (LNNano). Doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), fez pós-doutorado na Universidade Columbia, nos Estados Unidos. Américo Pacheco foi secretário-executivo do MCTI entre 1999 e 2002 e secretário adjunto da Secretaria de Desenvolvimento Econômico do estado de São Paulo em 2007.

Novo diretor do CNPEM

Disease Control and Prevention (CDC), que iniciou as atividades em 1946 com um orçamento de US$ 120 milhões e hoje, com 15 mil funcionários, gasta US$ 7 bilhões por ano. Mais de 10 mil pessoas morreram na epidemia de ebola que atingiu a África Ocidental a partir de março de 2014.

com primatas, que não estavam previstos originalmente. O documento lança críticas ao líder do projeto, henry Markram, pesquisador do Swiss Federal Institute of Technology, da Suíça. “Ele não é apenas membro de todos os órgãos de tomada de decisão, execução e gestão do hBP, mas também ocupa a presidência e supervisão dos processos administrativos. Além disso, nomeia membros da equipe de gestão”, diz o relatório. O hBP reúne 130 instituições de pesquisa de 26 países.

Técnicos fazem testes para confirmar casos de ebola em laboratório na Libéria

Simulação computacional do cérebro humano na Universidade de heidelberg, na Alemanha

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14 | maio DE 2015

Nenhum ecossistema da Terra estoca tanto carbono como a Amazônia. Contendo de duas a quatro centenas de bilhões de árvores, a maior floresta tropical do mundo armazena 17% de todo o carbono retido pela vegetação terrestre do planeta. Uma equipe internacional de pesquisadores verificou, porém, que apenas 1% das espécies de árvores da Amazônia responde por metade do armazenamento e da produção desse carbono (Nature Communications, 28 de abril). O estudo foi liderado por Sophie Fauset, bióloga da Universidade de Leeds, no Reino Unido, que atualmente realiza um estágio de pós-doutorado na Universidade Estadual

Campeãs amazônicas

de Campinas, e envolveu a participação de colaboradores de 64 instituições europeias, norte-americanas e sul-americanas (11 delas, brasileiras). Já se sabia que, apesar da grande diversidade de árvores amazônicas, poucas das 16 mil espécies dominam a floresta: metade das árvores da região pertence a apenas 227 espécies. Agora os pesquisadores analisaram dados sobre 200 mil árvores de 3.458 espécies, coletados em 530 locais espalhados pela Amazônia, e concluíram que a capacidade da floresta de produzir e armazenar carbono é ainda mais concentrada. Apenas 147 espécies de árvores, a maioria delas de grande porte,

TEcnociência

concentram metade da biomassa da floresta. Sophie e seus colegas alertam, entretanto, que essa conclusão não significa que a diversidade amazônica não seja importante para garantir a sobrevivência da floresta no longo prazo. Alterações no clima do planeta podem levar outras espécies a se tornarem dominantes.

Exercício e concentração

Bastam poucos minutos de atividade física intensa para uma boa melhora na concentração de crianças e adolescentes com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), problema neuropsiquiátrico que atinge até 9% das pessoas com menos de 18 anos e 4% dos adultos. Correr por cinco minutos foi suficiente para deixar o nível de atenção de um grupo de crianças e adolescentes com TDAH próximo ao de quem não tem o problema. Pesquisadores da Universidade de Mogi das Cruzes e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo quantificaram o impacto da atividade física durante um teste realizado com 56 meninos e meninas com idade entre 10 anos e 16 anos. Quatorze garotos com TDAH e 14 sem realizaram uma prova em que tinham de correr durante cinco minutos, enquanto os demais observavam. Em seguida, todos descansaram por cinco minutos antes de iniciar o desafio seguinte: um jogo de computador. Os participantes com TDAH que haviam se exercitado cumpriram a segunda tarefa 30% mais rápido do que aqueles que só haviam descansado – tempo semelhante ao gasto por garotos sem o problema (PLoS One, 24 de março).

Armazenadoras: árvores de grande porte incorporam mais carbono

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PESQUISA FAPESP 231 | 15

São Francisco durante o seu pós-doutorado com bolsa da FAPESP. O equipamento consegue captar a mudança no perfil elétrico da pele degradada (medida por uma técnica chamada impedância) e faz um mapeamento do seu estado de saúde. A pesquisa tinha como objetivo inicial desenvolver um sensor para monitorar a cicatrização de feridas crônicas e o efeito do uso de medicamentos. “No decorrer do trabalho encontramos outro uso para o sensor”, relata Pavinatto, um dos autores do artigo científico que descreve o dispositivo, publicado em 17 de março na Nature Communications.

O custo da obesidade

A obesidade impõe um custo alto à saúde das pessoas e da administração pública. Estimativas indicam que as pessoas obesas – com índice de massa corporal (IMC) superior a 30 –vivem de 2 a 10 anos a menos do que as mais magras. O problema não termina aí. Além de furtar anos de vida, a obesidade consome boa parte dos recursos destinados à saúde. Em 2011 o sistema público de saúde do Brasil gastou US$ 269,6 milhões com consultas, cirurgias e outros procedimentos para tratar a obesidade e os problemas decorrentes dela. Esse valor corresponde a 1,86% do

orçamento do Ministério da Saúde para os tratamentos ambulatoriais e hospitalares (PLoS ONE, 1º de abril). Michele Lessa, Leonor Santos e Everton Nunes da Silva, da Universidade de Brasília, calcularam o custo da obesidade a partir de um levantamento que pesou e mediu 188,4 mil brasileiros commais de 20 anos e de dados fornecidos pelo sistema de informação em saúde do ministério. Os casos de obesidade mórbida (IMC superiora 40) representam apenas 0,8% do total, mas são os que saem mais caro. Consumiram US$ 64,2 milhões.

A perereca das nascentes

As águas transparentes de riachos da serra do Japi, ao lado de Jundiaí, no inte-rior paulista, acabam de revelar uma nova espécie de perereca: a Hylodes japi, que tem um comportamento reprodutivo bastante peculiar. Quando um macho atrai uma parceira, ele a conduz para a câmara que escavou na areia do fundo do riacho, em meio às pedras, com uma entrada estreita por onde o casal entra (um de cada vez) para fertilizar os ovos e depositá-los. O biólogo Fábio de Sá

descobriu a nova espécie durante seu mestrado, feito sob a orientação de Cé-lio Haddad, na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro (Herpeto-logica, março de 2015). Tempos antes, o próprio Haddad já tinha encontrado animais dessa espécie, mas os identifi-cando como sendo de outra, semelhan-te. A identificação não é a única novida-de. “Além de ser bastante raro de ser observado, esse comportamento repro-dutivo só era conhecido para peixes até

ser descrito para algumas outras espécies dessa família de anfíbios”, conta Sá. O nome científico da perereca é uma ho-menagem ao único lugar onde foi acha-da: uma floresta preservada por um parque estadual. O local está sob a amea-ça constante de cidades populosas da vizinhança – o parque está no município de Jundiaí e a cerca de 60 quilômetros do centro de São Paulo. Em tupi, japi significa nascentes, justamente os hábi-tats naturais da nova espécie.

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Cicatrização controlada

Uma placa com circuito eletrônico impresso permite analisar o processo de cicatrização da pele e avaliar a necessidade de prescrição ou não de medicamentos e o seu efeito. O dispositivo é flexível e transparente, o que facilita a sua aplicação no local do ferimento. O principal uso deverá ser no atendimento a pacientes que ficam acamados por longos períodos e desenvolvem úlceras de pressão. “O dispositivo permite detectar feridas antes mesmo de aparecerem na pele”, diz Felippe Pavinatto, do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo, que participou do projeto desenvolvido na Universidade da Califórnia em Berkeley e

Circuito eletrônico impresso aplicado em sensor flexível e transparente que avalia estado de saúde da pele

Hylodes japi: na hora de acasalar, o macho leva a fêmea para uma câmara no fundo do riacho

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16 | maio DE 2015

Microscópio no celular

Os smartphones estão se transformando em plataforma para uma série de atividades. A mais recente é a possibilidade de utilizar qualquer desses aparelhos em um microscópio de fluorescência para fazer o escaneamento de DNA. Ele será destinado ao uso em locais remotos para diagnóstico de diferentes tipos de câncer e doenças neurológicas, além de detectar resistência a medicamentos contra doenças infecciosas. Para isso, será preciso acoplar ao celular um kit com uma pequena lente, filtros e laser. A novidade é de pesquisadores liderados por Aydogan Ozcan, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles (Ucla). Para uso do microscópio é preciso isolar e etiquetar o DNA desejado e marcá-lo com fluorescência. Esse procedimento é possível mesmo em ambientes com recursos limitados. A informação digitalizada é enviada pela internet do celular para análise em laboratório.

Dinheiro com pó

A maior parte das notas de real que cir-culam na capital e em outros 10 municí-pios do Rio de Janeiro apresenta vestígios de cocaína, indica uma análise realizada por pesquisadores da Universidade Fe-deral Fluminense. O químico Wagner Pacheco e sua equipe mediram a con-centração do entorpecente em 144 no-tas de real de diferentes valores obtidas em diversos pontos comerciais das 11 cidades e constataram que, em média, 86% das notas continham níveis detec-táveis da droga. As notas que apresen-tavam traços de cocaína com mais fre-quência foram as de menor valor: R$ 2, R$ 5 e R$ 10. Embora a presença da cocaína no dinheiro fosse amplamente disseminada, sua concentração pratica-mente não variou nas notas coletadas em diferentes regiões. A explicação, segundo os pesquisadores, é a alta cir-culação do dinheiro, em especial das notas de menor valor, dissemina rapida-

mente a contaminação pelo entorpecen-te (Forensic Science International, feve-reiro de 2015). Pacheco e sua equipe acreditam que a espectrofluorimetria, técnica usada por eles para medir a con-centração de cocaína nas cédulas de dinheiro, talvez possa ter uma validade forense: ajudar a identificar se uma pes-soa manipulou ou não cocaína. Notas apreendidas pela polícia fluminense com traficantes e usuários da droga apresen-tavam concentrações de coca cerca de 30 vezes mais elevadas.

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Biodiesel de moringa

O óleo das sementes da Moringa oleifera, árvore originária da Índia e comum no Nordeste do Brasil, pode ser usado na produção de biodiesel, e o extrato de suas folhas, na produção de aditivos antioxidantes que retardam a degradação química do combustível. A conclusão é de pesquisadores da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Minas Gerais. Em um estudo publicado na revista Fuel de 15 de abril, eles produziram biodiesel de moringa com propriedades físico-químicas dentro das especificações dos órgãos regulatórios. O biodiesel de moringa

apresentou uma estabilidade oxidativa superior à da maioria dos combustíveis produzidos no país. A estabilidade oxidativa refere-se ao período em que ele consegue manter certas propriedades antes de se degradar. Essa reação química, chamada de oxidação, leva à produção de compostos que podem corroer as peças do motor e obstruir o sistema de injeção. Assim, quanto mais um combustível demora para oxidar, melhor a sua qualidade e eficiência. No estudo, os pesquisadores adicionaram um extrato da folha da árvore a amostras de

biodiesel feitas de soja, milho, canola e girassol. Com isso aumentou a estabilidade oxidativa desses combustíveis. “Nossos resultados evidenciam o potencial antioxidante do extrato das folhas da M. oleifera como aditivo para biodiesel”, diz o químico Rodrigo Muñoz, autor principal do estudo.

Extrato das folhas da Moringa oleifera serve como aditivo antioxidante

PESQUISA FAPESP 231 | 17

As imensas galáxias conhecidas como vermelhas e mortas, por causa da coloração predominante das estrelas muito antigas que as compõem, parecem não estar tão mortas assim. Sandro Tacchella, do Instituto de Astronomia de Zurique, na Suíça, e seus colaboradores analisaram imagens de 22 dessas galáxias e viram que essas gigantes vermelhas não se tornaram inativas. Na realidade, elas continuam a gerar estrelas, mas em outras regiões. Quando jovens, essas galáxias originavam uma

quantidade enorme de estrelas em seu miolo. Aos poucos, a produção foi transferida para zonas cada vez mais periféricas – um processo que, estima-se, deve levar bilhões de anos (Science, 17 de abril). Em outro trabalho, o grupo de Andra Stroe, do Observatório de Leiden, na Holanda, e David Sobral, que além de Leiden é da Universidade de Lisboa, em Portugal, identificou um fenômeno quepode representar uma

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breve recuperação de fôlego para essas galáxias. A fusão de galáxias menores gera uma onda de choque que se espalha feito um tsunami e leva à produção de uma nova geração de estrelas (Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, 23 de abril). é possível, porém, que a imensa quantidade de gás liberada nesse processo deixe a galáxia exaurida e, portanto, ainda mais vermelhae moribunda.

Borracha de dente-de-leão

O dente-de-leão russo (Taraxacum kok-saghyz), planta rústica comum em regiões de clima temperado e subtropical, produz um complexo de proteínas que desempenha um papel-chave na produção da borracha natural. Pesquisadores da Universidade de Münster, do Instituto Fraunhofer de Biologia Molecular e Ecologia Aplicada (IME) e da Universidade Técnica de Munique, todos na Alemanha, em colaboração com a empresa TRM, de York, no Reino Unido, descobriram dois componentes para o processo de biossíntese da borracha de dente-de- -leão, o que poderá levar ao desenvolvimento biotecnológico do produto com diversas aplicações médicas e industriais. Uma das proteínas identificadas funciona como ativador do processo de produção da borracha. Os resultados do estudo foram publicados na edição on-line de 27 de abril da revista Nature Plants. Outra proteína identificada é responsável pela formação de cadeias longas de um polímero que confere à borracha as propriedades de elasticidade e resistência.

Pesquisadores da Universidade de Purdue, em west Lafayette, nos Estados Unidos, desenvolveram um novo método para facilitar a produção em larga escala de condutores elétricos flexíveis e elásticos impressos a jato de tinta. A técnica consiste na dispersão de metal líquido em um solvente não metálico, como o etanol. Esse processo, segundo os pesquisadores, quebra a substância em minúsculas partículas que, revestidas com óxido de gálio, conseguem passar sem problema pelo bocal do jato de tinta da impressora.

Conexões flexíveis

Após a impressão, o solvente evapora, deixando apenas as partículas, que são reagrupadas e transformadas em material condutor, conforme estudo publicado na revista Advanced Materials em 18 de abril. Segundo os pesquisadores, os condutores feitos de metal líquido podem ser esticados e deformados sem que se quebrem, de modo que o método pode permitir a impressão em materiais elásticos e em tecidos. Se o projeto avançar, a técnica poderá ser usada para a produção de pequenos robôs maleáveis destinados

a deslocamentos em espaços reduzidos onde precisem se esticar para alcançar um objetivo. O circuito impresso em roupas elásticas poderá ter uso terapêutico.

velhas e quase mortas: galáxias gigantes ricas em estrelas vermelhas cessam a produção estelar a partir do centro

Circuitos eletrônicos impressos em material elástico podem ser esticados

Galáxias moribundas

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Parcerias internacionais e investimento

de quase R$ 200 milhões nos próximos 10 anos

devem impulsionar a astrofísica de São Paulo

A era das grandes observações

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Acomunidade astrofísica paulista, que reúne um terço dos pesquisadores e metade da produção científica nacio-nal da área, prepara-se para dar um salto qualitativo daqui até meados da

próxima década. Acordos recentes fechados com quatro grandes projetos internacionais garantiram a participação de pesquisadores de São Paulo em empreitadas de ponta da ciência mundial, cuja ambição é responder a algumas das questões mais fundamentais que levam os astrônomos a esqua-drinhar os céus com seus telescópios, satélites e sondas, como o enigma da vida extraterreste e a natureza da matéria escura e da energia escura, os dois principais constituintes do Universo sobre os quais quase nada se sabe. Até 2024, a FAPESP terá destinado quase R$ 200 milhões a esses projetos, sem contar os investimentos em outras iniciativas da área de astrofísica.

No campo das observações nas frequências da luz visível e do infravermelho, uma das iniciativas com vocação para expandir o olhar humano sobre o Cosmo é o Giant Magellan Telescope (GMT), de 24,5 metros (m), que se tornará o maior telescópio terrestre, quando for inaugurado, provavelmen-te em 2021, antes de seus concorrentes de maior

havaí

porte. Por meio de um acordo de US$ 40 milhões entre a Fundação e o consórcio internacional res-ponsável pelo gerenciamento da construção do supertelescópio, os astrofísicos de universidades e instituições de São Paulo terão direito a 4% do tempo de observação do GMT. “Com esse acordo, estamos garantindo o futuro da astrofísica no país e a ciência que estaremos fazendo em 2030”, diz o astrofísico João Steiner, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), idealizador e coordenador do projeto que alinhavou a entrada no GMT (ver reportagem sobre o supertelescópio à página 20).

Especialidade ainda não muito desenvolvida no país, a radioastronomia deverá ganhar um im-pulso com o Grande Arranjo Milimétrico Latino--americano, iniciativa de pesquisadores paulistas e argentinos mais conhecida por sua sigla em in-glês, Llama, uma bem-humorada referência a um dos membros da fauna típica dos Andes, onde, a 4.800 m de altitude, será instalada no primeiro semestre do próximo ano uma antena de 12 m de diâmetro. “Nosso radiotelescópio de Itapetinga, em Atibaia, está defasado e o Llama, muito mais sensível, será importante para os radioastrôno-mos”, diz Jacques Lépine, do IAG-USP, coorde-

18 | maio DE 2015

pESQUiSA fApESp 2XX | 19

nador do projeto. A antena poderá fun-cionar de forma isolada ou associada ao Atacama Large Milimeter/Submilimeter Array (Alma), no Chile, o maior projeto de radioastronomia do planeta.

As outras duas iniciativas internacio-nais abrangem áreas distintas da pesquisa em astrofísica. O Cherenkov Telescope Array (CTA) é um consórcio que reúne 29 países e vai montar dois conjuntos com mais de 100 telescópios de três tamanhos distintos. Será o maior observatório terres-tre para estudar raios gama de alta ener-gia. “Os projetos têm um escopo científico abrangente e são complementares”, diz Elisabete de Gouveia Dal Pino, do IAG--USP, uma das coordenadoras da participa-ção brasileira no CTA. “Pela primeira vez na história, poderemos fazer observações combinadas, abrangendo dados de todo o espectro eletromagnético: das frequências de rádio aos raios gama no outro extremo do espectro, passando pelo óptico.”

O Javalambre Physics of the Accelera-ting Universe Astrophysical Survey (J--PAS) é um projeto binacional, espanhol

Espanha

argentina

chile

Brasil

gEMiniDois telescópios ópticos

gêmeos de 8,1 m. um fica

no havaí, outro no chile.

O Brasil tem 6,2% do tempo

de uso total de ambos

gMt Deverá ficar pronto em 2021, no

chile. com 24,5 m, será o primeiro

dos supertelescópios ópticos a entrar

em atividade e produzirá imagens 10

vezes mais nítidas que as do hubble.

astrofísicos de São Paulo terão

4% de seu tempo de observação.

a faPESP investe uS$ 40 milhões

em parceria com o consórcio

LLAMAProjeto financiado pela faPESP e

pela argentina, o radiotelescópio de

12 m de diâmetro para ondas

milimétricas e submilimétricas

deverá ser instalado no próximo ano

nos andes argentinos. O Brasil

investe cerca de uS$ 9 milhões na

compra da antena e os argentinos

tocam a construção do observatório

pESQUiSA fApESp 231 | 19

tempo de observação O acesso do país a telescópios

internacionais e os novos projetos

cfHtaté 16 noites por ano é o

tempo de observação de que

os brasileiros dispõem no

telescópio de 3,6 m,

localizado no havaí

ESoa entrada do Brasil no ESO

espera aprovação no Senado.

mas os europeus dizem que

os brasileiros podem usar

seus telescópios no chile

nOvOS PROjETOS

TElEScóPiOS Em aTiviDaDE

ctA Projeto internacional que prevê a

construção do maior observatório de

raios gama até 2020. Será formado

por cerca de 100 telescópios

cherenkov, distribuídos em um sítio

no hemisfério Sul e outro no norte.

a participação brasileira inclui a

compra de três telescópios de 4 m

para o cTa mini-array

e brasileiro, que visa produzir, nos pró-ximos cinco anos, um mapa tridimensio-nal da distribuição de matéria em todo o Universo. O Brasil financia e coordena a construção da segunda maior câmera astronômica do mundo, a JPCam, com resolução de 1,2 bilhão de pixels e 59 fil-tros distintos, que será instalada em um dos telescópios da iniciativa.

“Há uma demanda reprimida entre os astrofísicos brasileiros por tempo de uso em telescópios internacionais”, afirma Bruno Vaz Castilho, diretor do Labora-tório Nacional de Astrofísica (LNA). A instituição federal administra a concessão de tempo que os pesquisadores nacionais têm à disposição nos telescópios Gemini, no Soar e no CFHT (Telescópio Canadá França Havaí). No final de 2010, o Brasil assinou um termo formal de adesão ao Observatório Europeu do Sul (ESO), con-sórcio de 15 países europeus que gerencia três sítios de observação astronômica no Chile. O acordo, que garante acesso à es-trutura do ESO, aguarda aprovação pelo Congresso Nacional.

SoArTelescópio óptico de 4,1 m,

localizado em cerro Pachón,

no chile. Desde 2005, o Brasil

conta com 30% de seu

tempo total de observação

J-pASvai mapear o universo em 3D.

Parceria de espanhóis e brasileiros,

contará com dois telescópios em

Teruel, Espanha. um deles terá a

segunda maior câmera astronômica

do mundo, com 59 filtros.

um telescópio brasileiro de 0,8 m,

recém-instalado no chile, vai

colaborar com o levantamento

20 | maio DE 2015

o primeiro dos gigantesPesquisadores paulistas terão 4% do tempo de observação do GmT, supertelescópio

terrestre que produzirá imagens 10 vezes mais nítidas do que as do hubble

Dotados de espelhos com diâmetro su-perior a 20 metros (m) de resolução 10 a 15 vezes maior do que a do teles-cópio espacial Hubble, o instrumento

de observação do Universo mais bem-sucedido dos últimos 25 anos, os supertelescópios ópticos baseados em terra firme deverão elevar a pesquisa astronômica e cosmológica a outros patamares na próxima década. Essa nova classe de obser-vadores gigantes dos céus terá uma capacidade de gerar dados nos comprimentos de onda da luz visível e do infravermelho sobre planetas, estrelas e galáxias sem paralelo na história da humanidade. Com eles, os astrofísicos esperam, por exemplo, produzir as primeiras imagens de planetas extrassolares semelhantes à Terra e, talvez, encontrar evidências irrefutáveis de vida

em mundos ao redor de outras estrelas que não o Sol. O Giant Magellan Telescope (GMT) está previsto para ser o primeiro supertelescópio a entrar em atividade. Ainda sem estar totalmente terminado, deverá começar a funcionar em 2021. A meta é, no ano seguinte, estar totalmente ope-racional, com 100% de sua capacidade. Esse, ao menos, é o plano por ora.

Projeto de US$ 1 bilhão tocado por um con-sórcio de sete universidades e instituições norte--americanas, dois centros de estudos astrofísicos da Austrália e o Instituto de Astronomia e Ciência Espacial da Coreia do Sul, o GMT incorporou, ofi-cialmente desde dezembro passado, as instituições de pesquisa do estado de São Paulo ao seu grupo de sócios. Naquela ocasião, após ter submetido a proposta de entrada no GMT a um processo de

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análise de aproximadamente três anos, a FAPESP aprovou o pedido e liberou a primeira das oito parcelas anuais de US$ 5 milhões que garantirão aos astrofísicos de universidades paulistas 4% do tempo de observação do equipamento e um representante no seu conselho de administração.

O supertelescópio será construído a 2.500 m de altitude no sul da porção chilena do deserto de Atacama, em um sítio do Observatório de Las Campanas, onde a Carnegie Institution for Scien-ce, umas das instituições americanas parceiras da empreitada, mantém telescópios desde o início dos anos 1970. “No passado, se não tivéssemos entrado nos telescópios Gemini e Soar, a astro-física brasileira teria definhado”, afirma João Steiner, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), coordenador do projeto que colocou as instituições paulistas no superteles-cópio. “Até o fim da próxima década, o mesmo poderia ocorrer se não tivéssemos fechado um acordo como esse com o GMT.”

rEdE pAULiStA dE AStronoMiADesde o ano 2000, a ciência feita no Pico dos Dias – o principal observatório situado em ter-ritório nacional, em Minas Gerais, que dispõe de três pequenos telescópios, o maior com espelho de 1,6 m de diâmetro – apresenta tendência de estagnação ou queda. Já a produção de artigos científicos de astrofísicos brasileiros feitos a par-tir de observações no Gemini e Soar cresce 17% ao ano. Está hoje na casa dos 40 papers a cada 12 meses. Os astrofísicos esperam que a entrada no GMT represente um novo impulso à área.

O quartel-general da parceria com o GMT fi-cará na USP, que trabalhou em prol do acordo e concentra a maior parte da produção científica em astrofísica do estado, mas os grupos de pes-quisa de outras universidades paulistas também poderão submeter projetos para uso do tempo de observação no supertelescópio. “Os investimentos recentes da FAPESP em projetos como o GMT, o Llama e o CTA criaram um potencial enorme para que São Paulo se torne um polo interna-cional de astrofísica”, afirma Augusto Damineli, também do IAG-USP, outro pesquisador envol-vido diretamente nas negociações que levaram à entrada de São Paulo como sócio do superte-lescópio. “Queremos montar uma rede paulista de astronomia, aumentar a produção científica e o tamanho das pós-graduações e investir em divulgação da ciência.”

Além do GMT, dois projetos, também vulto-sos, disputam a corrida dos telescópios gigantes: o Thirty Meter Telescope (TMT), iniciativa de US$ 1,2 bilhão bancada por um consórcio inter-nacional de instituições de pesquisa dos Estados Unidos, Canadá, Japão, China e Índia, que será

construído num ponto a mais de 4 mil m de al-titude dos Observatórios de Mauna Kea, no Ha-vaí, onde há mais de uma dezena de telescópios instalados; e o European Extremely Large Te-lescope (E-ELT), empreitada de pouco mais de € 1 bilhão patrocinada pelos estados-membros do Observatório Europeu do Sul (ESO), a ser instalado a 3 mil m de altitude no topo do Cerro Amazones, na região de Antofagasta, no deserto de Atacama, Chile.

O TMT e o E-ELT terão, respectivamente, es-pelhos de 30 m e de 39 m de diâmetro. Serão, portanto, maiores do que o GMT, cujos sete espe-lhos de 8,4 m vão funcionar em conjunto como se fossem um só espelho de 24,5 m, diâmetro duas vezes e meia maior do que o dos maiores teles-cópios terrestres hoje em atividade, como os dois Keck, no Havaí. O Brasil não terá acesso ao TMT, e a utilização do E-ELT, o projeto mais ambicioso do ESO, depende da ratificação do acordo fede-ral com o observatório europeu (ver página 22).

Em teoria, o cronograma de construções conta a favor do GMT, o menor dos supertelescópios, diante de seus competidores de maior porte. O TMT está previsto para iniciar suas atividades em 2023 ou no ano seguinte. O prazo mais oti-mista para a primeira luz do E-ELT é 2024. Nesse cenário, enquanto seus dois concorrentes ainda estariam terminando a fase de aquecimento, o GMT poderia correr com pista livre por talvez

ilustração de como será o GmT (ao lado) e representação artística de exoplaneta similar à Terra: estudo de outros mundos será prioridade

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22 | maio DE 2015

Em 19 de março, a câmara dos Deputados aprovou o projeto de decreto legislativo que contém o acordo de adesão do Brasil ao Observatório Europeu do Sul (ESO), firmado pelo governo federal em 29 de dezembro de 2010. O assunto agora está na pauta do Senado. caso ganhe o sinal verde também dos senadores, o Brasil se tornará oficialmente membro da instituição. O ESO reúne 15 países europeus mais o chile, onde fica sua base de operações, dividida entre três sítios de observação (Paranal, la Silla e chajnantor) com alguns dos melhores telescópios do mundo. O supertelescópio E-ElT, com espelho de 39 m de diâmetro, é o projeto mais ambicioso do ESO para meados da década de 2020.

Os termos originais do acordo previam pagamentos da ordem de € 270 milhões (pouco menos de R$ 900 milhões no câmbio do fim de abril) ao ESO entre 2011 e 2021. Desse total, € 130 milhões equivaliam à taxa de adesão ao observatório e € 140 milhões, ao valor das anuidades do período. como, até agora, o congresso nacional não aprovou a parceria, considerada excessivamente cara por alguns astrofísicos e de valor justo por outros, nenhum real foi destinado ao consórcio europeu. “Se olharmos de maneira pragmática, o processo tem avançado. as discussões são normais em uma sociedade democrática. mas, desde 2010, os brasileiros podem se candidatar a usar nossos telescópios”, afirma o astrofísico brasileiro claudio

melo, diretor de ciências do ESO no chile. Segundo melo, o observatório concordou em setembro do ano passado em retirar € 66 milhões do montante a ser pago pelo Brasil até 2021. “mas deverá haver ainda uma nova rodada de renegociação dos valores”, diz a professora Beatriz Barbuy, do iaG-uSP, uma das defensoras do acordo.

Telescópios no cerro Paranal, um dos sítios do ESO no chile: acordo foi assinado em dezembro de 2010, mas o congresso precisa ratificá-lo

Um acordo à espera de aprovaçãoEntrada no ESO aguarda posição do Senado

dois anos, se começar a operar em 2021. Tal van-tagem, acreditam seus defensores, aumenta a possibilidade de garantir a primazia de desco-bertas há tempos esperadas. “Um dos estudos mais excitantes do GMT será com os planetas de massa similar à da Terra. Ele será o primeiro telescópio com capacidade de confirmar a exis-tência desses planetas, de medir sua atmosfera e, se houver vida neles, detectá-la”, diz a astrofísica Wendy Freedman, da Universidade de Chicago, presidente do conselho de diretores do GMT.

Atualmente, entre os cerca de 1.900 exoplane-tas confirmados desde 1995, apenas entre uma e duas dezenas de mundos extrassolares se asse-melham realmente à Terra, a julgar pelas exíguas informações hoje disponíveis. Ou seja, poucos parecem ser os exoplanetas rochosos situados na chamada zona habitável, com temperaturas ame-nas e condições ambientais ideais para abrigar água líquida e fomentar vida. “Também vamos estudar a alvorada cósmica do Universo, os mo-mentos primordiais quando as primeiras estrelas, galáxias, supernovas e buracos negros estavam se formando”, informa Wendy. “Teremos o primeiro telescópio com sensibilidade para testemunhar esse processo, ver detalhes desses objetos tênues e medir suas distâncias.”

O lançamento da pedra fundamental do GMT ocorrerá em 11 de novembro deste ano, no Chile. O evento marcará o início das obras de engenha-

ria para edificação do observatório que abrigará o supertelescópio. A parte óptica do GMT vem sendo feita há anos. Três dos sete espelhos de 8,4m já foram moldados na Universidade do Ari-zona, uma das sócias do empreendimento. Um desses espelhos foi polido, etapa fundamental em seu processo de finalização. Neste mês, a cons-trução do quarto espelho será iniciada.

O GMT também disporá de um centro de fibras ópticas e quatro instrumentos observacionais, basicamente diferentes tipos de espectrógrafos, aparelhos que decompõem a luz em diferentes cores (ou espectros), como o ultravioleta e o in-fravermelho e as frequências visíveis. Um dos espectrógrafos, o GMTIFS, será ainda respon-sável pelas correções efetuadas pela técnica de óptica adaptativa, que reduz as distorções de imagem causadas pela turbulência do ar. “Nossa indústria tem condição de construir partes desses instrumentos”, diz a astrofísica Cláudia Mendes de Oliveira, do IAG-USP, que está fazendo conta-tos com empresas de São Paulo interessadas em fornecer serviços e peças para o GMT e outros projetos de astrofísica.

ProjetoExplorando o universo, da formação de galáxias aos planetas tipo--Terra, com o Telescópio Gigante magellan (nº 2011/51680-6); Moda-lidade Projetos Especiais; Pesquisador responsável joão Steiner (uSP); Investimento R$ 17.860.000,00 e uS$ 40.000.000,00 (faPESP).

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com instalação prevista para 2016

na argentina, a antena de 12 m do

llama será parecida com a do apex (acima), já em

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novos olhos no UniversoTelescópios vão estudar a matéria

e a energia escuras, os raios gama

e mapear o cosmo em 3D

a4.800 metros acima do nível do mar, situado na região argentina de Puna de Atacama, uma espécie de prolongamento da paisagem árida da porção leste chilena

do deserto do Atacama, o sítio de Alto Chorrillo deverá abrigar, a partir de abril do próximo ano, um radiotelescópio de 12 m de diâmetro, o Llama, sigla em inglês para o projeto Grande Arranjo Milimétri-co Latino-americano. Concebida e implementada por meio de uma parceria entre astrofísicos do estado de São Paulo e da Argentina, a moderna antena está prevista para entrar em operação, e produzir ciência, no início de 2017. Em linhas ge-rais, o acordo estabeleceu que os pesquisadores paulistas comprariam o radiotelescópio (com US$ 9,2 milhões financiados pela FAPESP) e os argen-tinos montariam a estrutura física para receber o equipamento e cuidariam de seu funcionamento. “Em princípio, cada país terá metade do tempo de observação do telescópio”, diz o astrofísico Jacques Lépine, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), mentor e coordenador do Llama em solo nacional. “Mas estamos estabelecendo projetos-chaves a ser tocados por equipes bina-

cionais.” Metade do valor da antena já foi paga e o restante será quitado quando o equipamento estiver 100% funcional. A parte argentina do projeto conta com financiamento da Secretaría de Articulación Científico Tecnológica do Ministerio de Ciencia, Tecnología e Innovación Productiva (MINCyT).

A localização da antena nesse ponto do noroes-te argentino segue critérios duplamente estraté-gicos. Em primeiro lugar, a Puna de Atacama tem um clima extremamente seco, com pluviosidade anual ligeiramente superior à do contíguo deserto do Atacama, o lugar mais seco do planeta. O vapor de água atmosférico é o principal empecilho para a realização de boas observações astronômicas em comprimentos de ondas milimétricos e sub-milimétricos, como a banda de frequências entre 90 gigahertz (GHz) e 900 GHz em que operará o Llama. Em segundo, o Llama dista, em linha reta, 150 quilômetros do Atacama Large Milimeter/Submilimeter Array (Alma), o maior projeto de radioastronomia do planeta, montado num ponto extremamente elevado do município chileno de San Pedro de Atacama. Formado por um conjunto de 66 antenas de 7 m e de 12 m instaladas no planalto de Chajnantor, a cerca de 5 mil m de altitude, o Alma entrou em funcionamento em março de 2013 (ver Pesquisa FAPESP nº 206). Vizinho ao radioexpe-rimento gigante, localizado igualmente no altipla-no de Chajnantor, há ainda o Atacama Pathfinder Experiment Telescope (Apex), radiotelescópio de 12 m do qual o Llama é quase um clone.

Inicialmente, o Llama funcionará de forma isola-da, sem se conectar ao Alma. Mas há a perspectiva de a antena brasileiro-argentina trabalhar de maneira integrada ao Alma e também ao Apex, como se todos formassem um único radiotelescópio descomunal. Para que isso ocorra, o projeto precisará receber um equipamento para fazer interferometria, técnica que combina os sinais de diferentes antenas e possibi-lita a obtenção de imagens com maior resolução.

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novo telescópio brasileiro de 0,80 m montado em cerro Tololo, chile (à esq. na imagem abaixo) e ilustração das oscilações acústicas de bárions: parceria com espanhóis no projeto j-PaS

Entre os objetivos científicos do Llama figuram possíveis estudos sobre a estrutura do Sol, das primeiras estrelas e galáxias, emissões de jatos e masers (um tipo de radiação similar ao laser) e também de planetas extrassolares. A procura por moléculas orgânicas no Cosmo deve ser uma das primeiras áreas de pesquisa a produzir trabalhos com a antena. Coordenador do Laboratório de Astroquímica e Astrobiologia da Universidade do Vale do Paraíba (Univap), de São José dos Cam-pos, o astrofísico Sergio Pilling pretende usar o radiostelescópio para esse fim. “Com um pouco de sorte, podemos descobrir moléculas ainda não localizadas no espaço se observarmos em deter-minadas radiofrequências”, diz Pilling.

UnivErSo EM rAioS gAMA Outro projeto ambicioso de âmbito internacional com participação de pesquisadores de São Paulo e de outros estados brasileiros é o Cherenkov Telesco-pe Array (CTA). Trata-se de um consórcio formado por 29 países que planeja construir até 2020 o maior observatório astronômico de raios gama do mundo, dedicado a entender os fenômenos mais energéticos do Universo. Entre esses eventos, figuram a colisão de partículas de matéria escura, a natureza dos ace-leradores astrofísicos de raios cósmicos, que incluem

desde nuvens e estrelas em colisão até buracos negros supermassivos nos núcleos das galáxias, e a violação da constância da velocidade da luz, que também só pode ser medida em raios gama. O observatório, orçado em € 200 milhões, será composto por cerca de 100 telescópios de três tamanhos distintos (24 m, 12 m, 4 m de diâmetro), do tipo Cherenkov, ideais para realizar esse tipo de medição, espalhados em dois arrays, ou arranjos. Um será montado no hemis-fério Norte, num ponto do México, Estados Unidos ou Espanha, e o outro no Sul, provavelmente perto do Alma, no Chile. A maioria dos telescópios será de tamanho pequeno. A primeira etapa do projeto, denominada CTA Mini-Array, prevê a instalação de nove telescópios de 4 m no sítio austral do em-preendimento até 2017.

Por meio de financiamento da FAPESP, a astro-física Elisabete de Gouveia Dal Pino, do IAG-USP, coordena a contribuição nacional no Mini-Array. Ao custo de cerca de € 3 milhões, a Fundação banca a construção na Itália de três telescópios pequenos, baseados em um protótipo desenvolvido pelo Ins-tituto Nacional de Astrofísica da Itália com a parti-cipação de engenheiros brasileiros. A África do Sul financia mais uma unidade e a Itália outras cinco. “Os telescópios do Mini-Array vão captar as mais altas energias entre 0,1 e 100 TeV [100 TeV corres-

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Projetos1. llama: um radiotelescópio para ondas mm/sub-mm nos andes, em colaboração com a argentina (nº 2011/51676-9); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável jacques lépine (uSP); Investimento R$ 7.890.473,28 e uS$ 9.221.992,00 (faPESP).2. investigação de fenômenos de altas energias e plasmas astrofísicos: teoria, simulações numéricas, observações e desenvolvimento de instru-mentação para o cherenkov Telescope array (cTa) (nº 2013/10559-5); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Elisabete de Gouveia Dal Pino (uSP); Investimento uS$ 2.269.594,10 e R$ 1.981.476,55 (faPESP).3. Emu: aquisição de um telescópio robótico para a comunidade as-tronômica brasileira (nº 2009/54202-8); Modalidade Programa Equi-pamentos multiusuários; Pesquisador responsável cláudia de Oliveira (uSP); Investimento uS$ 1.746.697,84 e R$ 1.325.134,14 (faPESP).4. Pau-Brasil: aquisição de detectores de ccD para a câmera ccD pa-norâmica da pesquisa javalambre – física do universo em aceleração (nº 2009/54162-6) Modalidade Programa Equipamentos multiu-suários; Pesquisador responsável laerte Sodré (uSP); Investimento uS$ 1.600.000,00 e R$ 912.000,00 (faPESP).

Protótipo italiano de telescópio de 4 m do projeto cTa: faPESP financia a construção de três unidades, com participação de engenheiros brasileiros

pondem a 100 trilhões de elétrons-volt de energia]”, diz Elisabete. “Eles elevarão de cinco a dez vezes a atual sensibilidade para captar raios gama.”

A parte brasileira na iniciativa não se restringe ao Mini-Array. A equipe de Luiz Vitor de Souza Filho, do Instituto de Física de São Carlos (IFSC--USP), desenvolveu o braço que posiciona a câmara de imagem usada nos telescópios de médio porte do CTA. Ele criou e testou um protótipo com uma empresa de São Paulo, Orbital Engenharia, e agora foi escolhido para fornecer a estrutura, que mede 16 m e pesa 5 toneladas, para os demais telescópios. Pesquisadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) participam do projeto de de-senvolvimento dos telescópios de 24 m.

UMA grAndE AngULAr no céUCom orçamento total de € 30 milhões, o Javalambre Physics of the Accelerating Universe Astrophysical Survey (J-PAS) é um projeto originalmente con-cebido pela Espanha que, há cerca de cinco anos, passou a ter o Brasil como segundo sócio. A am-bição da iniciativa, para a qual foi construído um novo observatório em Teruel, na região espanhola de Aragão, é produzir um levantamento em três di-mensões de todo o céu nos próximos cinco ou seis anos. Dois telescópios, um de 2,5 m e outro de 0,80 m, foram projetados para se dedicar exclusivamente ao trabalho de mapear desde asteroides, planetas e estrelas até as centenas de milhões de galáxias do Universo. O diferencial em relação a mapeamentos anteriores, como o Sloan, é que o telescópio grande do J-PAS contará com a segunda maior câmera as-tronômica do mundo, a JPCam, com resolução de 1,2 bilhão de pixels e composta por um mosaico de 14 CCD, sensor usado para obter imagens digitais. Uma espécie de grande angular do Cosmo.

A câmera será capaz de gerar uma quantidade recorde de cores (espectros) dos objetos visualiza-dos. Terá 59 filtros distintos – o Sloan contava com apenas cinco – e todos juntos gerarão um espectro (conjunto de cores) que realça determinadas carac-terísticas dos milhões de corpos celestes que serão observados. “A construção dessa câmera é finan-ciada e coordenada pelos brasileiros”, diz Renato Dupke, astrofísico do Observatório Nacional (ON), que iniciou a parceria com os espanhóis. A Finan-ciadora de Estudos e Projetos (Finep), a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janei-ro (Faperj), o Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação (MCTI), além da FAPESP, investiram por volta de US$ 7 milhões no desenvolvimento da JPCam, que deverá ser instalada no telescópio em 2016. “O sistema de filtros da câmera deverá ser muito útil para estudarmos as oscilações acústicas de bárions”, diz Laerte Sodré, do IAG-USP, outro astrofísico que atua na parceria. Esse fenômeno, ainda pouco conhecido, é caracterizado por ondas

que teriam sido criadas logo após o Big Bang devido a interações da matéria visível (bariônica) com a radiação. Estudar tais oscilações pode contribuir para a compreensão da matéria escura e sobretudo da energia escura, os dois constituintes majoritá-rios, porém de natureza desconhecida, do Universo.

A parceria com os espanhóis estimulou a astro-física Cláudia Mendes de Oliveira, do IAG-USP, a obter US$ 2 milhões da FAPESP para montar um telescópio de 0,80 m igual ao equipamento menor do J-PAS. O ON pagou R$ 520 mil para fazer o prédio da cúpula e bancar a manutenção dos seis primeiros meses do telescópio, batizado de T-80 Sul. O equi-pamento foi instalado no sítio de Cerro Tololo, no Chile, e deverá entrar em funcionamento nos pró-ximos meses. “Vamos fazer um levantamento de grande parte do Universo local, em conjunto com o telescópio menor da Espanha, usando 12 filtros”, explica Cláudia. “Mesmo com menos filtros, deve-mos produzir resultados de alto impacto.” n

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26 | maio DE 2015

entrevista

Qualquer pessoa que tenha feito graduação em bio-logia na Universidade de São Paulo (USP) nas úl-timas cinco décadas sabe que as plantas da família Velloziaceae, como as canelas-de-ema, são as mais

bonitas do mundo e que os campos rupestres da serra do Cipó, em Minas Gerais, são a paisagem mais espetacular. Essas in-formações, nada imparciais, vêm acompanhadas do colorido das histórias que Nanuza Luiza de Menezes gosta de contar.

Sempre entusiasmada, ela ainda não considera abandonar a pesquisa e os estudantes. Em 2004, quando não parou de tra-balhar apesar da aposentadoria compulsória, foi eleita para a Academia Brasileira de Ciências – na companhia de 24 homens, naquele ano foi a única mulher. Na mesma semana recebeu o título de cidadã de Santana do Riacho, o município de pou-co mais de 4 mil habitantes que abriga o Parque Nacional da Serra do Cipó, cuja criação Nanuza ajudou a defender. Entre as duas homenagens, talvez a recepção que teve na pequena cidade, de gente empolgada com os slides da natureza local que a botânica projetou numa parede branca, emocione mais.

Uma das primeiras a estudar a anatomia das plantas no Brasil, Nanuza não se contentava em descrever as estruturas que via ao microscópio: queria entender como funcionavam num contexto evolutivo. Assim, ajudou a explicar como as ve-loziáceas sobrevivem num solo que não retém água, além de outros aspectos das plantas mais diversas. Professora acima de tudo, nela está enraizada a linhagem que abriga boa parte dos anatomistas vegetais em atividade hoje no país.

Nanuza Luiza de Menezes

idade 80 anos

especialidade Anatomia vegetal

formação História Natural (graduação), Ciências Biológicas – Botânica (mestrado e doutorado), na USP

instituição Instituto de Biociências, USP

produção científica 69 artigos científicos, 2 livros, 10 capítulos. Orientou 17 mestrados e 21 doutorados

uma apaixonada em meio às plantasPioneira nas pesquisas sobre as plantas da serra do Cipó ajudou

a estabelecer a anatomia vegetal como área de estudo no país

maria Guimarães | retrAtO Léo ramos

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Com a pá que sempre a acompanha a campo, Nanuza posa em frente ao imponente chichá plantado por acidente em frente ao auditório do Departamento de Botânica no ano em que foi contratada na USP

28 | maio DE 2015

No ano em que foi trabalhar na USP, 1963, alguém trouxe umas sementes para que Aylthon Brandão Joly – o professor responsável por sua contratação – iden-tificasse. Era um chichá da Mata Atlân-tica. Tempos depois, Nanuza reparou uma mudinha nascendo no lugar onde acontecera a consulta e inferiu que uma das sementes teria caído naquele dia e germinado. Por acaso, foi debaixo dessa árvore que a fotografamos.

Com 80 anos, completados em 2014, você ainda não parece ter incluído a aposentadoria nos seus planos.Saí na compulsória em 2004 e continuo dando aula na graduação, levamos os alu-nos para a serra do Cipó. Temos um ca-minhão-laboratório com microscópios e ar condicionado. Os meninos adoram a viagem e minhas histórias, tanto que insisti-ram para eu escrever sobre a minha vida de menina e de botânica, além de anatomia vegetal. São três livros que estou escrevendo. Também acabei de entregar minha úl-tima orientação de mestrado.

E agora vai para Recife? A Universidade Federal de Pernambuco me convidou. Vou dar aula para a pós-gra-duação. Vou com uma bolsa por dois anos e, se eu gostar, me mudo de mala e cuia. Você já gostava de plantas quando era pequena? Já. Nossa casa era em Bo-tucatu e meu pai plantava de tudo no quintal. Pedi um pedaço do terreno pa-ra plantar as minhas coisas. Ele deixou.

O que você plantava?Comprava sementinhas de alface, de cenoura. Morria de orgulho de vê-las crescer e ver meu pai comendo da mi-nha horta. Eu perguntava se ele não ia temperar, ele dizia que era delicioso da-quele jeito. Devia ter uns 8, 9 anos. Aos 14 anos, conheci o mar e me apaixonei. Eu colecionava bichinhos.

E como chegou à anatomia vegetal, já que gostava de bichinhos?Foi por acaso. Eu dava aula no Caxingui, em São Paulo, no colégio Virgília Rodri-

gues Alves de Carvalho Pinto. Para quem chegava pela estrada, era o primeiro co-légio estadual, pouco acima do Butantã. Era longe, eu morava no Planalto Paulis-ta e dava aula de manhã, à tarde e à noite, no Caxingui e em duas outras escolas. Houve um ano em que fui paraninfa de 10 quartas séries.

E como chegou aqui, na USP?Em 1962, abriram 200 vagas, inclusive no meu colégio, mas eu tinha que passar até em terceiro lugar para pegar a vaga. Vim para a USP fazer a prova prática e o [Aylthon Brandão] Joly, que tinha sido meu professor, me viu e me chamou. Ele disse que tinha uma vaga em botânica e me convidou. Respondi que estava feliz dando aula e que nunca tinha pensado

em trabalhar com botânica. Joly suge-riu que trabalhasse com algas marinhas, porque, quando eu fosse procurá-las, encontraria meus bichinhos. Foi uma choradeira quando saí da escola, os me-ninos tinham acendido vela para eu pas-sar no concurso. No dia em que cheguei aqui, o Joly me disse que tinha muita gente trabalhando com algas no Brasil, pelo menos 10 pessoas. Já em anatomia, só tinha a Bertha [Lange de Morretes], em São Paulo, e o [Fernando] Milanez, no Rio de Janeiro. E o Brasil, ele disse, precisava de anatomistas. Quase chorei. Ele percebeu minha decepção e disse que no dia em que abrisse uma vaga em algas eu iria trabalhar com ele. Não tive alternativa.

Você nunca tinha imaginado olhar as plantas por dentro.Joly me disse que havia certas famílias brasileiras das quais ninguém sabia nada: Eriocaulaceae, Velloziaceae, Ericaceae. Fui procurar no Martius [o livro Flora brasiliensis, editado no século XIX por Carl Friedrich Philipp von Martius, Au-gust Wilhelm Eichler e Ignatz Urban] e quando vi uma veloziácea fiquei maravi-lhada, que planta linda! Descobri que elas existiam numa região chamada serra do Cipó, em Minas Gerais, e no Rio de Ja-neiro. Fui para o Rio primeiro falar com a Graziela Barroso, do Jardim Botânico. Ela me levou para ver uma veloziácea que estava em flor e me disse que se eu qui-sesse trabalhar com elas que fosse a Mi-nas – pegava um ônibus em São Paulo, ia

até Belo Horizonte, lá pegava outro ônibus, descia na beira da estrada e no quilômetro 92 havia uma pousada cha-mada Chapéu de Sol. De ma-nhã, quando acordasse, veria o paraíso das veloziáceas. Por coincidência, o colega Walter Handro ia com os alunos para Paraopeba, na mesma região. Fui junto, correndo. Eles já iam para lá, então?Para a serra do Cipó não ia ninguém. Eles foram me le-var. Chovia tanto que quan-do chegamos não dava para ver serra nem nada. No dia seguinte, acordamos naquela neblina. No quilômetro 114 da estrada, de repente subiu a neblina e pude ver as velo-

ziáceas, canelas-de-ema, todas floridas. E foi só durante uma hora, depois baixou a neblina e não vi mais nada. Tive uma hora de visão do que era a serra.

Só para não deixar mais ir embora.Foi sorte mesmo. Lembro o dia: 8 de de-zembro de 1964. Voltei querendo fazer outra viagem para coletar material. O Ivan Sazima, que era estudante, se ofe-receu para tirar fotos e dirigir, na época mulher não podia. Fui a primeira mu-lher, soube depois, a guiar carro de cha-pa branca em São Paulo. Entrei com um pedido na reitoria, dali passou para o governo do estado, que liberou. Depois disso, todas as mulheres puderam dirigir carros de chapa branca.

estava descobrindo coisas lindas nas Vellozias e percebi que queria ser anatomista

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E você já começou a trabalhar, coletan-do e fazendo a anatomia?Já fui fazendo a anatomia das veloziá-ceas. Era uma beleza de planta e a folha por dentro era uma maravilha.

O que havia de especial nela?É diferente de tudo o que já tínhamos visto. Quando comecei a estudar ana-tomia, pegava plantas e analisava por dentro. Mas quando cortei uma veloziácea florida me apaixonei. Ela cresce nas pe-dras, as folhas velhas caem e as bainhas ficam em volta. As raízes adventícias vêm do ápice para a base, por dentro dessas bainhas. Elas vivem da neblina que sem-pre há à noite, não precisam de muitos nutrientes. O ar traz grão de pólen, es-poro de fungo, cinza de queimada em gotículas do sereno, e isso é suficiente. Seis meses depois, Joly me disse que ti-nha uma vaga em algas. “Agora quem não quer sou eu”, disse. Tinha concluído que não gostamos do que não conhecemos. Uma pedra pode ser incrível quando en-tendemos o sistema de cristalização de cada grãozinho. Eu estava descobrindo coisas lindas nas Vellozias e percebi que queria ser anatomista. Ele nunca me per-doou. Porque até então quem trabalhava com anatomia só cortava e desenhava, cortava e desenhava. Comecei a pergun-tar por que era daquele jeito. Por que tinha ficado assim? Decidi fazer estudo de desenvolvimento.

Era um enfoque funcional.Sim, percebi que era importante entender o desenvolvimento. Por exemplo, vi que numa estrutura semelhante a uma pétala

da flor das veloziáceas toda a vasculari-zação sai da pétala ou da sépala. Nada a ver com os estames, como diziam. “Que nome eu dou para isso?”, perguntei ao Joly. Ele dizia que não entendia nada de anatomia, mas sugeriu que procurasse uma estrutura denominada corona na fa-mília Amaryllidaceae. Vi que era a mesma coisa e passei a chamar de corona. Tam-bém descrevi uma estrutura nas folhas das veloziáceas que as distingue de todas as outras angiospermas: as traqueídes de transfusão. As traqueídes são células que correspondem a expansões laterais do xi-lema. Se houver água disponível, a planta abre os sulcos onde estão os estômatos, nas folhas. Na seca, os sulcos se fecham e não há perda de água. Assim, a água passa mais rápido. Da mesma maneira que fui me apaixonando pelas veloziáceas, me encantei cada vez mais pela serra do Cipó. Comecei a convidar todo mundo para ir lá, inclusive Joly. Um dia, em um congres-so na Paraíba, ele disse para eu ir assistir à sessão sobre algas na qual ia falar. Ele foi se despedir dos ficólogos, porque tinha decidido mudar de área e trabalhar para fazer o levantamento da flora da serra do Cipó. Quase morri de chorar.

Como você explica a importância da anatomia para quem não é da área?Anatomia é importante para conhecer a intimidade da planta. Depois que come-çamos a fazer estudos de vascularização, muita coisa foi consertada na taxonomia

de plantas. Outro dia, ao analisar uma rutácea com o [botânico da USP José Rubens] Pirani, perguntei se não havia espécies com mais estames nas flores, como indicavam vestígios de uma vas-cularização que observei. No dia seguin-te ele me disse que na Austrália existe uma planta com vários estames. Olha que fantástico!

A anatomia traz uma visão evolutiva.Exatamente. Dá para acompanhar todas as transformações. Vou dar um exemplo. Nas folhas de veloziáceas a seiva é con-duzida por feixes com dois floemas e um xilema, enquanto em todas as demais mo-nocotiledôneas cada feixe é formado por um xilema e um floema internamente à bainha do feixe. Analisando a evolução do feixe vascular em vários grupos de veloziáceas, concluí que um ancestral delas deve ter tido dois cordões de xi-lema e floema dentro da mesma bainha. Coloquei isso na minha livre-docência, em 1984. Em 1994 soube da descoberta de uma nova planta na China. Pedi para me mandarem uma folha, para cortar e ver se era ou não uma veloziácea. Quan-do cortei, saí gritando pelo corredor: é o ancestral! Porque o sistema vascular, por onde corre a água e a seiva, tem dois fei-xes completos, com protoxilema, meta-xilema, protofloema, metafloema.

Você também mostrou que as raízes aéreas das árvores de manguezais, os

Com Burle Marx, paixão compartilhada pelas plantas; abaixo, com os irmãos (a segunda a partir da direita)

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rizóforos, não são raízes. Como surgiu essa descoberta?Passei anos ensinando que eram raízes aéreas, mas nunca tinha analisado a ana-tomia. Um dia nossa equipe ofereceu uma disciplina eletiva e fizemos uma brinca-deira: coletar e comparar plantas do man-gue, restinga, Mata Atlântica e duna. De-senterrávamos plantas para fotografar e enterrávamos de novo. Sugeri que levásse-mos uma plantinha jovem de Rhizophora mangle à USP, já com “raízes aéreas”, por-que alguns alunos do curso noturno não foram naquela viagem. Sugeri às minhas colegas que eu começaria com as raízes.

Parecia que seria simples...Deixei as raízes aéreas com um estudan-te e fui tomar um café. Quando voltei e olhei, disse que ele tinha cortado caule e não raiz. “Não, professora, peguei aqui neste vidro de raiz”, ele respondeu. Pe-guei a planta que veio viva, disse onde tinha que cortar, e examinei. “Quem disse que isso aqui é raiz? É caule.” O primeiro que descreveu a espécie em 1780 achou que era um sistema de raízes, sem fazer análise anatômica. E assim ficou. O [Phi-lip Barry] Tomlinson, de Harvard, nos Estados Unidos, dizia que era uma raiz com várias exceções, entre outras por ter diferenciação endarca – isto é, pro-toxilema interno ao metaxilema –, e toda raiz tem protoxilema externo. Xilema e floema formam feixes vasculares, e raiz não forma feixe. Tem origem exógena e

toda raiz tem origem endógena. Tudo era exceção. Na verdade era caule, com uma única exceção: geotropismo positivo, cresce para dentro da terra. Chamei de rizóforo porque já descrevera em 1977 uma estrutura semelhante em Verno-nia da serra do Cipó. Em 1994 levei esse trabalho para um congresso no Japão. Por que o artigo só foi publicado em 2006?Mandei para várias revistas internacio-nais, inclusive a Journal of the Linnean Society, da Inglaterra, na qual sou fellow desde 1979. Todas vinham com recusa. Na última veio assinado: P. B. Tomlinson.

Ele tinha sido o revisor em todas as ou-tras vezes?Exatamente, e na última assinou como se dissesse: você não vai publicar isso fora do Brasil. Felizmente, quando en-trei na Academia Brasileira de Ciências, eles perguntaram se tinha um trabalho pronto para publicar nos Anais da Aca-demia. Eu disse que tinha um prontinho, em dois meses estava publicado.

Além da anatomia, você também se en-volveu com conservação, não?Nos anos 1970, o governo quis fazer um aeroporto em Caucaia do Alto. Tirar Ma-ta Atlântica. Nosso manancial de água vem de lá, dessa parte alta. O doutor Pau-lo Nogueira-Neto, que era secretário de Meio Ambiente, me disse o que estava

acontecendo e pediu que não permitisse. Chamei uma reunião com cinco outros conservacionistas. Convidamos a tele-visão, o rádio e dissemos que estavam tentando tirar uma mata nativa impor-tantíssima. Mais de 500 pessoas com-pareceram, 16 associações de proteção estavam presentes. Começamos a ser procurados pelos repórteres. Alguém contou que um vereador tinha dito que aquilo em Caucaia do Alto não era Mata Atlântica, e sim um carrascal. Eu res-pondi que era um grande ignorante que não entendia nada de vegetação. Mas quem disse que era um carrascal foi o governador Paulo Egydio Martins, e não o vereador. Isso em plena ditadura. No dia seguinte, a declaração do governa-dor e a minha resposta saíram na pri-meira página do Jornal da Tarde. Tudo o que falei era verdade, eu só não sabia que era o governador. Se soubesse, te-ria dito: “O governador tem que se in-formar melhor”. Hoje o aeroporto está em Guarulhos graças à primeira vitória. Depois houve a luta contra a poluição de Cubatão.

Como foi?Passei um tempo sem ir nas excursões a Paranapiacaba, no topo da serra de San-tos, e quando voltei notei que a floresta não era mais aquela maravilha, por causa da poluição de Cubatão. Aí comecei uma campanha contra a poluição e tiveram que pôr filtros nas empresas poluidoras. Nunca vai ser a mesma coisa, mas a mata se recuperou. Então passaram a me cha-mar para todas as campanhas. Queriam tirar a Casa Modernista, perto da estação Santa Cruz, em São Paulo, para construir prédios. Falei com o ex-governador Fran-co Montoro para que ele pedisse que o governador Mário Covas fosse lá. Às 10 horas do domingo, chega o Covas. Foi um show, não deixaram demolir. A Casa Modernista continua lá. Mais tarde ha-via uma reserva em Itanhaém, no litoral sul de São Paulo, que queriam destruir. Lá fui eu. A rodovia dos Tamoios ia ser construída, fui para São Sebastião. De-pois avisei que não dava mais. Existiam vários conservacionistas e eu precisava me aposentar dessa parte.

E o Parque Nacional da Serra do Cipó?Joly e eu juntamos a documentação pro-vando a importância da serra do Cipó. Aureliano Chaves [governador de Minas

Com alunos na serra do Cipó em 2007 ao lado de uma Vellozia gigantea, espécie que descobriu

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Gerais, na época] criou o parque em 1975. Infelizmente, Joly morreu em agosto, estava muito doente, e não viu. O par-que só foi implantado 10 anos depois. Na placa de inauguração estava lá: 27 de setembro de 1984, dia em que fiz 50 anos, por pura coincidência!

Você foi amiga do paisagista Roberto Burle Marx, como o conheceu?Quando eu soube que ele era apaixonado por veloziáceas, pensei que seria uma oportunidade para conhecê-lo. Então pe-di que a Graziela Barroso me apresentas-se ao Roberto dizendo que eu trabalhava com as canelas-de-ema de que ele tanto gostava. Uma das melhores coisas da minha vida foi ser amiga do Roberto. A paixão dele por plantas era inacreditável. Um dia propus dar uma aula sobre plantas para sua equipe de jardineiros, e o primeiro da fila era ele. Quando peguei uma flor, abri e mostrei com a lupa os óvulos no ovário, e disse que o pólen cai no es-tigma e fecunda, ele chorou. Chorou de emoção.

O que é a Fundação Burle Marx?Eu e arquitetos que trabalha-vam com ele dissemos ao Ro-berto que se ele quisesse que aquelas plantas se perpetuas-sem alguém precisava tomar conta. Se ele doasse para o governo, seria tombado para o resto da vida. Assim foi for-mado o conselho da Fundação Sítio Roberto Burle Marx, do qual fui presidente por vários anos.

Você foi com ele à serra do Cipó?Em 1993, ele disse que não queria fazer festa de aniversário, queria fazer uma excursão com alguns amigos que vinham do exterior. Eu é que ia programar a via-gem. Fomos à serra do Cipó, serra do Grão Mogol, saímos na Bahia e voltamos. Ele só gostava se eu estivesse dirigindo e falou que foi a viagem mais linda da vida dele, um ano antes de morrer. Ele dizia que comigo tudo era mais lindo, porque eu mostrava. “Olha essa glându-la, olha essa planta, que maravilha.” Eu tinha sempre uma lupa e mostrava. Ele adorava. Dizia que, se tivesse tempo, ia fazer biologia comigo.

Você ainda vai à serra do Cipó?Vou. Temos essa disciplina. São 45 luga-res e mais de 90 candidatos. Os colegas acham que sou indispensável nessas via-gens. Eu conto histórias da minha vida, de infância. Nos divertimos muito.

A coleção de madeira do Instituto de Biociências da USP tem o seu nome?Tem. Eu pensava: sou tão feliz traba-lhando com Velloziaceae, mas o que isso significa para o Brasil? Fui para o IPT [Instituto de Pesquisas Tecnológicas] aprender anatomia de madeira e resol-vi ensinar. Por quatro anos ia para Ma-naus, ficava um mês na pós-graduação do Inpa [Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. Ensinava sobre madeira e sistemas subterrâneos, como tubércu-

los que servem para comer. Continuava com minhas Vellozias, mas ensinava o que achava útil para o Brasil. Todo mun-do que trabalha com madeira começou comigo, ou com alguém que começou comigo. A primeira anatomista de ma-deira no Brasil foi a Verônica [Angyalos-sy], minha primeira aluna de doutorado.

Muitos botânicos lhe prestaram home-nagem. Quantas espécies têm seu nome?Um monte. Vellozia nanuzae, Barbacenia nanuzae, tem um gênero das veloziáceas que se chama Nanuza. E várias outras.

Bichos também?Tem uma perereca, Bokermannohyla na-nuzae. Eu conto para os alunos que virei

até nome de perereca. Uma professora da Argentina estuda dois gêneros da fa-mília Turneraceae: Turnera e Piriqueta. Adivinha qual dos dois ela escolheu para pôr meu nome? Piriqueta! Contei isso num congresso em Manaus, o auditó-rio caiu na gargalhada! Expliquei a ela que, no Brasil, periquita e perereca são a mesma coisa.

Mas não são só as brincadeiras que ga-rantem o seu sucesso, não?Não. Recentemente estive no Centro de Arte Contemporânea Inhotim, em Minas Gerais, depois de um congresso. Encon-trei um garoto que disse que, se soubesse que eu ia lá, pediria que apresentasse a mesma palestra que dei no congresso. Eu estava com o pen drive, então me dispus.

Nos finais de semana, Inho-tim tem cerca de 3.500 visi-tantes por dia. Tem um audi-tório que comporta 500 pes-soas. Ele pôs no alto falante, lotou e ficou gente para fora. Foi a primeira vez que falei para leigos, mostrei as plan-tas da serra do Cipó. Quando terminei, batiam palmas em pé. Veio um senhor com lá-grimas nos olhos, junto com a mulher, o filho, a filha e a neta. Dizia que a neta tinha que fazer biologia.

Parar não está nos planos?Eu tenho intolerância ao glú-ten e soube disso aos 79 anos. Eu estava com um proble-minha, nem lembro o quê, meu sobrinho disse para eu

ir num médico japonês amigo dele, que é formidável. Ele tinha um sistema de colocar uns eletrodos nas pontas dos dedos e lia os resultados no computador na mesma hora, e disse que eu tinha into-lerância a glúten e lactose. Depois disso fui ao meu médico clínico e contei o que o outro tinha dito. Perguntei se ia ter que parar de comer pão, que amo e co-mi a vida inteira. Ele disse que eu tinha comido a vida inteira, ia parar por quê? Como quem diz: “Vai morrer logo”. Eu agradeci, voltei no japonês e perguntei o que me aconteceria se eu não parasse. Ele disse que eu chegaria aos 90 lúcida como estou agora. E se eu parar? Disse que eu ia passar dos 100 com a mesma saúde e lúcida. Adivinha? Parei! n

o aeroporto está em Guarulhos graças à nossa vitória. depois houve a luta contra a poluição de cubatão

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Digitalização de acervos

traz à tona raridades e

documentos esquecidos e

ajuda a aperfeiçoar o

trabalho de pesquisadores

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Resgate de conhecimento

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Digitalização de livros da Biblioteca Brasiliana da usP: 4,8 mil volumes da coleção do bibliófilo José mindlin já estão disponíveis on-line

a multiplicação de projetos de digitalização de acervos de bibliotecas, arquivos e museus está modificando a forma como pesquisadores brasileiros trabalham. Nos últimos 15 anos, diversas instituições se em-

penharam em oferecer na internet documentos, fotografias e vídeos que antes só eram disponíveis em visitas agendadas. O resultado desse esforço é sensível. Em alguns casos, a facilidade de procurar e encontrar itens com ferramentas de busca am-pliou acesso a informações difíceis de garimpar manualmente, potencializando a qualidade da pesquisa. Em outros exemplos, permitiu ao menos conhecer remotamente a amplitude de determinado acervo para organizar uma consulta presencial mais rápida e eficiente. “Estudantes e pesquisadores estão sendo formados nesse novo contexto. É um caminho sem retorno”, diz o historiador Pedro Puntoni, professor da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Núcleo de Cultura Digital do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). “A biblioteca e o arquivo em papel sempre vão ter importância, mas perdem espaço para a internet diante da facilidade de ter acesso a documentos, imagens e livros, assim como teses e revistas digitais disponíveis on-line”, afirma.

De um computador pessoal em sua casa, o professor e pes-quisador Wilton José Marques encontrou em meados de março um poema esquecido de um dos principais nomes da literatura brasileira, o escritor Machado de Assis (1839-1908), conhecido do leitor sobretudo pelos contos e romances. Não se trata de um poema qualquer, mas o primeiro, publicado no jornal Correio Mercantil, do Rio, em 9 de setembro de 1856, intitulado “O grito do Ipiranga”. Especialistas da obra de Machado consideravam que sua produção iniciara em 1858 com o poema “Esperança”, quando o autor, aos 19 anos, começou a trabalhar como revi-sor naquele jornal. O achado de Marques foi possível graças à digitalização do Correio Mercantil pela Biblioteca Nacional, que criou em 2009 sua hemeroteca digital (bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/). Marques, professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), diz que encontrou a poesia graças a “um pouco de faro e um pouco de sorte”. Procurava os primeiros poemas de Machado para uma pesquisa sobre influências românticas na obra do autor. “Fui conferir as fontes, olhando poema por poema das coletâneas, a partir de 1858. Por curiosidade, resolvi fazer a busca em anos an-teriores e ‘O grito do Ipiranga’, apareceu”, diz. Marques decidiu interromper sua pesquisa e se dedica a um artigo sobre a poesia. “É um poema longo, uma glorificação do grito da independên-cia e de dom Pedro I. Uma das características da literatura de Machado é a intertextualidade: ele dialoga com outras obras e referências históricas. Nesse primeiro poema, compara o tempo todo a Independência com a república romana”, diz Marques. Outro interesse do pesquisador é lançar luzes sobre a juven-

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para analisar documentos. “Faço uma pré-seleção on-line e já chego sabendo o que preciso”, afirma.

A catalogação e a digitalização do acervo tam-bém foram úteis na comemoração do centenário de Lina. “Os desenhos foram de grande valia para os curadores das mostras sobre sua obra reali-zadas em Zurique e em Munique, além de duas exposições em Nova York em que Lina teve re-presentação. A primeira avaliação do acervo foi feita a distância”, diz Renato Anelli, professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP em São Carlos, pesquisador responsável pelo projeto de digitalização. Os projetos e desenhos de Lina são o ponto forte do acervo digital. “Ela coloria e criava cenas e perspectivas nos projetos arquite-tônicos. São desenhos fabulosos”, afirma Anelli. É possível consultar no banco de dados fichas sobre fotos e documentos escritos da arquiteta. O instituto começou a organizar o arquivo de Pietro Maria Bardi (1900-1999), criador do Masp. Bardi e Lina foram casados por 45 anos.

As principais limitações dos acervos digitais são a sua impossibilidade de oferecer a experiência sensorial de ver ou manusear um documento his-tórico e também a dificuldade de fornecer todas as informações necessárias para contextualizar as circunstâncias em que cada documento foi pro-duzido e armazenado. “Documentos de arquivos públicos têm uma peculiaridade. Eles fazem sen-tido dentro do contexto em que foram produzidos. Longe desse contexto, não são compreendidos na sua integridade”, diz Marcelo Chaves, diretor do Centro de Difusão e Apoio à Pesquisa do Arquivo Público do Estado de São Paulo. A possibilidade Fo

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tude de Machado. “Imagine como numa socieda-de escravocrata um jovem negro de 17 anos, com educação formal que a gente não sabe muito bem como foi obtida, conseguiu se inserir no univer-so intelectual do Rio de Janeiro e colaborar num jornal importante da época.”

A Biblioteca Nacional tem um dos mais longe-vos programas de digitalização no país. Começou em 2006 e, hoje, oferece 900 mil documentos on--line, que rendem 400 mil consultas virtuais por mês. Há coleções de fotos, mapas e músicas. No mês passado, foi lançado o portal Brasiliana Fo-tográfica (brasilianafotografica.bn.br) com mais de 2 mil fotos históricas de coleções da própria biblioteca e do Instituto Moreira Salles. A maior parte do acervo digital é composta por jornais brasileiros. São 5 mil títulos, digitalizados com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). “Temos a prerrogativa do depósito legal, que é a recepção de um exemplar de todas as pu-blicações produzidas em território nacional. Por isso, nossa coleção é a mais abrangente do país”, diz Angela Bettencourt, coordenadora da Biblio-teca Nacional Digital. A decisão de oferecer os jornais se deveu também a uma questão prática: o acervo era dos mais consultados da instituição.

A consulta aos jornais é simples – uma busca por palavra é suficiente para encontrar o que há sobre aquela referência. Para pesquisadores, a utilidade vai muito além da chance hipotética de encontrar um poema esquecido. O sociólogo Ben-no Warken Alves, de 25 anos, concluiu em 2014 sua pesquisa de mestrado, feita na USP com bolsa da FAPESP, sobre a trajetória de um empresário negro em Curitiba no século XX, Sydnei Lima Santos (1925-2001). Alves conseguiu referências sobre a trajetória de antepassados do empresário consultando na hemeroteca jornais de Sergipe, Rio de Janeiro e Paraná. “Se tivesse de procurar em microfilmes, não teria dado tempo ou talvez nem encontrasse.”

S e uma hemeroteca digital é fonte suficiente para levantar e conferir dados, a pesquisa de documentos históricos raramente dispensa

a análise do arquivo físico, embora a digitalização consiga acelerar esse trabalho. A arquiteta Suely Figueirêdo Puppi tem utilizado o acervo digital do Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi para sua tese de doutorado, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sobre as técnicas de res-tauro e de projeto de Lina Bo Bardi (1914-1992), a arquiteta ítalo-brasileira conhecida por projetar o Museu de Arte de São Paulo (Masp). “Os projetos e desenhos de Lina disponíveis no site não têm a definição necessária para usar num livro, mas pa-ra uma tese são suficientes”, afirma Suely. Desde que começou o doutorado, em 2012, ela visitou algumas vezes a sede do instituto, em São Paulo,

“o grito do ipiranga”, poema esquecido de machado de assis publicado no jornal Correio Mercantil, encontrado graças à hemeroteca digital da Biblioteca nacional

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de extrair informação mais íntegra de um docu-mento de arquivo, ele explica, está em conhecer a sua trajetória, a finalidade com que foi produzido e por onde circulou. “Sem isso, o documento perde parte de seu potencial informativo”, afirma. O tra-balho do historiador Bruno de Andréa Roma, que atuou como estagiário do arquivo por dois anos, mostra esse desafio. Durante a graduação na USP, ele produziu, sob orientação do professor Carlos Bacellar, ex-coordenador do arquivo, um guia de fontes de tudo quanto existe sobre a Universidade

de São Paulo naquele grande acervo. “Guias e in-ventários são instrumentos fundamentais para se ter consciência do que existe num arquivo sobre determinado acervo, além de conhecer a trajetória dos documentos”, afirma Bruno, que agora faz mes-trado sobre a fotografia no ambiente do arquivo. “A fotografia não tem um lugar tão bem situado quan-to os demais documentos. No Arquivo do Estado, os negativos de coleções como a do jornal Última Hora estão num lugar, mas contatos e ampliações fotográficas, que trazem informações sobre o seu uso, estão em outro e não conversam entre si.”

M arcelo Chaves ressalta que a digitaliza-ção foi fundamental para democratizar a informação e sem ela não seria possível

constatar, hoje, que franquear documentos na in-ternet não é suficiente para torná-los realmente acessíveis. “As políticas de digitalização são irre-versíveis, mas precisam ter critérios”, diz. Nos úl-timos tempos, Chaves foi incumbido pelo arquivo de orientar prefeituras e câmaras municipais pau-listas e encontrou situações desastrosas. “Muitos prefeitos são convencidos por empresas especia-

lizadas de que a digitaliza-ção é um benefício em si e acabam transformando arquivos físicos desorga-nizados em acervos digi-tais inacessíveis, gastando muito dinheiro”, afirma.

Nos últimos anos, o Ar-quivo Público do Estado de São Paulo dedicou-se a disponibilizar seu acervo

na internet, tendo como carro-chefe o arquivo do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops), principal órgão da polícia política paulista, extinto em 1983. Há dois anos, lançou o portal Memória e Resistência, que permite a consulta pela internet de mais de 314 mil fichas e 12,8 mil prontuários – num total de 1 milhão de imagens – produzidos por órgãos de vi-gilância política entre 1924 e 1999. Os técnicos do arquivo avaliam que parte desse trabalho precisa ser corrigido e até refeito. Ocorre que, da forma massiva como foi feita a digitalização, informações relevantes sobre os documentos oferecidos não estão disponíveis para os usuários. Isso pode não ser um problema para quem apenas quer consultar o que consta em seu nome ou de algum familiar dentro do arquivo. Mas, no caso de pesquisadores, as lacunas são suficientes para enviesar resultados, observa o historiador Marcelo Quintanilha Mar-tins, diretor do Centro de Acervo Permanente do arquivo. O acervo do Deops é formado por três arquivos distintos, pertencentes às suas delega-cias especializadas: Ordem Social, Ordem Política e Serviço Secreto. Frequentemente, documentos estão interrelacionados. Mas isso nem sempre é perceptível na pesquisa on-line. “O Deops dialoga-va, por exemplo, com o FBI norte-americano, do qual recebia memorandos relacionados a ordens de prisão. Mas esse contexto não está disponível nos documentos digitalizados.” Nas cerca de 50 mil imagens digitalizadas atualmente pela equipe do arquivo a cada mês, os chamados metadados, informações que descrevem o que pode ser encon-trado nos documentos, são catalogados utilizando um software de acesso aberto, o ICA-AtoM, que permite armazenar um conjunto abrangente de dados que ajudam a prevenir a perda do contexto.

lacunas na catalogação de documentos digitais podem enviesar resultados de pesquisa

Digitalização de mapas históricos no arquivo Público do estado de são Paulo: preocupação em oferecer metadados dos documentos

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A ideia é revisitar documentos já digitalizados, enquadrando-os nesse padrão.

A padronização dos dados não é uma discussão restrita a arquivos e bibliotecas. Giselle Beiguel-man, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e organizadora do livro Fu-turos possíveis – Arte, museus e arquivos digitais, editado com apoio da FAPESP, chama a atenção para a figura do “colecionador on-line”, aquele indivíduo que oferece na internet documentos, imagens ou vídeos de valor histórico. “Com ge-nerosidade e investimento de tempo, eles dis-ponibilizam fotos de família, memórias pessoais ou vídeos no YouTube com programas de TV da década de 1970 e filmes históricos desde o iní-cio dos anos 1920, que podem ter utilidade para pesquisadores, mas precisariam de padronização dos seus processos de catalogação e seus meta-dados”, diz Giselle. Ela menciona os problemas relacionados à “corporativização da memória”, que é o arquivamento de imagens e documentos em plataformas privadas, como Flickr e YouTube. “Cada uma delas organiza documentos de uma forma e há o risco de que sejam tirados do ar a qualquer momento, de acordo com o interesse das empresas. Não há uma discussão sobre sistemas de metadados padronizados para todos, inclusive as plataformas privadas”, afirma. A ideia de criar padrões, ela diz, é factível. “A internet é o melhor exemplo. Funciona a partir de protocolos e uso regrado de símbolos comuns, que todos seguem, como a arroba no endereço de e-mail.” Um dos artigos do livro, assinado por Monika Fleisch-mann e Wolfgang Strauss, do Mars-Exploratory Media Lab, da Alemanha, cita o conceito de mapa

semântico de conhecimento como possibilidade para registrar e visualizar um conjunto de infor-mações acerca de um documento. “As entradas individuais dos arquivos são localizadas de mo-do relacional e os parentescos semânticos são visualizados”, dizem os autores.

a digitalização de acervos tem avançado mundo afora desde o início dos anos 2000. “Nos Estados Unidos, as universidades co-

mandaram o processo de digitalização de biblio-tecas”, diz Pedro Puntoni, que dirigiu a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP entre 2007 e 2014 e desenvolveu a Biblioteca Brasiliana Digi-tal. “Já a União Europeia financiou um consórcio para fortalecer as bibliotecas virtuais, capitaneado pela Gallica, da biblioteca nacional da França.” O Brasil, observa Puntoni, teve certo pioneirismo na década passada ao catalogar, microfilmar e digita-lizar cerca de 3 milhões de páginas sobre os pri-meiros 300 anos de história do Brasil pertencentes ao Arquivo Histórico Ultramarino, de Portugal. O trabalho foi coordenado por Esther Bertoletti, da Biblioteca Nacional. Mas a digitalização de acervos no país foi prejudicada pela dificuldade de trans-formar projetos em programas permanentes. “Em muitos casos, equipes são contratadas por tempo determinado e se desarticulam quando há des-continuidade no financiamento ou no comando da instituição”, diz Puntoni.

Em 2009, a FAPESP lançou uma chamada de propostas do Programa de Apoio à Infraestrutu-ra de Pesquisa, na modalidade Museus e Centros Depositários de Informações e Documentos e de Coleções Biológicas, que selecionou 20 projetos,

o arquivo Público do estado de são Paulo vai lançar no segundo semestre um site com 132 edições digitalizadas do jornal abolicionista A redempção, que circulou em são Paulo de 2 de janeiro de 1887 até a promulgação da lei Áurea, em 13 de maio de 1888 e era porta-voz do movimento abolicionista dos “caifazes”, grupo que resgatava escravos, levando-os a locais seguros. “era um jornal radical, com ataques a fazendeiros, políticos e a outros jornais, mesmo aqueles abolicionistas”, diz marcelo Quintanilha martins, diretor do centro de acervo Permanente do arquivo.

a coleção digitalizada veio do instituto Histórico e Geográfico de são Paulo e boa parte dos exemplares estava em pedaços. os restauradores montaram os fragmentos do jornal com o auxílio de pinças, consultando cópias de microfilme dos exemplares existentes na Biblioteca lamont, da universidade Harvard, nos estados unidos. nesse processo, foram encontrados sete exemplares que se imaginavam perdidos. a coleção foi incluída, no final de 2014, no registro nacional do Brasil do Programa memória do mundo,

da organização das nações unidas para a educação, a ciência e a cultura (unesco). o programa reconhece como patrimônio da humanidade documentos, arquivos e bibliotecas de importância internacional, regional e nacional. o objetivo é ampliar a difusão dos acervos.

edição histórica da abolição da escravatura do jornal: coleção digitalizada será oferecida no segundo semestre

A redempção vai à internetcoleção de jornal abolicionista é recuperada

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muitos dos quais voltados para a organização, digitalização e oferta de documentos on-line. Fo-ram contempladas instituições como o Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, o Arquivo Público do Estado de São Paulo, o Museu Lasar Segall e o Instituto de Estudos Brasileiros da USP, entre outros. Órgãos como o Banco Nacional de Desen-volvimento Econômico e Social (BNDES), a Pe-trobras e a Finep também se destacam na oferta de recursos para projetos de digitalização. Um grupo de instituições comprometidas com polí-ticas de digitalização no Brasil reuniu-se na Rede Memorial para compartilhar experiências e ajudar a organizar acervos, além de desenvolver uma fer-ramenta de busca que reúna em um só lugar acer-vos digitalizados de todas as bibliotecas nacionais.

“Houve na década passada uma boa oferta de recursos para projetos de digitalização no país, ao mesmo tempo que os equipamentos se tornaram mais baratos”, diz Millard Schisler, pesquisador e consultor na área de digitalização e preservação digital. Mas a corrida para oferecer acervos on--line, afirma ele, gerou distorções. “Era comum encontrar instituições que investiam muito em digitalização, mas pouco em conservação dos do-cumentos originais, que ficavam acondicionados de forma precária”, diz Millard. Hoje, buscam-se estratégias sustentáveis. “Em vez de querer digi-talizar tudo e em alta definição, é mais razoável oferecer as partes mais procuradas de um acer-vo, reservando recursos para a preservação dos originais. A digitalização deve ser vista como um complemento, não como a estratégia principal.”

O exemplo do Museu Imperial, de Petrópolis, resume os desafios de digitalizar acervos. A em-preitada começou em 2009. Hoje, 8 mil itens estão disponíveis no site da instituição, entre documen-tos, livros e imagens de itens museológicos, o equi-valente a 3% do acervo, e geram 2 mil acessos por mês. “A intenção é digitalizar a totalidade do acer-vo”, diz o historiador Jean Bastardis, coordenador da equipe contratada pela sociedade dos amigos do museu e incumbida de pesquisar documentos, descrevê-los, organizar a base de dados e disponi-bilizar o material no site. A prioridade é digitalizar conjuntos completos de coleções para facilitar o trabalho dos pesquisadores. Apesar dos seis anos de experiência, manter o processo de digitalização tem sido uma missão acidentada. A equipe é contra-tada por projeto. A cada ano repete-se o desafio de obter recursos de empresas ou de editais públicos.

Entre os itens mais procurados no site, desta-ca-se um livro de receitas do século XIX, O cozinheiro imperial, que descreve pratos da

época e cardápios de banquetes. Pesquisadores têm mais interesse pelo arquivo da Casa Impe-rial, com documentos produzidos em Portugal que remontam ao século XIII. A experiência do museu mostra que o trabalho de divulgação é es-sencial. “Quando sai uma reportagem sobre algum item, a procura por ele tem picos”, diz Bastardis.

A Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, com mais de 20 milhões de objetos digitais dispo-níveis on-line, ao constatar que a oferta na internet não é suficiente para disseminar o conhecimento, criou um programa pelo qual seus técnicos vão a cidades ensinar professores e bibliotecários locais a explorar seu acervo. Sem boa divulgação, acervos on-line não alcançam todo o público potencial. A digitalização de 100 horas de dramaturgia da ex-tinta TV Tupi depositadas na Cinemateca Brasilei-ra abriu caminho para estudos sobre novelas que antes eram inviáveis. Mas o material, disponível no site www.bcc.org.br/tupi/telenovelas, ainda é pouco explorado, diz Esther Hamburger, profes-sora da Escola de Comunicações e Artes da USP. Ela foi a pesquisadora responsável pelo projeto que catalogou e digitalizou as 100 horas de gra-vação, e vem realizando estudos com o material.

Segundo Esther, o arquivo da Tupi está num lugar ainda pouco visível. “É preciso ter estru-tura de rede que possa receber muitos acessos. O banco de dados é sólido nesse sentido, mas o projeto precisa ser completado”, diz. O conteúdo da televisão deveria estar mais disponível on-line, afirma a pesquisadora. “Países como França e Sué-cia disponibilizam o conteúdo que foi ao ar na TV através de suas bibliotecas nacionais”, afirma. Ela pondera que ainda não existe no Brasil tradição em pesquisa histórica utilizando material que a televisão levou ao ar.

teatro do sesc Pompeia em croqui de lina Bo Bardi: site reúne desenhos da arquiteta modernista

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38 z maio DE 2015

Projetos1. acervo quadruplex da extinta tv tupi (nº 2009/54923-7); Mo-dalidade auxílio à Pesquisa – Programa infraestrutura; Pesquisado-ra responsável esther império Hamburger (usP); Investimento r$ 446.934,77 (faPesP).2. acervo do instituto lina Bo e Pietro maria Bardi: catalogação, digi-talização e montagem de banco de dados on-line (nº 2009/54901-3); Modalidade auxílio à Pesquisa – Programa infraestrutura; Pesquisa-dor responsável renato luiz sobral anelli (usP); Investimento r$ 253.269,46 (faPesP).3. Preservação e difusão da memória pública: modernização e am-pliação dos laboratórios do arquivo Público do estado de são Paulo (nº 2009/54965-1); Modalidade auxílio à Pesquisa – Programa infraestrutura; Pesquisador responsável carlos de almeida Prado Bacellar (usP); Investimento r$ 1.692.982,33 (faPesP).4. Por uma Biblioteca Brasiliana digital (nº 2007/59783-3); Moda-lidade auxílio à Pesquisa – regular; Pesquisador responsável Pedro luis Puntoni (usP); Investimento r$ 663.514,35 (faPesP).

1

a s instituições também aprenderam que um projeto de digitalização, uma vez con-cluído, não chegou realmente ao fim. É

preciso investir em manutenção e atualização tecnológica. “No caso de filmes, manter um ar-quivo digital pode custar até 10 vezes mais do que manter um arquivo físico”, diz o consultor Millard Schisler, citando o estudo O dilema di-gital, feito pelo Science and Technology Council da Academy of Motion Picture Arts and Scien-ces, de Hollywood, que comparou a manutenção de filmes em película e digitais. É preciso criar e manter bancos de dados, atualizar softwares e monitorar o estado dos documentos. A cada vez que um acervo migra para outro servidor ou formatos digitais são atualizados, estima-se que até 10% dos documentos se percam – e cabe a um gestor recuperá-los a partir dos originais.

Inaugurada na USP em março de 2013, a Bi-blioteca Brasiliana Guita e José Mindlin incor-porou no ano passado os volumes digitalizados pelo Projeto Brasiliana USP e criou seu acervo digital. Já foram digitalizados 4,8 mil dos 32 mil volumes do acervo composto por livros, manus-critos e periódicos raros garimpados ao longo de 80 anos pelo empresário José Mindlin (1914-2010). O trabalho de digitalização na biblioteca passa agora por uma atualização. Ocorre que boa parte dos livros disponíveis on-line foi digi-talizada e submetida a um processo pelo qual a imagem colorida é convertida para apenas dois tons. O processo criou algo parecido como uma cópia xerox do original, em que o texto aparece sobre um fundo branco. A decisão foi tomada na época pelo Projeto Brasiliana USP para ge-rar imagens mais limpas e arquivos leves, facili-

tando o acesso para usuários com internet mais lenta e permitindo a economia de tinta em caso de impressão dos arquivos pelos usuários. Hoje, explica Jony Fávaro, especialista em digitaliza-ção da biblioteca, o método é diferente. Busca-se digitalizar as obras preservando características como o amarelecido das páginas, as marcas do uso e a reprodução fiel da capa. “Para um usuá-rio que busca apenas o texto da obra, pode não fazer diferença”, afirma Sandra Guardini Vas-concelos, diretora da biblioteca e professora do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. “Mas, no caso de um historiador, uma reprodu-ção fidedigna traz elementos importantes sobre a história editorial daquela obra.” A biblioteca planeja redigitalizar as primeiras obras, embora a prioridade seja oferecer as ainda não disponíveis. “Essa preocupação com o livro no seu suporte material, isto é, como objeto físico, é seguida por grandes instituições, como a British Library e a Bibliothèque Nationale de France”, diz Sandra. n

1 Bandeira do Brasil no período monárquico, do acervo digital do museu imperial

2 fotografia de veste do imperador Pedro ii disponível on-line

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pESQUISA FApESp 231 z 39

Pesquisadores brasileiros

e estrangeiros discutem

métodos para reduzir uso

de animais em testes

EXPERIMENTAÇÃO y

Com a ajuda do computador

Microchip desenvolvido no

Instituto Wyss, da Universidade

Harvard, simula o funcionamento do

pulmão humano

do Johns Hopkins University Hospital, nos Estados Unidos. Hartung citou o exemplo da aspirina, comprovadamente segura aos seres humanos, mas que se-ria reprovada em testes em animais por promover malformações fetais em certos modelos. “Procuramos apresentar aos pesquisadores brasileiros a importância do uso dos métodos alternativos e suas limitações, além da necessidade de um delineamento experimental criterioso”, diz Lorena Gaspar Cordeiro, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), uma das organizado-ras do evento.

Alguns métodos apresentados no workshop buscam alternativas ao uso de mamíferos, como o zebrafish, conhe-cido no país como peixe paulistinha, e a larva do inseto Galleria mellonella (ver Pesquisa FAPESP nº 220). “Cerca de 75% dos 26 mil genes do zebrafish são seme-lhantes aos humanos”, diz a geneticista Cláudia Maurer-Morelli, da Universida-de Estadual de Campinas (Unicamp). Já as larvas têm mecanismos imunológicos similares aos dos mamíferos. “A cutícula da larva funciona como uma pele. Quan-do se injeta uma substância tóxica, ela reage e escurece”, explica Maria José Giannini, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Araraqua-ra, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “O Brasil caminha para acom-panhar o que acontece em países como os Estados Unidos e os da Europa”, diz Giannini, coordenadora do workshop. n

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mais, robustas, envolvendo companhias farmacêuticas”, diz Raymond Tice, do National Institute of Environmental Health Science dos Estados Unidos, instituição envolvida no Tox 21. Tice participou do workshop Challenges and Perspectives in Research on Alterna-tives to Animal Testing, realizado na FAPESP em março. Segundo ele, o pa-radigma dos testes em animais não in-corpora avanços para tornar o processo mais seguro e preciso.

Eduardo Pagani, gerente de desen-volvimento de fármacos do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), mos-trou no workshop como modelos com-putacionais são capazes de comparar a estrutura de uma molécula candidata com a de outras já testadas e definir se vale a pena seguir com seu desenvol-vimento. O LNBio, que trabalha nessa frente, busca parcerias. No caso, com grupos que dominam a tecnologia de organs-on-a-chip. Trata-se de uma téc-nica em estudo nos Estados Unidos e na Alemanha que usa células para de-senvolver tecidos humanos integrados a microchips, capazes de reproduzir o funcionamento de órgãos vivos. “Que-remos atuar no campo de mimetização de tecidos”, ressalta Pagani.

Pesquisadores que participaram do workshop trouxeram novas discussões sobre o uso de modelos animais em pesquisa. Tais modelos apresentam se-melhança com o ser humano de apenas 60%, disse Thomas Hartung, do Cen-ter for Alternatives to Animal Testing

A busca por alternativas ao uso de animais em ensaios clínicos e testes de produtos intensificou-

-se na última década. Um dos casos mais representativos é o programa Tox 21 (Toxicologia do Século 21), criado com a colaboração de agências federais norte--americanas como os National Institutes of Health (NIH) e a Environmental Pro-tection Agency (EPA). Lançado em 2008, utiliza modelos matemáticos e computa-cionais, aliados à genômica e à tecnologia robótica, para estudar a estrutura e a toxi-cidade de uma vasta coleção de compostos químicos. O objetivo é conhecer as vias pelas quais as toxinas agem no organis-mo e criar métodos capazes de predizer se um candidato a fármaco merece ser submetido a ensaio clínico. Ao descartar moléculas prejudiciais à saúde, evita-se a utilização de animais em testes de com-postos previamente classificados como tóxicos. Em dois anos, foram estudadas mais de 10 mil substâncias. Os resultados estão disponíveis em plataformas virtuais.

“O sucesso das próximas etapas do programa depende de colaborações

Bruno de piero

Centro de pesquisa vai integrar áreas

do conhecimento com o objetivo

de avaliar e promover o bem-estar

Inovação y

Uma rede para estudar as emoções

A FAPESP e a Natura aprovaram a proposta de criação de um centro de pesquisa aplicada em bem-estar e comportamento

humano, com sede no Instituto de Psi-cologia da Universidade de São Paulo (USP). O projeto é liderado por Emma Otta, professora do Departamento de Psicologia Experimental do instituto, e reúne mais de 40 cientistas e suas equi-pes que atuam em áreas complementa-res, em universidades como a USP, as federais de São Paulo (Unifesp) e do Rio Grande do Sul (UFRGS), o Mackenzie, além de instituições norte-americanas como New York University, University of Florida e Washington State University.

O objetivo principal é criar uma base de conhecimento capaz de avaliar e pro-mover o bem-estar, integrando campos do conhecimento como a neurociência, a etologia, a psicologia social e a psicologia positiva, que estuda emoções como a fe-licidade e o prazer, além das ciências da saúde, humanas e sociais aplicadas. “De caráter interdisciplinar, o centro reúne pesquisadores unidos pelo interesse de estudar as emoções e pela valorização de intervenções que busquem a educação

emocional”, define Emma Otta. “His-toricamente, tanto a psicologia quanto a neurociência focalizaram o estudo de processos não emocionais, como atenção, solução de problemas, memória. Hoje, considera-se a emoção um tema legítimo de estudo e passível de investigação por métodos com rigor científico.”

Segundo Gerson Pinto, vice-presiden-te de inovação da Natura, trata-se de um modelo inédito de centro integrado en-volvendo uma empresa brasileira para investigar um tema ainda pouco explora-do na academia. “A Natura já desenvolve pesquisa científica em bem-estar há oito anos e o centro terá papel fundamental na ampliação da nossa visão sobre o te-ma, construindo uma rede robusta de conhecimento, principalmente nas áreas de psicologia e neurociências, e nos per-mitindo cada vez mais trazer inovação relevante relacionada a indivíduos e suas relações”, explica. “A iniciativa trará a oportunidade de reconhecer caminhos mais assertivos para a promoção de bem--estar por meio de nossos produtos e serviços, tanto do ponto de vista do in-divíduo quanto do coletivo.” De acordo com Gerson Pinto, também se espera

grande difusão do tema do bem-estar na sociedade, incluindo o setor de edu-cação e a geração de oportunidades de negócios para empreendedores.

O investimento na implantação e na condução do centro será de R$ 20 mi-lhões em 10 anos, divididos igualmente entre a Natura e a FAPESP. A iniciati-va foi aprovada no âmbito do Progra-ma FAPESP de Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), que apoia projetos em instituições de pes-quisa desenvolvidos em cooperação com empresas e cofinanciados por elas. Mas combina práticas de outro programa da Fundação, os Centros de Pesquisa, Ino-vação e Difusão (Cepid), que apoia por longo prazo equipes multidisciplinares dedicadas a temas na fronteira do co-nhecimento e busca conectar a pesquisa científica com a inovação, a educação e a transferência de tecnologia.

O trabalho do centro será organizado em quatro grandes linhas. A primeira de-las, voltada para a avaliação de bem-estar, prevê a realização de estudos epidemio-lógicos e de coorte (em que um grupo es-pecífico é seguido por um prazo longo), e o desenvolvimento de novos indica-

40 z mAio DE 2015

via Raad Bussab, do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da USP, e Maria de Lima Salum e Morais, do Instituto de Saúde, que também participam do novo cen-tro. “As várias equipes vêm detalhando o plano de trabalho e estão muito moti-vadas para começar logo”, afirma Emma Otta. Os pesquisadores irão interagir com profissionais da vice-presidência de Inovação da Natura, em particular com os da área de Ciências do Bem-estar. O vice-diretor do centro será definido pela Natura. n Fabrício Marques

ProjetoPositive psychology and neuroscience translational re-search to promote well-being and emotional regulation (nº 2014/50282-5); Modalidade auxílio à Pesquisa – Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Pesquisadora responsável Emma otta (Instituto de Psi-cologia-USP); Investimento R$ 10 milhões (FaPESP), R$ 10 milhões (natura), em 10 anos.

Um dos desafios do centro é criar indicadores objetivos para avaliar sensações subjetivas

dores capazes de avaliar o bem-estar na população brasileira. Um dos principais desafios é criar critérios para avaliar as sensações subjetivas associadas ao bem--estar com indicadores objetivos. “Há maneiras de fazer isso, associando, por exemplo, o relato dos indivíduos sobre emoções positivas ou negativas com sua atividade cerebral, sudorese e batimentos cardíacos”, diz Emma Otta.

odoresA segunda linha tem como foco a expres-são emocional e o reconhecimento das emoções. Estudos buscarão identificar expressões emocionais por meio de pro-tocolos de observação de comportamen-to e de respostas como reações visuais ou a ativação da emoção por odores. “Os cheiros podem evocar reações emocio-nais e queremos entender como o bem--estar pode ser afetado positivamente pelo olfato”, explica a pesquisadora.

A terceira linha, denominada Medi-das Neurofisiológicas de Afeto, prevê estudos clínicos e experimentais sobre a autorregulação emocional, que reúne os processos que gerenciam impulsos e emoções. Respostas fisiológicas a odores il

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também serão investigadas nesse tópico. A quarta linha de pesquisa tem como fo-co intervenções para estimular a autor-regulação emocional. Propõe estudos na área da psicologia positiva, saúde pública e psicologia comportamental capazes de promover a autorregulação emocional, o bem-estar subjetivo, as habilidades sociais de crianças e adultos e a resiliên-cia, conceito psicológico emprestado da física que define a capacidade de lidar com problemas e resistir à pressão de situações adversas.

O centro tem como bagagem um his-tórico de projetos de pesquisa como o projeto temático Interação mãe-bebê: Depressão pós-parto como um fator de risco para o desenvolvimento, encerrado em 2012, que acompanhou a depressão pós-parto em mães de São Paulo. Li-derado por Emma Otta, o projeto teve como pesquisadoras principais Vera Sil-

pesQUisa Fapesp 231 z 41

Com técnicas sustentáveis de produção de bioenergia já dis-poníveis, seria possível prover até 30% da energia mundial até

2050, cerca de 10 vezes mais do que o quinhão atual, sem prejudicar a biodi-versidade ou colocar em risco a seguran-ça alimentar da população. O cenário foi apresentado no relatório internacional Bioenergy & sustainability: Bridging the gaps, resultado de uma parceria entre a FAPESP e o Comitê Científico para Problemas do Ambiente (Scope, na si-gla em inglês), órgão independente que colabora com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Lançado no mês pas-sado na sede da FAPESP em São Paulo, o documento de 700 páginas baseou-se em cerca de 2 mil estudos científicos e avaliações feitos por 137 especialistas de 24 países, envolvendo mais de 80 insti-tuições de pesquisa. O trabalho foi coor-denado por pesquisadores dos progra-

BiocomBustíveis y

ilu

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da

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do

comitê avalia 2 mil estudos

e sugere que é possível

expandir bioenergia sem

gerar danos ambientais

Para um futuro mais equilibrado

mas FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sus-tentável da Biodiversidade (Biota) e de Pesquisa em Mudanças Climáticas Glo-bais (PFPMCG), convidados pelo Scope para elaborar o relatório. O comitê foi criado em 1969 com o objetivo de ava-liar a produção de conhecimento sobre meio ambiente e fornecer informações para pesquisadores e formuladores de políticas públicas por meio de seminá-rios e publicações anuais. A íntegra do documento está disponível no endereço bioenfapesp.org/scopebioenergy.

O relatório fornece dados e resulta-dos de pesquisas combinados com uma análise do panorama atual da bioenergia e uma revisão crítica de seus impactos. “A bioenergia pode contribuir para al-terações geopolíticas, por ser flexível e sustentável, e por seu papel na mitiga-ção das mudanças climáticas. As vanta-gens da produção adequada de bioener-

com o conhecimento e

práticas que se têm

hoje em relação à

bioenergia, 30% do

abastecimento de

combustíveis no mundo

poderia ser fornecido

por biomassa até 2050

42 z maio DE 2015

Conclusões do relatóriocom base na revisão de mais de 2 mil trabalhos científicos, o documento Bioenergy & sustainability: Bridging the gaps afirma que:

o desenvolvimento da

bioenergia pode estimular o

abastecimento de alimentos

das comunidades ao melhorar

práticas de cultivo agrícola e

de gestão de solos e promover

o desenvolvimento rural

o uso de bioenergia, se feito

cuidadosamente, pode

contribuir para a diminuição

da poluição do ar e da água

iniciativas amparadas e

monitoradas por políticas públicas

e boa gestão podem ajudar

a proteger a biodiversidade

e fornecer serviços ambientais,

como a recuperação

de solo degradado

Ganhos de eficiência e práticas

sustentáveis de bioenergia

podem contribuir para uma

economia de baixo carbono,

reduzindo as emissões

de gases de efeito estufa

novas tecnologias

podem prover as

comunidades com

segurança alimentar,

energética e

econômica, além de

desenvolvimento

social, com a

utilização mais

efetiva de água,

nutrientes e

outros recursos

total global de terras13 bilhões de hectares

1,5 bilhãode hectares

são destinados

para culturas

agrícolas e

terras aráveis

50 a 200 milhõesde hectares são necessários

para a expansão da

bioenergia

Menos de 13 a 60 milhões

de hectares são

usados atualmente

para a produção

de bioenergia

Espaço suficienteQuantidade aproximada de terras usadas para a produção de bioenergia e de alimentos no mundo

44 z maio DE 2015

tura, preservação ambiental e produção de bioenergia geralmente trabalhadas em separado. O relatório sugere que a com-binação de silvicultura, isto é, o plantio de áreas de reflorestamento, com a pro-dução de bioenergia, integrando áreas

de pastagem e de flo-restas, pode suavizar os efeitos das mudan-ças climáticas além de não comprometer a segurança alimentar.

“Culturas agrícolas adequadamente ge-renciadas podem aju-dar a manter a quali-dade do solo e até mesmo resultar em acúmulo de carbono, reduzindo as emis-sões de CO2”, explica Paulo Artaxo, profes-sor do Instituto de Fí-sica da Universidade de São Paulo (USP) e coautor do relatório. Uma das recomenda-ções do Painel Inter-governamental sobre

Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), por exemplo, é a adoção do plantio direto nas lavouras. A técnica consiste na abertura de pequenos sulcos para o plantio de mudas, sem arar a terra. Com isso, o solo é protegido de erosão e resíduos deixados por safras anteriores ajudam a fertilizá-lo.

ExPansãO E rEssalvasUma proposta apresentada no relatório é expandir a produção de bioenergia em conjunto com a de alimentos. Segundo o documento, a disponibilidade de ter-ra para agricultura no planeta está con-centrada na América Latina e na África Subsaariana e boa parte é usada para pas-tagens de baixa intensidade. De acordo com Luiz Augusto Horta Nogueira, da Universidade Federal de Itajubá, coautor de alguns capítulos do relatório, apro-ximadamente 360 milhões de hectares de terras adequadas para a agricultura de sequeiro (plantio em lugares secos) estão disponíveis na América Latina e no Caribe, o que corresponde a 37% do total mundial e mais de três vezes a área necessária para atender às necessidades alimentares do mundo. “Apenas 20% dessa área poderia produzir biocom-

gia têm respaldo científico”, diz Glaucia Mendes Souza, membro da coordenação do Bioen e coeditora do documento, re-ferindo-se, por exemplo, ao caráter reno-vável dos biocombustíveis e aos avanços recentes da bioenergia com o desenvol-vimento de varieda-des de plantas cada vez mais produtivas. O documento susten-ta que o aumento do cultivo de biomas-sa para geração de energia não precisaria avançar sobre flores-tas nem sobre áreas agrícolas hoje des-tinadas à produção

de alimentos. Há terra suficiente para produzir bioenergia, ocu-pando áreas de

pecuária exten-siva e solos degra-

dados. Jon Samseth, pesquisador da Oslo and Akershus Uni-versity College of Applied Sciences, na Noruega, e presi-dente do Scope, enfatizou a participação do Brasil na elaboração do relatório, por ser um dos países que mais se destacam no desenvolvimento da bioenergia dentro da comunidade científica global. “Ener-gias renováveis suprem 41% das neces-sidades energéticas do Brasil. Nos países nórdicos, por exemplo, o percentual é de 30% a 35%”, comentou Samseth.

Apesar dos avanços científicos e tecnológicos, os autores do estudo reconhecem que a expansão dos biocombustíveis depende do res-paldo de políticas públicas para se sustentar em nível global. Ho-

je, 87% da demanda de energia no mundo é atendida pelo consumo de

combustíveis fósseis e energia nuclear. “Reverter esse quadro implica triplicar a produção de bioenergia moderna até 2030”, estima Glaucia, referindo-se às formas mais eficientes de transforma-ção de biomassa em combustíveis, como o etanol de milho e de cana, e o biodiesel de soja e dendê.

Para chegar lá, de acordo com a pes-quisadora, é preciso converter o conhe-cimento científico em políticas públicas e integrar estratégias voltadas para agricul-

O exemplo da cana-de-açúcarcomo produzir etanol de forma sustentável segundo o relatório do scope

Plantas com características superiores novas variedades de

cana mais produtivas

e resistentes à seca

ou a solos pobres vêm

sendo desenvolvidas

Proteção do soloo plantio direto, que

consiste na abertura de

pequenos sulcos para o

cultivo de mudas sem

arar a terra, pode

proteger o solo da erosão.

Resíduos deixados

por safras anteriores

ajudam a fertilizá-lo

Colher sem queimara substituição das

queimadas por colheita

mecanizada reduz

drasticamente a

contribuição da cana para

o aquecimento global

reciclagem de resíduos industriais a vinhaça é um resíduo

resultante da produção

do álcool da cana-de-açúcar

e pode ser empregada como

fertilizante nos canaviais,

em razão de seus altos

teores de potássio

Geração de eletricidade a queima do bagaço de

cana é usada para gerar

vapor e fazer funcionar

geradores elétricos

“as vantagens da produção adequada de bioenergia têm respaldo científico”, diz a pesquisadora Glaucia souza

PEsQuisa FaPEsP 231 z 45

bustíveis equivalentes a 11 milhões de barris de petróleo por dia, mais do que a produção de hoje dos Estados Unidos ou da Arábia Saudita”, diz ele.

Convidado para comentar o relató-rio no evento de lançamento, o chileno Luiz Felipe Duhart, consultor e ex-che-fe do escritório regional da Organização das Nações Unidas para a Alimenta-ção e a Agricultura (FAO) na Améri-ca Latina, afirmou que a expansão da bioenergia na região precisa levar em conta impactos sociais como distorções de preços dos alimentos e o avanço da monocultura. “Não podemos descartar o perigo de o preço de alimentos ser afetado com o avanço da produção de biocombustíveis”, diz ele. “Os Estados Unidos passaram a produzir etanol a partir do milho e isso contribuiu pa-ra aumentar o valor da commodity na América Central, onde a cultura está na base alimentar da população. Isso precisa ser evitado”, completou. O re-latório do Scope sugere que se faça um monitoramento dos preços de alimen-tos que servem de matéria-prima pa-ra bioenergia e reconhece que as terras para expansão estão prin-cipalmente na América Latina e na África. Também susten-ta que não foram encontradas evidências científicas de que a produção de bioenergia ocasio-ne aumento no preço de alimentos.

Durante o evento, Duhart foi ques-tionado sobre a possibilidade de a bioe-nergia criar condições para o avanço da monocultura, considerada por am-bientalistas uma ameaça à biodiversi-dade. “No caso do Brasil, não vemos a cana-de-açúcar como uma monocultura. Há uma grande quantidade de hectares plantados, mas nada parecido com o que ocorre na Indonésia, onde em toda a ilha predomina o cultivo de palma pa-ra a produção de óleo”, disse. No Brasil, afirmou Duhart, tem-se investido em técnicas para aumentar o rendimen-to da cana. Um exemplo é o etanol celulósico, também chamado de etanol de segunda geração, feito a partir de resíduos agroindustriais, como bagaço de cana. No entanto, o relatório do Scope é enfático em relação a essa técnica: o etanol de se-gunda geração ainda é produzido em escala inicial, em via de implantação co-mercial e em poucos lugares no mundo

– um deles é o Brasil. Segundo o docu-mento, é necessário reduzir o custo das tecnologias envolvidas nesse processo.

Pellets E lasCasO relatório lançado na FAPESP apresen-ta outras iniciativas adotadas mundo afo-ra. Uma delas é o Akershus, um centro de distribuição de aquecimento implan-tado na Noruega em 2011. As principais matérias-primas utilizadas no centro são lascas e pellets de madeira – partículas desidratadas e prensadas com alto poder calorífico –, que podem ser usados como combustíveis para caldeiras residenciais, industriais e usinas termelétricas. O pel-let é considerado um combustível limpo,

renovável e usado na geração de calor em outros países da Europa. O ca-lor é distribuído na forma de água quente por meio de tubulações que conectam casas e prédios à planta

fornecedora. Outro caso avaliado pelo Scope é

o plantio do pinhão-manso (Jatropha curcas) na África, usado na produção de biodiesel. Por não servir de alimen-to para o gado, a planta é predominan-temente cultivada em fileiras em torno de outras culturas, servindo inclusive como barreira para o vento e a erosão. Segundo o relatório, organizações não governamentais estão incentivando o plantio da Jatropha como estratégia de desenvolvimento rural. Em alguns lo-cais, foram criadas cooperativas de pe-quenos agricultores, em parceria com empresas que fornecem equipamentos, infraestrutura e compram as sementes. O subproduto resultante da produção do biodiesel é usado como fertilizante, também comercializado pelos pequenos produtores.

Mas ainda há dúvidas sobre o futuro dessa estratégia. “A Jatropha é uma planta de baixa produtividade, que sofre várias doenças. Por isso, ela teve sucesso apenas em algumas poucas regiões”, diz Glau-cia Souza. “Esse exemplo mostra como a produção de bioenergia deve ser tratada de diferentes perspectivas. Do ponto de vista científico, a Jatropha ainda preci-sa de mais estudos sobre produtividade e adaptação ao ambiente. Do ponto de vista das políticas públicas, depende da articulação entre pequenos produtores, empresas e governo local. A viabilidade econômica e social de uma biomassa de-pende do contexto local”, explica. n

Panorama em transformaçãoo que está mudando na produção de bioenergia, segundo o relatório do scope

uso da águanos anos 1990, para

produzir 1 litro de

etanol eram necessários

6 litros de água. em 2012,

a taxa caiu para 2,7 litros

de água por litro de

etanol produzido

Madeira e poluiçãolascas e pellets (pequenas

pastilhas prensadas e

desidratadas) de madeira

estão sendo usados para

fornecer energia a

aquecedores residenciais.

Pellets têm alto poder

calorífico e liberam baixa

quantidade de compostos

químicos na queima

rendimento das safrasa produtividade da

cana-de-açúcar aumentou

nas últimas três décadas

a uma taxa média de

4% ao ano. Projeções do

relatório mostram que de

2010 para 2020 o aumento

da produção poderá

chegar a 50%

Carros mais eficientesPesquisas apontam

melhorias da eficiência

energética do etanol,

como a combinação da

injeção eletrônica

de combustível com

turbocompressor em motores

mais potentes e econômicos

Pastagens com as pastagens já

existentes, seria possível

produzir quatro vezes mais

animais. a intensificação de

pastagens pode gerar áreas

excedentes para

bioenergia e agricultura

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Análises de imagens de satélite indicam

perda de 266 mil km2 do Cerrado e 90 mil km2

da Caatinga, aumentando riscos de falta

d’água e de desertificação

ciência Ambiente y

Terra frágil

carlos Fioravanti

catolé do Rocha, município do sertão da Paraíba com quase 30 mil moradores, está ficando ainda mais quente e seco, à medida que a vegetação natural se esvai.

Em oito anos, de 2005 a 2013, de acordo com um estudo de pesquisadores de universidades da Paraíba e do Rio Grande do Norte, a área de caatinga rala encolheu 48% e a de caatinga den-sa, 13,5%, enquanto a agrícola deu um salto de 823%, de 2,45 mil para 22,64 mil hectares. Os autores desse levantamento concluíram que “a vegetação local foi suprimida indiscriminada-mente” e houve “um crescimento exorbitante” das áreas ocupadas principalmente com a criação extensiva de bois.

Somando muitas situações como essa, de 1990 a 2010 a Caatinga perdeu 9 milhões de hectares – ou 90 mil quilômetros quadrados (km2), qua-se a área de Portugal – de vegetação nativa, em consequência do desmatamento e da expansão da agropecuária e do uso de madeiras de árvores nativas como fonte de energia (lenha) em resi-dências e pequenas indústrias, de acordo com um levantamento mais amplo publicado em março

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Queimada no Cerrado em 2006 no Parque nacional das

emas, em Goiás

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na revista Applied Geography. Esse trabalho in-dica que, nesses 20 anos, a taxa de derrubada da vegetação natural aumentou na Caatinga (de 0,19% ao ano de 1990 a 2000 para 0,44% ao ano na década seguinte), embora os levantamentos do Ministério do Meio Ambiente indiquem uma queda do desmatamento nesse ecossistema. Pa-ra os autores do artigo, a divergência decorre do conceito de paisagem natural – eles preferi-ram não incluir as áreas cobertas puramente por gramíneas, que o governo federal considerou – e da escala temporal (duas décadas em um caso e quase uma década em outro).

A eliminação da vegetação nativa – ainda mais prejudicial quando feita por meio do uso do fogo, que destrói a matéria orgânica do solo – deixa a terra descoberta, com maior capaci-dade para absorver a radiação solar, desse modo elevando a temperatura local, acelerando a evaporação da água e diminuin-do a resistência à erosão causa-da pelo vento e pelas chuvas, que arrastam a matéria orgânica e reduzem a fertilidade de solos pouco férteis e a capacidade de reter água. Além disso, alertam os especialistas, a erosão causa-da pelas chuvas – raras, mas ge-ralmente torrenciais – promove o assoreamento de rios, aumen-tando o risco de inundações, e expõe as rochas antes cobertas pela terra, dificultando a volta das plantas e mesmo o uso da terra para fins agrícolas. Em Catolé do Rocha, a área exposta de rochas, os chamados afloramentos, aumentou 27%, passando de 578 para 734 hectares, em oito anos.

Na Caatinga, outra ameaça, que se agrava, é a desertificação. “O que mais contribui para desencadear o processo de desertificação é

o mau uso da terra, com o desmatamento e mui-tas vezes o uso do fogo, agravado pelas condições climáticas”, diz Iêdo Bezerra Sá, pesquisador da Embrapa Semiárido. Com sua equipe, ele exami-nou a região de Cabrobó, no sertão de Pernambu-co, um dos núcleos de desertificação do nordeste brasileiro, a 400 km a sudoeste de Catolé do Rocha. Ali, os solos são arenosos, permeáveis e incapazes de reter as águas das chuvas. Seus levantamentos indicaram que a área com grau severo de deserti-ficação, associado à ocupação agropecuária, era já de 100 mil hectares (1 mil km2) e com grau acen-tuado, em terras ocupadas pela caatinga arbórea, de 519 mil hectares (5 mil km2).

Sá está concluindo um levantamento que indi-ca que 9 das 12 regiões de Pernambuco – ou 122

dos 185 municípios do estado –, principalmen-te no sertão, estão sujeitas a um risco elevado de desertificação. Um de seus estudos recentes indicou que quase toda a região de desenvolvi-mento do sertão do São Francisco, onde se cul-tivam frutas irrigadas, encontra-se sob risco de se transformar em um areal estéril (75% da área encontra-se sob risco moderado e 23% sob ris-co severo). Ali, ele explicou, o consumo de água para a irrigação das plantações excede a capaci-dade dos rios, cuja vazão diminui, prejudicando toda a área que percorrem. “A Caatinga é muito

frágil”, diz ele. “Em alguns ca-sos, o melhor seria não mexer.”

Especialistas verificaram que 94% do nordeste brasi-leiro, além do norte de Minas Gerais e Espírito Santo, apre-senta uma suscetibilidade que varia de moderada a alta à de-sertificação e indicaram as áreas com maior potencial de se tornarem areais estéreis até o ano de 2040. nesse levanta-mento, as áreas mais suscetí-veis expandiram-se quase 5%, o equivalente a 83 km2, de 2000 a 2010. “Esse estudo foi o pri-meiro no Brasil a produzir um diagnóstico a partir da análise integrada dos principais indi-cadores de degradação e de-sertificação”, diz Rita Vieira,

pesquisadora do Instituto nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e principal autora desse estudo, publicado na Solid Earth. Segundo ela, os resul-tados foram apresentados à Comissão nacional de Combate à Desertificação, que orienta a im-plementação de compromissos internacionais assumidos pelo país.

“Reduzir o risco de desertificação é um pro-cesso lento. O primeiro passo é mudar a forma de lidar com a terra e parar de desmatar”, diz Carlos Magno, um dos coordenadores do Centro Sabiá, uma organização não governamental sediada em Recife. Com financiamento do governo federal, o centro está trabalhando com 200 famílias de pe-quenos proprietários rurais do agreste e do sertão de Pernambuco para recuperar 100 hectares de áreas sujeitas à desertificação com os chamados sistemas agroflorestais, que consistem no plantio de plantas diferentes como milho, feijão, abóbo-ra, batatas, forrageiras e frutas como umbu e cajá em meio à Caatinga.

“Estamos reconstruindo a ideia de que a Caa-tinga é uma floresta e que precisa ser preserva-da”, diz Magno.

no dia 16 de abril, ele saiu de seu escritório em Caruaru e viajou 30 km até o município de

94% do nordeste, além do norte de Minas Gerais e Espírito Santo, está sob risco de desertificação

pESQUiSa FapESp 231 z 49

Bezerros para visitar Maria Idalvonete Julião da Silva, dona de 3 hectares, que participa desse projeto. Motivada pela perspectiva de aumentar a produção de alimentos mesmo em tempos mais secos, Idalvonete separou 1 hectare e plantou palma forrageira e leucena, que servem de ali-mento para o gado, feijão guandu, mamão e aba-caxi. “Além de servir aos animais e às pessoas”, ele argumenta, “os cultivos conservam o solo; a água, quando chega, fica no solo, cheio de raízes, em vez de ir embora”. Em um levantamento com 15 famílias que adotam essa estratégia há mais de 10 anos, ele verificou que “depois das grandes secas e chuvas os sistemas agroflorestais voltam a produzir alimentos mais rapidamente que os sistemas agrícolas convencionais, o que implica uma exploração excessiva do solo da Caatinga.”

cErradono estudo publicado na Applied Geography, a equipe coordenada por René Beuchle, do Joint Research Centre da Comissão Europeia, da Itá-lia, examinou também outro amplo ecossistema brasileiro, o Cerrado, que perdeu ainda mais que a Caatinga. Em 20 anos, a área de Cerrado sofreu uma redução de 26 milhões de hectares – ou 260

mil km2, o equivalente ao dobro da área da In-glaterra, também pela expansão da agropecuária. Outra conclusão é de que a taxa de derrubada da vegetação natural caiu no Cerrado (de 0,79% ao ano de 1990 a 2000 para 0,44% ao ano na década seguinte), dessa vez concordando com as conclu-sões do governo sobre o recuo do desmatamento.

Para ver o que se passava na Caatinga e no Cer-rado, a equipe coordenada por Beuchle analisou 974 imagens do satélite Landsat, com resolução de 30 metros, que registraram as mudanças na cobertura vegetal do solo em 1990, 2000, 2005 e 2010 em 243 áreas amostrais, cada uma com 10 km por 10 km. Os dois ecossistemas cobrem 35% do território brasileiro e estão entre os ambien-tes naturais mais ameaçados do planeta devido à conversão de matas nativas para uso agrícola. Hoje a vegetação nativa da Caatinga ocupa 63% de sua área original e a do Cerrado, 47%, de acor-do com esse estudo. Levantamentos do governo federal consideram a área remanescente de co-bertura vegetal um pouco maior, nos dois casos. Há consenso, porém, de que a área de vegetação nativa preservada por meio de unidades de con-servação ainda é muito limitada: 7,5% da Caatinga e 8% do Cerrado.

Queimada no cerrado e buritizal de boa Vista, Roraima, em 2014

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As transformações nesses ecossistemas não são noticiadas tanto quanto as de outros dois biomas brasileiros, Mata Atlântica e Amazônia, porque, em parte, não é simples detectá-las. nas imagens de satélite feitas na estação seca – e a maioria das imagens usadas são dessa época, por causa da ausência de nuvens de chuva –, “é difí-cil separar as árvores sem folhas do Cerrado e da Caatinga de outras coberturas da terra, incluindo as áreas agrícolas”, diz Beuchle. Em contraparti-da, as imagens da Mata Atlântica e da Amazônia exibem um claro contraste entre a floresta alta e densa e as áreas desmatadas, mais baixas.

Além disso, diferentemente da Mata Atlântica e da Amazônia, a Caatinga e o Cerrado não foram reconhecidos como patrimônios naturais. O Mi-nistério do Meio Ambiente observa, em seu site: “Devemos reconhecer que a Caatinga ainda care-ce de marcos regulatórios, ações e investimentos na sua conservação e uso sustentável”. Segundo o ministério, uma das medidas fundamentais nesse sentido seria a aprovação da proposta de emen-da constitucional que transforma a Caatinga e o Cerrado em patrimônios nacionais, o que pode-ria facilitar a implantação de medidas voltadas à conservação desses ambientes.

Edson Sano, pesquisador da Embrapa Cerrados que trabalhou com Beuchle nessa análise, con-cluiu que a redução de áreas de vegetação nativa, principalmente no Cerrado, reflete a expansão agrícola do final da década de 1990, “quando a terra no Centro-Oeste ainda era barata e a pro-dução no Sul e Sudeste já estava saturada”. Se-gundo ele, a partir do ano de 2000, porém, essa expansão desacelerou, por causa da elevação do custo da terra, do aumento da fiscalização (hoje os fazendeiros têm de obter autorização de ór-gãos federais ou estaduais para cortar a vegetação nativa, sob o risco de perder o direito de uso da área) e dos ganhos de produtividade proporcio-nados por novas tecnologias de cultivo. “Agora a tendência é de redução”, diz ele.

No estado de São Paulo, de acordo com o mapeamento mais recente, de 2010, o Cer-rado ocupa 847,4 mil hectares, o equiva-

lente a 8,5% da área original, de 9,9 milhões de hectares, e apenas 25,9 mil hectares estão pro-tegidos por algum tipo de unidade de conserva-ção. Matas desse tipo de vegetação ainda podem ser vistas nas regiões de Ribeirão Preto, Franca, São José do Rio Preto, Bauru, Sorocaba e Cam-

Xique-xique em solo rochoso da Caatinga de Caicó, Rio Grande do norte: ambiente frágil

pESQUiSa FapESp 231 z 51

Artigos científicosoliVeiRA, R. A. n. de et al. Dinâmica do processo de desmatamento de caatinga no município de Catolé do Rocha-Pb. Agropecuária Científica no Semiárido. v. 10, n. 4, p. 1-4. 2014.

beUCHle, R. et al. land cover changes in the brazilian Cerrado and Caatinga biomes from 1990 to 2010 based on a systematic remote sensing sampling approach. Applied Geography. v. 58, p.116-27. 2015.

VieiRA, R. m. S. P. et al. identifying areas susceptible to desertification in the brazilian northeast. Solid Earth. v. 6, p. 347-60. 2015.

pinas, entre outras, acossadas pelas plantações de cana-de-açúcar (ver Pesquisa FAPESP nº 170). “Para atingir as metas de recuperação de acor-dos internacionais, que propõem a recuperação de 17% da área original terrestre de cada bioma, teríamos de plantar cerca de 800 mil hectares de Cerrado em São Paulo”, informa Marco Aurélio nalon, pesquisador do Instituto Florestal e um dos coordenadores do Inventário Florestal da Cobertura Vegetal nativa do Estado de São Paulo.

Com os números e os mapas à mão, nalon tem se reunido com outros especialistas de órgãos am-bientais do estado com o propósito de repor o que for possível das matas perdidas. não é só São Paulo que está se mobilizando. Em janeiro deste ano, o Ministério do Meio Ambiente apresentou para de-bate público a versão preliminar do Plano nacional de Recuperação da Vegetação nativa, elaborado com base na Lei de Proteção da Vegetação nati-va, de 2012, para incentivar o plantio de espécies nativas, a restauração de áreas degradadas e as práticas agropecuárias que favoreçam a recupe-ração de pelo menos 12,5 milhões de hectares de vegetação nativa nos próximos 20 anos, por meio do plantio ou da restauração de áreas degradadas.

Já existem técnicas agrícolas que evitam o es-gotamento do solo e reduzem a necessidade de outras terras para cultivo ou pastagens. Sano destaca duas. A primeira é o rodízio de plantio: uma parte da área de pastagem é ocupada com um cultivo agrícola, que nos anos seguintes ocupa outras partes da propriedade, alternadamente. A segunda é o plantio de árvores comerciais nas pastagens: as árvores oferecem sombra para o gado e depois podem ser vendidas. “nada impede que em uma mesma fazenda exista uma integra-ção entre lavoura, pecuária e floresta”, diz ele.

A área de vegetação nativa a ser recuperada, de acordo com a meta do plano do governo federal, corresponde a mais da metade dos 21 milhões de hectares que representam o déficit nacional de vegetação nativa no país, medido pela soma das áreas de matas nativas que os proprietários rurais devem, por lei, manter em suas terras ou nas pro-ximidades de rios e córregos. “A recuperação da vegetação nativa é muito importante, principal-mente em áreas de nascentes”, ressalta Sano. “Se não preservarmos as nascentes, em alguns anos poderemos não ter mais água nem para beber.” n

Um sinal do avanço da pecuária em

Currais novos, Rio Grande do norte

para cumprir acordos internacionais, o estado de São paulo teria de plantar 800 mil hectares de cerrado

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Modelos matemáticos

reconstroem papel de

animais hoje extintos

na dispersão de

sementes no Pantanal

ecologia y

Jardineiros da pesada

Preguiças-gigantes, mastodontes e cavalos selvagens povoavam a paisagem na América do Sul até cerca de 10 mil anos atrás.

A extinção desses mamíferos que po-diam pesar toneladas, conhecidos co-mo a megafauna do Pleistoceno, pode ter provocado impactos consideráveis na vegetação do Pantanal brasileiro, de acordo com artigo publicado em agos-to de 2014 na revista Oecologia. A flora que dependia deles como dispersores de sementes, embora não tenha sumido (há outros dispersores, como o homem), pode ter se tornado menos abundante que no passado, ocupando áreas mais restritas. “Nossa proposta foi abrir espa-ço para uma abordagem ecológica, capaz de observar relações específicas estabe-lecidas entre os bichos e as plantas, para entender o que aconteceu quando os gi-gantes saíram de cena”, explica Mathias Pires, do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).

A inspiração foi o trabalho da bra-sileira Camila Donatti, feito duran-te o doutorado na universidade nor-te-americana Stanford, em parceria com o grupo do ecólogo Mauro Ga-letti, da Universidade Estadual Pau-lista (Unesp) de Rio Claro, e publica-do em 2011 na revista Ecology Letters.

Francisco Bicudo

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Ela considerou animais do Pantanal – de peixes a mamíferos – e caracterizou a dispersão de sementes realizada por eles. “A abordagem de Camila permite simplificar as interações entre espécies em um dado local. Usando essa aborda-gem, onde representamos espécies por pontos e suas interações por linhas, é possível extrair informações sobre co-mo os organismos estão interligados”, explica Pires. “Ou seja, sabe-se que um animal A consome os frutos e dispersa as sementes das plantas 1, 2 e 3, mas a espécie B só consegue dispersar a planta 1, e ainda um C espalha apenas 2 e 3.”

No doutorado, orientado por Paulo Gui-marães, Pires encarou o desafio de inves-tigar como essa mesma rede de interações seria no passado. Baseado em informações dos fósseis que ocorriam na região, inseriu junto aos animais atuais do Pantanal cin-co espécies da megafauna que habitaram o bioma em tempos remotos. Entre essas espécies estavam preguiças-gigantes, mas-todontes e um parente das lhamas atuais. O pesquisador lembra que esses bichões são descritos na literatura científica co-mo bons dispersores de plantas, graças a pelo menos dois aspectos singulares: por serem muito grandes e incluírem frutos diversos na dieta, eles acabam ingerindo sementes grandes que animais menores não conseguem dispersar. Além disso, eles

conseguiriam percorrer longas distâncias e, como digeriam devagar, acabavam fa-zendo com que a germinação acontecesse em locais distantes da planta-mãe.

No que diz respeito às plantas, Pires relacionou 10 espécies, sobretudo aque-las cujas sementes até hoje são espalha-das por mamíferos, como pequis, jatobás e algumas palmeiras. Com as devidas substituições e adaptações, ele recorreu então às simulações, modelos matemáti-cos, computadores e estatísticas. “A ideia era observar a rede atual e apurar como poderia ter sido no passado.”

Ontem e hOJePires destaca outra conclusão do estudo: nas redes que reconstruiu, os papéis de-sempenhados por animais da megafauna na dispersão de sementes eram bem defi-nidos e marcados, ou seja, os grandes bi-chos espalhavam as sementes maiores e os animais menores, as pequenas sementes. Hoje, em sintonia com o que sugere o estu-do liderado por Camila, essa divisão já não existe. “Sem os mastodontes e as pregui-ças-gigantes, os frutos maiores perderam seus dispersores principais. Antas, quatis e bugios, por exemplo, teriam um papel

secundário na disseminação de sementes do Pleistoceno, mas hoje são agentes fun-damentais para que as sementes grandes sejam espalhadas”, explica.

O retorno ao passado indica que a au-sência da megafauna pode ter provocado impactos consideráveis na vegetação do Pantanal, como já mostrou um trabalho coordenado por Galetti. O artigo, publi-cado na Science em 2013, sugere que em regiões da Mata Atlântica, onde aves de maior porte foram extintas há mais de 50 anos, populações de palmeiras produzem somente frutos pequenos; em contrapar-tida, em regiões mais preservadas e com aves maiores, os frutos continuam com tamanhos variados. “O mesmo pode ter ocorrido após a extinção dos grandes mamíferos do passado. Além disso, plan-tas que perdem seus dispersores acabam confinadas a regiões menores e a perda de dispersores dificulta o fluxo gênico entre populações. No longo prazo, isso pode reduzir a diversidade genética das populações e diminuir sua resistência a pragas, por exemplo”, acrescenta.

Para ele, essa constatação sugere que é preciso avaliar, com responsabilidade, a introdução no Pantanal de outros mamí-feros que façam as vezes de dispersores, como cavalos e porcos. “Talvez algumas

dessas espécies possam até mesmo aju-dar a reparar as perdas”, analisa. Pires faz mais um alerta: seu trabalho permite refletir também sobre a atual crise de bio-diversidade. Segundo ele, é preciso enten-der as interações ecológicas para buscar amenizar as consequências da eventual perda de espécies de grande porte.

Disposto a acrescentar outras informa-ções a esse cenário, o biólogo pretende agora estudar comparativamente outros biomas, para observar os efeitos da extin-ção de espécies em cada um deles. “Será que a ausência da anta na Mata Atlântica tem os mesmos efeitos que a falta desse animal no Cerrado?”, questiona. Ele de-seja ainda comparar, do ponto de vista quantitativo, a eficiência de algumas es-pécies de animais na tarefa de dispersão de sementes, olhando novamente para o passado. “Desenvolvemos modelos mate-máticos para observar quão importante deveria ser uma preguiça-gigante nesse trabalho de levar sementes a grandes dis-tâncias, quando comparada com a anta ou um porco-do-mato de hoje, por exem-plo”, finaliza o pesquisador. n

Projetos1. estrutura e dinâmica coevolutiva em redes de interações mutualísticas (n° 2009/54422-8); Modalidade Jovem Pes-quisador; Pesquisador responsável Paulo roberto guima-rães Junior (UsP); Investimento r$ 161.960,08 (FaPesP). 2. atributos das plantas na rede de dispersão de se-mentes do Pantanal: consequências espaciais, de-mográficas e conservacionistas (nº 2008/10154-7); Modalidade auxílio à Pesquisa – regular; Pesquisador res-ponsável Mauro galetti rodrigues (Unesp); Investimento r$ 117.963,58 (FaPesP).

artigo científicoPires, M. M. et al. reconstructing past ecological networks: the reconfiguration of seed-dispersal interactions after mega faunal extinction. Oecologia. v. 175, n. 4, p. 1247-56. ago. 2014.

pesQuisa Fapesp 231 z 53

Estrutura em forma de agulha permite à bactéria

Xanthomonas citri lançar compostos tóxicos sobre

microrganismos competidores

BIOQUÍMICA y

Contato letal

Pelo menos uma bactéria, Agrobacterium tumefaciens, transfere DNA por meio do T4SS para o seu hospedeiro, uma planta, na qual causa tumores conhecidos como galhas. É também por meio desse siste-ma de secreção que algumas espécies associadas a doenças em animais e seres humanos injetam proteínas que as aju-dam a colonizar o hospedeiro. Mas não se conhecia a função do T4SS na Xan-thomonas citri e nas dezenas de espécies que integram a família Xanthomonada-ceae, da qual fazem parte as bactérias do gênero Stenotrophomonas – entre elas, a espécie S. maltophilia, um patógeno oportunista em seres humanos.

Estudos anteriores indicavam que na família Xanthomonadaceae os canais T4SS eram diferentes dos encontrados em outros grupos de bactérias. Farah e sua equipe também já haviam constatado que, no caso da Xanthomonas citri, essa estrutura não desempenhava um papel essencial na infecção da planta. Agora os pesquisadores da USP verificaram que nessa bactéria o sistema de secreção IV serve para injetar cerca de uma dezena

Ricardo Zorzetto

ma de bastão é recoberta de filamentos ultrafinos que lembram pelos delgados. Essas estruturas são parte de um meca-nismo de defesa que destrói outras bac-térias. O bioquímico Shaker Chuck Fa-rah e sua equipe no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) demonstraram que, por meio de um tipo específico desses filamentos, a X. citri lança um coquetel de compostos tóxi-cos sobre seus potenciais concorrentes.

Os filamentos que lembram pelos na realidade são canais – há ao menos seis tipos conhecidos – que conectam o meio interno da bactéria com o exterior. Uma variedade específica desses canais, o chamado sistema de secreção do tipo IV (T4SS, na sigla inglês), é composta por mais de uma centena de proteínas e tem a forma de uma agulha. Já se sabia que, por meio dela, muitas espécies de bactérias trocam material genético com outras bactérias da mesma ou de outras espécies – fenômeno conhecido como conjugação, que permite a transferência horizontal de genes, associado ao desen-volvimento de resistência a antibióticos.

A bactéria Xanthomonas citri, causadora do cancro cítrico, doença que voltou a se alas-trar pelas plantações pau-listas, passa apenas parte

de sua vida no interior das folhas e dos frutos de laranjeiras e limoeiros. Ali, pro-tegida e com fartura de alimento, ela se multiplica e estimula a proliferação das células vegetais, gerando lesões salien-tes e escurecidas que, ao se romperem, a devolvem ao ambiente. Em boa parte do tempo, porém, enfrenta condições bem menos amigáveis. No solo ou na super-fície externa das folhas, onde em geral é encontrada, a competição com outros microrganismos por espaço e nutrien-tes é acirrada. Mesmo assim, a Xantho-monas citri costuma se sair bem, como comprovam os laranjais da Flórida, nos Estados Unidos, onde a produção caiu à metade nos últimos anos com a dis-seminação do cancro cítrico e de outra doença, o greening.

Milhares de anos de evolução prepa-raram a bactéria para lidar com os po-tenciais concorrentes. Sua célula em for-

54 z mAio DE 2015

de proteínas tóxicas (toxinas) distintas em outras bactérias.

Essas toxinas digerem açúcares, pro-teínas e lipídios da parede de bactérias competidoras, fazendo-as expulsar seus conteúdos de uma maneira que, ao mi-croscópio, às vezes parece explosiva. No laboratório de Farah, os biólogos Diorge Souza e Gabriel Oka colocaram milhões de células de X. citri para conviver com uma quantidade semelhante de Esche-richia coli, bactéria normalmente en-contrada nos intestinos dos mamíferos, e filmaram o que aconteceu. Muitas das vezes em que a X. citri tocou a superfície de uma E. coli a parede desta se rompeu e seu conteúdo extravasou, como pode se ver em um registro disponível na inter-net [https://youtu.be/0cSXyd9bd7Q]. “A bactéria fica deformada quando a inte-gridade da sua parede é comprometida”, explica Farah. “É como um balão de festa cheio de água que estoura”, compara.

A secreção de toxinas é ativada pelo contato, embora ainda não se saiba ao certo como a Xanthomonas reconhece as bactérias de outras espécies. Ela própria,

porém, está protegida dos compostos que produz. Souza e Oka verificaram que a Xanthomonas sintetiza antídotos contra suas toxinas. “As antitoxinas estão dis-tribuídas pela parede da Xanthomonas”, explica Souza. “Isso provavelmente im-pede que ela sofra os danos.”

atRação entRe pRoteínasA propósito, foi uma dessas antitoxinas que anos atrás deu a Souza uma primei-ra pista sobre o papel do sistema de se-creção do tipo IV na Xanthomonas. Em 2005, o químico Marcos Alegria, à época aluno de doutorado de Farah, havia pu-blicado um trabalho mostrando que em X. citri uma proteína específica – a VirD4 – desse sistema de secreção atraía outras proteínas, todas com função desconhe-cida na época, para o canal. Uma dessas proteínas, que recebeu a sigla Xac2609,

interagiu com a proteína Xac2610, tam-bém com função desconhecida. Tempos depois, após determinar a estrutura tri-dimensional da Xac2610, Souza foi bus-car nos bancos de dados públicos outras proteínas com estruturas similares, o que poderia indicar sua função.

A primeira que encontrou foi uma pro-teína que bloqueia a ação da lisozima e funciona como antitoxina. Esse resulta-do sugeria que o parceiro de interação da Xac2610, a Xac2609, poderia ser uma lisozima, proteína capaz de digerir a ca-deia de açúcares da parede das bactérias. Depois de confirmar a ação dessas duas proteínas, Souza identificou outras po-tenciais toxinas e antitoxinas – ao todo são 13 do primeiro tipo e 7 do segundo – codificadas no genoma da Xanthomo-nas citri, além de centenas de outras to-xinas associadas ao sistema de secreção do tipo IV de outras espécies da família Xanthomonadaceae.

Testes feitos com bactérias de duas espécies diferentes, a Micrococcus luteus e a Bacillus subtilis, confirmaram que a proteína codificada pelo Xac2609 degra-E

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Convivência nem sempre pacífica: colônias de X. citri (amarelo) cultivadas com colônias de E. coli (branco) e C. violaceum (rosa)

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Projetosinalização por c-di-GMP e o sistema de secreção de macromoléculas do tipo IV em Xanthomonas citri (nº 2011/07777-5); Modalidade Projeto Temático; Pesquisa-dor responsável shaker Chuck Farah (IQ-UsP); Investi-mento r$ 2.146.849,71 (FAPEsP – para todo o projeto).

Artigos científicossOUZA, d. P. et al. Bacterial killing via a type IV secretion system. nature Communications. 6 mar. 2015. sOUZA, d. P. et al. A component of the Xanthomonada-ceae type IV secretion system combines a VirB7 Motif with a no domain found in outer membrane transport proteins. pLos pathogens. 2011.ALEGrIA, M. C. et al. Identification of new protein-protein interactions involving the products of the chromosome- and plasmid-encoded type IV secretion loci of the phy-topathogen Xanthomonas axonopodis pv. citri. Journal of Bacteriology. v. 187, p. 2315-25. 2005.

da a parede bacteriana. E que seu efeito é anulado pela Xac2610, segundo artigo publicado em março deste ano na Nature Communications. Mas faltava verificar se essa e outras toxinas eram mesmo expor-tadas pelo sistema de secreção IV. Souza e Oka, então, desenvolveram X. citri ge-neticamente alteradas para não produzir o T4SS e as colocaram para crescer junto com bactérias E. coli, que se multiplicam mais rapidamente – a E. coli duplica a ca-da 30 minutos, enquanto a Xanthomonas citri gasta até cinco vezes mais tempo.

Sem o canal secretor, a Xanthomonas ficou em desvantagem. O experimento começou com números semelhantes das duas espécies e terminou com a E. coli dominando a colônia. Mesmo se repro-duzindo mais devagar, a Xanthomonas voltou a prevalecer, eliminando a con-corrente, quando os pesquisadores lhe devolveram a capacidade de produzir o T4SS. “O sistema dá uma vantagem competitiva à Xanthomonas”, diz Souza.

Embora a E. coli não seja uma concor-rente da Xanthomonas na natureza, os pesquisadores acreditam que o que viram em laboratório pode valer no campo. Eles repetiram o teste contra outras quatro espécies de bactérias classificadas co-mo Gram-negativas, que, como a E. coli,

têm um envelope celular composto por três camadas – duas membranas e um periplasma fortificado, composto por um polímero (peptideoglicano) misto de açúcares e aminoácidos. “Até agora a Xanthomonas matou todas”, conta Farah, que começou a estudar a bactéria há qua-se 15 anos, quando integrou o grupo que sequenciou o genoma da Xanthomonas.

amBIente hostILFarah e sua equipe têm evidências de que a X. citri se arma com seu T4SS especial-mente quando se encontra na parte ex-terna da folha, ambiente potencialmente mais hostil. “Esse mecanismo deve aju-dar a bactéria a se tornar competitiva”, comenta o pesquisador Marcos Anto-nio Machado, do Centro de Citricultura Sylvio Moreira, em Cordeirópolis. “Em termos tecnológicos, essa constatação abre a possibilidade de que se busquem compostos capazes de inibir o funciona-mento desse sistema”, diz o pesquisador, que investiga formas de aumentar a sus-cetibilidade da X. citri a compostos co-mo o oxicloreto de cobre, usado contra o cancro cítrico nos laranjais paulistas.

Farah acredita que compreender melhor o funcionamento do sistema de secreção IV da Xanthomonas é impor-

tante para conhecer como bactérias de diferentes espécies competem entre si quando estão num mesmo ambiente e se utilizam dos mesmos recursos. “Essa competição pode ter implicações para a evolução de comportamentos tanto an-tagônicos quanto cooperativos entre es-pécies bacterianas”, conta. Esses estudos também podem levar à identificação de novas toxinas e alvos moleculares para drogas com ação antibacteriana. “Esta-mos usando a Xanthomonas”, completa Farah, “para entender funções mais uni-versais das bactérias”. n

Competição em laboratórioCom o sistema de secreção de toxinas íntegro, as bactérias Xanthomonas citri (azul) dominam a colônia; sem ele, a X. citri fica em desvantagem e perde espaço para a Escherichia coli (amarelo)

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Machos de libélulas

avaliam a própria força e

a do oponente para definir

estratégia de confronto

etologia y

Asas da discórdia

Maria Guimarães

Projetoephemeroptera, Plecoptera e trichoptera (insecta): redu-zindo os déficits linneano, wallaceano e henningueano (n° 2012/21196-8); Modalidade auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Pitágoras da Conceição Bispo (Unesp); Investimento R$ 309.297,74 (FaPeSP).

artigo científicogUilleRMo-FeRReiRa et al. Variable assessment of wing colouration in aerial contests of the red-winged damselfly Mnesarete pudica (Zygoptera, Calopterygidae). The Science of Nature. v. 102. mar. 2015.

Próximo à água de riachinhos en-solarados em algumas áreas de cerrado, é possível ver libélulas vermelhas voejando umas em

torno das outras. São machos Mnesarete pudica, que se exibem para as fêmeas pou-sadas num galho ou numa folha de capim, ou competem com outros machos para garantir um território satisfatório para que elas ponham os ovos. Já se sabia que o vermelho das asas – tanto o tamanho da mancha como a intensidade da cor – é o segredo do sucesso, mas o biólogo Rhainer Guillermo-Ferreira foi investigar como isso ocorre durante o doutorado no campus de Ribeirão Preto da Universida-de de São Paulo. “Nossa pergunta era: eles são capazes de enxergar e avaliar isso?”, conta. A resposta é sim, segundo artigo publicado em março no site da revista The Science of Nature.

O trabalho envolveu observar con-frontos entre machos no cenário natural e também fazer análises detalhadas da coloração das asas durante o doutorado orientado por Pitágoras Bispo, da Uni-versidade Estadual Paulista (Unesp), em colaboração com o grupo de Stanislav

Gorb, da Universidade de Kiel, na Ale-manha. Ao analisar lutas entre machos rivais com diferentes graus de dispari-dade em qualidade, medida tanto pelo teor de vermelho quanto pelo tamanho do corpo, Guillermo ficou surpreso ao verificar que os machos não só estimam os atributos do oponente, mas também os próprios, e juntam tudo na mesma equação. “Vimos que há variação nas estratégias de confronto conforme essa avaliação”, explica o biólogo, agora pro-fessor na Universidade Federal de Gran-de Dourados, em Mato Grosso do Sul.

Segundo ele, os machos fracos não se aventuram nas prolongadas sessões de voos vigorosos que demonstram força. Em vez disso, partem logo para a agres-são. Os machos fortes, por sua vez, pon-deram mais a situação. Se estão dian-te de um oponente visivelmente fraco, resolvem o assunto com perseguições e ameaças diretas. Se o rival está mais à sua altura, esses machos adotam as demonstrações em voo que exigem um investimento maior de energia. Esses confrontos podem durar horas, até que um deles desista. Machos com as asas

pintadas pelos pesquisadores com ca-neta hidrocor, de maneira a aumentar tanto a intensidade do vermelho como o tamanho da mancha, foram vistos pelos adversários como mais fortes, alterando a estratégia adotada pelos oponentes.

Colorir a asa de insetos e observar suas exibições pode parecer um tanto lúdico enquanto ciência, mas está longe disso. Os experimentos de Guillermo abrem uma janela sobre aspectos intrigantes que tam-bém podem valer para outras espécies. “O comportamento que essas libélulas ado-tam revela que animais com um cérebro simples podem ter um sistema complexo de tomada de decisão”, conclui. n

o tom de vermelho e o tamanho da

mancha são decisivos na competição

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58 z maio DE 2015

Alteração em gene desencadeia doença autoimune

em bebês durante a gestação

as doenças autoimunes, nas quais o sistema de defesa se volta contra o próprio organismo, podem surgir mais cedo do que

se imaginava. Em casos raros, descobriu--se agora, podem se instalar antes mesmo do nascimento. Pesquisadores brasileiros identificaram em duas famílias – uma do interior de São Paulo e outra do interior do Paraná – casos de crianças que logo após o parto já apresentavam sinais de uma enfermidade autoimune incomum e grave: a síndrome da imunodesregulação, poliendocrinopatia e enteropatia ligada ao cromossomo X (IPEX). Nessa síndro-me, células de defesa da própria criança atacam múltiplos órgãos, que depois de semanas ou meses de agressão contínua deixam de funcionar adequadamente e geram os sinais clínicos reconhecidos pelos pediatras. Como os bebês de São Paulo e do Paraná manifestaram os sinais da IPEX nas primeiras horas de vida, os pesquisadores concluíram que o ataque imunológico só poderia ter começado muito antes, ainda na gestação.

O achado foi publicado em dezem-bro de 2014 na Clinical Immunology e surpreendeu os especialistas. “Não pen-sávamos que doenças autoimunes pu-dessem ocorrer durante a vida intraute-rina”, conta a pediatra Magda Carneiro--Sampaio, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e coordenadora da pesquisa.

Doenças imunológicas do feto inicia-das durante a gestação não são incomuns. A mais conhecida é a eritroblastose fetal,

IMUNOLOGIA y

Batalha interior

imunodeficiências graves ao nascer”, conta Magda. “Uma doença dessa natu-reza não se instala de um dia para outro.”

O primeiro dos casos apresentados na Clinical Immunology chegou ao co-nhecimento de Magda anos atrás, re-latado pelo pediatra Edson Suzuki, da Faculdade de Medicina de Marília. Mas a confirmação só veio com o estudo de outros dois fetos masculinos da mesma família, mortos em consequência de uma complicação no desenvolvimento, e de um caso em outra família, identificado pela endocrinologista Mariana Xavier da Silva, pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina que fez residência médica no Instituto da Criança da USP.

causada pela incompatibilidade entre o grupo sanguíneo da mãe e o do bebê. Nessa enfermidade, porém, o problema é provocado por anticorpos produzidos pelas células de defesa maternas, transfe-ridos para a criança por meio da placenta e do cordão umbilical. A diferença com os casos descritos pelo grupo de Magda na Clinical Immunology é que, nestes, são as células do sistema imunológico do próprio feto que lesam o organismo. “Até onde se sabe, esses são os primeiros casos comprovados de doença autoimune iniciada na gravidez”, diz Magda.

Os casos descritos na Clinical Immu-nology são decorrentes de alterações em um gene que comprometem o amadure-cimento de um grupo específico de célu-las de defesa: os linfócitos T reguladores. Responsáveis por coordenar a ação de outras células de defesa, esses linfócitos passam por uma fase de maturação no timo, órgão situado no alto peito, na qual aprendem a identificar as células do pró-prio organismo e preservá-las do ataque a células de organismos invasores. Pro-blemas nessa etapa de amadurecimen-to levam esses linfócitos a desencadear agressões contra o próprio corpo.

Desde 2008 o grupo de Magda investi-ga as doenças autoimunes que acometem bebês e crianças nos primeiros anos de vida. Os pesquisadores só não espera-vam chegar aos fetos – embora alguns imunologistas já trabalhassem com a ideia de que os problemas autoimunes pudessem começar na fase fetal. “Há ca-sos na literatura médica de bebês com

Células do pâncreas produtoras de insulina (amarelo): danificadas pelo sistema imune do feto na síndrome IPEX

pESQUISA FApESp 231 z 59

Nessa cidade do interior do Paraná, Mariana havia atendido um bebê do sexo masculino que nasceu prematuro e apre-sentou diabetes de difícil controle nas primeiras horas de vida. Exames labora-toriais mostraram que seu organismo já produzia anticorpos contra as células do pâncreas produtoras de insulina. Sinais de inflamação na pele, nos intestinos e em outros órgãos permitiram caracteri-zar o problema como IPEX.

Essa síndrome se manifesta em 93% das vezes no primeiro ano de vida, em-bora alguns casos sejam identificados logo após o nascimento. Sua origem são alterações pontuais no gene forkhead box P3 (FOXP3), que controla o amadu-recimento dos linfócitos T reguladores.

Situado no cromossomo X, esse gene existe em cópia dupla nas mulheres e simples nos homens. Por essa razão, nas duas famílias as mães não haviam desen-volvido a síndrome, embora apresentas-sem uma das cópias alterada, herdada

pelos filhos com Ipex. Ao investigar a história de doenças nessas famílias, os pesquisadores viram ainda que as mães e as avós (em uma das famílias também a bisavó) já haviam perdido outros bebês do sexo masculino durante a gestação.

Novo modEloOs pesquisadores buscaram na litera-tura médica outros relatos de aborto e nascimento de prematuros associados à Ipex, sinal de que a síndrome teria se manifestado ainda na gestação. De 2000 a 2014, encontraram outros 130 casos. “Em 45% desses casos, as manifestações autoimunes surgiram no primeiro mês de vida e, em 11 deles, no primeiro dia”, diz Magda. “Mas nenhum pesquisador propôs que a doença havia começado durante a vida intrauterina”, conta.

A constatação de que o problema po-de começar na gravidez levou o grupo a propor um novo mecanismo para ex-plicar o desenvolvimento da IPEX. Nas D

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ProjetoAutoimunidade na criança: investigação das bases mo-leculares e celulares da autoimunidade de início precoce (nº 2008/58238-4); Modalidade Projeto Temático; Pes-quisadora responsável Magda Maria Sales Carneiro Sam-paio (FM-USP); Investimento R$ 1.807.886,18 (FAPESP – para todo o projeto).

Artigo científicoXAVIER DA SILVA, M.M. et al. Fetal-onset FM-USP: report of two families and review of literature. Clinical Immunology. v. 156, n. 2, p. 131-140. fev. 2015.

escolas médicas se ensina que doenças autoimunes como essa surgem quan-do os linfócitos T reguladores perdem a capacidade de distinguir as células do corpo das de microrganismos invasores. Segundo esse modelo, conhecido como quebra de tolerância, o problema só se instala depois que o sistema imune passa por uma fase de amadurecimento, antes considerado impossível na vida fetal. “Nesses casos não haveria quebra de to-lerância, uma vez que a tolerância nem chegou a se estabelecer”, explica Magda.

Na opinião do imunologista português António Coutinho, do Instituto Gulben-kian de Ciência, colaborador do grupo, trata-se de uma mudança substancial no pensamento que predominou por muito tempo entre os especialistas. Ele acredita que esse trabalho deve servir para pedia-tras e neonatologistas ficarem atentos à possibilidade de recém-nascidos apre-sentarem doenças autoimunes. Quanto antes forem identificadas, melhores são os resultados do tratamento e maiores as chances de cura – a maioria das doenças autoimunes é tratada com imunossu-pressores e a IPEX, com transplante de células-tronco. “São procedimentos que podem salvar a criança”, diz Coutinho.

Obstetras podem usar as novas infor-mações para encaminhar as pacientes para o aconselhamento genético quando há casos de abortos repetidos ou perdas de recém-nascidos do sexo masculino na família. “Se houver o risco de a gestação resultar em síndromes graves que atingem só os meninos, como a IPEX, a alternativa é fazer uma fertilização in vitro e escolher um embrião feminino”, conta Maria de Lourdes Brizot, especialista em medici-na fetal da FMUSP. Uma resolução do Conselho Federal de Medicina autoriza esse procedimento com a finalidade de evitar doenças ligadas ao sexo da crian-ça. “Nesse caso”, diz Maria de Lourdes, “a escolha não é discriminatória, mas em favor da saúde e da vida do bebê.” n

Herança direcionadaGenealogia das famílias permitiu identificar as mulheres que têm cópia alterada do gene FOXP3 e os filhos afetados pela síndrome Ipex

FoNtE XAVIER-DA-SILVA, M.M. ET AL. 2015

Homem saudável

Mulher com cópia alterada do gene

Fetos masculinos abortados

Menino que nasceu com Ipex

Mulher saudável(nem todas foram testadas)

60 z maio DE 2015

Experimento usa redes aleatórias

de cilindros de carbono para

realizar operações matemáticas

imagine um relojoeiro maluco que, em vez de projetar molas, engrenagens e planejar como encaixar essas peças pa-ra construir um relógio, trabalhasse por

um método pouco convencional, pondo as peças numa caixa e chacoalhando até elas se encaixarem e formarem um mecanismo que funcione perfeitamente.

Algo semelhante foi obtido por uma equipe da Universidade de Durham, no Reino Unido, em colaboração com o físi-co brasileiro Diogo Volpati, do Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP). Os pesquisadores fa-bricaram um filme muito fino usando um polímero (polimetacrilato de butila) con-tendo um emaranhado de nanotubos de carbono – estruturas cilíndricas formadas por folhas de carbono com apenas um áto-mo de espessura enroladas sobre si mes-mas, um material de grande interesse por suas propriedades elétricas e mecânicas.

Pronto o filme, a equipe aplicou uma sequência de pulsos elétricos no material para alterar a capacidade de condução elé-trica dos nanotubos e identificar como a rede poderia ser utilizada para processar informações. Os pesquisadores chamam essa estratégia de “treinamento” do mate-rial. Isso permitiu trabalhar com o filme de

FÍSICA y

Como treinar nanotubos

nanotubos para executar uma tarefa que apenas um circuito eletrônico de compu-tador consegue: processar sinais elétricos de modo a realizar operações lógicas.

“Essa é uma nova abordagem para a fa-bricação de nanodispositivos eletrônicos, na fronteira entre a ciência da computa-ção, a ciência dos materiais e a engenharia elétrica”, diz Volpati. “Em vez de montar placas de circuitos eletrônicos para pro-cessar informação, nós ‘treinamos’ um material inicialmente desorganizado para executar a tarefa desejada.”

Esse modo de produzir novos materiais que se comportam como circuitos eletrôni-cos é inspirado na forma como os organis-mos vivos evoluem. Em 2004 o físico Julian Miller, da Universidade de York, no Reino Unido, batizou essa estratégia de evolução em materiais (evolution in materio). Ela permite obter circuitos eletrônicos sem a necessidade de se ter o controle total so-bre a montagem de sua estrutura. Físicos, engenheiros e cientistas da computação acreditam que a evolution in materio é um dos caminhos para superar um problema que assombra a microeletrônica: o limite da miniaturização dos chips de computa-dores. Nas últimas décadas a capacidade de processar informação vem aumentando

Igor Zolnerkevic

continuamente porque se tem conseguido esculpir cada vez mais circuitos eletrônicos em espaços cada vez menores. Mas está chegando o ponto em que deixa de ser fisi-camente possível manipular a matéria para fazer os circuitos encolherem ainda mais.

Miller e outros pesquisadores perse-guem esse objetivo no Projeto de Enge-nharia em Nanoescala para Nova Compu-tação Usando Evolução (Nascence), que envolve cinco universidades europeias e desde 2012 promove a colaboração entre cientistas da computação, físicos e enge-nheiros em busca de novos materiais e maneiras diferentes de treiná-los.

Especialista na fabricação e na caracte-rização de novos nanomateriais, Volpati foi convidado por Michael Petty, líder do grupo de Durham no projeto Nascence, para participar dos experimentos com o material feito de nanotubos de carbono misturados com o polímero. Sob certas condições, os nanotubos podem desem-penhar o papel de fios elétricos micros- Im

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Evolução: pulsos elétricos alinham nanotubos (azul) imersos em cristal líquido a eletrodos de ouro (amarelo)

peSQUISa FapeSp 231 z 61

cópicos. Assim, o emaranhado no interior do polímero funciona como um circuito eletrônico, mas todo bagunçado antes de o experimento começar.

Nos testes, um pedacinho do material é conectado a computadores normais por uma série de eletrodos. A função de al-guns deles é disparar pulsos elétricos que representam os dados de entrada – uma sequência de números, por exemplo – para um cálculo matemático. Esses pulsos atra-vessam a rede de nanotubos de carbono e são captados na outra extremidade. Os pulsos coletados na saída correspondem à solução para o problema matemático.

realInhamentoComo os nanotubos estão desordenados, porém, no início dos experimentos a rede embaralha os sinais elétricos de entrada. O resultado é que os dados de saída dão a resposta errada ao problema. A capaci-dade de solucionar o problema melhora à medida que eletrodos adicionais dispa-ram sinais elétricos produzidos por um programa de computador cujo objetivo é identificar a configuração de pulsos elé-tricos capaz de modificar a orientação es-pacial dos nanotubos. Feito por tentativa e erro, o trabalho desse programa, conhe-

cido como algoritmo evolutivo, demora apenas alguns segundos e permite des-cobrir a melhor maneira de orientar os nanotubos e processar uma determinada informação em um conjunto de circuitos elétricos com estrutura desconhecida.

Usando essa estratégia, Mark Mas-sey, pós-doutorando na Universidade de Durham, Volpati e seus colegas testaram diferentes misturas de polímeros com na-notubos de carbono. Em um artigo publi-cado em abril na revista Journal of Applied Physics, eles mostraram que o material só realiza uma determinada operação mate-mática se a concentração de nanotubos de carbono dispersos entre as moléculas de polímero variar entre 0,11% e 1%. “Apenas nessas concentrações o material possui as propriedades físicas necessárias para realizar a tarefa”, explica Volpati.

A computação realizada pelo material nesse experimento foi bastante simples. O emaranhado de nanotubos fez apenas três tipos de soma: 0 + 0; 1 + 1; e 1+ 0. Em 2014, entretanto, a equipe de Petty já havia usa-do o mesmo material para resolver uma questão um pouco mais complexa, conhe-cida como problema do caixeiro-viajante: determinar o caminho mais curto para um vendedor ambulante percorrer uma série

de cidades vizinhas. O filme de nanotubos permitiu resolver o problema para até 12 cidades, dispostas em círculo num mapa. “Essas são provas de princípio”, explica Volpati. “O desafio agora é desenvolver um pedaço de material capaz de substi-tuir a placa de circuitos eletrônicos que controla um robô, por exemplo.”

Uma das dificuldades que os pesqui-sadores enfrentam é que os filmes de na-notubos de carbono são rígidos, com uma séria limitação: o aprendizado é passagei-ro. Eles só funcionam como circuitos ele-trônicos enquanto os pulsos do algoritmo de busca evolutivo estiverem sendo apli-cados. Uma vez desligados esses pulsos, o material perde as propriedades elétricas que lhe permitem atuar como um circuito.

Em outro artigo publicado este ano no Journal of Applied Physics, Volpati e seus colaboradores apresentaram uma possível evolução desse material. Os pesquisado-res conseguiram substituir a matriz rígi-da do polímero por uma feita de cristal líquido. Diferentemente das moléculas de polímero, que não se movem, as molécu-las do cristal líquido se movimentam sob a influência dos pulsos elétricos emitidos pelo algoritmo evolutivo. “Os cristais lí-quidos alteram a orientação espacial dos nanotubos, mudando permanentemente as propriedades do material”, explica Vol-pati. “Mostramos também que, uma vez que orientamos os nanotubos na direção que queremos, eles não se mexem mais e o material não perde o treino.” Atual-mente os pesquisadores tentam usar os nanotubos imersos no cristal líquido para realizar operações matemáticas. n

projetos1. Avaliação espectroscópica da orientação molecular no volume e nas interfaces de filmes finos orgânicos deposita-dos sobre diferentes superfícies (nº 2012/09905-3); mo-dalidade Bolsa de pós-doutorado; pesquisador responsá-vel osvaldo Novais de oliveira Junior (IFSC-uSp); Bolsista diogo volpati; Investimento R$ 168.972,87 (FApESp). 2. Controle molecular em filmes nanoestruturados de nanotubos de carbono (nº 2013/08864-4); modalidade Bolsa Estágio de pesquisa no Exterior – pós-doutorado; pesquisador responsável osvaldo Novais de oliveira Junior (IFSC-uSp); Bolsista diogo volpati; Investimento R$ 202.700,20 (FApESp).

Artigos científicosMASSEY, M. K.et al. Computing with carbon nano-tubes: optimization of threshold logic gates using disordered nanotube/polymer composites. Jour-nal of applied physics. v. 117, n. 13. 6 abr. 2015. volpAtI, d. et al. Exploring the alignment of carbon nanotubes dispersed in a liquid crystal matrix using coplanar electrodes. Journal of applied physics. v. 117, n. 12. 24 mar. 2015.

Evolution in materio permite criar circuitos eletrônicos sem a necessidade de controle total sobre sua montagem

62 z maio DE 2015

Novas técnicas mapeiam a função de

proteínas, carboidratos e lipídeos para obtenção

de embriões bovinos de melhor qualidade

tecnologia Pecuária y

marcadores da fertilização

mico de marcadores moleculares presentes em óvulos e embriões por meio da técnica de espec-trometria de massas, desenvolvido em parceria por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade de São Paulo (USP), poderá representar um avanço significativo nas biotecnologias da reprodução. “Com o uso dessa ferramenta analítica é possível visualizar partes específicas do embrião bovino, como a zona pelúcida, que reveste todo o embrião e é responsável por sua ligação com o útero”, ex-plica o professor Rodrigo Catharino, coordena-dor das pesquisas e do Laboratório Innovare de Biomarcadores, vinculado à Faculdade de Ciên-cias Farmacêuticas da Unicamp. A presença de biomarcadores como os lipídeos, que funcionam como indicadores de processos biológicos, pode melhorar essa ligação, resultando em prenhez com mais chance de sucesso. Na fertilização in vitro, os óvulos coletados de uma vaca doadora são maturados e fecundados no laboratório. Após a fecundação, os possíveis zigotos – células diploi-des formadas pela fusão do óvulo com o esper-matozoide – permanecem em incubadora para se

Quatro grupos de pesquisadores pau-listas dedicam-se a mapear e a re-lacionar a função de marcadores moleculares como lipídeos, proteí-nas e carboidratos com o auxílio de

técnicas de análise não invasivas, que utilizam lasers e espectrômetros, para selecionar na fer-tilização in vitro (em laboratório) os melhores embriões bovinos. O objetivo é garantir o sucesso de gestação ao transferi-los para o útero da vaca. Embora o Brasil detenha atualmente o primeiro posto na produção mundial in vitro – com 366.517 embriões bovinos produzidos em 2013, corres-pondentes a 70% do total –, há muito a melho-rar, porque as perdas estão entre 20% e 60%. A variação nessas taxas deve-se, entre outros fa-tores, à qualidade do embrião e à receptividade do endométrio, a membrana que reveste o útero.

O avanço de técnicas rápidas, menos invasivas e a custo factível na análise e seleção de embriões poderá ajudar nos procedimentos biotecnológi-cos da reprodução tanto em animais como em humanos, no futuro. Um método inovador, que une a produção de imagens ao mapeamento quí-

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embriões bovinos prontos para serem transferidos para as receptoras

64 z maio DE 2015

desenvolver por sete dias, quando são congelados ou transferidos para uma va-ca receptora.

As pesquisas resultaram em dois artigos científicos. No primeiro deles, publi-cado na Analytica Chimica Acta, os autores descre-vem o uso da espectrome-tria de massas na modali-dade Maldi para visuali-zar as diversas zonas que compõem o embrião bovi-no. Na Maldi, uma matriz – geralmente um ácido or-gânico capaz de absorver a luz – é aplicada sobre a amostra e, em seguida, são feitos disparos de fei-xes de laser, que resultam na formação de íons (átomos com perda de elétrons). As moléculas ionizadas entram em um tubo submetido a vácuo (analisador) e são levadas até um detector. Os íons com tamanho menor passam mais rapida-mente pelo tubo do que os maiores. Dessa forma, as substâncias das amostras formam espectros, cada um com massa diferente.

“A reunião dos pontos e a informação de qual molécula faz parte do espectro de massas permi-tem saber qual biomarcador é mais prevalente em cada local da amostra”, diz Catharino. “Consegui-mos ver as estruturas separadamente, e não ape-nas o corpo do embrião e do oócito [célula sexual produzida nos ovários dos animais], como se vê pelas técnicas clássicas de análise.” Ele ressalta que a possibilidade de saber a exata localização de um marcador químico configura uma inova-ção. “Muitos marcadores descritos nos trabalhos são inéditos, o que significa que ainda é preci-

so muita pesquisa para descobrir o que eles representam no processo de produção de embriões in vitro.”

O segundo artigo, publicado na revista Reproduction, Fertility and Development, descreve o uso do es-pectrômetro Maldi para investigar a evolução de lipídeos biomarcadores em óvulos bovinos e em embriões de até oito células e blastocistos, es-truturas esféricas formadas em um estágio mais avançado do desenvol-vimento embrionário. “Foi possível diferenciar quimicamente os lipídeos em cada fase do embrião porque eles funcionam como assinaturas quími-cas dos estágios de desenvolvimen-to.” Participaram dos desenvolvi-mentos pesquisadores do Innovare, a pesquisadora Roseli Gonçalves e o

professor José Visintin, da Faculdade de Medici-na Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, além de Peter Bols, da Universidade da Antuérpia, na Bélgica, Gary Killian, da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e o médico veterinário Marcos Achilles, da empresa Achilles Genetics, de Garça, no interior paulista.

Roseli, da USP, que desenvolve um projeto de pesquisa no programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes da FAPESP, diz que o pro-cesso de fecundação ainda não está totalmente definido, por isso a importância dos resultados obtidos nas pesquisas. Durante o seu doutorado, feito na FMVZ da USP com bolsa da FAPESP, ela estudou no John Almquist Research Center, na Universidade Estadual da Pensilvânia, onde trabalhou com marcadores de fertilidade sob orientação de Gary Killian. Ao terminar o dou-torado, participou de um projeto coordenado por Killian, que resultou no isolamento de uma

1 e 2 embriões bovinos em fase de blastocisto e sistema de avaliação por espectroscopia raman

3 análise de embrião pela técnica Maldi

a possibilidade de saber a exata localização de cada marcador químico configura uma inovação

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pesQuisa fapesp 231 z 65

proteína chamada osteopontina, presente em maior quantidade em touros de raças leiteiras com alta fertilidade. “Vimos o efeito dessa pro-teína na produção in vitro de embriões bovinos e no congelamento de sêmen”, diz Roseli, que trabalhou nesse projeto até o fim de 2004.

n a Universidade Federal do ABC (UFABC), campus de Santo André, na Região Metro-politana de São Paulo, a professora Marcel-

la Pecora Milazzotto está desde 2010 à frente de pesquisas com embriões bovinos em colaboração com Herculano da Silva Martinho, físico de forma-ção. O primeiro projeto teve como objetivo avaliar a interação da luz de um laser de baixa intensida-de com materiais biológicos. “Usamos o laser para estimular espermatozoides, oócitos e embriões bovinos e tivemos resultados interessantes com o gameta feminino [células reprodutoras]”, diz Marcella. “Conseguimos ativar vias importantes de sinalização dentro das células no processo de amadurecimento desse gameta. Percebemos que a luz influencia tanto a produção como a ativação de proteínas presentes nesses oócitos.”

Além desse projeto, o grupo também trabalha com análises por espectroscopia Raman, que uti-liza um feixe de luz para colher informação quí-mica e estrutural de material biológico. Em uma das pesquisas realizadas o objetivo era descobrir o que faltava aos embriões de laboratório para que se assemelhassem aos do campo. Para isso foram feitas comparações. “Usamos as mesmas técnicas utilizadas na reprodução humana, como morfologia embrionária, avaliação da velocidade do embrião em se desenvolver dentro do labo-ratório e análise por espectroscopia Raman dos

embriões do laboratório e produzidos em campo”, relata Marcella. E todos os dados de espectros-copia foram comparados com os de metabolis-mo energético, de gordura e estresse para tentar selecionar os mais viáveis. A descoberta levou a um depósito de patente feito pela universidade.

Na Faculdade de Medicina Veterinária e Zoo-tecnia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, Fernanda da Cruz Landim, do de-partamento de Reprodução Animal e Radiologia Veterinária, coordena projetos de pesquisa com o intuito de obter informações relacionadas à bio-logia básica dos embriões bovinos para melhorar técnicas importantes destinadas à comercializa-ção do produto, como o aumento da produção embrionária in vitro e a criopreservação, que é o congelamento dos embriões excedentes no pro-cesso de transferência. Em um dos projetos foi feita a comparação da expressão gênica – proces-so em que a informação codificada por um gene é decodificada em uma proteína – entre embriões das raças nelore (Bos taurus indicus) e simental (Bos taurus taurus) produzidos no laboratório e coletados da vaca. “Fizemos um padrão geral da expressão gênica e selecionamos vários genes diferentes envolvidos no metabolismo lipídico”, relata Fernanda.

Para análise das amostras, foi utilizada a es-pectrometria de massas Maldi. “Quando aplica-mos a técnica de Maldi para avaliação do perfil lipídico, com o objetivo de seleção de embriões que poderiam ser mais bem criopreservados, observamos que existe um perfil diferente em relação aos lipídeos da nelore e da simental pro-duzidos in vivo e in vitro.” Os embriões com as melhores qualidades para resistir ao processo de congelamento foram os da simental produ-zidos no campo. n

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3

Projetos

1. análise do perfil proteico e lipídico de embriões pré-implantacionais bovinos obtidos por fecundação in vitro, transferência de embriões e por transferência nuclear de células somáticas pela técnica de espectrometria de massas (nº 2010/01077-9); Modalidade Jovens Pesquisadores em centros emergentes; Pesquisadora responsável roseli fernandes (usP); Investimento r$ 629.986,73 (faPesP). 2. Metabolômica para avaliação não invasiva de embriões bovinos produzidos in vitro (nº 2012/10351-2); Modalidade auxílio à Pesqui-sa – regular; Pesquisadora responsável Marcella Pecora Milazzotto (ufabc); Investimento r$ 174.631,10 (faPesP).3. comparação do padrão da expressão gênica global de embriões Bos taurus indicus e Bos taurus taurus produzidos in vitro (nº 2010/09922-0); Modalidade auxílio regular; Pesquisadora responsável fernanda da cruz landim (unesp); Investimento r$ 140.442,19 (faPesP).

artigos científicosgoNçalves, r. f. et al. analysis and characterisation of bovine oocyte and embryo biomarkers by matrix-assisted desorption ionisation mass spectrometry imaging. reproduction, fertility and Development. 11 jul. 2014 (on-line).sudaNo, M. J. et al. Phosphatidylcholine and sphingomyelin profiles vary in Bos taurus indicus and Bos taurus taurus in vitro- and in vivo-produced blastocysts. Biology of reproduction. v. 87 (6), p. 130. dez. 2012.

66 z maio DE 2015

1

referência mundial em produçãoinvestimento em pesquisa e inovação da empresa

in vitro brasil foi responsável por 45% do total

da produção mundial de embriões bovinos em 2013

a empresa In Vitro Brasil, de Mogi Mirim, no interior paulista, lidera a produção brasileira de embriões bovinos em labo-

ratório – e contribui para o país ser referência mundial nesse campo. Dos 546.628 embriões produzidos em 2013 no mundo, segundo dados da Sociedade Internacional de Tecnologia de Embriões (Iets, na sigla em inglês), a empresa brasileira respondeu por 266 mil deles, ou 45% do total – nessa conta entra a produção dos seus

8 laboratórios próprios e mais 23 afi-liados, em 13 países. “Até 2007,

quando terminei o meu dou-torado e comecei a traba-

lhar na empresa, a ferti-lização in vitro era ofe-

recida principalmente para animais de elite, doadores de alto va-lor comercial e ge-nético”, diz Andrea Basso, doutora em reprodução animal pela Universidade

de São Paulo e atualmente chefe de pesquisa da empresa, que no ano passado faturou R$ 15 mi-lhões. Isso ocorria porque era um procedimen-to caro e no Brasil a tecnologia ainda estava em desenvolvimento. “No início, por exemplo, não era possível coletar oócitos e transportá-los por mais de oito horas antes de chegar ao laboratório. Hoje podemos transportá-los por até 24 horas.” Também não era possível congelar embriões pro-duzidos in vitro, e atualmente a empresa congela cerca de 40% da sua produção.

Fundada em 2002, a In Vitro sempre se desta-cou por investir em tecnologia. A partir de 2007, o foco comercial da empresa mudou e a deman-da passou a ser pela multiplicação de animais de produção, principalmente no rebanho lei-teiro. “Fizemos um primeiro projeto comercial de produção de embriões em larga escala, com duração de dois anos”, relata Andrea. “No final, conseguimos produzir 9 mil fêmeas da raça gi-rolanda, resultado do cruzamento entre as raças holandesa, mais produtiva, e gir, mais rústica.” Após o término desse projeto em 2009, a empre-sa desenvolveu outros projetos comerciais de

pesQuisa fapesp 231 z 67

1 embriões bovinos com

seis dias de desenvolvimento

2 Manipulação de embriões no

laboratório

Projetos

1. validação de biópsias e amplificação do dNa de embriões de bovinos produzidos in vitro para análise genômica global (nº 2014/50616-0); Modalidade Pesquisa inovativa em Pequenas empresas (Pipe); Pesquisadora responsável andrea cristina basso (in vitro brasil); Investimento r$ 101.052,74 e us$ 4.745,00 (faPesP).2. Padronização e validação de Pcr em tempo real para certificação sanitária de embriões bovinos produzidos in vitro (nº 2014/50169-4); Modalidade Pesquisa inovativa em Pequenas empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Juliana Hayashi tannura (in vitro brasil); Investimento r$ 137.675,00 (faPesP).3. desenvolvimento de ferramentas genômicas para seleção de vacas com alta fertilidade (nº 2012/51067-5); Modalidade Pipe; Pesquisadora responsável andrea cristina basso (in vitro brasil); Investimento r$ 229.232,80 (faPesP).fo

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produção de embriões para o rebanho leiteiro e gado de corte. “Quando o criador opta pela fer-tilização in vitro, ele consegue antecipar o ganho genético do rebanho por várias gerações, tanto no gado de leite como de corte, o que proporciona crescimento na produtividade.”

a o mesmo tempo a empresa também come-çou a trabalhar com projetos científicos, entre eles um que tinha como objetivo

avaliar, por meio da espectrometria de massas, o tempo que era viável manter armazenados na geladeira os meios de cultivo dos embriões. O projeto, que teve apoio da FAPESP por meio do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Em-presas (Pipe), em colaboração com o laborató-rio Thomson de Espectrometria de Massas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mostrou que eles eram mais estáveis do que se imaginava e possibilitou grandes avanços na pro-dução in vitro de embriões bovinos. “Antes do projeto, fazíamos os meios de cultivo uma vez por semana e hoje produzimos uma vez por mês e em grandes quantidades.” Ela ressalta que, quando armazenados em geladeira, o prazo de validade se estende para mais de 60 dias.

Depois desse primeiro projeto, a empresa teve aprovados outros quatro na mesma modalida-de. Um deles, encerrado no ano passado, trata de marcadores moleculares para fertilidade na raça girolanda. “Identificamos algumas regiões de cromossomos bovinos que podem ser candi-datas a marcadores de fertilidade pela medição da taxa de conversão de oócitos em embriões”, descreve Andrea.

Atualmente, três outros projetos estão em an-damento na empresa. Um deles tem como ob-jetivo estabelecer um protocolo de certificação sanitária para os embriões produzidos in vitro no Brasil visando à exportação. “Se conseguirmos provar que os embriões produzidos em labora-tório são livres de patógenos contaminantes, te-remos uma ferramenta de garantia da qualidade que abrirá caminho para a exportação.”

O segundo é sobre o desenvolvimento de um protocolo para coletar uma biópsia de células embrionárias que preserve a viabilidade do em-brião e, ao mesmo tempo, forneça material su-ficiente para se fazer uma análise genômica de suas características. Este projeto é feito em co-laboração com a Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araçatuba e de Jaboticabal, e a Agropecuária Jacarezinho. “Estamos desen-volvendo na empresa uma tecnologia em que fazemos uma biópsia dos embriões recém-pro-duzidos no laboratório, antes do congelamento, e uma análise genética para o criador escolher qual embrião quer transferir para a receptora”, diz Andrea. Em um rebanho leiteiro, por exem-

plo, a escolha pode ser para melhorar a taxa de gordura ou proteína do leite.

O terceiro projeto tem como objetivo produzir embriões de animais das raças nelore e holandesa de 2 a 5 meses de idade, que ainda não entraram na puberdade. Os resultados mostraram que as bezerras e as novilhas pré-púberes que receberam determinada estimulação hormonal conseguiram produzir óvulos viáveis e embriões que já foram transferidos para receptoras.

A In Vitro tem ainda dois projetos de cunho social, um deles financiado pelo Sebrae em Ala-goas para melhoramento do rebanho leiteiro. A empresa enviou para produtores de leite embriões da raça girolanda que resultaram em cerca de um mil prenhezes positivas. Com o nascimento das bezerras, o rebanho terá um incremento na produção, podendo atingir desejáveis 20 litros de leite por dia, sendo que antes do melhoramento genético esse número ficava entre 3 e 5 litros. O outro trabalho, também para melhorar a produção de leite, é feito em parceria com a empresa Zam-bezia Agropecuária de Moçambique, na África. n

2

Sustentável e menos poluente, novo processo utiliza nanopartículas

para a captura e produção de metais | Evanildo da Silveira

Mineração y

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nSo

Extração magnética

uma nova tecnologia para pro-cessamento de minérios, de-senvolvida na Universidade de São Paulo (USP), poderá revo-

lucionar a mineração, principalmente a extração do cobre. Chamada de nanohi-drometalurgia magnética (NHM), é 100% brasileira e considerada “verde” porque o impacto ambiental é mínimo se com-parado com outras práticas do setor. A técnica é realizada em meio aquoso, com uso de nanopartículas supermagnéticas em vez de solventes orgânicos, como o querosene, por exemplo, utilizado nos processos convencionais. Coordenado pelo químico Henrique Toma, professor do Instituto de Química da USP (IQ-USP), o artigo que reúne os trabalhos do gru-po que levaram ao desenvolvimento da tecnologia foi publicado na revista Green Chemistry e rendeu um pedido de patente.

Desenvolvido por Ulisses Condomitti durante a elaboração da tese de douto-rado realizada sob orientação de Toma e defendida no IQ-USP, o novo processo emprega a nanotecnologia para reno-var e aperfeiçoar um procedimento já aplicado pela indústria mineradora, a

hidrometalurgia. “Entre as vantagens da nanohidrometalurgia está a possibi-lidade de executar todas as etapas em um único procedimento sequencial, no mesmo reator operando em condições ambientais, dispensando o tradicional uso de extração com solventes orgânicos, tratamentos ácidos e etapas de concen-tração, além de diminuir a produção de rejeitos”, explica Toma. “As nanopartí-culas captadoras de metais são integral-mente regeneradas após o procedimen-to, sem nenhum tratamento adicional.”

O novo processo desenvolvido na USP é uma alternativa para a hidrometalurgia convencional, que começa com a lixivia-ção, um procedimento para a separação dos minérios por meio de ácido ou, al-ternativamente, com bactérias, segui-do do tratamento químico com agentes complexantes – que formam compostos – de metais. A diferença é que o agente químico complexante e o solvente usado para extração do metal são substituídos por nanopartículas superparamagnéti-cas controladas por campo magnético e produzidas com magnetita (óxido de fer-ro). Elas são misturadas em uma solução

aquosa rica em sais de cobre. Após alguns minutos, os íons de cobre (Cu2+) dissolvi-dos se ligam às nanopartículas por meio do agente complexante presente em sua superfície, e elas são atraídas para a su-perfície de um eletrodo, também imerso, sob ação de um ímã posicionado do lado externo. Dessa forma, as nanopartículas com os sais de cobre ficam concentradas sobre a superfície do eletrodo. Em seguida é aplicada energia elétrica sobre o eletrodo que causa a migração e a transferência de elétrons dos íons de cobre para o eletrodo, gerando o cobre metálico (Cu).

Depois de cerca de cinco minutos de aplicação de eletricidade, as nanopartículas liberam praticamente todo o metal que se encontrava ligado a elas. “A eletrodeposi-ção proporciona um cobre com pureza de 99,9%”, diz Toma. “As nanopartículas, por sua vez, são liberadas para uso posterior.” Segundo Toma, o experimento realizado em laboratório mostrou-se vantajoso em relação ao processo tradicional de hidro-metalurgia na economia de tempo. Com nanotecnologia, a obtenção de cobre metá-lico acontece em alguns minutos, enquanto no processo industrial atual leva sete dias.

68 z maio DE 2015

nanopartículas superparamagnéticas ligadas a sais de cobre em solução aquosa são atraídas por um ímã externo ao recipiente

pESQuiSa fapESp 231 z 69

transformação do metalem solução, nanopartículas se ligam aos sais de cobre, que por sua vez grudam nos eletrodos

lixiviaçãoSeparação dos

metais por meio de

ácidos ou com

bactérias. Sobram

compostos de sais

de cobre

adição dE nanopartículaScontroladas por

campo magnético,

as nanopartículas

são produzidas com

óxido de ferro

formação doS compoStoSas nanopartículas se

ligam aos sais de

íons de cobre depois

de alguns minutos

de agitação

atração doS compoStoSas nanopartículas

são atraídas para um

eletrodo mergulhado

na solução aquosa

por meio da ação de

um ímã colocado fora

do recipiente. os sais

de cobre ficam

instalados entre o

eletrodo e as

nanopartículas

libEração daS partículaSeletricidade é

aplicada no

eletrodo, causando

perda de elétrons

no material que

se transforma em

cobre metálico

1 2 3

4 5

nanopartículas

Sais de cobre + nanopartículas

cobre metálico

Água com sais de cobre

nanopartículas reaproveitáveis

Ímã

eletrodo

Minério Sal de cobre

5 minutos

eletrodo com corrente elétrica

Outra vantagem é que todo o proces-samento pode acontecer em um mesmo recipiente (ver infográfico ao lado). As par-tículas são atraídas para as placas metáli-cas dos eletrodos de cobre, e a eletrodepo-sição acontece de forma localizada. Não há necessidade de transporte até outro reator como ocorre na hidrometalurgia convencional. Isso significa redução de custo, simplificação de processo e maior racionalidade. “A nanohidrometalurgia magnética também gera menor quantida-de de descartes”, diz Toma. “Existe ainda a possibilidade de automatização, usando reatores de menor dimensão.” De acordo com o pesquisador, a nova técnica também é aplicável a vários metais estratégicos, in-cluindo o processamento das terras-raras, um trabalho em desenvolvimento no IQ--USP. O próximo passo do grupo é transfe-rir a tecnologia para alguma empresa. Ele conta que duas já demonstraram interesse, a 3M e a Caraíbas, a única mineradora no Brasil que produz cobre metálico, embo-ra insuficiente para o mercado interno.

Toma lista outros argumentos para demonstrar a importância da nova na-notecnologia, a começar pela importân-cia do cobre – o principal metal a ser beneficiado –, fundamental em setores como construção civil, indústria elétrica, máquinas, transporte e eletrônica. No caso específico do Brasil, embora o país seja rico em minerais, não o é em cobre. “O dono das maiores reservas mundiais desse elemento é o Chile, com 38% do total”, informa Toma. “O Brasil detém cerca de 1,5% e o país não possui miné-rios ricos nesse elemento. O que existe é de baixo teor, em torno de 4% a 5%, porém adequado para uso com a nova tecnologia.” No mundo, segundo o quí-mico, a mineração de cobre – e mesmo de outros metais – apresenta alguns pro-blemas atualmente. Entre eles, estão o esgotamento gradual dos minerais de alto teor e o aumento de impactos am-bientais, causados tanto pela extração como pelo processamento. n

projetoQuímica supramolecular e nanotecnologia (nº 2013/24725-4); Modalidade projeto Temático; Pesqui-sador Responsável Henrique Toma (uSp); Investimento r$ 940.870,28 (fapeSp).

artigo científicoToma, H. e. Magnetic nanohydrometallurgy: a nanotech-nological approach to elemental sustainability. Green Chemistry. publicado on-line em 12 de fevereiro de 2015.

pESQuiSa fapESp 231 z 69

70 z maio DE 2015

Com corpo técnico qualificado, Bradar

desenvolve radares para sensoriamento

remoto, defesa aérea e meteorologia

Quinhentos e cinquenta exposito-res de todo o mundo participaram em outubro do ano passado da 20ª Intergeo, o maior evento global do setor geoespacial. Durante três dias,

mais de 18 mil pessoas passaram pelo evento em Berlim, capital da Alemanha, interessadas em conhecer as últimas novidades tecnológicas nas áreas de geoinformação, geodésia e gestão am-biental. Um dos produtos brasileiros expostos foi o BradarSAR 3000, um radar compacto, ae-rotransportado e projetado para mapeamento e monitoramento territorial com alta precisão. De fácil instalação e multifuncional, ele pode ser acoplado em aeronaves de pequeno porte para geração de mapas topográficos, monitoramento de mudanças geográficas – como desmatamento, inundações, invasões e processos erosivos, entre outros –, controle de fronteiras, busca e salvamen-to, vigilância terrestre e marítima e estimativa de biomassa. Empresas, órgãos governamentais e instituições de 60 países demonstraram interesse

Para enxergar mais longe

pesquisa empresarial y

Yuri Vasconcelos

empresa

Bradar

Sede

são José dos Campos,

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Nº de funcionários 250

Principais produtos radares para as áreas

de monitoramento

territorial, defesa,

meteorologia e

controle do tráfego

aéreo

no radar desenvolvido no Brasil. O BradarSAR 3000 é um produto do portfólio da Bradar, uma companhia de base tecnológica pertencente à Embraer Defesa & Segurança especializada no desenvolvimento de soluções completas em sis-temas de radares para defesa, monitoramento e sensoriamento remoto.

“O BradarSAR 3000 foi um grande sucesso na Intergeo. O equipamento é inovador e foi lançado recentemente, com elevado nível de sofisticação, sem concorrentes no mundo. Acreditamos que será um dos nossos principais produtos para o mercado externo”, diz João Moreira Neto, dire-tor técnico da Bradar. O radar é dotado da tec-nologia InSAR (sigla para interferometria por radar de abertura sintética) e opera em faixas de frequência X e P. As ondas da banda X são refletidas e espalhadas pelas copas das árvores, enquanto as da frequência P penetram a folha-gem e são refletidas pelo solo e troncos mais den-sos, permitindo o mapeamento sob a vegetação. Com isso, o aparelho consegue fazer mapas topo-

pesQUIsa Fapesp 231 z 71

adquiridas pela Embraer composto por Atech, Harpia, OGMA, Savis e Visiona.

“A venda de parte da OrbiSat foi um momento crucial para a empresa, porque com a injeção de recursos continuamos a projetar e desenvolver radares de última geração. Hoje, todos os nossos produtos têm um índice de nacionalização de, pelo menos, 90%”, conta Moreira Neto. Em 2014, a empresa investiu cerca de R$ 1 milhão em atividades de pesquisa e de-senvolvimento (P&D) – mesma quantia que deve ser investida no setor este ano. “Nós investimos em pesquisas e acredi-tamos que inovar seja a melhor forma de contribuirmos para o desenvolvimento e a soberania de nosso país”, diz Astor Vasques, presidente da Bradar.

gráficos com alta resolução de florestas densas, além de medição de biomassa florestal. Outro importante diferencial do BradarSAR 3000 é a capacidade de operar em regiões cobertas por nuvens, sem perda da precisão do mapeamento. “A aquisição dos dados independe das condições atmosféricas. E, por utilizar duas frequências de forma simultânea, nosso radar permite a obtenção de ima-gens com e sem vegetação, revelando superfícies desconhecidas, como cur-sos d’água, construções clandestinas e outros detalhes”, diz Moreira Neto, de 54 anos.

Criada em 1984 como Databus Enge-nharia, a Bradar inicialmente se dedica-va a projetos de engenharia eletrônica. lé

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am

os

João moreira Neto, diretor técnico da Bradar, ao lado dos gerentes de projeto eduardo ribeiro e eurico Vaz e do engenheiro José Capellardo

Pouco depois, ampliou sua atuação in-cluindo a fabricação de receptores e equipamentos para recepção de TV via satélite, sob a marca OrbiSat. Em 2002, a empresa iniciou suas atividades no se-tor de sensoriamento remoto com o de-senvolvimento do OrbiSAR, um radar aerotransportado com características semelhantes ao BradarSAR 3000, mas de tamanho maior e mais pesado. Quatro anos depois, a companhia passou a de-senvolver radares para a área de defesa, trabalhando em parceria com o Exército brasileiro. Em março de 2011, a divisão de Radares e Sensoriamento Remoto da Or-biSat foi adquirida pela Embraer e mudou sua denominação para Bradar. Com isso, a Bradar forma um grupo de empresas

72 z maio DE 2015

Decisiva para o crescimento da Bradar, a área de P&D é gerida por um comitê formado por 10 pesquisadores e liderado por Moreira Neto, engenheiro eletrônico pelo Instituto Tecnológico de Aeronáu-tica (ITA). Depois de formado, em 1982, ele foi para a Alemanha, onde fez nova graduação, também em engenharia, e o doutorado na Universidade Técnica de Munique. Em paralelo, Moreira Neto foi pesquisador do Centro Aeroespa-cial Alemão (DLR, na sigla em alemão) e, em 1990, recebeu o Prêmio Ciência DLR pelos trabalhos na área de radares de abertura sintética – instrumento ca-paz de gerar imagens de alta resolução a grandes distâncias, como, por exemplo,

1 painel da antena do radar m-200

2 placa de radar pronta para teste

3 Teste no simulador de alvos

no espaço. “Em 1996, fundei com um co-lega alemão a Aero-Sensing Radarsyste-me GmbH, voltada ao desenvolvimento de radares, que recebeu importantes prê-mios, entre eles o de Empresa Inovadora do Ano do estado da Baviera, em 1997. No ano seguinte, figuramos no ranking ‘As 30 Empresas Mais Inovadoras’, ela-borado pelo governo alemão.” Em 2002, de volta ao Brasil, o engenheiro, que ven-deu sua parte, associou-se ao dono da OrbiSat e criou a divisão de radares da companhia, que daria origem à Bradar 10 anos depois.

Com uma área total de 2.300 metros quadrados, a empresa está presente em três municípios paulistas. Campinas

abriga o setor de Engenharia de Rada-res, enquanto em São José dos Campos, sede da Bradar, localizam-se a presidên-cia, a divisão de Sensoriamento Remo-to e o setor de Engenharia Mecânica. O departamento de Montagem de Radares fica em Barueri, município da Região Metropolitana de São Paulo. Do total de 250 colaboradores, 180 são engenheiros, 15 têm título de doutor e 20 de mestre. “Sessenta dos nossos engenheiros atuam diretamente com inovação, enquanto outros 115 dedicam-se ao desenvolvi-mento dos nossos produtos”, diz Moreira Neto, destacando que a companhia tem 19 registros de patente e três registros de marcas.

projetos e VersõesBacharel em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Itajubá (Unifei), em Minas Gerais, Eurico Vaz Junior, 34 anos, ocupa o cargo de gerente de projetos na unidade de São José dos Campos, onde lidera os departamentos de Engenharia e Manutenção de Siste-mas e Desenvolvimento de Software de Sensoriamento Remoto. “Ao longo de 12 anos de experiência profissional na Bra-dar desenvolvi um perfil multidiscipli-nar com atuação na gestão de projetos de novos produtos, gerenciamento de operações de aerolevantamento, coorde-nação de desenvolvimento de hardware, software e operação de sistemas de sen-soriamento remoto”, diz. Vaz Junior fez parte do grupo que projetou e construiu o BradarSAR 3000 e outros equipamen-tos da empresa, como o Sarvant, um ra-

João Moreira Neto, engenheiro eletrônico, diretor técnico da Bradar

instituto Tecnológico de aeronáutica (iTa): graduação universidade Técnica de munique (Tum): doutorado

Karlus Alexander Câmara Macedo, engenheiro eletricista, pesquisador da área de processamento de sinais

universidade de Brasília (unB): graduaçãoinstituto Tecnológico de aeronáutica (iTa): mestradouniversität Karlsruhe (alemanha): doutorado

Marco Antônio Miguel Miranda, engenheiro eletricista, gerente da área de processamento de sinais

universidade estadual de Campinas (unicamp): graduação universidade estadual de Campinas (unicamp): mestrado universidade estadual de Campinas (unicamp): doutorado (em andamento)

Eduardo Ribeiro da Silva, engenheiro eletricista, gerente de projeto do radar Grade

universidade estadual paulista (unesp): graduaçãoFundação Getulio Vargas (FGV): mBa

Eurico Vaz Júnior, cientista da computação, gerente de projetos, dedicado à área de sensoriamento remoto

universidade Federal de itajubá (unifei): graduaçãoFundação Getulio Vargas (FGV): mBa

José de Jesus Capellaro, engenheiro eletricista, membro da equipe de gestão de projetos de radares militares

universidade de são paulo (usp): graduação

INstItUIÇões QUe Formaram pesQUIsaDores Da empresa

1 2

pesQUIsa Fapesp 231 z 73

O equipamento também foi empregado durante a Copa das Confederações e a visita do papa Francisco ao Brasil, em 2013, e na Rio+20, em 2012.

Um segundo membro dessa família de radares, o Saber-M200, com raio de al-cance de 200 quilômetros, já está em de-senvolvimento e deve ficar pronto ainda este ano. “O Saber-M200 será o primeiro radar multimissão – artilharia antiaérea, meteorologia e aproximação de voos em aeroportos – de baixo custo do mercado internacional. A Alemanha já nos pediu informações sobre ele”, conta o diretor técnico da Bradar. O engenheiro eletrô-nico José de Jesus Capellaro, 52 anos, fez parte da equipe responsável pela criação do Saber-M60 e hoje dedica-se a outro

dar de abertura sintética projetado com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) para ser instalado em um veículo aéreo não tripulado (vant). Também atuou no desenvolvimento de novas versões do radar de sensoriamen-to remoto OrbiSAR, o radar cartográfico usado desde 2002 pela empresa para prestação de serviços no Brasil e no ex-terior (ver Pesquisa FAPESP nºs 89 e 149). Ele está sendo empregado no momento em um projeto do Exército para mapear os últimos vazios cartográficos da Ama-zônia. Antes disso, a Bradar já realizou mapeamentos topográficos com o Orbi-SAR para clientes na Itália, Colômbia, Venezuela, Panamá e Equador.

Além de desenvolver radares de sen-soriamento remoto, a Bradar também fabrica, desde 2006, radares de defesa. O pioneiro foi o radar de artilharia antiaé-rea de baixa altura Saber-M60, criado em parceria com o Centro Tecnológico do Exército (CTEx). O radar rastreia alvos – aeronaves clandestinas, por exemplo – em um raio de 60 quilômetros e a uma altitude de 5 mil metros, transmitindo as informações em tempo real a um cen-tro de operações de artilharia antiaérea. Por ser móvel e de baixo peso, pode ser facilmente transportado de um lugar a outro. “Com o Saber-M60, o Brasil pas-sou a figurar entre os cinco países do mundo que dominam o conhecimento industrial desse tipo de equipamento”, diz Moreira Neto. Um lote de 22 des-ses radares foi utilizado pelas três For-ças Armadas na segurança dos estádios que sediaram a Copa do Mundo de 2014.

projeto na área militar, o sistema radar secundário S200R. “Trata-se de um ra-dar de controle de tráfego aéreo proje-tado e desenvolvido com recursos da própria companhia, do CTEx, do ITA e da Finep para a Força Aérea Brasilei-ra (FAB). O radar tem o objetivo de in-terrogar os transponders instalados nas aeronaves, equipamentos que fornecem informações de identificação e altitude. O S200R permite identificar aeronaves distantes até 200 milhas náuticas, cerca de 370 quilômetros”, afirma Capellaro. O equipamento está em fase final de cons-trução e deverá ser entregue para a FAB no próximo ano.

preVIsão Do tempoEntre os projetos de produtos futuros, a Bradar se dedica a radares destina-dos à área de meteorologia. A empresa está construindo um radar meteoroló-gico dotado da tecnologia now casting, capaz de fazer previsões de curto pra-zo, em períodos de três a quatro horas. Fo

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s

o m200 será um radar multimissão e vai atuar nas áreas de defesa, meteorologia e controle de voos

3

74 z maio DE 2015

Batizado de Grade, ele mede 2 metros de comprimento por 2 de altura e tem baixo consumo de energia, podendo ser facilmente instalado em regiões remo-tas não cobertas por radares de grande porte. Um dos pesquisadores envolvidos em seu desenvolvimento é o engenheiro eletricista Eduardo Ribeiro da Silva, 37 anos. Formado pela Universidade Esta-dual Paulista (Unesp) de Guaratingue-tá, ele atuou durante 10 anos no desen-volvimento de circuitos integrados nas empresas Motorola e Freescale. Nesse período, registrou três patentes resul-tantes de projetos, em sua maioria para o setor automotivo.

gIro rápIDoEm 2013, Silva juntou-se à equipe da Bra-dar e no ano seguinte passou a coorde-nar a criação do Grade. “No fim do ano passado, fizemos a integração do radar e, agora, estamos realizando a análise do processamento de sinais e refinando os dados coletados”, afirma o engenheiro eletricista. “A grande diferença entre o Grade e os radares meteorológicos con-vencionais é a substituição do refletor parabólico por hastes, modificação que permite ao conjunto girar em veloci-dades de até 300 rotações por minuto (rpm), provendo, dessa forma, uma rá-pida leitura das condições do tempo.”

O grupo de proces-samento de sinais da Bradar, responsável pela concepção, im-plementação e teste dos algoritmos de si-nais que são embar-cados nos produtos da empresa, conta com 70% dos profis-sionais com pós-gra-duação. O gerente da área, Marco Antonio Miguel Miranda, de 27 anos, é formado em Engenharia Elétrica pela Universida-de Estadual de Campinas (Unicamp), fez o mestrado na mesma instituição e, no momento, cursa o doutorado. “Entrei na Bradar em 2009, quando ainda estava na graduação”, diz ele. “O tema do meu dou-torado está relacionado a radares meteo-rológicos. Recentemente, dois colegas da empresa e eu submetemos um pedido de patente protegendo uma solução tecnoló-gica oferecida pelo radar meteorológico Grade.” Um dos integrantes da área de processamento de sinais é o engenheiro eletricista Karlus Alexander Câmara de Macedo, de 41 anos. Depois de graduar-se na Universidade de Brasília (UnB) e con-seguir o título de mestre no ITA, foi para a Alemanha em 2002 fazer o doutorado na Universität Karlsruhe. “Durante esse

período – até 2008 – trabalhei no Insti-tuto de Micro-ondas e Sistema de Radar do Centro Aeroespacial Alemão (DLR). Foi uma experiência muito enriquecedo-ra pessoal e profissionalmente”, diz. De volta ao Brasil, o jovem foi contratado

pela Bradar e passou a integrar a equipe responsável pela en-genharia de sistemas e sinais para radares de defesa e sensoria-mento remoto. Hoje, Macedo trabalha na finalização do radar Saber-M200, revi-sando seu sistema de processamento de sinal.

Muitos dos novos produtos e tecnolo-gias criados pela Bra-dar são desenvolvi-dos com a participa-ção de universidades. “A Unicamp é nossa principal parceira –

temos mais de 20 bolsistas na institui-ção –, mas também trabalhamos com a USP [Universidade de São Paulo] de São Carlos, a Universidade Federal do Ceará e a PUC [Pontifícia Universida-de Católica] do Rio, entre outras”, diz Moreira Neto. “Muitas vezes, queremos produzir localmente certos componentes importados com o objetivo de baratear o custo e dominar a tecnologia. Então en-volvemos parceiros universitários. Isso ocorreu recentemente com uma placa de processamento que está presente em todos os nossos radares. Cada unidade importada custava cerca de US$ 34 mil, e um único radar chegava a usar 96 des-sas peças. Em 18 meses fizemos nossa própria placa, oito vezes mais potente do que a importada e custando um terço do valor dela. n

parceiros nas universidades contribuem para a substituição de componentes importados e domínio da tecnologia

Teste de integração da fonte de alimentação do radar m-200

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Aparelho portátil emprega radiação

infravermelha para certificar a qualidade de

alimentos, polímeros, fármacos e tecidos

Reconhecimento imediato

Em um futuro próximo, caso al-guém que decida comprar uma camisa 100% algodão duvide de que a peça oferecida pela loja é

mesmo feita com este material, poderá tirar um aparelho de bolso, apontar para o tecido e ler no visor se de fato é o indi-cado na etiqueta. A realidade é que esse equipamento portátil poderá, dentro de alguns anos, estar disponível para consumidores, policiais e inspetores de qualidade, por exemplo. O precursor desse dispositivo é o espectrofotômetro portátil MicroNIR 1700, um instrumen-to compacto que opera no comprimento de onda do infravermelho próximo, in-visível ao olho humano. Com potencial para identificar a composição química de produtos comerciais e outros tipos de objetos sem precisar tocar neles, o apa-relho está sendo testado por um grupo

de pesquisadores brasileiros interessa-dos em tornar a tecnologia acessível à população sem conhecimento técnico.

A onda eletromagnética produzida pe-lo próprio instrumento incide no objeto analisado e é refletida e parcialmente ab-sorvida. Com essa informação, o aparelho gera dados sobre a composição química característica do objeto, o que permi-te identificar e revelar detalhes de inte-resse do usuário. “O MicroNIR tem um potencial grande, mas precisa do desen-volvimento de métodos e de adaptações para se tornar uma ferramenta efetiva na resolução de problemas analíticos e mais fácil de ser operada. É isso que esta-mos fazendo na nossa pesquisa”, explica o químico Celio Pasquini, professor do Departamento de Química Analítica do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (IQ-Unicamp) e coordenador do Instituto Nacional de Ciências e Tecnologias Analíticas Avan-çadas (Inctaa) apoiado pela FAPESP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvi-mento Científico e Tecnológico (CNPq).

A tecnologia NIR (sigla em inglês para infravermelho próximo ou near infra-red) não é novidade. Ela já existe desde a década de 1970, mas seu uso está limi-tado a aparelhos caros, complexos e não portáteis, operados principalmente por técnicos especializados ou cientistas.

QUÍMICA ANALÍTICA y

Uso do aparelho para

determinar a doçura

e a qualidade de maçãs

pESQUISA FApESp 231 z 75

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equipamentos de espectrofotometria NIR, explica Pasquini.

“As interações com as substâncias quí-micas presentes são características da amostra e sua medida gera informações únicas que podem ser consideradas co-mo sua impressão digital”, explica Pas-quini. Uma das características da técni-ca está no fato de ela não ser destrutiva e permitir o acesso a informações nas amostras intactas.

“O novo instrumento usado em nosso trabalho custa US$ 5,5 mil, valor que é cerca de 15 vezes mais barato do que os espectrofotômetros convencionais. Além disso, é portátil, robusto, fácil de usar e apresenta rapidamente uma resposta. Com todas essas características, ele pode ser visto como uma solução à procura de um problema – mais ou menos como a tecnologia dos lasers na década de 1960”, destaca Pasquini.

O pesquisador também faz parte do Grupo de Instrumentação e Automação em Química Analítica (GIA) do Institu-to de Química da Unicamp, constituído ainda pelos pesquisadores Jarbas José Rodrigues Rowedder e Ivo Milton Rai-mundo Júnior, do Inctaa. O GIA traba-lha com espectroscopia desde 1995. É um dos centros brasileiros pioneiros na pesquisa e no desenvolvimento dessa tecnologia e já criou vários instrumen-

“O lançamento do MicroNIR 1700 em 2013 pela empresa norte-americana JDSU abriu novas oportunidades para que a espectroscopia NIR possa, um dia, ser acessível ao consumidor”, diz Pasquini.

INTERAÇÃO QUANTITATIVAPasquini explica que a espectrometria de infravermelho próximo baseia-se no estudo da interação da radiação eletro-magnética com a matéria e já está con-solidada na literatura científica para di-versas aplicações, entre elas controle de qualidade em alimentos como leite e derivados, óleos, bebidas, frutas e frutos do mar, além da análise de produtos têx-teis, polímeros e fármacos, entre outras. A técnica consiste na medição da inten-sidade de absorção da radiação na faixa do infravermelho próximo em função do comprimento de onda produzida por determinado objeto ou amostra.

A espectrofotometria NIR é usada na medição quantitativa de grupos funcio-nais orgânicos, principalmente O-H (li-gação oxigênio e hidrogênio), N-H (li-gação nitrogênio e hidrogênio) e C=O (dupla ligação entre carbono e oxigênio). Cada objeto ou amostra possui caracte-rísticas químicas únicas – muitas vezes resultantes de composições complexas como a impressão digital humana –, que podem ser identificadas por um espec-

trofotômetro. “Os átomos das moléculas que formam qualquer amostra consti-tuída por substâncias orgânicas não se encontram estáticos, parados, mas vi-brando. Quando incidimos uma radia-ção adequada, que possa ser absorvida por certa ligação química, por exemplo, essa radiação é atenuada, transferindo parte da sua energia para a vibração dos átomos ligados, o que é registrado pelos

Radiação reveladorasaiba como funciona o espectrofotômetro portátil

FONTE INCTAA

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A técnica não é destrutiva e permite a análise sem a necessidade de cortar ou furar a amostra

Para checar a autenticidade de um

tipo de tecido, por exemplo, o

aparelho emite sobre o tecido um

feixe de ondas eletromagnéticas do

espectro infravermelho próximo

Em seguida, o aparelho mede a

relação entre a radiação emitida

e a absorvida pelo tecido, em

função do comprimento de

onda refletido. Cada material

possui um espectro de absorção

próprio que funciona como se

fosse uma impressão digital

Comparando o espectro de

absorção do tecido analisado

com os espectros de absorção

previamente armazenados no

aparelho, o MicroNIR revela se

o material é autêntico ou não

pESQUISA FApESp 231 z 77

como laranja, kiwi e maçãs, assim como para identificação de tecidos – algodão, poliéster, couro, seda e outros”, diz Jar-dim. Um dos objetivos de seu trabalho de mestrado é criar um modelo para de-terminação da escala Brix – medida que aponta a quantidade de sólidos dissolvi-dos numa fruta, o que reflete diretamen-te a quantidade de açúcar presente nela.

O espectrofotômetro, portanto, po-deria ajudar o consumidor a escolher no supermercado frutas mais ou menos doces, de acordo com sua preferência. “A iniciativa de construir bases de da-dos e os modelos, como o que estamos fazendo, está na pauta de vários grupos de pesquisa ao redor do mundo. Porém esse trabalho ainda é desenvolvido de forma isolada. No futuro, a colaboração entre grupos brasileiros e de outros paí-ses poderá ser aproveitada para tornar as bases de dados mais universais. Mas esse é um trabalho que levará alguns anos. No sistema que se pretende cons-truir os aparelhos terão sempre seus modelos atualizados automaticamente via web e comunicação sem fio”, conta Pasquini.

O aparelho também poderia ser usa-do para avaliar se determinado móvel foi feito com a madeira informada pe-lo fabricante, se um remédio tem mes-mo a composição química anunciada pelo fabricante e assim por diante. “O MicroNIR poderia ser muito útil para verificar a autenticidade de mercado-rias, coibindo a venda de produtos fal-sificados ou piratas, um problema que movimenta bilhões de dólares por ano em todo o mundo. Dados na literatura científica também revelam que a tecno-logia tem potencial para ser empregada na identificação de cédulas falsas”, diz o mestrando da Unicamp. “Como a porta-bilidade é uma tendência crescente em nossa sociedade, acredito que dentro de algum tempo possa ser possível a cria-ção de um aparelho NIR acoplado a um smartphone. Quando isso acontecer, a tecnologia do infravermelho próximo deverá ganhar força e será utilizada por qualquer pessoa.” n Yuri Vasconcelos

ProjetoInstituto Nacional de Ciências e Tecnologias Analíticas Avançadas – Inctaa (nº 2008/57808-1); Modalidade Projeto Temático – INCT; Pesquisador responsável Ce-lio Pasquini (Unicamp); Investimento R$ 375.421,77 e Us$ 531.453,87 (FAPEsP).FO

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A utilização futura doequipamento portátil inclui a identificação de produtos piratas ou mesmo de dinheiro falso

tos que resultaram em quatro pedidos de patente. Um deles serve ao controle da qualidade de combustíveis para de-terminação do teor de álcool em gaso-lina e a presença de água no etanol. O aparelho é comercializado pela Tech Chrom, empresa de Campinas, com a fi-nalidade de inibir os tipos mais comuns de fraude nesses produtos (ver Pesquisa FAPESP nº 209).

RESUlTAdOS NO VISORAluno de mestrado do Instituto de Quí-mica da Unicamp e membro da equipe de Pasquini, Matheus Angeluzzi Jardim esclarece que a efetividade do Micro-NIR 1700, que mede 4,5 centímetros de comprimento por 4,2 de largura e pesa 150 gramas, depende da existência de um vasto banco de dados formado pela impressão digital ou espectro de absor-ção de um grande número de amostras. Dessa forma, ao realizar a leitura de de-terminado objeto, o equipamento seria capaz de fazer sua identificação compa-rando o espectro de absorção captado com aqueles previamente armazena-dos no banco de dados. Por enquanto, o aparelho apenas mostra o resultado na forma de gráficos na tela de um compu-tador. No futuro os resultados poderão ser mostrados, de forma mais simples, num pequeno visor no próprio aparelho.

“Vamos supor que queiramos analisar produtos têxteis a fim de criar um mode-lo que consiga identificar se determinado vestido é, de fato, de seda, tal qual consta em sua etiqueta. O primeiro passo seria dispor de algumas dezenas de amostras de tecidos de seda, com diferentes cores e padrões e, assim, obter o espectro de absorção delas”, diz Jardim. Depois, ao empregar quimiometria – ciência que recorre à aplicação de ferramentas esta-tísticas e matemáticas para obter infor-mação de vastos conjuntos de dados –, os pesquisadores geram um modelo de classificação capaz de identificar, esta-tisticamente, se a amostra da qual se está obtendo o espectro é mesmo seda. Por fim, com o modelo pronto, pode-se usar um espectrofotômetro como o MicroNIR 1700 em qualquer peça de vestuário e saber se ela é ou não de seda.

Por enquanto, a biblioteca de mode-los está sendo montada no Brasil apenas pelo grupo de Pasquini. “Já temos uma biblioteca suficiente para criar modelos para determinação de açúcar em frutas,

Pesquisas vão além dos aspectos testemunhais da obra de Carolina

Maria de Jesus e buscam definir seu estilo e seus parentescos culturais

Poética de resíduos

Cinquenta e cinco anos depois de Quarto de despejo, estreia em livro da escritora Carolina Ma-ria de Jesus, o interesse por sua

obra continua se desdobrando e tomou impulso em 2014, ano de seu centenário de nascimento – presumido, porque a própria Carolina não tinha certeza so-bre a data e há discrepâncias de dados entre sua certidão de nascimento e a de batismo. Definida como “favelada” no subtítulo do livro (Diário de uma fa-velada), Carolina hoje é revisitada sob diversos ângulos, dada a riqueza de sua produção inédita, ou quase, e de sua vida de altos e baixos.

“Escritora, lavradora, catadora de papel, compositora, sambista, poetisa, dramatur-ga, cantora, atriz circense, raizeira [quem usa raízes em tratamento médico]”, assim a descreve a historiadora Elena Pajaro Pe-res em sua tese de doutorado Exuberância e invisibilidade. Populações moventes e cul-

tura em São Paulo, 1942 ao início dos anos 70, defendida em 2007 no Departamen-to de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universi-dade de São Paulo (FFLCH-USP). Elena desenvolve agora no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP pesquisa de pós--doutorado sobre a diáspora africana nos manuscritos de Carolina.

A presença de Carolina (1914-1977) em círculos acadêmicos no Brasil e no exte-rior contrasta com o quase total desco-nhecimento de seu nome pelo público leitor. A sua época, entretanto, Quarto de despejo foi um fenômeno de vendas. A primeira tiragem, de 10 mil exemplares, se esgotou em três dias, outros 90 mil fo-ram vendidos em seis meses. No exterior, ganhou tradução em 14 idiomas. A publi-cação do livro aconteceu depois de uma reportagem do jornalista Audálio Dantas na favela do Canindé, uma das primeiras de São Paulo. Um encontro casual com

Márcio Ferrari

Carolina o levou a conhecer os escritos – contidos em cerca de 20 cadernos – que selecionou e editou, alterando a pontua-ção, mas mantendo a ortografia e a gra-mática originais. Carolina, que estudou apenas até o 2º ano do então chamado curso primário em sua cidade natal, Sa-cramento, em Minas Gerais, sempre havia confiado no potencial de publicação do que escrevia. Trechos de seus cadernos já tinham saído em reportagens de jornais, entre elas a de Audálio Dantas, publica-da em 1958 na Folha da Noite. Dois anos depois sairia Quarto de despejo, já com expectativa de público.

Carolina publicaria ainda três livros em vida, com repercussão incomparavelmen-te menor do que a obra que a celebrizou, e deixou guardados “mais de 5 mil pági-nas manuscritas, totalizando 58 cadernos que contêm sete romances, mais de 60 textos com características de crônicas, fábulas, autobiografia e contos, mais de

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Carolina em foto de junho de 1960 na janela de um barraco, em são Paulo: produção literária e vida de altos e baixos continuam sendo estudadas

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Carolina e a cultura da diáspora africana no continente americano. “Consegue-se perceber conexões com tradições africa-nas que davam muita importância à pa-lavra escrita”, diz Elena. A historiadora identifica em particular um elo com a cultura de Cabinda, hoje província de Angola, que liga a escritora à África Cen-tral. Seu avô, a quem ouvia com devoção quando criança, era ex-escravo e seus pais vinham dessa região de cultura ban-to, onde o exercício da formação moral e da busca do caminho reto era feito por meio de diálogos e provérbios, muitas ve-zes pictografados em tecidos e cerâmicas.

Elena, que esteve por 12 meses em es-tágio de pós-doutorado no African Ame-rican Studies da Boston University e que vem dialogando com africanistas e es-tudiosos das diásporas africanas, rela-ciona essa preocupação quanto à firme-za de caráter com a tradição musical afro-norte-americana do spirituals. “Co-mo os provérbios, os spirituals comuni-cam o caminho a ser seguido e lamentam os seus desvios, recriando uma ética re-ligiosa e política que foi constantemen-te retomada nos discursos em prol dos direitos civis, especialmente nas décadas de 1950 e 1960”, explica Elena. O avô de Carolina era cristão e comandava a reza do terço em Sacramento, o que lhe con-feria autoridade moral e proeminência na comunidade.

Quando foram lançados Quarto de des-pejo, Casa de alvenaria (memórias de sua vida depois do sucesso do primeiro livro) ou Antologia pessoal (reunião de poemas organizada pelo historiador José Carlos Bom Meihy, publicada em 1996), costu-mava-se criticar a escritora por não refle-tir sobre sua condição de mulher e negra. No entanto, textos sobre esses assuntos encontram-se espalhados pelos inéditos e mesmo em passagens publicadas que não foram suficientemente levadas em conta na época. A doutoranda Raffael-la destaca poemas e outras passagens dos escritos de Carolina que formam um conjunto ambíguo sobre essas questões – ora a autora incorpora preconceitos, ora reivindica a emancipação de negros e mulheres. Na vida, a escritora sempre se manteve tão independente quanto pôde. Preferiu ser catadora de papel a empregada doméstica e nunca quis se casar – teve três filhos de pais diferentes.

Para Elena, a noção de pertencimen-to à cultura negra se alimentou também

100 poemas, quatro peças de teatro e 12 marchinhas de Carnaval”, segundo levan-tamento feito pela doutoranda Raffaella Fernandez, que atualmente trabalha na pesquisa Narrativas de Carolina Maria de Jesus: Processo de criação de uma poética de resíduos, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Esta-dual de Campinas (Unicamp).

Todo esse material se encontra es-palhado, e novos manuscritos podem aparecer. “Sempre que se trabalha com pessoas em movimento, tem-se que li-dar com a dispersão dos documentos”, diz Elena. “Carolina entregou muitos escritos a outras pessoas, na esperan-ça de publicá-los, e, em suas constantes mudanças, foi obrigada a deixar para trás alguns livros que colecionava com

carinho.” Mesmo suas obras publicadas são difíceis de encontrar. Elena Peres pôde consultar os microfilmes de seus manuscritos na Biblioteca do Congres-so em Washington, que guarda também uma cópia de todos os livros de Carolina, inclusive o romance Pedaços da fome, de 1963, e seu único disco, gravado pela RCA Victor. Os mesmos microfilmes também estão disponíveis na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, mas no catálogo da BN não constam todos os seus livros.

Foi nos livros Provérbios e Diário de Bitita – memórias de infância da escritora, publicadas inicialmente

na França, em 1982, e quatro anos de-pois no Brasil – que a pesquisadora tem encontrado os principais vínculos entre

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que logo a prefeitura de São Paulo, na ges-tão do prefeito Pres-tes Maia (1961-65),

começou uma campanha bem-sucedida de derrubada da favela do Canindé, o que resultou na remoção forçada dos morado-res. Essa ação da prefeitura incentivou um grupo de estudantes a criar o Movimento Universitário do Desfavelamento (MUD), que, com a ajuda de grandes empresas, atuou na remoção de outras favelas.

a doutoranda Raffaella defende um deslocamento de abordagem que se detenha nos aspectos pro-

priamente literários da obra de Carolina – um terreno em que mesmo o aspecto informativo dos escritos pode ser relati-vizado. “O universo ficcional está sempre muito presente”, diz, por sua vez, Elena Peres. “Há memória na ficção e ficção no testemunho, como também ocorre em outros autores.” A pesquisadora defen-de também a superação dos limites da literatura “de periferia, marginal” a que Carolina é frequentemente circunscrita. “Isso é importante, mas ficaríamos ape-nas com a visão do lugar e da época em que viveu após deixar sua família”, diz,

Carolina preferiu ser catadora de papel a empregada doméstica e nunca quis se casar

1 Parte de conto publicado postumamente, em 2014, e disponível on-line

2 Fragmento de um dos numerosos textos deixados por Carolina

do abolicionismo dos poetas românticos brasileiros e das ideias de intelectuais co-mo Rui Barbosa e José do Patrocínio, aos quais Carolina teve acesso por influência de um oficial de Justiça mulato de Sacra-mento, que lia trechos de jornais para os negros da cidade que não sabiam ler. Nos exíguos dois anos em que estudou numa escola espírita, Carolina tomou gosto pe-la leitura, e o primeiro livro que leu in-teiro, emprestado por uma vizinha, foi A escrava Isaura, do romântico Bernardo Guimarães. Dali para frente, continuou len-do tudo o que lhe caía nas mãos, entre livros achados ou recebidos em doação, o que for-mou um repertório de referência muito par-ticular. “Os escritos de Carolina têm trechos poéticos de um grande refinamento e que não correspondem exata-mente à literatura do período em que foram produzidos”, diz Elena.

Quando se mudou para São Paulo, em 1937, sozinha, deixan-do para trás família e livros, Carolina pas-sou a escrever furiosamente. Pelos rela-tos que deixou, sabe-se que sua cabeça era inundada por “pensamentos poéti-cos”. Uma de suas anotações diz: “Sentia ideias que eu desconhecia”. Para Elena, esse despertar inesperado dá continui-dade a uma espécie de missão de pro-cura da sabedoria incutida por seu avô e impregnada de uma cultura ancestral. “Talvez ela não houvesse vindo para São Paulo se não sentisse essa necessidade”, diz a pesquisadora. “Na cidade grande, Carolina se isolou e encontrou a literatu-ra.” Com isso, conjugou uma voz própria com a vivência que trazia do entorno. De acordo com Elena, a expressão “quarto de despejo”, numa metáfora da escrito-ra, refere-se à favela como um lugar em que a sociedade “guarda” o que não quer mostrar na sala de visitas.

O livro de estreia da autora foi recebido como um relato testemunhal da vida na fa-vela e, segundo Elena, no exterior continua residindo aí o interesse principal desper-tado pela escritora. O impacto e o incômo-do imediatos causados pelo livro foi tanto

Projetoescrita proibida. expressão romântica e diáspora afri ­cana nos manuscritos de Carolina Maria de Jesus (nº 2012/10784­6); Modalidade Bolsa no Brasil – Pós­dou­torado; Pesquisadora responsável elena Pajaro Peres (ieB­usP); Investimento r$ 164.743,02.Fo

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ao se referir às redes transnacionais que vem traçando a partir da obra da autora.

“Como escritora, Carolina está além das determinações imediatas”, ressalta Raffaella, que organizou e promoveu a publicação do livro Onde estaes felicida-de?, com dois contos inéditos da autora, em 2014 (disponível em www.letraria.net), e agora prepara a edição de um livro infantil e outro infantojuvenil. Em seu trabalho acadêmico, ela define a produ-ção de Carolina como uma “poética de resíduos”, na qual se misturam discursos e gêneros literários e não literários, dos poemas românticos aos textos jornalís-ticos, das letras de sambas à radionove-la e da norma culta à oralidade, à qual se incorpora um sotaque mineiro. Esse grande amálgama leva Raffaella a apro-ximar a atividade de catadora de papel à de escritora. “A literatura de Carolina também sobrevive de uma catação de discursos”, conclui. n

2

pESQUISA FApESp 231 z 83

A contabilidade da escravidão: na página ao lado, uma conta de compra de escravos em Luanda

À esquerda, uma livrança, espécie de papel-moeda comum em Angola

Documentos antigos

evidenciam papel dos

grandes negociantes de

Lisboa nas operações

com escravos em Angola

Em 1740, o português Domingos Dias da Silva era um capitão de navio que transportava tecidos, aguarden-te, vinho e armas de fogo para Luanda, o maior porto ligado ao tráfico de escravos em Angola, então uma colônia portuguesa. Silva vendia as mercadorias, re-

cebia parte do pagamento na forma de papéis chamados letras ou em livranças, que funcionavam como promissórias, e parte na forma de escravos. Depois de entregar os escravos no Bra-sil, ele trocava as letras por moedas de ouro, enchia os porões de açúcar e voltava para Lisboa, fechando uma viagem que poderia ter começado dois anos antes. Silva ganhou dinheiro suficiente para participar do leilão de contratos de escravos, promovido pelo governo português, e oferecer mais que os concorrentes. Depois de 25 anos, ele se tornara contratador, cobrando impostos em nome do rei sobre os negócios com escravos e acumulando riqueza, poder e prestígio.

Os banqueiros do tráfico

Carlos Fioravanti

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Sua trajetória expõe a complexidade comercial do tráfico de escravos entre Portugal, Angola e Brasil, que o historia-dor Maximiliano Menz, da Universida-de Federal de São Paulo (Unifesp), está reconstituindo por meio de dois con-juntos de documentos encontrados por ele na Torre do Tombo, um dos arquivos históricos de Lisboa. O primeiro con-junto, consultado pela primeira vez em 2011, são os quatro livros de contratos de exportação de escravos comprados em Luanda de 1763 a 1770. Nessa época, em média 9 mil africanos saíam por ano de Angola como escravos. Ao longo de três séculos, quase 6 milhões de africa-nos saíram principalmente de Angola para trabalhar nas minas de ouro e nas plantações de cana-de-açúcar do Brasil.

O segundo conjunto de documentos emergiu em outra viagem, em janeiro deste ano: são os cerca de 230 livros – quatro por ano, cada um com 600 pági-nas – dos registros de mercadorias que passaram pela alfândega de Lisboa ao serem embarcadas para Luanda de 1748 a 1807. Nos 28 livros que já examinou, Menz contabilizou cerca de 2 mil lança-mentos com nomes de pessoas e merca-dorias e concluiu que, embora os negó-cios estivessem concentrados nas mãos de grandes negociantes como Silva, cen-

tenas de pessoas participavam, até mes-mo padres, que poderiam enviar vinhos a serem trocados por escravos em Luanda. “Sim, padres”, diz ele. “Não havia pro-blema nenhum. Pelo padrão religioso da época, o tráfico de escravos era uma forma de salvar almas do inferno por-que os negros recebiam o batismo antes de entrarem nos navios rumo ao Brasil.”

Com esses documentos, Menz está ressaltando o papel central dos con-tratadores portugueses e dos con-

tratos de exportação na geração dos me-canismos de crédito e de capitais associa-dos ao tráfico de escravos. “O contratador funcionava com um banco, emprestando dinheiro por meio das livranças emitidas em Luanda como forma de pagamento pe-las mercadorias”, diz ele. “Os papéis eram trocados por dinheiro no Brasil, quando os escravos eram vendidos.”

Menz está confirmando uma hipótese do historiador Joseph Miller, da Uni-versidade de Virgínia, Estados Unidos: “Miller propôs que os mercadores de Lisboa, graças ao controle do contrato de escravos, monopolizavam o financia-mento do negócio, fazendo uso de uma série de privilégios garantidos por esses contratos e, desse modo, forneciam a maior parte das mercadorias que eram

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utilizadas para a compra dos escravos no interior de Angola”.

“Nessa época, os homens de negócio do Brasil atuariam principalmente no merca-do de fretes, oferecendo transporte para a mercadoria humana a ser vendida no Brasil”, propõe Menz, apresentando uma alternativa a uma visão comum entre his-toriadores, segundo a qual os negociantes brasileiros é que controlavam o tráfico. “É esta a interpretação nos trabalhos de Luiz Felipe de Alencastro, Manolo Florentino, Roquinaldo Ferreira e Alexandre Vieira Ri-beiro, mas existem pesquisas mais recentes que também reconhecem o protagonismo das comunidades mercantis de Lisboa ou dos mercadores de Luanda e Benguela, como as teses de Gustavo Acioli Lopes, Jaime Rodrigues, Daniel Domingues Dias Silva, Mariana Cândido e o doutorado, em andamento, de Jesus Bohorquez.”

Enquanto ao norte, nas regiões então chamadas de Guiné e Mina, os europeus ancoravam os navios nos portos e apenas compravam os escravos capturados por mercadores africanos, em Angola, por ser uma colônia portuguesa, a partici-pação dos europeus era mais intensa. Em Luanda, a capital, o tráfico de escra-vos havia se tornado a principal fonte de renda da população formada por portu-gueses e mestiços, que representavam

pESQUISA FApESp 231 z 85

tras doenças comuns. O risco maior era a perda de escravos, que muitas vezes não resistiam à travessia do oceano rumo ao Brasil, reduzindo o lucro. Para evitar esse risco, os negociantes preferiam receber o pagamento em livranças ou em letras, trocadas no Brasil por ouro ou produtos coloniais como açúcar, algodão e tabaco, enviados para Lisboa.

vista panorâmica de Luanda em 1755, com a sé, na cidade alta (à esquerda) e o forte de são miguel (à direita)

registro das exportações de escravos de benguela, oeste de Angola, em 1738

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Projeto uma história econômica do tráfico de escravos em Angola: financiamento, fiscalidade, transporte (c. 1730-1807) (nº 2014/14896-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – re-gular; Pesquisador Responsável maximiliano mac menz (unifesp); Investimento r$ 37.344,11 (FAPesP).

Artigo científicomenz, m. m. As geometrias do tráfico: o comércio metro-politano e o tráfico de escravos em Angola (1796-1807). Revista de História. v. 166, p. 185-222. 2012.

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A corrente de crédito funcionou até que Domingos Dias da Silva, como con-tratador, resolveu mudar as regras: pa-rou de emprestar para os outros comer-ciantes, por meio das livranças, e forçou a compra de mercadorias que ele en-viava de Lisboa. Não deu certo, porque quase ninguém tinha dinheiro vivo pa-ra usar. Segundo Menz, o governador de Angola, Francisco Inocêncio Couti-nho, pressionado pelos comerciantes, escreveu para Sebastião José de Carva-lho e Melo, o marquês de Pombal e se-cretário de Estado do reino. Em 1770, para encerrar a confusão, Pombal ex-tinguiu os contratos e determinou que os impostos sobre a venda de escravos seriam administrados diretamente pe-la Fazenda real. Apesar dos imprevistos, Silva aparentemente não faliu e anos depois morreu rico. O tráfico foi abolido em 1830, mas nos anos seguintes muitos escravos ainda foram capturados e enviados ilegalmente de Angola para o Brasil. n

metade dos cerca de 5 mil habitantes da cidade (a outra metade era de escravos, parte deles à espera dos navios que os levariam para as Américas).

Os portugueses financiavam a compra de escravos no interior pelos comercian-tes locais, em geral negros ou mulatos, que podiam dar calote ou morrer, por causa de malária, febre amarela e ou-

86 z maio DE 2015

Projeto investiga

o intercâmbio

científico entre

o Brasil e a

Alemanha nazista

Diplomatas no laboratório“A medicina teve papel importante nes-

sas relações diplomáticas porque gozava de grande prestígio internacional, embora não fosse uma ferramenta tão visível de propaganda cultural”, diz o historiador André Felipe Cândido da Silva, da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). “Durante o nacional-so-cialismo, a corporação médica alemã foi um dos segmentos que se alinhou mais es-treitamente ao novo regime. Os médicos, como representantes da arena acadêmica, eram porta-vozes convictos do intenso nacionalismo vigente. E havia a dinâmi-ca indústria farmacêutica, com interes-se em consolidar seus laços com clientes estrangeiros.” Silva explorou o papel da ciência na diplomacia cultural alemã en-tre 1919 e 1950, com ênfase na década de 1930, durante pós-doutorado realizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

HistóriA dA ciênciA y

cientistas alemães no aniversário de 80 anos de Bernhard-nocht (em destaque, na frente), fundador do instituto de doenças Marítimas e tropicais de Hamburgo, em 1937. rocha Lima participou da homenagem (ao fundo)

Juliana Sayuri

Nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, a cidade alemã recebeu mais do que delegações de atletas e turistas. Desembar-

caram também na “nova” Alemanha os primeiros estudantes latino-americanos atraídos por cursos, congressos e visi-tas a instituições médicas do país. As excursões cresceram nos anos seguin-tes, tornando-se itinerantes. Do Brasil, jovens graduandos, principalmente da Escola Paulista de Medicina, visitaram hospitais, laboratórios e órgãos oficiais, em missões médico-diplomáticas ma-nejadas por ministérios à época domi-nados pelo Partido Nazista. Algumas eram promovidas pela Academia Médica Germano-ibero-americana, fundada em 1935. O objetivo era fomentar as rela-ções médicas entre Alemanha e países da América Latina.

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Estado da Bahia noticia a visita de Ludolph Brauer, da Universidade de Hamburgo, a salvador em 1935

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Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Por diplomacia cultural entenda-se o esforço germânico que con-gregou diplomatas e cientistas, universidades, empresas e com-panhias de navegação, entre ou-tros atores.

Além das expedições cientí-ficas de estudantes, enfermei-ros, docentes, pesquisadores e até pacientes, algumas estraté-gias articulavam médicos e di-plomatas entre Brasil e Alema-nha. Havia periódicos especia-lizados, como a Revista Médica de Hamburgo, fundada por Lu-dolph Brauer, organização de encontros científicos interna-cionais, campanhas sanitárias, consolidação de produtos da indústria farmacêutica alemã e construções de hospitais por vezes voltados à assistência de imigrantes.

Enquanto no Brasil – espe-cialmente no circuito Rio-São Paulo – as faculdades de me-dicina ganhavam corpo, com maior especialização e interes-se tecnológico, sofisticação das técnicas de intervenção cirúrgi-ca e avanços em procedimentos de diagnóstico e profilaxia, a Alemanha já era ponta de lança do desenvolvimen-to científico. Ali foi elaborado o modelo médico que alicerçou a formação contem-porânea com o tripé ensino, assistência clínica e pesquisa universitária em Ber-lim, Göttingen, Heidelberg e Munique. Descobertas clínicas e inovações cirúr-gicas vinham de laboratórios de univer-sidades, indústrias e institutos alemães, que contavam com expoentes como Ro-bert Koch, Rudolf Virchow, Paul Ehrlich, Emil Kraepelin, Emil von Behring, August von Wassermann, entre outros.

As ciências tiveram impacto no contex-to político, às vésperas da Segunda Guer-ra Mundial. “Tornaram-se ingredientes importantes do prestígio nacional, ainda mais no ambiente de intenso nacionalis-mo”, diz Silva. Na análise do historiador, a experiência da Primeira Guerra já tinha demonstrado a importância de estruturar complexos nacionais de pesquisa cientí-fica, aliando instituições acadêmicas, in-dústrias, militares e Estado. “Além disso, o discurso científico contribuiu para legi-

timar ambições territoriais e pretensões de superioridade nacional e racial impor-tantes para conquistar a adesão interna e a externa, de aliados”, observa.

SUpErIorIDADE cUltUrAlDe acordo com Silva, médicos alemães se envolveram na propaganda cultural, persuadidos pela superioridade de sua cultura. Entretanto, após a Primeira Guerra, a ciência alemã ficou relativa-mente isolada quando parte dos cientis-tas se manifestou a favor do militarismo germânico. Ademais, físicos, médicos e químicos participaram de estudos como o desenvolvimento de gases letais. A ins-trumentalização do conhecimento para fins bélicos levou vários países a boicotar a ciência alemã até meados da década de 1920. “É importante, no entanto, distin-guir os diferentes níveis da cooperação científica transnacional para ter clareza de que muitos pesquisadores continua-ram mantendo contato informal com seus pares de países outrora inimigos. Em-bora repercutisse internacionalmente,

para os latino-americanos não teve praticamente nenhum efei-to uma política de boicote leva-da a cabo por organizações das quais muitos deles não faziam parte”, pondera.

O patologista e microbiologista carioca Henrique da Rocha Lima, por exemplo, se tornou um dos principais colaboradores da diplo-macia alemã nas décadas de 1920 e 1930. Rocha Lima descobriu a origem do tifo exantemático em 1916, no Instituto de Doenças Ma-rítimas e Tropicais de Hamburgo. Na volta definitiva ao Brasil, em 1928, foi uma liderança marcante do Instituto Biológico de São Pau-lo. O patologista Walter Büngeler, alemão de Danzig (atual cidade polonesa de Gdansk), escolhido para a cátedra da Escola Paulista de Medicina, pretendia ali iniciar um núcleo alinhado à ciência ale-mã – e correspondeu às expecta-tivas dos oficiais da chancelaria e do Partido Nazista, transforman-do a escola num celeiro científico para as iniciativas da Academia Médica Germano-ibero-ameri-cana, especialmente com as ex-cursões de estudantes.

O intercâmbio expressivo in-cluiu nomes como o oftalmologista An-tônio de Abreu Fialho, o psiquiatra An-tônio Pacheco e Silva, o dermatologista Adolfo Lindenberg, que foram convida-dos a visitar a Alemanha. Do outro lado, vieram ao Brasil médicos como Franz Volhard, Helmut Ulrici e Walter Unver-richt, Heinrich Huebschmann e Karl Fahremkamp, entre outros. Diretor do Hospital Eppendorf, Ludolph Brauer visitou o Rio, Salvador e São Paulo – ali ainda passou pela distante colônia de Presidente Epitácio, onde existia uma ativa célula do Partido Nazista. A defla-gração da Segunda Guerra Mundial, em 1939, abalou o intercâmbio científico, que acabou a partir da entrada do Brasil no conflito, ao lado dos Aliados, em 1942. n

ProjetoAs relações científicas germano-brasileiras no contexto da medicina paulista (1919-1950) (nº 2011/51984-5); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora res-ponsável Maria Amélia Mascarenhas dantes (ffLcH--UsP); Bolsista André felipe cândido da silva; Finan-ciamento r$ 227.531,91 (fAPesP).

Carlos Fioravanti

Expedição da família imperial

a Itatiaia em 1872 resulta em

livro raro, agora resgatado

Deve ter sido uma expedição peculiar – um botânico francês, a filha do imperador, então com 22 anos, e, certamente, muitos assistentes e carregadores

de bagagens –, da qual infelizmente não há imagens conhecidas. Em julho de 1872, Auguste Glaziou, botânico e paisagista de 39 anos havia 14 no Brasil, liderou uma expedição da qual a integrante mais notável era a princesa Isabel, primeira filha de dom Pedro II, então já casada com Luis Felipe de Orléans, o conde d’Eu, outro francês. Subiram ao maciço de Itatiaia, região montanhosa entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, então parte de uma fazenda, depois comprada pelo governo e transformada em parque nacional, o primeiro do país, em 1937.

Glaziou, certamente atento ao bem-estar da princesa, não deixou de coletar plantas típicas da montanha, que ele visitava pela primeira vez; o botânico Auguste de Saint-Hilaire já tinha percorrido a região cerca de 60 anos antes. Várias espécies se mostraram únicas da região, como uma planta do grupo das samambaias, a Polystichum rochaleanum, que cresce entre fendas de rochas nas

Acima, amostras de plantas colhidas em Itatiaia: presente para a filha do imperador

Ao lado, Glaziou, o líder da expedição

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A princesa e as plantas da serra

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o próprio imperador e suas filhas gostavam de botânica a ponto de manterem coleções de plantas e apoiarem Glaziou na construção de jardins e praças próximos à residência de verão da nobreza em Petrópolis, na região serrana do Rio. Glaziou cuidava também da ornamentação das exposições de plantas organizadas pela princesa Isabel, com distribuição de medalhas aos premiados pelas melhores plantas, selecionadas por um refinado júri. O imperador, a princesa e seu marido compareciam à abertura da exposição. Resgatando tais eventos, uma edição de O Estado de S.Paulo de 1967 descreveu: “A princesa contribuía com plantas e flores ornamentais, colocando ela própria os exemplares nos mostruários. As medalhas comemorativas destas exposições foram pagas pela conta particular de dom Pedro II”. A última exposição foi realizada em 1888, um ano antes do fim da monarquia no Brasil. n

áreas mais altas. Como os nobres gostavam de plantas, Glaziou reuniu uma amostra de plantas coletadas na expedição, fez um livro com um formato aproximado de uma folha de papel sulfite comum e 50 páginas, deu-lhe o título de Plantes cueillies sur l’Itatiaia au mois de juillet 1872, impresso na capa de couro verde, fez uma dedicatória e o entregou à princesa.

A filha do imperador deve ter gostado do presente porque o manteve quando a República tomou o lugar da monarquia e a família real se refugiou em Paris. A princesa Isabel mudou-se depois para a cidade de Eu, na Normandia, até morrer, em 1921. O livro foi doado pelas filhas da princesa ao Museu Nacional de História Natural de Paris e permaneceu por muitos anos quase sem leitores na seção de herbários históricos. Em 2013, Sergio Romaniuc Neto, pesquisador do Instituto de Botânica de São Paulo, trabalhava no museu de Paris para examinar a

capa do Plantes cueillies sur l’itatiaia: preservado em um museu de Paris

Ao lado, pico das Agulhas negras, em Itatiaia, em foto de 1870 de Alberto henschel, fotógrafo da casa Imperial

Princesa Isabel, em foto de 1875, com um bebê

botânicos começam a examinar com atenção as plantas do herbário da princesa, sabendo que podem encontrar espécies ainda não descritas ou talvez já desaparecidas, como parte de um grande trabalho para repatriação das informações sobre coleções botânicas mantidas em outros países (ver Pesquisa FAPESP nº 229).

A mãe de dom Pedro II, a imperatriz Leopoldina,

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coleção de plantas brasileiras formada por Saint-Hilaire, soube desse livro e, assim que conseguiu todas as autorizações, examinou-o e o fotografou. “Pouca gente sabia que essa coleção estava lá”, ele observa. Cada página contém amostras de várias plantas: a maioria são samambaias, com algumas rubiáceas, o grupo do cafeeiro, entre outras. Agora, Romaniuc e outros

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No início dos anos 1990, um conhecido dire-tor teatral se preparava para a estreia em Campinas de sua versão de Macbeth quan-

do notou uma senhora sentada no saguão desde cedo. Ao saber que esperava pelo início do espetá-culo, ofereceu lugar mais confortável. Ela recusou e ali ficou. Nem os grandes óculos nem o cabelo branco serviram para o encenador identificá-la como uma das mais respeitadas críticas de teatro do país. Dias depois, descobriu de quem se tratava ao ler os reparos duros ao espetáculo – e também aos outros que viriam a ser montados por ele. Foi a partir daquele momento que Ulysses Cruz deu início à rivalidade folclórica com Barbara Helio-dora a ponto de barrá-la em montagens futuras.

O episódio não é a única polêmica na carreira da estudiosa carioca especializada em William Shakespeare, a quem devotava tamanho empenho que poderia tomar um ônibus do Rio de Janeiro ao interior de São Paulo para avaliar a qualidade de uma adaptação. Barbara Heliodora, ou Helio-dora Carneiro de Mendonça, morreu em 10 de abril, aos 91 anos, mais de duas décadas depois de outro desafeto assim desejar. Gerald Thomas se arrependeria e pediria perdão à crítica. Outros nomes da cena teatral, contudo, nunca voltaram atrás e jamais aceitaram o rigor e o que conside-ravam excesso de Barbara na atividade que du-rou 25 anos em diversas fases da vida e veículos da imprensa.

Orlando Margarido

Arte

equilíbrio e rigor

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Especialista em Shakespeare,

Barbara Heliodora era reconhecida

pela dureza controversa no ofício

da crítica teatral e dedicação

ao ato de ensinar

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Tal aversão era recompensada pelos que a ad-miravam em igual ou maior número e talvez com o mesmo fervor exagerado. Tudo em decorrência do ofício que exercia com a autoridade de quem conhecia profundamente a obra do dramaturgo inglês e o teatro de Tchecov e Ibsen, entre tan-tos outros. Barbara começou a exercer a crítica na Tribuna da Imprensa, em breve passagem, e no Jornal do Brasil no fim dos anos 1950. A essa época, já contava uma década de seu bacharela-do em artes no Connecticut College, nos Estados Unidos, certificado mais tarde revalidado pela Faculdade de Letras da futura Universidade Fe-deral do Estado do Rio de Janeiro, a UniRio. Ali, com a experiência de dirigir o Serviço Nacional de Teatro e dar aulas no Conservatório Dramático Nacional, ingressou na Escola de Teatro em 1971. A convivência acadêmica terminaria na aposen-tadoria em 1985, quando já ostentava os títulos de professora emérita e decana da instituição. O gosto por ensinar nunca cessou. Tornaram-se famosos os cursos ministrados em sua residência do Cosme Velho, bairro do Rio, abertos a todos e frequentados por atores como Pedro Paulo Ran-gel e Marco Nanini.

O acúmulo de funções para complementar a renda ou pelo amor ao teatro seria uma caracte-rística da autora de ensaios, livros e traduções, com Shakespeare sempre à frente. O ofício de tradutora é sempre lembrado quando alguma

nova montagem do dramaturgo utiliza as ver-sões de Barbara no palco, a exemplo do que se deu com Timon de Atenas no ano passado, uma adaptação atualizada com Vera Holtz no papel do protagonista masculino, um mecenas milionário.

Menos pública, a atuação na universidade man-teve-se um tanto discreta. Enquanto seguia, para desespero de muitos, com suas críticas na revis-ta Visão ou em O Globo, onde permaneceu entre 1990 e 2014, Barbara formou na UniRio toda uma geração de atores, diretores e técnicos. Lecionou História do Teatro inclusive a uma das três filhas, a atriz Patrícia Bueno. “Era rígida como em tu-do, não facilitava para ninguém, e muito menos para mim”, lembra ela. “Mas todos a adoravam.”

NOtórIO SAberOutra aluna se tornou figura próxima e apre-ciadora. Claudia Braga garante ter sido a única orientanda de Barbara quando realizou seu mes-trado na UniRio com dissertação sobre o teatro brasileiro na Primeira República. “As pessoas tinham medo e não a escolhiam”, conta. “No início ela resistiu, dizia não conhecer o tema, e venci pela insistência; ela sabia tudo, mas era hu-milde e na dúvida pedia para eu procurar Décio de Almeida Prado.” Hoje professora na Univer-sidade Federal de São João del Rey, em Minas Gerais, Claudia relembra que a orientadora sim-plesmente mudou o eixo do tema proposto. “Ela me mandou ler os textos de teatro do período; sempre defendia que, se não se podia conhecer as encenações, fosse aos textos buscar a verda-de”, diz. Claudia retribuiu a generosidade do passado ao editar extensa coletânea com textos da autora carioca.

Um dos poucos momentos em que a crítica se distanciou do Rio de Janeiro foi para realizar na Universidade de São Paulo seu doutorado, em 1975. Em parte por não ter tal possibilidade na capital fluminense, em parte por ter afinidade com seu orientador, o professor americano Fre-dric Litto, ali baseado. “Eu a indiquei por notó-rio saber e ela já chegou para defender a tese”, conta Litto. O projeto, A expressão dramática do homem político em Shakespeare, tornou-se um livro de referência. Barbara permaneceu como professora titular da USP por sete anos e minis-trou ainda cursos de extensão. Litto lembra suas particularidades. “Era uma pragmática acima de tudo, inspirada pela escola americana, e não pe-la francesa, esta seguida por Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi.” Essa postura, comple-menta, e o fato de não adotar um ponto de par-tida ideológico comum à época na avaliação do bom teatro faziam a diferença. “Ela apostava na dramaticidade e não se comovia desnecessaria-mente; havia o equilíbrio e o rigor de não seguir com critérios que vão e vêm com os ventos.” n

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tonico Pereira e vera Holtz em Timon de Atenas (2014), obra de Shakespeare traduzida por Barbara

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92 | maio DE 201592 | maio DE 2015

Todo corpo tem uma história. A do meu descaminhou logo cedo. Aos dezesseis, idade em que os meninos aceitam desafios idiotas lançados por outros meninos, cavalguei

durante alguns segundos em um manga-larga recém-domado antes de comer poeira. Meus amigos acudiram. Levantei con-fuso, conferi que não havia sofrido o destino de Christopher Reeves, que na época ficara tetraplégico ao cair de um cavalo. Demos umas risadas e foi isso.

Dois anos depois, mochilando pela Europa, senti uma agu-lhada terrível nas costas a caminho da estação de trem. Tive de soltar no chão a carga que carregava, e acabei pedindo ajuda a outro viajante que também saía às pressas do albergue. Levou alguns anos para que se desenvolvesse uma dor crônica na lom-bar, e uma ressonância acusasse duas hérnias de disco entre as vértebras L3-L4 e L4-L5. O amortecedor da coluna, por onde passava um feixe de nervos até as pernas, tinha saído do lugar.

A dor não apenas me ensinou a tratar o corpo como algo mais que um apêndice do cérebro, ou um escravo de minhas sensações e desejos. Ela veio afirmar um continente que eu ignorava. Todos os pensamentos nasciam dele e o habitavam. Todas as convicções davam-lhe forma e o desdobravam; os temores o continham, preenchiam-no de ambiguidades. A descoberta do corpo foi o meu giro copernicano.

Não sabia, por exemplo, se uma dor se tratava com movimento ou repouso, frio ou calor. Desde moleque tive alguns quilos a mais. O que fazer? Entrei numa academia e aguentei umas se-manas. Fui caminhar; depois, correr. Li a obra final de Foucault sobre o cuidado de si pelos gregos antigos; sopesei a ergono-mia das cadeiras que utilizava todos os dias para trabalhar. A dor persistia, contudo, e o mundo passou a ser filtrado por ela.

Agendei com um ortopedista do convênio, que me reco-mendou quinze sessões de fisioterapia. Fiz nove e não obtive melhoras. Passei em outro clínico, um jovem autoconfiante que sentenciou:

“Não vou te enganar. É preciso cair na faca. Veja o que fa-remos”.

Mostrou uma pequena maquete de duas vértebras sepa-radas por hastes.

“Isso aí vai piorar a cada ano. Você vai começar a perder o movimento das pernas. O prognóstico é bastante ruim. Quan-do quiser, agendamos.”

Desolado, saí correndo de lá, maldizendo Hipócrates e toda a sua laia de carniceiros. Nunca me encostariam um bisturi. O tempo foi passando e a dor crônica começou a provocar os tais pinçamentos nevrálgicos, que enrijeciam os músculos das costas. Nos períodos de crise, passava dias deitado, à base de relaxantes musculares, analgésicos e anti-inflamatórios. Meus dias perdiam a regularidade, as atividades saíam do ritmo.

Na época em que a dor começou a irradiar para as pernas, minha tia contou do chinês que havia curado o seu bico de papagaio em poucas sessões. Custou-me vencer o ceticismo; perdi o seu número de telefone algumas vezes. Num outo-no particularmente difícil, fui vê-lo num pequeno sobrado de bairro. O próprio foi me receber no portão: um senhor na casa dos setenta anos, magro e baixinho, simpático à sua maneira. Narrei resumidamente o que passava, enquanto o chinês assentia com enfado. Pediu que eu me deitasse numa maca. Chacoalhou as duas pernas como se fossem sacos de golfe, ou engrenagens pouco azeitadas. Sorrindo, comentou: “Hérnia não. Dor: outra coisa”. Em seguida, indicou que eu

ficção

A via-crúcis e os mistérios dolorososTiago Novaes

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PESQUiSA fAPESP 231 | 93PESQUiSA fAPESP 231 | 93

Tiago Novaes é autor dos romances Estado vegetativo, Documentário e Os amantes da fronteira. Foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura (Estado vegetativo) e Jabuti (Tertúlia: o autor como leitor) na categoria teoria Literária.

aproximasse um dos joelhos dobrados contra o peito, man-tendo a outra perna estirada. Para o meu espanto, o chinês subiu na maca, apontou o pé para a minha nádega esquerda e começou a chutar em movimentos firmes, até que as duas pernas estivessem com o mesmo comprimento.

Passados quarenta minutos de estupefação e sudorese, ga-nhei a rua e a condição plena de vivente. Pela primeira vez em anos minhas costas não doíam. Contemplando a cidade pelo vidro do ônibus, estava de volta ao mundo. Poderia circular, dançar, praticar todos os movimentos do Sutra que quisesse. Curado, pensei. E agora saberia a quem recorrer.

O chinês faleceu pouco depois. As dores voltaram. Em vão busquei substitutos, e não achei ninguém que me chutasse as nádegas satisfatoriamente. Fiz algumas aulas de ginástica. Ajudou. Comecei o Pilates, que também mitigou as dores (há quem diga que a Yoga cai melhor). Pratiquei exercícios iso-métricos para fortalecer a musculatura paravertebral. Uma amiga sugeriu que eu mentalizasse o próprio corpo, esboçasse desenhos coloridos, visualizasse as energias. Minha analista perguntou por que, afinal, eu tinha de levar o mundo nas cos-tas. De quando em vez me entregava aos alongamentos. Um homeopata prescreveu comprimidos diários de vitamina D, após uma longa história que incluía o deslocamento da civi-lização para regiões de maior latitude. O homem, disse, tem sido acossado por inflamações desde que migrou da África para a Europa. Sugeriu que eu abolisse o leite, o café, o açúcar e o álcool. Deixei de tomar leite, café e açúcar durante alguns meses excelentes.

Adotei cada solução parcial com um manifesto ceticismo e uma esperança latente. A cada crise tudo parecia ruir: os esforços para tornar-me um bípede como o restante da raça humana pareciam inúteis. Minha idade dobrava. De susten-táculo, a complexa engenharia óssea de trinta e três vérte-bras tornava-se cruz, carma, neurose regressiva. Em vários momentos julguei que a saída era abdicar das saídas. Aceitar que tinha uma deficiência. Muitas outras vezes mandei esse papo de limites às favas e passei a noite dançando como se não houvesse amanhã. Às vezes saía ileso, às vezes pagava o preço.

Há algumas semanas me sugeriram a acupuntura como solu-ção. Na Wikipédia dizem que as pesquisas alopáticas compro-varam a eficácia da técnica, a ponto de os doutores quererem confiscá-la para si próprios. Com base na Medicina Tradicional Chinesa, a acupuntura se assenta nos princípios teóricos de Yin/Yang, na Teoria dos Cinco Elementos, nos oito princípios de Ba Gua, no fundamento dos órgãos Zang Fu, nos meridianos de energia, no padrão de seis níveis de Zhang Zhong-jin, no Triplo Aquecedor (San Jiao) e nos Quatro Estágios desenvol-vidos por sacerdotes das dinastias Ming e Qing. Mais não sei, porque os links da internet me conduziam a websites suspeitos.

Os resultados são milagrosos, dizem. As agulhas produzem efeitos no Sistema Nervoso Central, dizem. Liberam endorfina. Atuam no Sistema Nervoso Periférico. Liberam adenosina, com poder analgésico e anti-inflamatório. Até o papa pratica, dizem.

Vamos ver. Agendei uma consulta para a semana que vem. Não sei. Nunca se sabe. Depois conto como foi.

94 | maio DE 2015

legumes, que pareciam finalmente realizar o so-nho dos imigrantes, sem entenderem bem que, saídos de um mundo em transformação, é um mundo em transformação que encontram na nova terra, o mundo moderno que se delineia no horizonte, com o fim da escravidão, com a passagem da monarquia à República.

E é com tristeza que vemos esses mesmos par-reirais destruídos pela filoxera, que junto com as videiras destruirá os sonhos dos imigrantes de transmitir aos filhos e aos netos sua arte de cul-tivar as vides, renunciar a um trabalho marcado pela sucessão das estações do ano e do ciclo diário da luz solar e se submeterem, como operários, ao novo tempo exigido pelas fábricas – de formicida, de sabão e graxa, de cerâmica – instaladas nos lo-tes vendidos a preços de quase nada, e que mar-cam na paisagem o moderno modo de uso do solo.

Pelo diário conhecemos os imigrantes pelo nome e sobrenome, idade, dia de chegada e na-vio em que chegaram, número do lote a cada um destinado e o número das campas reservadas às numerosas crianças, na área pobre do Cemité-rio da Consolação, cujas mortes marcam tragi-camente o início da vida da colônia. E sabemos dos casamentos e dos batizados, e da festa que, de ritual de sacralização da colheita, momento de laetitia, mesma raiz de laetame (estrume), toma-rá ela também outro sentido, o tempo não mais marcado pelo repicar dos sinos, mas pelo horário dos trens, que trazem e levam pessoas de fora.

As páginas do diário narram a história da colô-nia. Mas é uma narrativa feita por outros: como os protagonistas do romance de Alessandro Manzo-ni, I promessi sposi, citado pelo autor na epígrafe, os protagonistas desta história são mudos. Com exceção de duas cartas, uma de Antonio Rossi, pai da vinicultura na Colônia de São Caetano, e outra em que se lê “siamo in tanti che mangia e pochi che guadagnia”, não ouvimos suas falas dialetais: sua única voz será a voz coral dos parreirais, que temporariamente marcaram a paisagem de São Caetano, a expressar sua identidade e evocar a terra natal, agora lontana.

D iário de uma terra lontana, o sugestivo tí-tulo deste livro do sociólogo José de Sou-za Martins, nos remete ao imaginário do

emigrante italiano, para o qual a América era a mítica terra lontana, de contornos indefinidos, terra de paz, trabalho, riqueza.

Mas o autor nos leva para dentro dessa terra lontana, o Núcleo Colonial de São Caetano, fun-dado em 1887, para onde foram encaminhados os italianos, principalmente do Vêneto, da Lom-bardia e do Molise, atribulados pelas guerras de unificação da Itália, no movimento conhecido como Risorgimento. E o faz através deste “diário”, onde são reunidos os “factos diversos” – peque-nas notas publicadas em jornais – e registros em arquivos públicos, no Brasil e fora dele, recolhi-dos ao longo de 60 anos.

É através desses “factos diversos” – não rele-vantes para a grande história, mas que entretecem a vida de cada dia, o cotidiano dos pobres e dos es-quecidos, dando outro sentido à própria história – que vemos desenrolar-se a vida do Núcleo Colonial, desde o tempo anterior à sua fundação, quando no lugar havia uma fazenda dos monges de São Bento, cuja senzala abrigaria os primeiros imigrantes, até depois, quando o núcleo desaparece, engolido pelos tentáculos da cidade que cresce, pela especulação imobiliária, pela nascente industrialização de São Paulo, que relega às suas margens as indústrias po-luentes, indesejadas nas áreas centrais.

Pelas páginas do diário, vemos delinear-se a paisagem, de contornos sempre fugitivos, em que a própria morfologia do terreno sofre mudanças, pelas formas de ocupação que nela se sucedem: vemos a planície encharcada, por onde correm rios que serão retificados e até mudarão de nome, e vemos modificar-se o perfil dos morros e das colinas, de onde, desde o tempo da fazenda dos beneditinos, era retirada a valiosa argila, base da moderna indústria de cerâmica. Vemos a constru-ção da ferrovia, que substituirá os longos trajetos em lombo de mulas ou em barcos ao longo dos caudalosos rios que transportavam os tijolos até o sopé do Mosteiro de São Bento, a ferrovia que reduzirá distâncias e marcará um novo tempo, o do horário dos trens.

E vemos na paisagem vicejarem os primeiros vinhedos e as plantações de frutas e verduras e

a voz coral dos parreirais

resenhas

Diário de uma terra lontanaJosé de Souza MartinsFundação Pró-Memória de São Caetano257 páginas

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Liliana Laganá

Liliana Laganá é doutora em Geografia, mestre em Língua e Literatura Italiana, autora de A última fábula, Terra amada e Estrelas do Sul (Casa Amarela/Caros Amigos).

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sidência da Fundação João Pinheiro e, dois anos mais tarde, ao comando da Secretaria de Ciência e Tecnologia de Minas Gerais. Em 1979, chegou a Brasília, para assumir a Secretaria de Tecnolo-gia Industrial do Ministério da Indústria e Co-mércio. Em paralelo, tornou-se vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências (1981-1995).

Vargas foi o mais duradouro ministro da Ciên-cia e Tecnologia do país. Foi escolhido para o cargo por Itamar Franco em 1992 e o deixou em 1999, ao final do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. O curioso é que se opusera à criação da pasta em 1985. Seu argumento: a ges-tão da ciência é importante demais para disputar verbas com outros ministérios e, por isso, deve-ria estar ligada à Presidência da República. Teve papel importante na consolidação do MCT, que havia sido ocupado por nove nomes diferentes em sete anos de existência. Com Itamar, Vargas investiu dinheiro das privatizações em projetos que já estavam em gestação, como o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron. A passagem pelo MCT mostra a sua influência na formulação de iniciativas hoje consolidadas, como o programa de cooperação espacial com a China, a implantação da Comissão Técnica Nacional de Biosseguran-ça e do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos, em Cachoeira Paulista (SP).

Em 2000, foi escolhido embaixador brasileiro na Unesco, o braço das Nações Unidas para Edu-cação, Ciência e Cultura. A atuação diplomática não era estranha a Vargas, que no início dos anos 1960 participara de missões brasileiras na Agên-cia Internacional de Energia Atômica, em Viena, e estivera durante sete anos no conselho execu-tivo da própria Unesco, que presidiu entre 1987 e 1989. Sempre manteve os laços com Minas Gerais. Professor aposentado da UFMG, segue orientan-do alunos de iniciação científica. Na parte final do livro, em que são transcritos depoimentos de co-legas e familiares, o perfil de Vargas se completa. Emerge o cientista com algo de imperial, daqueles que conseguem mobilizar, com naturalidade, um entourage de seguidores em torno dos muitos pro-jetos a que se dedicou; o homem de cultura vasta e grande memória; e o pai carismático, que incutiu o gosto pela ciência em suas três filhas, pesquisa-doras e professoras universitárias.

a biografia de José Israel Vargas, ministro da Ciência e Tecnologia (MCT) entre 1992 e 1999 e embaixador do Brasil na Unesco, é

leitura proveitosa para quem se interessa pela his-tória da ciência no Brasil na segunda metade do século XX e seus bastidores. Escrita pela socióloga Lígia Maria Leite Pereira, a obra tem como fonte principal as memórias de Vargas colhidas em mais de 30 horas de gravação, além de discursos e entre-vistas do pesquisador. O tom, às vezes, é o de um monólogo, com longos trechos entre aspas. Pela nar-rativa do cientista nascido em Paracatu (MG), em 1928, passeiam seus professores e alunos, familiares, cientistas brasileiros e estrangeiros, e políticos, em episódios que reconstituem mais de oito décadas da vida do cientista mineiro e da ciência brasileira.

Na primeira parte do livro, Vargas rememora a infância em Paracatu, onde a família tinha ne-gócios nos transportes e na mineração; a adoles-cência em Belo Horizonte, onde foi estudar num colégio de elite com grande esforço dos pais; e a decisão de estudar química, e não engenharia como sonhava a família. O início da trajetória científica aconteceu na graduação da Faculda-de de Filosofia da então Universidade de Minas Gerais, com um período de dois anos de estudo na Universidade de São Paulo. Vargas logo se encantou pela pesquisa nuclear, campo em que se doutorou em Cambridge. Como professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ajudou a formular a política nuclear brasileira no início dos anos 1960, atuação interrompida após a deposição de João Goulart. Com o fim do regime militar, retomou a influência: em 1985 ele presi-diu a Comissão Vargas, avaliação do programa nuclear solicitada pelo presidente José Sarney.

Transferiu-se para Grenoble, na França, como pesquisador do Centro de Estudos Nucleares do Comissariado de Energia Atômica, onde se de-dicou à pesquisa por seis anos e meio. De volta ao Brasil em 1971, logo seria requisitado para colaborar com as políticas modernizadoras do governo militar. Reassumiu a cátedra na UFMG e, indicado por Celso Furtado, foi convidado por José Pelúcio Ferreira, presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a trabalhar como consultor do órgão. A ascensão de Aureliano Cha-ves ao governo mineiro, em 1974, levou-o à pre-

Uma vida na arena da ciência

Desafiando fronteiras – trajetória de vida do cientista José Israel VargasLígia Maria Leite Pereiraeditora uFMGr$ 30,00 | 447 páginas

Fabrício Marques

96 | maio DE 2015

viés romântico da anticulturação. As duas autoras trabalham a produção política das reivindicações identitárias e os estatutos atribuídos pelo traba-lho missionário aos seus outros. Esta perspectiva também é desenvolvida por Iracema Dulley ao se debruçar sobre a interação dos agentes envolvidos no contexto das missões espiritanas no planalto central angolano.

Ressaltando a experiência indígena, Paula Mon-tero enfatiza como a narrativa salesiana não é “um simples produto da imposição de um olhar externalista e europeu”. Da mesma forma que o movimento missionário da Consolata e as missões católicas em Angola, os salesianos participam do engendramento da “tradição” dos indígenas e de suas “culturas”. A narrativa salesiana como todas as outras abordadas nos levam a pensar, acompanhando Montero, sobre as mediações que os antropólogos constroem ao produzir as suas etnografias. O que importa, segundo a autora, é compreender os contextos de mediação que ela-boraram nas narrativas missionárias. Alejandra Siffredi, por sua vez, demonstra como o conheci-mento, relacionalmente engendrado, se passa no interior de contextos em que índios e missionários disputam as categorias que empregam, não sem combates violentos, como ela insiste.

Os autores desta coletânea pressupõem que os conhecimentos são “impuros”, inseparáveis do seu tempo e tributários das relações que mantive-ram com seus “objetos”. Estes “objetos”/sujeitos na antropologia clássica foram, em uma grande medida, congelados e seus povos concebidos co-mo infensos aos contatos e à dominação colonial. Montero, ao asseverar que “o que a etnografia re-gistra em termos de alteridade já é, na verdade, um produto desse processo e, portanto, ela mesma se constitui em instrumento de mediação” desfe-re um rude golpe sobre a perspectiva etnológica clássica mencionada.

Temos um belo livro e um trabalho coletivo bem elaborado, concebido a partir de eixos co-muns. Certamente O antropólogo e sua bíblia vai se impor como uma referência obrigatória no seu campo de estudos.

acoletânea organizada por Melvina Afra Mendes Araújo, O antropólogo e sua bí-blia, versa sobre narrativas missionárias

como um fazer que revela aspectos cruciais das etnografias antropológicas. Temos aqui artigos sobre os Kanak e Maurice Lienhart; sobre os bantos de Moçambique e Henri Junot; sobre os mulçumanos do Sudão e o padre Joseph Ohrwal-der; sobre os Makuxi e os missionários Consolata; sobre as missões espiritanas do planalto central angolano; sobre as missões dos salesianos em regiões da Amazônia e de Mato Grosso e sobre os missionários católicos no Paraguai e as suas populações. Os artigos questionam as premissas que ordenam os modos missionários de narrar e de conhecer os indígenas, aproximando-os dos dilemas do fazer etnográfico.

Os textos reunidos versam sobre relações entre missionários e indígenas através das narrativas dos primeiros a respeito destes últimos. Trata-se pois de um livro que desvela o saber missionário e os dilemas vividos pelos antropólogos e missionários com e em relação aos seus outros.

Lorenzo Macagno ressalta como os missionários e os antropólogos efetuam suas reflexões a partir de uma genealogia de problemas que herdaram e que buscam até hoje ultrapassar. Através das noções de Kultur e Zivilisation, ressalta o autor, impôs-se uma tensão, embora histórica e sociolo-gicamente configurada, por meio do nosso legado iluminista e/ou romântico. Entre uma perspectiva de assimilação desses outros como parte de uma totalidade humana universal, de base iluminista, e a perspectiva de um desenvolvimento em separado, assentada em um pressuposto romântico sobre o caráter relativo dos “dados” obtidos, abrigam-se os missionários que discutem seus interesses e percepções relativos à proteção/tutela/conversão de seus outros ao cristianismo.

Assim, Patricia Azevedo descreve a forma pela qual a Igreja Católica “pôde gozar de uma situa-ção ímpar no processo de hierarquização social”, ligado, segundo ela, ao ordenamento das raças na administração colonial britânica. Melvina Araújo observa que os mecanismos de aculturação e de assimilação, elaborados pelos missionários em Roraima, abandonaram o que poderia ser con-siderado um projeto iluminista para adotarem o

Entre missões e mediações

o antropólogo e sua bíblia – ensaios sobre missionários-etnógrafosMelvina Araújoeditora FAP-unifespr$ 46,00 | 240 páginas

Patricia Birman

Patricia Birman é docente do Instituto de Ciências Sociais da universidade estadual do rio de Janeiro e pesquisadora do CNPq. e

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carreiras

PESQUISA FAPESP 231 | 97

Os anos 2000 marcaram um aumento na oferta de cargos ligados à engenharia, assim como de sua remuneração. O estudo “Trajetórias de engenheiros jovens brasileiros no mercado formal nos anos 2000”, realizado pelo Observatório de Inovação e Competitividade (OIC) do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP), analisou o mercado de desses profissionais. Foram acompanhados 9.041 engenheiros recém-formados com até 25 anos, por meio da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego, relatório anual de preenchimento obrigatório por todas as empresas. Profissionais informais, como prestadores de serviços ou pessoa jurídica, não foram incluídos no

estudo que serve também como orientação para os que deixam a universidade logo depois de formados ou ainda estudantes de mestrado e doutorado. O período analisado foi entre 2003 e 2012, quando os salários e os cargos ligados à engenharia cresceram, situação diferente ao período utilizado para comparação, entre 1995 e 2002.

O estudo mostrou que o salário de entrada dos jovens engenheiros em 2003 era 24% maior do que em 1995, já descontada a inflação do período. “Nos anos 1990, a área de engenharia não compensava financeiramente; ou se atingia o cargo de gerente, diretor, ou era melhor sair da área”, diz o economista Bruno César Araújo, responsável pelo estudo no OIC e

doutorando em Engenharia de Produção na Escola Politécnica da USP, sob a orientação de Mário Sérgio Salerno. Para ele, a engenharia é muito sensível à conjuntura dos investimentos realizados na economia. “Por isso, há dúvidas sobre o que vai acontecer nos próximos anos. Em momentos de crise a tendência é a queda nos atrativos da profissão.”

Os profissionais mais bem remunerados no período foram os engenheiros gestores em engenharia, como os gerentes de produção, e os gestores fora da engenharia, como os gerentes de recursos humanos (RH). O salário médio ficou em cerca de R$ 13,5 mil. O estudo divide a categoria em nove tipos. O que lidera, com 2.477 profissionais, é o dos engenheiros

Competitividade

A trajetória dos engenheirosproblemas estruturais e conjectura econômica interferem na profissão

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carreiras

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perfil

Decisão aplicadabiólogo especializado em genética é assessor científico em empresa e atua em entidades assistenciais

“Existe vida de pesquisa fora da academia”, garante Miguel Mitne Neto, assessor científico de Pesquisa e Desenvolvimento do grupo Fleury. “Infelizmente essas alternativas não são numerosas, mas

existe muito conhecimento para ser explorado na universidade de forma mais eficiente”, diz. Formado em ciências biológicas na Universidade de São Paulo (USP), Mitne Neto, de 33 anos, está no Fleury desde 2011, onde desenvolve testes moleculares. Ele já participou de oito produtos desde a fase inicial até a entrada no mercado, três deles voltados a leucemias, além de um teste de identificação de mutações no vírus HIV. Contou para a sua contratação no Fleury o conhecimento que ele adquiriu em genética durante o doutorado, que teve financiamento da FAPESP, no Instituto de Biociências (IB) da USP, além da experiência nos doutorados sanduíche na Universidade da Califórnia em San Diego e no Baylor College of Medicine, ambos nos Estados Unidos.

A tese de doutorado de Mitne Neto foi orientada pela professora Mayana Zatz, do IB e coordenadora do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CPGH-Cel), um dos centros de pesquisa, inovação e difusão (Cepid) da FAPESP.

“O meu caminho natural seria a docência, mas eu me perguntava se conseguiria ser pesquisador fora da academia e decidi tentar essa possibilidade nos últimos seis meses do doutorado”, lembra Mitne Neto. Foi quando apareceu a oportunidade no Fleury, empresa que mantém parceria com CPGH-Cel. “Agora consigo fazer pesquisa básica e aplicada em produtos nos quais eu não conseguiria trabalhar até a última fase, quando se transforma em produto final, o que acontece de forma bem limitada na universidade.”

Durante o doutorado e ao longo de seus trabalhos acadêmicos, ele tomou contato com a esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença neurodegenerativa que é fatal após três a cinco anos do início da enfermidade. Até 10% dos casos apresentam histórico familiar; os 90% restantes compreendem pacientes esporádicos, em que as causas são desconhecidas. Mitne Neto aprofunda na empresa um método para identificar uma proteína relacionada à ELA no organismo humano. Ele também atua como voluntário na função de coordenador científico da Associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica (Abrela) e do Instituto Paulo Gontijo (IPG), uma entidade sem fins lucrativos que desenvolve ações para o avanço dos estudos científicos e do esclarecimento sobre a doença para profissionais, pacientes e familiares. n M.O.

típicos, que ocuparam cargos diretamente relacionados com engenharia. Esse tipo, mais o de engenheiros típicos em transição, com 1.799 profissionais, representou 50% do total. Os de transição mudaram ou estão migrando para outras categorias como gestores, mas permanecem na atividade principal. Os engenheiros típicos foram os que, na média, ficaram mais tempo na ocupação, 70 meses. Em seguida, estavam aqueles que ocuparam postos de gestores no próprio setor, com 50 meses. O primeiro emprego foi conquistado nos estados de São Paulo, com 20% do total, Rio de Janeiro, 11%, e Minas Gerais, 8%. Um terço do total começou a trabalhar em empresas com mais de 250 empregados. A formação mais frequente foi na construção civil, com 18,4%, seguida de profissionais eletricistas, 14,8%, e mecânicos, 11,6%.

O cenário mostrado no estudo pode sofrer interferências com o desempenho econômico do país, mas esse não é o único fator determinante. “O fato é que o Brasil possui muito poucos engenheiros por habitante, estamos em último lugar nessa relação entre os 35 países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico]”, diz Carlos Américo Pacheco, diretor do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas (SP), e ex-reitor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Para ele, a demanda por esses profissionais está menos ligada à situação econômica momentânea. “O mercado reage rápido, mas a sociedade, como mostra a história recente, vai se adaptando e os engenheiros são muito versáteis, podem ocupar diferentes tarefas, principalmente como gerentes e diretores”, afirma. n Marcos de Oliveira

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> outras informações sobre a profissão na página 8

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