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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS - ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA DO LIVRO AO FILME: A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO DISCURSIVO EM O MEU PÉ DE LARANJA LIMA RITA DE CÁSSIA DIAS VERDI FUMAGALLI Frederico Westphalen, fevereiro de 2015.

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS - ÁREA DE CONCENTRAÇÃO:

LITERATURA COMPARADA

DO LIVRO AO FILME:

A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO DISCURSIVO EM

O MEU PÉ DE LARANJA LIMA

RITA DE CÁSSIA DIAS VERDI FUMAGALLI

Frederico Westphalen, fevereiro de 2015.

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RITA DE CÁSSIA DIAS VERDI FUMAGALLI

DO LIVRO AO FILME:

A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO DISCURSIVO EM

O MEU PÉ DE LARANJA LIMA

Dissertação apresentada ao Curso de

Mestrado em Letras – área de Literatura

Comparada, da Universidade Regional

Integrada do Alto Uruguai e das Missões –

URI, como requisito parcial para a obtenção

do título de Mestre em Letras - Literatura

Comparada.

Orientadora: Profª Drª Maria Thereza Veloso

Frederico Westphalen, fevereiro de 2015.

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA

A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação de Mestrado

DO LIVRO AO FILME:

A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO DISCURSIVO EM

O MEU PÉ DE LARANJA LIMA

Elaborada por

RITA DE CÁSSIA DIAS VERDI FUMAGALLI

como requisito parcial para a obtenção do grau de

Mestre em Letras

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________

Profa. Dra. Maria Thereza Veloso – URI

(Presidente/Orientadora)

_____________________________________________

Profa. Dra. Aracy Ernst – UCPEL

(Membro - 1ª Arguidora)

______________________________________________

Profa. Dra. Silvia Helena Niederauer – URI

(Membro - 2ª Arguidora)

Frederico Westphalen, 26 de fevereiro de 2015.

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AGRADECIMENTOS

Escrever uma dissertação é um processo individual em que o autor, frente à tela do

computador, registra suas impressões, questionamentos e leituras acerca de um tema ou de

uma ou mais obras, como o que se apresenta neste trabalho.

Porém, a construção e a conclusão de um trabalho acadêmico, como este, não se

consolidariam apenas com autores. Ao contrário, são frutos da contribuição de pessoas que

incentivaram a sua realização e que atuaram direta ou indiretamente para que objetivos

fossem alcançados e sonhos realizados.

Agradeço, desta forma, às pessoas que contribuíram para que este projeto acadêmico

se concretizasse:

A Deus, pois sem Ele nada seria possível.

A minha tia/mãe, Josefina Verdi, por ter acreditado em mim, mesmo quando todos

achavam loucura; por ter me abrigado em seu lar e construir tudo o que sou. Há um ditado

que diz: Mãe é aquela que cria! Mas não é uma verdade absoluta. Mãe é aquela que

cria, acolhe, educa, corrige. Agradeço a você, minha mãe do coração, por cada

oração, por ter me proporcionado educação e amor pelos estudos, e, apesar das inúmeras

dificuldades, por sempre me estimular a continuar. Obrigada por ser a apoiadora

incondicional de meus projetos pessoais e profissionais. Estes frutos do conhecimento

também são seus.

À professora Maria Thereza Veloso, pela sua sabedoria, paciência e confiança.

Agradeço as leituras atentas do projeto que deu origem a este trabalho, as análises de cada

capítulo que compõe este texto, as indicações bibliográficas e a orientação segura e tranquila

na produção desta dissertação.

Às professoras Aracy Ernst e Silvia Helena Niederauer, agradeço a leitura atenta do

texto apresentado no exame de qualificação da dissertação, bem como as indicações

bibliográficas e os apontamentos sobre o trabalho que sinalizaram caminhos para melhoria da

pesquisa.

Aos professores do Programa de Pós-graduação em Letras, agradeço as inúmeras

contribuições teóricas e as leituras críticas de obras e autores que me servirão para toda uma

vida profissional.

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À Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI e

funcionários, pelo serviço prestado e pela oportunidade de fazer um curso de tamanha

excelência como o Mestrado em Letras.

Aos colegas do mestrado, pela contribuição no processo de formação, em especial à

Carlete Maria Thomé, com quem dividi, nesses últimos meses, as angústias e inquietações

típicas de mestrando.

Aos meus sogros, José Fumagalli e Maria Beatriz, pelo apoio, incentivo e pela alegria

a cada página escrita.

À minha cunhada, Rosicler Fumagalli, a Luíz Bastos da Costa, Letícia e Pedro, por me

acolherem em sua família, pelo carinho e apoio. Vocês são a melhor definição de família que

possuo.

Aos demais familiares, que acompanharam minha caminhada e sempre torceram por

mim, pelo meu sucesso, vibrando a cada conquista.

E, finalmente, agradeço com muito amor e carinho à pessoa que mais contribuiu nesse

meu percurso e que mais me impeliu para frente, meu esposo Alex Fumagalli. Agradeço pela

infinita paciência durante os momentos difíceis de produção deste trabalho, os gestos de

carinho, o estímulo fortalecedor e as palavras de conforto quando as leituras ainda não se

concretizavam no papel. Enfim, por estar incessantemente ao meu lado e apoiar os meus

projetos de vida.

A todos vocês, meu eterno reconhecimento!

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O dizer não é propriedade particular. As palavras não são só nossas.

Elas significam pela história e pela língua. O que é dito em outro

lugar também significa nas “nossas” palavras. O sujeito diz, pensa

que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo

pelo qual os sentidos se constituem nele. Por isso é inútil, do ponto de

vista discursivo, perguntar para o sujeito o que ele quis dizer quando

disse “X”. O que ele sabe não é suficiente para compreendermos que

efeitos de sentidos estão ali presentificados.

(ORLANDI, 2013).

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RESUMO

Este trabalho propõe uma leitura intertextual do filme O Meu Pé de Laranja Lima, do diretor

Marcos Bernstein, em relação à obra literária homônima de José Mauro de Vasconcelos,

escrita em 1968. O enfoque do trabalho é o estudo dos processos de constituição discursiva do

personagem principal nas referidas obras. O estudo é iniciado com alguns conceitos essenciais

sobre Análise do Discurso de filiação francesa, a fim de apresentar a sustentação teórica de

minha proposta investigativa. Em um segundo momento, os estudos voltam-se para a relação

entre literatura e cinema, para que seja possível entender os elementos cinematográficos que

diferenciam a linguagem literária, verbal, da cinematográfica, predominantemente visual.

Procuro demonstrar, também, como a imagem em movimento pode ser considerada prática

discursiva. Por fim, por meio do cotejo entre as duas narrativas, procuro evidenciar o modo

como o personagem principal constrói seu discurso e por ele é construído nos dois objetos

significantes – o livro e o filme. O corpus do trabalho é composto por recortes discursivos

(RDs) tomados da obra literária, e, também, por recortes discursivos fílmico-imagéticos

(RDF-Is) tomados do filme. As reflexões sinalizam que o sujeito discursivo Zezé é um

personagem constituído discursivamente através de já-ditos em discursos outros, de outros

lugares e circunstâncias ideológicas. Portanto, em uma e outra linguagem, a sua é a voz de um

sujeito discursivo heterogêneo, fragmentado, inserido numa conjuntura sócio-histórica e

ideológica e desta resultante, processo esse evidenciado durante as reflexões analítico-

discursivas aqui contidas.

Palavras-chave: Análise do Discurso. Constituição discursiva. Sujeito discursivo. O Meu Pé

de Laranja Lima.

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ABSTRACT

This paper proposes an intertextual reading of the film Meu Pé de Laranja Lima from the

director Marcos Bernstein, in relation to the homonymous novel by José Mauro de

Vasconcelos, written in 1968. The work's focus is the study of discursive constitution

processes of the main character in these works. The study starts with some essential concepts

Analysis of Speech from French membership, in order to present the theoretical support of my

investigative proposal. In a second step, the studies turn to the relationship between literature

and film, so that you can understand the cinematic elements that differentiate the literary

language, verbal, the film predominantly visual. I try to show, as well, as the moving image

can be considered discursive practice. Finally, through the comparison between the two

narratives, I try to show how the main character builds his speech and it is built in two

significant objects - the book and the movie. The work corpus consists of discursive excerpts

(RDs) taken from literary, and also by filmic imagery-discursive excerpts (RDF-Is) taken

from the film. The reflections indicate that the discursive subject Zezé is a composed

character discursively through already-said in other speeches, other places and ideological

circumstances. So in one and another language, his is the voice of a heterogeneous discursive

subject, fragmented, set in a socio-historical context and ideological and will entail in this

process evidenced during the analytical-discursive reflections contained herein.

Keywords: Discourse Analysis. Discursive constitution. Subject speech. Meu Pé de Laranja

Lima.

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LISTAS DE ABREVIATURAS

AD - Análise de Discurso

CONTRE-PLONGÉE – câmera baixa, enquadrando o objeto de baixo para cima.

CP - Condições de produção

FLASHES – Imagens rápidas

FD - Formação discursiva

FI – Formação ideológica

PC – Plano de Conjunto

PG – Plano Geral

PM – Plano Médio

PA – Plano Americano

PPP – Primeiríssimo Plano

PLONGÉE – Câmera alta, enquadrando o objeto de cima para baixo

TRAVELLING – Movimento da câmera pelo cenário

Off – (fala em) – Que não pode ser dito e/ou ouvido em público, ou por terceiros

OMPLL – O Meu Pé de Laranja Lima

RDF-I – Recorte Discursivo Fílmico-Imagético

RD – Recorte Discursivo

SD – Sujeito Discursivo

SE – Sujeito Empírico

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ÍNDICE DOS RECORTES DISCURSIVOS FÍLMICO–IMAGÉTICOS (RDF-Is)

RDF-I 1 Zezé conversa com Jesus na igreja............................................................................ 77

RDF-I 2 Zezé e Luís sentados na calçada da praça ................................................................. 83

RDF-I 3 As crianças escutam a batida da porta do carro de Valadares .................................. 85

RDF-I 4 Zezé chega em casa com um peixe ........................................................................... 91

RDF-I 5 Zezé procura dialogar com o pai ............................................................................... 92

RDF-I 6 Zezé canta para o pai ................................................................................................. 92

RDF-I 7 Ariovaldo e Zezé cantam juntos na praça ................................................................. 93

RDF-I 8 O menino apanha do pai ............................................................................................ 93

RDF-I 9 Mãe e filho dialogam após a surra ............................................................................ 97

RDF-I 10 Zezé encontra vazio o sapato deixado na janela ................................................... 100

RDF-I 11 Glória encontra Zezé dormindo em baixo do pé de laranja lima .......................... 101

RDF-I 12 Manuel Valadares leva Zezé para comer bolo ...................................................... 103

RDF-I 13 Zezé conversa com o pé de laranja lima ............................................................... 103

RDF-I 14 Valadares e Zezé passam de carro em frente à escola .......................................... 104

RDF-I 15 Minguinho e Zezé chegam à casa de Valares ....................................................... 106

RDF-I 16 As luzes da casa do Portuga acendem ................................................................... 107

RDF-I 17 Zezé e Minguinho tentam fugir do trem Mangaratiba .......................................... 107

RDF-I 18 Zezé conta para o amigo Portuga que vai matar o pai .......................................... 108

RDF-I 19 Zezé e Luís brincam no quintal de casa ................................................................ 109

RDF-I 20 Os pai conversam com Zezé ................................................................................. 111

RDF-I 21 Zezé lembra o discurso do amigo Portuga ............................................................ 111

RDF-I 22 Resposta de Zezé ao discurso do pai ..................................................................... 111

RDF-I 23 Totoca reafirma que Zezé tem o Diabo no corpo ................................................. 119

RDF-I 24 Zezé rememora o discurso do irmão ..................................................................... 120

RDF-I 25 Pai e filho disputam o dinheiro que está na lata .................................................... 120

RDF-I 26 O pai fica com a lata de dinheiro .......................................................................... 121

RDF-I 27 Zezé e Glória conversam ....................................................................................... 121

RDF-I 28 Zezé reafirma que tem o Diabo no sangue............................................................ 121

RDF-I 29 Zezé encontra Totoca na fábrica ........................................................................... 122

RDF-I 30 Zezé reafirma novamente que é um Diabo ........................................................... 122

RDF-I 31 Zezé planeja jogar-se embaixo do Mangaratiba.................................................... 123

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SUMÁRIO

1 PRELIMINARES À ANÁLISE ......................................................................................... 12

1.1 Escolha e delimitação do corpus literário e cinematográfico. ....................................... 16

1.2 O Meu Pé de Laranja Lima: a obra e seu contexto histórico e social ........................... 17

2 ANÁLISE DO DISCURSO COMO PROCEDIMENTO INTERPRETATIVO ........... 24

2.1 Sentido e sujeito na Análise do Discurso. ..................................................................... 28

2.2 As condições de produção do discurso: o social, o histórico e o ideológico na

linguagem ................................................................................................................................ 33

2.3 A memória afetivo-discursiva e a constituição do sujeito no interdiscurso .................. 38

3 O CORPUS LITERÁRIO-CINEMATOGRÁFICO COMO MATERIALIDADE

PARA PESQUISAS EM ANÁLISE DO DISCURSO ......................................................... 44

3.1 Linguagem literária e linguagem cinematográfica ....................................................... 48

3.2 A Literatura no âmbito da Análise do Discurso ............................................................ 57

3.3 O cinema como linguagem imagética em movimento. ................................................. 61

4 DO LIVRO AO FILME: A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO DISCURSIVO EM O

MEU PÉ DE LARANJA LIMA .............................................................................................. 72

4.1 Tantas são as velhas árvores! Memória afetivo-discursiva: sentidos e significações em

OMPLL. .................................................................................................................................... 72

4.2 De fragmento em fragmento é que se constitui o sujeito: A constituição do sujeito

discursivo Zezé na materialidade discursiva de OMPLL ....................................................... 115

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 124

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 129

ANEXO .................................................................................................................................. 133

1. CD contendo os Recortes Discursivos Fílmico-Imagéticos (RDF-Is)........................ 134

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1 PRELIMINARES À ANÁLISE

Sendo os sujeitos seres que ocupam uma posição no espaço social, e, como tais,

produzem discursos determinados por lugares e tempos históricos, situando-se em relação aos

discursos dos outros, a presente investigação parte do pressuposto de que falar em discurso

significa atribuir a essa palavra a ideia de curso, de movimento e, desse modo, tratá-lo como

prática de linguagem em que se observa o homem falando. Nessa perspectiva, é de suma

importância ter um amplo conhecimento sobre os embasamentos teóricos e metodológicos da

Análise do Discurso – AD, de filiação francesa, escolhida como suporte analítico deste

trabalho, visando a uma melhor compreensão da forma como as pessoas significam e agem

por meio de seus discursos, por que o fazem e como organizam os diferentes discursos de

forma a causar impactos desejados ou não.

O discurso constitui-se em uma forma de movimento, realizado por meio da

linguagem, capaz de criar, reforçar, perpetuar e/ou desafiar práticas sociais, contribuindo para

que o sujeito do discurso construa sua própria identidade e sua maneira de significar no

mundo, considerando a produção de sentidos como constitutiva de sua vida enquanto sujeito

de linguagem. Partindo dessa premissa e do fato de que a exterioridade é constitutiva da

linguagem e, portanto, que as situações em que se produz o dizer (ORLANDI, 2013) são

relevantes na constituição dos sujeitos discursivos (SDs) – seja na literatura ou no cinema –,

este estudo se apresenta como uma reflexão sobre o processo de construção de um SD em

objetos significantes distintos, uma obra literária e, a outra, uma obra fílmica.

Recorde-se, a propósito, que a Análise do Discurso tem como preocupação norteadora

o imbricamento entre um modo de enunciação e o lugar histórico social de onde emerge essa

enunciação. Isto é, seu objetivo é apreender a linguagem enquanto discurso entendido este

discurso como a instância em que se materializa o contato entre o linguístico (sistema de

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regras, de categorias) e o não linguístico (aplicações sociais, históricas e psíquicas), pela

atividade de sujeitos que interagem em situações concretas. Discurso, portanto, é entendido

aqui como o ponto de articulação entre processos sócio-histórico-ideológicos e fenômenos

linguísticos.

Todos os dias a sociedade está em contato com diferentes textos, como artigos,

convites, documentários, entrevistas, notícias e narrativas pessoais que se apresentam por

meio de várias mídias, como Internet, rádio, televisão, cinema, folhetos, jornais, revistas,

outdoors. Todas essas formas de interação escrita ou oral, acompanhadas ou não de elementos

visuais – das quais os interlocutores participam, tanto como ouvintes, leitores (as) ou autores

(as) – são discursos.

É perceptível, como afirma Orlandi, que as palavras simples do nosso cotidiano já

chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se constituíram e que, no

entanto, significam em nós e para nós (2013, p. 20). Diante disso é tarefa da AD compreender

como o texto produz determinados sentidos, como os sentidos estão nele, como ele pode ser

lido ou interpretado.

Em síntese, segundo a mesma pesquisadora, a AD visa à compreensão de como um

objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos

(2013, p. 26). Essa compreensão, por sua vez, implica explicar como o texto provoca gestos

de interpretação que relacionam sujeito e sentido. Em vista disso, torna-se necessário

reconhecer a importância do discurso, conhecer as circunstâncias de sua produção e seus

efeitos para entendermos melhor como nos constituímos enquanto sujeitos, através do nosso

próprio discurso e pelo discurso do outro.

O ato de perceber essas diferentes vozes enunciativas, transpassadas pelo

interdiscurso1, que ajudam a compor as inscrições discursivas constituintes e constitutivas nas

obras a serem analisadas, bem como verificar como se dá a constituição do sujeito discursivo,

é o princípio norteador deste estudo, intitulado Do livro ao filme: A constituição do sujeito

discursivo em ‘O Meu pé de Laranja Lima’. O presente trabalho insere-se na linha de

pesquisa Comparatismo e Processos Culturais, do Programa de Pós-Graduação em Letras,

Mestrado em Letras, área de concentração em Literatura Comparada, da Universidade

Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Câmpus de Frederico Westphalen.

1 Compreende o conjunto das formações discursivas e se inscreve no nível da constituição do discurso, na

medida em que trabalha com a ressignificação do sujeito sobre o que já foi dito, o repetível, determinando os

deslocamentos promovidos pelo sujeito nas fronteiras de uma formação discursiva. O interdiscurso determina

materialmente o efeito de encadeamento e articulação de tal modo que aparece como o puro “já dito”

(FERREIRA, 2005, p. 17).

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O estudo propõe uma leitura intertextual do filme O Meu Pé de Laranja Lima (2012),

de Marcos Bernstein, em relação à obra literária homônima, de José Mauro de Vasconcelos,

escrita em 1968. O enfoque do trabalho é o estudo dos processos de constituição discursiva do

sujeito, representado pelo personagem Zezé, entendido como ser de linguagem, construído a

partir de uma identificação provocada por uma interpelação, por um discurso, ou seja, um

efeito de sentido entre sujeitos, que se dá ideologicamente pela sua inscrição numa dada

formação discursiva2. Conforme Pêcheux (1997a), os indivíduos são ‘interpelados’ em

sujeitos falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam

‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes (1997a, p.161). Dessa

forma, o indivíduo está inscrito na linguagem e consequentemente é afetado por fatores

históricos e ideológicos que o situam em determinada formação discursiva (FD) que gera

certos efeitos de sentido entre os locutores.

Durante o processo analítico, investigarei como Zezé, personagem principal das obras

constrói seu discurso em um cenário saturado por discursos outros e de outros, com os quais e

a partir dos quais estabelece alguma forma de relação dialógica. O estudo da constituição do

sujeito, através do seu discurso, busca compreender como o personagem se constrói na

relação com o outro, em que as palavras e imagens desempenham a função de organizar a

narrativa, tanto na obra literária quanto na fílmica, ao mesmo tempo em que é constituinte do

comportamento social e da consciência da personagem-sujeito discursivo.

Em O Meu Pé de Laranja Lima, Zezé recupera, através de seu discurso, suas

impressões de uma infância difícil, em que era um menino vítima de violência física e

psicológica e recebia rótulos como demônio, coisa ruim etc., devido às travessuras da idade,

vindos de um tempo outro, de um já-lá em um discurso de outrem, em relação ao seu

comportamento e atitudes. É nessa forma-sujeito3 que Zezé se constitui enquanto SD,

passando a acreditar com veemência nos discursos negativos que impregnam a formação

discursiva que o determina enquanto sujeito e pelos quais constantemente se martiriza.

2 A formação discursiva é a matriz de sentidos que regula o que o sujeito pode e deve dizer e, também, o que não

pode e não deve ser dito, funcionando como lugar de articulação entre a língua e discurso. Uma formação

discursiva é definida a partir de seu interdiscurso e, entre formações discursivas distintas, podem ser

estabelecidas tanto relações de conflito quanto de aliança (FERREIRA, 2005, p. 15).

3 Forma-sujeito (FS) é a forma pela qual o sujeito do discurso se identifica com a formação discursiva que o

constitui. Esta identificação baseia-se no fato de que os elementos do interdiscurso, ao serem retomados pelo

sujeito do discurso, acabam por determiná-lo. A forma-sujeito é responsável pela ilusão do sujeito (FERREIRA,

2005, p. 15).

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Levando em conta as considerações citadas e os fundamentos teóricos da AD, que tem

seu foco no estudo da língua funcionando para a produção de sentidos (ORLANDI, 2013,

p.17) é que se delineia esta pesquisa, partindo da perspectiva de que a linguagem não é

transparente e de que os estudos de AD possibilitam que o homem e a língua sejam

entendidos em suas concretudes e não enquanto sistemas abstratos.

Dessa maneira, a escolha pela linha de pesquisa não aconteceu por acaso. Ao

contrário, foi guiada pelo desejo e pela oportunidade de constituir este projeto de pesquisa

com base nessa linha teórica. Todavia, essa é uma questão intrigante e instigante para quem

deseja ser um analista de discurso, pois, em se tratando de pesquisa em AD, surge o grande

desafio de como fazer a análise? Porém, acredito que, como afirmam Ernst-Pereira e Mutti no

artigo O Analista de Discurso em Formação: apontamentos à prática analítica, não é apenas

o gosto pela linha de pesquisa que nos motiva, mas, a partir do lugar que ocupamos,

Podemos arriscar justificativas desse gosto pela análise de discurso, sem

universalizá-las, é claro, mas com base naquilo que mais nos toca. Seria, uma delas,

que esse enfoque parece desenvolver no analista uma sensibilidade especial para

olhar a linguagem e nela perceber o social. Outra justificativa, que o referencial

discursivo responderia à necessidade de indignar-se diante de alguns dizeres e

algumas práticas correntes identificados na vida em sociedade, pondo em suspeição

alguns sentidos que pairam e nos governam, como se fossem verdades

inquestionáveis. E, ainda, outra: pela própria formação de origem, que ficou em nós

fortemente marcada, qual seja, o enfoque da língua, o gosto de mexer com a língua

no seu uso pelos sujeitos. Pois então: será que valeria a pena analisar discurso, se

não fosse para entrar em um debate que pensasse modos de viver com mais justiça e,

sobretudo, de exercer o direito de inquietar-se, interrogar, participar? (ERNST-

PEREIRA; MUTTI, 2011, p. 818).

Tomando como base as palavras de Ernst-Pereira e Mutti (2011), acredito que este foi

o desejo que me motivou a escolher a AD como base teórica para esta pesquisa, pois, como as

autoras abordaram, ela oferece recursos pelos quais é possível pensar no sujeito e no sentido

conjuntamente, refletindo sobre a ideologia e a política. Portanto, penso que esta pesquisa

poderá contribuir para o aprofundamento dos estudos sobre os processos de constituição dos

sujeitos, somando-se às pesquisas já realizadas em AD. Busco evidenciar, ainda, que não é o

dito pelo sujeito Zezé que constitui o seu discurso, mas como esse dito implica um sentido,

considerando que as palavras significam diferentemente conforme a posição discursiva desse

sujeito no momento da interlocução.

Evidencio, também, que o objetivo não é questionar o valor estético da obra nem sua

fortuna crítica e processo de produção. A atenção aqui está voltada unicamente para o

discurso de um sujeito que não é dono de sua fala e que se constitui discursivamente da

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palavra do outro. Por esse viés, é que analisarei a aproximação entre o texto narrativo literário

e o texto narrativo fílmico, observando a forma pela qual o sujeito se estruturou e se constituiu

discursivamente em ambas as obras.

1.1 Escolha e delimitação do corpus literário e cinematográfico

Muitas vezes lemos um livro que nos marca para toda a vida. O Meu Pé de Laranja

Lima é um desses livros. Já se vão muitos anos desde a minha primeira leitura desta obra.

Tinha uns dez anos quando o li, era ainda uma criança impúbere. Entretanto, identifiquei-me

muito com a obra, não só pela realidade do menino Zezé, que era pobre e sofria agressões do

pai, dificuldades e experiências que também vivenciei quanto tinha quase a mesma idade do

personagem, mas pela ternura, pelo tom de meiguice que o autor deixa transparecer no texto

e, principalmente, pela forma como o menino Zezé transita entre a realidade e o imaginário a

fim de suportar as vicissitudes da vida.

Quando busquei orientação para o trabalho de conclusão do Mestrado, o gosto pela

linha de pesquisa e a possibilidade de usar como suporte teórico os princípios da Análise do

Discurso (AD) influenciaram na definição do objeto de pesquisa, embora naquele momento

ainda não bem definido, precisando de mais especificidades. A escolha definitiva do corpus

literário surgiu a partir do lançamento, em 2012, e da estreia nos cinemas brasileiros, em abril

de 2013, de uma nova versão cinematográfica da obra O Meu Pé de Laranja Lima4, de José

Mauro de Vasconcelos. Como já conhecia a obra original e possuía um vínculo de

identificação com a mesma, e levando em conta que a obra original, publicada em 1968,

tornou-se um clássico da literatura infanto-juvenil brasileira, surgiu-me a ideia de aproximar

as duas linguagens, literária e cinematográfica, e iniciar um aprofundamento nos estudos, pelo

viés da Análise do Discurso, das referidas obras.

A nova versão cinematográfica dessa história, que encantou diferentes faixas etárias da

população, dirigida e adaptada por Marcos Bernstein, permite conhecer melhor o aspecto

imaginativo presente no livro e impressiona pela delicadeza e atuação do personagem Zezé

(João Guilherme Ávila) e do seu querido inimigo, o Portuga (José de Abreu). Além do mais,

chama-me a atenção a forma como o autor constrói discursivamente esses sujeitos-

personagens, que se constituem ideologicamente através do seu próprio discurso em relação

4 Algumas edições, trazem o título do livro como Meu Pé de Laranja Lima. No entanto, optei por utilizar o nome

da publicação original: O Meu Pé de Laranja Lima.

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ao discurso do outro. Muitas vezes, esses discursos carregam marcas tristes ou chocantes,

essenciais para a produção de sentidos no interior das narrativas. Assim, optei pela análise das

obras fílmica e literária de O Meu Pé de Laranja Lima, uma vez que as mesmas vieram ao

encontro dos objetivos que proponho neste trabalho de pesquisa.

Nessa esteira, o fio condutor das narrativas é a língua, pois através dela o sujeito

traduz e explicita seus pontos de vista. Trabalhar com a AD possibilita entender a prática da

linguagem, ou seja, o homem falando. Possibilita, ainda, a compreensão da língua enquanto

trabalho simbólico que faz e dá sentido, que constitui o homem e sua história.

Essa capacidade do homem em atribuir, incessantemente, sentidos que promovem seu

constante devir e o das coisas, é o primeiro norteador deste estudo. Sob o enfoque

comparatista5, busco apresentar uma leitura intertextual do filme O Meu Pé de Laranja Lima

(2012) de Marcos Bernstein, em relação à obra homônima de José Mauro de Vasconcelos, O

Meu Pé de Laranja Lima. Evidencio ao longo do trabalho os recursos que os autores

utilizaram para constituir os personagens discursivamente, na transposição da narrativa

literária para a fílmica.

Assim, tomo a AD como arcabouço teórico para análise do corpus dessa pesquisa, e O

Meu Pé de Laranja Lima, uma obra cuja história perdura no tempo, com centenas de edições,

que marcou gerações, migrou para outras linguagens, cinema, telenovela e quadrinhos, para

outros países além do seu de origem, e que, embora opiniões divergentes, trata-se de um

discurso pulverizador de todas as categorias tradicionais, que nos faz reviver o mundo da

infância, uma infância pobre, difícil e, entretanto, cheia de maravilhas, a começar pela

laranjeira de Zezé. Dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, Zezé ri, chora, sofre. Em resumo,

vive plenamente a sua infância, fato que levou tantas pessoas, de diferentes idades, a se

identificarem com a história de um menino que um dia descobriu a dor. Essa empatia,

aceitação e identificação do público com a obra fez com que o livro atingisse um sucesso

editorial e popular que chega até nossos dias, realidade que se comprova pelo número de

edições da obra, que alcançou, em 2012, a sua 117ª edição, além de uma nova adaptação

fílmica quarenta e cinco anos após a primeira.

1.2 O Meu Pé de Laranja Lima: a obra e seu contexto histórico e social

5 Refere-se ao processo de cotejar uma obra com outra, observando de que forma o sujeito se constitui em

diferentes linguagens.

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José Mauro de Vasconcelos nasceu em 26 de fevereiro de 1920, em Bangu, no Rio de

Janeiro. Filho de família numerosa e muito pobre, ainda menino, foi viver com uns tios em

Natal, capital do Rio Grande do Norte, onde passou a infância e a juventude. Ainda em Natal

ingressou na faculdade e frequentou durante dois anos o curso de medicina. Voltou para o Rio

de Janeiro, trabalhou como treinador de peso-pena e carregador de bananas na capital carioca

e, posteriormente, de garçom em uma boate em São Paulo. José Mauro de Vasconcelos

percorreu o país e empregos diversos, porém, todos estes empregos o mantinham na linha da

miséria.

Além de sua peregrinação por diversas atividades Brasil afora, Vasconcelos teve

também uma experiência no exterior e ganhou uma bolsa de estudos na Espanha, da qual

usufruiu apenas uma semana, pois não suportou a vida regrada de um acadêmico. Ao invés de

estudar, resolveu conhecer toda Europa. De volta ao Brasil, explorou a região do Araguaia

junto aos irmãos Villas-Boas, lutando pelos índios e, assim, conhecendo um ambiente hostil.

Toda essa experiência, associada à memória e imaginação privilegiadas e à enorme

facilidade de contar histórias, resultou em uma obra literária de qualidade reconhecida

internacionalmente: foram vinte e um livros, entre romances e contos, com traduções

publicadas na Europa, Estados Unidos, América Latina e Japão.

Porém, seu maior sucesso editorial surgiu em 1968, sob o título O Meu Pé de Laranja

Lima, relato autobiográfico, dotado de carga emocional, atingindo um público variado. O

romance conquistou os leitores brasileiros, do extremo norte ao extremo sul, quebrando todos

os recordes de vendas.

O ano 1968, ano da publicação da obra, foi um ano de uma década marcada na história

como Os anos rebeldes, devido ao grande movimento jovem de repercussão mundial, em

protesto ao sistema econômico favorável a uma minoria e aos sentimentos de melancolia

gerados pelas guerras decorrentes desse mesmo sistema.

Depois das duas grandes guerras, a Guerra Fria e as independências (descolonização)

no terceiro mundo (Ásia e África), vieram a reconstrução da Europa e dos países atingidos

diretamente com os combates. O Brasil, além de um incentivo no comércio, provocado pelas

guerras, passa a viver momentos de agudo nacionalismo permeado por sofrimentos e

melancolias.

Após o golpe civil-militar de 1964, que destituiu o presidente João Goulart do cargo e

deu ao general Castelo Branco o título de novo presidente do Brasil, o país iniciou uma longa

ditadura, que perdurou até 1985, como comenta Araújo, Silva e Santos (2013) em seu livro

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Ditadura militar e democracia no Brasil: histórias, imagem e testemunho, organizado e

publicado pela editora Ponteio. Segundo as autoras, nesse período de ditadura no Brasil,

Lideranças políticas e sindicais foram presas, parlamentares cassados, militantes

exilados. A ditadura fechou os partidos políticos existentes e criou dois novos:

Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e Movimento Democrático Brasileiro

(MDB), um partido de situação e outro de “oposição consentida”. O novo governo

editou Atos Institucionais com os quais criava condições excepcionais de

funcionamento “legal” para atos ilegais e arbitrários (ARAUJO; SILVA; SANTOS,

2013, p. 19).

Durante todo esse período, os brasileiros tentavam resistir e lutar contra a ditadura de

variadas formas. Estudantes, artistas e intelectuais saíram às ruas contra o sistema, em

passeatas de protesto contra as autoridades; o show realizado no Teatro Opinião, no Rio de

Janeiro, foi uma das primeiras manifestações contra a ditadura. Estudantes, entre 1966 e 1968,

realizaram inúmeras passeatas e manifestações políticas em várias cidades do país, levantando

a bandeira Abaixo a ditadura militar. A Passeata dos Cem Mil, realizada em junho de 1968

no Rio de Janeiro, foi um dos marcos desse momento.

Toda essa repressão e autoritarismo do governo tiveram auge em 1968, com a

promulgação do AI-5 (Ato Institucional nº 5), que proibia o que fosse contrário ao regime,

com determinação de terríveis punições aos desobedientes. Os fatos atingiram a cultura.

Muitos artistas resistiram algum tempo, mas depois tiveram que fugir para continuarem

vivendo.

A situação era paradoxal, como afirma Regina Zilberman em seu livro Como e por

que ler a literatura infantil brasileira (2005), isso porque, segundo a autora: diante desse

quadro, as pessoas se encolheram, e tal repressão afetou a cultura, sobretudo o cinema e o

teatro, artes que mais direta e imediatamente dependem do público (ZILBERMAN, 2005, p.

46).

A literatura não escapou da repressão. No entanto, sofreu menos. A literatura infantil,

que até então não era lembrada, talvez porque não era vista, apresentou-se como uma válvula

de escape por onde os produtores culturais-escritores, ilustradores e artistas em geral,

tiveram condições de manifestar ideias libertárias e conquistar leitores (ZILBERMAN, 2005,

p. 46).

A partir daí, foi como se a literatura infantil brasileira começasse a recontar a história,

rejeitando o que a antecedeu e recusando mecanismos simplórios de inserção e aceitação

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social. Porém, essa tendência na literatura e cultura não parece ter sido assumida pelo autor

José Mauro de Vasconcelos, que não manifestou seu apoio ao regime político do período.

Vasconcelos representa em sua obra um Brasil de sua época, nacionalista, marcado

pelo desenvolvimento acelerado. Esse fato pode ser evidenciado através das descrições

presentes em sua obra, como é o caso das cenas descritas, em que se reporta ao

desenvolvimento, por exemplo, quando faz várias menções ao trem, na época símbolo de

desenvolvimento econômico e social. Em sua obra, apresenta, ainda, as desigualdades que

todo esse acelerado desenvolvimento econômico capitalista causou à população mais carente,

como é o caso da família de Zezé, protagonista de O Meu Pé de Laranja Lima, que sofre

diretamente os efeitos da pobreza.

Porém, o foco do autor não estava em provocar a reflexão no leitor sobre o sistema,

não era seu objetivo denunciar esse sistema, diferentemente das outras obras do período,

como as cartilhas redigidas enfatizando normas morais e didáticas. Vasconcelos não retratou a

dor política dos finais dos anos 60, que era cantada nas ruas. Ao contrário, preferiu registrar

em sua obra outra dor, não menos importante, a dor de crianças marcadas pela desigualdade

social e econômica.

Dessa forma, sua obra distanciou-se e diferenciou-se de obras com caráter de

imposição ideológica, que marcava o contexto social e político da época em que foram

publicadas. Este levantamento histórico é importante, considerando que José Mauro de

Vasconcelos também foi um dos escritores da literatura considerada adulta que passou a

escrever para o que se poderia considerar um público infantil. Não se sabe ao certo se tal fato

ocorreu por motivos externos, vindos da repressão imposta pela ditadura, ou se por

necessidade de um romance autobiográfico que abordasse sua infância.

De qualquer forma, O Meu Pé de Laranja Lima demonstra a urbanização da literatura

e também um início da literatura social que aborda a pobreza, os aspectos sociais e as

dificuldades de uma criança e não apenas o ambiente rural ou fantasioso. A literatura de

Vasconcelos, portanto, configura-se como uma das pioneiras da literatura infantil com

preocupação social.

O Meu Pé de Laranja Lima conta a vida diária de um menino pobre, de cinco anos,

vivendo numa periferia carioca nos fins dos anos 20, no bairro de Bangu, que passa por

inúmeras desventuras, mas que vive a ternura da fantasia através de suas fugas da realidade,

de uma realidade dura e incontestável.

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Zezé vive suas travessuras, suas fantasias de criança. É nelas que se refugia quando

brinca ou quando é vítima da brutalidade dos adultos. Sua família é totalmente desestruturada,

o pai encontra-se desempregado e a mãe trabalha incessantemente para mantê-los, recebendo

um pequeno salário da fábrica onde era empregada. O maior sonho de Zezé era ganhar um

presente no dia de Natal, mas dizia que o menino Jesus nunca nascia para ele, só para crianças

ricas.

O livro reúne uma série variada de passagens, que vão das artes engraçadas ou

ingênuas do menino (outras nem tanto) até a crise profunda por que passa com a morte de seu

amigo adulto, o português Manuel Valadares. E tudo entremeado por surras memoráveis,

episódios de amizade e ternura entre diferentes personagens e regado fortemente com

lágrimas e enternecimentos.

Diante do estado de total miséria da família, Zezé, incompreendido pelos adultos por

ser um menino travesso, fora dos padrões exigidos pela sociedade, cria um mundo de fantasia

para se refugiar dos problemas cotidianos e da brutalidade com que os adultos o tratam. Este

mundo compõe-se de seu quintal e animais da casa, lugar onde o protagonista leva seu irmão

menor, Luís, para experimentar as fantasias do universo infantil.

Dividido em duas partes, a primeira nos apresenta o menino vivendo suas travessuras e

surras junto à família, enquanto que a segunda é dedicada à amizade com o português,

dramaticamente interrompida pela morte deste num acidente, mergulhando o menino num

grande sofrimento. Esse sofrimento, causado pela morte do português Manuel Valadares,

torna-se ainda mais intenso com o corte de seu pé de laranja lima, seu outro fiel e eterno

amigo, devido ao fato de que aquele local abrigaria futuramente uma rua, forçando a

prefeitura ao corte da árvore.

Os dois fatos, simbolicamente, marcaram a mudança da infância para uma vida

precocemente adulta do menino, o fim de suas fantasias, devaneios, ilusões e esperança de

uma vida melhor do que aquela, de um menino que sofreu com a falta de estrutura financeira

e psicológica da família que, entre travessuras e terríveis surras, padeceu, segundo o próprio

Zezé, como nem uma criança poderia padecer.

Selecionada como representativa da boa literatura juvenil, a obra é recomendada para

ser trabalhada nas escolas até hoje, o que mostra a atualidade de sua recepção junto aos

leitores. Com o grande número de vendagem, a obra atinge o status de best-seller e é adaptada

pela antiga TV Tupi entre novembro de 1970 e agosto de 1971, e pela TV Bandeirantes, entre

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setembro de 1980 e abril de 1981, como telenovela. Também foi adaptada para o cinema, em

filme dirigido por Aurélio Teixeira, lançado no ano de 1970.

Em 2003, O Meu Pé de Laranja Lima foi publicado na Coreia do Sul, em forma de

quadrinhos, numa edição com 224 páginas ilustradas, desde modo atendendo a diferentes

leitores e espectadores. Em 2012, uma nova versão cinematográfica, dirigida por Marcos

Bernstein, foi produzida e exibida durante o Festival do Rio. A estreia foi em 19 de abril de

2013.

No Brasil, a obra literária encontra-se em sua 117ª edição, de janeiro de 2013. Nem

sempre as edições foram criadas no mesmo projeto editorial. Em algumas o projeto gráfico foi

alterado, principalmente a primeira e a quarta capas – alterações provocadas provavelmente

pela busca de novos e mais leitores, para dar uma aparência de oferta de um novo produto.

A edição tomada como corpus desta pesquisa é a última, 117ª, publicada de acordo

com a nova ortografia da língua portuguesa, e apresenta duas capas iniciais. Na capa original,

o menino Zezé encontra-se sob o pé de laranja lima, sentado sobre nuvens e estrelas,

simbologia de uma infância permeada por sonhos e fantasias, representada pelo pé de laranja

lima que é o centro das fantasias de Zezé.

O livro ganha em sua última edição uma capa extra, sobreposta à capa original. Nesta

sobrecapa, a ilustração ganha uma roupagem atual, pois apresenta a mesma imagem do cartaz

do filme, sob o título O livro que inspirou o filme. Nesta imagem, Zezé aparece sentado ao

lado de seu amigo Manuel Valadares, ambos, sob o pé de laranja lima, agora não mais

ilustrado como nas edições anteriores, que mostravam a laranjeira em tamanho menor, com

poucas folhas e sem frutos. Ao contrário, nesta edição, a árvore apresenta-se copada, crescida,

bem desenvolvida e carregada de frutos amarelos.

Zezé está com uma expressão séria e triste, olhando para a árvore como se buscasse

respostas para todos os mistérios de sua vida, enquanto é observado pela olhar atento,

carinhoso e preocupado do amigo Portuga. Essa edição de 2013, com estas duas capas, sugere

vários sentidos ao leitor. Considerar a edição de um livro é considerar a trajetória que vai do

texto ao leitor, já que é o momento em que o texto se torna objeto material e encontra seus

leitores previstos pelo editor.

Tendo em vista os aspectos históricos e sociais apresentados até agora, evidencio que

o livro O Meu Pé de Laranja Lima, semelhante a outros produzidos no período do início da

literatura, como as obras de Perrault, que dedicou seus contos para jovens da corte, também

não pode ser considerado totalmente infantil, uma vez que, apesar de sua linguagem acessível

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e seu caráter fantasioso em certos momentos (especialmente uma árvore que fala), também

registra uma história de vida e trata de assuntos como perda e morte dos entes queridos. Se

não houvesse o fator fantasia, a obra poderia ter-se encaixado na literatura infantil e realista

da década de 70, mas o lirismo e a fantasia existentes na obra não permitem tal comparação.

Na narrativa, Zezé se relaciona o tempo todo com Minguinho, uma árvore de laranja

lima, transferindo para ela afetividades e suas experiências de vida de menino de cinco anos.

Segundo Orlandi (2013), o sujeito vai se construindo na relação com o Outro, em um cenário

saturado por discursos outros e de outros, com os quais e a partir dos quais estabelece alguma

forma de relação dialógica. Dessa forma, identificando o pé de laranja lima e o português

Manuel Valadares como o outro responsável pela constituição e identificação do sujeito

discursivo Zezé, este estudo pretende analisar como o menino vai amadurecendo e se

constituindo discursivamente em suas atitudes volitivo-emocionais e qual a influência e

importância de seus amigos, sua família e o contexto sócio-histórico nesse processo.

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2 ANÁLISE DO DISCURSO COMO PROCEDIMENTO INTERPRETATIVO

Inicialmente, a fim de delimitar meu campo de estudo, apresento algumas

considerações sobre a AD de filiação francesa, que fornece o suporte teórico para a pesquisa

objeto desta Dissertação.

A AD surgiu na França, na segunda metade do século XX, como uma teoria da leitura,

rompendo com uma tradição de práticas teórico-analíticas voltadas para interpretação, tais

como empreendidas pela hermenêutica e pela análise de conteúdo. Essa teoria foi oficialmente

inaugurada em 1969, com a publicação da obra de Michel Pêcheux, denominada Análise

Automática do Discurso (AAD), e com a publicação da revista Langages, organizada por Jean

Dubois. A AD, na conjuntura política e intelectual francesa, toma o discurso por objeto de

estudo. Essa corrente das ciências da linguagem busca articular o linguístico e o social,

demonstrando as relações que vinculam a linguagem à ideologia.

A AD surge, então, como uma disciplina que propõe problematizar as maneiras de ler,

considerando a opacidade como característica constitutiva da linguagem. Ao mediar a relação

com o texto, essa disciplina possibilita que se enxerguem formas de significação que

dificilmente seriam vistas a olho nu, ou seja, que seriam invisíveis sem os dispositivos

teóricos de análise fornecidos por essa disciplina. A AD acredita que há mais sentidos além

do que está explicitado na superfície linguística, portanto, não estabelece ao discurso um

sentido único e fechado. Cabe ao analista explicitar o caminho pelo qual se chegou ao sentido

evidente (e se calou outros possíveis), como mostra Maingueneau, de acordo com Pêcheux:

A Análise de Discurso não pretende se instituir como especialista da interpretação,

dominando ‘o’ sentido dos textos; apenas pretende construir procedimentos que

exponham o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica de um sujeito [...] o

desafio crucial é o de construir interpretações, sem jamais neutralizá-las, seja através

de uma minúcia qualquer de um discurso sobre o discurso, seja no espaço lógico

estabilizado com pretensão universal (PÊCHEUX apud MAINGUENEAU, 1997, p.

11).

Nessa perspectiva, é importante para a AD que sejam considerados os sujeitos, suas

inscrições na história e as condições de produção da linguagem. Analisam-se, assim, segundo

esse domínio de estudo, as relações estabelecidas entre a língua e os sujeitos que a empregam

e as situações em que se desenvolve o dizer, permeadas pelo contexto histórico e ideológico

em que o sujeito está inserido. Nesta abordagem, o processo de análise discursiva busca

interrogar os sentidos estabelecidos em diversas formas de produção, que podem ser verbais e

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não verbais. A interpretação desse caráter pode ser entendida pela definição discutida em

Foucault (1997). Para o autor, o discurso é

Um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação

discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível

e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar na história; é constituído de

um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de

condições de existência. O discurso, assim entendido, não é uma forma ideal e

intemporal que teria, além do mais, uma história; o problema não consiste em saber

como e por que ele pôde emergir e tomar corpo num determinado ponto do tempo; é,

de parte a parte, histórico - fragmento de história, unidade e descontinuidade na

própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de

suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade e não de seu

surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo (FOUCAULT, 1997, p.

135- 136).

Na concepção do filósofo, todo discurso tem um sentido. Os sentidos são produzidos

face aos lugares ocupados pelos sujeitos em interlocução. A AD destina-se a evidenciar os

sentidos do discurso, tendo em vista suas condições sócio-históricas e ideológicas de

produção. As condições de produção compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação

social. As palavras têm sentido em conformidade com as formações ideológicas em que os

sujeitos (interlocutores) se inscrevem.

Diante do exposto, pode-se resumir que o discurso é a materialização das ideologias

histórica e socialmente construídas, e que toma forma a partir da linguagem. A ação do

discurso gera o efeito dos sentidos, que são compreendidos como a significação do discurso

por diferentes grupos ou indivíduos sociais. O discurso só acontece a partir das relações

dialéticas dos indivíduos que, dependendo dos seus lugares histórico-sociais, apreenderá e

caracterizará efeitos, sujeitos, discursos e ideologias.

Dessa forma, a interação na construção das relações dos sujeitos entre si, com o

mundo e sua história, é fundamental para a AD, uma vez que o sujeito não pode ser visto de

forma individualizada, mas considerado um ser social. Integrado a um espaço coletivo, ele

constrói sua relação com outros sujeitos e com o mundo utilizando-se da palavra. A AD só

pode ser desenvolvida a partir do conhecimento de certas categorias e proposições que estão

interligadas a uma série de procedimentos. É importante que o analista tenha em suas mãos,

dispositivos de análise que permitem trabalhar numa posição que seja relativizada diante da

interpretação. De acordo com ORLANDI (2013), é preciso que ele (o analista) atravesse o

efeito de transparência da linguagem, da literalidade do sentido e da onipotência do sujeito

para que, no funcionamento do discurso, na produção de seus efeitos, ele não reflita apenas no

sentido do reflexo, da imagem, da ideologia, mas reflita no sentido do pensar, porque na AD

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procura-se compreender a língua fazendo sentido enquanto ação simbólica resultante do

trabalho sócio-histórico-cultural do homem. Assim, AD concebe a linguagem como mediação

necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso,

torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação

do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do discurso está na base da

produção da existência humana (ORLANDI, 2013, p. 15).

Com base nas reflexões acerca do discurso feitas pela autora, é possível perceber que a

AD trabalha com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando,

considerando a produção de sentidos enquanto membros de uma determinada forma de

sociedade. Para Pêcheux e Fuchs, a teoria do discurso é a teoria geral da produção de efeitos

de sentido e dos sintomas representativos dos efeitos de sentido no interior da superfície

(PÊCHEUX & FUCHS, 1997, p. 148).

Segundo os teóricos não se pode definir a ausência de um efeito de sentido senão

como a ausência específica daquilo que está presente em outro lugar: o não dito (PÊCHEUX

& FUCHS, 1997, p. 148). Por isso, o que o sujeito diz deve sempre ser referido às condições

em que ele diz. Conforme já mencionado neste trabalho, para a AD, o que é pertinente não é o

conteúdo apresentado em um discurso qualquer, mas a confrontação do discurso que o sujeito

sustenta em relação ao que ele diz e faz em outro lugar, isto é, em relação a outros papéis

discursivos cujos efeitos podem ser apreendidos em outro lugar.

Este efeito de sentido entre locutores, sobre o qual discorrem os teóricos, significa

que no discurso o sentido está na relação entre sujeitos e não nas palavras, assim como no

filme o sentido está na relação entre produtor (es) e espectador(es). E mais, o sujeito está para

o discurso no plano da constituição, assim como o autor está para o texto enquanto uma

unidade com começo meio e fim, no plano da formulação.

Dessa maneira, os estudos discursivos visam a pensar o sentido dimensionado no

tempo e no espaço das práticas do homem, descentrando a noção de sujeito e relativizando a

autonomia do objeto da Linguística. No entanto, é possível observar que a AD não trabalha,

como ocorre na Linguística, com a língua fechada nela mesma, mas com o discurso, que é um

objeto sócio histórico em que o linguístico intervém como pressuposto. Também não se

trabalha com a história e a sociedade como se elas fossem independentes do fato de que elas

significam (ORLANDI, 2013, p.16).

Essa prática da AD se produz pela reflexão sobre a maneira como a linguagem está

materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na língua, ou seja, a disciplina em

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questão trabalha com o pressuposto de a materialidade específica do discurso ser a língua e,

dessa forma, trabalha a relação língua-discurso-ideologia. Tal relação se completa com o fato

de não existir discurso sem sujeito ou sujeito sem ideologia, conforme afirma Orlandi (2013):

não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em

sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido ( p.17).

Em vista disso, a AD de linha francesa articula o linguístico, o social e o histórico. Sob

seus pressupostos, a linguagem é estudada não apenas enquanto forma linguística, mas

também como forma material do discurso, ou seja, é no contato histórico com o linguístico

que se constitui a materialidade específica do discurso (PÊCHEUX, 2008, p. 8). Essa

materialidade do discurso interessa-se por estudar a língua funcionando para a produção de

sentidos (ORLANDI, 2013, p.17), o que permite analisar unidades além da frase, ou seja, o

texto.

Deste modo, quando surge, nos anos 60, a AD se constitui como uma teoria de

entremeio, por seu entrelaçamento com a linguística (novo estruturalismo: releitura realizada

por Saussure), a psicanálise (nova teoria do sujeito: releitura lacaniana de Freud) e a

sociologia (novo marxismo: releitura de Marx por Althusser). A AD pressupõe então o legado

do Materialismo Histórico, como mostra Orlandi,

Há um real da história de tal forma que o homem faz história, mas esta também não

lhe é transparente. Daí, conjugando a língua com a história na produção de sentidos,

esses estudos do discurso trabalham o que vai-se chamar a forma material (não

abstrata como a da Linguística) que é a forma encarnada na história para produzir

sentidos: esta forma é portanto linguístico-histórica (ORLANDI, 2013, p.19).

A Linguística constitui-se pela afirmação da não transparência da linguagem e possui

como objeto próprio a língua, com uma ordem própria, o que é também importante para a AD,

que procura mostrar que a relação linguagem (pensamento/mundo) não é direta, nem se faz

termo-a-termo (ORLANDI, 2013). Já a história possui o seu real afetado pelo simbólico, ou

seja, os fatos reclamam sentidos. Nessa perspectiva, o sujeito é descentrado, pois, como

descreve Orlandi, ele é afetado pelo real da língua e também pelo real da história, não tendo

o controle sobre o modo como elas o afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito do discurso

funciona pelo inconsciente e pela ideologia (2013, p. 20).

Dessa maneira, forma e conteúdo não são separados nos estudos discursivos, pois se

procura compreender a língua não só como uma estrutura, mas, sobretudo como

acontecimento. Assim, a Linguística funciona como uma estrutura na qual e por meio da qual

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a AD se configura enquanto processo e movimento. Nesse sentido, a Psicanálise mostra-se

muito importante para a AD, também. É através dela que entendemos o deslocamento da

noção de indivíduo para a de sujeito que se constitui na relação com o simbólico, com a

história. Sobre isso, comenta Orlandi (2013):

Se a Análise do Discurso é herdeira de três regiões do conhecimento – Psicanálise,

Linguística, Marxismo – não o é de modo servil e trabalha uma noção – a de

discurso – que não se reduz ao objeto da Linguística, nem se deixa absorver pela

Teoria Marxista e tampouco corresponde ao que teoriza a Psicanálise. Interroga a

Linguística pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o Materialismo

perguntando pelo simbólico e se demarca da Psicanálise pelo modo como,

considerando a historicidade, trabalha a ideologia como materialmente relacionada

ao inconsciente sem ser absorvida por ele (ORLANDI, 2013, p.20).

Cabe aqui esclarecer que a AD não toma esses três campos de saber e simplesmente os

adiciona para formar sua teoria. Parafraseando Orlandi (2013), a AD constrói metodologias

adequadas para diferentes funcionamentos discursivos e tem seu objeto próprio – o discurso.

Portanto, a AD de linha francesa é utilizada neste trabalho como procedimento interpretativo

para análise das obras que compõem o corpus deste estudo, a fim de observar, a partir dos

pressupostos teóricos evidenciados, que o discurso não pode ser considerado como simples

expressão do pensamento e, sim, algo produzido a partir de uma dada exterioridade,

carregando em seu interior elementos que estão interligados ao lugar social, histórico e

ideológico em que o sujeito está inserido.

A AD possibilita analisar os discursos que atravessam uma obra literária e a

constituem, bem como as condições de produção desses discursos e como os sujeitos se

constituem ao longo da narrativa. Ela serve de base a este estudo para que seja possível

observar, ao longo da análise, no cotejamento de diferentes obras, uma fílmica e outra

literária, como esse processo de significação ocorre, evidenciando fatores que incidem sobre a

linearidade ou fragmentariedade da narrativa, sobre o poder alusivo e elusivo do discurso

literário-fílmico. Nessa direção, para o desenvolvimento desta pesquisa, entendo que seja

fundamental delinear algumas noções teóricas, que julgo relevantes para a análise proposta.

2.1 Sentido e Sujeito na Análise do Discurso

Uma das primeiras lições para quem estuda a AD de linha francesa é a de que se deve

eliminar a noção de mensagem, entendida como um mecanismo de comunicação, em que se

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tem um emissor, um código, um receptor, um canal, que para Jakobson, era mais ou menos

equivalente à noção de sentido, de conteúdo, de um texto. Em AD, sustenta-se que o sentido

não está atrelado ao significante, que um texto pode ter muitos sentidos, que o sentido é antes

um produto, resultado de um processo: uma produção, cujos efeitos são efeitos de sentido.

Nessa assertiva, aquela maneira de ver o sentido, como mensagem codificada, na AD

deve ser substituída pela noção de efeito de sentido entre interlocutores, ou seja, como sentido

em jogo e em movimento definido a partir da posição que o sujeito ocupa (PÊCHEUX,

1997a, p. 82).

Na AD, não se trata do sentido enquanto entendimento, enquanto tradução, enquanto

racionalização, e sim de sentido como efeito/produção de uma enunciação, o que não descarta

o entendimento oriundo desse efeito. Dessa forma, a língua não funciona como um código

que se presta à transmissão de informações entre locutores. No lugar dessa ideia, a AD

procura mostrar que a linguagem se configura como um lugar de inscrição do discurso, ou

seja, o material, no qual se inscreve, é da ordem do discurso. Este, por sua vez, materializa-se

na língua e nela se inscreve, determinando seu funcionamento.

Com isso, a língua só funciona porque é afetada por fatores históricos e sociais que

inscrevem sentidos nas práticas discursivas. Colocar a língua em funcionamento pressupõe

um processo complexo, no qual sujeito e sentido se constituem mutuamente.

Nessa perspectiva, a língua pode ser vista como um campo material; esse campo só

funciona porque é afetado por algo que não é tão somente da ordem da língua, ou seja, esta

passa a ser vista como cadeia material que significa porque nela se inscrevem sentidos de

práticas sociais que se processam historicamente, discursivamente. Os sentidos não estariam,

dessa forma, no sistema linguístico, mas no processo de produção simbólica ininterrupta, isto

é, nas práticas sociais que realizam um trabalho de simbolização, deslizando no tempo e no

social, construindo, reconstruindo, interditando e reativando sentidos.

Assim, o sujeito não pode ser visto como o controlador do dizer, como se os sentidos

do que ele diz se inaugurassem nele. É essa a preocupação da AD, pôr em questão a ideia de

concepção de sujeito, aquele sujeito que perde a polaridade centrada ora no eu, ora no tu e vai

se enriquecendo através da relação entre identidade e alteridade. Para a AD, o centro dessa

relação não está nem no eu, nem no tu, mas no espaço discursivo entre ambos. Dessa maneira,

um discurso não se constrói sobre a realidade, mas sempre sobre outro discurso.

Para Michel Pêcheux (1997c), o sujeito constrói sua identidade na interação com o

outro e o espaço dessa interação é o texto. O texto encena, dramatiza essa relação. Nele, o

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sujeito divide seu espaço com o outro porque nenhum discurso provém de um sujeito

primitivo que, num gesto inaugural, emerge a cada vez que fala/escreve como fonte única do

seu dizer. Não há, portanto, um entendimento de sujeito como indivíduo singularizado a

priori. O que ocorre são processos de subjetivação que se dão na esfera do discursivo. A

propósito, Pêcheux (1997c) evidencia que a constituição do sentido e do sujeito acontece

através da interpelação ideológica. Conforme o autor,

O sentido de uma palavra, de uma expressão de uma proposição etc., não existe “em

si mesmo” [...] mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas

colocadas em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e

proposições são produzidas (PÊCHEUX, 1997c, p. 160).

Assim, a noção de sujeito em Pêcheux, é determinada pela posição, pelo lugar de onde

se fala. E ele fala do interior de uma formação discursiva (FD), regulada por uma formação

ideológica (FI). E isso o leva a conceber uma subjetividade assujeitada às coerções da FD e da

FI. Essas considerações do teórico Pêcheux acenam para a ideia de que as palavras,

preposições e expressões, mudam de sentido conforme as posições sustentadas por aqueles

que as empregam. Isto significa que elas adquirem o seu sentido em referência às formações

ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. Nessa concepção, ocupa um papel

fundamental o conceito de FD, que norteia a referência à interpelação/assujeitamento do

indivíduo em sujeito do seu discurso. Essa FD se constitui como um espaço discursivo, onde

enunciados ganham sentido. Para Pêcheux (1997c), o conceito de formação discursiva é

definido como

Aquilo que, numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de classes,

determina o que pode e deve ser dito/articulado sob a forma de uma arenga, de um

sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc. (PÊCHÊUX,

1997c, p.160).

Esse conceito possibilita o fato de que sujeitos falantes, tomados em uma conjuntura

histórica determinada, possam concordar ou se afrontar sobre o sentido a dar às palavras.

Dessa forma, conforme Pêcheux (1997c), a formação discursiva é uma unidade dividida, a

qual, embora seja passível de descrição por suas regras de formação, por suas regularidades,

não é uma, mas heterogênea, não de forma acidental, mas constitutiva. Assim no interior de

uma mesma FD coabitam vozes dissonantes que se cruzam, entrecruzam, dialogam, opõe-se,

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aproximam-se, divergem, existindo, pois, espaço para divergência, para as diferenças, pois

uma FD é constitutivamente frequentada por seu outro (PÊCHEUX, 1997c, p. 57).

Decorre daí a afirmação evidenciada através dos apontamentos do teórico, de que

sujeitos falantes podem concordar ou se afrontar sobre o sentido a dar às palavras, isso porque

todo sujeito tem a capacidade de colocar-se no lugar em que o seu interlocutor ouve seu

discurso. Ele pode antecipar-se ao seu interlocutor quanto ao sentido que suas palavras

produzem. Segundo Orlandi, esse mecanismo é utilizado para que sujeitos produzam sentidos

às palavras pensando no efeito que elas produzirão em seu interlocutor. A autora faz essa

afirmação da seguinte forma:

Esse mecanismo regula a argumentação, de tal forma que o sujeito dirá de um modo,

ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte. Esse aspecto varia

amplamente desde a previsão de um interlocutor que é seu cúmplice até aquele que,

no outro extremo, ele prevê como adversário absoluto. Dessa maneira, esse

mecanismo dirige o processo de argumentação visando seus efeitos sobre o

interlocutor (ORLANDI, 2013, p. 39).

Assim, é possível afirmar que o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do

que ele diz. Isso contribui para a constituição das condições em que o discurso se produz e,

portanto, para seu processo de significação. É correto, então, afirmar que essa tomada de

palavra pelo sujeito ganha sentido porque o que é dito se insere numa FD. Esta, por sua vez,

constitui-se como um espaço discursivo onde os enunciados ganham sentido.

Para compreender de forma mais ou menos unívoca a noção de formação discursiva,

recorro a duas questões fundamentais, conforme Eni Orlandi. A primeira assertiva é a de que

O discurso se constitui em seu sentido porque aquilo que o sujeito diz se inscreve

em uma formação discursiva e não outra para ter um sentido e não outro. Por aí

podemos perceber que as palavras não têm um sentido nelas mesmas, elas derivam

seus sentidos das funções discursivas em que se inscrevem (ORLANDI, 2013, p.

43).

Em outras palavras, os sentidos são, em todo tempo, estabelecidos ideologicamente,

existindo somente nas relações metafóricas. Com isso, pode-se afirmar que tudo que se diz

possui um traço ideológico em relação a outros traços ideológicos (ORLANDI, 2013, p. 43).

A segunda questão exposta está relacionada ao fato de que diferentes sentidos só poderão ser

compreendidos, no funcionamento discursivo, a partir do momento em que se faz referência à

FD.

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Dessa maneira, a afirmação citada anteriormente, de que nada é dado a priori, nem o

sujeito, nem o sentido, pode ser reiterada aqui, já que, segundo os pressupostos teóricos da

AD, não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia. Este é o princípio básico da

noção de sujeito em AD. Assim, o sujeito é, desde sempre, afetado pelo inconsciente e

interpelado pela ideologia. A AD parte do pressuposto de que o sujeito não é fonte do sentido,

mas se forma por um trabalho de rede de memória, acionado pelas diferentes formações

discursivas, que vão representar, no interior do discurso, diferentes posições-sujeito, resultado

das contradições, dispersões, descontinuidades, lacunas, pré-construídos, presentes nesse

discurso. Pêcheux e Fuchs (1975) abordam essa questão da seguinte forma:

Se uma palavra, expressão, proposição podem receber sentidos diferentes [...]

conforme refiram a tal ou tal formação discursiva, é porque [...] elas não têm um

sentido que lhes seria “próprio” enquanto ligado à sua literalidade, mas seu sentido

se constitui em cada formação discursiva, nas relações que entretêm com outras

palavras, expressões, proposições da mesma formação discursiva (PÊCHEUX e

FUCHS, 1975, p. 145).

É evidente, com base nas considerações de Pêcheux, que palavras iguais podem

significar diferentemente porque se inscrevem em FD diferentes. Como visto, toda a

discussão acerca da noção de sujeito, na teoria do discurso, considera o sócio-histórico e o

ideológico como elementos constitutivos dessa noção. Portanto, o lugar que o sujeito ocupa

na sociedade é determinante do/no seu dizer. No entanto, ao se identificar com determinados

saberes, o sujeito se inscreve em uma FD e passa a ocupar, não mais o lugar de SE, mas sim o

de sujeito do discurso. Então, para discutir a diferença entre lugar social (SE) e lugar

discursivo (SD), parto da exterioridade, resgatando a noção de formação social, na qual o SE

está inscrito.

É possível, com base nestas considerações, afirmar que a FD está relacionada à FI,

pois o sujeito só se constitui por uma interpelação, que se dá ideologicamente pela sua

inscrição em uma FD: a sociedade o produz como um sujeito jurídico, ou seja, possuidor de

seus direitos e deveres e, principalmente, responsável pelo que diz. Ao tratarmos do

funcionamento do discurso em uma determinada obra, devemos considerar que as imagens,

tanto do autor, quanto dos personagens e do leitor, já estão dadas, isto é, já foram construídas

a partir do lugar social que cada um dos sujeitos envolvidos na constituição desse discurso

ocupa. Trata-se, conforme nos mostra Pêcheux (1975), do ‘sempre já-aí’ da interpelação

ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e ‘seu sentido’ sob a forma da universalidade

(PÊCHEUX, 1997c, p. 164), o que corresponde ao pré-construído do discurso.

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Dessa maneira, os sentidos produzidos pelos sujeitos são determinados pelas relações

sociais e ideológicas de seus grupos. E as palavras mudam de sentido segundo as posições

daqueles que as empregam (ORLANDI, 2013, p. 42). Para entender os efeitos de sentidos

produzidos pelas palavras é necessária a observação dos processos que norteiam a fala, ou

seja, além da ideologia, pois como afirma Orlandi, O indivíduo é interpelado em sujeito pela

ideologia para que se produza o dizer (2013, p. 46).

O ato da enunciação abrange outras condições de produção desse dizer, como o social

e o histórico. As relações da linguagem com o social ligam as palavras às condições em que

elas são produzidas. O lugar socioideológico de que o sujeito faz parte orienta suas ações,

levando-o a agir e pensar de acordo com a ideologia dominante naquela conjuntura. Nesse

sentido, é fundamental, como evidenciei acima, ao analisar o discurso, considerar os aspectos

sociais, ideológicos e históricos na fala dos sujeitos, em processo de interlocução, o que nos

revela como são várias as formas de se significar com a linguagem. A AD, dessa forma, pode

ser entendida como uma teoria semântica que entende sentido e sujeito como resultantes (mas

constitutivamente inacabados) do processo histórico e social. É esse processo histórico-social

que determina as constituições e contradições tanto do sujeito quanto do sentido. É no

processo discursivo que eles, sentido e sujeito, constituem-se.

Partindo dessas considerações, realizo a seguir algumas reflexões sobre as condições

de produção do discurso, ou seja, as relações entre o social, o histórico e o ideológico na

linguagem, para que na sequência seja possível compreender o SD Zezé como sujeito

produtor de sentidos.

2.2 As condições de produção do discurso: o social, o histórico e o ideológico na linguagem

Um dos temas a serem considerados, quando se trata de AD, são as condições de

produção desse discurso, que compreendem fundamentalmente os sujeitos e a

situação/posição por eles ocupada. Na abordagem das condições de produção, contemplam-se

as relações de força, referentes à intervenção do lugar social ocupado pelo falante na recepção

daquilo que enuncia, e as relações de sentido, que explicam o fato de os processos discursivos

estarem sempre relacionados entre si, tornando impossível delimitar seu início e fim.

Em todo discurso produzido ocorre o mecanismo de antecipação, ou seja, o sujeito

falante coloca-se no lugar de seu interlocutor para antecipar os sentidos produzidos pelas

palavras. Quando isso ocorre, o sujeito passa a enunciar seu discurso de um modo ou de

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outro, de acordo com os efeitos que pretende produzir. Essa afirmação pode ser evidenciada

através das considerações de Jakobson (1963),

O destinador envia uma mensagem ao destinatário. Para ser operante, a mensagem

requer antes um contexto ao qual ela remete (é isto que chamamos também, em uma

terminologia um pouco ambígua, o “referente”), contexto apreensível pelo

destinatário e que é verbal ou suscetível de ser verbalizado; em seguida a mensagem

requer um código, comum, ou menos em parte, ao destinador e ao destinatário (ou,

em outros termos, ao codificador e ao decodificador da mensagem). A mensagem

requer, enfim, um contato, um canal físico ou uma conexão psicológica entre o

destinador e o destinatário, contato que permite estabelecer e manter a comunicação

(JAKOBSON apud PÊCHEUX, 1997a, p.81).

Retomando a constatação de Jakobson (1963), é possível identificar que a

especificação dos elementos constitutivos do discurso é feita a partir da reformulação

proposta por Pêcheux do esquema informacional, explicitado abaixo:

O elemento A representa o destinador, ou seja, o sujeito, autor, enunciador; o B se

refere ao destinatário, que seria o interlocutor; o elemento R faz referencia ao referente,

considerado também como o tema do discurso; o L, que aparece na parte superior do

esquema, refere-se ao código linguístico comum a A e B, e a seta identifica o contato

estabelecido entre A e B; o último elemento, o D, é identificado como a sequência verbal

emitida por A em direção a B (PÊCHEUX, 1997a, p. 81).

A propósito de D, Pêcheux considera fundamental a substituição, no seu esquema, da

mensagem por discurso. O conceito de mensagem traz implícita a ideia da transmissão de uma

informação, que é codificada pelo destinador, ou seja, representada por meio do código

linguístico e decodificada pelo destinatário. Já o conceito de discurso implica que não se

(L)

D

A B

R

(PÊCHEUX, 1997a, p. 81)

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trata necessariamente de uma transmissão de informação entre A e B, mas de modo mais

geral, de um ‘efeito de sentidos’ entre os pontos A e B (PÊCHEUX, 1997a, p. 82).

Pêcheux toma como ponto de partida o esquema anteriormente apresentado para

formular um esquema que desdobra as situações objetivas dos interlocutores em

representações imaginárias do lugar que cada um atribui ao outro. Nas palavras de Pêcheux,

A e B designam lugares determinados na estrutura de uma formação social, lugares

dos quais a sociologia pode descrever o feixe de traços objetivos característicos:

assim, por exemplo, no interior da esfera da produção econômica, os lugares do

“patrão” (diretor, chefe da empresa etc.), do funcionário de repartição, do

contramestre, do operário, são marcados por propriedades diferenciais determináveis

(PÊCHEUX, 1997a, p. 82).

Essas considerações explicitadas acima, resumidamente, estabelecem o que Pêcheux

(1997a) chama de jogo de imagens, obtido por meio de expressões / sentenças e respectivas

questões com as quais se visualiza o imaginário das condições de produção de um discurso.

Ou seja, esquematicamente, pode-se pensar: 1) a imagem do lugar de A para o sujeito

colocado em A, com a pergunta “Quem sou eu para lhe falar assim?”; 2) a imagem do lugar

de B para o sujeito colocado em A, com a pergunta “Quem é ele para que eu lhe fale

assim?”; 3) a imagem do lugar de B para o sujeito colocado em B, com a pergunta “Quem

sou eu para que ele me fale assim?”; 4) a imagem do lugar de A para o sujeito colocado em

B, com a pergunta “Quem é ele para que me fale assim?”; 5) o “ponto de vista” de A sobre R,

com a pergunta “De que lhe falo assim?”; 6) o “ponto de vista” de B sobre R, com a pergunta

“De que ele me fala assim?”. As relações desse complexo jogo de imagens não são

previamente estabelecidas, mas, ao contrário, vão-se dando no decorrer do processo

discursivo.

Esse esquema coloca em evidência que a produção e interpretação dos discursos são

influenciadas por representações dos lugares dos interlocutores e dos pontos de vista sobre os

temas que esses lugares permitem que os participantes da interação assumam. As

representações imaginárias resultam de processos discursivos anteriores que deixaram de

funcionar, mas continuam determinando o processo discursivo em foco. As imagens que os

sujeitos têm de si, do outro e do assunto tratado são, portanto, constituídas pelo já-dito e já-

ouvido.

Com base nessas considerações, é possível, a partir de agora, enunciar os diferentes

elementos estruturais das condições de produção do discurso. Partindo do pressuposto,

conforme Jakobson (1963), tal como transcrito na abertura deste subitem, para se chegar ao

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sentido do referente (tema do discurso), quando o destinador envia uma mensagem ao

destinatário, é preciso considerar o contexto no qual ele se insere. Se este for ignorado, o

sentido do texto será alterado, ou seja, os sentidos são, portanto, historicamente construídos e

as condições de produção não são exteriores ao discurso, mas constitutivas dele.

Dessa forma, retomando o esquema do processo linguístico elaborado por Pêcheux, o

contato entre A e B ocorre através da língua, pois ela é a responsável por transmitir a

sequência verbal emitida por A em direção a B. Nesse sentido, a concepção de língua pode ser

dada como atividade de sujeitos que interagem em situações determinadas. Assim, a língua

não é uma entidade pronta, mas constitutiva, opaca, incompleta, de autonomia relativa que, no

interior das relações sociais e no processo da história, atua para transformar as atividades

humanas. Para Pêcheux, a língua é a forma de materialização da fala, contando com os planos

materiais e simbólicos, o discurso produzido pela fala sempre terá relação com o contexto

sócio-histórico. Exemplificando com o discurso de um político, que parte de uma ideologia

política, Pêcheux diz que

Em outras palavras, um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de

produção dadas: por exemplo, o deputado pertence a um partido político que

participa do governo ou a um partido da oposição; porta-voz de tal ou tal grupo que

representa tal ou tal interesse [...]. Isto supõe que é impossível analisar um discurso

como um texto, isto é, como uma sequência linguística fechada sobre si mesma, mas

que é necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado

definido das condições de produção [...] (PÊCHEUX, 1997a, p. 77).

Essa definição de língua enquanto constitutiva é possível, segundo Pêcheux (1997a),

porque o seu funcionamento não diz respeito a ela própria, é produzida socialmente nas

relações com os sujeitos e com a história. Da mesma forma que a língua é considerada como

opaca por não ter sentido único e completo, porque é atravessada pelo silêncio e pela falta,

nunca se consegue dizer tudo, domesticar o dizer. A língua assim pode ser definida por sua

autonomia relativa, porque possui uma ordem, o sistema significante material

(funcionamento, falha). Esta ordem lhe é própria e, sendo de natureza social, está sempre

aberta a novos sentidos.

Portanto, como se verifica nas colocações de Pêcheux, a AD entende que todo dizer é

ideologicamente marcado. Neste contexto o sujeito não é individual, é assujeitado ao coletivo,

ou seja, esse assujeitamento ocorre no nível inconsciente, quando o sujeito se filia ou

interioriza o conhecimento da construção coletiva, sendo porta-voz daquele discurso e

representante daquele sentido. Dizendo de outro modo, para que a língua produza sentidos e

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os sujeitos produzam discurso, é necessário que ocorra uma relação entre a língua, o social, a

história e a ideologia, pois o indivíduo é afetado por eles e produz sentidos sob tais condições.

É, portanto, partindo do lugar material que o analista compreende o funcionamento discursivo

e, nessa perspectiva, trabalhará com os gestos de interpretação dos sujeitos – determinados

por sua relação com a língua e a história – a fim de compreender como os (efeitos de) sentidos

são produzidos.

É o discurso, que (re)significa o que já foi dito e institui uma nova memória

discursiva6, ou seja, a materialidade do discurso não está apenas relacionada ao contexto

imediato (a circunstância), mas ao contexto sócio-histórico que compreende os sujeitos.

Partindo dessa confluência, o discurso se define na /pela determinação da língua pela história,

tomadas como materialidades, na qual o sujeito – afetado duplamente - está presente.

Assim, analisar um discurso implica, inicialmente, tomá-lo como objeto teórico, ou

seja, como objeto histórico-ideológico, produzido a partir de práticas sociais de linguagem e

manifestado em sua forma material que é a forma encarnada na história para produzir

sentidos (ORLANDI, 2013, p. 19), portanto, forma esta ao mesmo tempo linguística e

histórica. Reconhecer que há uma historicidade inscrita na linguagem implica compreender

que não existe um sentido literal, já posto, e, ainda, que o sentido não pode ser qualquer um,

visto que toda interpretação é regulada por condições de produção específicas. Nesta

perspectiva, a linguagem passa a ser concebida como prática social em que a exterioridade lhe

é constitutiva, e o sujeito, como lugar de significação historicamente constituído (ORLANDI,

2013).

Dessa forma, o sentido é uma relação determinada do sujeito, afetado pela língua, com

a história. Para que a língua faça sentido é preciso que a história intervenha. Assim, os

sentidos são determinados pela situação social mais imediata, que, por sua vez, resulta do

meio social mais amplo. Pêcheux (1997c) evidencia isso, afirmando que:

O sentido das palavras não pertence à própria palavra, não é dado diretamente em

sua relação com a ‘literalidade do significante’, ao contrário, é determinada pelas

posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio histórico, no qual as

palavras, expressões e proposições são produzidas (PÊCHEUX, 1997c, p. 160).

Orlandi também apresenta contribuições sobre esse tema, quando afirma que é

possível considerar as condições de produção em sentido estrito e as circunstâncias da

6 O conceito de memória discursiva será retomado posteriormente.

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enunciação como contexto imediato (ORLANDI, 2013, p. 30). Se essas circunstâncias da

enunciação forem consideradas em um sentido amplo, as condições de produção deverão

incluir o contexto sócio-histórico e ideológico.

É preciso reconhecer, dessa forma, que as condições de produção compreendem,

fundamentalmente, os sujeitos e a situação, observando a maneira como o interdiscurso é

acionado, ou seja, aquilo que é dito em outro lugar, também significa em nossas palavras,

também é constitutivo das condições de produção.

A partir dessas considerações, evidencio que as condições de produção do discurso

compreendem, fundamentalmente, os sujeitos falantes em constante relação com a sociedade

e com a economia de um determinado momento histórico. Nessa inter-relação, os sujeitos

assumem posições em relação a determinadas FI e FD.

Nesse processo, ocorre um diálogo com uma exterioridade, que, como já explicitado

nas considerações desenvolvidas até aqui, é atravessada e permeada pelo interdiscurso e pela

memória discursiva, o que implica efeitos de sentido advindos do lugar discursivo ocupado

pelo sujeito. É o interdiscurso que especifica as condições nas quais um acontecimento

histórico é suscetível de vir a inscrever-se na continuidade interna, no espaço potencial de

coerência próprio a uma memória (ORLANDI, 2013), processo esse que explicitarei a seguir.

2.3 A memória afetivo-discursiva e a constituição do sujeito no interdiscurso

Como evidenciei anteriormente, as condições de produção do discurso compreendem

fundamentalmente os sujeitos e a situação discursiva. Nessa perspectiva, a memória também

faz parte da produção do discurso, como expõe Orlandi: a maneira como a memória ‘aciona’,

faz valer, as condições de produção é fundamental (2013, p. 30). É correto afirmar, então, que

a memória discursiva está associada às condições de produção dos discursos e assume

algumas características quando pensada em relação ao discurso.

Nessa perspectiva, em seu livro Análise de Discurso: princípios e procedimentos,

Orlandi (2013) toma a memória discursiva como um sinônimo do conceito de interdiscurso,

ou seja, é tudo aquilo que fala antes, em outro lugar, o já-dito que está na base do dizível.

Isso porque, quando o sujeito fala, pensa que é a origem do seu dizer, mas na verdade, este

dizer já foi dito e pertence à memória coletiva, social. Para Orlandi , a memória discursiva é o

saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o

já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra (2013, p. 31).

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São os dizeres disponibilizados pelo interdiscurso que afetam o modo como o sujeito

significa em uma dada situação discursiva. Esses dizeres não são transparentes, legíveis, pois

estão inseridos em diálogos interdiscursivos e, por isso, são atravessados por falas que vêm de

seu exterior, ou seja, os enunciados estão clivados de pegadas de outros discursos.

Conforme Orlandi (2013), o sujeito está interligado com o discurso da memória, pois é

um sujeito que traz sempre em seu discurso marcas de algo já evidenciado, que está, a todo o

tempo, resgatando lembranças ou até mesmo as esquecendo e as excluindo de forma

consciente ou inconsciente. Sendo assim, o sujeito não é fonte de seus dizeres, mas constrói

seu discurso retomando elementos anteriores e exteriores a ele. Nessa perspectiva, enfatiza

Orlandi (2013):

O dizer não é propriedade particular. As palavras não são só nossas. Elas significam

pela história e pela língua. O que é dito em outro lugar também significa nas

“nossas” palavras. O sujeito diz, pensa que sabe o que diz, mas não tem acesso ou

controle sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem nele. Por isso é inútil, do

ponto de vista discursivo, perguntar para o sujeito o que ele quis dizer quando disse

“X” (ilusão da entrevista in loco). O que ele sabe não é suficiente para

compreendermos que efeitos de sentidos estão ali presentificados (p. 32).

Nessa relação entre o já-dito e o que se está a dizer, Orlandi (2013) apresenta a

diferença entre o interdiscurso e intradiscurso. O primeiro faz referência à constituição do

sentido, ou seja, constitui-se de todos os dizeres já ditos e esquecidos. Já o intradiscurso se

refere ao campo da formulação, ao que está sendo dito num determinado momento e em uma

dada condição. Assim, quando dizemos algo, entramos no que se refere à formulação. Nosso

discurso passa, a partir desse momento, a assumir a perspectiva do dizível, ou seja, o

interdiscurso. Portanto, o sujeito do discurso não é dono do seu dizer, pois o que ele diz

pertence ao interdiscurso, está na base do dizível. Conforme Orlandi,

A constituição determina a formulação, pois, só podemos dizer (formular) se nos

colocamos na perspectiva do dizível (interdiscurso, memória). Todo dizer, na

realidade, se encontra na confluência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o

da atualidade (formulação). E é desse jogo que tiram seus sentidos (2013, p. 33).

Nessa acepção, o sujeito necessita, indiscutivelmente, dessa memória discursiva para

que os discursos façam sentido socialmente. A noção de memória discursiva não está presa à

lembrança centrada na esfera individual e sim a uma memória de natureza social, coletiva,

descentrada do indivíduo e centrada no grupo social.

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Trata-se, então, de um conjunto de já ditos que sustentam todo o dizer. É por meio do

inconsciente e das ideologias que as pessoas produzem sentidos, uma vez que estão filiadas a

um saber discursivo que não é aprendido e sim produzido. Nessa perspectiva, afirma a

pesquisadora:

Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido. E isto

é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito por um sujeito específico, em

um momento particular se apague na memória para que, passando para o

“anonimato”, possa fazer sentido em “minhas” palavras. No interdiscurso, fala uma

voz sem nome (ORLANDI, 2013, p. 34).

Orlandi lembra, dessa maneira, que o sujeito ao falar não é fonte do seu dizer. Ele vai

construindo seu discurso, retomando elementos anteriores e exteriores a ele. Sendo assim, não

se pode excluir o fato de que os sujeitos se relacionam com a exterioridade e esta pode ser

pensada como constitutiva do sujeito, isto é, como memória, como interdiscurso. As palavras,

assim, não pertencem unicamente ao sujeito discursivo, mas são perpassadas pela história e

outras vozes podem apreendê-las.

Michel Pêcheux, o filósofo fundador da AD francesa, propõe algumas reflexões a

respeito do sujeito produzindo sentido. Refere-se ele a uma teoria da subjetividade de

natureza psicanalítica e com especial relevo a Lacan, para precisar o caráter recalcado da

matriz do sentido. Os processos discursivos realizam-se no sujeito, mas não podem ter nele

sua origem, mesmo se este tiver a ilusão de estar na origem do sentido. A prática subjetiva

ligada à linguagem é marcada por dois níveis de recalcamento: o que Pêcheux e Fuchs (1975)

nomeiam como Esquecimento número um e Esquecimento número dois.

No Esquecimento número um, também chamado de esquecimento ideológico, o

sujeito, como afirma Maldidier, esquece, ou, em outras palavras, recalca que o sentido se

forma em um processo que lhe é exterior, a zona do esquecimento número um é, por

definição, inacessível ao sujeito (MALDIDIER, 2003, p. 44). Orlandi esclarece que esse

esquecimento,

É da instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela

ideologia. Por esse esquecimento temos a ilusão de ser a origem do que dizemos

quando, na realidade, retomamos sentidos pré-existentes. Esse esquecimento reflete

o sonho adâmico: o de estar na inicial absoluta da linguagem, ser o primeiro homem,

dizendo as primeiras palavras que significariam apenas e exatamente o que

queremos. Na realidade, embora se realizem em nós, os sentidos apenas se

representam como originando-se em nós: eles são determinados pela maneira como

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nos inscrevemos na língua e na história e é por isto que significam e não pela nossa

vontade (2013, p. 35).

O outro esquecimento é o de número dois, que é da ordem na enunciação. É ele que

designa, conforme Maldidier (2003), a zona em que o sujeito enunciador se move, em que ele

constitui seu enunciado, colocando as fronteiras entre ‘o dito’ e o rejeitado, o ‘não dito’ (p.

42).

Esse Esquecimento número dois produz em nós a impressão da realidade do

pensamento, denominada ilusão referencial. Ela nos faz pensar que há uma relação direta com

o pensamento, a linguagem e o mundo de tal modo que pensamos que o que dizemos só pode

ser dito com aquelas palavras e não outras, que só pode ser assim (ORLANDI, 2013).

Essa operação dá ao sujeito a ilusão de que o discurso reflete o conhecimento objetivo

que tem da realidade. Essa impressão da realidade do pensamento produzido pelo

Esquecimento número dois serve como evidência para verificarmos que os discursos não se

originam em nós, pois quando nascemos os discursos já estão em processo e nós é que

entramos nesse processo (ORLANDI, 2013).

É por isso que o esquecimento pode ser tratado como estruturante, porque é parte da

constituição dos sujeitos e dos sentidos. Essas ilusões não são ‘defeitos’, são necessárias para

que a linguagem funcione nos sujeitos e na produção de sentidos” (ORLANDI, 2013). Dessa

forma,

Os sujeitos “esquecem” que já foi dito – e este não é um esquecimento voluntário –

para, ao se identificarem com o que dizem, se constituírem em sujeitos. É assim que

suas palavras adquirem sentido, é assim que eles se significam retomando palavras

já existentes como se elas se originassem neles e é assim que sentidos e sujeitos

estão sempre em movimento, significando sempre de muitas e variadas maneiras.

Sempre as mesmas, mas, ao mesmo tempo, sempre outras (p. 36).

Assim, a memória discursiva assume papel significativo dentro de um texto, pois é ela

que vem restabelecer os implícitos, ou seja, os pré-construídos, elementos citados e relatados,

discursos transversos, de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao

próprio legível (ACHARD et al, 1999, p. 52). Dessa forma, a memória discursiva pode ser

compreendida como o efeito da presença do interdiscurso no acontecimento do dizer. Esse

discurso é atravessado por sentidos não ditos, que se apagam para o sujeito. É assim que o

interdiscurso se faz memória discursiva, produzindo um movimento nas redes de memória,

instaurando o efeito de diferente, de outro dizer.

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Logo, a inscrição do interdiscurso, domínio da memória, no intradiscurso é perpassada

por uma tensão, por um embate de forças. Neste, a historicidade, no processo de constituição

do discurso, depara-se com a afetividade, intervindo no modo de determinação exterior. A

noção de memória discursiva, proposta por Pêcheux e evidenciada nas considerações de

Orlandi (2013), é aquela em que a memória se engendra no fio do discurso, possibilitando ao

analista observar a filiação do sujeito às formações ideológicas. Nesse sentido, é importante

dizer também que essa noção abarca a questão afetiva. Assim, a memória, na AD, é histórica,

simbólica e afetiva, sendo esta última dimensão carente de exploração teórica.

Essa afirmação é possível, tendo em vista que tais saberes são determinantes na

construção da subjetividade. Dessa maneira, entende-se que é possível articular a noção

pecheutiana com aquilo que Tedesco (2004) apresenta como memória afetiva, isto é, o fato de

o sujeito discursivizar aquilo que lhe é relevante. Essa memória incide na produção do

discurso, permeando-o, demonstrando o que de fato se salienta e merece ocupar a história de

vida, a biografia do sujeito. Essa memória é uma lembrança que, a todo o momento, ocupa o

dizer e funda a(s) identidade(s) do sujeito. Nesse sentido, o dizer do sujeito, expressão de seus

desejos, sentimentos e sonhos, encontra-se profundamente relacionado à sua história de vida.

Para Silva (2010), ao ser realizada uma abordagem da memória discursiva, não se

pode deixar de observar a tentativa de movimentação dos afetos que nela convivem com os

saberes. Para Silva, a memória em AD deve ser compreendida como afetivo-discursiva, pois

essa noção explicita um gesto de interpretação que atenta

Para a constituição histórica dos enunciados, sem marginalizar a gama de

sentimentos em voga na atualização de saberes; - para a interpelação ideológica

como um ritual que procura escapar da falha rememorando conjuntamente pré-

construídos e afetos. A “memória afetivo-discursiva” é um espaço onde já-ditos e

distintas emoções estão emaranhados. Desfazer discursivamente essas tramas é uma

tentativa do eu imaginário, ávido pela homogeneização dos pré-construídos que

subsidiam seu dizer e pela transparência da dimensão psíquica que o determina

(SILVA, 2010, p. 42).

Avalio essas considerações afirmando que todo processo discursivo, relacionado ao

interdiscurso e à memória discursiva, é sustentado em uma estratificação de formulações já

feitas, mas esquecidas, e que vão construindo uma história de sentidos. É nessa memória,

sobre a qual não detemos controle, que nossos sentidos se constroem. Por isso temos a

impressão de que sabemos o que estamos falando. Para Orlandi, aí se forma a ilusão de que

somos a origem do que dizemos (ORLANDI, 2013, p. 54).

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Nesse caso, o sujeito é afetado pelos dizeres já estabelecidos anteriormente, num

processo imaginário, onde sua memória não reverbera, ou seja, ela estaciona e só repete, e,

assim, o sentido não flui e o sujeito não se desloca. Orlandi expõe três formas de repetição. A

primeira faz referência à repetição empírica (mnemônica), a do efeito papagaio, só repete. A

segunda seria a repetição formal (técnica), ou seja, um outro modo de dizer o mesmo, e a

última, a repetição histórica, que é a que desloca, aquela que permite o movimento, isso

porque: [...] historiciza o dizer e o sujeito, fazendo fluir o discurso, nos seus percursos,

trabalhando o equívoco, a falha, atravessando as evidências do imaginário e fazendo o

irrealizado irromper no já estabelecido (ORLANDI, 2013, p. 54).

Nessa assertiva, é coerente afirmar que o sujeito, ao fazer fluir seu discurso, mobiliza

todo um funcionamento discursivo que remete às formações imaginárias, ou seja, toda vez

que o destinatário de um discurso toma a palavra, ele imagina seu próprio lugar e certamente

o lugar que ocupa seu interlocutor. Conforme já explicitado anteriormente, o sujeito A e o

destinatário B se encontram em lugares determinados na estrutura de uma formação social.

Esses lugares se acham não apenas representados nos processos discursivos, mas

transformados. Daí um discurso não implicar necessariamente uma mera troca de informações

entre A e B, mas sim um jogo de efeitos de sentido entre os participantes, como já foi

evidenciado antes, através das perspectivas teóricas de Pêcheux (1969).

Portanto, aquilo que funciona nos processos discursivos é uma série de formações

imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro. Existem nos

mecanismos de toda formação social, regras de projeção, que estabelecem as relações entre as

situações (objetivamente definíveis) e as posições (representações dessas situações)

(PÊCHEUX, 1997a, p. 82). Com efeito, toda a prática discursiva nos leva ao engano de que o

efeito de sentido constituído produz um sentido único. Por isso, temos a ilusão de que os

sujeitos são a fonte do sentido e de que têm domínio do que dizem.

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3 O CORPUS LITERÁRIO-CINEMATOGRÁFICO COMO MATERIALIDADE

PARA PESQUISAS EM ANÁLISE DO DISCURSO

A literatura tem servido como fonte criativa para o cinema. Atualmente, é possível

encontrar vários exemplos de obras literárias que serviram de inspiração para diretores

cinematográficos, como, por exemplo, Grande sertão, veredas, de João Guimarães Rosa, ou

obras tradicionalmente conhecidas, como Romeu e Julieta, de Shakespeare, que marcaram e

marcam a existência da literatura presente no cinema.

Há que se destacar, entretanto, que a produção de adaptações literárias para o cinema

não é, em si, uma novidade, tanto em relação a obras da Literatura de Proposta (canônicas),

quanto de obras de Literatura de Entretenimento, especialmente os best-sellers. Como destaca

Jorge Furtado (2003),

As relações entre o cinema e a literatura são antigas e nem sempre amistosas. Antes

da invenção do direito autoral, em 1910, os cineastas simplesmente roubavam

histórias dos livros. Em 1911, Gabriele d'Annunzio vendeu toda a sua obra, já escrita

e futura, para uma empresa cinematográfica italiana. Desde lá, milhares de livros

têm sido adaptados para o cinema. [...] a Bíblia é o livro campeão de adaptações,

com incontáveis filmagens. O segundo lugar é de Sir Arthur Conan Doyle, com mais

de 200 versões de Sherlock Holmes. Em terceiro lugar aparece o Drácula de Bram

Stoker (FURTADO, 2003, p. 1).

Para Brito (2008), desde que o cinema é cinema, a literatura tem sido um de seus

pontos de partida. Conforme o professor,

Os “filmes de arte” franceses do início do século XX procuravam se legitimar como

obras sérias e eruditas a partir de textos clássicos e intérpretes teatrais. A relação

logo teve mão dupla, quando literatos e dramaturgos começaram a se inspirar no

cinema para formar narrativas e poesia, questão presente em diferentes literaturas,

inclusive na brasileira – os modernistas são exemplos claros desse argumento

(BRITO, 2008, p. 17).

Essa relação cinema / literatura continua até hoje, englobando clássicos mais antigos à

narrativa e à poesia em produção, mais os filmes como tema e fonte de inspiração da

linguagem escrita. É correto afirmar, portanto, que desde que o cinema existe, usa-se como

material de base tanto a literatura preexistente quanto a literatura especialmente produzida

para o cinema. Ao longo de sua história, a arte cinematográfica vem se servindo da literatura

não apenas a partir de suas obras, mas também de seus procedimentos narrativos. E o

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contrário também é correto, a literatura igualmente recebe influências do cinema. Sobre isso

comentam Müller e Scamparini:

Já bem cedo o cinema foi trabalhado e retrabalhado literariamente nos ciné-romans

(cine-romances). A narrativa literária, em suas mais diversas variações de gênero ou

de estilo, tem tido até hoje uma influência significativa sobre o cinema nas suas mais

variadas vertentes (MÜLLER; SCAMPARINI, 2013, p. 54).

Assim, o escritor pode ser considerado também um espectador de cinema e dessa

maneira o cinema tem igualmente exercido influência similar sobre a literatura moderna. Essa

relação entre o cinema, essencialmente técnico em seu meio, e a literatura (ainda) produzida

de modo artesanal, muitas vezes é apresentada como um casamento ruim e, não raro, ambas

as partes se criticam mutuamente pela sua fidelidade ou infidelidade à obra original (PAECH,

2013).

Normalmente, ao serem comparados, literatura e cinema são postos em confronto um

com o outro. Os filmes quase sempre são julgados criticamente porque não fazem o que os

romances fazem; porque, de um modo ou de outro, não são “fiéis” à obra-modelo. Nos anos

1920, existia até uma vanguarda do cinema europeu, chamada cinémapur, que pretendia

proteger o cinema da literatura, favorecendo a autonomia de sua midialidade, da mesma forma

que a literatura já havia condenado tacitamente a transposição fílmica. Entretanto, essa

condenação gerou perdas e danos em ambas as partes. A partir de então, começaram a se

revelar mais claramente, dentro de um ou outro meio, determinadas propriedades midiáticas

específicas, ou do elemento literário, ou do cinematográfico. Assim, o antigo debate sobre a

fidelidade da adaptação literária resultou num equívoco, pois como afirma Paech (2013),

Não foram as “obras” que foram filmadas, ou que receberam tratamento literário

(ninguém tocou em sua identidade), e sim narrativas literárias (novelas, romances,

etc.) é que foram adaptadas, sendo que, no máximo, foram afetados os direitos

autorais, uma vez que os honorários pagos pela indústria cinematográfica, mesmo

nos seus primórdios, eram maiores do que aqueles pagos por muitas editoras (p. 55).

A partir de então, os meios de comunicação de massa, que passaram a dominar a

cultura popular nos países industrializados, conduziram a um total absurdo a representação

tradicional da obra e suas políticas de autor (PAECH, 2013). A literatura a partir daí tornou-

se multimidial e a morte do autor foi uma das consequências da dissolução da identidade da

obra. A literatura não se restringiu ao livro, e tampouco o filme se restringiu ao cinema, pois

já muito antes a literatura estava à vontade na forma de romances de folhetim, que

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apareciam nos rodapés dos suplementos literários dos jornais; e os filmes já há muito tempo

traíram as salas de cinema ao aparecer em eventos científicos, políticos, educacionais, etc.

(PAECH, 2013, p. 55).

Em meados dos anos 1950, André Bazin utilizou o termo cinémaimpur (cinema

impuro) ao considerar o diálogo do cinema com outras artes intrinsecamente inevitável e de

extrema importância para o processo de evolução cinematográfica. Para Paech, o cinema

impuro corresponderia também a uma literatura impura; eram já como cinema e como

literatura uma mistura impura, cuja qualidade especial deveria ser buscada em cada um dos

sistemas singulares por eles concretizados, a que ambos remetiam na realização de uma

narrativa comum (PAECH, 2013, p. 56).

Acredito que não se tratava do cinema e da literatura resistirem as suas influências,

mas aceitarem as semelhanças e buscarem em cada meio suas particularidades. Assim, a

literatura e o cinema passaram a poder interagir intertextualmente sem maiores problemas e

sem destacar suas diferenças de caráter midiático.

Seria primário, então, comparar uma obra literária ao filme, com base apenas no grau

de fidelidade de ambos, pois sempre estaremos diante de obras diferentes, conforme Silva

(2000): Nada garante que um grande texto resulte em um filme maior. E um livro medíocre

pode ser transfigurado em grande cinema, se o diretor do filme tiver estatura para tanto

(2000, p. 19). Muito melhor seria, então, reafirmar a permanente necessidade de livros e

filmes, ainda mais se forem grandes livros e grandes filmes, pois eles são

Suportes de pensar e sentir. São lugares de memória para quantos os lerem ou a eles

assistirem. Um não substitui o outro, ao contrário do que jovens vestibulandos e seus

professores supõem, quando assistem a filmes baseados em leituras obrigatórias –

que tal pensar também em filmes obrigatórios em seus exames? (SILVA, 2000, p.

19)

Certamente, nos dias atuais, e afirmo isso pelo que venho observando entre os jovens

em idade escolar, um terço dos filmes produzidos são adaptações de romances e o público

demonstra enorme interesse em assisti-las. Normalmente, ao assistir a essas adaptações, o

jovem é levado a procurar pelo texto de partida e essa procura aumenta consideravelmente.

Muitos jovens possuem primeiro o acesso ao filme, talvez, pela facilidade de aquisição, (tanto

pelos meios midiáticos, quanto pelas centrais de locação), e logo são instigados à busca pela

leitura do livro. É o caso recente da Saga Crepúsculo, da autora Stephanie Meyer, coletânea

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que virou febre entre os adolescentes, e também de outros clássicos, como O Senhor dos

Anéis e Harry Potter.

No entanto, Silva enfatiza que é necessário que todos tenham acesso aos bons filmes,

assim como também é necessário todos terem acesso aos bons textos literários como tópicos

de primeira necessidade na sobrevivência humana (2000, p. 19). Dessa forma, evocar as

relações entre cinema e literatura é festejar apoios e apropriações que ambos se fazem

reciprocamente, com a condição de continuarem a existir em suas especificidades.

Precisamos de bons filmes e de bons livros (2000, p.19).

Creio, a partir das considerações de Silva, que a literatura e o cinema possuem um

relacionamento umbilical, pois o cinema não existiria da forma como é concebido hoje caso

não recebesse os aportes proporcionados pelos recursos literários. Essa eminente presença da

literatura no cinema nos dias atuais nos desperta para a verificação das potencialidades que

fazem com que essas linguagens tão distintas se aproximem. A forte presença narrativa, os

elementos textuais, entre outros aspectos presentes marcam a notoriedade da literatura na

construção da linguagem cinematográfica.

Finalmente, através das considerações levantadas entre literatura e cinema, evidencio

que ambas são linguagens diferentes desde o momento em que se escreve a primeira palavra

de um romance ou de um roteiro, pois, conforme Brito,

Na narrativa se escreve para procurar o que se quer escrever. É preciso criar um

magma emocional, a partir do qual brotará a história, luminosa entre as opacidades e

turbulências. No roteiro é preciso saber desde o início que história vai ser contada. O

final do filme exige que as partes se ordenem em função dele. Não se pode dar um

passo sem saber onde se dará o seguinte (BRITO, 2008, p. 46).

Para entender e apreciar completamente as diferenças e semelhanças entre o romance e

o filme, é necessário examinar os elementos que diferenciam a linguagem literária, verbal, da

cinematográfica, predominantemente visual. Deve-se levar em conta uma série de

transformações entre essas linguagens que se constituem por sua neutralidade e abrangência, e

que estabelecem rupturas na forma estrutural do texto, modificando sua forma. A fim de

tornar clara a análise da linguagem do filme e do romance “O Meu Pé de Laranja Lima”,

creio ser conveniente tratar a seguir, de forma mais específica, sobre as noções de linguagem

literária e linguagem cinematográfica, mostrando que dificilmente há fidelidade absoluta na

transposição de uma obra à outra.

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3.1 Linguagem literária e linguagem cinematográfica

Ao analisar as linguagens literária e fílmica, é necessário expor a correlação que

articula essas duas formas de manifestação, mas que igualmente as distingue, conforme

explicita Saraiva: ambas integram-se à unidade básica do modo narrativo, mas preservam a

natureza específica de sua linguagem de que resulta a narrativa literária ou a narrativa

fílmica (2003, p. 09).

Para Saraiva, é pela narratividade, propriedade nuclear que orienta a concepção e

recepção do discurso (2003, p. 09), que as narrativas literária e fílmica vinculam-se às

inumeráveis narrativas do mundo, que podem assumir diferentes substâncias de expressão,

diversas funções socioculturais e variados enquadramentos pragmáticos.

A narrativa é, assim, um tipo de discurso que permite abordar o mundo narrado e a

narração, sem que seja necessário considerar as particularidades de cada meio material. O ato

de narrar pode ser observado na pintura, na escultura, na tapeçaria, na mímica, na dança, na

representação cênica. Esse ato, conforme comenta Saraiva (2003), pode se instalar e se

configurar nos mais diferentes suportes,

Ele (o ato de narrar) se instala através do recurso à linguagem pictórica, gestual, oral

ou escrita, inscrevendo-se nos mais diferentes suportes, que vão da perenidade e

consistência do bronze à fragilidade e volatilidade das películas de celuloide, está

presente nas trocas comunicativas do cotidiano, nos rituais da sociedade, sejam eles

de natureza sagrada ou profana, e na representação artística das ações humanas. Ele

pode, ainda, traduzir o verídico ou instalar a ficção, fato que determina uma

dicotomia fundamentalmente neste campo, pois introduz o aspecto singular,

artificial e problemático do ato narrativo, que permite distinguir as diversas formas,

bem como determinar as condições de sua existência (SARAIVA, 2003, p. 09-10).

Nessa perspectiva, a narrativa literária e a narrativa fílmica vinculam-se às demais

pelo conceito integrador, ou seja, o modo narrativo, e aproximam-se uma da outra pela

natureza fictícia e pela artificialidade que ordena sua concepção. É através do ato

comunicativo entre essas duas narrativas que se pode instalar um mundo aparentemente

possível através de uma linguagem convencional.

Toda narrativa repousa na representação da ação. Narrar é expor uma série de fatos ou

acontecimentos vivenciados por personagens em determinado espaço e tempo. Para que haja,

então, uma narrativa é imprescindível, conforme comenta Saraiva (2003),

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A institucionalização da presença do emissor do relato, que, movido por certa

intencionalidade, transmite uma experiência singular a um destinatário, colocando

em ação, para este fim, um conjunto de códigos, de operações e de procedimentos.

Essa representação do ato comunicativo na interioridade do texto encontra um

paralelo no processo que se desenvolve entre os agentes do plano da produção e da

recepção, isto é, entre o produtor da narrativa e seu intérprete, que compartilham de

concepções comuns sobre o ato de narrar e sobre o universo aí projetado, ainda que

estejam distanciados espacial e temporalmente (SARAIVA, 2003, p. 10)

Portanto, o tempo é a condição da narrativa. Esta se acha presa à linearidade do

discurso e preenche o tempo com a matéria dos fatos organizada em forma sequencial.

Segundo as perspectivas de Pellegrini, é assim que todas as formas narrativas, sejam as

propriamente literárias, como o romance ou o conto, sejam as formas visuais, como o cinema

e a televisão, estão, direta ou indiretamente, articuladas em sequências temporais, não importa

se lineares, se truncadas, invertidas ou interpoladas. A diferença entre a literatura e o cinema,

nesse caso, é que, na primeira, as sequências se fazem com palavras, e, no segundo, com

imagens (PELLEGRINI, 2003).

Existem, assim, diferenças básicas na representação do tempo e das demais categorias

nas narrativas literária e fílmica, como também são diversos os recursos literários de narrativa

utilizados pela linguagem fílmica. Há, porém, muitas diferenças entre a linguagem escrita e a

linguagem cinematográfica ou audiovisual. Furtado, baseado nos estudos de Erich Auerbach,

elenca algumas dessas diferenças:

A primeira e mais evidente diferença é que na linguagem audiovisual toda

informação deve ser visível ou audível. Isto parece uma obviedade ululante, mas

quem já tentou fazer um roteiro sabe como é difícil evitar a tentação de escrever:

João acorda e lembra-se de Maria. Isso é muito fácil escrever e muito difícil de

filmar. Palavras como pensa, lembre, esquece, sente, quer ou percebe, presentes em

qualquer romance, são proibidas para o roteirista, que só pode escrever o que é

visível (FURTADO, 2003, p.1).

A literatura, por sua parte, pode utilizar todas essas palavras, uma vez que nos remete

a todo o momento ao fluxo de consciência dos personagens. Porém, algumas obras literárias

não fazem uso constante de todas essas expressões, o que faz, segundo Furtado (2003), com

que alguns textos sejam mais fáceis de adaptar do que outros.

A segunda diferença fundamental entre essas duas linguagens, literária e

cinematográfica, faz referência, conforme Furtado (2003), ao fato de que toda narrativa se

apoia parasiticamente no conhecimento prévio que o leitor tem da realidade. Dessa maneira, o

autor informa aquilo que considera necessário para o entendimento do texto, enquanto o leitor

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imagina e deduz o resto, conforme exemplifica Furtado, trazendo como exemplo uma frase da

obra Metamorfose de Kafka: A metamorfose de Kafka começa com a seguinte frase: Ao

despertar após uma noite de sonhos agitados Gregor Samsa encontrou-se em sua própria

cama transformado num inseto gigantesco (FURTADO, 2003, p.1).

Esta, considerada por Furtado como a melhor primeira frase da história do romance,

explicita tudo o que é necessário saber para que a história comece. Cada leitor imagina uma

cena diferente. Cada um de nós constrói suas próprias imagens. Assim, a partir daquilo que o

escritor informou, o leitor imagina todo o resto e constrói sua cena.

Dessa forma, tanto a linguagem literária, quanto a cinematográfica são consideradas

arte que, por sua vez, trabalha essencialmente com o recurso da imaginação. Depende assim

do potencial de seu autor e diretor na elaboração de sua narrativa, de suas ações e tramas, de

seus personagens. Ao leitor e espectador cabe a tarefa de conectar-se a esse universo criativo

e, ao apreciar a obra, acrescentar-lhe as suas próprias experiências. O cinema, por sua vez,

transforma palavras em imagens. Partindo da visão de um roteirista e de um diretor, mantém

uma atmosfera mágica que se aproxima da literatura, por meio de um jogo, concretizado por

linguagens, que seduz e envolve seu espectador.

Muitas vezes, os cineastas e os roteiristas precisam fazer grande parte do trabalho do

leitor e, assim, responder diversas perguntas como

Qual a cor do inseto? É uma cama de madeira ou de metal? Qual a cor das paredes

do quarto? Como é a luz do quarto? Há uma janela? A luz entra pela janela? Através

da persiana ou através das cortinas? Como é o piso desse quarto? É de madeira ou

está coberto por um tapete? A cama tem lençóis? Há outros móveis no quarto?

Mesmo que muitas dessas perguntas sejam respondidas na sequência do livro o

cineasta precisa imediatamente tomar essas decisões, adiadas pelo autor. Lendo,

cada leitor cria suas próprias imagens, sem custos de produção e limites de

realidade. É natural que se decepcione quando vê as imagens criadas pelo cineasta e

diga: “gostei mais do livro” (FURTADO, 2003, p. 1).

Percebe-se, então, que num livro o escritor dispõe de um espaço para definir um

personagem ou um clima que ele mesmo estabelece. Ele pode mergulhar nos sentimentos

mais íntimos de seus personagens, ou exibi-los, de longe, como se olhasse por um

microscópio num laboratório sem se contaminar. José Onofre, em seu artigo publicado na

revista eletrônica CELPCYRO, afirma que o escritor,

Pode descrever uma casa em detalhes, objeto a objeto. Sua liberdade é a de prender

o leitor, hipnotizá-lo no texto, fazendo-o usar a imaginação que lhe permite, lendo,

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andar pelas ruas, fazer compras, matar alguém, navegar por mares nunca vistos, tudo

isso apenas com a palavra literária (ONOFRE, 2003, p.1).

Desse modo, evidencia-se que a linguagem literária assume características especiais

como: a) palavras livres para assumir novos significados e representações, já que têm vida

própria; b) presença de figuras de linguagem; c) sintaxe característica; e d) tipologia textual

descritiva (CARMELINO; CARVALHO, 2008).

Verifica-se, com os citados Carmelino; Carvalho (2008), que a literatura tem liberdade

de criação, aceita a criatividade do artista e, portanto, não se restringe a uma única

significação. O uso específico e complexo da língua no texto literário faz com que os signos

linguísticos, as frases e as sequências assumam significado variado e múltiplo.

A linguagem literária, ainda que seja homogênea, no sentido de ater-se ao código

verbal é capaz de oferecer ao leitor, por meio de signos verbais e figuras de linguagem,

imagens visuais, sensações e sabores da realidade (CARMELINO; CARVALHO, 2008, p.

106).

O terceiro aspecto técnico a ser considerado, segundo Furtado (2003), é que

diferentemente da literatura, em que o leitor imprime o seu ritmo (podendo reler, retomar a

leitura de um capítulo anterior ou antecipar o fim ao ler as últimas páginas), no cinema é o

autor que decide o tempo de apreensão da obra: Cada um de nós estabelece o próprio ritmo

de leitura. Mesmo no teatro, o ator pode esperar que o público pare de rir de uma piada para

dar sequência ao texto. Mas um filme de 1 hora e 32 minutos é visto por qualquer espectador

em 1 hora e 32 minutos (FURTADO, 2003, p. 1).

Ao decidir esse tempo, um diretor trabalha com elementos diversos: a história, o

roteiro, a escolha e a direção de atores, a fotografia, a música e as palavras que vão aparecer

nos diálogos. Mas a sua maior dificuldade não é ter de trabalhar com uma equipe de dezenas

de pessoas. Seu principal problema, conforme explicita Onofre, é o de que o autor tem

De partir do exterior, das aparências, para mostrar ao espectador quem são as

pessoas, o que fazem, como estão se sentindo. Para isso ele precisa lidar com objetos

e espaços que passem a significar alguma coisa singular. Uma cidade, uma rua, uma

casa, seus móveis, seus quadros e fotografias, o que se chama, em conjunto, de

cenário, é o mundo dos personagens. Poderá ser uma cidade do interior, preguiçosa e

conservadora, ou Nova York. Nesse espaço o diretor situa seus personagens, que

igualmente começaram a ser definidos pelo seu exterior: aparência, roupas, onde

mora, etc. Não podendo filmar os pensamentos e sentimentos de alguém, o diretor

dependerá de sua expressão corporal, de seus gestos, olhares, suas posturas e, claro,

de suas frases (ONOFRE, 2003, p. 1).

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Da mesma forma que o cinema apresenta certas limitações, um romance não dispõe de

trilha sonora ou da simultaneidade de leitura, proporcionada pelas imagens, não linear da

história narrada. A construção do espaço narrativo no cinema, com plenitude de detalhes

visuais, constitui um espaço físico literal e figurativo diferente daquele apresentado no texto

literário (BONNICI & ZOLIN, 2009, p. 370).

Percebe-se que, numa produção fílmica, o cineasta pode explorar tanto a linguagem

escrita, utilizada nos títulos, créditos e legendas, quanto a verbal, presente nos diálogos. Além

de mesclar as linguagens, de modo que uma apoie a outra mutuamente, o cinema tem à

disposição outros instrumentos que ampliam a significação fílmica, como a música (trilha

sonora), que é sem dúvida a contribuição mais interessante do cinema falado. Martin

considera a música como um elemento particular específico da arte do filme e que muitas

vezes desempenha um papel importante e pernicioso, pois

Em certos casos, a significação ´literal´ das imagens resulta ser extremamente tênue.

A sensação torna-se ´musical´; a tal ponto que, quando a música a acompanha de

fato, a imagem obtém da música o melhor de sua expressão ou, mais precisamente,

de sua sugestão. Quando isso acontece, a imaginação predomina e, do ponto de vista

da língua, o signo se perde (MARTIN, 2003, p. 122).

A música, então, busca concentrar a atenção do espectador-ouvinte na situação que se

produz e nas imagens. Como a imagem é uma percepção objetiva dos acontecimentos, a

música exprime a apreciação subjetiva dessa objetividade. Falando em imagem, vale lembrar

que esta se constitui como o elemento de base da linguagem cinematográfica. Para Martin

(2003), a imagem é

A matéria-prima fílmica e desde logo, porém, uma realidade particularmente

complexa. Sua gênese, com efeito, é marcada por uma ambivalência profunda:

resulta da atividade automática de um aparelho técnico capaz de reproduzir exata e

objetivamente a realidade que lhe é apresentada, mas ao mesmo tempo essa

atividade se orienta no sentido preciso desejado pelo realizador. A imagem assim

obtida é um dado cuja existência se coloca simultaneamente em vários níveis de

realidade, em virtude de um certo número de caraterísticas fundamentais [...]

(MARTIN, 2003, p. 21).

Dessa maneira, a imagem fílmica restitui exata e inteiramente o que é oferecido à

câmera, e o registro que ela faz da realidade constitui, por definição, uma percepção objetiva.

Essa imagem é antes de tudo realista, ou melhor, dizendo, dotada de todas as aparências da

realidade (MARTIN, 2003, p. 22). Assim, o texto dá lugar à expressão da personagem e os

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recursos como câmera, iluminação, som e cenário, conferem sentido à história de forma

instantânea (CARMELINO; CARVALHO, 2008).

Porém, as imagens visuais não são os únicos recursos cinematográficos usados na

transposição da narrativa literária para a fílmica, pois um certo número de fatores cria e

condiciona a expressividade da imagem. Esses fatores se apresentam numa ordem que vai do

estático ao dinâmico: os enquadramentos, os diversos tipos de planos, os ângulos de

filmagens e os movimentos da câmera.

Os enquadramentos correspondem ao primeiro aspecto da participação criadora da

câmera no registro que faz da realidade exterior para transformá-la em matéria artística. Trata-

se da composição do conteúdo da imagem ou, segundo Martin, da maneira como o diretor

decupa e eventualmente organiza o fragmento de realidade apresentado à objetiva, que assim

irá aparecer na tela (2003, p. 35). É através das diversas formas de enquadramento que o

diretor poderá selecionar determinada porção do cenário para figurar na tela.

Assim, a depender do enquadramento, uma paisagem pode aparecer com mais céu,

mais árvores, mais água. Uma pessoa pode aparecer inteira na tela, ou se pode optar por

mostrar apenas seu rosto. O enquadramento também serve para reforçar sentimentos e

intenções da cena. Por exemplo, a câmera em posição elevada (voltada para baixo) pode ser

usada para enfatizar a inferioridade de um personagem, enquanto que a câmera baixa (voltada

para cima) pode mostrar o contrário.

Essa proporção em que os personagens (objetos ou pessoas) são enquadrados está

relacionada ao plano cinematográfico. O tipo de plano escolhido pode influenciar os

espectadores e/ou ressaltar emoções do vídeo. A escolha do tamanho do plano (e

consequentemente seu nome e seu lugar na nomenclatura técnica) é determinada pela

distância entre a câmera e o objeto e pela duração focal da cena utilizada (MARTIN, 2003, p.

37).

Segundo Martin, a escolha de cada plano é condicionada pela clareza necessária à

narrativa. Dessa forma,

Deve haver adequação entre o tamanho do plano e seu conteúdo material, por outro

lado (o plano é tanto maior ou próximo quanto menos coisas há para ver), e seu

conteúdo dramático, por outro (o tamanho do plano aumenta conforme sua

importância dramática ou sua significação ideológica) (MARTIN, 2003, p. 37).

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Nessa assertiva, o tamanho do plano determina em geral sua duração, sendo esta

condicionada pela obrigação de dar ao espectador tempo material para perceber o conteúdo do

plano. Assim, Martin mostra que

Um plano geral costuma ser mais longo que um primeiro plano; mas é evidente que

um primeiro plano poderá ser longo ou bastante longo se o diretor quiser exprimir

uma ideia precisa: o valor dramático prevalece então sobre a simples descrição

(MARTIN, 2003, p. 37).

Quanto ao Plano Geral (PG), ele reduz o homem a uma silhueta minúscula e o

reintegra no mundo, faz com que as coisas o devorem, objetiva-o e, dessa forma, o plano geral

exprimirá a solidão, a impotência às voltas com a fatalidade, a ociosidade, uma espécie de

fusão evanescente numa natureza corrupta, a inscrição dos protagonistas num cenário infinito

e voluptuoso à imagem de sua paixão, a nobreza da vida livre e orgulhosa nos grandes

espaços (MARTIN, 2003). Essas são apenas algumas possibilidades de serem verificadas

através do plano geral.

Em relação ao Primeiro Plano (PP), a figura humana é enquadrada do peito para cima.

Esse plano é também chamado de close-up, ou close. Para Martin, esse plano permite ir além

de uma simples contemplação da vida, e sim permite penetrá-la revelando todas as suas

intimidades, como exemplifica:

Um rosto, sob a lupa, abre-se como a cauda do pavão, expõe sua geografia ardente...

É o milagre da presença real, da vida manifesta, aberta como uma bela romã despida

de sua casca, assimilável, bárbara. Teatro da pele. E ainda: Um primeiro plano do

olho não é mais o olho, é UM olho: ou seja, o cenário mimético em que aparece de

repente a figura do olhar (MARTIN, 2003, p. 38).

Martin considera que é no Primeiro Plano do rosto humano que se manifesta melhor o

poder de significação psicológico e dramático do filme. Para ele, nesse plano a câmera sabe

esquadrinhar as fisionomias, lendo nelas os dramas mais íntimos, e essa decifração das

expressões mais secretas e fugazes é um dos fatores determinantes do fascínio que o cinema

exerce sobre o público (MARTIN, 2003, p. 39).

Existem ainda outros tipos de planos, como por exemplo, o Plano de Conjunto (PC),

que mostra um grupo de personagens, reconhecíveis, num ambiente diferentemente do Plano

Geral que, como demonstrou Martin, mostra um grande espaço no qual os personagens não

podem ser identificados; o Plano Médio (PM) enquadra as personagens em pé com uma

pequena faixa de espaço acima da cabeça e embaixo dos pés; Plano Americano (PA), corta as

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personagens na altura da cintura ou da coxa, sendo a figura humana enquadrada do joelho

para cima; o Primeiríssimo Plano (PPP) mostra só o rosto e enfatiza a expressão do ator, ou o

Plano Detalhe (PD), que, mostra uma parte do corpo que não a face, geralmente utilizado

para objetos pequenos como copo ou caneta (BERNARDET, 2012).

Bernardet (2012), assim como Martin (2003) apresenta as significações dos planos e

levantou as seguintes considerações sobre eles:

O PP e PPP seriam mais voltados para a vida interior, para as reações emocionais

das personagens, enquanto o PA é melhor para descrever as personagens agindo: um

plano relativamente próximo, não suficiente para que predomine a expressão

emocional do autor, mas o bastante para que ele seja isolado do meio e que a tônica

seja colocada no que ele faz. Já no PM são valorizadas as relações entre a

personagem e o meio, ou entre as personagens. Enquanto o PP e PPP seriam mais

líricos, o PG, por mostrar amplas paisagens, seria mais bucólico ou panteísta

(BERNARDET, 2012, p. 41)

Nesse contexto, atribuíram-se significações aos ângulos de filmagem. A contre-

plongée, em que o tema é fotografado de baixo para cima, ficando a objetiva abaixo do nível

normal do olhar, segundo Martin, dá uma impressão de superioridade, exaltação e triunfo,

pois faz crescer os indivíduos e tende a torná-los magníficos, destacando-os contra o céu

aureolado de nuvens (MARTIN, 2003, p. 41). Esse ângulo também pode ser identificado

como câmera baixa e tende a dar ao personagem um tom mais heroico, enquanto a câmera

alta, a plongée, que olha de cima para baixo, tende, com efeito, a diminuir o indivíduo: a

esmagá-lo moralmente, rebaixando-o ao nível do chão, fazendo dele um objeto preso a um

determinismo insuperável, um joguete da fatalidade (MARTIN, 2013, p. 41).

Evidencio, nesse momento, que nas análises da obra fílmica O meu pé de laranja lima,

relatadas posteriormente nesta pesquisa, será possível encontrar bons exemplos desse efeito

causado pela câmera que olha o sujeito Zezé de cima para baixo, expressando dessa forma

uma situação de opressão, o que contribui para constituir a sua identidade discursiva como

sujeito, no filme.

Ainda em relação à significação dos ângulos, a posição horizontal seria sempre

preferível para as cenas de ação ou as cenas de aproximação emocional (BERNARDET,

2012). Através desse ângulo é possível observar o ponto de vista de alguém que não se

encontra em posição vertical. Por exemplo, em filmes de guerra corresponderia ao ponto de

vista de um prisioneiro deitado vendo entrar na cela o diretor da prisão ou um guarda.

Em relação aos diferentes tipos de ângulos, visualizados nas considerações realizadas

até agora, é necessário enfatizar os diferentes movimentos realizados pela câmera. Segundo

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Martin (2003), podem-se distinguir três tipos de movimentos de câmera: travelling,

panorâmica e trajetória. Através das considerações de Martin, torna-se possível conhecer e

entender um pouco sobre cada um desses movimentos:

O travelling consiste num deslocamento da câmera durante o qual permanecem

constantes o ângulo entre o eixo óptico e a trajetória do deslocamento. O travelling

vertical é bastante raro e geralmente só tem o papel de acompanhar um personagem

em movimento. [...] mais interessantes (e mais raros) são os travellings verticais em

que o eixo óptico da câmera não é horizontal, mas também é vertical. No caso do

travelling para a frente, a câmera parece então descer em queda livre para exprimir o

ponto de vista subjetivo de um personagem que cai no vazio: um homem que cai do

alto de um farol [...] O travelling para trás (de baixo para cima) corresponde a um

efeito de plongée que exprime o aniquilamento moral do personagem. [...] O

travelling lateral, no mais das vezes, tem um papel descritivo [...]. A panorâmica

consiste numa rotação da câmera em torno de seu eixo vertical ou horizontal

(transversal), sem deslocamento do aparelho. Relembrando que ela frequentemente

se justifica pela necessidade de seguir um personagem ou um veículo em movimento

[...]. Finalmente a trajetória, mistura indeterminada de travelling e panorâmica

efetuada com o auxílio de uma grua, é um movimento bastante raro e geralmente

pouco espontâneo para se integrar perfeitamente à narrativa se for apenas descritivo.

[...] Muitas vezes a trajetória, colocada na abertura de um filme, serve para

introduzir o espectador no universo que ela descreve com maior ou menor

insistência (MARTIN, 2003, p. 44-52).

Essa observação dos processos de utilização da câmera nos possibilitou, durante a

análise, observar alguns dos efeitos mais admiravelmente expressivos da linguagem

cinematográfica, a forma como o sujeito é constituindo através da imagem. Assim, é possível

perceber que os elementos constitutivos da linguagem cinematográfica não têm em si

significação predeterminada e, segundo Bernardet (2012), a significação depende

essencialmente da relação que se estabelece com outros elementos. Esse é um princípio

fundamental para a manipulação e compreensão dessa linguagem (p. 43).

Conforme os estudiosos da linguagem cinematográfica, ainda há elementos fílmicos

importantes, mas que são considerados não específicos, visto que não pertencem

exclusivamente à arte cinematográfica, como é o caso da iluminação, do vestuário, cenário e

da elipse, que consiste nos cortes. É por meio das elipses que o cineasta pode recorrer à alusão

e fazer-se entender com meias-palavras. Além disso, os vazios entre os planos supõem uma

supressão temporal e abrem o espaço para a imaginação do espectador.

Por sua vez, a linguagem literária sustenta-se principalmente no verbo, na palavra.

Conforme aponta Diniz (2005), o romancista dispõe, na literatura, apenas da linguagem

escrita como meio de expressão e esta, por sua vez, relaciona-se com o pensamento, mas pode

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também sugerir efeitos sensórios, impressões de espaço, aparência visual, cor e luz (DINIZ,

2005, p. 32).

Em síntese, é possível observar que o cinema apresenta uma linguagem específica que

deve ser analisada em relação as suas técnicas e sistemas de significação, observando

questões como iluminação, trilha sonora, mise-en-scène, enquadramento, corte e montagem,

elementos que não podem ser analisados isoladamente, mas sim dentro de um sistema de

significação construído pelo filme. Todas essas técnicas contribuem para a construção das

expressões e significações dentro da obra cinematográfica. No caso da linguagem literária, o

plano de expressão é constituído por signos linguísticos e a percepção emocional e afetiva do

receptor se dá por meio da presença de signos verbais e de figuras de linguagem que

permitem a construção de imagens visuais, táteis e auditivas.

Portanto, a linguagem cinematográfica compreende o conjunto de planos, ângulos,

movimentos de câmera e recursos de montagem que compõem o universo de um filme. Da

mesma forma que na linguagem literária as classes de palavras, por exemplo, exercem

funções específicas, os aspectos da linguagem cinematográfica devem ser planejados para se

obter a melhor forma de expressão.

3.2 A literatura no âmbito da Análise do Discurso

A AD de linha francesa, como já mencionado, é uma corrente de estudos da linguagem

que tem como objeto de estudo o discurso, isto é, os efeitos de sentido materializados em

textos diversos. Desse modo, o analista do discurso se debruça sobre os textos para perceber o

modo como esses se inserem dentro da atividade discursiva, para compreendê-los e não

apenas interpretá-los.

Na AD, o texto é visto como a materialização do discurso e como um elemento que se

apresenta tal qual uma peça dentro do conjunto de enunciados que constituem a atividade

discursiva. É uma peça que permite o jogo da interpretação, o deslizamento dos sentidos;

portanto, sob o viés da AD, não há sentidos fixos que devem ser extraídos dos textos no

momento da leitura. Se o discurso é efeito de sentidos, esses últimos são construídos a partir

da atividade do sujeito leitor, que é sempre histórico e marcado pela ideologia.

Nesse contexto, a literatura se caracteriza pela subjetividade e pelo seu caráter

ficcional, pois não se compromete com a verdade absoluta. É uma prática discursiva

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elaborada pelo homem, por meio da interação com outros homens e, dessa forma, um texto

literário tende a problematizar e suscitar a reflexão a respeito de temas representativos de

nossa situação histórico-social. Isso não significa dizer que para a literatura ser considerada

como boa, uma obra deva tratar exclusivamente de assuntos engajados nas questões sociais,

pois a literatura depende da ação de fatores do meio, que nela se exprimem em graus diversos,

com o objetivo de produzir nos indivíduos um efeito prático, modificando sua conduta e

concepção de mundo, reforçando neles o sentimento dos valores sociais.

No âmbito da AD, esse ideário da obra literária como causadora de mudanças de

percepções e concepções no sujeito é deixado à margem, pois o que se pretende ao selecionar

uma obra literária como objeto de pesquisa, é analisar os discursos que a atravessam e a

constituem, bem como as condições de produção desses discursos e como os sujeitos se

constituem ao longo da narrativa.

Considerando as peculiaridades da produção literária, os aspectos linguísticos,

estilísticos, enfim, implicam efeitos de sentidos peculiares a essa produção. A literatura,

ainda, dialoga com uma exterioridade perpassada pela história, que constitui memória

discursiva em diferentes produções e implica efeitos de sentido decorrentes da inscrição dos

sujeitos e dos discursos em diferentes lugares sócio-histórico-ideológicos.

Nesse sentido, é possível tomar o texto literário como corpus edificante e de ricas

possibilidades para uma interpretação mediante os pressupostos da AD, uma vez que as

condições de produção e efeitos de sentido dos discursos dos personagens se efetivam como

lugar singular acerca de suas enunciações. O analista do discurso, dessa forma, busca

estabelecer a relação existente entre um discurso e suas condições de produção, ou seja, qual o

contexto histórico e quais condições sociais permitiram que determinado discurso fosse

produzido, gerando determinados sentidos e não outros.

A literatura assim, por ser formada por enunciados determinados dentro de um

contexto fictício, não subtrai de si as conjunturas sócio-históricas e a própria fragmentação

dos sujeitos, as quais demarcam e materializam via discurso. Os protagonistas e antagonistas

das histórias literárias não conseguem escapar aos efeitos e produções de sentido, pois

enunciam. Conforme Pêcheux,

Todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si

mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro (a

não ser que a proibição da interpretação própria ao logicamente estável se exerça

sobre ele explicitamente). Todo enunciado, toda sequência de enunciados é, pois,

linguisticamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de

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pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação. É nesse espaço que

pretende trabalhar a análise de discurso (PÊCHEUX, 1997b, p. 53).

Partindo das perspectivas teóricas de Pêcheux, é possível verificar que nas produções

artísticas o processo de assujeitamento ocorre da mesma maneira, pois os sujeitos do universo

literário, por exemplo, são construídos a partir de enunciados, que se estabelecem em

determinada condição de produção e produzem efeitos de sentidos. Dessa maneira, não se

deve perder de vista o fato de que o discurso acontece sempre no interior de uma série de

outros discursos, com os quais estabelece correlações, deslocamentos, vizinhanças. Por isso, o

objeto da AD deve ser essa interdiscursividade, as redes de memórias que produzem os

sentidos em um momento histórico. Sobre isso afirma ainda Pêcheux:

O discurso não é um aerólito miraculoso, independente das redes de memória e dos

trajetos sociais nos quais ele irrompe (...) só por sua existência, todo discurso marca

a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos: todo

discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio históricas de

identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas

filiações e um trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não,

mas de todo modo atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento

no seu espaço (PÊCHEUX, 1997b, p. 56).

Nessa acepção, compete ao analista de discurso investigar as condições complexas

(que são, ao mesmo tempo, da ordem da linguagem e da ordem da história) nas quais se

realizou um determinado enunciado, condições que lhe dão uma existência específica. Essa

existência faz o discurso emergir em relação com um domínio de memória, como jogo de

posições possíveis para um sujeito, como elemento em um campo de coexistência, como

materialidade repetível. Nesse sentido, reforço, que ao analista do discurso não cabe estudar

as estruturas literárias internas de uma obra, e sim, pensar qual é o limite além do qual um

discurso (quer seja o do doente, do criminoso, etc.) começa a funcionar no campo conhecido

como literatura? (FOUCAULT, 1975).

Ao ser questionado em entrevista dada a Roger-Pol Droit sobre a literatura, Foucault

respondeu que para romper com muitos mitos, incluindo o do caráter expressivo da

literatura, foi muito importante formular o grande princípio de que a literatura só se ocupa

de si mesma. Quando se ocupa do autor, o faz simplesmente a partir de sua morte, silêncio ou

distanciamento do escritor (FOUCAULT, 1975). Segundo o autor, devemos nos libertar da

ideia de que a literatura é o receptáculo de qualquer tipo de tema ou assunto.

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Portanto, a concepção da AD em que este trabalho se inscreve rompe com a ideia de

literatura enquanto expressão absoluta. Essa ruptura, já posta em algumas correntes dos

estudos literários, implica contrariar a pretensão de que a literatura interfira nos rumos de uma

cultura e de que a obra literária se explique por si mesma. Meu objetivo não é analisar a obra

O Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos, sob o aspecto linguístico, mas

analisar os discursos que a atravessam, a heterogeneidade dos discursos que a constituem,

como o sujeito discursivo Zezé enuncia, de que posição enuncia e as marcas que interferem

nesse discurso.

Dessa maneira, assentindo com as palavras de Foucault (1975), acredito que para a

literatura ser compreendida e estudada não é necessário ao analista do discurso estudar as

estruturas literárias internas (FOUCAULT, 1975, p. 4) de uma obra, mas, acredito que é sua

função,

Apreender o movimento, o frágil processo pelo qual um discurso não literário,

subestimado, esquecido, tão logo como se produz, ingressa no campo literário. O

que acontece? Que mecanismo se desencadeia? De que modo se modifica a intenção

original deste discurso, pelo fato de que é reconhecido como literário?

(FOUCAULT, 1975, p. 4).

Conforme o filósofo é necessário abandonar a ideia preconcebida de que a literatura se

fez de si própria, que a resume a um texto feito de palavras. Assim, o texto não é uma unidade

fechada em si mesma. Ao contrário, quando se vê o texto em relação ao discurso, percebe-se

sua imensa carga simbólica, sua multiplicidade de sentidos, tal qual define Orlandi em

Discurso e Texto (2001): se vemos no texto a contrapartida do discurso-efeito de sentidos

entre locutores – o texto não mais será uma unidade fechada nela mesma. Ele vai se abrir,

enquanto objeto simbólico, para as diferentes possibilidades de leituras (ORLANDI, 2001, p.

49).

Dessa forma, o texto faz parte de uma cadeia sendo inevitavelmente construído a partir

de outros textos, num diálogo com outras vozes e, justamente por isso, não pode ser

observado de forma isolada. Assim, não se pode entender o texto como um produto pronto e

acabado, como um elemento completo e fechado em si próprio. Sobre isso discorre Pêcheux

em O Discurso. Estrutura ou acontecimento (2008): todo enunciado é intrinsecamente

suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu

sentido para derivar para um outro (PÊCHEUX, 2008, p. 53). Indo mais além, pode-se dizer

com o autor que todo enunciado, toda sequência de enunciados é linguisticamente descritível

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como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis,

oferecendo lugar à interpretação. E é nesse espaço que trabalha a AD. A descrição põe em

jogo o discurso-outro como espaço virtual de leitura desse enunciado. É nisto que se justifica

o termo de disciplina de interpretação dado à AD (PÊCHEUX, 2008).

Nesse sentido, o discurso é analisado a partir de todos os aspectos que envolveram a

sua produção, as condições de produção, o dito, o já-dito, o não dito, a própria ideologia dos

sujeitos, entre outros itens. Assim, ressalto que, no processo de análise, não analiso a obra

pela obra, mas os discursos advindos dela. A obra não é um fim em si mesmo. É, ao contrário,

o meio para se chegar aos fins que, no caso deste trabalho, constitui-se na análise dos

discursos que a compõem.

Ao estudar um corpus literário, é necessário observar quem diz, como diz e em que

circunstância diz, pois estamos enveredando pela linguagem literária, carregada de

polissemias e expressividade. Na análise dos discursos emanados da obra literária em estudo,

é possível identificar um discurso envolvente, um instrumento social que se utiliza de uma

simbologia própria através de signos específicos. Portanto, é na articulação do real com o

imaginário que o discurso funciona.

Entendo que a obra literária não pode ser estudada fora dos quadros sociais, visto que

seu processo constitutivo e seus sentidos são histórico-sociais. Mas a essa inserção histórico-

social devem ser acrescidos os conceitos de condição de produção do discurso, de FD e de FI.

Esse é o objetivo desta pesquisa, qual seja, conceber a obra literária OMPLL como algo

exterior a si mesmo, como uma linguagem que aponta para a produção e dispersão de sentidos

que não estão nas palavras, mas antes e depois delas. Sentidos esses, permeados e

atravessados pelas suas relações com uma FD determinada e uma memória discursiva,

processo que será verificado durante a análise do processo de constituição do SD Zezé no

corpus estudado.

3.3 O cinema como linguagem imagética em movimento

Em nosso cotidiano, convivemos com produções em que predominam os

entrecruzamentos de linguagens, fazendo com que textos puramente verbais, visuais ou

sonoros sejam quase inexistentes. Normalmente, habitamos ambientes audiovisuais que nos

fornecem informações de diferentes ordens e convocam de modo insistente nossos sentidos

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para apreendê-las. Para Pellegrini (2003), a cultura contemporânea é, sobretudo, visual, cuja

força retórica reside antes na imagem e secundariamente no texto escrito. Dessa forma,

‘Videogames’, videoclipes, cinema, telenovela, propaganda e histórias em quadrinhos são

técnicas de comunicação e de transmissão de cultura (PELEGRINI, 2003, p. 15).

Portanto, é possível perceber que a constituição do SD não se limita apenas na

materialidade própria à língua, a elementos verbais, mas se estende a domínios do não verbal,

como as imagens fixas (publicidade, fotografia, pintura, histórias em quadrinhos...) e imagens

em movimento (cinema, televisão, vídeos...). Assim, é possível definir a experiência visual

humana como fator fundamental no aprendizado, para que seja possível ao sujeito

compreender o meio ambiente e reagir a ele.

A imagem desde sempre existiu, ou melhor, conforme aponta Cunha (2007), ela

nasceu com o primeiro olhar (2007, p. 19). A imagem é afim à sensação visual. Segundo

Cunha (2007), O ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol, do mar, do céu. O perfil, a

dimensão, a cor. A imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a

manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós (2007, p. 19). Nesta

perspectiva, a imagem aponta para uma multiplicidade de efeitos de sentido.

Uma das definições mais antigas de imagem encontra-se no livro VI da obra A

República, de Platão. Segundo Santaella (2012), para o filósofo as imagens em primeiro lugar

são: [...] as sombras, depois os reflexos que vemos na água ou na superfície de corpos

opacos, polidos, brilhantes, e todas as representações desse gênero (2012, p. 15).

Também Santaella demonstra duas conclusões que podem ser extraídas do conceito de

imagem realizado por Platão: Primeiro, ele se refere às imagens naturais e não às imagens

produzidas pelos seres humanos. Segundo, mesmo sendo natural, a imagem é um duplo, quer

dizer, ela reproduz características reconhecíveis de algo visível (2012, p. 15). O conceito de

Platão mostra que ambas as imagens possuem caráter duplo. Assim, costumam ser definidas

como um

Artefato bidimensional (como um desenho, pintura, gravura, fotografia) ou

tridimensional (como uma escultura), que tem uma aparência similar a algo que está

fora delas – usualmente objetos, pessoas ou situações e que, de algum modo, elas, as

imagens, tornam-se reconhecíveis, graças às relações de semelhança que mantêm

com o que representam (SANTAELLA, 2012, p. 15).

A etimologia da palavra, da qual derivou “imagem” – “imago” (latim), corresponde ao

termo grego eikon, que abarcava todos os tipos de imagem, desde pinturas até estampas de um

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selo, assim como imagens sombreadas, tidas como naturais, e espelhadas, chamadas de

artificiais. Essa definição alude à representação visual, à faculdade de imaginar/sonhar e ao

produto da atividade de imitar/copiar (SANTAELLA, 2012).

Existem certas nuances entre as imagens ditas naturais e as artificiais. Porém, tais

definições guardam entre si uma semelhança, uma vez que aludem ao simbólico, como lugar

de substituição do que falta. Desse modo, as imagens são chamadas de representações,

porque são criadas e produzidas pelos seres humanos nas sociedades em que vivem

(SANTAELLA, 2012).

Um exemplo típico desta imagem encontra-se no cinema. Trata-se da imagem em

movimento, que resulta da gravação de imagens fotográficas com câmeras. Essas imagens

nem sempre reproduzem aspectos daquilo que é naturalmente visível. Por isso, Santaella

aponta que há, pelo menos, três modalidades principais de imagens:

Primeiro, as imagens em si mesmas, que se apresentam como formas puras,

abstratas ou coloridas. Segundo, as imagens figurativas, que se assemelham a algo

existente no mundo, ou supostamente inexistente, como são as figuras imaginárias,

metodológicas, religiosas etc. Há ainda as imagens simbólicas. Neste caso, embora

as imagens apresentem figuras reconhecíveis, essas figuras têm por função

representar significados que vão além daquilo que os olhos veem. O simbolismo

adiciona camadas de significados que estão por trás das imagens (SANTAELLA,

2012, p. 19).

Nessa perspectiva, ao realizar a análise de O Meu Pé de Laranja Lima, objetivo deste

estudo, foi possível verificar essas três modalidades de imagem em sintonia com a linguagem

cinematográfica, que não se restringe, meramente, ao caráter ilustrativo, pois aquilo que

linguisticamente é muito difícil ou complexo de explicar, muitas vezes pode ser representado

por meio de uma imagem.

Desse modo, a imagem é considerada neste trabalho, segundo a perspectiva de Orlandi

(2013), como prática discursiva. Essa noção de prática discursiva permite que ela se

aproxime, no funcionamento das diferentes linguagens, daquilo que constitui uma semelhança

entre elas, e distinguir o que é lugar de diferenças constitutivas da especificidade dos

processos significantes dessas diferentes linguagens. Conforme Honório e Souza (2008), isto

possibilita

Discutir o processo de produção de sentidos sem o efeito da dominância do verbal,

já que não se fala em texto, mas em prática discursiva (verbal ou não). Ao falar em

imagens considerando-as como práticas, estamos buscando restituir-lhes seus

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processos específicos de significância, tendo em vista que elas possuem corpo

(materialidade) e têm o peso da história (p. 62).

A imagem sob uma perspectiva discursiva pode ser adotada pelo sintagma de discurso

imagético, levando-se em conta que o fluxo das imagens no cinema provoca no espectador um

fluxo psíquico, ou seja, ao entrar em contato com o discurso imagético no filme, é necessário

que o sujeito (espectador) interprete a relação entre as ações e os personagens. Interpretar

significa atribuir sentido a algo, o que se capta, ou seja,

Percebe-se pela vestimenta, caracterização e comportamento das personagens, pelo

lugar onde estão, por seus gestos e expressões faciais, se se trata de drama ou

comédia, em que época se desenvolve o enredo, enfim, de que modo o espectador

está sendo convidado a fruir aquele conjunto de significados visuais componentes de

uma trama (PELLEGRINI, 2003, p. 15).

Nessa perspectiva, o fluxo das imagens comporta um peso visual e auditivo, este dado

pela trilha sonora, que se comunica imediatamente sem necessidade de palavras. Assim,

observam-se seus próprios códigos de interação com o espectador, diversos daqueles que a

palavra escrita estabelece com o seu leitor (PELLEGRINI, 2003).

O discurso imagético exerce um fascínio sobre os espectadores, é uma verdadeira

fábrica de ilusões, de malabarismos, efeitos especiais (visuais e sonoros), de todo caráter e de

recortes absolutamente artificiais. Entretanto, afirma-se que o discurso imagético é

movimento que tenta captar a dinâmica do real. Sobre esse fascínio que a imagem exerce no

expectador, Santos (2011) constrói a seguinte assertiva:

As luzes se apagam. Portas e cortinas, como pálpebras pesadas, fecham-se,

garantindo o silêncio das sombras do mundo, abandonado no exterior da sala de

projeção. O feixe de luz aponta a tela branca. Poltronas, geralmente confortáveis

abrigam o repouso do corpo, permitindo até certo ponto, o desativamento do polo

motor da ação. A tela branca contempla a subjetividade e a entrega ao enigma do

possível. O branco da tela é potência de mundos e de histórias. Começa, então, o

movimento de imagens sonoras e visuais que por algum tempo dirigirá a

consciência, nesta espécie de sonho produzido pela máquina (p. 2).

De acordo com Santos (2011), essa magia que a imagem cinematográfica exerce sobre

nossa percepção fundamenta-se em dois grandes movimentos de natureza psíquica: a projeção

e a identificação. A projeção refere-se às nossas necessidades, aspirações, desejos, obsessões,

receios e projetam-se, não só no vácuo em sonhos e imaginações, mas também sobre todas as

coisas e todos os seres. Já na identificação, o sujeito, em vez de se projetar no mundo,

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absorve-o. A identificação incorpora o meio ambiente no próprio eu e integra-o afetivamente.

Segundo o autor,

Projeção e identificação se encontram interligadas no seio de um complexo global.

A mais banal projeção - o eu ponho-me no seu lugar – é já uma identificação de

mim mesmo com o outro, identificação essa, que facilita e convida a uma

identificação do outro comigo: esse outro tornou-se assimilável [...] Não basta, pois,

isolar a projeção de um lado, a identificação do outro e, por último, as transferências

recíprocas. É necessário considerar igualmente o complexo de projeção-

identificação, que implica essas mesmas transferências (SANTOS, 2011, p. 3).

Essas projeções – identificações – transferências comandam o nosso fluxo psíquico,

pois a nossa vida de sentimentos, desejos, de receios, de amizade, de amor, desenvolve,

assim, toda a gama de fenómenos de projeção-identificação, desde os estados de alma

inefáveis e mágicos (SANTOS, 2011, p. 4).

Na mesma medida em que identificamos o discurso imagético com a vida real, as

nossas projeções-identificações próprias da realidade põem-se em movimento. Dessa forma, a

vitalidade do real requer um fluxo de imagens aliado a representações em diferentes

modalidades de sentido, ou seja, além de criarmos representações visuais, devemos ser

capazes de ouvir, sentir cheiros, sentir as batidas do coração etc., ou seja, devemos ser

capazes de imaginar, para que as imagens assumam caráter de movimento e, dessa forma,

torná-las vivenciáveis.

O discurso imagético, mistura de técnica e sonho, trouxe para o cotidiano das pessoas

a possibilidade de materialização do imaginário: O cinema é talvez a realidade, mas é também

outra coisa, geradora de emoções e sonhos (SANTOS, 2011, p. 2). Observa-se, através dessa

afirmação, que a materialidade fílmica é marcada antes de tudo pela força do sujeito que

imprime seu olhar sobre uma imagem que chegará até nós com recortes e edições. Por isso,

Qualquer posição de um sujeito é um olhar que conta, antes de tudo, o lugar que esse

sujeito ocupa, tanto historicamente quanto fisicamente em relação à imagem

capturada. Desse jeito, câmera, corpo e história são produções que não se dissociam

e cuja existência produzirá as imagens que vemos em um filme (MILANES;

BITTENCOURT, 2012, p. 11).

O cinema, dessa forma, estabelece uma relação de projeção-identificação entre o fluxo

fílmico e o fluxo psíquico do espectador. Ou seja, o cinema, como a literatura, assume o papel

de tecnologia do imaginário, algo que se relaciona à cultura, mas com autonomia. Assim, o

imaginário interfere na construção individual, mas só toma forma no campo coletivo.

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Como na literatura, as imagens expressas no cinema despertam outras imagens para os

espectadores. Na literatura, por exemplo, caso isso não aconteça, temos a impressão de que o

texto não tem muito a nos dizer, de que não fomos tocados por ele. No cinema, tudo acontece

da mesma forma. As imagens apresentadas nele podem induzir-nos a uma reflexão, mas

podem não nos revitalizar emocionalmente.

Há filmes, assim como textos, que retratam o fluxo de fantasias do próprio

autor/diretor, e que, por sua vez, servem de estímulo para o fluxo de fantasias de outra pessoa,

principalmente quando esse filme/texto permite que as imagens descritas sejam

experimentadas por todos os nossos sentidos.

Sobre isso, Eisenstein faz as seguintes considerações, ao afirmar que um filme ou

outra obra de arte qualquer, assume o papel de organizar imagens no sentimento e na mente

no espectador [...] desse modo, a imagem de uma cena, de uma sequência, de uma criação

completa, existe não como algo fixo e já pronto, precisa surgir, revelar-se diante dos sentidos

do espectador (2002, p. 21-22).

Pode-se afirmar, então, que o discurso imagético, ou um livro, deve reproduzir o

processo pelo qual na própria vida, novas imagens são formadas na consciência e nos

sentimentos humanos (2002, p. 22). Dessa forma, o filme é uma maneira de transpor para a

tela o universo pessoal do artista, solicitando a participação do espectador.

O discurso imagético suscita no espectador, portanto, um sentimento de realidade

bastante forte, em certos casos, para induzir à crença na existência objetiva do que aparece na

tela. Para Martin, essa crença [...] vai das reações mais elementares, nos espectadores virgens

ou pouco evoluídos cinematograficamente falando [...], aos fenômenos bem conhecidos de

participação e de identificação com os personagens (2003, p. 22).

Martin comenta ainda que essa identificação do espectador com aquilo que está sendo

mostrado na tela pode acarretar em uma intoxicação daquele que assiste, ou seja, ’os

intoxicados’ de cinema podem acabar não distinguindo mais, em sua memória, as imagens

fílmicas das lembranças de percepção real, tamanha a identificação estrutural desses dois

fenômenos psíquicos (2003, p. 24).

Assim, a imagem reproduz o real, para em seguida afetar nossos sentimentos. A

percepção do espectador torna-se aos poucos afetiva, na medida em que o cineasta lhe oferece

no cinema uma imagem subjetiva, densa e, portanto, passional da realidade. Como afirma

Martin, o público verte lágrimas diante de cenas que, ao vivo, não o tocariam senão

mediocremente (2003, p. 25).

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O discurso imagético é, portanto, antes de tudo realista ou, melhor dizendo, dotado de

todas as aparências da realidade. Tal consideração torna-se visível, em primeiro lugar, na

relação que se estabelece entre o espectador e o movimento nas imagens fílmicas apresentadas

na tela. O movimento é, assim, o caráter mais específico e mais importante da imagem

fílmica. Esse caráter particularmente fílmico supera o que na fotografia parece faltar, ou seja,

o caráter dinâmico da realidade visível.

Santaella explica como acontece esse dispositivo ilusório do movimento, que recria no

filme a realidade. Na perspectiva da autora,

A imagem fílmica é inscrita em fotogramas separados: “entre um quadro e outro, o

obturador se fecha impedindo a entrada da luz, e uma nova porção de película

virgem é empurrada para a abertura. Esse movimento fragmentário, que denuncia a

base fotográfica do cinema, é dissimulado, entretanto, por um dispositivo técnico.

Tomando por base a anomalia do funcionamento do olho, o dispositivo cria a ilusão

do movimento (2012, p. 95).

É por isso que, na projeção de um filme, a função contemplativa da imagem, realizada

pela plateia, é subvertida. A contemplação é incessantemente interrompida pela transformação

das imagens, exigindo uma atenção concentrada. Para Santaella, isso torna móvel não

somente a imagem, mas o ponto de vista, ou seja, [...] o cinema não é somente a imagem em

movimento, é, sobretudo o olho em movimento, uma certa figuração da mobilidade e da

velocidade (p. 95)

Desse modo, o princípio da linguagem fílmica está na sequência, ou seja, na

construção de uma sintaxe de imagens que consiga transmitir um sentido coerente (p. 95).

Para que isso aconteça, a sucessão cronológica dos fatos e nossa concepção normal de tempo

precisam ser quebradas. Santaella apresenta a seu leitor o seguinte exemplo, [...] em um filme,

a personagem aparece andando na rua e, na cena imediatamente seguinte, ela está abrindo a

geladeira de casa. Isso acontece porque não interessa ao filme trabalhar com os tempos

mortos, sem ação (2012, p. 95).

Esse processo é possível porque a nossa mente, quando habituada com esse tipo de

linguagem, preenche os vazios que levam de uma cena a outra. Segundo Santaella (2012),

vem daí o conceito fundamental da filmologia, que é o conceito de montagem das sequências.

Por meio da montagem é possível incluir no processo criativo a razão e o sentimento

do espectador. Sobre isso comenta Eisenstein:

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O espectador é compelido a passar pela mesma estrada criativa trilhada pelo autor

para criar a imagem. O espectador não apenas vê os elementos representados na obra

terminada, mas também experimenta o processo dinâmico do surgimento e reunião

da imagem, exatamente como foi experimentado pelo autor (2002, p. 29).

Nesse sentido, é a montagem que cria a realidade fílmica, ela não se reduz à

justaposição mecânica de pedaços de película, mas se constitui na configuração específica

que o filme apresenta dos fatos narrados (SANTAELLA, 2012, p. 96). Mesmo que o filme

crie uma ilusão de narração contínua, na realidade ele é feito de cortes e saltos descontínuos

que fazem parte integrante de sua linguagem.

O cinema encontra sua linguagem na condensação narrativa, e, dessa forma, constrói

novas estruturas de espaço e tempo conectados à presença do espectador no ambiente mágico

escurecido da sala de cinema. É por isso que existe uma relação íntima entre o cinema e o

sonho, pois é no apagar das luzes do cinema que as imagens surgem na tela e a partir daí

começam a agir sobre o espectador. Sobre isso, comenta Santaella que assim como as

pálpebras se fecham no sonho, no cinema, as luzes se apagam. A tela se ilumina, inundada

pelas imagens que, como no sonho, surgem para encantar e rapidamente desaparecer, como

os sons na música (2012, p. 96).

Para que esta imagem se concretize na percepção do espectador, são necessários

alguns elementos de representação independentes, ou seja, os recursos mencionados

anteriormente, como câmera, iluminação e cenário, conferem sentido à história de forma

instantânea. Santaella afirma que “acelerações, retardamentos, recursos e avanços, chamados

de flashback e flash forward, amalgamam o fluxo das imagens ao fluxo psíquico, tanto do

sonhador, quanto do espectador” (2012, p. 96).

Outro traço fundamental do cinema encontra-se na mistura de linguagens de que o

filme se compõe. Essa linguagem, mesmo sendo plural e heterogênea, agrega outros códigos

ao aparato visual, conforme expõe Santaella: Além de estar em movimento, a imagem não vem

sozinha, mas aparece em conjunto com o diálogo, a música, o ruído (2012, p. 96).

Os diálogos não são um meio de expressão específico do cinema. Porém, é para ele

um meio de expressão essencial. Seria, entretanto, um erro considerar os diálogos como um

procedimento narrativo parasitário e acessório, visto que existe uma incurável nostalgia do

cinema mudo. Porém, no cinema falado, o papel da palavra como elemento da realidade e

fator de realismo é indiscutível. Martin apresenta as seguintes considerações sobre o papel do

diálogo no cinema:

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O diálogo não pode figurar no mesmo plano de importância que a montagem, que é

sem dúvida o elemento mais específico da linguagem fílmica; a fala, com efeito, é

um fator constitutivo da imagem, fator privilegiado, é verdade, pela importância de

seu papel significativo [...] o diálogo deve ser utilizado de forma realista, ou seja,

acompanhando normalmente o movimento dos lábios de um personagem (MARTIN,

2003, p. 175-176).

Isso ocorre porque a importância realista da fala é condicionada pelo fato de ser um

elemento de identificação dos personagens da mesma forma que a roupa, a cor da pele ou o

comportamento em geral (2003, p. 176). Deve haver, desse modo, uma adequação necessária

entre o que diz uma personagem e o modo como diz, como também, sua situação social e

histórica, pois a fala é sentido, mas também realidade humana (2003, p. 176).

Conforme o autor, o maior perigo que correm os diretores em relação ao diálogo é o

de fazer prevalecer a explicação verbal sobre a expressão visual, ou seja,

Todo enredo puramente verbal deveria se reduzir ao mínimo em cinema, já que a

imagem é capaz de mostrar os acontecimentos, mas, sobretudo que, através dos

meios à sua disposição (a metáfora e o símbolo em particular, mas também os

movimentos de câmera, os ângulos de filmagem, os enquadramentos, os ruídos), o

filme pode significar sem ter que dizer, ou seja, pode transpor o sentido do plano da

linguagem verbal para o da expressão plástica (MARTIN, 2003, p. 177).

Fica claro, portanto, que a fala deve evitar o máximo possível ser uma simples

paráfrase da imagem. Porém, o diretor também poderá jogar com a dualidade possível entre

as palavras e o conteúdo fatual da imagem, fazendo surgir desse confronto efeitos simbólicos

muito ricos do ponto de vista da linguagem, como, por exemplo, pode haver dualidade entre a

palavra e a expressão do rosto de quem fala, e o contraste torna-se bem interessante. Pode

existir, também, o cotejo da fala com o gesto, que cria um efeito de contraponto. Poderá

haver, da mesma maneira, contraponto entre a fala e a música-ruído (MARTIN, 2003).

Percebe-se, assim, que os diálogos que se ouvem em um filme nunca estão sozinhos

em cena. Eles devem cumprir seu papel ao mesmo tempo em que convivem com a música, o

ritmo e os ruídos. A música é, sem dúvida, a contribuição mais interessante do cinema falado,

conforme Martin:

A música é, portanto um elemento particularmente específico da arte do filme, e não

é de surpreender que desempenhe um papel tão importante [...] Em certos casos, a

significação ‘literal’ das imagens resulta ser extremamente tênue. A sensação torna-

se musical a tal ponto que, quando a música a acompanha de fato, a imagem obtém

da música o melhor de sua expressão ou, mais precisamente, de sua sugestão (2003,

p. 121).

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Assim, a música possui a capacidade de adicionar na narrativa algo que a imagem não

contém, ao invés de simplesmente traduzi-la. Um exemplo para essa afirmativa seria

imaginarmos um rosto que, em sua apresentação, mostra-se neutro, mas cujo tema musical

revela algo como uma ameaça para o personagem que o avista. A música, por si só, possui a

propriedade de evocar sentimentos e mesmo outras e diferentes imagens. Esta qualidade

acontece muitas vezes no âmbito pessoal do ouvinte. Certa melodia, por exemplo, pode nos

remeter a uma cena de nossa infância, ou a um sentimento de medo e de tristeza.

Nesse caso, é interessante notar aqui que a música não é um acontecimento fechado,

pois se vincula à experiência pessoal do ouvinte. Ela se expande a espaços de associação,

recobrindo-se com um significado não contido em si.

É notório que o cineasta, ao escolher as combinações rítmicas para sua trilha sonora,

faz surgir novos ritmos, que nascem da sucessão dos planos conforme suas relações de

duração (que, para o espectador, é a impressão de duração determinada tanto pela duração real

do plano quanto por seu conteúdo dramático ou menos envolvente), e de tamanho (que se

traduz por um choque psicológico tanto maior quanto mais próximo for o plano) (MARTIN,

2003, p. 144). Ainda para o autor,

As combinações rítmicas resultantes da escolha e da ordem das imagens irão

provocar no espectador uma emoção complementar daquela determinada pelo

assunto do filme... É do ritmo que a obra cinematográfica obtém a ordem e a

proporção, sem o que não teria as características de uma obra de arte (2003, p. 144).

Nota-se que o ritmo e a música desempenham um papel muito importante no filme,

pois ajudam a complementar o significado da cena, como também a aumentar o seu realismo.

O cinema, dessa forma, é visto como uma arte que expressa a ilusão da realidade e essa

realidade se modifica a cada segundo. A linguagem cinematográfica está sempre se adaptando

da melhor forma possível na tentativa de retratar perfeitamente essa realidade. O cinema

permite a relação do sonho versus realidade. Em uma sociedade que impõe medo e limita a

capacidade do sujeito, é ele que liberta a imaginação do ser humano, permitindo-lhe expandir

todos os limites impostos pela vida. Por isso, é considerado como a sétima arte.

Analisado na perspectiva da AD, considero, assim, o cinema como linguagem

imagética em movimento, ou seja, como prática discursiva, visto que cada vez mais a cultura

midiática torna-se um evento sócio comunicativo, evento de cultura, com marcas discursivas e

pragmáticas específicas. Analisar o discurso imagético sob a perspectiva da AD é, pois,

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observar a imagem como materialização do discurso. Em outras palavras, como inscrição

simbólica do discurso. Conforme evidencia Quevedo (2012),

É plenamente possível analisar a imagem em uma instância discursiva sob a

perspectiva da AD de filiação pecheutiana: a imagem como materialização do

discurso, a partir da consideração rigorosa de que o sujeito desse discurso é

interpelado ideologicamente e atravessado pelo inconsciente, de que a imagem é,

como a língua, não toda e lugar da falha do ritual ideológico; de que é sujeita ao

equívoco e instância da falta, pois não dá conta do Real (QUEVEDO, 2012, p. 240).

Diante dessa assertiva, entende-se aqui a imagem como um processo de leitura que

realiza a textualização, e esta como condição para o discurso circular. Proponho, assim,

pensar as imagens do filme O Meu Pé de Laranja Lima como prática discursiva, pois elas,

constituídas por uma materialidade própria, possuem historicidade e significação ao

referirem-se ao mundo (mesmo que em partes imaginário) de uma criança de cinco anos,

destituída de sua identidade infantil pelos discursos e ideologias de outros, atravessados pela

falta e pelo inconsciente. Zezé é, assim, sujeito clivado, produzido na/pela ideologia e

atravessado pelo inconsciente.

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4 DO LIVRO AO FILME: A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO DISCURSIVO EM

O MEU PÉ DE LARANJA LIMA

4.1 Tantas são as velhas árvores! Memória afetivo-discursiva: sentidos e significações

em OMPLL

Para o trabalho que aqui apresento, embasado teoricamente pela AD de filiação

francesa, entendida como teoria capaz de analisar quais os efeitos de sentido produzidos por

uma obra, e de que forma esta os produz, tomei como material de análise o livro O Meu Pé de

Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos, e sua adaptação cinematográfica (2012),

estrelada por João Guilherme Ávila (Zezé) e José de Abreu (Portuga), com roteiro de Marcos

Bernstein e Melaine Dimantas, dirigido pelo próprio roteirista Bernstein. Para tanto, foi

realizado um levantamento de material bibliográfico e de outros estudos já realizados sobre o

tema. As análises foram concretizadas a partir de recortes discursivos (RDs) tomados do

corpus literário pelo viés da AD em diálogo com estudos da linguagem cinematográfica

através de RDF-Is tomados da narrativa fílmica.

Ao criar o filme, o diretor fez uma versão própria, mais atual da obra, afirmando não

ter lido o livro e que mesmo tendo visto a primeira adaptação, não pretendia fazer um remake7

do filme de 1970.

Quanto à temática, o filme OMPLL, assim como o livro, é baseado na vida do criador

da história original, José Mauro de Vasconcelos, que, resolveu criar sua própria biografia,

quando publicou o livro em 1968. Porém, OMPLL retorna ao cinema em uma visão diferente,

com foco na criatividade, brincadeiras e fantasias do personagem Zezé, para dar ao longa um

dinamismo que foge de um drama fechado, melancólico e evita o sentimentalismo fácil tão

presente na primeira adaptação cinematográfica da obra, feita pelo diretor Aurélio Teixeira,

que se apresentava bastante fiel ao livro.

A nova adaptação cinematográfica, não procura retratar a violência infantil, como na

versão anterior e na obra original, em que cenas da violência física sofrida por Zezé são

fielmente descritas e cruelmente retratadas. Ao contrário, é um filme que busca mostrar a

7 Filme cujo roteiro é bem próximo do roteiro de um filme precedente. É reservado, em geral, para casos em que

o primeiro filme que constitui a versão princeps da história contada; em particular, não se considera um remake

um filme que adapta uma obra literária já adaptada, se essa obra é celebre antes de sua adaptação. A relação

entre os dois filmes é sempre estruturada da ordem do remake, mas institucionalmente cada obra reivindica sua

autonomia (AUMONT; MARIE, 2003, p. 255).

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superação, a capacidade do personagem Zezé de criar histórias e mudar sua percepção do

mundo.

Mesmo quando o pai toma algo da mão do menino, o sujeito discursivo Zezé fica

encantado com a sombra do pai refletida ao chão. Esta é a imaginação dele. Assim o filme

busca sempre um lirismo, até mesmo nos momentos mais abusivos descritos no livro. O

espectador sabe nesses momentos que a criança vai apanhar. Porém, Bernstein não considera

importante mostrar a surra em seu filme.

O filme (2012) exalta a qualidade biográfica da obra original, colocando o autor como

personagem. A adaptação de Bernstein começa com o próprio Vasconcelos (interpretado por

Caco Ciocler) recebendo a edição recém-impressa de sua obra. A partir desse acontecimento,

Vasconcelos, em um carro antigo, realiza uma visita ao cemitério onde está enterrado o

Portuga, carregando consigo o exemplar do livro que conta suas histórias de infância.

Vasconcelos, agora como Zezé, volta-se à suas memórias do passado e passa a lembrar

de sua infância, por meio de flashbacks que primam pelo uso de elipses, ou seja, omissões

intencionais de informações facilmente identificáveis pelo contexto, por elementos

construídos por sucessões de imagens sequenciadas.

As narrativas estudadas, alimentam-se da(s) memória(s) de um narrador adulto que

evoca, recorda, recupera e reconstrói com imagens e ideias de um tempo presente, algumas

experiências do seu passado infantil. A lembrança surge assim como algo trabalhado, por um

conjunto de representações que integram a consciência atual do adulto e, por muito nítida que

qualquer recordação se configure aos olhos do leitor/espectador, ela nunca é a vivência que se

experimentou na infância, porque quem rememora cresceu e amadureceu e suas percepções,

ideias e juízos de valor também se alteram.

Já no início do filme, é possível perceber que a memória discursiva desempenha um

papel primordial dentro da narrativa, pois é o autor-narrador-adulto que compõe o texto e que

se recorda do passado da infância. A memória surge, assim, como fator estruturante do eu e

elemento essencial do processo de identificação do SD Zezé.

Porém, convém destacar o caráter fragmentado e lacunar das recordações da infância,

recorrendo à metáfora fotográfica: as recordações são, frequentemente, pedaços dispersos. Em

vários momentos do livro e do filme surgem oscilações entre a possibilidade e a

impossibilidade do ato de narrativo, ou seja, o autor nunca alcançará a reconstituição total do

passado. A memória fica marcada pela descontinuidade, pela incerteza, mas, tal como a

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fotografia, permite concentrar a atenção em pequenos fatos, restituindo certas cenas na sua

intensidade original ou isolando fragmentos que aparecem como concentrados de vida.

Nas obras literária e cinematográfica, destacam-se alguns aspectos referentes à

importância da memória discursiva na organização narrativa. Em ambas as narrativas, a

sucessão dos capítulos e cenas corresponde a uma evolução da consciência do personagem

Zezé face à sua situação pessoal e social e as recordações, marcas do lirismo da obra, estão

indelevelmente ligadas a acontecimentos penosos, dolorosos e traumáticos (a violência física

e psicológica, as perdas irreparáveis de entes queridos), e a sentimentos que marcam,

determinam e formam o SD Zezé.

Nas obras, são várias as referências explícitas ao ato de recordar e, nestes casos, a

memória afetivo-discursiva funciona como ponto de partida para que, dentro da narrativa

principal, encaixem-se breves narrativas e/ou descrições, que parecem surgir casualmente. A

subjetividade de Zezé aparece no livro em contraponto ao grupo familiar e social em que vive

e a suas lembranças sobre como era tratado por este grupo, como pode ser evidenciado no

RD 1:

Zezé:

Porque em casa eu aprendia descobrindo sozinho e fazendo sozinho, fazia errado e

fazendo errado acabava sempre tomando umas palmadas. Até bem pouco tempo

ninguém me batia. Mas depois descobriram as coisas e vivem dizendo que eu era o

cão, que eu era capeta, gato ruço de mau pelo (VASCONCELOS, 2013, p.11).

Nota-se que o sujeito Zezé, através de seu discurso, tenta narrar e explicar fatos

acontecidos em seu ambiente familiar, evidenciando sempre um sentido mais ou menos

integrado e estável de si mesmo. Este sentido de si mesmo é construído a partir das

diferenciações e identificações que o SD vai estabelecendo em relação às pessoas a sua volta,

ou seja, os seus Outros8. O uso explícito do pronome pessoal eu, que o individualiza no

conjunto familiar, é reiterado pelo SD Zezé não uma, mas várias vezes, seja ao não identificar

nominalmente seus familiares, mas indeterminando-os pelo uso de verbos flexionados na

terceira pessoa do plural, como em descobriram e vivem, seja quando reitera a sensação de

isolamento pelo uso repetido do adjetivo sozinho, tanto para o descobrir quanto para o fazer,

ações essas de inserção/interação do SD Zezé com o meio onde vive, durante as suas

brincadeiras de faz de conta e no contexto das interações cotidianas com os adultos.

8 Este Outro (com maiúscula) faz referência ao inconsciente enquanto “discurso do Outro”, o Outro da

linguagem, aquilo que é exterior ao sujeito, ainda que para tornar-se o seu mais íntimo.

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Nessa interação, observa-se que toda manifestação de pensamento emitida pelo SD se

constrói como uma resposta a experiências nascidas da convivência com grupos constituídos

por outros sujeitos. É, assim, construída pelo exterior, que ideologicamente o constitui

enquanto SD.

Nesse sentido, a memória afetivo-discursiva funciona como um operador pré-

discursivo, fundamental na produção dos discursos; para Paveau (2007), a memória retém

também estados mentais e afetivos, que são reconfigurados no processo de recognição. Em

OMPLL são várias as referências em que o SD Zezé retém estados mentais e afetivos de sua

memória na construção de seu discurso. Muitas vezes essas passagens e descrições parecem

surgir casualmente, como é o caso do RD 2 em evidencia a seguir:

Eu estava me lembrando de uma música que mamãe cantava quando eu era bem

pequenininho. Ela ficava no tanque, com um pano amarrado na cabeça para tampar o

sol. Tinha um avental amarrado na barriga e ficava horas e horas metendo a mão na

água, fazendo o sabão virar muita espuma. Depois torcia a roupa e ia até a corda.

Prendia tudo na corda e suspendia o bambu. Ela fazia igualzinho com todas as

roupas [...] Mamãe era alta, magra, mas muito bonita. Tinha uma cor bem queimada

e os cabelos pretos e lisos. Quando ela deixava os cabelos sem prender, dava até na

cintura [...] (VASCONCELOS, 2013, p. 11-12).

Nota-se nesse RD que a FD de Zezé é constituída por um conjunto de sequências

sedimentadas no vínculo afetivo com a mãe. São sequências que retornam à sua lembrança,

despertadas pela recordação de uma canção que ela cantava enquanto lavava a roupa e a

suspendia num varal. Diante disso, observa-se que Zezé constrói, a todo o momento, seu

discurso por meio da narração de fatos do passado, balizada pela memória afetivo-discursiva,

ou seja, quando se lembra da canção que a mãe cantava, quando descreve a mãe, como ela

prendia todas as roupas iguais no varal. Dessa forma, a memória discursiva de Zezé não trata

do presente explícito tão somente. Muitas vezes, e na maioria das passagens da narrativa

literária e fílmica, trata do que está implícito e daquilo que já se constituiu como passado

discursivo, o já-lá que passa a constituir o SD Zezé tal qual ele é.

Dessa forma, de acordo com os postulados da AD francesa, o SD, ao produzir seu

discurso, promove uma relação desse discurso com a memória discursiva, ou seja, com todos

os dizeres que já foram ditos. Sobre a memória discursiva, Pêcheux (1999), afirma que

seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ser lido, vem

restabelecer os “implícitos” (quer dizer mais tecnicamente, os pré-construídos,

elementos citados e relatados, discursos transversos, etc.), de que sua leitura

necessita: a condição de legível em relação ao próprio legível (p. 52).

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Esses implícitos9 podem ser evidenciados em uma das cenas iniciais do filme,

identificada aqui como Recorte Discursivo-Imagético (RDF-I 1), em que o personagem

principal encontra-se no interior da igreja e verbaliza seu discurso, fazendo um resumo de

todas as passagens principais presentes na obra original e que não foram transpostas em

detalhes para a linguagem fílmica.

Bernstein optou por iniciar sua adaptação do livro focalizando acontecimentos que

estão descritos a partir da página 43. Como recurso estético e possivelmente para não deixar o

filme muito extenso, Bernstein preferiu apresentar Zezé, no início do filme, em uma igreja,

em uma conversa com Jesus. Nessa conversa, o SD relata todos os acontecimentos presentes

no primeiro capítulo do livro, sob o título: O descobridor das coisas. Faz, também, um relato

de partes do segundo capítulo, denominado Um Certo Pé de Laranja Lima. A adaptação

cinematográfica, com descrições de acontecimentos ocorridos com o personagem Zezé, como

também a sequência da história que é relatada na obra literária, só ocorre a partir do capítulo

3.

No RDF-I 1, filmado em PP, a câmera enquadra Zezé do peito para cima, recurso

utilizado pelo cineasta para manifestar melhor o poder de significação psicológico e

dramático do discurso do protagonista; a câmera esquadrinha a fisionomia do personagem,

seus dramas mais íntimos e a dramaticidade de todos os fatos relatados em seu discurso.

É evidente no RDF-I 1, a presença das condições de produção do discurso de Zezé,

que compreendem fundamentalmente a situação social em que se encontra sua família e o

desemprego do pai, como também, marcas do contexto histórico daquele período, em que o

que é exterior ao sujeito é constitutivo do seu dizer - a década de 20 e o local onde Zezé e sua

família viviam, na periferia do Rio de Janeiro.

Nessa cena também é possível identificar, conforme as considerações de Pêcheux

(1997a), que todo dizer é ideologicamente marcado, ou seja, é assujeitado ao coletivo e esse

assujeitamento ocorre no nível do inconsciente, pois um discurso nunca é autônomo ou

original em si mesmo, ele parte de discursos já existentes para obter efeitos de sentido num

determinado contexto em que ele tem funcionalidade.

O interdiscurso que atravessa o RDF-I 1 reitera a religião cristã, identificada no

discurso do SD Zezé através da descrição da festividade que se aproxima, o Natal, festa em

9 Presentes na memória discursiva, ou seja, um saber que torna possível a compreensão do sentido de nossas

palavras, correspondendo ao já dito anteriormente, e que liga nossos discursos, como numa teia complexa em

que ocorrem estabilizações, deslocamentos e (res) significações.

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que se comemora o nascimento do Menino Jesus, festejada pelos católicos, através de trocas

de presentes, ceias e reuniões familiares.

Assim, os discursos de Zezé, através da memória discursiva, produzem a imagem

negativa e triste do Natal para sua família, como se pode observar através das palavras de

Zezé em sua conversa com Jesus, na igreja:

Natal é seu aniversário, né? Todo mundo sempre faz festa pra comemorar, mas

ninguém nunca pensa num presente pra te dar. Lá em casa também é assim, não vai

ter nenhum presente e eu acho que também nem vai ter festa para você. Disseram,

também, que você era pobre, seu pai não te batia? Ele tinha emprego, né? Mas eu

não tenho nada, sou pobre, sou criança, meu pai tá sem emprego faz tempo, minha

família não tem nada, quer dizer, minha mãe tem um trabalho lá longe e ela vive

cansada, ela tem até uma hérnia, é uma dor que dói muito. As pessoas falam que eu

tenho o diabo no corpo, é isso que dizem pra mim. Eu sei que não mereço, me ajuda

Jesus, a coisa tá muito feia pro meu lado. Sabe meu irmão Luís, ele se importa muito

com essas coisas de Natal. Vamos fazer um combinado? Se você arrumar um

presente de Natal bem bonito pra ele, eu prometo ser bem bonzinho o ano inteiro,

feito? Feito! (RDF - I 1).

Na sequência discursiva é possível observar marcas de um discurso ideológico de

religiosidade imposto pela sociedade: Natal é seu aniversário, né? Todo mundo sempre faz

festa pra comemorar (RDF-I 1). Através do discurso SD Zezé, é perceptível o significado de

comemoração e de troca de presentes, como uma retribuição aos que não têm o diabo no

corpo, que o Natal assume na vida dos cristãos e no de sua família, exemplificado pelo léxico

empregado – todo mundo... festa para comemorar... ele (o irmão Luís) se importa muito com

essas coisas de Natal.

Zezé, ao conversar com Jesus, compara sua vida a tudo aquilo que vem absorvendo do

que vê e ouve no discurso do Outro. Seus enunciados são também marcados pelo que vive na

sua condição de membro de uma estrutura familiar marcada pela pobreza e pela fome, pela

situação de desemprego do pai, pela exploração profissional da mãe, pela exclusão social e

por comportamentos desestruturados que o atingem, comportamentos entendidos pelo SD

como sendo um reflexo do Diabo que existe dentro de si, como lhe mostra o discurso do

Outro: as pessoas falam que ele possui o diabo no corpo. E é esse discurso taxativo que o

acompanha durante todo o processo de sua constituição enquanto sujeito discursivo.

Compreende-se, através desse RDF- I 1, que todo o discurso produzido pelo sujeito

terá a influência dos discursos pertencentes à sua comunidade, pois todo sujeito é produto de

uma ideologia e de uma história de produção de sentidos que, no corpus analisado, estão

configurados dentro de uma divisão de sociedade entre pobres e excluídos e ricos e mais

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favorecidos. Evidencia-se, assim, a presença da formação discursiva (FD). No caso do SD

Zezé, ela pertence a um discurso familiar e também a uma relação com pessoas adultas,

discurso esse estruturante de um perfil ruim e maldoso sobre o SD protagonista, dirigido por

algumas personagens (o pai, a irmã Jandira e o irmão Totoca, além de alguns vizinhos) ao

menino Zezé. Essas marcas são recorrentemente evidenciadas através de diversos enunciados

presentes em ambas as narrativas. Apresentam-se, porém, mais explicitas na narrativa

literária, como por exemplo, no RD 3 destacado na sequência:

Zezé:

Mas depois descobriram as coisas e vivem dizendo que eu era o cão, que eu era

capeta, gato ruço de mau pelo (VASCONCELOS, 2013, p. 11) [...] Só se foi o

diabo que Jandira diz que é meu padrinho, que me ensinou dormindo (2013, p.

16)[...]. [...] Tá certo que ele tem o diabo no sangue, mas mesmo assim é engraçado

[...] (2013, p.11).

É perceptível durante toda a narrativa, tanto literária, quanto fílmica, a presença do

discurso maniqueísta, a questão do bem contra o mal, do que é certo e do que é errado. De um

lado, há o discurso de um SD naturalmente bom, amoroso, ingênuo, preocupado em cuidar de

seu irmão Luís, o caçula da família, em lhe ensinar coisas boas, de amenizar seu sofrimento e

o entendimento da situação social em que se encontra sua família. De outro lado, há o

discurso de um SD marcado por uma dualidade comportamental, que deixa vazar seu lado

mau, que – conforme os padrões da educação recebida em família – é arteiro, desobediente, e

muitas vezes, fazendo travessuras que provocam consequências funestas para os adultos

envolvidos.

Esse comportamento inclui o SD Zezé num velho clichê de personagens infantis: a do

bom diabinho. Esse lado do bom diabinho do protagonista foi construído e constituído de

maneiras diferentes. Primeiramente, há na narrativa literária de José Mauro de Vasconcelos, a

insistência com que exime o menino de culpa, atribuindo seu mau comportamento a uma

força exterior incontrolável, o diabo, que o tenta e o vence. Esse discurso é evidenciado em

diversas passagens durante a narrativa, como RD 4, a seguir:

Podia ser mais bonito, mas no momento que o meu “padrinho”, o capeta, me

empurrava, não podia haver nada mais gostoso que fazer artes (2013, p. 25). [...] Por

que o Menino Jesus não gosta de mim? Ele gosta até do boi e do burrinho do

presépio. Mas de mim, não. Ele se vingava porque eu era afilhado do diabo. (2013,

p. 43). [...] Eu não presto pra nada. Sou muito ruim. Por isso é o diabo que nasce pra

mim no dia do Natal e eu não ganho nada. Sou uma peste. Uma pestinha. Um

cachorro. Um traste ordinário. Uma das minhas irmãs me disse que coisa ruim como

eu não devia ter nascido (2013, p. 117).

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Nota-se que o sujeito discursivo Zezé não é apenas um indivíduo que fala e faz

reclamações de sua vida, mas é um sujeito discursivo, que carrega consigo marcas do social,

do ideológico, do histórico, e, tem sempre, a ilusão de ser a fonte do seu dizer, quando na

verdade está a todo o momento retomando dizeres já enunciados anteriormente, quase sempre

por outros sujeitos discursivos que fazem parte de sua família.

Dessa forma, o lugar enunciativo de que se ocupa o SD Zezé não é vazio e sim

preenchido por aquilo que Pêcheux (1997c) designa de forma-sujeito, ou sujeito do saber de

uma determinada FD. É então, pela forma-sujeito que o protagonista Zezé se inscreve em uma

FD, com a qual ele se identifica e que o constitui enquanto SD.

Essa FD reorganiza os dizeres do SD, que são recalcados no silenciamento histórico,

moral e socialmente imposto. Zezé constitui-se o tempo todo pela FD familiar que está em

jogo, a qual o domina/determina, fazendo-o a se identificar com essa FD e se desidentificar

com outras. Torna-se, impossível, então, procurar na palavra desse SD um sentido literal. Ele

sempre repercutirá os múltiplos discursos que, desde o seu nascimento, constituíram-no

enquanto SD.

No RD 5, evidencia-se um diálogo entre Zezé e seu irmão Luís na véspera de Natal.

Zezé resolve ir com seu irmão menor até o centro da cidade, onde soube que distribuiriam

brinquedos para as crianças pobres. Porém, chegou tarde e o caminhão dos presentes já havia

passado.

Neste fragmento, nota-se todo o seu descontentamento e frustação em não ganhar o

presente natalino. Zezé relata sua decepção, afirmando mais uma vez que era o menino diabo

que havia nascido naquele Natal. Apesar de não se conformar com a tristeza presente nas

lágrimas de seu irmão, tentou se mostrar conformado na frente de Luís, presenteando-o com

um cavalinho de pau velho, que havia reformado para consolo do mais novo, a quem chamava

de rei Luís:

Zezé: Estava tão triste e decepcionado que preferia morrer a que tivesse acontecido aquilo

[...] - Não faz mal, Luís. Você sabe o meu cavalinho Raio de Luar? Eu vou pedir a

Totoca mudar o cabo dele e dar de Papai Noel para você; Mas ele fungou cumprido.

– Não, não faça isso. Você é um rei. Papai disse que batizou você de Luís, porque

era nome de rei. E um rei não pode chorar na rua, defronte dos outros, viu? (2013,

p. 42-43).

Ocorre, neste diálogo, a linearização do discurso, ou seja, o que o SD Zezé enuncia,

refere-se ao que se disse outrora, ao discurso do pai: Papai disse que batizou você de Luís,

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porque era nome de rei (p. 43), e consequentemente ao que se dirá a seguir: E um rei não

pode chorar na rua defronte dos outros, viu? (p. 43).

O que realmente importa para a AD, como já evidenciado durante a construção do

referencial teórico deste trabalho, é a maneira como o texto significa, de que modo ele,

atualizado pela ressignificação do já-lá que lhe tece a memória, atua sobre o interlocutor e,

dessa forma, repercute em suas ideias e se materializa em suas ações (VELOSO, 2012, p.

41).

Esse já-lá é a marca significativa de todo o discurso do personagem Zezé ao longo das

narrativas e, consequentemente, é constitutivo do seu eu enquanto sujeito e do seu discurso,

pois ele sempre usará marcas do passado para construir o seu presente.

Zezé, assim, apesar de apresentar-se na maior parte da narrativa como um diabinho,

em muitas outras ações é redimido pelo afeto sincero que dá aos seus: Encostei a cabeça dele

no meu peito e fiquei alisando o seu cabelo encaracolado (2013, p. 43). É evidente que seu

discurso tem dois lados amplamente compensatórios. O primeiro, o poder da infância, o de

ascender ao mundo do maravilhoso e a capacidade de transitar com naturalidade do real para

o imaginário ou de transformar fantasias em realidade: Mas não chore que um rei não chora

(p. 43). O outro lado seria a despedida da infância, ou melhor, da inocência da criança, através

de uma miragem retrospectiva, feita pelo SD, já adulto, que rememora sua infância, pela voz

de uma criança e esta, por sua vez, recupera as informações e passa a articulá-las de modo

novo.

Ainda na sequência discursiva do RD 5, todo o afeto sincero transmitido pelo SD Zezé

a seu irmão Luís, representado através de palavras doces, que misturam realidade e fantasia, é

descontruído por uma mudança brusca no enunciado, para dar conta do realismo duro de sua

vida, permeado por uma visão pessimista e desesperançada de si mesmo – estava tão triste e

decepcionado que preferia morrer – afirma o SD, como se a manifestação dessas sensações

de tristeza e de decepção pudessem ser revertidas por um ato derradeiro que o redimisse de

seu comportamento de diabinho, razão das coisas que lhe acontecem.

É no RD 6, que se observam alguns dos traços marcantes dos efeitos de sentido

causados, no interior da formação discursiva familiar, no SD Zezé. Tem-se neste enunciado o

“já-dito” manifestando-se no discurso de menos-valia do SD pelo uso do advérbio

covardemente, pela constatação não sou um rei como você ou, ainda, pela auto definição

depreciativa, como sou uma coisa que não presta pra nada:

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Zezé:

- Aí as lágrimas me desceram covardemente.

Luís:

- Zezé, você está chorando.

Zezé:

Passa logo. Mesmo eu não sou um rei como você. Sou uma coisa que não presta pra

nada. Um menino muito malvado, bem malvado mesmo... Só isso. (2013, p. 44)

Dessa forma, as lágrimas de Zezé, estão relacionadas ao fato de ele não ser um rei,

como seu irmão Luís, porque cresceu escutando do seu pai que Luís era nome de Rei e que

Zezé não era nada: Mesmo eu não sou um rei como você. Sou uma coisa que não presta pra

nada (p. 44). Fica claro, através do seu discurso, que o choro do SD resulta de sua

autopunição, da consciência de sua maldade e da fraqueza por nunca resistir aos maus

conselhos do diabo que o tenta. Zezé constitui-se assim, como uma criança vitimada pela

situação, que cresceu sentindo-se inferior aos olhos do pai, da sociedade e do restante de sua

família.

O texto fílmico, no entanto, deixa vazar outra intenção ao retratar essa cena. Com

outros elementos em outro âmbito, porém, tem características e representações que o levam

implicitamente a resgatar uma estrutura em profundidade de OMPLL livro, que se encontra

como pano de fundo do filme. Assim, de acordo com Maingueneau,

O fechamento de uma formação discursiva é fundamentalmente estável, não se

constituindo em um limite que, por ser tacado de modo definitivo, separa um interior

e um exterior, mas inscrevendo-se em diversas formações discursivas, como uma

fronteira que se desloca em função dos embates da luta ideológica. O interdiscurso

consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma formação

discursiva é levada [...] a incorporar elementos pré-construídos produzidos fora dela,

com eles provocando sua redefinição e redirecionamento, suscitando, igualmente, o

chamamento de seus próprios elementos para organizar sua repetição, mas também

provocando, eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação

de determinados elementos (1997, p. 112-113).

Dessa forma, o filme OMPLL também faz parte de uma FD, de uma memória

discursiva, do interdiscurso, do qual é parte. Ou seja, a narrativa fílmica não constrói sua

história de forma isolada. É articulada com a memória discursiva do roteirista e do diretor, a

fim de resgatar semelhanças da narrativa literária. Ao longo da história o filme interage com o

livro, construindo situações e fazendo a representação de personagens semelhantes.

Porém, a narrativa fílmica vai redefinindo-se, e ao mesmo tempo em que vai

retomando a história do livro, constrói uma nova história. Assim, a FD do filme não é singular

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e nem homogênea. Há na narrativa fílmica a incorporação de novos elementos que não estão

presentes no livro porque são próprias da linguagem cinematográfica.

Muitas vezes, durante o filme, parece que as características psicológicas de Zezé, tão

marcantes na obra literária, dentre elas, o sentimentalismo fácil, que o conduz a situações

ruins e o identifica sempre como a vítima do enredo, é construída de forma diferente. O

discurso do SD Zezé parece trazer, no filme, as marcas de alguém já maduro e conformado

com a situação que se lhe apresenta.

No livro, Vasconcelos usa as lágrimas, tanto do menino Zezé, quanto de seu irmão,

para retratar a dor e a revolta dos meninos em relação à situação em que se encontravam,

sentados no cordão da calçada, sem presentes de Natal. Assim, o autor tira proveito semântico

das palavras que escolhe para descrever a reação dos SDs-personagens – Mas ele fungou

comprido [...] Aí as lágrimas me desceram covardemente (2013, p. 43) – para representar toda

a dramaticidade da cena e toda tristeza que tomou conta do ambiente naquela situação

discursiva.

No filme, Bernstein tira proveito da linguagem imagética com recursos simples,

identificadores do universo em que o SD vive sua infância, como na cena em que o SD Zezé,

sentado com o irmão no cordão da calçada fronteira a um bazar em que um violonista canta

uma canção de Natal, coloca diante do seu rosto um pedaço de papel celofane cor-de-rosa,

resto de um embrulho de presente que encontrou no chão, e vê a imagem do cantor como

fazendo parte de um outro mundo, um mundo cor-de-rosa – cor simbolicamente identificada

com felicidade, ausência de problemas ou de conflitos –, diferente do seu. Também o olhar

cheio de raiva que o menino dirige para o carro do português Manuel Valadares, estacionado

junto à calçada, ao lado de onde estão sentados os irmãos, é um bom exemplo da recriação do

sentido criado por um discurso narrativo noutro discurso, o da imagem em movimento, do

diálogo possível entre a literatura e o cinema. Dessa forma, como afirma Avellar (2007),

O texto é um estímulo para a imaginação e não para uma reconstituição de imagens

verbais tal e qual em imagens visuais. Não se trata de ilustrar o que está escrito nem

de ilustrar o modo de escrever, mas de voltar ao que o escritor viu (como se a

imaginação fosse um filme), ao processo que o levou a escrever o seu texto

(AVELLAR, 2007, p. 46).

Por esse viés, o discurso fílmico pode ser visto como um meio de acesso aos conjuntos

sociais da memória, análise essa que pode indicar um dispositivo de interpretação que

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viabilize ao espectador uma compreensão dos efeitos de sentido produzidos por essa

modalidade de manifestação da linguagem.

No RDF-I 2, a câmera mostra em PG a imagem de Zezé e seu irmão Luís, sentados no

cordão da calçada. Zezé é filmado com o rosto coberto pelo papel celofane transparente cor-

de-rosa, que serviu de embrulho a algum presente. A imagem deixa subtendido que chegaram

tarde à praça e não havia mais distribuição de presentes naquele lugar. A simbologia continua

presente, agora não mais na cor do papel recolhido do chão, mas no gesto do SD Zezé. Ele

retira o papel da frente do rosto e o devolve ao chão. Ao seu lado, Luís chora e logo se volta e

pergunta a ele, Zezé, se está triste, recebendo como resposta que não é preciso chorar para

estar triste. Cotovelos apoiados nos próprios joelhos, Luís volta a chorar, com o rosto

novamente apoiado nas mãos. A leitura possível é a da expressão de tristeza e também de

decepção demonstrada pelo SD Zezé naquela circunstância. No livro, esse gesto é apresentado

através do discurso de Zezé: Estava tão triste e decepcionado que preferia morrer a que

tivesse acontecido aquilo (2013, p. 42).

Vê-se que no filme todo esse enunciado fica subtendido na simplicidade do gesto do

personagem Zezé, de esconder o rosto atrás do embrulho de um presente deixado por uma

criança, que certamente levou para casa seu presente de Natal, e depois retirá-lo e voltar os

olhos para o interior do bazar e ver e ouvir a realidade presente no discurso musical do cantor-

violonista. Enquanto os irmãos dialogam, uma canção de Natal toma conta da cena, realçando

a importância dos efeitos sonoros que complementam a ambientação cênica, como é possível

de comprovar no RDF-I 2:

Um presente eu vou pedir, / se eu vou ganhar não sei, / já peguei o meu sapato, / na

janela coloquei, / todo mundo já pediu, / mas, porém tenho um receio / e se o Papai

Noel não vim...

A canção contribui para toda a dramaticidade da cena: os meninos ficarão sem

presente de Natal. Não são necessárias mais palavras para identificar, no filme, toda sequência

discursiva que se estabelece no livro no momento da chegada dos meninos à praça, como

relatada no RD 7, Mortos de cansaço, chegamos lá. Não havia ninguém. Nem parecia que

houvera distribuição de brinquedos. Mas houvera, sim, porque a rua estava cheia de papel de

seda amarrotado. A areia estava toda colorida de papel rasgado (2013, p.42).

No livro, toda a sequência enunciativa das cenas anteriores mostra ao leitor que era

véspera de Natal, que os meninos caminharam horas e horas para chegar à praça. No entanto,

mortos de cansaço, lá não encontraram mais ninguém, apenas restos de papel jogados na rua.

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Todas as palavras situam o leitor em relação à dor e à decepção presentes no discurso do SD

Zezé: estava tão triste e decepcionado [...] Meu peito explodiu numa mágoa enorme [...] As

lágrimas me desceram [...] Por que o Menino Jesus não gosta de mim? [...] Ele se vingava de

mim porque eu era afilhado do Diabo (p. 41- 43).

Diferentemente do que acontece no livro, Bernstein não utiliza em seu roteiro os

substantivos Natal, Papai Noel, presente, etc., para situar o espectador em relação à cena

narrada no livro, e nem precisa. O diretor faz uso de apenas dois diálogos entre os meninos,

mas insere uma canção ao fundo, a que é interpretada pelo violonista, no bazar diante deles,

do outro lado da rua. É ela que adiciona à narrativa fílmica aquilo que a imagem não contém

e aquilo que as palavras não dizem. Pensa-se em como um espectador que não leu a obra

original poderia perceber toda a intenção e sentido da cena. E isso ocorre muito bem, através

da música e das imagens: a melodia cantada e tocada pelo violonista que, mais tarde vem-se a

descobrir, chama-se Ariovaldo, ganha destaque ao fundo. Para Martin (2003), [...] o silêncio,

melhor do que a intervenção de uma música, é capaz de sublinhar, como força, a tensão

dramática de um momento [...] (2003, p. 115).

Retomando o RDF-I 2: o SD Zezé está sentado no cordão da calçada. Alguns minutos

de silêncio envolvem o espectador. Logo depois, esse silêncio da cena é quebrado com um

pequeno diálogo entre o SD Zezé e seu irmão Luís:

Zezé:

- Você vai ganhar um presente de Natal, prometo.

Luís:

- Você não tá triste Zezé?

Zezé:

- Não precisa chorar pra tá triste.

Saindo-se da análise discursiva do não verbal para a análise da materialidade

linguística constituída pelo diálogo do SD com seu irmão, é possível perceber que,

diferentemente do diálogo do mesmo acontecimento presente na narrativa literária, Zezé não

chora, mostra-se firme e conformado com a situação, seu discurso não é de lamentação, como

no livro. Ao contrário, através do seu discurso, transcrito no (RDF-I 2), o SD parece

perceber-se como uma criança mais madura do que seu irmão, sentindo-se potencialmente

mais independente, capaz de se recompor facilmente naquela situação.

Esse fato é comprovável mediante o discurso do SD Zezé: Não precisa chorar pra tá

triste, e minutos depois, por um rompimento brusco na cena, quando a porta do carro de

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Manuel Valadares se fecha (RDF-I 3). Escuta-se o barulho, Zezé e seu irmão levantam-se em

um movimento brusco. A expressão facial do SD Zezé demonstra que está tomado por um

desejo de vingança e completude que o leva a negociar com o real, numa demonstração de

que deseja vingança contra quem tem mais condições do que os demais, almejando e

idealizando um futuro diferente, expressado através do desejo de ter o carro semelhante ao do

Portuga:

Zezé: - Um dia eu vou comprar um carro que nem esse aí.

Nessa cena, o simbolismo presente nos demais constituintes discursivos, como o olhar

e expressão do menino Zezé exercem total importância. Analisá-los é trazer à tona sentidos

não aparentes, mas possíveis de serem lidos como tais, porque a situação discursiva está

alicerçada na presença da linguagem não verbal.

O rosto de Zezé, filmado em PP, revela o seu drama mais íntimo: ser pobre, ter família

pobre e ser esquecido pelo Menino Jesus e o Papai Noel no Natal, como ele mesmo afirma:

[...] e por que o Menino Jesus não é bom pra gente? (2013, p. 46).

Assim, a expressão do personagem analisado reproduz toda a dramaticidade presente

no livro. Porém, o SD Zezé é construído de forma distinta na linguagem cinematográfica, pois

são as imagens que o representam, imagens geralmente apresentadas em movimento

panorâmico da câmera em torno do próprio eixo e assimiladas por um olhar que retém as

expressões descritivas e dramáticas das cenas, registrando todas as impressões sentidas pelo

personagem, deixando subtendido ao olhar do espectador o invisível que esteja regendo esses

sentimentos. Conforme Avellar (2007),

No filme a história é aquela mesma criada para servir à palavra, mas [...] não se

limita a ver os acontecimentos imaginados no texto como realidade a ser

materializada na cena feita para a câmera: o filme nos revela uma dimensão/outra da

questão discutida no texto, um aspecto da realidade que só se revela numa imagem.

Desenha as cenas nascidas do livro como se elas tivessem alguma independência

dele – não toda independência [...] Vai além da superfície do texto, além do que nele

se pode ver e ler. Vai ao invisível do texto, ao que o motivou à questão mesma, que

renasce e revela um novo pedaço de si. A imagem verbal que não se reduz a um

comentário unicamente epidérmico da vida estimula a invenção de uma imagem

visual de comportamento idêntico – não se reduz a um comentário unicamente

epidérmico do texto (2007, p. 45).

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O que OMPLL filme trouxe do OMPLL livro não foi somente o que a obra de

Vasconcelos provocou no imaginário do leitor, mas principalmente o impulso gerador da

obra, sua ideia, seu ponto de partida, a imagem (mental, não necessariamente visual) que

gerou o livro, o que na obra existia antes de a obra existir, sua vontade de ser, o que ela era

antes de se fazer por intermédio do autor.

Porém, tanto na linguagem literária, quanto na linguagem cinematográfica, o fio do

discurso do SD Zezé (o intradiscurso) é o mesmo. Observa-se que em todos os seus diálogos,

no livro e no filme, há traços da FD familiar constitutiva desse sujeito. Essa FD relaciona-se o

tempo todo com a exterioridade, ou seja, com a aspereza de uma vida familiar e social

difíceis, com as palavras duras proferidas pelos mais velhos e com os maus tratos sofridos

pela família.

Esse fato pode ser comprovado através do RD 8, quando Zezé questiona seu irmão

Totoca, sobre o seu verdadeiro eu:

Zezé:

- Diga sério, você acha que eu sou tão ruim, tão malvado como todo mundo diz?

(2013, p. 45).

Totoca:

- Malvado, malvado, não. O que acontece é que você tem o diabo no sangue (p. 45).

Ao longo de seu discurso, Totoca reafirma aquilo que sua família já pregara antes:

Zezé tem o diabo no sangue (p. 45) e isso justifica seu comportamento. A partir desse fato, o

sujeito-discursivo Zezé enuncia o tempo todo desde uma FD histórica e ideologicamente

marcada. Os efeitos de sentido provocados pelo discurso do SD Zezé apontam para o discurso

do ódio, que envolve questões morais e religiosas sensíveis e, também, as questões

decorrentes da marginalização das classes menos favorecidas, além de apresentar a situação

de precariedade em que vive sua família.

Assim, o SD em análise constrói-se a todo o momento, na interação social, e, dessa

forma, não é o centro do seu dizer. Em sua voz há um conjunto de outras vozes, heterogêneas,

que se manifestam, como é evidenciado do RD 9, em que Zezé questiona a religião, a crença

no Menino Jesus que nasce no Natal, pois, a partir de toda sua experiência anterior, e do que

se observa no exterior, ou seja, na sociedade, onde os que possuem maiores condições

possuem um Natal de verdade, o menino passa a acreditar que Jesus só gosta das pessoas

ricas.

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Instaura-se aí, aquilo que vem sendo evidenciado neste trabalho mediante o suporte

teórico da AD: o sujeito não é fonte do sentido, mas se constitui como sujeito por um trabalho

de rede de memória, acionado pelas diferentes formações discursivas que afetam o modo

como ele significa em uma dada situação discursiva. Ou seja, os dizeres do personagem Zezé,

não são transparentes, legíveis, pois estão inseridos em diálogos interdiscursivos e por isso

são atravessados por falas que vêm de seu exterior, ou seja, seus enunciados estão clivados de

pegadas de outros discursos. Essas considerações podem ser mais bem exemplificadas através

da análise do RD 9:

Zezé:

- Mesmo o Menino Jesus não é essa coisa tão boa que todo mundo fala. Que o padre

conta nem que o Catecismo diz [...] E por que o Menino Jesus não é bom pra gente?

Vai na casa do Dr. Faulhaber e veja o tamanho da mesa cheia de coisas. Na casa dos

Villas Boas, também. Na casa do Dr. Adaucto Luz, nem se fala. (2013, p. 47).

É possível perceber, nessa passagem, que há um jogo dialético, em que está presente o

confronto ideológico. No enunciado Mesmo o Menino Jesus não é essa coisa tão boa que

todo mundo fala. Que o padre conta nem que o Catecismo diz (p. 47), está implícita a

religiosidade, a crença no Natal, que é o nascimento de Jesus. Representado pelo já-dito, está

subtendido que Jesus é a salvação, que todos somos filhos de Deus, todo mundo diz que Jesus

é bom (p. 47).

Jesus, na perspectiva do SD Zezé, não olha para as famílias pobres. Assim, toda a

manifestação ideológica imposta pela sociedade é desconstruída através da sua realidade.

Como podem as famílias consideradas ricas pela sociedade, possuir uma ceia farta no Natal e

as famílias pobres uma mesa vazia?

A sequência discursiva a seguir (RD 10), traz essa ideia implícita e a desilusão para

com toda a ideologia religiosa dominante, Por isso que eu acho que o Menino Jesus só quis

nascer pobre para se mostrar. Depois ele viu que só os ricos é que prestavam (2013, p. 46).

Torna-se evidente que o sentido presente por trás desse discurso é o contexto

vivenciado pelo Brasil, na época. A figura central do pobre aparece em toda sua potência.

Começou a evidenciar-se uma multiplicidade de sujeitos, ou seja, em um lugar em que só o

rico, aquele que possuía o poder tinha direitos, o pobre, os trabalhadores, os estudantes e

desempregados começaram a reivindicar seus direitos e lutar por uma distribuição de renda

mais igualitária.

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Configura-se, dessa maneira, o fato de que o sentido do discurso do SD Zezé se

constrói e se articula com a história e a sociedade que o produz. Dessa forma, é atravessado

pela formação social, pela posição ocupada por ele na hierarquia da sociedade, representada

através das dificuldades financeiras vivenciadas pela família do personagem, sentido esse

configurado também pela ideologia, por ser correspondente aos valores que são transmitidos

ao indivíduo por seu meio, dos quais que se imbui e raramente se desfaz.

Zezé é apresentado no filme como um exemplo de uma inteligência precoce e também

de alguém que se revolta, mas não impunemente. Um exemplo dos valores que lhe são

transmitidos e dos quais ele se imbui, como também da inocência que está por trás do SD,

pode ser evidenciado em uma cena que talvez seja a mais triste e comovente, tanto na obra

cinematográfica, quanto na literária.

Em um momento de tristeza do pai, Zezé procura cantar para ele. Não sabendo que o

conteúdo da canção, na perspectiva ideológico-moral de sua FD familiar, era inadequado para

sua idade, pois a aprendera com seu Ariovaldo, um senhor que cantava os grandes sucessos

pelas ruas da cidade. Zezé lembrou-se do repertório. Lembrou também que a canção era

Tango [...] e era das coisas mais bonitas que eu já ouvira (2013, p. 135).

O personagem cantou bem baixinho. Tinha certeza de que a tristeza do pai melhoraria

com a canção. De início, quando o pai pediu que repetisse, sua inocência levou-o a pensar que

o pai estava gostando, como se evidencia no RD 11, dividido em quatro sequências – a, b, c,

d. Na primeira sequência (RD 11a), Zezé canta para o pai:

Zezé:

- Passei o repertório na cabeça e me lembrei da última música que aprendera com

seu Ariovaldo. “O Tango”, o tango era das coisas mais bonitas que eu já ouvira.

Comecei baixinho:

- Eu quero uma mulher bem nua; Bem nua eu a quero ter; De noite no clarão da lua;

Eu quero o corpo da mulher.

Pai:

- Zezé!

Zezé:

Levantei-me prestamente. Papai devia estar gostando muito e queria que eu viesse

cantar perto.

Pai:

- Que é que você está cantando?

Zezé:

Repeti. Eu quero uma mulher bem nua... (2013, p. 135-136).

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Porém, o autoritarismo do pai de Zezé o impede de ver qualquer boa intenção no filho.

Zezé é tratado pelo seu pai como pessoa grande. O verbo repetir, no presente do indicativo,

utilizado pelo pai, deixa implícitas duas possibilidades: Ou estava gostando do que o filho

cantara e queria continuar a escutar, ou queria ter certeza de que Zezé tinha consciência da

tamanha astúcia presente na letra da canção e estava debochando dele, pai.

Zezé repetiu a canção todas as vezes que o pai lhe ordenou, não tinha consciência do

teor malicioso contido na letra; apenas, achava bonita. No segundo fragmento do RD 11,

observa-se todo o efeito de sentido que sua cantoria causou em seu pai, identificando, que por

traz da ordem do pai, repete, na verdade escondia-se um discurso de autoridade e

desconformidade com o caráter depreciativo da canção cantada por um menino de apenas seis

anos de idade.

Instigado pelo pai, e confiante de que o mesmo estava gostando da cantoria, Zezé

continuou cantando. Porém, é no segundo fragmento, o RD 11b, que se apresentam as

consequências de seu discurso,

Pai:

- Repita de novo a canção.

Zezé:

- É um tango da moda... Eu quero uma mulher bem nua...

Uma bofetada estalou no meu rosto.

Pai:

- Canta de novo.

Zezé:

- Eu quero uma mulher bem nua...

Outra bofetada, outra, mais outra. As lágrimas pulavam dos meus olhos sem querer.

Pai:

- Vamos, continua a cantar.

Zezé:

- Eu quero uma mulher bem nua... (p. 136)

Em ambos os fragmentos, fica evidente a assimetria discursiva existente entre os dos

sujeitos, determinada pela FD a que pertencem. O pai de Zezé exerce o discurso da autoridade

paterna sobre o filho. Conforme Veloso (2012),

Na constituição da sociedade familiar de tradição ocidental-cristã, cabe aos pais o

discurso da autoridade sobre as atitudes permitidas ou não permitidas aos filhos,

discurso esse que se reatualizará sempre que uma nova sociedade familiar se

constitua dentro desses mesmos padrões ideológico-religiosos e sociais. É um papel

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discursivo socialmente aceito e tido como inerente à condição de ser pai e/ou de ser

mãe. Cabe a estes, por direito, exercê-la. (2012, p. 107)

É através do discurso do pai, antes da agressão ao menino, que essa relação de

autoridade paterna é estabelecida. Mesmo não sendo um pai presente, as regras ao filho

estavam impostas. O fato de Zezé cantar uma canção de caráter depreciativo chega aos

ouvidos do pai como uma falta de respeito, como se o menino estivesse debochando da

relação pai e filho e, assim, fugindo das regras socioideológicas que ditavam as relações entre

filhos e pais, ou seja, o pai fala e o filho escuta e obedece, sem direito a argumentar ou contra

argumentar.

A FD correspondente à autoridade paterna sobre as atitudes permitidas e não

permitidas a Zezé são evidenciadas no terceiro fragmento c do RD 11, que registra o diálogo

pai-filho ocorrido minutos antes da surra paterna no menino:

Pai:

- Quem ensinou essa música a você?

Zezé:

Seus olhos tinham adquirido um brilho fosco como se fosse ficar louco.

- Foi seu Ariovaldo.

Pai:

- Eu já disse que não queria que andasse na sua companhia (2013, p. 136).

O discurso do pai está determinado por uma FD, pertencente a uma FI conservadora

quanto aos conceitos morais ditados pelo interdiscurso de toda sua vizinhança, pois a fama de

seu Ariovaldo e o caráter das canções que compunha não eram dos melhores. Por esse motivo,

não seria correto que vissem seu filho Zezé em sua companhia.

No entanto, a surra do pai gerou uma revolta ainda maior no menino. Instaurou-se,

assim, o efeito de que nenhuma voz fala sozinha, rompendo-se então as regras

socioideológicas estruturantes da FD familiar. Tomado por um discurso extremamente

rebuscado, com palavras inapropriadas para uma criança de seis anos, o SD Zezé, como

apresentado no quarto e último fragmento do RD 11 responde e enfrenta seu pai:

Zezé:

Quando ele parou um pouco e me mandou cantar, eu não cantei. Olhei Papai com

desprezo enorme e falei: - Assassino. Mate-me de uma vez. A cadeia está aí para me

vingar (p.136-137).

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É notável a presença do interdiscurso através de seu discurso: A cadeia está aí para

me vingar (p. 137). Esse enunciado expõe uma fala atravessada pela exterioridade, aquilo que

provavelmente viu e ouviu de outro discurso, aquela que seus heróis falavam no cinema.

Nota-se aqui uma fala precoce demais para a idade do personagem, tanto quanto o é o

emprego da ênclise no uso enfático do imperativo pelo SD Zezé - Mate-me de uma vez (p.

137). O implícito aí contido é a denúncia consciente do uso da força física usada em excesso

pelo pai, além da constatação de que a violência, os maus tratos contra crianças são crimes e

que há formas de punição para esses atos: A cadeia está aí para me vingar (p. 137).

No filme, o ritmo ascendente da cena acontece de forma menos detalhada. Bernstein

faz uso de outros elementos. O SD Zezé entra pela porta da cozinha, carregando um peixe

pendurado em um galho de árvore. O pai está sentado, em silêncio. Zezé usa o peixe como

instrumento para uma aproximação com o pai. A iluminação da cena é pouca contribuindo

para o sentido dramático do momento. As sombras escuras são marcantes e conseguem

acentuar o distanciamento que existe entre pai e filho, no RDF-I 4, destaca-se o diálogo entre

os dois personagens,

Zezé:

- Oi pai!

O pai olha atentamente para o filho, porém, permanece em silêncio, Zezé continua sua

conversa:

Zezé:

- Hoje eu pesquei um peixe bem grandão. Eu brinquei bastante e também... e

também eu não fiz nada de errado pai.

O pai permanece em silêncio, a cena é filmada em PA e Zezé é enquadrado da cintura

para cima. Esse plano possui uma função descritiva, servindo não apenas para enquadrar os

personagens, mas para enfatizar alguns elementos importantes na cena. Ao fundo a porta de

entrada, uma mesa e alguns utensílios de cozinha para situar o espectador do ambiente onde

os personagens se encontram. Na mão de Zezé um pedaço de vara e um peixe pendurado, o

pai sentado e o único movimento que realiza é o de levar o cigarro até a boca.

Zezé busca um diálogo com o pai e, nesta busca, utiliza palavras para agradá-lo,

procurando mostrar também, que seu comportamento melhorou: - E também não fiz nada de

errado pai. Diferentemente do livro, em que Zezé chega a casa, para diante do pai e canta à

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canção que aprendera, o filme apresenta outros recursos visuais, como o peixe, que o

personagem utiliza como artificio para atrair a atenção do pai. Porém, a reação do pai é

igualmente retratada em ambas as linguagens. Este permanece em silêncio sem dar atenção ao

filho.

Em suma, este silêncio sempre está presente nas cenas entre Zezé e seu pai, remetendo

assim à ideia de opressão, como afirma Martin (2013): [...] o silêncio, melhor do que a

intervenção de uma música é capaz de sublinhar como força a tensão dramática de um

momento (p. 115). Dessa forma, o não falar do pai, não significa que o mesmo não tenha nada

a dizer, ao contrário, aqueles que não falam podem estar transbordando de emoções, ou cargas

negativas, que só podem ser expressas através de formas e imagens, gestos e feições.

Na sequência do RDF-I 5, Zezé procura mais uma vez, o diálogo com o pai,

Zezé:

- Peixe alimenta né Pai?

- Nós podia fazer isso mais vezes, prá gente ter mais comida em casa...

O Pai permanece em silêncio, Zezé realiza sua última tentativa para fazer o pai falar,

resolve cantar, buscando qualquer expressão em seu rosto, que não seja a de amargura pela

vida. Como recurso cinematográfico, ou talvez estético, Bernstein optou por utilizar uma

canção diferente do que a cantada pelo menino na narrativa literária já evidenciada no RD 11:

Eu quero uma mulher bem nua (2013, p. 136).

A canção escolhida pelo diretor para a trilha sonora do filme contém um já-dito, um

interdiscurso por trás de sua letra, uma coisa de macho (RDF-I 6), como Zezé fala no ouvido

do pai antes de cantar-lhe a canção escolhida. Observa-se no RDF-I 6 a presença do

interdiscurso na letra da canção:

Zezé:

Fui numa pescaria, lá no Pantanal, pescaria do Pacu vou contar comé que é; Se é

Pacu pequeno você põe minhoca, mas se é pacu grande você pode por mandioca; Se

é pacu pequeno você põe minhoca, mas se é Pacu grande você pode por mandioca.

Uma canção de conteúdo malicioso, porém, nas feições de Zezé, é possível perceber

que quem canta é realmente uma criança de seis anos, que escutou um adulto cantando, os

outros achando graça, e pensou que seu pai acharia graça também. Observa-se que não há

maldade no discurso do SD Zezé, apenas ocorre uma relação, um diálogo do SD com a

exterioridade, atravessada e permeada pelo interdiscurso – Coisa de macho (RDF-I 6) – e

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pela memória discursiva: Ah... (Expressão utilizada por Zezé, que remete ao fato de que

lembrou da canção cantada e das palavras de seu Ariovaldo), como é evidenciado através do

RDF-I 7: Ariovaldo após ensinar a canção da pescaria no Pantanal, diz a Zezé: Homem gosta

é de música safada.

Assim, lembrando-se do discurso do cantor, Zezé achou que seu pai também poderia

gostar: Eu acho que cê vai gostar, diz. Na sequência, baixando o tom da voz, ele aproxima o

rosto do rosto do pai e, colocando a mão em concha para que ninguém mais ouvisse, ele

segreda, em tom de cumplicidade: Coisa de macho. E começa a cantar. (RDF-I 6). Porém, a

canção, implicou outros efeitos de sentidos, diversos dos pretendidos pelo enunciado do

personagem, advindos do lugar discursivo ocupado pelo SD em outra posição-sujeito, ou seja,

na relação de convivência com pessoas adultas, ou melhor, com um vendedor ambulante que

comercializa CDs pelo mundo.

O ângulo em que a cena é filmada no momento em que o SD Zezé canta agora é outro,

como se observa no RDF-I 8. A câmera se afasta um pouco dos personagens. O menino é

enquadrado de corpo inteiro, em um degrau abaixo do que está seu pai, que aparece por

inteiro sentado em sua cadeira. Zezé e o pai são filmados em plongée, a câmera está acima do

nível dos olhos, voltada para baixo apresentado os dois personagens na mesma altura. A cena

é de interior, escura; a única iluminação é a claridade que entra pela porta, destacando parte

do corpo do menino Zezé e o peixe que está em sua mão.

O peixe que aparece na cena também carrega uma simbologia religiosa. A família de

Zezé é cristã e o peixe é um símbolo do Cristianismo, muito usado em igrejas e

representações religiosas. Antigamente, os primeiros cristãos usavam o desenho de um peixe

como sinal secreto da fé. Assim, para um cristão identificar se outra pessoa era irmão na fé,

desenhava um arco na areia. Se a outra pessoa era cristã, desenhava o arco ao contrário,

formando assim, o desenho de um peixe.

O peixe também era um dos alimentos básicos entre os judeus e, por esse motivo,

tornou uma marca cristã, símbolo de amor, de união, de compaixão. Importante lembrar que o

peixe também se tornou um símbolo de Cristo na medida em que Jesus, miraculosamente,

multiplicou os pães e os peixes a fim de alimentar e salvar os crentes que O seguiam.

Nesse sentido, o peixe não aparece na cena fílmica ao acaso. Há toda uma

representatividade por trás. O SD Zezé assume a forma de sujeito-religiosa utilizando o peixe

para tentar uma aproximação com o pai, a FD cristã está por trás de seu discurso: Peixe

alimenta né, Pai?(RDF-I 5), representando assim, toda uma ideologia: Nós podia fazer isso

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mais vezes, pra gente ter mais comida em casa (RDF-I 5), representativa daquilo que é

sagrado, um alimento sagrado, a fé, a esperança de união com a pai e compaixão para com a

situação de desemprego do mesmo, além da esperança em ter o que colocar na mesa e não

passar mais fome.

Entretanto, não obtendo êxito no que pretendia, ou seja, provocar alguma mudança no

semblante do pai, Zezé desiste da cantoria, vira-se e sai, deixando o peixe sobre a mesa.

Porém, sua saída é interrompida pela voz de seu pai:

Pai:

- Zezé, vem cá. Vem cá.

Nesse momento o pai levanta da cadeira, percebe-se em sua expressão o

descontentamento pela canção que ouve pela voz do filho.

Pai:

- Repete essa música que você tava cantando agora.

Em um PP a câmera ultrapassa todos os estratos da fisionomia, mostrando o

verdadeiro rosto escondido. Além do rosto, que é possível ver a olho nu, a máquina de filmar

descobre as experiências interiores, aquilo que não foi dito, mas está lá, no rosto do pai.

Aqui, o discurso é o do silêncio, que preenche a ausência de diálogos. O simples fato

de o pai encarar o filho, sem dizer palavra e tendo no olhar uma expressão de contrariedade

com a canção que ouve, já se constitui em um discurso. Assim, o discurso se altera do verbal

para o não verbal, levando à necessidade de uma análise das simbologias presentes nas

produções de sentidos, na identificação discursiva dos sujeitos.

A surra acontece, sem explicações. Diferentemente do que é narrado no livro, a cena

não contém muitos detalhes. Escuta-se apenas o som das bofetadas dadas no menino. O

espectador vê agora o semblante do pai pelo olho do menino é como se o espectador e

personagem apanhassem juntos. O valor ascendente da cena, sentida como uma aceleração do

andamento da surra, da perspectiva tanto da criança quanto do cineasta, aparece como um

momento de ruptura de toda a sequência, pontuada por forte emoção, o que permite inscreve-

la como uma cena de manifestação intensa.

Ainda, na análise do RDF-I 8, percebe-se que o diretor mantém o pai em um plano

superior ao de Zezé. A cena da surra é filmada em contre-plongée, que indica de forma

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simbólica a superioridade do pai em relação ao menino, ressaltando a fraqueza e impotência

da criança diante de seu agressor. Simultaneamente, a cena da surra também leva o espectador

a perceber que é naquele instante que ocorre uma ruptura na posição-sujeito de inferioridade

do SD Zezé em relação à posição-sujeito oposta sempre exercida pelo pai em sua relação com

o filho.

Instaura-se nesta cena, a ideia de um acontecimento discursivo, vazado aos olhos do

espectador que detenha sua visão nas fisionomias e no olhar dos personagens. A câmera

acompanha de baixo para cima o olhar do filho em relação ao olhar do pai. É um olhar

premonitório da mudança que em instantes inverterá as posições discursivas do SD Zezé Por

um instante, numa tomada em PP, os rostos de ambos se alternam e tomam conta da tela,

como se boiassem, mortos, numa superfície líquida, até que o olho da câmera se abre e mostra

um rio em que somente um corpo soçobra, desfalecido. É o do menino, Zezé. Corte. A

tomada seguinte mostra o SD Zezé em lágrimas. Imerso outra vez na dor provocada pela

agressão física de que fora alvo, ele reage, encara o pai e o desafia: - Por que você não me

mata logo?. A cena seguinte torna a focar o rio e o corpo do menino nele flutuando, inerte,

como se finalmente livre, a salvo da opressão e das agressões sofridas. A sequência se conclui

com a imagem do pai, em pé, junto à porta do cômodo que dá para o pátio. Cabisbaixo, ele

está sozinho, como um derrotado que olhasse para o nada a que fora reduzido pelo desejo

verbalizado pelo filho Zezé: vingar-se do pai, retribuindo-lhe a agressão e a dor com o sentir-

se transformado em assassino do próprio filho. Quase sem cor, com a luz vinda do pátio

esmaecendo-se aos poucos, esta cena do filme recupera do livro a sensação de dor e revolta do

SD-personagem em relação a sua família e principalmente em relação ao seu pai.

Porém, enquanto na narrativa cinematográfica a cena da surra termina e passa à outra

cena, na narrativa literária, a vingança de Zezé ainda é uma promessa, como descrito no RD

12:

Zezé:

Mas minha dor tinha resolvido uma coisa. Seria a última surra, mesmo que morresse

para isso (2013, p. 136).

Porém, o pai continua a surra e ainda o insulta com palavras duras, conforme narra

Zezé no RD 13:

Zezé:

Tomado de fúria, só então ele se ergueu da cadeira de balanço. Desabotoou o cinto.

Aquele cinto que tinha duas rodelas de metal e começou a me xingar apoplético. De

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cachorro, de porcaria, de traste vagabundo, se era assim que falara do seu pai (2013,

p. 137).

Ao analisar essa sequência discursiva, identifica-se a presença da memória afetivo-

discursiva do SD Zezé. O personagem descreve em pormenores o que lhe chamara atenção no

momento da surra: como era, por exemplo, o cinto do pai, que tinha duas rodelas de metal,

além de relembrar detalhes da própria surra e, ao final, recordar o discurso utilizado pelo pai

para xingá-lo, chamando-o de cachorro, de porcaria, de traste vagabundo. Por trás do

discurso de Zezé, é evidente a presença de um já-dito, as memórias de um narrador adulto.

Um exemplo é o uso da palavra apoplético, que não pertenceria ao vocabulário de uma

criança de apenas seis anos.

Assim, fica evidente que cada sujeito possui sua história, e esta fica marcada em sua

memória. E é essa história que alicerça o jogo de poder que esse sujeito pratica, pelo uso da

linguagem, a favor de determinados fins, em determinados momentos específicos, conforme

evidenciou Pêcheux (1969), desde um determinado lugar ocupado por esse SD na estrutura da

formação social.

No filme, o sujeito fílmico assume a condição de objeto significante que surge através

da invenção de um diretor/autor. No entanto, esse sujeito passa de objeto significante para a

condição de sujeito, com um discurso próprio, o que acontece toda vez que assume a posição-

sujeito em uma nova situação discursiva.

No livro, por serem as próprias memórias do autor representadas no discurso de Zezé,

fica mais evidente que a relação do abandono paterno é o foco de sua angústia maior. Ao

relatar suas memórias, o desprezo sofrido pela família, a violência física perpetrada pelo pai e

a perda dos entes queridos, o interdiscurso da questão paterna e o discurso transverso do afeto,

do amor pela mãe, e do sentimento de rejeição da família vêm à tona, como é destacado no

RD 14:

Zezé:

Mamãe estava à minha cabeceira e me dizia coisas carinhosas [...] Mamãe passou a

noite comigo e só bem de madrugada se levantou para preparar-se [...] Mamãe, falei

baixinho, talvez a maior acusação da vida.

- Mamãe, eu não deveria ter nascido (2013, p. 137-138).

No filme a cena é retratada da mesma forma, com o mesmo diálogo. A cena é filmada

em ângulo plongée, a iluminação é pouca, o espectador quase não vê o rosto da mãe, a pouca

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claridade que existe na cena está voltada para o rosto de Zezé, revelando toda a dramaticidade

do momento. Nota-se, no RDF-I 9, que ao discurso da mãe é breve:

Mãe de Zezé: -Filho, vai dormir, vai.

Zezé:

- Eu não devia ter nascido, né, mãe?

Mãe de Zezé: - Ô doido, o problema é que cê é levado demais, seu pai achou que você tava

fazendo troça com ele, entende?

Na narrativa cinematográfica a única diferença na transposição da cena é o fato da mãe

mencionar o pai a seu filho, tentando justificar ao menino o motivo da surra Seu pai achou

que você tava fazendo troça com ele. Na narrativa de Vasconcelos, o diálogo encerra-se com

o uso das reticências, dando a ideia de uma continuação no discurso da mãe; porém, parece

que o SD não pretende recordar esse outro discurso.

Na cena do filme, a mãe levanta e sai; no livro, a mãe ainda demostra uma última

atitude de afeto para com o menino: Ela alisou tristemente a minha cabeça (2013, p. 138).

Evidencia-se, assim, outra vez a presença da memória afetivo-discursiva na rememoração da

cena pelo SD Zezé, que já não se lembra da dor sentida pela surra do pai e sim do gesto de

carinho realizado pela mãe.

As lembranças sobre o amor e sobre a relação familiar de tal modo vão orientando a

percepção do SD Zezé, que o levam a afirmar em várias passagens do livro, presentes também

no filme, que preferia não ter nascido. Nos relatos do SD-personagem em análise, algumas

dessas memórias são agradáveis e saudosas, como a frequência do menino na escola, como se

apresenta através do RD 15:

E vieram as novidades. As brigas. As descobertas de um mundo onde tudo era novo

[...] E os dias foram se passando naquela alegria toda. Uma manhã apareci com uma

flor para minha professora. Ela ficou muito emocionada e disse que eu era um

cavalheiro (2013, p. 71).

Surgem também as memórias das conversas imaginárias com Minguinho, seu pé de

laranja lima, como é destacado no RD 16:

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E ficava tagarelando tudo o que acontecia na aula e no recreio para ele [...]

Minguinho é o meu pé de laranja lima [...] Ele é um danado. Ele fala comigo, vira

cavalo, sai com a gente (p. 123).

Há, igualmente, as memórias das conversas reais e espontâneas com o amigo Manuel

Valadares, o Portuga:

Tem duas coisas na nossa amizade que eu não gosto [...] Primeiro, se nós somos dois

grandes amigos, como é que eu tenho de chamar senhor prá lá, senhor prá cá [...] A

outra coisa é mais difícil ainda. Mas já que falei do você e você não se zangou, eu

não gosto muito do seu nome [...] Ele riu (p. 124).

Contudo, as memórias mais frequentes são as que pesam na consciência do

protagonista, as memórias afetivo-discursivas, como o remorso, ou aquelas que o corroem

interiormente, como a raiva sentida pelas punições e pelas surras memoráveis que lhe eram

barbaramente infligidas. Em várias partes no livro e no filme é possível encontrar exemplos

dessas memórias, como é o caso do RD 17, dividido em três sequencias narrativas, a, b e c. A

primeira, evidenciada abaixo, remete às lembranças que Zezé possui dos olhos do pai:

RD 17a:

Zezé:

Saí caminhando triste pela rua, sem sentir o peso da caixinha (caixinha de engraxar

sapatos). Parecia que eu estava caminhando sobre os olhos dele. Doendo dentro dos

olhos dele (2013, p. 50).

Neste enunciado, percebem-se as memórias de remorso sentido pelo protagonista. Esse

discurso ocorre após o personagem acordar pela manhã, no dia de Natal, e não encontrar nada

no sapatinho que pendurou na janela do quarto. Então, sem hesitar pronunciou alto Como é

ruim a gente ter pai pobre! (p, 48). Porém, quando desviou os olhos do sapato, seu pai estava

parado na porta, tinha escutado tudo e o encarava com enorme tristeza, assim, através do

segundo fragmento do RD 17, o Recorte 17b, o personagem descreve o olhar marcante do

pai:

Seus olhos estavam enormes de tristeza. Parecia que seus olhos tinham crescido

tanto, mas crescidos tanto que tomavam toda a tela do cinema [...] Havia uma mágoa

dolorida tão forte nos seus olhos que, se ele quisesse chorar, não ia poder (p. 48-49).

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Zezé não esqueceu o olhar do pai naquele momento e passa a recordar agora a culpa

sentida pelas palavras que disse. O olhar do pai passa a lhe acompanhar e essas lembranças

contribuem para sua constituição como sujeito discursivo, pois se antes falavam que ele tinha

o diabo no corpo, cada vez mais ele se convencia de que era mesmo uma criança malvada,

como se depreende da leitura do terceiro fragmento, o c do RD 17:

Por que fui fazer isso, meu Deus? Logo hoje. Por que eu tinha de ser mais malvado

ainda quando tudo já estava tão triste. Com que cara eu vou olhar para ele na hora do

almoço? Nem a salada de frutas vai conseguir descer. E os olhos grandes dele (pai),

como tela de cinema, estavam grudados me olhando. Fechava os olhos e enxergava

os olhos grandes... Grandes... (p. 49)

Ao analisar essa sequência de enunciados, é possível perceber, que o SD não é dono

do seu dizer, pois em seu discurso encontram-se dois eixos, o da memória (constituição):

Fechava os olhos e enxergava os olhos grandes... Grandes..., e o da atualidade (formulação):

Nem a salada de frutas vai conseguir descer, como referência ao único alimento que tinham

em casa para comer, devido a todo o contexto social de pobreza em que se encontrava sua

família naquele momento. E é desse jogo, que o SD tira seus sentidos.

Voltando ao primeiro fragmento do RD 17, é possível depreender que o personagem

necessita dessa memória para que os seus discursos façam sentido. Nota-se, também, que a

memória afetivo-discursiva utilizada pelo personagem para constituir o seu discurso não está

presa às lembranças centradas em uma esfera individual e, sim, a uma memória ligada à

natureza social e coletiva, descentrada do individuo e centrada no grupo a que ele pertence,

neste caso, nas lembranças que tem dos mementos traumáticos da relação com o pai.

Zezé, com a caixa de sapatos no obro, começa uma dolorosa busca para conseguir

dinheiro a fim de comprar uma caixa de cigarros para seu pai, e assim, pedir desculpas pelo

acontecido. Suas lembranças são traumáticas, seu remorso está presente em seu discurso:

Parecia que eu estava caminhando sobre os olhos dele. Doendo dentro dos olhos dele (RD

17a, p. 50).

Na narrativa fílmica, a essência semântica é preservada. Porém, é preciso evidenciar,

mais uma vez, que o filme não se reduz a transpor e ilustrar o livro em que se inspira, ou seja:

a adaptação não é uma cadeia, é uma referência que faz chegar a grandes descobertas

(AVELLAR, 2007, p.54). Nem mesmo quando, como em OMPLL filme, os fatos narrados

são exatamente aqueles contados no livro: permanecer com estas referências, a essência do

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livro e sua estrutura narrativa, é um estímulo. Mas transformar um livro em filme significa

recriar o universo do autor em outra forma de expressão, afirma o autor citado (2007, p. 54).

O que Bernstein faz para apresentar Zezé aos espectadores é uma livre invenção de

imagens cinematográficas, a partir da leitura e compreensão do texto, é um modo de

prosseguir e ampliar a fruição do texto literário usando uma outra linguagem. O que faz é uma

invenção livre e em perfeita sintonia com o romance, porque a relação entre a literatura e o

cinema como qualquer relação viva entre duas diferentes formas de arte, só se realiza

quando um estimula e desafia a outra a se fazer por si própria (2007, p. 54).

Na cena adaptada para o cinema do RD 17, mais uma vez são as imagens que falam. A

leitura da imagem, no entanto, é diferente da leitura da palavra, pois a imagem produz seus

efeitos de significação pela imagem que é, não se valendo necessariamente de estruturas

verbais para produzir significados. A imagem significa, geralmente, por meio de outras

imagens, ou seja, produz o resgate de uma memória discursiva imagética.

A imagem, compreendida neste trabalho como uma forma de discurso, carrega em si

um sentido do ponto de vista sócio-histórico e ideológico, e não pode ser lida como um mero

ato de descrição dos seus elementos visuais, mas usa esses elementos para produzir sentidos,

em seu processo de leitura.

Dessa forma, as imagens apresentadas no filme, das cenas já visualizadas na

apresentação dos fragmentos do RD 17, demonstram todos os traços de sofrimento através

das expressões faciais do SD, denotando uma submissão e imobilidade diante da situação.

A cena é filmada em PP. No close do rosto de Zezé evidencia-se toda a dramaticidade

da cena. Ao perceber que o sapato deixado na janela na véspera do Natal amanheceu sem

nenhum presente, Zezé, como é apresentado no RDF-I 10 enuncia:

Zezé:

-Droga de pai pobre.

O pai observa tudo da porta do quarto. Quando o personagem percebe que seu pai o

escutou, sai correndo atrás do pai, que deixa a casa, cabisbaixo, abraçado em seu irmão mais

velho. Não há a presença de outros discursos verbalizados, somente o imagético está presente.

Zezé, diferentemente do que se lê no livro, não se lamenta pelo ocorrido. Porém, todo

sentimento de culpa e remorso são representados através do seu choro. Da porta da casa, o

menino olha o pai saindo abraçado em seu irmão, enquanto o deixa para trás.

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Um silêncio se instaura na cena, enquanto se impõe o discurso do olhar. Pai e filho se

olham e nesse olhar confrontam mágoas e tristezas. O pai olha o filho, fecha o portão e sai.

Zezé a partir daí não esquecerá mais esse olhar do pai, assim como está descrito no livro e

como mostraram as imagens do seu choro, no filme.

Diante do que foi exposto até agora, é notório que as memórias mais frequentes e que

constituem o discurso do SD Zezé são aquelas relacionadas ao pai. No RD 18, destaca-se a

raiva do personagem, sentido pelas surras que recebia, muitas vezes sem merecer, como na

relatada no RD 11, quando Zezé cantou para alegrar o pai e acabou apanhando. No RD 18

transcrito abaixo, torna-se evidente que a criança apanhou sem saber o porquê, pois em sua

inocência não percebia nada de errado com a canção:

A realidade era que consegui deixar de esticar a minha dor de dentro. De bichinho

batido maldosamente, sem saber por que [...] Mas o que doía mesmo era o rosto.

Doía de dor e de raiva ante tanta maldade sem motivo (2013, p. 133-140).

No filme, essas memórias das surras, da dor, do sofrimento e da raiva, que passam a

ser constitutivas do eu de Zezé, apresentam-se através de várias cenas. A primeira apresentada

como RDF-I 11, mostra Zezé dormindo sob o pé de laranja lima após ter levado uma surra, na

noite anterior, da sua irmã mais velha. Glória procura Zezé no quarto, pela manhã, mas não o

encontra, quando descobrem que o menino passou a noite embaixo do pé de laranja lima. A

figura do pé de laranja lima supre a falta constitutiva do personagem, pois se torna seu amigo

imaginário, seu confidente, alguém com que conversara e dividira suas angústias e

sofrimentos.

A câmera enquadra Glória em contre-plongée, destacando-a contra o céu ensolarado.

É evidente o caráter de superioridade que se estabelece entre a irmã e Zezé. Glória assume o

papel da mãe e torna-se a maior responsável pelo menino. O discurso como em quase todas as

passagens do filme é breve:

Glória:

- Vamos Zezé...

Na cena seguinte, filmada em PG, Glória aparece levando Zezé para a escola, de

bicicleta. A câmera mostra a pequenez das duas crianças sobre a longa estrada de terra

perdida na imensidão da paisagem verde e montanhosa.

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Identificam-se, assim, as memórias pontuais dos gestos raros e espontâneos de afeto,

principalmente entre Zezé e sua irmã Glória, evidenciadas no RD 19:

Glória:

- Vou trazer qualquer coisa para que você coma antes que os outros cheguem.

Zezé:

- Quando voltou com a comida, eu não aguentei e dei um beijo nela. Aquilo era

muito raro em mim (2013, p. 109-110).

E também as memórias de um afeto jamais sentido antes pelo menino, aquele entre

Zezé e seu amigo Portuga, apresentado através do RD 20,

Zezé:

Fiz uma coisa que raramente fazia ou gostava de fazer com os meus familiares.

Beijei o seu rosto gordo e bondoso (p. 155).

Observa-se com esse enunciado que as memórias da infância com maior impacto na

formação e na personalidade do SD Zezé surgem associadas ao personagem Manuel

Valadares, o Portuga, que não simboliza apenas o pai putativo de Zezé, mas também a única

instituição social (aqui, alguém de uma classe social superior) da época que aceita sua revolta

silenciosa contra aquele estado de coisas.

Portuga é um homem rico, solitário, que vê no menino um filho que nunca teve. É o

único adulto que entende o menino e com quem este trava um forte elo de amizade. Portuga

leva o menino para passear, pescar, tomar sorvete, enfim, fazer coisas que Zezé sempre

sonhou em realizar com seu pai. Assim, Portuga assume o papel de figura tutelar do menino e

de motor de transformação da e na sua vida.

A relação de ambos, marcada inicialmente por um episódio de agressão e por

sentimentos de raiva e de vingança por parte do menino, renasce com a surpresa e a emoção

perante a descoberta da ternura e a possibilidade de uma vida diferente, essa relação de afeto

entre Valadares e Zezé é identificada através do RD 21,

Zezé:

Não era possível que uma pessoa que me batera usasse agora uma voz tão doce e

quase amiga [...] Tinha um sorriso tão suave que parecia espalhar [...] Eu sorri cheio

de dor, mas dentro daquela dor tinha acabado de descobrir uma coisa importante. O

Português tinha se tornado agora a pessoa que eu queria mais bem no mundo. (2013,

p. 114).

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Filmada em PA, a cena destacada no RDF-I 12, apresenta uma transposição quase que

fiel do discurso apresentado anteriormente no RD 19. Zezé é enquadrado sentado em uma

mesa, no bar do Seu Rozemberg comendo um pedaço de bolo, pago pelo Portuga. A

fisionomia do sujeito parece transmitir ao espectador a sensação de estar comento a melhor

comida do mundo. Nesta cena, o gesto de Zezé, ao olhar para a imensidão, como se estivesse

em outro plano, com a boca cheia de bolo, pode ser entendida pela voz em off do personagem.

Seu discurso aparece na cena, mas é fruto do seu pensamento enquanto aprecia aquele

momento.

RDF-I 12: Zezé:

E naquela hora, descobri uma coisa incrível, o Portuga é a pessoa mais boa nesse

mundo.

Zezé enfim, encontra o adulto ideal, que é ao mesmo tempo, pai protetor, grande

amigo, mestre respeitado e afetuoso. A figura de Valadares torna-se uma presença quase

obsessiva na vida do menino e justifica no decorrer das narrativas as alterações no

comportamento do personagem, perceptível também pela sua família conforme o discurso de

Zezé apresentado no RD 22:

Zezé:

E os dias andaram sem pressa e, sobretudo muito felizes. Até que lá em casa

começaram a notar minha transformação. Eu já não fazia tantas travessuras e vivia

no meu mundinho de fundo de quintal [...] Já não dizia tantos palavrões como

antigamente e deixava em paz a vizinhança (2013, p. 120).

Essa mudança também é apresentada na linguagem cinematográfica, pela frequência

das cenas em que Zezé aparece sentado sob o pé de laranja lima, brincando no quintal, preso

em seu mundinho de imaginações e nas longas conversas com o pé de laranja lima, como

evidenciado no RDF-I 13:

Pé de laranja lima:

- E a escola tem dever?

Zezé:

- Tem não, eu faço na aula mesmo, é muito fácil, sabe?

Pé de laranja lima:

- Oh, então vamos dar uma volta de cavalo?

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Zezé:

- Tá bom.

Inicia-se, a partir daí, uma transformação no SD, tanto na narrativa literária, quanto na

cinematográfica. O discurso de Zezé começa a ser modificado pela presença, atenção, afeto e

pelas palavras doces recebidas a seu respeito, proferidas pelo seu amigo Portuga.

Zezé se reconcilia com a vida e, onde tudo era tristeza e abandono, agora passa a ser

ternura e alegria, como evidenciado no RD 23:

Zezé:

Olhei Minguinho com ternura. Agora que descobrira mesmo o que era ternura, em

tudo que eu gostava colocava ternura.

Pela primeira vez na narrativa cinematográfica, o SD Zezé é filmado com a câmera em

contre-plongée. A câmera baixa destaca o personagem contra o céu aureolado por nuvens,

gerando no espectador, pela primeira vez, a sensação de ver Zezé sob um patamar superior. O

menino agora carrega um ar de superioridade, sente-se importante diante dos outros amigos,

pois é amigo do Português, o dono do carro mais bonito da cidade. A câmera, movimentando-

se em travelling, atua como se fosse os olhos do espectador postos no personagem,

vivenciando todo o seu momento de alegria e exaltação ao estar morcegando (agarrando-se no

carro do Portuga em movimento) no carro do amigo, objetivo conquistado, o que causa sua

exaltação perante os amigos da escola. Zezé agora passa a ser visto como um herói pelos seus

amigos, cena que pode ser verificada no RDF-I 14, em que não há uso de falas, mas as

imagens demostram todo o sentimento de superioridade e exaltação da vida em que o

personagem se encontra.

É perceptível a mudança no discurso do personagem com a chegada do amigo Portuga.

O discurso, que antes carregava ódio, espirito de vingança e punições contra si mesmo, agora

carrega marcas de um discurso ideológico de ternura, afeto e emoção.

Porém, os capítulos sete e oito da segunda parte encerram a narrativa da infância de

Vasconcelos, com acontecimentos que puseram o SD Zezé em confronto com a morte,

retomando, assim, seus dramas existenciais. A notícia que seu pé de laranja lima seria cortado

e o acidente em que morre Valadares atingem subitamente o SD Zezé. Toda crise existencial é

retomada através da sua memória afetivo-discursiva.

Todas suas lembranças voltam agora em uma longa descrição da sua dor, do seu

desamparo, da sua solidão, RD 24,

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Zezé:

Agora sabia mesmo o que era a dor. Dor não era apanhar de desmaiar. Não era

cortar o pé com caco de vidro e levar pontos, na farmácia. Dor era aquilo, que doía o

coração todinho, que a gente tinha que morrer com ela, sem poder contar para

ninguém o segredo. Dor que dava desânimo nos braços, na cabeça, até na vontade de

virar a cabeça no travesseiro (2013, p. 170).

Zezé passa dias entre a vida e a morte, inconsciente, com pesadelos e sem se

alimentar. Percebe-se nesse momento que os pesadelos e traumas da infância também

permanecem na memória do SD. No recorte a seguir evidenciam-se alguns desses pesadelos

que assombravam sua infância. No RD 25 destaca-se o sonho de Zezé, esse pensa ser um

cowboy, vestido como seus heróis do cinema, aparece montado em seu pé de laranja lima,

transformado em um veloz cavalo, voando pelas ruas de Bangu. Em um determinado

momento o som assombroso do trem que causou a morte do seu amigo Portuga, o

Mangaratiba, interrompe a prazível cavalgada e lança o pânico entre Zezé e seu cavalo, que

receiam ser mortos,

Zezé:

- Você ouviu, Minguinho?

- É ele, Minguinho. O Mangaratiba. O assassino.

- Sobe aqui, Minguinho, me dá a mão. Ele quer matar você. Ele quer matar você. Ele

quer esmagar você. Quer cortar você em pedaços [...] Entretanto, o trem continuava

rápido sobre os trilhos. Sua voz vinha entrecortada de gargalhadas.

- Eu não sou culpado... Eu não fui culpado... Eu não sou culpado... Eu não fui

culpado (2013, p. 177).

Zezé recorda em suas alucinações, todos os acontecimentos marcantes em sua vida, a

amizade com minguinho, às vezes que subira em seus galhos e imaginara estar cavalgando

por entre campos imensos. A perda insuperável de seu amigo Portuga. A presença do trem

Mangaratiba, que sempre observara e abanava da beira dos trilhos para as pessoas que

viajavam nele.

O que chama a atenção no RD 25 é a presença do outro no discurso de forma não

mostrada, pois pertence à ordem do inconsciente do SD. Ele constrói o discurso sócio

historicamente. Presentifica-se, assim, a exterioridade, atravessando as enunciações do

personagem. No fragmento, o pesadelo de Zezé está relacionado a outras vozes, vozes do

outro, muitas vezes, esquecidas no inconsciente e retomadas em sua própria voz.

Há por trás do seu discurso, a voz do irmão, contando-lhe que seu pé de laranja lima

seria cortado, a voz do Portuga contando-lhe que sempre gostara de cortar a frente do

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Mangaratiba com seu carro, atravessando rapidamente os trilhos antes de o trem lhe pegar.

Zezé ficava encantado com toda coragem do seu amigo. Porém, dessa vez, a audácia de

Valadares acabara lhe custando a própria vida. Há ainda a presença da voz de seu amigo

imaginário, o pé de laranja lima, que sempre o convidara a vivenciar emocionantes aventuras

montado em seus galhos.

Assim, no pesadelo de Zezé, as palavras não são suas, são fragmentos da memória

afetivo-discursiva; a presença do outro não é delimitada, sendo constitutiva tanto do discurso

outro quanto do SD, pois não há discurso homogêneo uma vez que ele também pertence ao

outro.

A frase Ele quer esmagar você, ele quer cortar você (p. 177), está relacionada ao

trauma de Zezé, quando lhe contaram que sua árvore seria cortada. Surgem assim, as

memórias da dor e do sofrimento que lhe tomou conta naquele momento, quando recebera a

notícia. O enunciado o trem continuava rápido sobre os trilhos. Sua voz vinha entrecortada

de gargalhadas (p. 177) faz referência às memórias da morte do seu amigo Valadares.

No filme, a câmera segue Zezé em seu cavalo, é curioso que no livro o personagem

pede para Minguinho não ir pela estrada que levava até a casa do Portuga, porém no filme é

esse o caminho que eles seguem, passando pela casa de Valadares. A iluminação, quase em

preto e branco, revela pelo caminho imagens das pessoas queridas na vida de Zezé, são suas

lembranças que aparecem enquanto cavalga pelos trilhos do trem. Em um lado está tio

Edmundo, sentado lendo um livro, Zezé olha para o outro lado e enxerga sua mãe, do outro o

seu Rosenberg da padaria, o cantor Ariovaldo e assim acontece até chegar à frente da casa do

Português.

Nesse momento, o personagem sente-se incomodado com aquela situação e pede para

Minguinho lhe tirar de lá, acompanhe o dialogo do RDF-I 15,

Zezé:

- Vamos sair daqui, é a casa do Portuga. Você prometeu que não ia me trazer aqui.

Vamos! Vamos sair! Vamos.

A câmera filma em PA o movimento que Zezé e seu cavalo fazem para voltar, porém

as luzes da casa de Valadares se acendem e Zezé percebe o ocorrido. A câmera, agora em PP,

enquadra o rosto do menino, pedindo para voltar, pois acredita que seu amigo ainda esteja

vivo.

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RDF-I 16:

Zezé:

- O Portuga tá vivo, vamos voltar Minguinho, ele não morreu, ele tá vivo, vamos

voltar, vai...

O som forte do Mangaratiba e a luz em meio à escuridão encobrem o rosto do menino.

Uma nova carga emocional acontece na cena, agora Zezé luta para sair dos trilhos do trem,

como destacado no RDF-I 17:

Zezé:

- O Mangaratiba, volta, volta, Minguinho, sai daqui.

Um corte e o espectador é conduzido pelo olho da câmera ao quarto do Zezé e

descobre que tudo não passou de um sonho. Em PPP, o espectador é levado a observar todo o

sofrimento do pesadelo no rosto do menino. Este, agora com os olhos abertos, na cama, grita

para o Mangaratiba, RDF-I 17:

Zezé:

- Ô, Mangaratiba! Ô, assassino! Eu vou te matar como fez com o Portuga, assassino!

No filme, a cena é cortada, aparece apenas a imagem da lua, sob o céu escuro, um

silencia se instaura na cena. No livro, o pesadelo só termina com o despertar súbito de Zezé

para a realidade:

RD 26:

Zezé:

Todas as luzes da casa se acenderam e meu quarto foi invadido por rostos

semiadormecidos.

Mãe:

- Foi um pesadelo.

Zezé:

Mamãe me tomara nos braços tentando contra o peito esmagar os meus soluços.

Mãe:

- Fui só um sonho meu filho... Um pesadelo (2013, p. 178).

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Porém, a mudança acontece. Zezé começa a melhorar e um dia vence a juventude:

Estava condenado a viver (p. 178). Ocorre, a partir dessas passagens, uma mudança drástica

em seu discurso. O SD-personagem constitui-se a partir de agora não mais como menino-

diabo, arteiro. É uma nova personagem. A primeira infância está terminada e o SD Zezé se

encontra novamente em uma enorme solidão. Perdeu muito cedo o outro mundo, o mundo da

infância, que perece junto com a laranjeira, com sua carga simbólica de promessa de vida e

cortada antes de dar as primeiras flores, como a infância do próprio autor.

Essa nova personagem é muito bem apresentada no filme de Bernstein. Para transpor à

linguagem cinematográfica essa passagem do menino-diabo para o menino que agora não

acreditava mais nas coisas, pois ficara órfão de dois pais. O verdadeiro já estava morto em seu

coração, como o personagem descreveu em passagens do livro e igualmente transposto para a

linguagem cinematográfica, como é possível evidenciar no RD 27:

Zezé:

- Não faz mal, eu vou matar ele (o pai) [...] Vou sim. Eu já até que comecei. Matar

não quer dizer a gente pegar o revólver de Buck Jones (um personagem do cinema

da época) e fazer bum! Não é isso. A gente mata no coração. Vai deixando de querer

bem. E um dia a pessoa morreu (2013, p. 144).

No RDF-I 18, abaixo, nota-se que esse discurso de Zezé possui uma relação com as

agressões causadas pelo pai. Zezé conta para seu amigo português que seu pai está deixando

de existir dentro dele.

Zezé:

- Todo mundo bate em mim, só porque o meu pai é o primeiro. Mas não faz mal, eu

vou matar ele. Eu até comecei.

Portuga:

- Como vais matar o seu pai?

Zezé:

- Aqui dentro, quando você vai deixando de gostar da pessoa, ela vai morrendo

dentro de você.

Encontram-se, nesses fragmentos, pistas que levam ao discurso da memória afetivo-

discursa e do interdiscurso, pois os enunciados do SD Zezé carregam a presença das palavras

negativas do pai, que exercem influência negativa na constituição do sujeito. Através de seu

discurso, evidencia-se também que a relação do personagem com o pai está se findando e

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nunca mais será a mesma. O pai verdadeiro ensinou a dor e a tristeza ao menino e o Portuga, a

ternura da vida.

Na narrativa fílmica, também na literária, mas nesta de uma forma diferente, é possível

observar que toda essa transformação da infância para o mundo dos adultos, sofrida pelo

personagem, como também o confronto do SD com o sofrimento, influenciaram na

constituição do sujeito discursivo em análise. Como é o caso do RDF-I 19, em que o

personagem, após sua recuperação do trauma da morte do português, brinca com seu irmão no

quintal da casa. Seu discurso não possui a mesma intensidade de antes, já não há a presença

em suas palavras de nomes de animas, de seres imaginários e de fantasia. Essas palavras

pertencem agora, unicamente a seu irmão Luís.

Luís:

- Olha, Zezé, o gurila, o gurila, gurila...

Zezé:

- Eu vi.

Luís:

- Olha o elefante, a girafa...

Zezé:

- Ah, né... A girafa.

A câmera, em PC, revela uma parte significativa do cenário para o espectador. Ao

fundo da imagem, a pequena e velha casa de Zezé, o quintal cheio de árvores, onde antes o

personagem vivera grandes aventuras com o irmão Luís e o pé de laranja lima. Através da

imagem da casa, verifica-se aquilo não havia sido descrito no filme, mas muito evidenciado

no livro, a situação de miséria em que vivia sua família.

Bernstein prefere utilizar o ângulo plongée novamente para filmar as crianças,

rebaixando-as ao nível do chão, fazendo delas objetos presos a um determinismo insuperável,

uns joguetes da fatalidade. Esse enquadramento produz um efeito de diminuir a estatura dos

personagens, de inferiorizá-los, pois os situa em um plano inferior em relação a algo maior do

que eles, que os vê desde um plano superior que relativiza sua dimensão com relação ao

conjunto da cena.

Luís corre pelo pátio, faz de conta que está em um zoológico. Porém, o olho da

câmera, movimentando-se de cima para baixo, enfatiza o SD Zezé. Ele surge estático, no

centro do pátio, roupas pretas e braços cruzados, olhos baixos, como se não estivesse ali.

Nesse instante, a câmera em PP enquadra seu rosto e o gesto que faz com as mãos. O

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personagem esfrega o rosto, como se estivesse enxugando as lágrimas, como se estivesse

cansado da vida.

É perceptível que o SD Zezé possui agora outro olhar, que deixa vazar uma espécie de

sabedoria que colocara em um lugar aceitável o desparecimento dos seres. Era uma criança

que não acreditava mais em fantasias, como é possível ler no RD 28:

Zezé:

- Era difícil recomeçar tudo sem acreditar nas coisas. A vontade era contar o que de

fato existia “Bobinho, nunca existiu zoológico, nem pantera negra, era apenas uma

galinha preta e velha, que eu comi numa canja” (2013, p. 179).

A carência afetiva pela qual Zezé passou em toda sua vida e que, em certo momento,

começou a ser suprido pelo afeto do seu segundo pai Valadares, mas que mais tarde também

lhe foi tirada, o faz empreender um caminho de volta à fragmentada e incompleta memória da

infância. Caminho marcado pela angústia, pela sensação de desprazer, que sobressaem em seu

discurso, quando este é confrontado com o desejo do Outro. Há um significado que ficou para

trás na vida do SD Zezé. Há um vazio não preenchido na memória discursiva do menino.

A cena final, tanto da narrativa literária, quanto da fílmica permite perceber que o pai

tenta com mais uma mentira, claramente percebida pelo menino, reconquistar a criança que já

não existe. O discurso proposto pelo pai é mais uma chantagem emocional, que uma

demonstração de afeto. Mesmo assim, Zezé não manifesta interesse em resgatar o

distanciamento que mantém em relação ao seu pai. Ao contrário, reafirma aquilo que foi

apresentado no RD 27, seu pai verdadeiro estava morto em seu coração.

Zezé é filmado agora por Bernstein, no colo do pai. A mãe está ao lado. Ambos tentam

alegrar e amenizar a tristeza do menino, quando percebem que a criança não é mais a mesma

e não está brincando com seu irmão.

O cineasta utiliza o PA para filmar a cena, enquadrando Zezé, o pai e a mãe, da cintura

para cima, para que o espectador perceba que Zezé está sentado entre dos dois. A câmera

filma apenas o rosto dos pais enquanto eles conversam com o menino. As reações de Zezé

perante as palavras do pai são percebidas através de breves flashes em que aparece seu rosto

em PPP. Pela expressão facial do menino, identifica-se que seu pensamento não acompanha a

conversa do pai. Essa leitura é possibilitada pelo corte da cena, em que se percebe que o

pensamento da criança volta para a imagem do rosto do Portuga. Zezé escuta a voz do amigo

através das palavras do pai.

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Dessa forma, tanto o livro quanto o filme procuram resgatar esse pai descontrolado e

desmoralizado. Através do seu discurso, de suas promessas, o pai busca se redimir com o

menino, assim como já redimiam Zezé das suas travessuras. No RDF-I 20, a seguir,

identifica-se o diálogo dos pais com o menino:

Mãe:

- Tamo tão feliz que você saiu da cama, meu filho.

Pai:

- É... Tem momentos na vida do homem que tudo dá errado, mas agora tudo vai dar

certo. Eu arrumei um trabalho bom, não vai faltar mais nada pra gente, eu prometo.

Mãe:

- Vai tudo se ajeitar, viu, Zezé?

Pai:

- Tudo vai voltar ao normal, sua mãe vai passar mais tempo dentro de casa, vai

operar essa hérnia, a gente vai comprar roupa nova pra vocês, você vai conhecer a

cidade grande, meu filho.

Nesse momento, Zezé recorda as palavras do Portuga, em PPP, a câmera mostra o

Portuga falando através das lembranças do menino, discurso semelhante ao do pai, conforme

se observa no RDF-I 21:

Portuga:

- Eu vou te levar para passear no nosso carro. E tu vais me contar estas histórias

incríveis, você vai contar suas histórias para todo mundo ouvir. E eu vou te levar

para conheceres minha terra, tu queres ir?

Nessa cena, o close no rosto do menino permite ao espectador voltar para a cena em

que os pais continuam conversando com ele. Porém, através de seu discurso e do discurso do

pai, percebe-se que o SD Zezé não está ali, e não é com o pai verdadeiro que conversa agora,

e sim com seu outro pai, Manuel Valadares:

RDF-I 22:

Zezé:

- Eu vou para onde você quiser, pai.

Nota-se que o discurso de Zezé é a resposta vinda do inconsciente, das lembranças do

discurso de Valadares. Ao falar com o pai biológico é a lembrança de outro pai que lhe vem à

memória, o Portuga, o pai que o ouviu, compreendeu, que lhe deu afeto e com ele dialogou.

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Revivificando-se na imagem do Portuga, é o já-dito que volta e está representado na cena pela

lágrima que escorre no rosto de Zezé. O SD levanta do colo do pai, cabisbaixo. Os pais

biológicos olham-no sem entenderem o que acontece com o filho. Há um discurso e uma

memória no modo como Zezé os olha e responde ao pai. No entanto, os pais não conseguem

apreender-lhe o sentido. Esta é uma cena que reitera um fundamento teórico básico na AD: o

discurso de um sujeito está tecido por vários discursos que, justamente pela condição de

opacidade da linguagem, podem ou não ser recuperados através da memória presente em cada

um dos sujeitos no instante da interlocução; são discursos que podem se fragmentar em

significações variadas, quer seja no nível do intradiscurso, ou seja, no fio do discurso, ou no

nível do interdiscurso, isto é, nas diversas formações discursivas, e assim uma se entrelaça

com a outra.

No livro, Zezé descreve perfeitamente o momento em que esteve sentado no colo do

pai. As lembranças do que sentiu naquele instante permanecem em sua memória: o pai não

passa de uma figura, endurecida pela pobreza, como se observa no RD 29:

Zezé:

- Me fazia mal seu rosto barbado roçar no meu rosto. O cheiro que escapava da sua

camisa muito usada me fazia arrepios. Fui escorregando pelos seus joelhos e

caminhei para a porta da cozinha [...] Meu coração se revoltara sem raiva. “que quer

esse homem que me pegou no colo?” Ele não é meu pai. Meu pai morreu. O

Mangaratiba matou ele (2013, p. 182).

Zezé é, assim, um sujeito discursivo construído entre um ser criança e um ser adulto.

Ao mesmo tempo é um sujeito marcado pela falta, pela ausência e pelo sofrimento; um sujeito

destinado à convivência com o silêncio que lhe impuseram seus mais próximos, o pai, a mãe,

as irmãos, a perda do Portuga e o corte do pé de laranja lima.

No último capítulo, sugestivamente intitulado A confissão final, o SD Zezé, na

realidade o memorialista adulto, assume por inteiro a autoria do livro e as diferentes primeiras

pessoas se integram harmoniosamente no conjunto do discurso relatado, como pode ser

observado no RD 30, dividido aqui em dois fragmentos, respectivamente a e b:

RD 30a:

Zezé adulto (Vasconcelos):

- Os anos se passaram, meu caro Manuel Valadares. Hoje tenho quarenta e oito anos

e às vezes na minha saudade eu tenho impressão que continuo criança. Que você a

qualquer momento vai me aparecer me trazendo figurinhas de artista de cinema, ou

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mais bolas de gude [...] Naquele tempo. No tempo do nosso tempo, eu não sabia [...]

“Por que contam coisas às criancinhas?” (2013, p. 183).

Verifica-se assim, a existência de dois tempos discursivos: Hoje e Naquele Tempo. No

tempo do nosso tempo, ambos permeados pelo tempo que passou, Os anos se passaram, e de

dois narradores distintos – hoje, o narrador é um homem maduro, que guarda saudades da

infância e da presença do amigo Portuga. Naquele tempo, no tempo partilhado por ambos, era

apenas uma criança ingênua, que acreditava em histórias que, mais tarde se revelavam

enganadoras e dolorosas, fato identificável através do segundo fragmento do RD 30:

RD 30b:

Zezé adulto (Vasconcelos):

- A verdade, meu querido Portuga, é que a mim contaram as coisas muito cedo.

Percebe-se, assim, a fusão do memorialista com o ficcionista que guardou muito viva

dentro de si a infância. Dessa forma, é possível perceber que quem rememora a infância do

SD Zezé é sempre o adulto. Por isso, o pé de laranja lima, que dá nome ao livro, cortado antes

de dar as primeiras flores, é uma representação clara da infância do sujeito empírico (SE), o

próprio autor, também ceifada muito cedo.

As observações feitas demostram que, ao produzir o discurso, o SE Vasconcelos

utiliza o SD Zezé para expressar aquilo que pensa em relação às suas paixões, desejos,

traumas, experiências e anseios, noções essas sempre presentes no discurso do personagem

principal.

Tratando-se da memória afetivo-discursiva, podem-se tomar como exemplos as

memorias afetivas de do SD Zezé em relação ao pai, quando afirma que fazia mal seu rosto

barbado roçar no meu rosto. O cheiro que escapava da sua camisa muito usada me fazia

arrepios (2013, p. 182). Nota-se que o sujeito iguala a barba do pai, o cheiro do pai, ao medo

que tinha do mesmo. Evidencia-se também que o SD sente-se muito fragilizado e

fragmentado perante sua relação com o pai – ele não é meu pai (p. 182) – e que não tem mais

como revertê-la. Relação essa que desorganizou todo o seu ser, passando a ser um sujeito

interpelado pelas angústias e durezas da vida e da morte.

Nesse momento, fica muito claro o apagamento das memórias tristes deixadas pelo

pai. O SD Zezé agora compara o pai à sua velha árvore, que se foi antes mesmo de dar flores,

assim como a sua infância:

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RD 31:

Zezé:

- Olhei os seus pés (do pai), os dedos saindo dos tamancos. Ele era uma velha árvore

de raízes escuras. Era um pai-árvore. Mas uma árvore que eu quase não conhecia

(2013, p. 182).

A figura do pai é esquecida, assim como o pé de laranja lima. Esta afirmação é

comprovada mediante a leitura do último capítulo do livro, em que é possível perceber, que a

única coisa que o narrador conseguiu guardar da infância são as memórias afetivas

relacionadas ao amigo Manuel Valadares:

RD 32:

Zezé adulto: (Vasconcelos)

Foi você quem me ensinou a ternura da vida, meu Portuga querido [...] Às vezes sou

feliz na minha ternura, às vezes me engano, o que é mais comum (2012, p. 183).

No filme, não aparecem as palavras de carinho do personagem Zezé para seu amigo

Portuga, porém elas não são necessárias. A última cena do filme expressa todo esse

sentimento presente na narrativa literária. A primeira cena do livro é retomada ao final do

filme. O próprio SE Vasconcelos (interpretado por Caco Ciocler) é filmado em PG, sentado

em cima do túmulo do Portuga. Está com uma caneta na mão e parece escrever alguma coisa.

A câmera nesse momento enquadra o SE Vasconcelos sentado sobre o túmulo, rindo. O olho

da câmera atua agora como se fosse os olhos do espectador postos nos escritos. O espectador

é conduzido na sequência para a foto do Português na lápide do túmulo, e entende porque o

autor estava rindo. O amigo português aparece com longos bigodes desenhados pelo SE

Vasconcelos em seu rosto. Neste momento, compreende-se a relação de amizade entre os

dois.

Em todas as passagens do livro e do filme, embora representadas de forma diferente,

torna-se muito claro como a história e a memória afetivo-discursiva permearam a constituição

dos discursos, tanto do SD Zezé, quanto do autor que assume a autoria do livro. Quando o

narrador afirma Hoje eu tenho quarenta e oito anos e às vezes na minha saudade eu tenho

impressão que continuo criança (p. 183), evidencia-se que o SD Zezé e o narrador são a

mesma pessoa. O SD Zezé é fragmentado, constituído nas e pelas memórias do narrador.

Porém, em nenhuma das narrativas analisadas, o SD Zezé é dono de sua fala, pois se constitui

enquanto sujeito através da palavra do Outro.

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No item a seguir, evidenciam-se mais claramente todos os fragmentos dos discursos

Outros e de outros que contribuíram para que Zezé constitui-se enquanto sujeito discursivo

em ambas as narrativas.

4.2 De fragmento em fragmento é que se constitui o sujeito. A constituição do sujeito

discursivo Zezé na materialidade discursiva de OMPLL

É evidente, como já destacado na fundamentação teórica deste trabalho, que a AD de

linha francesa não considera o discurso como simples expressão do pensamento, e sim algo

produzido a partir de uma dada exterioridade, carregando em seu interior elementos que estão

interligados ao lugar social, histórico e ideológico no qual o sujeito está inserido.

Diante dessa assertiva, torna-se cada vez mais claro que o SD Zezé é constituído por

diversas vozes sociais, elencando em seu interior a história e a memória. Dessa forma os

sentidos do seu discurso não nascem da vontade repentina de enunciar, eles estão ligados

diretamente com a memória, ou seja, esses sentidos nascem de um trabalho sobre outros

discursos que o SD repete, ou modifica.

Torna-se claro, portanto, que todo seu discurso tem relação com a memória afetivo-

discursiva que acaba constituindo a sua base de sustentação devido à existência de sentidos

que estão sedimentados e que circulam nas práticas sociais como evidências confirmadas

como naturais, constituindo a sua historicidade discursiva.

Os recortes analisados a seguir foram escolhidos para melhor que visualização desses

discursos relacionados ao exterior, ao interdiscurso e à memória do SD Zezé. Tanto no livro,

quanto no filme, Zezé utiliza-se daquilo que ouviu ou aprendeu de outras pessoas, de outros

enunciados, para constituir o seu próprio discurso.

Em todas as passagens analisadas é evidenciado que a memória desses outros

discursos está sempre presente em seus enunciados mesmo que apagada. No recorte

discursivo a seguir, RD 33, dividido em três fragmentos, Zezé, retoma memórias passadas,

tanto do discurso do pai, como daquilo que um dia lhe contaram de seu tio Edmundo, para

assim, produzir sentidos em seu discurso e assim retoma acontecimentos do passado para

construir o seu presente,

RD 33a:

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Totoca:

- Tio Edmundo é meio trongola. Meio mentiroso.

Zezé:

- Então ele é filho da puta?

Totoca:

- Olhe que você já apanhou na boca de tanto dizer palavrão [...] Uma coisa não tem

nada a ver com a outra.

Zezé:

- Tem sim, noutro dia Papai conversava com seu Severino, aquele que joga escopa e

manilha com ele, e ele falou assim de seu Labonne: “O filho da puta do velho mente

pra burro”... E ninguém bateu na boca dele (2013, p. 14).

Observa-se que na conversa com seu irmão, Zezé rememora o discurso do pai, dando

um novo significado a expressão filho da puta, fazendo uma relação com o adjetivo

mentiroso, que foi atribuído ao tio pelo seu irmão. Dessa forma, Zezé acredita que se o pai já

falou aquilo para seu Labonne, porque o sujeito mentia muito, ele também poderia chamar seu

tio da mesma forma, porque, se ninguém bateu na boca do pai quando pronunciou essa

expressão, era sinal que não se tratava de um palavrão.

Outro exemplo dessas retomadas do passado na construção do presente é demonstrado

através do segundo e terceiro fragmento do mesmo Recorte:

RD 33b:

Zezé:

E eu fui lembrando que muitas vezes tinha escutado... Tio Edmundo era separado da

mulher e tinha cinco filhos... Vivia tão sozinho e caminhava devagar, devagar...

Quem sabe se ele não andava devagar era porque tinha saudade dos filhos? E os

filhos nunca vinham fazer uma visita pra ele (p. 18).

RD 33c:

Zezé:

Eu estava com muita pela dela. Mamãe nasceu trabalhando. Desde os seis anos de

idade quando fizeram a Fábrica que puseram ela trabalhando. Sentavam Mamãe bem

em cima de uma mesa e ela tinha que ficar limpando e enxugando ferros. Era tão

pequenininha que fazia molhado em cima da mesa porque não podia descer

sozinha... Por isso ela nunca foi à Escola nem aprendeu a ler. Quando eu escutei essa

história dela, fiquei tão triste que prometi que quando fosse poeta e sábio eu ia ler

minhas poesias para ela... (2013, p. 30).

Observando mais atentamente os discursos mencionados acima, vê-se que Zezé se

utiliza da memória de outros discursos para afirmar suas impressões sobre o tio Edmundo e

principalmente sobre o sentimento de pena que possui em relação a sua mãe.

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Nesse instante, a memória afetivo-discursiva apresenta-se como um elemento crucial

que proporciona o deslocamento do SD, no funcionamento do discurso, na produção do

sentido.

Assim, a memória afetivo-discursiva abriga o interdiscurso, é um saber que torna

possível a compreensão do sentido de nossas palavras. Correspondendo ao já dito

anteriormente, e que liga os discursos do personagem como numa teia complexa em que

ocorrem estabilizações, deslocamentos e (res) significações. No RD 34, verifica-se que Zezé

comprova aquilo que foi dito pelo seu irmão Totoca, a partir da influência daquilo que é

externo ao sujeito, ou seja, o histórico, o social e o ideológico. Se antes Zezé achava que o

Menino Jesus não nascia para ele, pois seu padrinho era o Diabo, após o discurso do menino

Serginho, ele comprova esse fator, pois o menino ganhara muitos presentes de Natal. Zezé

retoma aquilo que seu irmão já dissera antes para construir seu próprio discurso sobre o Natal:

Abaixei a cabeça e me lembrei do Menino Jesus que só gostava de gente rica como Totoca

falara (2013, p. 53), todo o enunciado pode ser evidenciado abaixo,

Zezé:

Cheguei perto da casa dos Villas-Boas. A casa tinha um jardim grande e o chão era

todo cimentado. Serginho rodava entre os canteiros numa bela bicicleta.

Zezé:

- Você ganhou de Natal?

Serginho:

- Ganhei foi coisa. Uma vitrola, três ternos, um monte de livros de histórias, caixa de

lápis de cor das grandes, uma caixa com todos os jogos, um avião que mexe a hélice.

Dois barcos com vela branca...

Zezé:

Abaixei a cabeça e me lembrei do Menino Jesus que só gostava de gente rica como

Totoca falara (p. 53).

A confluência de sentidos em toda narrativa se dá no entorno de um pai

desempregado, de uma mãe ausente e da pobreza da família, em que o protagonista enuncia

suas (in)certezas, faz o discurso da revolta contra o Natal, contra a religião, contra a situação

social.

É possível perceber, que o protagonista se entende dono do dizer. Nesse sentido, é

correto afirmar, que os esquecimentos e apagamentos pecheutianos se estabelecem, pois para

que se produza sentido é preciso que já haja o sentido, ou seja, algo já posto, sustentando um

já-lá. Na AD a memória sofre alterações por meio do e pelo esquecimento, o que abrange

saberes já existentes, oriundos de lugares diferentes, ou seja, de ideologias diferentes.

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Nesse ponto, reside um ponto crucial, a intencionalidade desse sujeito assujeitado é

desprezada, uma vez que o interessante é pontuar os efeitos de sentido das suas enunciações,

entendidas as FD e FI postas em jogo. Um exemplo dessas FI pode ser observado através do

RD 35:

Zezé:

- Vou ter que aprender uma porção de hino, porque a professora disse que para ser

bom brasileiro e “patriota” a gente tinha que saber o hino da nossa terra (2013, p.

69).

Zezé:

A Dorotília é mais pobre do que eu. E as outras meninas não gostam de brincar com

ela porque é pretinha e pobre demais. Então ela fica no canto sempre. Eu divido o

sonho que a senhora (professora) me dá com ela. [...] E eu divido o meu sonho

porque Mamãe ensinou que a gente deve dividir a pobreza da gente com quem é

ainda mais pobre (2013, p. 75).

Primeiro, observa-se que a FI está relacionada à escola através da rememoração

daquilo que já foi dito antes pela professora: para ser bom brasileiro e patriota a gente tinha

que saber o hino da nossa terra (p. 69). Observa-se que há, quase sempre, a presença da

memória discursiva nos enunciados do SD Zezé, estabelecendo-se assim os implícitos, ou

seja, os pré-construídos, elementos já citados e relatados, discursos transversos.

Segundo, observa-se que a FI está ligada a ideologia familiar, pela qual mesmo não

tendo muitas posses, deverá existir sempre a preocupação pelo próximo: Mamãe ensinou que

a gente deve dividir a pobreza da gente com quem é ainda mais pobre (p. 75). Assim, Zezé

utiliza-se do discurso indireto, pois se comporta como um tradutor, usando suas próprias

palavras para remeter-se a um outro como fonte do sentido dos propósitos que relata. E, no

discurso direto, aponta que são as próprias palavras do outro, nesse caso da sua mãe, que

ocupam seu espaço discursivo: Mamãe ensinou (p. 75). Zezé torna-se, dessa forma, um

simples porta-voz dos discursos da mãe em seu próprio discurso.

Zezé, o tempo todo, está aprendendo através daquilo que escuta de outras vozes. É

como vai constituindo seu discurso. No RD 36, observa-se que o protagonista deixa claro que

tudo o que enuncia é constituído através de enunciados anteriores de alguém; neste caso, o

personagem conta para sua irmã que grande parte das palavras consideradas difíceis, que

caracterizam o seu discurso na obra, pois é um menino que aprendera tudo muito cedo, dotado

de uma inteligência admirada por todos, foram aprendidas através das canções cantadas pelo

amigo Ariovaldo:

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Zezé:

E fomos (Zezé e Ariovaldo) cantando e vendendo. Ele cantava e eu ia aprendendo.

(p. 83) [...] Mesmo, Glória a gente aprende muito mais cantando. Quer ver quanta

coisa nova eu aprendi? [...] Veja: estivador, celestial, sideral e desditoso (p. 85).

Em toda a narrativa, encontram-se no discurso de Zezé ensinamentos daquilo que

aprendera com os outros. Dessa forma é correto afirmar que a construção do SD Zezé se dá

pelas representações que faz dos outros. Ele é constantemente marcado pela exterioridade,

dessa maneira construindo-se como um ser de linguagem. Observa-se, assim, que é a memória

que se faz discurso, nas histórias de vida, nas invenções de si mesmo, pois o sujeito é uma

construção social e discursiva em constante elaboração e transformação. Em alguns

momentos, as rememorações dos adjetivos atribuídos a Zezé pela sua família revelam marcas

identitárias e de constituição de seu próprio eu.

Ademais, a ativação da memória do Outro em seus enunciados revela às inter-relações

entre passado e presente. Zezé cresceu escutando que não prestava para nada, que tinha o

diabo no corpo, que não deveria ter nascido, entres outros xingamentos e discursos negativos

evidenciados nos discursos dos outros personagens da narrativa. São raras as menções

positivas a seu respeito, durante todas as narrativas. Esses discursos contribuíram para o

caráter negativo e melancólico de seu discurso e também para construir a forma como esse SD

passa a se descrever e se caracterizar em todos os seus enunciados.

Nos discursos da narrativa cinematográfica, existem vários fragmentos que

comprovam aquilo que vem sendo relatado durante as análises. A interferência de outros

discursos na constituição do SD Zezé, como é o caso do RDF-I 23, onde se evidencia o irmão

de Zezé, reafirmando que ele é um diabo, enunciado que mais tarde será retomado através do

próprio discurso do protagonista da narrativa fílmica.

Totoca:

- Você é ruim mesmo, hein?

- Você é o diabo. [...] Sai da minha frente, você é o diabo.

Conforme a câmera faz um zoom no protagonista, seu enunciado acompanha seu

discurso corporal, isto é, o discurso imagético e o discurso linguístico se complementam na

constituição da cena fílmica, criando uma realidade que se materializa visualmente para o

espectador. É possível perceber que Zezé começa a fazer gestos com a boca e com o rosto

dando a impressão que está reafirmando aquilo que o irmão lhe falara.

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A imagem da reação de Zezé nessa cena constitui um discurso e, no filme, é utilizada

como artifício para fortalecer o dizer e configura um modo de apresentar as ideias, de fazer

referir e provocar no interlocutor uma melhor identificação, a esse discurso do irmão

retomado diversas vezes pela memória discursiva do personagem, quando enuncia para outros

sujeitos dentro da narrativa, como é o caso do RDF-I 24, em que Zezé rememora

inconscientemente aquilo que seu irmão lhe dissera:

Zezé:

As pessoas falam que eu tenho o diabo no corpo é isso que dizem pra mim.

Acreditando que é um diabo, Zezé tenta confirmar esse fato, colocando fogo na cerca

da vizinha. A câmera em PA filma a caixa de fósforos e uma mão acendendo o palito, mas

não mostra Zezé ateando o fogo. Porém, pelo ângulo em que a câmera filma a cerca pegando

fogo (contre-plongée) o espectador descobre que foi Zezé que colocou fogo, a câmera é o

olho do espectador através do olho de Zezé, que observa o tamanho das chamas do fogo

contra o céu e a copa das árvores.

Zezé também da voz à sua imaginação, conversando com o pé de laranja lima, que

passa a ser seu único amigo, alguém que lhe escuta. Na verdade, a voz do pé de laranja, nada

mais é do que a própria consciência do personagem em uma tentativa de suprir a falta

constitutiva do afeto em sua vida.

Em uma das conversas, Zezé revela à laranjeira, que na escola deixava o diabo do lado

de fora, esse diálogo tanto na narrativa literária quanto na fílmica, mostra que na escola, ele

não precisava usar o diabo para chamar a atenção, pois recebia atenção e afeto de sua

professora Cecília Paim.

Zezé encontra também outro personagem que lhe dá atenção, o cantor de rua

Ariovaldo. O personagem começa a trabalhar como seu ajudante, vende os CDs na rua

enquanto seu amigo canta e toca violão. Porém, seu pai acaba descobrindo. Quando o menino

chega à casa com o dinheiro que ganhou do cantor, imediatamente tenta guardá-lo em uma

lata. Nesse momento aparece a figura do pai que lhe rouba o dinheiro:

RDF-I 25:

Pai:

- Me dá essa lata.

- Dá essa lata.

- Sou eu que estou desempregado!

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- O dinheiro é meu.

Começa uma luta entre pai e filho pela lata. O pai consegue arrancá-la do menino,

Zezé aparece caído ao chão e o pai ainda o ameaça:

RDF-I 26:

Pai:

- E nem pense em chorar

- E nem pense em chorar.

- É meu.

É través de cenas como essas que as memórias negativas do pai começam a ser

construídas pela criança. Nota-se que, a cada briga com o pai, Zezé faz ressurgir o seu

menino-diabo e apronta mais uma de suas travessuras.

Após cortar o pé em um caco de vidro, pois tentara entrar no pátio do vizinho,

sentindo-se culpado, Zezé questiona sua irmã:

RDF-I 27:

Zezé:

- Godóia, porque ninguém gosta de mim?

Com as surras da família, Zezé vai adquirindo uma imagem negativa da vida e de si

mesmo, começa a acreditar não ser querido por sua família. No entanto, a esperança do afeto

ressurge, após a cena da carona oferecida pelo Portuga ao menino. Surge a partir daí uma

amizade que jamais será esquecida. Surge também um novo discurso, diferente daquele da sua

família. O discurso de Valadares possui palavras doces, conselhos sábios e muita ternura, o

que faz com que o SD Zezé passe a acreditar novamente na vida.

Em um diálogo com o menino, Valadares não acredita no discurso negativo sobre si

mesmo proferido por Zezé. Porém, Zezé reafirma o discurso sempre ouvido por ele no âmbito

familiar:

RDF-I 28:

Zezé:

- Eu tenho o diabo dentro do corpo.

- É sério, por isso que eu apanho tanto.

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A cada nova surra, Zezé confirma a presença da FD que lhe foi imposta. Na cena

descrita a seguir, filmada em plongée, o SD aparece na fábrica de vasos de argila, destruindo

todos os vasos recém-feitos, argila ainda mole. A câmera segue os pés do personagem

destruindo em sequência todos os vasos. Essa cena é uma das mais representativas para esta

análise, porque Zezé passa a ter o mesmo discurso de sua família, e utiliza esse discurso para

justificar todas as suas travessuras.

Zezé encontra seu irmão mais velho brincando no barro, próximo à fábrica, e este, o

repreende por estar ali:

RDF-I 29:

Irmão:

- O que você está fazendo aqui? É melhor você ir para casa, você já apanhou demais.

Neste momento observa-se aquilo que procurei evidenciar durante todo o processo de

análise. O discurso do SD Zezé é construído através dos significados atribuídos pelos outros

às ações da criança, o que significa dizer que, para entender a FD que o constitui, faz-se

necessário olhar para como os outros interpretam suas características e ações e através disso,

qual discurso lhe é determinado, fato esse comprovado através do RD 37:

Zezé:

- Portuga, olhe para minha cara. Cara não, focinho. Lá em casa dizem que eu tenho

focinho porque não sou gente, sou bicho, sou filho do diabo. (p. 142). [...] Eu sou tão

ruim que nem devia ter nascido (p.143).

Zezé, assim como evidenciado no RD 37, passa a acreditar com veemência nos

discursos negativos, nos rótulos como demônio, coisa ruim, bicho, que lhe são instituídos pela

família. São esses discursos que impregnam a FD que o determina discursivamente.

Ainda na cena entre Zezé e seu irmão, na fábrica de vasos de barro, o personagem não

hesita em verbalizar aquilo que já foi enunciado pelos outros anteriormente:

RDF-I 30:

Zezé:

- Um diabo.

- Eu sou o diabo.

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A partir dessa cena, o filme passa a mostrar diversas ações negativas praticadas pelo

menino. A trajetória de discursos negativos em relação ao seu eu só aumentam, o que leva o

menino a confessar ao amigo Portuga que pretende jogar-se embaixo do Mangaratiba, como é

evidenciado no RDF-I 31:

Zezé:

Eu vou me despedir de você Portuga [...] Hoje à noite eu vou me jogar embaixo do

trem Mangaratiba [...] Eu não sirvo pra nada. Eu ia ser uma boca a menos pro meu

pai.

Evidenciou-se assim, através dos RDF-Is retirados do filme e dos RDs selecionados

da obra literária, que Zezé é um sujeito construído discursivamente mediante discursos dos

outros personagens das narrativas. Portanto, é um sujeito discursivo inserido numa conjuntura

social, histórica, e ideologicamente constituído o tempo todo por um conjunto de diferentes

vozes.

Nesse sentido, ao assimilar discursos de outros sujeitos enunciadores, Zezé busca

definir-se em relação ao mundo e, principalmente, ao seu próprio comportamento. Torna-se

claro que suas ideias são elaboradas gradual e lentamente a partir da ideologia constitutiva de

sua FD e das demais FDs em contato. É assim que as palavras negativas sobre seu Eu10

passam a fazer parte da constituição do SD Zezé. Elas provêm do interdiscurso que permeia

as relações sociais em que se movimenta e se constitui o SD, nas diferentes condições de

produção que o SD ocupe em sentido amplo ou estrito.

É importante reprisar, então, que através dessa exterioridade constitutiva é possível

perceber diferentes vozes se manifestando no discurso do protagonista da história. Pode-se

dessa forma considerar que o SD Zezé não é origem de seu dizer, posto que seu discurso é

perpassado a todo momento por vozes provenientes de uma anterioridade discursiva, de um

já-dito em outro momento, em outro lugar, uma historicidade linguística que o determina

como ser de linguagem e de ação.

10

Conforme Nasio (2009), apud Veloso (2012), este “Eu” com maiúscula é diferente do “eu” com minúscula,

segundo o autor: “O Eu é o pronome pessoal que indica a singularidade de um sujeito junto aos humanos; o

sujeito se pensa único e afirma isso com toda a naturalidade ao dizer: ‘Eu’. O eu é bem diferente; o eu é sentir-se

a si mesmo instalado num corpo, obedecendo a necessidades, atravessando por desejos e produto de uma

história. (...) o primeiro é a afirmação simbólica e social de nossa singularidade, enquanto o segundo é a

afirmação imaginária e afetiva de nosso ser” (NASIO, 2009, p. 84-5 apud VELOSO, 2012, p. 145).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como adiantei no texto de Introdução, este trabalho nasceu do gosto pessoal e

identificação com a obra analisada, além do interesse pela linha de pesquisa e a possibilidade

de ter como suporte teórico os princípios da AD. Para efeitos de análise, surgiu-me a ideia de

aproximar o livro OMPLL à sua adaptação fílmica, a fim de observar a forma como escritor e

diretor cinematográfico constroem discursivamente o personagem principal, o menino Zezé,

em suas respectivas narrativas, a literária e a fílmica.

Neste trabalho, portanto, busquei construir uma reflexão sobre a forma como o

discurso do SD Zezé foi constituído em ambas as narrativas, a literária e a fílmica,

compreendendo assim, como este se constrói na relação com o Outro/outro.

A partir das análises dos RDF-Is e dos RDs, foi possível perceber que o discurso do

Outro emerge na voz do SD Zezé enquanto um efeito de memória discursiva. Pela perspectiva

dos pressupostos teóricos da AD, a pesquisa reiterou o entendimento de que linguagem é, por

natureza, dialógica, já que nela se cruzam discursos outros. A teoria da AD francesa, iniciada

por Michel Pêcheux (1968), compreende o sujeito como efeito de sentido entre interlocutores

que ocupam posições diferentes na cena discursiva. Dessa forma, a AD distingue o sujeito

empírico, entendido como o indivíduo que fala, do sujeito discursivo, determinado no/pelo

dizer, mediante já-ditos em outros tempo e lugar e por outros sujeitos ideologicamente

constituídos, internalizados e plenos de significação. Segundo Pêcheux (1997c), a

interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito)

com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito),

identificada nesse trabalho como FD familiar. Essa identificação, fundadora da unidade

(imaginária) do sujeito, apoia-se no fato de que os elementos do interdiscurso que constituem,

no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são reinscritos no discurso do

próprio sujeito (1997c, p. 163).

Através das palavras do criador da AD, é possível afirmar que todo o pensamento do

SD Zezé, que se materializa em seu discurso, é resultante de outras falas, outros

posicionamentos. Não há, em ambas as narrativas analisadas, um discurso que seja

genuinamente inovador, isso porque sempre comporta constitutivamente em seu interior

outros discursos.

O SD Zezé é, assim, um sujeito clivado, constituído por diversas vozes que ressoam

como componentes indissociáveis da sua história e da sua memória discursiva. Como

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demonstrado durante o processo de análise dos RDs e RDF-I, o SD-personagem principal

constrói o seu discurso a partir da interdiscursividade a que permanentemente está exposto. É

perceptível, nos RDs e RDF-Is destacados, uma justaposição de discursos presentes na

memória discursiva de sua FD familiar. Esses discursos, produtos da interdiscursividade que

pauta as relações nas FDs, são determinantes na construção discursiva de Zezé como sujeito

significante.

Durante o processo de analítico das sequências discursivas selecionadas, constatou-se

que o SD Zezé convive o tempo todo com um discurso negativo sobre seu comportamento.

Desde seu nascimento até a idade de seis anos, ele sofre com rótulos que lhe vão sendo

atribuídos, como diabo, coisa ruim, demônio, alguém que não presta pra nada e que não

deveria ter nascido (VASCONCELOS, 2013), instituídos pela família e vizinhança. É através

desse discurso do Outro, desse já-lá, em relação ao seu comportamento e atitudes, que o

personagem se constitui enquanto SD, pois passa a acreditar com veemência no discurso

negativo que a seu respeito transita na sua FD familiar.

Dessa forma, percebe-se no personagem analisado e em seu discurso que o Outro não

é um objeto exterior, sobre o qual se fala, mas a condição constitutiva, o quê estruturante do

seu discurso. Zezé passa a ser efeito de linguagem, uma representação das formas da

linguagem que ele enuncia.

Durante toda a construção da narrativa literária, como também da narrativa

cinematográfica, o par memória discursiva e esquecimento está presente, ou seja, o sujeito

esquece da FD à qual pertence, e esse esquecimento possibilita a ilusão de ser a origem do

que diz. Parece que o SD Zezé esquece o tempo todo que aquilo que enuncia, como, por

exemplo, Eu sou o diabo, eu não deveria ter nascido, não presto pra nada

(VASCONCELOS, 2013), já foi dito. Porém, como já evidenciado através das considerações

de Orlandi (2013), os sujeitos ‘esquecem’ que já foi dito [...] para, ao se identificarem com o

que dizem se constituírem em sujeitos (p. 36).

É dessa maneira que o sujeito Zezé significa, que seu dizer adquire sentido, retomando

ideias já existentes como se elas se originassem nele. A propósito, conforme Orlandi (2013):

sentido e sujeitos estão sempre em movimento, significando sempre de muitas e variadas

maneiras. Sempre as mesmas, mas, ao mesmo tempo, sempre outras (p. 36).

Evidenciou-se, desse modo, que a memória afetivo-discursiva assumiu papel

significante dentro do discurso literário e fílmico, pois estabeleceu os implícitos, ou seja, os

pré-construídos dentro dos enunciados do personagem principal. Dessa forma, a memória

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discursiva pode ser compreendida neste trabalho como o efeito da presença do interdiscurso

no acontecimento do dizer.

Os enunciados de Zezé são a todo tempo atravessados por sentidos já-ditos. É assim

que o interdiscurso se faz memória discursiva, produzindo um movimento nas redes de

memória, instaurando o efeito de diferente, de outro dizer nas palavras de Zezé.

Sob essa perspectiva, foi possível perceber, tanto no livro quanto no filme, as vozes de

outros discursos (da mãe, dos irmãos, do tio Edmundo, do cantor Ariovaldo, do amigo

Portuga e principalmente do pai), ancorados na voz de Zezé. Tal raciocínio reitera a ideia de

que o sujeito não é a fonte primeira do que diz, mas, por conta dos esquecimentos, não

percebe os já-ditos e acredita produzir um discurso homogêneo.

Não posso deixar de reiterar aqui o fato de estar trabalhando com a imagem

cinematográfica como prática discursiva, observando, assim, a imagem como materialização

do discurso.

Trabalhar o filme no âmbito da linguagem, no caso, a não verbal, é procurar um

sentido mais amplo, além do conceito de narrativa. É buscar, de um lugar particular,

interpretar, fazer sentido. Muitas vezes, as imagens do filme OMPLL dispensam a palavra

enquanto forma de linguagem. As imagens significam (para o espectador), não falam. São

textos para serem vistos, interpretados. São, em sua materialidade visual, discursos.

Dessa forma, assim como as palavras no livro de Vasconcelos, as imagens no filme de

Bernstein são construídas por uma materialidade própria, possuem historicidade e significação

ao se referirem ao mundo (mesmo que em partes imaginário) de uma criança de seis anos,

destituída de sua identidade infantil pelos discursos e ideologias de outros sujeitos,

atravessados pela memória afetivo-discursiva e pelo inconsciente.

Nessa perspectiva, tornou-se evidente durante a análise dos RDF-Is que enredo e

imagens foram compostos como recordações. A visão do sujeito Zezé sobre sua própria vida e

a influência que os outros SD-personagens exerceram em sua constituição discursiva são

evidenciadas não tanto pelas suas palavras, pois os discursos, em toda a narrativa fílmica, são

breves e muitas vezes simbolizados por elementos do cenário. Bernstein traduz essa

significação pelas imagens que exaltam todo o drama psicológico no menino, efeito obtido

mediante as escolhas de ângulos, usando, por exemplo, o diretor usa o contre-plongée na

maioria das tomadas em que destaca momentos de repressão e violência explícita contra o SD

Zezé, em que a família usava discursos negativos para repreender o menino.

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No filme, é possível perceber bem, através do uso de diferentes planos

cinematográficos, a visão exagerada das memórias e recordações do SD Zezé, que não se

lembra da dor sofrida, mas das expressões nos rostos dos seus agressores, diferentemente do

livro, em que essa dor é totalmente relatada ao leitor.

Porém, livro e filme se aproximam quando os dizeres do SD, expressando-se na

condição personagem literário e cinematográfico, são analisados, pois nesse momento é

possível identificar, no processo discursivo de constituição desses dizeres, um

entrecruzamento de diferentes vozes, voz social, histórica, ideológica, que são retomadas de

outros sujeitos e são ressignificadas. Há que se considerar que nas narrativas estudadas tem-se

a presença de um personagem que se constitui sujeito do discurso sob o efeito do

interdiscurso e assim as palavras de diversos sujeitos se fazem ouvir no discurso do SD Zezé.

Como últimas reflexões e talvez as mais importantes sobre o trabalho de pesquisa,

quero ressaltar algumas considerações evidenciadas após a conclusão do processo de análise.

Primeiramente, constatei que todo discurso é atravessado por outros discursos e o

sentido vai estar diretamente relacionado ao entrecruzamento de vozes ali presentes. Em

segundo lugar, o interdiscurso permite perceber a exterioridade como constitutiva do discurso,

ou seja, aquilo que é dito em outro lugar, em outro momento, também significa em nosso

discurso. Nesse processo, ocorre um diálogo com uma exterioridade, atravessado e permeado

pela memória discursiva. Assim, como afirma Orlandi: tudo aquilo que fala antes em ‘outro

lugar’, o ‘já-dito’, está na base do dizível (2013, p. 31). Desse modo, o sujeito está interligado

com o discurso da memória, pois é um sujeito que traz sempre em seu discurso marcas de

algo já evidenciado, assim como o SD Zezé.

Em último lugar, não menos importante, reitero que o discurso sempre dialoga com

outros discursos situados na história e que a FD configura-se como o lugar de identificação

dos sujeitos e de produção de sentidos.

Nesse aspecto, ressalta-se que o SD Zezé esquece o tempo todo, em ambas as

narrativas estudadas, o Outro cujo dizer ele retoma, caracterizando a remissão inconsciente à

presença do Outro/outro, diluída em seu discurso.

Portanto, ler a obra literária e cinematográfica na perspectiva da AD me possibilitou

perceber, ao término do trabalho analítico, como os sujeitos são constitutivamente

heterogêneos, fragmentados, e como o discurso não é uma entidade pronta e determinada, mas

constitutiva, opaca e incompleta. Tais considerações fazem com que, na busca pelos sentidos

possíveis em um discurso, não seja permitido ao analista do discurso esquecer elementos

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como a memória discursiva, as CP, a FD e o lugar sócio-histórico e ideológico em que os

sujeitos se inscrevem como seres de linguagem.

Acredito, assim, que uma possível contribuição deste trabalho ao campo teórico

escolhido para fundamentar estas reflexões talvez esteja em se constituir como um esforço a

mais para refletir acerca de concepções teóricas da AD aplicadas a duas linguagens diferentes,

notadamente no que concerne à natureza e constituição do sujeito do discurso, neste trabalho

compreendido como um ser social, construído mediante a interpelação pela ideologia. Ou

seja, em uma e noutra linguagem, a literária e a fílmica, o SD Zezé é um efeito de sentido

nascido na e da relação discursiva com outros sujeitos.

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ANEXO

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1. CD contendo os Recortes Discursivos Fílmico–Imagéticos (RDF – Is)