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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE ELIANA PARDO PULZ DOICHE A LENDA DE HANNIBAL LECTER: UM ESTUDO DA CARNAVALIZAÇÃO NOS FILMES O SILÊNCIO DOS INOCENTES, HANNIBAL E DRAGÃO VERMELHO São Paulo 2011

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

ELIANA PARDO PULZ DOICHE

A LENDA DE HANNIBAL LECTER: UM ESTUDO DA

CARNAVALIZAÇÃO NOS FILMES O SILÊNCIO DOS INOCENTES,

HANNIBAL E DRAGÃO VERMELHO

São Paulo

2011

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D657L Doiche, Eliana Pardo Pulz.

A lenda de Hannibal Lecter: um estudo da carnavalização nos filmes O silęncio dos inocentes, Hannibal e dragão vermelho / Eliana Pardo Pulz Doiche. -

170 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2012.

Bibliografia: f. 169-170.

1. Dialogismo. 2. Bakhtin, Mikhail. 3. Lecter, Hannibal. I. Título.

CDD 302.2

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ELIANA PARDO PULZ DOICHE

A LENDA DE HANNIBAL LECTER: UM ESTUDO DA

CARNAVALIZAÇÃO NOS FILMES O SILÊNCIO DOS

INOCENTES, HANNIBAL E DRAGÃO VERMELHO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito para obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientadora: Profª. Drª. Lílian Lopondo

São Paulo 2011

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ELIANA PARDO PULZ DOICHE

A LENDA DE HANNIBAL LECTER: UM ESTUDO DA

CARNAVALIZAÇÃO NOS FILMES O SILÊNCIO DOS

INOCENTES, HANNIBAL E DRAGÃO VERMELHO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito para obtenção do título de Mestre em Letras.

Aprovado em

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________ Profª. Drª. Lílian Lopondo

Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)

__________________________________________________ Profª. Drª. Ângela Sivalli Ignatti Universidade de São Paulo (USP)

__________________________________________________

Profª. Drª. Maria Luíza Guarnieri Atik Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)

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A meu marido e filhos, eternos

companheiros, pela confiança na

realização deste trabalho.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por me dar saúde para trilhar esta jornada até o final.

A meu pai, pelo carinho e exemplo de um homem trabalhador desde os primeiros

anos.

À minha mãe, pela criação tão intensa e tão dedicada.

À Profª. Drª. Lílian Lopondo, pelo apoio e pelas longas esperas.

A todos os professores e administradores da EMEF Padre Gregório Westrupp pelo

companheirismo e compreensão.

À minha parceira de dezoito anos, Edileuza, que cuida de mim e dos meus.

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[...] por ter muito para ver,

nossos olhos, com frequência,

não conseguem ver

mais coisa alguma.

(Jean-Claude Carrière)

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RESUMO

O objetivo desta dissertação é o estudo da personagem Hannibal Lecter nas

narrativas fílmicas O Silêncio dos Inocentes, Hannibal e Dragão Vermelho. Para

tanto, focalizamos a personagem sob dois aspectos: o primeiro se relaciona com sua

construção. Estudamos os movimentos de câmera e os ângulos de focalização da

câmera. Alguns outros elementos da linguagem fílmica, como os ruídos e a música,

foram citados quando os mesmos eram muito relevantes para a composição da

personagem. O segundo trata do dialogismo, da “ciência das relações”, conforme

formulada por Bakhtin. Buscamos, assim, apreender os momentos em que as

personagens tomam consciência de sua identidade. Os procedimentos narrativos

comuns ao corpus evidenciam que a concepção de mundo dos filmes se sustenta

sobre a carnavalização. Por meio das imagens carnavalizadas, estamos diante de

um mundo às avessas, onde as verdades e as identidades são relativas.

Palavras-chave: câmera, Bakhtin, dialogismo, carnavalização, Hannibal Lecter.

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ABSTRACT

The goal of this dissertation is the study of the character Hannibal Lecter in

filmic narratives The Silence of the Lambs, Hannibal and Red Dragon. To this end,

we focus on the character in two ways: the first relates to its construction. We studied

the movements of the camera, the camera angles and focus of the camera. Some

other elements of film language, such as noise and music were cited when they were

very relevant to the composition of the character. The second deals with the

dialogue, “the science of relations”, as formulated by Bakhtin. We seek thus to seize

the moments when the characters become aware of their identity. The narrative

procedures common to the corpus show the conception of the film world stands on

the carnavalization. Through the images carnivalized, we are faced with a topsy-turvy

world where the truths and identities are relative.

Keywords: camera, Bakhtin, dialogism, carnavalization, Hannibal Lecter.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1 Vista panorâmica do edifício de treinamento do FBI. Clarice é a

pessoa que está correndo para o lado direito do edifício..............

30

Ilustração 2 A cena evidencia a jovialidade e o entusiasmo da

estudante.......................................................................................

31

Ilustração 3 Sequência em que ocorre o destaque na predominância do sexo

masculino da Instituição................................................................

31

Ilustração 4 Lecter visto por Clarice e Clarice vista por Lecter......................... 40

Ilustração 5 Lecter está colado ao vidro olhando para Clarice ........................ 46

Ilustração 6 Clarice quebra as regras de segurança e se aproxima de Lecter

que lhe promete ajuda...................................................................

48

Ilustração 7 Clarice após seu encontro com Hannibal Lecter........................... 49

Ilustração 8 Clarice volta para a academia em busca de aprimoramento........

50

lustração 9 Clarice durante sua formatura recebe uma ligação de Hannibal

Lecter ...........................................................................................

57

Ilustração 10 Tomada em plano geral final, Lecter está caminhando para

frente com terno claro e chapéu....................................................

58

Ilustração 11 Mason Verger na sequência de abertura do filme........................

63

Ilustração 12 Máscara que foi usada por Hannibal Lecter quando transferido

para o Tennesse...........................................................................

64

Ilustração 13 Clarice Starling, solitária, chegando ao local onde deve instruir

seus homens.................................................................................

67

Ilustração 14 A agente Especial Starling: posição de liderança......................... 68

Ilustração 15

Clarice pouco antes de atirar na mãe que carregava um bebê

preso no peito................................................................................

70

Ilustração 16 Clarice logo após o tiroteio em sua casa.......................................

71

Ilustração 17 Clarice no interior da sede do FBI olhando para o horizonte....... 74

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Ilustração 18 Clarice Starling em seu caminho para a casa de Verger.............. 75

Ilustração 19 A onipotência de Mason Verger concretizada em sua visão........ 79

Ilustração 20 Imagem de transição entre as sequências.................................... 82

Ilustração 21 Primeira vez que a câmera focaliza Dr. Fell.................................. 86

Ilustração 22 Hannibal Lecter na última cena do filme....................................... 90

Ilustração 23 Porta vermelha atrás de Graham. Seria ela um símbolo de

Hannibal Lecter? ...........................................................................

96

Ilustração 24 Porta da frente da casa do Dr. Hannibal Lecter............................ 96

Ilustração 25 Hannibal Lecter no momento em que agride o Agente Especial

Will Graham...................................................................................

102

Ilustração 26 Hannibal e Will Graham em seu reencontro.................................. 113

Ilustração 27 Dragão Vermelho.......................................................................... 117

Ilustração 28 O ataque repentino de Hannibal Lecter......................................... 118

Ilustração 29 Hannibal Lecter no momento em que encerra a leitura de sua

carta..............................................................................................

121

Ilustração 30

Reação visual de Lecter às palavras de Clarice ......................... 133

Ilustração 31 Clarice ao final da fala de Lecter................................................ 135

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13

CAPÍTULO 1 – A PERSONAGEM EM O SILÊNCIO DOS INOCENTES ................ 26

1.1 CLARICE STARLING E SEU PONTO DE VISTA.......................................... 26

1.1.1 CLARICE STARLING E O PONTO DE VISTA DO OUTRO.......................... 29

1.2 CLARICE STARLING FORA DA ACADEMIA................................................ 34

1.2.1 CLARICE STARLING E HANNIBAL LECTER – O PRIMEIRO ENCONTRO 38

1.3 CLARICE STARLING RETORNA PARA A ACADEMIA................................ 50

1.4 CLARICE STARLING E HANNIBAL LECTER – O SEGUNDO ENCONTRO .. 52

1.5 BUFFALO BILL OU JAMES GUMB ................................................................. 54

1.6 O FINAL ABERTO DE O SILÊNCIO DOS INOCENTES ................................ 56

CAPÍTULO 2 – A PERSONAGEM EM HANNIBAL .................................................. 59

2.1 MASON VERGER E SEU INFORMANTE......................................................... 59

2.2 CLARICE STARLING – O ENCONTRO COM OS PARCEIROS...................... 66

2.3 CLARICE STARLING – O ENCONTRO EM PRAÇA PÚBLICA........................ 69

2.4 O JULGAMENTO DE CLARICE STARLING..................................................... 71

2.5 CLARICE STARLING – O ENCONTRO COM MASON VERGER.................... 75

2.6 HANNIBAL LECTER OU DR. FELL ................................................................. 82

2.7 HANNIBAL LECTER E CLARICE STARLING – A CARTA PERFUMADA....... 86

2.8 O FINAL DE HANNIBAL ................................................................................... 88

CAPÍTULO 3 – A PERSONAGEM EM DRAGÃO VERMELHO................................. 91

3.1 HANNIBAL EM ENCONTROS SOCIAIS........................................................... 91

3.2 HANNIBAL LECTER E WILL GRAHAM – O PRIMEIRO ENCONTRO............. 95

3.3 WILL GRAHAM LONGE DO FBI EM NOVA FASE.......................................... 104

3.4 HANNIBAL LECTER E WILL GRAHAM – O (RE) ENCONTRO...................... 107

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3.5 DRAGÃO VERMELHO OU FRANCIS DOLARHYDE....................................... 114

3.6 HANNIBAL LECTER E WILL GRAHAM - NA JAULA DE EXERCÍCIOS......... 118

3.7 O FINAL CIRCULAR DE DRAGÃO VERMELHO............................................. 120

CAPÍTULO 4 – AS RELAÇÕES DIALÓGICAS EM O SILÊNCIO DOS

INOCENTES, HANNIBAL E DRAGÃO VERMELHO ................................................

123

4.1 HANNIBAL LECTER – O EU E O OUTRO EM O SILÊNCIO DOS

INOCENTES .................................................................................................

125

4.2 HANNIBAL LECTER – O EU E O OUTRO EM HANNIBAL 138

4.3 HANNIBAL LECTER – O EU E O OUTRO EM DRAGÃO VERMELHO 143

CAPÍTULO 5 – A CARNAVALIZAÇÃO EM O SILÊNCIO DOS INOCENTES,

HANNIBAL E DRAGÃO VERMELHO........................................................................

145

5.1 AS CATEGORIAS CARNAVALESCAS INSERIDAS NAS NARRATIVAS

FÍLMICAS ......................................................................................................

147

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 154

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 161

ANEXO I – FICHA E SINOPSE DOS FILMES ESTUDADOS...................................

HANNIBAL 165

O SILÊNCIO DOS INOCENTES 166

DRAGÃO VERMELHO 169

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Introdução

[...] as artes constituem discursos poderosos sobre a vida, sobre os seres humanos.

Beth Brait

O homem conseguiu produzir uma grande quantidade de artefatos que lhe

possibilitaram dominar e transformar o meio natural em que vive. Essa atitude de

criar instrumentos e aperfeiçoá-los constantemente torna possível a compreensão do

processo civilizatório pelo qual o ser humano vem passando desde que surgiu sobre

a Terra.

Os rastros deixados pelas civilizações (potes, urnas mortuárias e

instrumentos rudimentares para tecer, caçar ou pescar etc.) permitem que os

antropólogos culturais reconstituam a organização social de um grupo humano a

partir dos objetos preservados.

Além dos objetos que lhe são úteis no dia-a-dia, o ser humano também

produz coisas que, apesar de não terem utilidade imediata, sempre estiveram

presentes em sua vida. Por meio dessas criações, as quais se constituem as obras

de arte, o homem expressa seus sentimentos diante da vida e, mais ainda, expressa

sua visão do momento histórico no qual vive. É com o intuito, de revelar-se, que o

artista apropria-se de uma linguagem para produzir algo que lhe agrada e lhe é

representativo.

Dentre as muitas criações de caráter estético, que buscam sensibilizar e

emocionar o apreciador, interessa-nos estudar o cinema. Inicialmente, o cinema

trazia como novidade o movimento das imagens. O Cinematógrafo dos irmãos

Lumière, antes de ser apresentado em sessão pública pela primeira vez em Paris,

em 28 de dezembro de 1895, já havia sido mostrado ao mundo científico, em

reuniões privadas.

[...] Ele aluga o Salão Indiano, uma saleta no subsolo do Grand Café, no nº 14 a arrumação é sumária: uma tela, uma centena de cadeiras, um aparelho de projeção em cima de uma escadinha e, na entrada, uma faixa: “Cinematógrafo Lumière, entrada 1 franco”. (TOULET, 1988, p. 15)

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As pessoas que pagam para entrar na sala de cinema são mergulhadas na

escuridão. No local, além dos artefatos descritos na passagem acima por TOULET,

há um piano. O equipamento é instalado para encobrir o ruído do aparelho que

reproduz as imagens. O programa de vinte minutos, que comporta uns dez filmes,

vai deixando o público pasmo diante das imagens animadas. Na famosa Entrée d’um

train en gare de Ciotat, (A chegada do trem na estação de Ciotat), em que Louis

Lumière usou uma objetiva de campo profundo, a locomotiva vinda do horizonte,

aumenta de tamanho e projeta-se sobre os espectadores. O caráter mágico da

imagem cinematográfica aparece com clareza: a câmera cria algo mais que a

simples duplicação da realidade.

A novidade dos irmãos logo percorre as capitais da Europa e chega à cidade

de Nova Iorque em 29 de junho de 1896. Porém, até cerca de 1910, a França ocupa

o primeiro lugar na produção e exportação cinematográficas.

Nos primeiros dez anos, um filme ainda era apenas uma sequência de

tomadas estáticas, fruto direto da visão teatral. Porém, os cineastas começaram a

cortar o filme em cenas. A partir da aparente simplicidade da técnica de montar e

editar as imagens criou-se um vocabulário e uma gramática de incrível variedade, ou

seja, um meio de conduzir um relato e de veicular idéias.

No decorrer de um século, a jovem linguagem do cinema passou por uma

incrível diversificação. Desde o seu surgimento e o estabelecimento dos dois

princípios básicos: o cinema como documento (Lumière) e como sonho (Méliès); das

primeiras criações estilísticas: a não estaticidade de Lumière, a trucagem em Méliès

a forma de fazer filmes mudou completamente. Hoje se admite que este cinema

dos primórdios corresponda a outro tipo de espetáculo. Dessa forma, das primeiras

exibições do final do século 19, praticamente, só resta a sala escura.

A partir dessa breve história do cinema, cabe agora um enfoque sobre o

corpus, a fim de podermos prestar melhores esclarecimentos sobre a origem e os

objetivos deste estudo.

Nossa premissa inicial é a de que um filme, fazendo uso dos recursos

específicos da linguagem fílmica, cria uma realidade própria (ficcional) a partir do

real e portanto é habitada por personagens e os mesmos olham para as regras e as

convenções da sociedade. Como seres sociais, ou seja, como sujeitos históricos, as

personagens se comunicam fazendo uso da linguagem, quer dizer, de uma

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determinada língua concebida a partir de convenções determinadas por um certo

grupo social.

A partir dessa constatação, ou seja, de que em um filme, podemos perceber a

presença de várias linguagem: a fílmica, aquela que trata dos meios

cinematográficos: imagem, diálogos, ruídos, música, materiais escritos, e as outras

que se materializam em forma de enunciados, os quais são pronunciados pelas

personagens e que refletem suas posições ideológicas. Além disso, devemos

considerar que o cinema não é puro entretenimento e que por isso pode ser objeto

de um estudo sério.

Essas primeiras observações levam-nos a esclarecer o objetivo de nossa

dissertação que parte da construção da personagem com o intuito de demonstrar

que o dialogismo e a carnavalização são dois elementos de reflexão que podem ser

observados nas produções cinematográficas1 O Silêncio do Inocentes (The Silence

of the Lambs) (1991), de Jonathan Demme; Hannibal (Hannibal) (2001), de Ridley

Scott e Dragão Vermelho (Red Dragon) (2002), de Brett Ratner.

Nas obras citadas, alguns aspectos da personagem Hannibal Lecter, que

participa das três narrativas fílmicas, nos chamam a atenção. Parece-nos que a

substância fundamental de que é feita a personagem é a maneira como ele é

mostrado pela câmera. A opção pelo primeiro e primeiríssimo plano causam um

estranhamento e amedrontam seu interlocutor, além disso, nota-se seu

posicionamento frente ao seu interlocutor; sua habilidade de discurso ou

convencimento, sua capacidade de antecipar-se aos fatos e seu domínio intelectual.

Em suma, é por sua voz que Hannibal Lecter torna-se uma personagem complexa,

que vai transfigurando-se ao longo da narrativa para alcançar seu objetivo final, qual

seja, a liberdade (liberdade da prisão e retorno ao status quo, libertar-se da antiga

identidade de canibal e libertar-se de seu duplo - Will Graham).

No mundo ficcional retratado, policial e bandido se coadunam e refletem uma

realidade e um modo de vida que se expressam pela ambiguidade e pela

ambivalência. É nesse contexto que Hannibal Lecter transita livremente relaciona-se

1 Um dos filmes escolhidos para esta pesquisa O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs) (EUA, 1991)

é uma adaptação do romance homônimo de Thomas Harris, The Silence of the Lambs lançado em 1988. O outro

Hannibal (Hannibal) (EUA, 2001) também adaptado de um romance homônimo de Thomas Harris, lançado em

1999. Dragão Vermelho (Red Dragon) (EUA, 2002) foi adaptado a partir do romance homônimo de Thomas

Harris, lançado em 1981.

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com as outras personagens de diferentes esferas sociais, intercambiando seu papel,

herói ou anti-herói, de acordo com a necessidade do momento.

Dessa maneira, ao decidirmo-nos por estudar a personagem estávamos

elegendo seu caráter dialógico, uma vez que intuímos desde a primeira vez que

assistimos aos filmes que o vigor das personagens criadas é fruto das relações, e,

fundamentalmente, de sua voz. Por isso, para tratarmos das relações entre as

personagens, elegemos o dialogismo. Segundo MACHADO (1995, p. 310),

BAKHTIN formulou a “ciência das relações” por meio de “da observação da

interação existente na dinâmica das enunciações, dos organismos, dos fenômenos e

do homem com o mundo”. Sendo assim, o dialogismo “celebra a alteridade, a

necessidade do outro”, elegendo-se, assim, como elemento principal através do qual

Bakhtin pensará as relações culturais. Quando um fenômeno é analisado à luz do

dialogismo ele deve ser considerado “em sua bidirecionalidade, a orientação de um

EU para o OUTRO”.

As películas, anteriormente descritas, foram escolhidas para compor o nosso

corpus, em primeiro lugar, por serem filmes que tratam das personagens, ou seja, o

foco está nas relações entre elas e não na ação.

Dentro da Teoria Literária, KAYSER (1985) propõe, ou melhor, estabelece

uma classificação para os textos ficcionais considerando suas particularidades:

drama de ação, é aquele construído de eventos; drama de personagem, é aquele

em que a personagem domina o a história e drama de espaço, o lugar é o

protagonista do texto. Portanto, por essa classificação, poderíamos situar nosso

corpus na segunda categoria: drama de personagem. Segundo o teórico, a estrutura

do drama de personagem se caracteriza

[...] por um certo relaxamento da ação; estações seguem-se a estações. A

unidade não reside na ação, mas na figura. Tem de se ir buscar princípio,

meio e fim à sua essência (KAYSER, 1985, p. 409, grifo nosso).

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No mundo cinematográfico, o diretor Scorsese argumenta que quando se opta

por fazer um filme de gênero, há regras a serem respeitadas em relação ao público2.

Em outros termos, diretor e espectador compartilham de um pré-conhecimento que

foi estabelecido pelo sistema de criação. Dessa maneira, para o público torna-se

mais fácil fazer uma boa leitura da película.

Outro fator que nos levou a escolher os filmes se relaciona com as

personagens, as quais apresentaremos no decorrer do trabalho. As mesmas estão

envolvidas em “um enredo suficientemente rico, forte e convincente para manter no

leitor sempre a mesma pergunta aflita: e agora? que vai acontecer? e depois?”

(MOISÉS, 1983, p. 106). Ou seja, O Silêncio dos Inocentes traz para o primeiro

plano a figura de uma mulher, situação rara na história do cinema, tentando se

inserir em um sistema onde o predomínio masculino é claro. Ela se encontra

separada de Lecter por uma parede de vidro. Em Hannibal, Clarice e Hannibal estão

separados geograficamente. A policial está nos Estados Unidos e ele mora em

Florença. As situações provocadas por um antigo paciente e vítima de Lecter vão

possibilitar o reencontro dos dois. Já em Dragão Vermelho, o último filme, podemos

entender em que situações Hannibal Lecter foi preso e como ele se associa ao

criminoso Fada dos Dentes para matar o agente Graham.

Pela técnica de composição das narrativas fílmicas, os diretores dos filmes

convidam o espectador a experimentar diferentes sensações com cenas que

colocam o homem em situações extraordinárias que o revelam e provocam. Além

disso, põem em tensão a sanidade e a loucura; o bonito e o feio; o velho e o novo; o

certo e o errado. Enfim, o ser e o não ser. É na esteira desse ambiente de imagens

ambivalentes que encontramos a carnavalização. Segundo BAKHTIN (2008, p. 122),

a cosmovisão carnavalesca aplicada a um texto “coloca a imagem e a palavra numa

relação especial com a realidade”. Dessa maneira, a vida é desviada de sua ordem

normal, transformando-se em uma “vida às avessas”, um “mundo invertido”. Nessa

nova ordem, todos são participantes ativos, pois o carnaval não é representado, ele

é vivido. O principal palco das ações carnavalescas é a praça pública, as ruas

contíguas ou qualquer outro espaço onde as personagens possam se encontrar.

2 TIRARD, Laurent. Grandes diretores de cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

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Por fim, em nossa escolha consideramos a notoriedade comercial e o apelo

popular das películas. Os três filmes foram sucesso de bilheteria e ainda são

transmitidos tanto nos canais abertos quanto nos canais disponibilizados pelas

empresas de televisão a cabo.

O Silêncio do Inocentes, por exemplo, foi a terceira obra a vencer as cinco

principais categorias do Oscar: Melhor Ator, Melhor Atriz e Melhor Diretor (Anthony

Hopkins, Jodie Foster e Jonatham Demme, respectivamente), e também o Oscar de

Melhor Filme, e o Oscar de Melhor Roteiro adaptado para Ted Tally. Os outros dois

filmes que conseguiram esse feito foram Aconteceu Naquela Noite, de Frank Capra

(1934) e Um Estranho no Ninho, de Milos Forman (1975).

Feitas as primeiras justificativas quanto à escolha do nosso corpus,

enfatizamos que neste trabalho procura-se dar palavra ao próprio filme, suas

imagens, diálogos e sons são tomados aqui como núcleo central e busca-se extrair

deles as relações dialógicas entre as personagens, as questões que estas suscitam

e como as mesmas são resolvidas no plano diegético. Partimos à apresentação dos

filmes escolhidos.

As técnicas de filmagem utilizadas na trilogia buscam fazer algo que o cinema

foi se aperfeiçoando desde sua primeira exibição, ou seja, prender inúmeros

espectadores diante de uma grande tela, o que, atualmente, leva mais ou menos

duas horas. Para isto a montagem do filme nas disposições de cenas e a construção

estética das personagens principais serão fundamentais para que exista uma

sintonia, uma espécie de “pacto”, entre o público e a personagem que conduz a

trama para que após a efetivação deste “pacto” o filme se estenda até o resultado

final. E, nesse sentido, a identificação entre público e personagem se realiza, a

trama pode tomar qualquer rumo, a personagem pode mostrar até um caráter

ambíguo que, em geral, o seu público o acompanhará e receberá a mensagem

proposta pelo narrador cinematográfico.

Além da identificação com a personagem, o espectador de cinema é levado a

seguir pistas falsas na narrativa do filme para que tire conclusões precipitadas e

sinta a todo instante um clima tenso e angustiante que o incite a permanecer até o

desfecho final, por mais irrelevante ou fantasioso que este possa parecer.

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Para isso, entra na feitura do filme a pós-produção que consiste não apenas

na montagem coerente das cenas gravadas que darão um sentido ao filme, mas

também na introdução de feitos sonoros e visuais, como a correção de defeitos nos

cenários, acerto das cores e luzes, tudo planejado para guiar as emoções do

espectador e para marcar a tônica da narrativa.

Vejamos a seguir as fábulas dos filmes escolhidos:

Em O Silêncio dos Inocentes, Hannibal, psiquiatra, que está preso em uma

instituição para prisioneiros com problemas mentais, por praticar o canibalismo,

recebe constantemente a visita da Agente do FBI Clarice (interpretada por Jodie

Foster). Jovem estudante, inexperiente, ambiciosa é facilmente envolvida pelo Dr.

Lecter. Ele que é “um monstro” – segundo o médico responsável pela prisão – Dr.

Chilton (interpretado por Anthony Heald).

Embora tivesse sido orientada por seu superior, a manter-se distante e ter

cuidado com Hannibal, ela relaxa e flexibiliza todas as regras de segurança que lhe

foram transmitidas: não se aproximar do vidro da cela, não aceitar nada do

prisioneiro, não revelar nada pessoal a ele. Ainda, passa a visitá-lo constantemente,

a qualquer hora – está ansiosa para resolver o seu primeiro caso. Deveria identificar,

juntamente com Lecter, Buffalo Bill - James Gumb (interpretado por Ted Levine), o

responsável por uma série de mortes que têm em comum o fato de as vítimas terem

partes de suas peles retiradas de seus corpos. O objetivo do assassino é trocar de

pele. Trocar a pele de um homem pela pele de várias mulheres. Para isso ele

costura os pedaços retirados de suas vítimas e cria para si uma roupa/pele. Gumb

estabele com a pele uma relação externa de recobrimento, ele acredita que sua

nova pele o libertará do masculino.

Nesse primeiro episódio, ao espectador pouco será revelado sobre o passado

de Lecter. O que se sabe é que ele está preso há oito anos, que possui uma grande

capacidade de se aproximar da mente das pessoas, para manipulá-las e até induzi-

las ao suicídio - como faz com um prisioneiro da cela ao lado da sua. Seu discurso é

provocativo, com certo tom de superioridade. Ele demonstra ter tido boa educação,

pois aprecia a boa mesa, os bons vinhos e a música clássica. Seu objetivo é fugir da

prisão. Quanto a Clarice, seu maior desafio é salvar a filha da senadora e conseguir

se formar na academia. Para isso, precisa da ajuda de Lecter; então, se deixa

envolver emocionalmente com o prisioneiro até conseguir atingir o seu objetivo.

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Porém, não consegue deixar de pensar nele, mesmo depois de tudo resolvido. As

duas personagens se reencontram em Hannibal em circunstâncias bem diferentes.

Dez anos depois, Dr. Hannibal Lecter reaparece, após ter fugido da prisão,

em Hannibal, filme que possui uma atmosfera onírica, um clima de irrealidade. Neste

episódio, ele vive tranquilamente pelas ruas de Florença (Itália), trabalhando na

Biblioteca Capponi, como Dr. Fell que ocupa interinamente na biblioteca o cargo

vago pelo desaparecimento de seu antecessor. Para ser efetivado, Dr. Fell precisa

provar que é grande conhecedor da obra de Dante Alighieri, pois alguns membros

do conselho da biblioteca não o querem por ser estrangeiro. D. Fell (Hannibal - para

o espectador) apresenta-se ao grupo e prova pelo discurso que está apto a assumir

o cargo.

Como no primeiro episódio, ele se posiciona em um patamar superior ao dos

outros. Quanto a Clarice, sem a jovialidade e a crença no sistema que tinha no

primeiro episódio, continua na luta pelo seu espaço, tendo que provar aos seus

superiores que possui competência e que foi julgada e condenada injustamente. Ela

alega ter feito seu trabalho exatamente da maneira como foi treinada. Ironicamente,

se comparada a Lecter, a enclausurada, agora, é ela, que não mede esforços para

capturá-lo.

O passado de Lecter, entendido aqui como o pouco que nos foi revelado em

O Silêncio dos Inocentes, não o deixará viver em paz. Ele será perseguido por

Mason Verger (interpretado por Gary Oldman), uma das poucas vítimas que

sobreviveu ao ataque do canibal. E ainda, um policial italiano, o inspetor Rinaldo

Pazzi (interpretado por Giancarlo Giannnini) com problemas financeiros que, atraído

pela recompensa oferecida por Verger, emprenha-se sozinho na captura do

assassino, sem considerar os perigos que poderiam advir dessa sua decisão.

A terceira narrativa fílmica, lançada em 2002, foi Dragão Vermelho. A história

é envolvente e enigmática, retrata o médico antes de O Silêncio dos Inocentes.

Novamente, Anthony Hopkins interpreta o psiquiatra Hannibal Lecter. No episódio, o

médico se mostra fragilizado, inconformado com o fato de ter sido superado por

outro. O tempo todo busca entender como foi pego: Com ele fez? Como ele

conseguiu? Ao mesmo tempo, não deixa de usar toda a sua inteligência e

perspicácia para induzir alguém a fazer o que ele quer: vingar-se de Will Graham.

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Will Graham é a personagem que contracena o tempo todo com Lecter.

Interpretado por Edward Norton, é caracterizado como alguém dotado de

habilidades especiais: ele vê coisas; não se considera vidente, mas reconhece que

possui algo a mais. Esse algo a mais o auxilia na resolução de seus casos.

As cenas iniciais, mostram a prisão de Hannibal Lecter efetuada pelo Agente

Especial Will Graham. Os dois traçavam juntos o perfil de um assassino que come

parte de suas vítimas. Enquanto aguarda o retorno do psiquiatra, que saiu da sala,

Graham percorre com os olhos os objetos pessoais de Hannibal. Um livro de

receitas lhe chama a atenção: Hannibal é o homem por quem procura. Sem tempo

para reagir, o inspetor é atacado por Hannibal. O primeiro consegue ferir o outro

com uma flecha. Ao final, Graham dispara sua arma contra Hannibal.

Um diário relata ao espectador o desfecho do duplo ataque: ambos

sobrevivem; Hannibal é condenado à prisão perpétua e o inspetor do FBI aposenta-

se após ter recebido alta do hospital. O afastamento do inspetor é provisório, pois

ele será procurado, pouco tempo depois, por Jack Crawford, para ajudá-lo a traçar o

perfil psicológico do assassino apelidado de Fada dos Dentes ou Dragão Vermelho,

cujo nome é Francis Dolarhyde, papel de Ralph Finnes.

Tal criminoso mata famílias inteiras nas noites de lua cheia. O FBI espera

prendê-lo antes do próximo ataque. O assassino é apresentado ao espectador,

caracterizado como alguém preso ao passado, aos maltratos da avó, com

dificuldades de se encarar no espelho. Além disso, revela-se fã do Dr. Hannibal

Lecter, com o qual se corresponde e com quem compartilha seus feitos e desejos.

Mesmo contra a vontade de sua esposa, o agente retorna à ativa. Ele é

mostrado como alguém com medo, porém, consciente de suas habilidades natas,

sente-se obrigado a ajudar a salvar vidas. Então, aceita se reencontrar com Hannibal

Lecter.

A narrativa toda vai enfatizar o conflito entre os três: Hannibal que quer

vingança e busca sua autoafirmação; Francis Dolarhyde, que busca uma nova

identidade e o agente que precisa superar seu medo. Dragão Vermelho encerra com

uma chamada para o primeiro filme O Silêncio dos Inocentes.

Até aqui apresentamos aquilo que propomos estudar neste trabalho, o

contexto mais geral em que se encontram o filme, sua face de produto da indústria

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cultural e o poder de seu discurso interno. Veremos em seguida os procedimentos

metodológicos que são utilizados para a realização deste texto.

A proposta deste trabalho, como dissemos inicialmente, é, em primeiro lugar,

estudar a personagem. Para esse fim, é preciso encarar a construção do filme, isto

é, a maneira que o diretor encontrou para dar forma às suas criaturas, e “aí pinçar a

independência, a autonomia e a “vida desses seres de ficção” (BRAIT, 1985). Para

MARTIN (2003), o diretor é o autor do filme. Porém, acreditamos que seja uma

simplificação, pois HOWARD e MABLEY (2002) ao abordarem o tema da autoria de

um filme argumentam que a questão é discutível. Os especialistas em roteiro alegam

que a forte interdependência entre os cineastas que produzem, rodam e montam um

filme não permite que se atribua a autoria a somente uma pessoa. Eles

complementam a reflexão dizendo que

[...] alguns filmes trazem a marca muito nítida de uma personalidade, muitas

vezes vem do diretor, mas, em alguns casos, do escritor, do fotógrafo e,

mais frequentemente do que gostariam de admitir dos teóricos do cinema de

autor, essa marca, estampada pelo filme todo, vem da estrela – não importa

quem tenha escrito ou dirigido. Desde os filmes de Mãe West até a série

Thil Man, passando pelas fitas de James Bond e pelos faroestes de Clint

Eastwood, muita coisa, no cinema, tira suas qualidades mais específicas

dos atores em frete à câmera. Mas, na maioria dos casos, o autor é a

equipe, não um indivíduo em particular. E a variedade, a profundidade e o

brilho de qualquer filme aumentam justamente pelos esforços desse

pequeno grupo, onde cada qual contribui com sua especialidade. (2002, p.

40, grifo nosso)

À ideia de BRAIT, acrescentamos o pensamento do Prof. Wolfgang Kayser

(1985, p. 4). Segundo ele:

todo estudo teórico [...] está inicialmente ao serviço da grande e difícil arte

de saber ler. Só quem sabe ler bem uma obra está em condições de fazer

entender aos outros, isto é, de a interpretar acertadamente (grifo nosso).

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As considerações de BRAIT e KAYSER são úteis para refletirmos sobre a

primeira etapa do nosso trabalho, qual seja, a leitura e análise das películas. Para

isso, devemos considerar que

um filme é uma história contada pelas imagens em movimento e que se

estrutura em torno de um conjunto de elementos essenciais os quais

ganham maior ou menor ênfase conforme o objetivo que se quer atingir,

Portanto, para compreendê-lo, precisamos proceder a um levantamento das

técnicas de narração e em seguida, analisar quais os efeitos de sentido que

decorrem do uso desses elementos. Com esse propósito, servi-nos de duas obras

que tratam da linguagem fílmica. A primeira é o Dicionário Teórico e Crítico de

Cinema, AUMONT e MARIE (2009) e a segunda é A linguagem cinematográfica,

MARTIN (2003).

Salientamos que as obras acima não tratam a personagem de maneira

especifica, pois ela é considerada apenas um dos elementos dentro da estrutura

fílmica. Por conta disso, buscamos nos apoiar, também, na Teoria Literária,

especialmente em AGUIAR E SILVA (2007), MOISÉS (1983). KAYSER (1985),

BRAIT (1985) e finalmente BAKHTIN (2008), pois este considera que a personagem

existe enquanto linguagem. São as impressões e percepções sobre si e sobre o

universo à sua volta que irão determinar a existência da personagem.

Em seguida, pretendemos analisar os dois elementos norteadores das

narrativas fílmicas as relações dialógicas e a carnavalização. Para a primeira parte

da nossa análise recorremos aos textos de BAKHTIN (2000, 2008, 2010a e 2010b).

A escolha da teoria bakhtiniana justifica-se por apresentar mais que um objeto

de estudo da linguagem. Mikhail Bakhtin percebe na linguagem uma realidade

definidora da própria condição humana, que é o ponto central da temática de nosso

corpus. Em decorrência desse pensamento, o filósofo recupera o sujeito para o

discurso, ou seja, “para a língua enquanto fenômeno integral concreto” (2008, p.

209), através do “eu” e do “outro”, mediante processo da subjetivação. Em sua

concepção teórica, a língua é basicamente a manisfestação de uma visão de mundo

e tem uma realização efetiva no discurso. É no discurso que se evidenciam as vozes

que se enunciam na escrita cinematográfica.

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Percebemos que o discurso do prisioneiro, o do policial e a falta de discurso

verbal, ou seja, a não expressão pela linguagem, de algumas personagens, tanto em

O Silêncio dos Inocentes quanto em Hannibal e também em Dragão Vermelho têm

grande importância, porque mostram a tensão e o estranhamento delas em relação

à sua própria realidade. Este é um aspecto relevante que se procurará evidenciar

neste trabalho, justamente, pelo mutismo forçado ao qual alguns dos tipos

representados têm sido submetidos.

As narrativas fílmicas estudadas dão voz a indivíduos que, por um questão de

gênero (Clarice), social (Lecter) ou outra questão qualquer, sempre estiveram

excluídos da participação social ou de qualquer tipo de direito. É uma maneira de

carnavalizar, ou seja, de subverter, de transgredir o discurso oficial. Segundo

BAKHTIN (2008 e 2010), violações do discurso, declarações inoportunas,

comportamentos contrários às normas e etiquetas são típicos da carnavalização.

A dissertação está organizada em quatro capítulos. No capítulo 1, buscamos

examinar a narrativa fílmica O Silêncio dos Inocentes. De início, apresentamos a

estrutura do filme. Em seguida, para a análise da ficção focalizamos os aspectos

relacionados com a ação, as personagens, o espaço, o tempo, o ponto de vista

narrativo, os e os recursos técnicos (o diálogo, a descrição, a narração e a

dissertação).

O capítulo 2 propõe-se a analisar a construção das personagens na película

Hannibal. No filme podemos observar que o diretor utilizou técnicas de narrativa bem

mais elaboradas que em seu antecessor. Isso se deve pelo fato de que a fábula de

Hannibal é narrada a partir de duas cidades distintas. Além da montagem alternada,

necessária para que não haja interrupção da diegese, destacamos outros recursos

como a criação do espaço da diegese e algumas cenas descritivas. Todos esses

elementos contribuem para a criação da obra.

O terceiro capítulo é o espaço da análise do filme Dragão Vermelho. Nesse

momento da dissertação, procura-se encerrar a apresentação das personagens.

Dessa maneira, poderemos partir para o próximo capítulo que apresenta as relações

dialógicas. Elege-se, aqui, os encontros como lugar onde se dão as relações entre

os sujeitos.

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O quinto capítulo será escrito para mostrar, que a partir da análise dos filmes,

chegamos à conclusão que a concepção de mundo de cada um se sustenta sobre a

carnavalização.

Seguem os capítulos, as considerações finais, as referências bibliográficas e

o Anexo 1, onde se incluem as fichas técnicas dos filmes estudados nesta

dissertação.

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Capítulo 1 - A personagem em O Silêncio do Inocentes

O objetivo deste capítulo é analisar as personagens que povoam a narrativa

fílmica O Silêncio dos Inocentes. Para atingir tal propósito, nos propomos a

descrever e analisar os processos de narração utilizados na construção das

mesmas.

O filme O Silêncio dos Inocentes, que possui vinte e oito seqüências3, conta

uma história que se passa nos Estados Unidos da América, na década de 1980. A

película possui uma narrativa linear, ou seja, os fatos são narrados em ordem

cronológica. À simplicidade do enredo aliá-se a utilização correta do potencial de

cada recurso técnico, mas sem que o resultado pareça excessivamente técnico e

sim convincente dentro do universo policial e das personalidades psicóticas. Para

isso, os desempenhos de Hopkins e de Foster são fundamentais.

1.1 Clarice Starling e seu ponto de vista

As duas primeiras sequências iniciam o “retrato” da protagonista.

O protagonista representa, na estrutura dos actantes ou agentes que

participam na açção narrativa, o núcleo ou o ponto cardeal por onde

passam os vectores que configuram funcionalmente as outras personagens,

pois é em relação a ele, aos valores que ele consubstancia, aos eventos

que ele provoca ou que ele suporta, que se definem o deuteragonista, a

personagem secundária mais relevante, o antagonista, a personagem que

se contrapõe à personagem principal, e que, em muitos textos, coincide com

o deuteragonista-, e os comparsas, as personagens acessórias ou

episódicas (AGUIAR E SILVA, 2007, p. 699-700).

3 “Em sentido quase intercambiável com o da cena, a sequência é antes de tudo, um momento facilmente isolável

da história contada por um filme: um sequenciamento de acontecimentos, em vários planos, cujo conjunto é

fortemente unitário. [...] é uma sucessão não de planos, mas de acontecimentos [...]” (AUMONT E MARIE,

2009, p. 268). Esclarecemos que usaremos os termos sequência e cena como sinônimos.

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O retrato inicial da personagem principal vai sendo aos poucos completado,

uma vez que é a protagonista que em geral merece uma apresentação mais extensa

e rica. Da mesma maneira, conforme sugere a citação acima, as outras personagens

vão nascendo à medida que o drama vai sendo construído pela câmera narradora.

Passemos à abertura do filme. Ela é feita com uma tomada em primeiro

plano. O espectador observa uma grande árvore perdida na imensidão do espaço

vazio que se observa atrás dela. Em seguida, a câmera vai se deslocando

lateralmente para baixo até que tudo seja descrito e o foco fixo e em plano geral

distante aguarda a aproximação de alguém.

Sobre a escolha do plano inicial, destacamos a passagem abaixo:

A escolha de cada plano é condicionada pela clareza necessária à

narrativa: deve haver adequação entre o tamanho do plano e seu conteúdo

matéria, por um lado (o plano é tanto maior ou próximo quanto menos

coisas há para ver), e seu conteúdo dramático, por outro (o tamanho do

plano aumenta conforme sua importância dramática ou sua significação

ideológica) (MARTIN, 2003, p.37).

Com base na explicação de MARTIN, pensamos que o diretor optou pelo

primeiro plano da árvore para antecipar uma característica de personalidade da

protagonista, sua tendência ao isolamento.

Juntamente como os créditos iniciais, a legenda permite identificar a floresta

perto de Quântico, Vírginia, EUA; em tal local, fica a sede do FBI – sigla para

Federal Bureau Investigation. O deslocamento da câmera é interrompido e o foco

fixo aguarda a aproximação daquela que será a protagonista. Enquanto ela se

aproxima do foco fixo, seu retrato físico e também psicológico vão sendo delineados.

Com a aproximação da jovem, a câmera passa a acompanhá-la durante o

período em que está fazendo treinamento: faz corrida e superação de altos

obstáculos. O narrador, ou seja, a câmera, com o intuito de revelar um traço

subjetivo da personagem e desde o início captar o espectador, se utiliza

principalmente de dois recursos. O primeiro deles é a alternância entre o primeiro

plano e o plano geral. Tal uso, nessa situação de início de narrativa, tem caráter

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descritivo. O plano geral dá uma dimensão maior do local enquanto o primeiro plano

mostra detalhes relacionados à personagem: seu cansaço, sua determinação, etc..

O segundo recurso utilizado pela câmera para mostrar a personagem e ao

mesmo tempo captar o espectador é a alternância do ponto de vista. Tal termo

relaciona-se com o modo de narrar e pode ser compreendido de maneira geral como

sendo

Um lugar, real ou imaginário, a partir do qual uma representação é

produzida. [...] Esse ponto de vista é com freqüência identificado com o

olhar, e, em um filme narrativo, a questão será saber se esse olhar pertence

a alguém: a um personagem (plano “subjetivo”), à câmera, ao autor do filme

ou a seu enunciador [...]. A marcação mais ou menos insistente desse ponto

de vista corresponde aos diversos graus de ocularização4 (Jost). (AUMONT

E MARIE, 2009, p. 237, grifo nosso)

Ora o espectador vê o rosto cansado de Clarice, ora o espectador vê o que

está por vir, os próximos obstáculos a serem transpostos. A moça não se detém

diante de nada e o espectador participa de tudo junto com ela. Seu treinamento é

interrompido por um homem, visto de costas, que a chama de Starling e lhe

comunica que Crawford quer vê-la no escritório dele. AGUIAR E SILVA (2007) atribui

ao nome um elemento importante na caracterização da personagem. Para o teórico,

“o nome da personagem funciona freqüentemente como um indício, como se a

relação entre o significante (nome) e o significado (conteúdo psicológico, ideológico,

etc.) da personagem fosse motivada intrinsecamente” (Ibid., p. 705).

O primeiro nome da protagonista Clarice, segundo o Dicionário Eletrônico de

Nomes Próprios5, foi levado para a Inglaterra na Idade Média. O mesmo nome deve

ter surgido na França e talvez seja uma forma derivada de Claritia ou de Clara. O

nome feminino Clara é de origem latina Clarus e significa claro, brilhante, ilustre.

Já o nome Clarissa6, que também é uma variação de Clara, indica uma

pessoa firme nas suas decisões. Embora vaidosa e bastante voltada para si própria,

4 O termo “ocularização” está relacionado com o que pode ver (ou não) uma personagem.

5 Disponível em http://nomes.netsaber.com.br/list_nomes_l_C.html. Acesso em 02 maio de 2011.

6 Disponível em http://www.dicionariodenomesproprios.com.br/search.do. Acesso em 02 maio de 2011.

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desde criança ela exibe um comportamento maternal em relação a quem precisa de

ajuda.

Ambas as etimologias revelam o perfil da protagonista. Quanto ao sobrenome

Starling7 uma significação relaciona-se com uma espécie de pássaro com penas

negras ou talvez esteja relacionado com a palavra inglesa “star” que significa estrela

ou astro. Traduziríamos livremente Clarice Starling como Estrela Brilhante ou Astro

Brilhante.

A moça retorna e o homem, ao se virar para acompanhá-la, identifica-se pela

sigla FBI bordadas em seu boné de cor amarela. O foco da câmera volta para

Starling e, durante seu retorno, o equipamento desvia-se da protagonista para

mostrar ao espectador em primeiro plano três cartazes de madeira cravados nas

árvores.

Tais cartazes exortam a garota a suportar a dor (Hurt), a agonia (Agony), o

sofrimento (Pain). Um quarto acrescenta amar isso (Love it); logo abaixo, com a tinta

apagada: orgulho (Pride). Os enunciados mostrados pela câmera narradora são

simbólicos, isto é, representam os valores ligados à realidade na qual está inserida a

personagem. Ou seja, para se tornar uma agente federal, ela precisa transpor todos

os obstáculos que se colocarem à sua frente (conforme o que já nos foi mostrado

nas primeiras cenas). Portanto, as frases antecipam a diegese: a vida da

protagonista não será fácil.

1.1.1 Clarice Starling e o ponto de vista do outro

A seguir, uma construção de grandes proporções é filmada em plano geral e

ângulo contra-plongée (o tema é fotografado de baixo para cima, ficando a objetiva

abaixo do nível normal do olhar) e toma o espaço da protagonista, que é vista

minúscula pelas paredes de vidro de um longo corredor. Nessa situação, a sugestão

de superioridade da edificação (por metonímia da Instituição) em relação à pessoa

se deve ao tamanho do plano e ao ângulo de filmagem.

7 Disponível em http://www.thefreedictionary.com/starling. Acesso em 02 maio de 2011.

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Ilustração 1 - Vista panorâmica do edifício de treinamento do FBI. Clarice é a pessoa

correndo pelo lado direito do edifício8

Um corte é necessário para que a câmera entre no edifício e siga a

personagem. A alternância entre o ponto de vista objetivo e subjetivo vai fazer com

que o espectador vá se deslocando pelos corredores, escadas e salas juntamente

com a protagonista. Os detalhes são focalizados quadro a quadro em primeiro plano.

Aos poucos, a câmera vai mostrando onde a história acontece. Trata-se do Centro

de Treinamento do FBI (que de fato existe e fica localizado nesse mesmo local). Há

muitos jovens em grupos ou em duplas manuseando armas os quais contrastam

com a solidão de Starling. Em seu caminho encontra-se com uma colega que a

chama pelo primeiro nome, “Clarice”. Neste trecho, o retrato da personagem está se

completando: Clarice Starling é uma pessoa jovem, descontraída, porém parece

solitária. Consideramos isso, pela observação dos lugares por onde ela passa: as

pessoas caminham ou trabalham em grupos e não isoladas.

8 Destacamos que essa locação, dez anos depois, em Hannibal, será mostrada de um ângulo diferente. Após ter

sido punida injustamente, a protagonista está sentada olhando para fora através das paredes de vidro. À sua

frente, o vazio.

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Ilustração 2 - A cena evidencia a jovialidade e o entusiasmo da estudante

Até que chegue a seu destino, a sala de Crawford, o ambiente masculino no

qual Clarice está inserida é mostrado. A cena acontece em plano distante, isto é, os

atores são vistos de corpo inteiro. Dessa maneira, a desvantagem tanto física quanto

numérica de Clarice é chocante para o espectador.

Clarice segue por um corredor até chegar em frente à porta de um elevador.

Dentro dele, podemos ver nove homens, os quais entram no elevador e a circulam.

Todos eles estão vestidos com camisetas vermelhas e entram no elevador primeiro,

conversando, não a cumprimentam nem são cumprimentados. A moça, vestida com

um casaco cinza, fica circulada por uma linha vermelha. Este detalhe da cor, realça

a desvantagem numérica da figura feminina, porém tal fato parece não incomodá-la

uma vez que adota uma postura corporal de enfrentamento e não de submissão.

Além disso, ela é descontraída, jovial e mantém-se com a cabeça erguida olhando

fixamente para o painel que marca os números dos andares. A porta se fecha.

Ilustração 3 - Sequência em que ocorre o destaque na predominância do sexo masculino da

Instituição 9

9 Em entrevista que pode ser assistida no DVD, a responsável pela pesquisa de campo para a realização do filme

destaca que o FBI ficou grato pelo filme, pois a instituição estava em campanha para o recrutamento de mais

mulheres.

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A seguir, a câmera fixa em primeiro plano aguarda a abertura da porta do

elevador. Quando isso acontece, o espectador vê Clarice saindo do elevador e

retomando seu destino que é o Departamento de Estudos Comportamentais. Starling

entra na sala e, enquanto aguarda seu superior, observa tudo à sua volta.

Inesperadamente seus olhos se detêm em um quadro de fotografias que mostram as

mulheres assassinadas por Buffalo Bill. Ao lado das fotos, anexado no mesmo

mural, está uma folha de jornal com a manchete que narra o ocorrido. A câmera

volta a focalizar o rosto da protagonista: ele está contraído; ela se emociona com o

que vê. Neste ponto da narrativa fílmica, o uso do travelling lateral e a alternância

entre o ponto de vista objetivo e o subjetivo aproximam o espectador e a

personagem.

O clima de comoção é quebrado pela chegada de alguém. Trata-se de Jack

Crawford, interpretado por Scott Glenn, personagem secundária, ou seja, uma

deuteragonista. Os atores estão em primeiro plano e o enquadramento é quadro a

quadro (ou seja plano subjetivo do interlocutor). Tal recurso imprime um tom de

intimidade à cena.

Durante o diálogo, de caráter informal e bastante cordial, Clarice é elogiada

por seu desempenho na academia: ela está se formando como uma das melhores

alunas da turma e seu desejo é fazer parte da equipe do Departamento de Estudos

de Comportamento. Crawford reconhece a qualidade da moça, oferece-lhe um

trabalho. Em poucas palavras, explica a ela do que se trata: Clarice deve procurar

um prisioneiro, Dr. Hannibal Lecter, um brilhante e perigoso canibal, e tentar

conseguir dele algumas informações para completar o dossiê do prisioneiro, uma

vez que todas as tentativas de diálogo com o detento foram frustradas.

Enquanto Clarice faz novas indagações, a câmera vai se afastando das

personagens (travelling para trás). Dessa maneira, novos elementos vão ser

adicionados à cena: o dossiê do prisioneiro, um crachá de identificação e os

relatórios que devem ser preenchidos. Atrás de Crawford está o quadro com as

fotografias que impressionaram Clarice – a sugestão é de que o trabalho designado

a Clarice se relaciona com os assassinatos.

Em seguida, um travelling rápido para frente faz com que a tela seja tomada

pelo rosto de Crawford. Ele diz: “Nunca revele nada pessoal. Você não vai querer ter

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Hannibal Lecter dentro de sua cabeça. Faça o seu trabalho, mas nunca se esqueça

do que ele é!” (Grifo nosso).

Dessa maneira, Clarice e o espectador foram advertidos quanto à

periculosidade de Hannibal Lecter. O perfil traçado do prisioneiro parece, de

antemão, contrapor-se com o significado do seu nome. Como já destacamos

anteriormente, o nome é de grande importância na caracterização das personagens;

é “considerado pelo homem primitivo como parte integrante de sua personalidade”

(RANK, 1939, p. 101).

Segundo o Dicionário Eletrônico de Nomes Próprios10 o nome Hannibal ou

Aníbal em português significa

dádiva do deus Baal e indica uma pessoa passiva e receptiva, que

normalmente se mostra calma, gentil, diplomática e bondosa. Apesar de não

ser ambicioso, consegue tudo o que deseja usando sua enorme capacidade

de convencer e mesmo seduzir. (grifo nosso)

Uma consulta ao mesmo dicionário mostrou-se inútil para tentarmos

conseguir o significado do sobrenome Lecter. Acreditamos que o nome seja uma

criação, isto é, uma corruptela do vocábulo inglês lecture. Para buscarmos o

significado que acreditamos seja relevante para a nossa análise, fizemos uma

consulta ao dicionário Oxford Escolar. A obra oferece as seguintes entradas para a

palavra lecture:

s 1 palestra: to give a lecture dar uma palestra 2 sermão LOC lecture treatre

anfiteatro *1 vi – (on sth) dar uma palestra (sobre algo) 2 vt ~ sb (for/about

sth) passar um sermão em alguém (por causa de algo) lecturer s 1 (GB)

(USA professor) ~ 2 conferencista (1999, p.483).

Portanto, teríamos alguém com características positivas com um bom

domínio da palavra. Veremos pelo andamento da diegese quem é Hannibal Lecter.

10

Disponível em http://www.dicionariodenomesproprios.com.br/search.do. Acesso em 02 maio de 2011.

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1.2 Clarice Starling fora da Academia

Ao ser designada para a entrevista, Clarice deixa a academia e viaja para

Baltimore. Uma tomada externa em plano panorâmico mostra o Hospital Estadual e

Prisão Psiquiátrica de Baltimore. Uma voz em off, que é de uma personagem da

ação, faz a transição entre as seqüências.

Com um corte, a câmera entra no hospital. A voz em off ganha um rosto. Em

primeiríssimo plano e ângulo plongée o homem continua os comentários sobre

Lecter, iniciados na sequência anterior. O mesmo tipo de plano e o mesmo ângulo

da câmera simulam uma continuidade: as duas personagens compartilham da

mesma opinião sobre Hannibal Lecter. Além disso, o interlocutor, que é Clarice, está

em pé. Dr. Frederick Chilton diz olhando para Clarice: “Ele é um monstro, um

psicopata. É raro capturar um vivo. Do ponto de vista da pesquisa médica, Lecter é o

nosso item mais estimado.” (grifo nosso)

O Larousse Cultural oferece a seguinte definição de monstro:

s.m. (lat. monstrum). 1. Organismo que, no todo ou em algumas de suas

partes, se afasta da estrutura ou da conformação natural da sua espécie ou

sexo, e cujo estudo pertence à teratologia. 2. Ser fantástico das lendas

mitológicas. 3. Pessoa cruel, feroz, desumana. 4. Pessoa feia, horrorosa. 5.

Fig. Coisa gigantesca e colossal. 6. Fam. Pessoa admirável sob qualquer

aspecto.

adj. 2g.2n. Que revela natureza, qualidade ou proporções extraordinárias.

(1992, p. 762).

Pelo número de entradas que o dicionário traz da palavra “monstro”, é

praticamente impossível traçar um perfil da personagem. O efeito de expectativa

criado com o uso do vocábulo de múltiplos sentidos prende e aguça a curiosidade da

protagonista e do espectador.

O diálogo entre Clarice e o médico não é agradável para a moça. O homem

sempre imprime um tom sarcástico e irônico em sua fala. Trata a estudante com

desprezo, fazendo insinuações sobre as reais intenções de Crawford ao recrutá-la

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para o trabalho, dizendo que há tempos não via detetive tão atraente. Tenta flertar

com Clarice, mas ela o ignora e retoma o assunto Lecter.

O tom de intimidade é quebrado com a abertura da câmera para o plano

geral. Clarice consegue se livrar da abordagem grosseira e sexista feita pelo médico.

Uma nova sequência se inicia. Porém um detalhe que pode passar despercebido

refere-se a um objeto que será retomado mais à frente. O espectador deve estar

atento a ele, ou se perderá no futuro, isto é, pode achar que houve uma

fragmentação na narrativa ou que aconteceu algo muito fantasioso. Trata-se da

caneta que o médico segura o tempo todo e a qual só vai guardar no início da

próxima cena.

O objeto mostrado várias vezes pela câmera irá representar dentro da

diegese a chave para a liberdade de Hannibal Lecter, até o momento desconhecido.

Finalmente, os dois se encaminham para a cela de Lecter. Nessa sequência,

destacaríamos o cenário, uma vez que contrasta com a sensação de espaço e

liberdade sugeridos pela primeira sequência a qual descrevemos.

Eles andam apressadamente, com a câmera tentando acompanhá-los. Após

terem atravessado uma porta, uma tomada fixa em ângulo ponglée mostra o

percurso a ser percorrido. Trata-se de um profundo labirinto estreito de escadas. Ao

final dele, há um policial.

A opção do diretor em mostrar a longa estrada relaciona-se com o

retardamento da diegese, ou seja, cria-se um clima de suspense. Principalmente

para a personagem Clarice que está adentrando em um mundo novo, desconhecido

até agora.

Um corte da câmera acelera a diegese e já nas escadarias eles continuam

conversando; o médico não perde a chance de provocar Clarice. Além disso, vai

fazendo outras observações sobre o prisioneiro: “Eu acho que Lecter não vê uma

mulher há oito anos e você é o tipo dele.” Acreditamos que tal comentário objetiva a

criação de um clima de “romance” no imaginário do espectador e de Clarice. Aos

poucos, o narrador vai construindo a unidade de tempo ao se referir ao período de

aprisionamento de Hannibal. Quando ele diz “você é o tipo dele” há uma

antecipação da diegese, ou seja, durante a narrativa uma perturbadora empatia vai

se estabecer entre Hannibal Lecter e Clarice Starling, conforme comentamos acima.

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A montagem alternada (mudança de ângulos e ponto de vista) é utilizada uma

vez que há necessidade de se imprimir movimento aos planos que se sucedem.

Durante o percurso o médico diz: “Nós tentamos estudá-lo é claro! Mas ele é muito

sofisticado para os testes padrões. Ele odeia a gente. Ele acha que eu sou o castigo

dele.” (grifo nosso)

Por meio da primeira fala do médico, que usa um tom jocoso, percebemos

que Hannibal é mantido vivo apenas pelo interesse que se tem em estudá-lo. Ao se

referir ao outro como “nosso item” o médico desconsidera a qualidade humana do

prisioneiro. Enfatiza assim sua utilidade como cobaia, como objeto de pesquisa.

Entretanto, não deixa de reconhecer a superioridade do outro, pois o considera

“sofisticado para os testes padrões”.

O caminho para baixo é longo. Além das escadarias, descritas anteriormente,

eles percorrem longos corredores iluminados e com tonalidades claras. Lecter está

realmente enclausurado em um porão de segurança máxima.

Reafirmamos que a ênfase na distância que separa Hannibal Lecter do

mundo, consequentemente de Clarice, não está relacionada apenas com a

periculosidade deste. Metaforicamente representa a estrada que levará Clarice a

autoconsciência.

À medida que se aproximam de seu destino, o homem muda bruscamente o

tom de sua fala e diz seriamente: “Não toque no vidro, não se aproxime do vidro. Só

entregue a ele papel macio. Nada de lápis, caneta, grampos ou clips no papel dele.

Use a gaveta deslizante. Se ele tentar lhe passar alguma coisa, não aceite.”

A essa altura, Clarice e o espectador estão ansiosos para chegar à cela de

Lecter. A câmera mostra que tal espera está chegando ao fim. O ambiente, antes

claro e iluminado, vai ficando avermelhado e escuro. Grades vermelhas aparecem. É

por trás delas que as personagens são vistas. Para aumentar o clima tenso e

retardar o aparecimento de Hannibal, o diretor inclui uma fotografia e a mostra para

Clarice em tom de advertência acrescentando:

Dr. Chilton: Eu vou mostrar porque insistimos em tantas preocupações. Na

tarde de oito de julho de 1981, ele reclamou de dores no peito e foi levado

para a enfermaria. A focinheira foi removida e quando a enfermeira se

inclinou para fazer o eletro, ele fez isso. (Grifo nosso)

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Nesta cena em que há uma fotografia envolvida, a câmera trabalha com a

sugestão, com o não “visto”. É pela reação de Clarice que o espectador imagina o

que está representado no papel. Consideramos aqui, que a fotografia é uma

linguagem objetiva, sem truques, que embora se ofereça “apenas como material

para o cotejo”, o que vemos nela é um reflexo “mais puro do que nosso reflexo no

espelho”, conforme sugere BAKHTIN (2000, p. 54). Sendo assim, a imagem que

Clarice vê é a representação do real. Dessa maneira, a personagem Hannibal Lecter

ganha nova face. Sua construção está aos poucos deixando de ser subjetiva, isto é,

pela fala do outro; a fotografia é um elemento concreto. Ninguém duvida que ela

retrate a pessoa que foi atacada por Lecter.

As grades vermelhas são abertas. Um som grave de metal é ouvido. Tal ruído

aumenta o clima de tensão que vem sendo observado desde o momento em que as

personagens iniciaram sua descida até as celas que se localizam no subsolo. Pela

montagem alternada, vemos o rosto avermelhado de Clarice em ângulo contra-

plongée, enquanto ela observa a fotografia que está em suas mãos.

A mudança de foco da câmera acontece quando o médico volta a falar; seu

rosto está em primeiríssimo plano11 e então se utilizando de um tom jocoso diz: “Os

médicos conseguiram salvar um maxilar e mais ou menos... salvar um dos olhos... O

pulso dele nunca foi acima de 8512, mesmo quando comeu a língua dela... E eu o

mantenho aqui.” (grifo nosso). O termo destacado na fala do homem demonstra que

ele estabelece com o outro uma relação de posse, ou seja, o diretor considera o

prisioneiro Hannibal como algo de sua propriedade.

Ao chegarem ao destino, Clarice pede ao médico que a deixe entrar sozinha,

considerando que Lecter “acha que você é o castigo dele”. Ao fazê-lo, imita o tom

jocoso comum na fala do diretor Chilton. Este último se sente contrariado, pois

11

“Primeiro Plano (Close-Up): A câmera, próxima da figura humana, apresenta apenas o rosto ou outro detalhe

qualquer que ocupa a quase totalidade da tela (há uma variante chamada primeiríssimo plano, que se refere a um

maior detalhamento – um olho ou uma boca ocupando toda a tela)” (XAVIER, 1984, p. 19) 12

“O ritmo das batidas de um coração normal descansado é de 60 a 100 por minuto. Os átrios (as duas câmaras

menores do coração) contraem-se simultaneamente e o mesmo acontece, logo em seguida, com os ventrículos (as

duas câmaras maiores). Esse mecanismo ocasiona a “batida dupla” característica do coração: tum-tá, tum-tá…

Exercícios ou estresse emocional podem aumentar o ritmo cardíaco para até 200 ou mais pulsações. Em pessoas

com coração sadio, quando a demanda de esforço volta ao normal, o ritmo cardíaco também se restabelece

rapidamente.” (Disponível em http://www.drauziovarella.com.br/Sintomas/259/arritmias. Acesso em 21 maio

2011)

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esperava conseguir algo do prisioneiro com a presença da moça lá. Sem ter o que

fazer, responde de maneira grosseira, porém concorda. Dirige-se ao enfermeiro o

qual estava aguardando e lhe pede para que a acompanhe até a saída após a visita.

Uma porta se fecha atrás de Clarice, a câmera circula lentamente pelo local

em plano subjetivo da personagem Clarice. A sala é pequena, os tons de vermelho e

branco predominam. Há muitos monitores de vídeo, um deles mostra o Dr. Chilton

fazendo seu caminho de volta para cima. Há três pessoas do sexo masculino. Um

deles está atrás de um vidro, repleto de armas. O outro está sentado e cumprimenta

a moça com a cabeça. Um terceiro se apresenta como Barney e mostra o lugar onde

Clarice pode guardar seu casaco. Ele abre a grade e diz em tom cortês: “Ele fica no

final. A última cela. Mantenha a sua direita. Lá tem uma cadeira para você. Eu vou

ficar de olho. Está tudo bem!”.

1.2.1 Clarice Starling e Hannibal Lecter – o primeiro encontro

Ao mesmo tempo em que uma grade se fecha outra se abre. O peso delas

pode ser sentido pelo som agudo gerado quando são movimentadas. Em Chevalier

e Gheerbrant (2009, p. 734), registra-se que “porta”, dentre diversas acepções,

simboliza o local de “passagem entre dois estados, dois mundos [...] ela tem

significado dinâmico, psicológico”. Ora, isso pode simbolizar também a procura do

homem pela sua identidade. Na focalização insistente da câmera em mostrá-la

durante seus intensos treinamentos, está manifesto o empenho dela, nesse início de

carreira, em afirmar sua identidade como policial.

A jovem inicia sua caminhada pelo corredor, a câmera a mostra pelo ponto de

vista objetivo, ela respira fundo e olha para frente. Então, a cena passa a ser

mostrada pelo ponto de vista da personagem. Dessa maneira, o espectador vê o

estreito corredor com paredes de pedras que ela terá de percorrer. Muito

lentamente, ela transpõe o percurso. O espectador, ao caminhar com ela, pressente

o seu medo, sua angústia, sua tensão. Ela precisa passar pela cela de outros três

prisioneiros, os quais fazem muito barulho, agarram-se às grades se dirigindo a ela

com xingamentos e grosserias.

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Com relação à expressividade da cena, o que mantém a atenção e o

interesse do espectador é a montagem rítmica, isto é, a escolha do momento exato

para que ocorra a mudança de plano. MARTIN (2003) explica como é a técnica

Se o plano se prolonga, advém um instante de aborrecimentos, impaciência.

Se cada plano for cortado exatamente no momento em que diminui a

atenção, sendo substituído por outro, o espectador permanecerá

constantemente atento. Dessa maneira, o filme tem ritmo (p.148).

Ao fazer cortes no plano, o diretor modela, ou seja, determina o ritmo do filme

e assim enfatiza um fato ou outro, sendo assim, a escolha feita é de caráter

expressivo e não somente narrativo. Optando por retardar o tempo de deslocamento

da personagem pelo pequeno e estreito corredor, o diretor deseja provocar um

aumento do suspense. Além disso, todos sabem que Hannibal está próximo, em

frente à cadeira, e o retardamento da diegese, garante um “tempo” maior para que o

espectador e a protagonista se prepararem para o encontro.

Um tema musical acompanha o compasso de Clarice. Ele vai se intensificar

quando ela chega ao final do corredor e procura por Hannibal, juntamente com o

espectador, uma vez que a câmera focaliza o lugar em ponto de vista objetivo. Os

movimentos circulares do aparelho simulam os olhos da estudante. Até que a

objetiva se fixa. Ele está em pé, atrás do vidro.

Para filmar a cena do encontro entre Clarice e Hannibal, o diretor utiliza a

técnica da profundidade de campo, que consiste em captar o movimento das

personagens. Ao mesmo, em que ela, câmera, se desloca para fazer as tomadas.

Encontramos em MARTIN (2003) a descrição do recurso

Uma composição em profundidade de campo consiste em distribuir os

personagens (e os objetos) em vários planos e fazê-los representar, tanto

quanto possível, de acordo com uma dominante espacial longitudinal (o eixo

óptico da câmera). A profundidade de campo é tanto maior quanto mais

afastados os planos de fundo estiverem do primeiro plano e quanto mais

próximo da objetiva este se encontrar (p. 165).

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O uso da composição em profundidade de campo permite que o diretor

combine de maneira audaciosa o primeiro plano e o plano geral, acrescentando “sua

acuidade de análise e sua capacidade de impacto psicológico à presença do mundo

e das coisas ao redor, através de enquadramentos de uma rara intensidade estética

e humana”.

É exatamente a impressão de “raridade” e “intensidade” que a próxima

sequência provoca no espectador. A cena, cujo tempo de duração é de 7m22s, se

inicia com um cumprimento cordial que parte de Hannibal; ele veste o uniforme azul

da prisão e está perfeitamente ereto; olhando atentamente para a garota.

A visão daquele homem quebra a expectativa do público e da moça: ambos

esperavam um monstro. A câmera circula lentamente pela cela. Finalmente, a

objetiva se fixa por trás dos ombros de Lecter e vemos Clarice sob o ponto de vista

dele. Ela se apresenta cordialmente e mostra suas credenciais conforme solicitação

do prisioneiro.

Ilustração 4 - Lecter visto por Clarice e Clarice vista por Lecter

Quando Starling lhe exibe sua carteira, ele solicita que ela chegue mais perto.

De repente, com um corte da câmera, pela primeira vez todos podem vê-lo. Hannibal

é focalizado em primeiríssimo plano, que se refere a um maior detalhamento – um

olho ou uma boca ocupando toda a tela. Acreditamos que tal tomada objetiva

corroborar com o retrato de “monstro” criado anteriormente por Crawford e pelo Dr.

Chilton, pois em breve o espectador e Clarice vão se deparar com um sujeito que

está encarcerado já faz muito tempo.

Hannibal fica muito irritado quando se dá conta de que sua visita é uma

estudante. Pensamos que ele tenha se sentido coisificado, ou seja, um objeto de

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estudos. Sua reação é baixar os olhos e dirigir-se a Clarice de maneira irônica.

CASTRO (2008) refere-se à ironia como sendo típico do discurso bivocal, isto é,

aquele surgido inevitavelmente sob as condições do discurso dialógico.

Além da entonação irônica, Lecter brinca com os opostos, ou seja, a negação

e a afirmação: “Você não é do FBI? É?”. Dessa maneira, observa-se que ele não se

preocupa em ocultar seu descontentamento. Por sua vez, Clarice responde ao

questionamento sem usar a negativa, pois isso denotaria uma situação permanente:

“Ainda estou em treinamento na academia.”

Ao usar a expressão “ainda”, Clarice procura transmitir uma ideia de algo

transitório, isto é, prestes a se modificar. Sua estratégia, no entanto, não surte efeito,

pois a reação de Lecter assusta a ela e ao espectador: ele abre bem os olhos na

continuação de sua fala.

Hannibal: Jack Crawford mandou uma estagiária para mim?

Clarice: É sou uma estudante. Estou aqui para aprender com o senhor.

Talvez possa decidir por si mesmo, se sou ou não qualificada para isso.

Hannibal: Muito bajulador de sua parte, agente Starling. (grifo nosso)

Nessa altura do diálogo, Clarice procura manter o distanciamento e valorizar o

saber do outro. Então a câmera a mostra do ponto de vista subjetivo da personagem

Hannibal. Tal recurso sugere que ele a esta analisando. Ela, por outro lado, parece

estar à vontade; senta-se conforme sugestão dele.

Durante o diálogo, há a predominância do primeiríssimo plano para o rosto de

Hannibal (ele está em pé). A mulher será enquadrada em contra-plongée, afastada

na câmera em plano frontal – ela está sentada. Hannibal quer saber o que o

companheiro de cela Miggs dissera para ela. Clarice: “Ele disse: Sinto o cheiro do

seu sexo.”; Lecter: “Entendo. Eu mesmo não sinto!”

Ao utilizar um tom gentil e compreensivo em sua fala, Hannibal demonstra

sua solidariedade, além de deixar claro que não a trataria daquela maneira

grosseira. Logo em seguida, a sequência da cena mostra que ele mentiu a respeito

de sua sensibilidade olfativa, talvez para deixá-la mais à vontade. A narração é feita

com a câmera mostrando a maneira como o prisioneiro ergue o pescoço em direção

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aos orifícios que permitem a entrada de ar na cela. Hannibal inspira longamente e

lentamente nomeia os cremes de corpo e de mãos que ela está usando e o quais

eventualmente usa.

Analisando o ambiente em que se encontra Hannibal e a forma como o

narrador destaca seu olfato faz com que o prisioneiro se assemelhe a um animal, ou

até mesmo, um predador que fareja sua presa antes de atacá-la. Além dessa

informação, nada mais nos é revelado sobre a personagem Hannibal Lecter.

Clarice se atrapalha com tudo aquilo e muda de assunto. Assim, o local é

focalizado em plano geral para que se possa ter uma visão da cela toda. Os dois são

focalizados lateralmente, estão um de frente para o outro, enquanto procuram

examinar o aspecto físico um do outro. Para BAKHTIN (2000, p. 47), o aspecto físico

é “o conjunto dos componentes expressivos que constituem o corpo humano”.

Ambos estão tentando imaginar o impacto que sua imagem externa provoca no

outro. Clarice, sentada à sua frente, procura motivos para continuar a conversa,

observa todos os detalhes da cela, seguindo a recomendação de Crawford. Alguns

desenhos fixados nas paredes da cela vão chamar a atenção da estudante. Assim,

ela se refere a eles:

Clarice: Foi o senhor quem fez os desenhos?

Lecter: Este é o Duomo visto do Belvedere. - a câmera mostra o desenho e

depois Hannibal - Conhece Florença?

Clarice: Todos os detalhes só de memória?

Lecter: Memória, agente Starling é o que eu tenho em vez da vista.

Essa referência à cidade de Florença é retomada em Hannibal, filme que será

objeto de nossa análise no próximo capítulo. Ao mencionar sua falta de “vista”,

refere-se a sua condição de prisioneiro, ou seja, o fato de estar privado de sua

liberdade.

Até este ponto da narrativa fílmica, o monstro ainda não apareceu. Em seu

lugar, mostra-se um homem gentil, compreensivo, culto, sensível. Alguém que

valoriza suas lembranças, isto é, sua vivência. Tal homem não é aquele que Clarice

esperava encontrar, ou seja, o canibal.

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Aproveitando a palavra “vista” usada por Hannibal, a agente tenta introduzir o

seu assunto. Então, ela pede para que o médico “mostre seu ponto de vista” no

questionário que estava com ela. Hannibal ironiza a maneira como Clarice tenta

dissuadi-lo. Isso provoca certo constrangimento na moça que procura manter-se

controlada. O diálogo prossegue, as posições continuam as mesmas: Clarice: “Só

estou pedindo para dar uma olhada nisso, doutor. Mesmo que preencha ou não.”

(grifo nosso)

Em sua fala, Hannibal critica o sistema que tenta estudá-lo utilizando-se de

pessoas ainda em treinamento. Dessa maneira, coloca em dúvida a competência de

Clarice. Na continuidade, ele inicia a apresentação da personagem Buffalo Bill,

chama-o de “garoto mau”, atribuindo aos crimes um tom de traquinagem, de

brincadeira de criança. Após falar de sua impressão sobre o assassino, Hannibal

pergunta sobre o apelido que foi atribuído aquele, pois os jornais omitem essa

informação. Dessa maneira, o prisioneiro critica a maneira como são veiculadas as

notícias pela imprensa.

Clarice explica que o apelido foi dado pelos policiais que encontraram o corpo

da primeira mulher e que eles levaram em conta o costume do assassino de tirar a

pele de suas vítimas. A estudante acrescenta que os assassinos contumazes ficam

com uma espécie de troféu das vítimas, com exceção de Hannibal que os comia.

Nesse momento, os olhos de Hannibal desviam-se dos olhos dela e focalizam

o chão. A fala de Clarice parece ter relembrado o prisioneiro de que ele também é

um assassino, isto é, ela toca em um aspecto da personalidade dele que até então

não havia sido considerada.

Percebendo-se “inteiramente calculado e mensurado”, Hannibal muda o tom

de sua fala e quebra o clima de cordialidade mantido até o momento. Em tom grave,

o pedido para que ela lhe passe os documentos soa como uma ordem. A cena é de

grande expressividade, pois ambos “lutam obstinadamente contra” as “definições

que os outros fazem de sua personalidade” (BAKHTIN, 2008, p. 67).

Ela se levanta, o tempo todo olha para ele, coloca os documentos na caixa

que se localiza ao lado esquerdo da cela. A moça é acompanhada pela câmera que

está posicionada por trás de Lecter. Após ter depositado os documentos, Clarice

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retorna para a sua cadeira. Sua fisionomia demonstra que a estudante está satisfeita

com a sua conquista até aqui: “ao menos ele vai olhar o que ela trouxe”.

Há silêncio. Até que, o prisioneiro inicia a leitura dos papéis, ainda em pé,

porém posicionado de lado apoiando o braço direito no vidro. Olha para ela e pisca,

molha os dedos com sua saliva. A câmera mostra rapidamente o formulário em

primeiro plano, o elemento de cena mais importante neste momento, é por causa

dele que Clarice está lá.

Após passar os olhos pelo documento, a câmera retorna para Hannibal que

agora está mais próximo da câmera, pois é focalizado dos ombros para baixo. O

prisioneiro faz um trocadilho irônico deixando a jovem desconcertada. Em seu longo

monólogo, percebe-se a instauração do confronto de interesses sociais: Hannibal, o

prisioneiro, fala para Clarice, a policial, que ali representa o sistema, ou em outros

termos, se dirige a Crawford ou ao Dr. Chilton: “Ah! Agente Starling, você acha que

pode me dissecar com este instrumento pobre?”, (grifo nosso).

Quando responde à provocação, sua voz sai trêmula. Sua posição de

inferioridade é mostrada pela câmera que a focaliza em ângulo contra-plongèe:

“Não. Eu achei que, com o seu conhecimento...” (grifo nosso).

Clarice tenta destacar a única qualidade do outro que interessa ao sistema,

ou seja, o saber. Porém Lecter não a deixa concluir. Durante a cena, a câmera

desloca-se de maneira a mostrar ora o falante e ora o seu interlocutor: Tal opção

imprime o tom dramático da cena, na qual o retrato de Clarice irá se completar com

a apresentação de seu passado e de seu projeto de vida. Hannibal, agora em plano

distante, diz pausadamente e enfaticamente: “Você é muito ambiciosa, não é? Sabe

o que você parece com essa bolsa cara e esses sapatos baratos. Parece uma jeca

[...]”

A câmera mostra como Clarice reage às palavras de Hannibal. Rapidamente

retorna para ele, um travelling para frente para aproximando a objetiva do prisioneiro

que continua falando: “Ter se alimentado bem lhe deu ossos fortes, mas [...] Com

esse sotaque que tenta desesperadamente esconder do oeste da Virgínia. O que é

que seu pai faz? Ele é um mineiro de carvão? Faz sermões demorados?”.

Aos poucos, o rosto de Clarice vai sendo aproximado da câmera e o ângulo

ficando cada vez mais inclinado, isto é, simulando o recolhimento da moça, que está

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sendo atacada pelas palavras do outro: “Eu sei que os rapazes descobriram você

bem cedo, nos ditosos e desastrados agarramentos nos bancos dos carros.”

Durante sua fala, Lecter é mostrado em primeiríssimo plano, com seus olhos

azuis muito abertos, e articula pausadamente cada palavra que profere: “Enquanto

você só pensava em cair fora e ir para algum lugar em ir para o FBI.”

Hannibal ataca os valores de Clarice e sua opção de vida. Nesse momento da

narrativa, o ângulo contra-plongée deixa evidente a inferioridade da estudante em

relação ao outro. Segundo BAKHTIN (2008, p. 67), “na boca do outro, [...] à revelia”

sua verdade transforma-se em “mentira que a humilha e mortifica [...]” (grifos do

autor). Para responder ao discurso do outro, ela precisa erguer a cabeça. Nesse

contexto, esse movimento “de levantar a cabeça” possui um caráter de recuperação

e de refração da personagem. “O senhor vê muito doutor! Mas é forte o bastante

para apontar esta alta percepção pro senhor mesmo? O que me diz do senhor? Por

que não olha o senhor mesmo e escreve o que vê? Talvez esteja com medo13?”

O foco retorna para Hannibal. Com seus olhos fixos em Clarice, ele caminha

em direção à caixa de documentos e a fecha com violência. Pode-se ouvir um som

agudo. Do lado de fora cela, a estudante dá um pulo na cadeira, ou seja, a câmera

mostra ao espectador que a estudante não se sente mais tão à vontade. O discurso

provocativo de Hannibal desnuda-a.

Um corte da câmera possibilita que o foco volte para Hannibal. Seu rosto está

colado ao vidro em primeiríssimo plano, tem seu olhar fixo em Clarice e também no

espectador. Em tom ameaçador diz: “Um recenseador uma vez tentou me testar. Eu

comi o fígado dele com um prato de feijão e um belo vinho.”

13

O tema do medo é retomado com mais ênfase em Dragão Vermelho.

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Ilustração 5 – Lecter está colada ao vidro olhando para Clarice

Nesse momento, notamos que Clarice toca em um assunto do qual Lecter

não quer falar. Por isso, tenta assustá-la com ruídos e palavras grosseiras.

Momentaneamente, a câmera mostra a reação de Clarice ao comportamento rude

do outro. Em seguida, a câmera focaliza Hannibal, de corpo inteiro, virando-se de

costas e afastando da câmera, enquanto diz a Clarice para voltar à escola.

A câmera sai da cela e se volta para o corredor. Vemos Clarice em silêncio

tentando levantar-se da cadeira, ela ainda sente o peso das palavras de Hannibal.

Retira-se lentamente, cambaleante. Ao passar pela cela de Miggs este lhe atira seu

sêmen sobre ela. Tal ocorrido desencadeia uma desordem, pois além dos gritos dos

outros prisioneiros, a música instrumental, antes imperceptível, agora é grave e

corrobora com a dramaticidade do momento vivido por Clarice.

Destacamos que a introdução do sêmen nessa passagem tem significação

simbólica. Em CHEVALIER E GHEERBRANT (2009, p. 813), encontramos que “o

sêmen simboliza a força da vida, e a vida humana só pode descender daquilo que

caracteriza o homem: o seu cérebro [...]”. Portanto, ao final desse primeiro encontro

com Hannibal, Starling e o espectador são convidados a fazer uso de seu cérebro

com mais eficiência de maneira a serem capazes de descobrir a identidade de

Buffalo Bill.

Hannibal também grita e pede a ela que retorne a cela dele. Ela corre para lá,

os dois estão muito próximos, somente o vidro os separa. Ele, neste momento, se

mostra gentil, discordando do comportamento do outro.

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Dessa maneira, Clarice e o espectador ficam confusos com a mudança

brusca de comportamento do prisioneiro, que anteriormente usara em sua fala um

tom grosseiro e descortês. Tal tom, que define a posição ideológica de Lecter,

provoca o desconforto da estudante que ainda tenta cumprir sua missão.

Enquanto eles conversam, a câmera vai se aproximando das personagens

com um travelling para frente. O recurso sugere que, além da aproximação física,

que é visível, houve uma aproximação emocional. O tom autoritário usado pelo

homem é apressado. As sensações que são transmitidas pelas imagens são difíceis

de serem transcritas: a cena toda causa uma grande angústia no espectador e na

protagonista criando uma grande expectativa em ambos:

Lecter: Não, mas vou fazê-la feliz. Eu vou lhe dar uma chance no que mais

você gosta! (grifo nosso)

Clarice: E o que é doutor?

Lecter: Avanço, é claro! Ouça com atenção. Procure fundo em você mesma,

Clarice Starling. [...] VÁ LOGO! (grifo nosso)

O uso da negativa por parte de Hannibal antecipa a diegese e enfatiza que

nunca saberemos grandes detalhes da vida dele. Embora o prisioneiro tenha se

negado a preencher os formulários para Clarice, ele fornece a ela algumas

informações que desencadearão outro encontro entre os dois. A partir dele, o

espectador verá que ela se esquece de que os dois estão em lados opostos, sob o

ponto de vista da sociedade. Eles trabalhão em consonância para cumprir o desafio

de encontrar Buffalo Bill. O que veremos sobre Hannibal é que ele julga, condena e

aplica a pena pessoalmente.

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Ilustração 6 - Clarice quebra as regras de segurança e se aproxima de Lecter que lhe

promete ajuda

Um travelling para trás da câmera abre o lugar em plano geral. Depois, a

imagem se fixa e acompanha a corrida da personagem para o final do corredor em

direção à porta que a separa da sala onde estará segura. Com um estrondo, a

câmera corta a cena e o espectador observa Clarice abrindo a porta que a leva para

o lado de fora do prédio, a elipse do percurso de volta encurtou o tempo de sua

saída. Tal técnica nos permite pensar que ela subiu tudo de maneira muito

apressada, uma vez que precisava sair daquele local o mais rapidamente possível.

Fora do edifício, o dia está muito claro. Clarice nem percebe as pessoas que

estão chegando. Ela é mostrada em ângulo lateral e está chorando. Porém, o

espectador percebe que a estudante está tentando se recompor, pois respira fundo

e se volta para frente.

Com um corte, a câmera mostra Clarice em ponto de vista objetivo, ela se

arrasta até o carro, seus ombros estão caídos14. Nesse momento, a ordem dos

acontecimentos no plano da diegese é interrompida. Uma anacronia revela ao

espectador uma parte do passado de Clarice. Segundo AGUIAR E SILVA (2007),

anacronias são os desencontros entre a ordem dos acontecimentos no plano da

diegese e a ordem em que aparecem narrados no discurso.

14

Na sequência da diegese, a protagonista vive outra situação similar. Assim como aqui, o espectador percebe

pelo corpo da protagonista o que lhe passa pela cabeça, ou seja, ela sente o peso da situação e não consegue

reagir, neste momento, às dificuldades que lhe são impostas.

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Nesta cena, o flashback ou a analepse, isto é, o recuo no tempo que não

apresenta rupturas nem sobreposições cronológicas que possam perturbar o

entendimento do espectador, é utilizado para esclarecer o público sobre os

antecedentes da personagem Clarice. A cena mostra que a pequena Clarice corria

para os braços de seu pai, quando ele chegava do trabalho cansado e frustrado por

ter deixado escapar os bandidos. Acreditamos que a introdução desta cena tenha

por objetivo mostrar que a personagem gostaria de ter o pai junto dela. Dessa

maneira, poderia compartilhar com ele seu primeiro dia de trabalho em que sente

que o bandido escapou.

Ilustração 7 - Clarice após seu encontro com Hannibal Lecter

O retorno ao presente é feito com o uso da transição em fade-out. A câmera

movimenta-se para trás e a tela fica toda branca.

O fade-out representa uma sensível interrupção da narrativa e é

acompanhada de um corte na trilha sonora: após tal transição, convém

redefinir as coordenadas temporais e espaciais da sequência que se inicia.

É a mais marcante de todas as transições e corresponde a uma mudança

de capítulo (MARTIN, 2003, p. 87, grifo nosso).

Destacamos que o uso de técnica tão marcante intensifica o tom dramático da

cena, ou seja, busca traduzir os sentimentos de desconforto e humilhação que já

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estavam sendo expressos pela postura corporal da protagonista e também por suas

lágrimas.

Sobre Hannibal o que é mostrado pelo narrador é que sua monstruosidade se

relaciona com sua grande capacidade de falar e, principalmente, de convencer. As

frequentes tomadas de seu rosto em primeiríssimo plano e a escolha do nome da

personagem corroboram com essa nossa hipótese.

Em seguida, o narrador mostra onde Clarice foi buscar forças para se

recompor do impacto sofrido no primeiro encontro com Hannibal Lecter.

1.3 Clarice Starling retorna para a academia

A sequência de número quatro, a qual consideramos de caráter ideológico, e

a sequência cinco, de caráter descritivo, nos mostram que a estudante busca

aprimorar-se, dessa maneira demonstra sua crença na técnica e sua confiança no

sistema que lhe ensina. Após o fade-out, a próxima cena a focaliza durante um

treinamento de tiros. Enfatizamos que seu rosto está em primeiríssimo plano, porém

ela está por trás de óculos e a arma que empunha fica entre ela e o espectador.

Ilustração 8 - Clarice volta para a academia em busca de aprimoramento

A observação da técnica, ou seja, a opção do diretor em colocar a arma entre

o espectador e a protagonista nos conduz a aceitar a ênfase no objeto- símbolo da

superação e da crença no sistema. Além disso, dá-lhe a segurança necessária para

esquecer-se da garotinha chorona e amedrontada do passado.

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Além do aprimoramento físico, o narrador a mostra enquanto ela busca por

mais informações sobre o prisioneiro a quem recentemente fora apresentada. A

câmera a mostra em ponto de vista objetivo muito concentrada pesquisando em

documentos microfilmados. Com a mudança de ponto de vista para o subjetivo, as

imagens de Lecter sendo julgado e preso são compartilhadas com o espectador.

Afinal todos estão juntos na empreitada iniciada pela personagem de conhecer

melhor Hannibal Lecter.

Enquanto trabalha, Clarice recebe um telefonema de Crawford, chamado de

“guru” pela amiga de Starling, Adélia Mapp15. A cena da conversa pelo telefone é

focalizada em primeiríssimo plano e alternância quadro a quadro. Seu conteúdo está

relacionado com a morte do prisioneiro que ficava ao lado da cela de Hannibal.

Segundo Crawford, Miggs teria se suicidado por influência de Lecter.

A câmera desvia-se de Crawford e mostra um leve sorriso na fisionomia de

Clarice enquanto ela diz que não sabe o que pensar. Crawford lhe responde que ela

não deve pensar nada, pois ele não faz ideia do que houve entre Starling e o

prisioneiro morto. Porém o espectador se lembra de que o mesmo havia sido

indelicado com ela. Sendo assim, Clarice e o espectador sabem que Lecter não

induziu o outro ao suicídio “somente para se divertir”. Ele também queria que Miggs

pagasse por ter tratado Clarice de maneira grosseira e desrespeitosa.

Passado o susto pelo anúncio, Starling revela ao superior as informações que

Lecter lhe passara. As mesmas a levam a um depósito. A cena que mostra Clarice

chegando ao depósito é noturna. O espectador pensa: “Por que ela não deixa para o

outro dia?”. O dono do depósito sugere isso a ela. Entretanto ela insiste, a porta, que

deve subir para abrir, está emperrada, não há quem a ajude. Porém, o narrador

mostra em detalhes a maneira como ela encontra saídas rápidas para suas

dificuldades.

Quase não interessa o que há dentro do lugar. Entretanto, duas coisas

chamam a atenção do espectador. A primeira se relaciona com o corte na perna de

Clarice. O mesmo foi feito quanto ela tenta escorregar pela pequena fresta aberta

com o macaco do carro. A segunda é uma cabeça humana que está dentro de um

15

O nome da personagem está ligado a sua habilidade em ler mapas, conforme o que será visto durante o

andamento da diegese.

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vidro, guardado dentro de um automóvel estacionado dentro do depósito. O “troféu”

como Clarice a chama pertence a um antigo cliente de Hannibal, conforme

saberemos a seguir. O achado a leva de volta ao Hospital de Baltimore. Dessa

maneira, quase ser querer, Clarice passa a dedicar-se à caçada de Buffalo Bill.

Ao analisarmos a cena acima e a seguinte diríamos que as mesmas são

descritivas, isto é, a câmera busca mostrar o grau de determinação e compromisso

da personagem: ela faz tudo sozinha, não se incomoda com a própria integridade

física, enfim, parece nada temer.

A mudança para a outra cena é feita com um corte da câmera. A mesma

focaliza em plano geral Clarice chegando ao Hospital de Baltimore, Barney a

recepciona. Chove muito. Por inferência, o espectador sabe que após sua saída do

depósito ela se dirige para o hospital.

1.4 Clarice Starling e Hannibal Lecter – o segundo encontro

Nessa sequência, o trajeto, ou seja, a descida para a cela de Lecter, não é

mostrada pela câmera. O uso da elipse encurta o caminho, dessa maneira após

mostrar a chegada de Clarice ao hospital, a câmera corta e mostra em ângulo

contra-plongée o teto da sala onde se encontra Hannibal. Destacamos que o recurso

narrativo acelera a narração e sugere que a descida, neste momento da história, não

possui o caráter dramático que teve inicialmente.

Um travelling lento para baixo em plano geral focaliza Clarice sentada no

chão, ao lado da cela de Lecter. Já percebemos que a estudante está envolvida pelo

prisioneiro, ela não observa o distanciamento conforme orientação anterior do diretor

do local.

Quando a câmera se aproxima com um corte e o fechamento do plano geral

para o primeiro plano, Clarice é focalizada de cima para baixo e o ponto de vista é

objetivo. Dessa maneira, o espectador compartilha da visão de Lecter. Antes do

diálogo se iniciar, um barulho forte e agudo é ouvido. A câmera se vira e mostra a

gaveta-depósito abrir-se. Dentro dela há uma toalha branca e Clarice a usa para

secar sua cabeça.

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Achamos importante lembrar que na sequência anterior o mesmo ruído, isto

é, da gaveta se abrindo ou se fechando, foi utilizado em outro contexto. Colocado

aqui, em associação com a cor branca da toalha, o narrador parece estar sugerindo

um clima de paz, de trégua. Veremos que é justamente isso que acontece.

A imagem de Clarice com a toalha branca na cabeça em enquadramento

frontal é mostrada muito rapidamente, ou seja, numa fração de segundos. Apesar

disso, o espectador não deixa de notar que ela ficou muito parecida com uma santa,

ou seja, um ícone da igreja. Destacamos, também, que a estudante desrespeita

outra regra de segurança: “não aceitar nada do prisioneiro”.

O subsolo, ou seja, o espaço do encontro deixa de ter conotação negativa.

Isso se comprova pela técnica utilizada na narração da longa sequência seis. Nela

podemos observar dois momentos distintos. No primeiro, que acontece com pouca

luminosidade, as personagens são focalizadas em primeiro plano e sob focos de

luzes. O restante do espaço não é mostrado. Já, o outro transcorre com a iluminação

e visão da cela toda.

Analisemos a primeira parte. Clarice não vê seu interlocutor, mas é vista por

ele. Quanto ao espectador, este pode ver ambos: Clarice e Hannibal. Dessa

maneira, acompanha a emoção de cada um.

Clarice está lá para procurar a ajuda de Lecter. Ela lhe faz muitas perguntas e

percebe-se que está eufórica, que o interesse dela pelo caso aumenta. O clima

gerado pela penumbra, onde Hannibal usando o método da anácrise provoca “as

palavras do interlocutor, levando-o a externar sua opinião e externá-la inteiramente”

(BAKHTIN, 2008, p. 126). O espaço para esse encontro em nada se parece com o

anterior, pois há um clima mais intimista. Hannibal está no fundo da cela escura, há

foco de luz somente em suas mãos, que em alguns momentos são o ponto central

da cena. Enfatizamos que simbolicamente, conforme pode ler em CHEVALIER E

GHEERBRANT (op. cit., p. 589) “a mão exprime as ideias de atividade, ao mesmo

tempo em que as de poder e de dominação”. É exatamente o que podemos

observar, ou seja, o domínio e o poder de Hannibal sobre Starling.

Destacamos, também, um diálogo intencional desta cena com o discurso

religioso, pois além dos dois elementos citados, a aparência de ícone e o

confissionário, Dr. Chilton deixa do lado de fora da cela uma televisão ligada em um

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programa de caráter religioso. Conforme esclarecimento de Hannibal, o diretor busca

torturá-lo, obrigando-o a assistir ao programa durante um longo período de tempo.

No que toca ao diálogo, enfatizamos as insinuações de Lecter sobre um

possível envolvimento pessoal entre Clarice e Crawford. Além disso, o prisioneiro

sugere que a cabeça pertence à primeira vítima de Buffalo Bill e de que este último

está buscando uma transformação.

A segunda parte da cena se inicia com um barulho surdo das luzes sendo

acesas. Tal ruído parece despertá-los do torpor em que ambos se encontram. A

claridade permite a Starling observar, que com exceção da cama, todos os outros

objetos foram retirados da cela de Hannibal. O prisioneiro esclarece que tudo foi

removido como punição pela morte de Miggs.

No diálogo, Hannibal, que se oferece para ajudar Clarice na procura de

Buffalo Bill, revela que se encontra preso há oito anos e que deseja sair dali e ficar

longe do Dr. Chilton. Pensamos que a estudante, naquele momento, representa a

ligação dele com o exterior. Com esse fim, ele fornece a ela algumas pistas que

podem ajudá-la em seu primeiro caso e a coloca em uma situação de limiar dizendo:

“não há tempo a perder”, pois Buffalo Bill está procurando por uma nova vítima “ele

está procurando uma garota especial”.

1.5 Buffalo Bill ou James Gumb

Conforme previsão de Lecter, a sequência sete mostra o rapto da próxima

vítima. Dela participam três personagens: um homem, uma moça e um gato. A

tomada é noturna e tem início em uma rodovia na cidade de Memphis, Tenesse.

Em plano geral e ponto de vista subjetivo a câmera se movimenta para frente

no que parece ser uma rodovia. Em determinado momento, o ponto de vista passa a

ser objetivo, e em enquadramento frontal contra-plongée, vemos a moça que canta e

dirige o automóvel com muita descontração. A garota se parece com Clarice no

início da película: sorridente, jovial, despreocupada e sempre olhando para o que

está à sua frente.

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A câmera se distancia dela e corta. Não há mais nenhum som que lembre o

veículo. Então, em primeiríssimo plano, a câmera mostra os olhos de um homem

atrás de uma máscara verde que lhe permite enxergar no escuro. Dessa maneira, a

personagem, com sua capacidade de visão ampliada, está em vantagem em relação

a qualquer outra pessoa.

Acreditamos que a escolha feita pela câmera, ou seja, mostrar primeiro os

olhos da personagem Buffalo Bill se relaciona com a personalidade da personagem,

pois, segundo Lecter, o assassino é motivado por sua cobiça, que decorre daquilo

que ele capta através de sua visão.

A moça chega a seu destino e olha para o gato que a espera junto à janela de

um apartamento no primeiro andar. Antes de entrar, decide ajudar um rapaz que

tenta colocar um sofá dentro de um furgão. A ação é rápida: ela entra no furgão, ele

pergunta-lhe o manequim; ela é agredida e ele a coloca de bruços.

A partir daqui, o narrador mostra tudo em primeiro plano e ponto de vista da

personagem masculina; a blusa dela é cortada com uma tesoura; a pele das costas

fica exposta e a câmera focaliza as mãos do rapaz que a acariciam suavemente. Ele

possui uma tatuagem entre o polegar e o indicador que diz: “Love”, “amor”. A palavra

gravada em sua mão é vazia de sentido, pois ele acaba de praticar um ato contra a

integridade física de outra pessoa.

Na janela, o gato, única testemunha do crime, pode passar despercebido,

entretanto, pelo fato dele voltar à cena, na sequência vinte e cinco, mostrando o

caminho para que Starling possa localizar Buffalo Bill, acreditamos que podemos

atribuir ao animal um valor simbólico, assim como, são simbólicos outros elementos

que aparecem na narrativa.

O animal, segundo CHEVALIER E GHEERBRANT (2009, p. 461 – 463), pode

significar coisas boas ou ruins. Isso se explica “pela atitude a um só tempo terna e

dissimulada do animal”. Dentro do nosso contexto, destacamos o valor que é

atribuído ao gato pelos budistas e pelos índios pawnees, pois as duas culturas

possuem pensamentos similares.

No mundo búdico, censura-se o gato por ter sido um dos dois únicos animais

(além da serpente) que não se comoveram com a morte do Buda. Acredita-se que

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por isso, “o animal seja dotado de sabedoria superior” (grifo nosso). Já entre os

índios pawnees da América do Norte, “o gato é um símbolo de sagacidade, de

reflexão, de engenhosidade; ele é observador, malicioso e ponderado; alcançando

sempre seus fins”. Além disso, os povos acreditam que o animal tenha o dom da

clarividência (grifo nosso), por isso confeccionam sacolas de remédios com pele de

gatos selvagens. Tais habilidades se confundem com o perfil de Clarice e de Lecter,

é o conjunto delas e a dupla trabalhando em consonância que solucionam o caso.

Buffalo Bill, de quem sabemos ainda muito pouco, foi apresentada pela

câmera de forma muito rápida. Nesse momento, a técnica é justifica pela ação que

foi descrita. Entretanto, esse padrão de narração rápida, como flashs, é mantido em

toda a narrativa.

Buffalo Bill aparece em outras seis seqüências (números doze, quinze, vinte e

quatro, vinte e seis, vinte e sete e vinte e oito) e tem sua personalidade marcada

pela forma como a câmera o mostra. O narrador maneja conscientemente a técnica

de focalizar as partes pelo todo: os olhos, as mãos, a tatuagem que contradiz

totalmente suas ações, o amor que dedica a um animal e que não tem por uma

pessoa. Além disso, é um sujeito do qual se ouve pouco a voz. O que se sabe dele,

além do que a câmera mostra, é dito pelo outro, ou seja, por Hannibal Lecter. Dessa

maneira, o espectador depara-se com um sujeito fragmentado, solitário, sem voz e

que segundo Lecter “não nasceu um monstro”.

São as informações de Hannibal e a ajuda de Adélia Mapp que levam Clarice

ao assassino.

1.6 O final aberto de O Silêncio dos Inocentes

A sequência final do filme O Silêncio do Inocentes sugere que Dr. Hannibal

Lecter, após ter acertado suas contas com seu algoz Dr. Chilton16, recomeça sua

vida nas ruas do Haiti. A nova identidade fica evidenciada pelos cabelos loiros, pelo

terno branco acompanhado de chapéu panamá, bastante apropriados para o clima

16

O acerto de contas foi sugerido pelo enunciado que pronunciado por Hannibal tornar-se ambíguo. A câmera o

mostra enquanto observa Chilton chegando de avião ao mesmo local onde ele está. A frase de Hannibal foi a

seguinte “Estou esperando um amigo para o jantar”.

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tropical. Marcel Martin (2003, p. 62) enfatiza que “às vezes o vestuário desempenha

um papel diretamente simbólico na ação”. Nesse sentido, do simbólico, destacamos

o desleixo e o gingado no andar do novo Lecter, pois essa nova postura contrapõe-

se a anterior ereta e austera. Lecter está mudado?

Quanto ao destino da protagonista, a princípio a diegese sugere que ela

chega à consecução de seu projeto de trabalhar no Departamento de Ciência do

Comportamento: ela e seus companheiros estão na festa de formatura. Porém, a

última cena em que ela aparece parece querer dizer o contrário: o eco provocado

pela repetição contínua do nome de Lecter substituirá os gritos dos cordeiros nos

sonhos da Agente Especial Clarice Starling. Corrobora com isso o fato dela não

colocar o telefone no gancho encerrando a ligação.

Ilustração 9 - Clarice durante sua formatura recebe uma ligação de Hannibal Lecter.

Conforme se observa na ilustração, a câmera em primeiro plano e ângulo

contra-plongée sugere o desconforto e o achatamento da protagonista, que até a

pouco estava desfrutando de sua conquista: rindo, tirando fotos, conversando.

Do outro lado, o artefato se desvia de Hannibal para mostrar o momento

exato em que ele põe um fim à ligação colocando o telefone no gancho. Em seguida,

sai caminhando para a cena final.

Ela é feita em um longo plano geral, o dia é claro e o local está repleto de

pessoas. O travelling para trás e para o alto cria um efeito de janela que se abre

para o mundo. Dessa maneira, parece que o desejo de Lecter de “ter uma vista e

uma janela por onde eu possa ver uma árvore ou mesmo a água” foi satisfeito.

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Ilustração 10 - Tomada em plano geral final, Lecter está caminhando para frente com o terno claro

e chapéu

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Capítulo 2 - A Construção da Personagem em Hannibal

Neste capítulo, buscamos apresentar e analisar as personagens do filme

Hannibal. A película traz de volta Hannibal Lecter, a Agente Especial do FBI Clarice

Starling, interpretada por Julianne Moore; o enfermeiro do hospital de Baltimore,

Barney Matthews. Além deles, o oficial do Departamento de Justiça Paul Krendler,

interpretado por Ray Liotta. Dentre as novas personagens estão Mason Verger,

vivido por Gary Holman, e o Inspetor Chefe da cidade de Florença Rinaldo Pazzi,

interpretado pelo ator Giancarlo Gianini.

Em Hannibal, a história é contada a partir de Florença e dos Estados Unidos.

Dessa maneira, para que não haja interrupção na diegese, os recursos de que

dispõe o diretor são a montagem alternada (baseada na simultaneidade temporal de

duas ações) e os planos panorâmicos para que haja a apresentação dos espaços

onde acontece a trama. Por isso, a leitura das cinqüenta e quatro seqüências que

compõem o filme exige um espectador sempre atento à tela.

Na abertura do filme, o procedimento técnico utilizado é a transição. Em

MARTIN, pode-se encontrar uma justificava para a escolha do diretor:

Na ausência (eventualmente) de continuidade lógica, temporal e espacial,

ou pelo menos para maior clareza, o cinema é obrigado a recorrer a

ligações ou transições plásticas e psicológicas, tanto visuais quanto

sonoras, destinadas a constituir as articulações do enredo (2003, p. 86).

No nosso contexto, a transição funciona como uma analepse ajudando o

espectador a rememorar fatos já narrados em O Silêncio dos Inocentes e, então,

poder juntar as duas histórias que se completam.

2.1 Mason Verger e seu informante

A transição, a qual objetiva assegurar a fluidez da narrativa e evitar a quebra

da diegese, é feita com o auxílio da trilha sonora e de vozes masculinas em off, isto

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é, o som é ouvido antes do aparecimento da imagem correspondente. Antes das

vozes ganharem rosto, o espectador já se lembrou de Hannibal Lecter. Com o

aumento da íris que surge no canto superior direito, podemos ligar as vozes a seus

respectivos donos.

Enquanto o diálogo continua, a tela escura vai dando lugar às formas e às

cores. Para o correto enquadramento das personagens, a câmera se movimenta

para a esquerda procurando o melhor posicionamento. Ao final desse processo, a

cena de abertura de completa e podemos ver e ouvir os três homens que participam

dela.

A câmera fixa mostra o trio em plano geral, o que faz com que o espectador

se detenha na contemplação do espaço: um grande salão com móveis refinados,

estátuas com muita luz a qual entra por grandes janelas. Mesmo sendo amplo e de

bom gosto, estamos observando um lugar fechado, ou seja, limitado pelas paredes,

voltado para o interior.

Acreditamos que a insistência da câmera em descrever o lugar se relacione

mais com o construto das personagens e menos com a constituição de um espaço

cenográfico.

A descrição origina sem dúvida uma pausa ou uma paragem na progressão

textual da ação diegética, [...] Quer no retrato, quer na figuração do espaço

geográfico-telúrico e do espaço social, a descrição mantém uma interação

contínua com os eventos diegéticos. [...] não só veicula indícios e

informações sobre as personagens, contribuindo para tornar verossímil,

para enraizar no real a diegese, ou, ao contrário, para a inscrever num

universo fantástico, mas também gera significados simbólicos ou alegóricos

que são indispensáveis para compreender as personagens e as suas ações

(AGUIAR E SILVA, 2007, pp. 741-742, grifo nosso).

As considerações acima são úteis para refletirmos sobre o objetivo real da

câmera nesse trecho do filme e passarmos a considerar que a riqueza do lugar e

consequentemente das personagens que vivem nesse espaço terão relevância no

decorrer da narrativa, ou seja, “não só veicula indícios e informações sobre as

personagens, mas também gera significados simbólicos ou alegóricos” necessários

para a compreensão do todo da obra.

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Sobre a personagem, devemos retomar que na concepção de BAKHTIN

não são os traços da realidade –da própria personagem e de sua ambiência

– que constituem aqueles elementos dos quais se forma a imagem da

personagem, mas o valor de tais traços para ela mesma, para a sua

autoconsciência (2008, p. 53, grifo nosso).

Vejamos, portanto, no decorrer da diegese o que representa a riqueza até

aqui apresentada para a personagem. Com esse intuito retomamos a análise do

encontro de Barney com outros dois homens, sendo que um deles se encontra em

uma cadeira de rodas.

Barney era o enfermeiro que trabalhava no hospital onde Lecter estava

internado, era uma das pessoas que acompanhava Clarice em suas visitas ao

hospital. Geralmente, Barney era mostrado pela câmera ao lado de Lecter e

pareciam manter um bom relacionamento. Dez anos depois da fuga de Lecter, que

razões levariam o enfermeiro àquele lugar tão diferente do hospital?

Percebe-se certa nostalgia na voz de Barney, acreditamos que isso tenha a

ver com a boa relação que ele mantinha com o prisioneiro:

Barney: Quando as coisas se acalmavam o Dr. Lecter e eu falávamos dos

meus cursos de ciência.

Verger: Informações sobre curso de psicologia, enfermeiro Barney?

Barney: Não, senhor. Não considero psicologia uma ciência. Nem o Dr.

Lecter.

O interlocutor de Barney ri. Talvez tenha achado irônica a revelação feita por

Barney e continua com seus questionamentos: “Quando você trabalhava no hospital

observava Clarice Starling e Hannibal Lecter interagindo?”. O grifo é da personagem

que quase soletra o último vocábulo. Barney reage devolvendo o questionamento:

“Interagindo?”. Dessa maneira, parece não concordar com a insinuação de Verger,

ou seja, com a forma com que este está conduzindo a conversa.

Nesse momento, Verger percebe que seu interlocutor está atento e se sente

obrigado a reformular seu questionamento, fugindo da ambigüidade: “Conversando

um com o outro?”.

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Dessa vez, Barney aceita a pergunta e inicia sua resposta: “Sim. Parecia-me

que eles...”, porém, nota-se que as palavras de Barney se misturam com as palavras

de Lecter. Por conta disso, Cordell o repreende em tom áspero: “Sei que quer

merecer o pagamento desta consultoria, mas comecemos pelo que via e não pelo

que achava que via” (grifo nosso). A fala de Cordel, ao mencionar que há dinheiro

envolvido, notifica o espectador que Barney trabalha para Verger, quer dizer, está ali

como informante. Agindo dessa forma, o enfermeiro quebra o código de ética de sua

profissão, ou seja, não revelar nada pessoal de seus pacientes para estranhos.

Nota-se que não há tempo para a reação de Barney, pois Verger interfere em

seguida e tenta se mostrar compreensivo e muito interessado na opinião do

enfermeiro que conviveu com Lecter durante sua estada no hospício de Baltimore:

”Cordell, não fale assim. O Barney pode dar a opinião dele. Barney dê sua opinião

sobre o que via. O que havia entre eles?”. Acreditamos que Verger não deseja inibir

a fala do outro, pois precisa de suas informações.

O espectador ainda não viu o rosto de Verger, porém, pelo som de sua fala,

percebe-se que ele articula as palavras com dificuldade. Também aparenta ter

problemas com a respiração, pois esta é muito ruidosa.

Após ter sido autorizado por Verger, Barney retoma sua fala que dialoga com

o filme O Silêncio dos Inocentes trazendo de volta fatos passados sob sua ótica:

Barney: Na maioria das vezes, o Dr. Lecter não respondia aos visitantes.

Abria os olhos o tempo suficiente para insultar algum aluno que ia vê-lo. Ele

respondia às perguntas de Starling. Ela o interessava. Ela o intrigava. Ele a

achava encantadora e divertida. (grifo nosso)

As revelações de Barney desencadeiam uma reação inesperada de Verger. A

relevância do momento para este último é destacada pela câmera ao mudar o plano

do enquadramento. O plano geral distante, sugerindo o distanciamento entre elas e

a falta de relevância das informações prestadas até aqui, dá lugar repentinamente

para o primeiro plano.

A apresentação do rosto de Verger é um dos momentos mais impactantes do

filme. O que era inquietante vira espanto e horror. O espectador mapeia cada

detalhe do rosto de Verger que continua com seus questionamentos: “Então Clarice

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Starling e Hannibal Lecter tornaram-se amigos?”. A isso Barney responde com certa

relutância: “Dentro de uma certa estrutura formal ... sim”. Verger insiste, parece que

esse é o segredo que ele quer ver revelado: “E ele gostava dela?”. Barney, responde

com um “sim” hesitante.

Após a confirmação, a câmera sugere o fim do diálogo com um travelling para

trás. Dessa maneira, o plano geral distante mostra que Verger está satisfeito e isso

se confirma em sua fala: “Obrigado pela franqueza. E continue trazendo suas

valiosas descobertas sobre o Lecter. Gostei imensamente”.

Sobre o rosto de Verger, ficam os questionamentos do espectador: O que

teria acontecido com aquela pessoa? Qual é o tamanho de sua dor? Nasceu assim

ou teria se acidentado? Não é possível determinar sua idade, ou seja, sua face é

como uma máscara, vazia de expressão. As respostas a tais questionamentos virão

mais à frente da diegese, quando em um encontro com Clarice, Verger conta o que

acontece a ele.

Ilustração 11 – Mason Verger na sequência de abertura do filme

Verger está eufórico e pede um biscoito para seu médico. Nesse momento, a

câmera coloca-se em ângulo contra-plongée, ou seja, na altura da cadeira de rodas:

“Acho que isso o mataria, senhor!” – responde o médico (grifo nosso). Dessa

maneira, pela fala de Cordell, fica exposta a fragilidade física de Verger e o grau de

dependência dele em relação ao outro.

Ao mesmo tempo, a câmera deixa no quadro as mãos de Barney. Elas

seguram uma caixa de presente a qual está sendo aberta por ele. Verger mostra-se

entusiasmado e sua respiração quase para ao ver o que Barney trouxe para ele. O

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“tesouro”, que é como Verger chama o conteúdo da caixa, é negociado por

“US$250,000”.

Ilustração 12 - Máscara que foi usada por Hannibal Lecter quando transferido para o Tennesse

O que vem dentro da caixa só é mostrado após a finalização da negociação.

Dessa maneira, as personagens saem de cena e vemos em primeiro plano frontal a

máscara usada por Hannibal quando este foi transferido de Baltimore para Memphis

– Tennesse (trama do primeiro filme). Em CHEVALIER E GHEERBRANT (2009),

encontramos que a máscara é um símbolo de identificação podendo ser utilizada em

cenas dramáticas em contos, peças, filmes. Os estudiosos afirmam que a pessoa

pode se identificar a tal ponto com a sua personagem, ou seja, com a sua máscara,

que não consegue mais se desfazer dela, que não é mais capaz de retirá-la.

Finalmente, ela se transforma na imagem representada. Para os demais, porém, a

máscara é vazia, é apenas uma imagem, isto é, algo desprovido de toda substância.

O fundamental na citação acima é a relação que os autores estabelecem

entre a máscara e a identidade. Relembramos que dentro da narrativa o objeto

adquire valor de signo, ou seja, entrou no domínio da ideologia (BAKHTIN, 2010, p.

46), pois foi criado entre indivíduos, no meio social. Portanto, no nosso contexto o

sujeito por trás dessa máscara é Hannibal Lecter, o canibal.

O mesmo não se pode afirmar sobre a identidade de Verger, o outro

mascarado. Por que motivo ele está atrás daquela máscara? Por que Hannibal

Lecter é tão valoroso para ele? Que tipo de negócios ele tem com Hannibal, que até

o presente nunca demonstrou qualquer interesse em dinheiro?

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Destacamos, que pelos elementos mostrados até agora, acreditamos que a

diegese será contada pelo ponto de vista de Verger. Assim, as relações sociais, que

são sempre relações de espelhamento, por meio das quais cada homem busca

reconhecer no outro a sua própria individualidade, vão adquirir um caráter negativo.

Isso acontece porque o homem nem sempre se reconhece no outro, o que conduz à

alienação e à perda da identidade, à manipulação e à massificação, cuja

consecução se faz, modernamente, em grande parte pela mídia, e, em especial, pela

televisão.

Sobre o espaço da narrativa, destacamos que há o contraste com a

ambientação do primeiro filme: o subsolo de um hospital psiquiátrico, a academia em

que Clarice praticamente vivia, a casa de velórios, a deteriorada casa do assassino.

Acreditamos que o refinamento do local, o qual deve provocar certo estranhamento

ao público, intensifica a ideologia que permeia a diegese, qual seja, o domínio do

capital e a conseqüente coisificação do homem.

O filme continua e um travelling para frente da câmera traz a imagem da

máscara para o primeiríssimo plano. O símbolo que representa a personagem

Hannibal Lecter vai dando lugar ao título do filme Hannibal escrito com letras

vermelhas. Essa montagem enfatiza o que destacamos anteriormente, isto é, a

máscara nesse contexto adquire valor de signo, pois é imediatamente identificada

com seu dono.

A figura dilui-se; durante a sequência que apresenta os créditos, ouve-se uma

outra melodia cujo andamento se contrapõe às imagens aceleradas, que são vistas

por meio da objetiva de uma filmadora a qual parece estar procurando por alguém.

Acreditamos que tanto a câmera quanto Verger buscam por uma pessoa: Hannibal

Lecter.

O espectador acompanha uma filmagem, pois há uma numeração que

aparece no canto superior esquerdo do vídeo e a palavra play no canto inferior

esquerdo do mesmo. Vozes se misturam às imagens. A câmera se fixa em plano

geral em ângulo plongée mostrando uma praça onde se vê muitas pombas. De

repente, elas se espalham e levantam voo. O corpo das aves transforma a paisagem

e o rosto de Hannibal Lecter aparece em praça pública. O sino, marcando um novo

tempo, toca várias vezes assustando os animais que se espalham.

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A sequência de retomada da personagem título se encerra com um fade-out

branco compondo a transição para a cena seguinte que é acompanhada pela

mesma melodia. Os dois efeitos criam a atmosfera onírica, a qual é rapidamente

quebrada por uma cena de ação.

2.2 Clarice Starling – o encontro com os parceiros

Dando seguimento à apresentação da personagem, verificamos que a câmera

em primeiro plano com o ponto de vista objetivo mostra uma moça enquanto ela

dorme. Há uma névoa no ambiente, com um corte a câmera mostra que a fumaça é

proveniente de uma peça de gelo que está servindo para refrigerar o furgão onde

estão muitos rapazes e somente uma mulher. Um dos policiais se manifesta: “Como

ela pode dormir numa hora dessas?”. A resposta esclarecedora do outro vem a

seguir: “Saiu em batida a noite toda. Está se recuperando.”

Ao voltar o foco para Clarice, enquanto ela abre os olhos, a câmera sugere

que ela estava ouvindo tudo sem se manifestar a respeito. Além disso, o espectador

vai se dando conta de que a agente não está trabalhando onde queria, isto é, no

Departamento de Ciência do Comportamento junto com Crawford. Ela trabalha nas

ruas no combate ao tráfico de drogas desde a formatura.

Com um corte, a câmera sai do interior do furgão e em plano geral de longa

distância em ângulo contra-plongée vemos o veículo externamente, enquanto

alguém o coloca de ré em um barracão. A moça é mostrada em plano panorâmico

enquanto ela sai do veículo e é seguida pelas outras pessoas. Há muitos policiais e

Clarice e eles parecem estar se preparando para algo muito importante.

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Ilustração 13 - Clarice Starling, solitária, chegando ao local onde deve instruir seus homens

Todos os presentes se reúnem ao redor da agente para ouvi-la. Dessa

maneira, a câmera circula entre eles, porém procurando se posicionar de maneira a

deixar em destaque a agente. Starling é a autoridade máxima ali naquele momento,

porém, o Policial Bolton tenta derrubá-la, conforme fragmento abaixo:

Starling: Muito bem, pessoal. O plano é esse.

Bolton: Desculpe. Sou o Policial Bolton, Washington, D.C.

Starling: É o que diz o seu distintivo.

Bolton: Sou o responsável aqui.

Starling: Policial Bolton, sou a Agente Especial Starling. Antes de

começarmos, deixe-me explicar porque estamos aqui. Estou aqui porque

conheço Evelda Drumgo. Prendi-a duas vezes. O DEA e o ATF estão me

dando apoio. Vieram pelas drogas e pelas armas. (grifo nosso)

Esse trecho demonstra que a Agente Especial Starling, única figura feminina

no local, não deixou de lado uma característica de sua personalidade que foi bem

marcada na película O Silêncio dos Inocentes: o aprimoramento constante de suas

qualidades e o desenvolvimento de suas habilidades. Ao fazer uso da palavra

autoritária baseia-se em argumentos concretos, sua experiência e conhecimento, e

não políticos, conforme sugere sua fala dirigida ao Policial Bolton: “Você está aqui,

porque o prefeito é rígido com as drogas, depois de ter sido pego com cocaína”.

Sobre a palavra autoritária, BAKHTIN (2010a, p. 143-144) escreve que esse

tipo de palavra “exige de nós o reconhecimento e a assimilação”, ela se impõe a nós,

pois “nós já a encontramos unida à autoridade”. Além disso, é muito mais difícil de

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ser utilizada em caráter ambíguo “seu sentido se refere ao pé da letra, se torna

rígido”. Por fim, Bakhtin complementa que “ela procura definir as próprias bases de

nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso comportamento”.

Percebe-se pelo embate entre o policial e a agente que há um conflito entre

os departamentos que cada um deles representa, ou seja, onde deveria haver

harmonia, pois são sujeitos que pertencem ao mesmo grupo social, isso não

acontece. E nesse momento, o Policial Bolton se cala, quer dizer, submete-se às

ordens da Agente.

Para tentar entender a atitude do policial, retomamos a BAKHTIN (2000, p.

290), no texto O enunciado, unidade da comunição verbal onde ele afirma que “a

compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de

uma atitude responsiva ativa”, quer dizer, de uma resposta. No nosso contexto,

observamos o que BAKHTIN (Ibid. 291) chama de “compreensão responsiva muda”.

Esse tipo de resposta se caracteriza por uma “ação retardada: cedo ou tarde, o que

foi ouvido e compreendido do modo ativo encontrará um eco no discurso ou no

comportamento subseqüente do ouvinte”. O conceito da “compreensão responsiva

muda” nos auxilia a compreender a sequência seguinte, onde veremos “o eco no

discurso” que se materializa sob forma de desacato.

Ilustração 14 - A Agente Especial Starling posição de liderança

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2.3 Clarice Starling - o encontro em praça pública

A “hora” de que falava o primeiro policial refere-se ao momento em que

devem entrar em ação. As instruções e procedimentos finais ainda estão sendo

dados, porém o espectador já está vendo o local onde tudo vai acontecer. A voz em

off é um recurso utilizado para que não haja uma transição brusca de uma cena para

a outra.

Após a apresentação dos planos e dos procedimentos a que todos deverão

obedecer, eles se dirigem para o Public Market17. O local foi escolhido para a prisão

de Evelda. Uma longa cena de ação é necessária para que Clarice seja mostrada no

ambiente em que está vivendo. Devemos recordar que em O Silêncio do Inocentes,

a protagonista Clarice passou por uma situação similar, porém ela se encontrava

sozinha em um local escuro e apertado contra o bandido. Seu sucesso foi

compartilhado, a princípio, somente com o espectador.

Nesse momento, o espectador acompanha juntamente com a câmera todos

os procedimentos de preparação da ação. Dessa maneira, o espectador sabe que

Clarice cercou-se de todos os cuidados para que tudo corresse bem, considerando a

grande quantidade de civis circulando por ali.

O espectador percebe o aumento da tensão, pois a câmera muda o

enquadramento dos policiais, passando a mostrá-los em primeiro plano frontal, um a

um. Tudo é muito bem calculado e mostrado lentamente. Clarice está no comando.

A ação tem início com a chegada de um carro cujo ocupante percebe que há

algo estranho e fica mais atento. Nesse momento, Clarice chama a atenção para

uma mulher que está saindo de um dos edifícios. Ela está sendo escoltada por

alguns rapazes e carrega um bebê no colo.

Destacamos que o confronto é entre duas mulheres e que há um bebê

envolvido em uma cena de violência. Ao ver a criança, Clarice ordena que a ação

seja suspensa, porém o Oficial Bolton desacata sua ordem e inicia o tiroteio. Essa

atitude não ética do policial colocando em risco toda a operação demonstra que

17

Tradução nossa: Mercado Municipal.

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Clarice tinha razão no seu pré-julgamento e nas suas insinuações a respeito do

interesse político do Policial Bolton.

A câmera mantém o enquadramento frontal e algumas vezes a câmera lenta

dilata o tempo da ação e a tomada por trás da personagem é utilizada. Tal recurso

faz com que o espectador veja a cena pelo ponto de vista de Clarice. Dessa

maneira, a cena ganha em expressividade e cria-se um vínculo entre o público e a

personagem.

Ilustração 15 - Clarice pouco antes de atirar na mãe que carregava um bebê preso no peito

Após o primeiro disparo, Clarice perde o controle da situação e só lhe resta

lutar. De frente para Evelda, a qual está armada, Clarice se obriga a escolher entre a

vida e a morte e atira na criminosa em uma posição muito difícil, pois o bebê está

preso ao ventre da mãe.

Clarice está enquadrada em plano geral à meia distância, o espectador ouve

outros disparos que são de uma máquina fotográfica a qual não se vê. Ela corre com

o bebê nos braços – a câmera lenta simula o congelamento da fotografia. Com uma

mangueira, retira o sangue que cobre o corpo da criança. O bebê chora o tempo

todo enquanto a água que escoa fica toda manchada de sangue. CHEVALIER E

GHEERBRANT (2009, p. 800) afirmam que “o sangue é universalmente considerado

o veículo da vida. Sangue é vida, se diz biblicamente” (grifo nosso). Porém, deve-se

considerar “a ambivalência do sangue profundo: escondido, ele é a condição da

vida. Espalhado, significa a morte” (Ibid., p. 945). Por isso o desespero de Clarice

para lavar a criança e certificar-se de que ela estava bem.

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2.4 O julgamento de Clarice Starling

O fracasso da operação em praça pública expõe a vida da agente por meio de

reportagens veiculadas pela televisão e pelos jornais. Os programas televisivos

recordam a população do salvamento de Catherine, filha da senadora, há 10 anos. A

imprensa enfatiza a ajuda que a então estudante, Clarice Starling, recebera de

Hannibal Lecter. O passado deslocado para o presente torna-se algo negativo e

contribui para denegrir a imagem da Agente Clarice Starling.

Com movimentos lentos, a câmera mostra em primeiro plano o colete salva-

vidas e a arma que simbolizam o sistema, ou seja, os instrumentos do trabalho da

agente estão ao lado da personagem. Deslocando-se de baixo para cima, a câmera

compartilha com o espectador do choro compulsivo de Clarice, ainda vestida com as

roupas que usava nas ruas.

Tal imagem nos revela que Starling deixa cair a máscara de agente e, dessa

forma, expõe sua sensibilidade à câmera e ao espectador. Porém, devemos nos ater

não somente a manifestação visível, ou seja, as lágrimas, mas também a forma

como a câmera mostra a arma, o distintivo e o colete à prova de balas de Clarice. Os

objetos estão colocados ao lado da personagem e não à sua frente. Isso nos parece

relevante, pois em uma situação similar, quer dizer, de crise, a personagem reage de

uma outra maneira, ou seja, ela coloca o revólver à frente dela, capítulo 1.3, página

49-51. Pelo descrito, concluímos que esse pequeno detalhe pode ser o primeiro

indício de que a personagem esteja se desiludindo com o sistema.

Ilustração 16 - Clarice logo após o tiroteio em sua casa

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Pouco depois, a câmera mostra as imagens que vêm de um programa de

televisão. Clarice e “sua desastrada batida policial” são o tema da reportagem. A

montagem alternada estabelece uma relação dialógica entre os fatos e as duas

personagens e faz a transição da sala de estar de Clarice para o quarto de Verger.

Este último está assistindo ao mesmo programa que Clarice. Porém os dois têm

reações diferentes frente ao que está sendo.

Para Clarice, que acaba de perder um amigo, aquilo tudo representa um

momento de tristeza e ela está consciente de que no mínimo terá que prestar algum

tipo de esclarecimento a seus superiores. Isso se deve ao fato de que suas ações

aconteceram em praça pública e tudo foi registrado pela imprensa.

Temos aqui, um exemplo concreto de que as imagens podem assumir

diferentes sentidos dependendo do interlocutor que as lê. A imprensa faz uso das

imagens considerando somente um ponto de vista e isso a leva a fazer um pré-

julgamento de Clarice “o Departamento de Justiça e o FBI usam o poder das armas

em vez do julgamento, Clarice não será enaltecida desta vez” (grifo nosso). Somente

a câmera, Clarice e alguns de seus companheiros sabem como as coisas

aconteceram, porém eles não serão ouvidos.

Verger, por outro lado, interessou-se de alguma maneira pela tragédia. Isso é

destacado pelo movimento da câmera deixando em evidência seu rosto e pelo fato

de que ele, logo após desligar a televisão, com um toque de dedos, pede a Cordell

que faça uma ligação para o Departamento de Justiça. Nesse momento, as

intenções de Verger não são reveladas, porém devemos destacar o cuidado que a

câmera teve em mostrar suas mãos em primeiro plano. Esse detalhe pode estar

relacionado com a identidade da personagem, porém até este ponto da narrativa

isso ainda não pode ser afirmado.

Ao mencionar o Departamento Federal, a fala de Verger se liga à abertura da

sequência seguinte. A transição entre as sequências é feita com o uso da voz da

personagem em off. Dessa maneira, a técnica sugere que tudo acontecerá de

maneira muito rápida e, também, que os dois eventos estão conectados.

A câmera focaliza ao fundo do plano a torre do Capitólio, edifício que abriga o

Congresso dos Estados Unidos e depois entra em uma sala fechada. O lugar, palco

do julgamento de Clarice, parece menor pela tomada em ângulo fechado. Dessa

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maneira, auxilia a intensificar a situação de repressão a qual Clarice está sendo

submetida no momento.

Entre os presentes, destacamos Paul Krendler, do Departamento de Justiça,

que segundo um dos colegas “está aqui, mas não está”. Essa fala, sugerindo que

Paul está fazendo algo que não deve ser divulgado, antecipa a diegese, pois em

breve saberemos que ele se associa a Verger na caçada de Hannibal Lecter.

Inicialmente, o espectador observa o grupo que está em plano geral. Após

situar o espaço onde acontecerá a reunião, a câmera em travelling lateral mostra os

homens encarregados de decidir o destino de Clarice lentamente em primeiro plano

e ângulo contra-plongée. Nas falas deles vemos espelhadas as notícias veiculadas

pelos telejornais, dessa forma entende-se que o grupo assumiu o ponto de vista da

mídia e é por esse ângulo unilateral que resolvem por suspender a agente. Clarice

nem começou a explicar-se e seus interlocutores já estão dando mais atenção aos

seus celulares que tocam e pagers que bipam provocando a retirada gradual dos

presentes e consequentemente o adiamento da reunião.

Enquanto as autoridades estão preocupadas com seus outros afazeres,

Clarice tenta se justificar apoiando-se em seus valores e aprendizados institucionais.

A câmera a focaliza em primeiríssimo plano e ângulo contra-plongée enquanto ela

se explica. Para o espectador, que acompanhou tudo, o momento é de grande

comoção: “Essa batida foi caótica. Tive que escolher entre morrer ou atirar numa

mulher com um bebê. Eu escolhi. Eu atirei. Matei uma mãe segurando seu filho.

Sinto muito. Lamento o que houve.” Por sua fala, Clarice deixa claro que agiu em

legítima defesa, porém: “Atirou e matou cinco pessoas”.

Com a falta de interesse da maioria, a audiência é adiada. A câmera passa a

focalizar a personagem em outro espaço, que se opõe ao anterior pela sua

amplidão. Em plano objetivo, Clarice está com o olhar fixo no horizonte à sua frente.

Tal posicionamento da personagem deixa transparecer seu momento de reflexão, ou

seja, ela deve estar sentindo medo das incertezas do futuro; medo de si mesma; no

medo das sensações que essa nova experiência lhe desperta. A grande

luminosidade natural que entra pelas grandes janelas envidraçadas que circulam o

salão contribui para o aumento da dramaticidade do momento vivido por Starling.

Por esse motivo, acreditamos que a personagem tem consciência de que dentro

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dela existe outra prestes a libertar-se da injustiça e da opressão que estão aflorando

em seu ambiente de trabalho.

Ilustração 17 Clarice no interior da sede do FBI olhando para o horizonte

É nesse local de reflexão que Clarice é suspensa das ruas e designada para

voltar ao caso Hannibal Lecter a pedido de Mason Verger. Nesse momento, a

câmera esclarece quais eram as intenções deste ao ligar para o Departamento de

Justiça.

Nessa cena, outros detalhes da vida de Mason são sutilmente revelados por

Starling e por Crawford. Como por exemplo, pelo diálogo tomamos conhecimento de

que Mason Verger foi uma das vítimas de Lecter, que ele é “rico”, que possui

“amigos influentes”. E ainda que “não pode comprar um senador, mas pode alugá-

lo”.

Pelas informações trazidas pelas personagens, o espectador entende a razão

pela qual a câmera focalizou o Capitólio no início da sequência. Assim, vai se

formando uma rede em torno de Mason Verger, que se liga à Hannibal, à Clarice e à

Paul Krendler.

Durante o diálogo, a câmera focaliza Clarice, Krendler e Crawford em primeiro

plano e ângulos laterais, ou seja, do ponto de vista do interlocutor. Dessa maneira, o

espectador pode observar a reação do eu frente à palavra do outro. Outras vezes, a

personagem é focaliza em ângulo frontal, tal recurso é utilizado quando a ênfase da

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câmera recai sobre o falante, ou seja, a importância está na entonação e não mais

na reação que a fala provoca.

Além desses detalhes de focalização da câmera que vão criando um clima de

desconforto entre Clarice e Krendler, destacamos a indiscrição de Paul Krendler, que

insinua a falta de sensibilidade da agente e ainda deixa-se pegar pela câmera

olhando para as pernas dela. Percebe-se que o funcionário do Departamento de

Justiça e Clarice estão em posições opostas e que ela procura mantê-lo à distância.

A esta altura da narrativa, o espectador ainda não entende qual é o papel do homem

que, segundo Crawford, “está ali, mas não está”, “está fazendo um favor”.

Como dissemos anteriormente, Clarice usa um tom ríspido e assim demonstra

que está muito descontente com o pré-julgamento que sofreu. Ela diz que “não

esperava levar um tiro nas costas dentro do escritório de seu chefe“, complementa

que fez tudo da maneira como foi ensinada. Porém, ao mesmo tempo em que nega

o sistema continua presa a ele, pois se dirigi para a casa de Verger.

A câmera sugere que, entre a proposta e a aceitação da mesma, não

decorreu muito tempo, uma vez que a agente já é mostrada na estrada antes mesmo

do final do diálogo. Tal efeito é provocado pelo uso da montagem alternada,

transição de uma sequência para outra: a imagem muda, porém a voz da cena

anterior permanece em off. Além disso, as imagens sugerem que a personagem se

agarra prontamente à oportunidade que lhe foi dada ou imposta.

2.5 Clarice Starling - o encontro com Mason Verger

Ilustração 18 - Clarice Starling em seu caminho para a casa de Verger

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A tomada panorâmica distante da estrada, que metaforicamente representa o

caminho da vida (BAKHTIN, 2010a, p. 350), sugere que há o início de um novo

tempo para Clarice. Ela própria se disse mudada em decorrência dos

acontecimentos, ou seja, embora não seja aparente, a situação a que foi exposta

causou-lhe um ferimento, uma cicatriz. Sua missão a partir de agora é encontrar

Hannibal Lecter e para isso precisa falar com Mason Verger, pois este último afirma

ter novas informações sobre o foragido.

Clarice segue a estrada em direção à propriedade de Verger e surpreende-se

com uma sinalização pública indicando o caminho para o lugar. Como já havia feito

anteriormente, a câmera chama a atenção do espectador para a riqueza de Mason

Verger focalizando a placa que diz Estate Verger18.

O lugar recém-nomeado é mostrado pela câmera em plano panorâmico e

ângulo plongée. É essa tomada do alto que possibilita ao espectador ter a visão

global da propriedade de grandes proporções. Há uma casa, que mais se assemelha

a um castelo, rodeada por muito verde. O tamanho do imóvel condiz com o que já foi

dito sobre o patrimônio de Verger.

Com um corte da câmera, o espectador passa a acompanhar a progressão do

carro de Starling em plano geral médio dentro da propriedade. A tomada da cena é

diurna e a predominância da névoa sugere que seja ainda muito pela manhã, isto é,

antes de o sol aquecer a atmosfera. As imagens são acompanhadas por uma

melodia que parece traduzir a tristeza da personagem que silenciosamente percorre

seu caminho. Além da música e do barulho do atrito do pneu do carro com os

pedregulhos da estrada não se ouve nada. A névoa, a melodia, a memória recente

dos acontecimentos, o local tão surpreendente, tudo isso cria uma atmosfera onírica.

E esse clima permanece quase que pelo filme todo.

Ao chegar à porta da propriedade, Cordell vem cumprimentá-la e orientá-la

sobre o local correto onde deve estacionar o carro. Em seguida, a câmera corta a

cena e passa a fazer as tomadas de dentro da casa com o objetivo de mostrar o

ambiente em que vive Mason.

Clarice segue Cordell e os dois são acompanhados de longe pela câmera e

pelo espectador. Dessa maneira, pode-se apreciar o lugar onde será ambientada

18

Tradução nossa: Propriedade Verger.

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boa parte da estória. Eles não se falam, porém Cordell chama a atenção para a

escuridão do local dizendo que: “A vista se ajusta à escuridão” e os dois andam

apressadamente.

Verger está esperando por Clarice em seus aposentos. Assim que chegam ao

local, Cordell afasta as cortinas brancas e transparentes que circulam o leito. Em

seguida, apresenta a visitante que permanece como pano de fundo, no escuro,

aguardando sua vez de falar com Verger.

Nesse início de cena, observamos que Verger não deseja que seu médico

participe do encontro com Clarice: “Cordell, pode nos deixar agora”. A câmera

mostra que o médico não gostou muito da ordem e argumenta: “Achei que devia

ficar (pausadamente) Talvez pudesse ser útil” (grifo nosso).

Relembramos que anteriormente, capítulo 2.1, pp. 59-66, a câmera mostrou

Cordell participando ativamente da vida de Verger. Porém nesse momento, ele é

impedido de permanecer no recinto. A imagem cria um clima de distanciamento, pois

mostra Verger em plano geral frontal distante: “Pode ser útil (ênfase) cuidando do

meu almoço”.

Por outro lado, Cordell é visto olhando fixamente para o outro enquanto se

retira da sala. Relembramos que para BAKHTIN (2000, pp. 290-291) “a

compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de

uma atitude responsiva ativa”, quer dizer, de uma resposta. Observamos que o

médico responde de maneira não-verbal e isso pode provocar “o eco no discurso” ou

“no comportamento subsequente do ouvinte”. Veremos que a resposta tardia de

Cordell virá em um momento de crise, quando ele acata uma sugestão de Lecter e

empurra Verger para a morte.

Verger inicia a conversa com um comentário sobre o carro de Clarice, que ele

identificou pelo ronco do motor, referindo-se ao consumo do veículo e também a

velocidade que o mesmo pode atingir. O enunciado aparentemente despretensioso

nos leva a refletir sobre a personagem desfigurada e aparentemente tão dependente

do outro.

Considerando o que já nos foi mostrado dele, sabemos que o mesmo não

pode ir sozinho a lugar nenhum fora de sua casa. Portanto dirigir um carro em alta

velocidade, isto é, ter o veículo sob controle, usufruir a sensação de liberdade que

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isso proporciona é algo que lhe será negado para sempre. Embora, tenha o mundo

no “toque de um dedo”, conforme já foi sugerido pela câmera, a vida nega a ele

“pequenos sabores”: um biscoito, a independência e a liberdade. Dessa maneira, a

vida de Mason Verger, preso a cadeira de rodas ou a cama, vai sendo carregada de

pequenas frustrações e de pequenos ressentimentos.

Ainda na escuridão, a diegese progride com o depoimento de Verger para

Clarice. Antes do início, ela se aproxima dele para prender o microfone e fazer a

gravação19 das vozes. Nesse momento, a câmera e Verger tentam chocar Clarice,

pois aquela se aproxima do rosto de Verger deixando-o em primeiro plano. E o

segundo, com o controle remoto em mãos, aumenta consideravelmente a

luminosidade da sala. As ações conjuntas trazem para o centro da tela o rosto

iluminado de Verger. No entanto, Clarice não demonstra qualquer reação ao vê-lo e

inicia seus questionamentos sobre Hannibal Lecter.

Diante da reação insensível da agente, Verger desiste de provocá-la e, com a

ajuda da câmera, expõe sua vida íntima, ou seja, sua história com Lecter. As

imagens da automutilação são mostradas pela câmera e ilustram a fala de Mason.

Além disso, acreditamos que a câmera, como anteriormente destacamos, está

tentando chocar o espectador e, dessa maneira, colocá-lo ao lado de Verger.

Ao final desse jogo da câmera em revelar e ocultar Hannibal Lecter, é com um

tom de pesar que Verger afirma: “Parecia uma boa ideia!”. Esse lamento, no entanto,

é passageiro, pois a seguir em tom profético e até certo ponto ameaçador ele diz

que “Agradece a Deus pelo que aconteceu com ele, pois foi sua salvação” e se diz

imune: no plano político, “Pelo procurador federal”; no plano espiritual, “pelo Jesus

ressuscitado” e, por fim, diz que não há ninguém acima dele. Dessa maneira ele se

coloca como representante da justiça divina.

Essa afirmação de Verger por diversas vezes é recuperada pela câmera,

como observamos na ilustração abaixo. A personagem é mostrada pela câmera em

ângulo plongée, a tomada concretiza visualmente o que a personagem disse

anteriormente “ninguém está acima dele”. Assim, não há conflito entre a máscara

19

Outros gêneros do discurso semelhantes às gravações, como por exemplo, fotografias, telejornais, jornais são

utilizados na película. Pensamos que além de ser um recurso narrativo que podem ser utilizados para contar fatos

passados sem que seja necessário recorrer freqüentemente ao flashback, ainda introduzem outras vozes, ou seja,

outros pontos de vista no filme (grifo nosso).

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interior (“o ser de desejo”) e a máscara exterior (“o eu social”) (BRAVO, 2005, p.

276), pois Verger age seguindo seus instintos, sem preocupação com o que a

sociedade exige dele.

Ilustração 19 – A onipotência de Mason Verger concretizada em sua visão

Por outro lado, Clarice deseja manter seu status de Agente do FBI e sofre

com o que a sociedade está fazendo com ela, pois está consciente de que fez tudo

da maneira como foi ensinada.

A sequência seguinte tem início com a imagem de Hannibal e as mãos que

seguram os documentos que se referem a ele. É dessa forma que a câmera sugere

que Lecter está nas mãos de Clarice, ou seja, ela está de volta ao caso. Em seguida,

o artefato volta-se para a entrada da sala e introduz uma nova personagem na cena.

Trata-se de um rapaz que carrega algumas caixas.

O funcionário se aproxima de Clarice e isso possibilita a câmera mostrá-los no

mesmo quadro. Durante o diálogo, o qual gira em torno do material que Clarice está

recebendo, observamos que a câmera não está interessada nas falas. O que

importa é mostrar o espaço onde a Agente irá passar a maior parte de seu tempo.

As tomadas em ângulo aberto mostram claramente que Clarice foi rebaixada,

conforme já foi sugerido anteriormente no capítulo 2.4, pp. 71-75. Seu novo local de

trabalho se parece com um depósito e ajudam o espectador a entender o momento

em que ela se encontra, ou seja, a personagem está enclausurada em uma sala sem

janelas e sem contato com outros funcionários. A única pessoa que entra e sai é o

rapaz que lhe traz a correspondência e as caixas que contêm o material disponível

sobre o caso Hannibal Lecter.

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Em pouco tempo, veremos que Clarice se cerca de imagens do passado.

Entretanto, elas lhe trazem lembranças negativas, ou seja, a câmera sugere que a

agente quer ter perto de si tudo o que diz respeito ao Lecter, o canibal. Para

entendermos melhor esse processo, recorremos a uma citação de BAKHTIN (2000,

p. 253), “o passado está ativo no presente de forma negativa. É ele que determina o

presente, dá dimensão ao futuro que ele predetermina.”. Portanto, o texto do autor

nos leva a concluir que a personagem sente que sua trajetória de vida está

amarrada a Hannibal Lecter. É importante relembrarmos que essa ideia estabelece

uma relação dialógica com a última cena do filme O Silêncio dos Inocentes, capítulo

1.6, página 57, pois a câmera sugere, por meio da ligação telefônica interrompida,

que algo ficou pendente entre as duas personagens.

Com o intuito de encontrar Lecter, Clarice procura Barney, sobre ele já

falamos no capítulo 2.1, páginas 59-66. Nesse momento a câmera mostra outro lado

da personalidade do enfermeiro. Ele é flagrado na rua pela câmera e por Clarice

ruas em plano geral e ponto de vista subjetivo num ato de extrema sensibilidade.

Barney para o trânsito para recolher uma pomba caída no asfalto e livrá-la de ser

esmagada pelos veículos. Ao final, ele carrega a ave consigo até sua casa.

Destacamos que há um esforço da câmera em mostrar a bondade do

enfermeiro para o espectador e para Starling que acompanha tudo e aguarda que

Barney chegue ao portão da residência dele antes de abordá-lo. Dentro da casa, a

câmera os focaliza primeiramente em plano geral e percebe-se que o ângulo diminui

conforme o clima do diálogo fica mais íntimo. Barney defende Lecter, pois ele lhe

dizia que “preferia comer os indelicados. Chamava-os de indelicados que pastam

soltos”. O enfermeiro afirma que sempre foi civilizado com o prisioneiro e por isso

não tem medo de ser perseguido.

Para intensificar a idéia de que entre ela e Lecter havia um romance, Clarice

declara pensar em Hannibal com frequência. Ao final da conversa, demonstrando

sua preocupação com que o outro pensa sobre ele, o enfermeiro afirma “eu não sou

uma má pessoa”, mas ele considerava Dr. Chilton era uma pessoa ruim. Nesse

momento, Barney revela que o médico gravava as conversas que aconteciam na

cela de Lecter. Ao final, o enfermeiro entrega as fitas que estão com ele.

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O conteúdo das fitas, quer dizer, as vozes, são usadas para a transição de

uma sequência para a outra. Primeiramente é Barney quem fala o que ele ouvia do

prisioneiro, depois é o próprio Lecter quem fala por ele mesmo:

Hannibal: Jack Crawford mandou você para me tentar e eu acabo lhe dando

uma boa ajuda. Acha que é porque gosto de olhar para você e imaginar

como deve ser saborosa, Clarice? (grifo nosso)

Clarice: Não sei, é?

Nesse momento a câmera focaliza o gravador, dessa maneira desvia a

atenção do espectador e o faz voltar para o presente, ou seja, para a realidade sem

Hannibal. A fala seguinte pertence ao primeiro filme, mais precisamente ao terceiro

encontro que aconteceu entre as personagens. Aqui ela faz a ponte entre a primeira

parte do filme e a segunda parte que acontece em Florença.

Ao final da seqüência, a câmera faz uma tomada em primeiríssimo plano

lateral de Clarice – seu rosto está dividido em duas partes – o efeito é causado pela

luz que ilumina somente uma parte dele e intensifica a ideia de que a personagem

está em conflito: gosta ou não gosta de Lecter; quer prendê-lo ou revê-lo. Sua face

se mistura com a paisagem que aparecerá na próxima sequência.

O som de um piano, que é introduzido em cena, imprime um tom lírico a

sequência. Hannibal faz um jogo com as palavras “Eu gosto de olhar para você e

imaginar como deve ser saborosa.”. A voz dele vai ser usada para a transição da

sequência: ‘‘O que eu desejo é uma vista. Eu desejo uma janela de onde eu possa

ver uma árvore ou mesmo a água. Quero ficar numa instituição federal distante...”.

A partir daqui, a trama vai acontecer em dois lugares: Washington e Florença.

A ideia de um possível romance entre Hannibal e Clarice, provocada por Mason, faz

com que a convivência com as imagens se mostre ambivalente, pois pode sugerir

que Clarice sente saudade de Lecter. Porém, ela pode estar apenas se dedicando a

sua missão, como é sua característica, além de se conscientizar de que Hannibal

Lecter é realmente um assassino e que não deveria estar solto no mundo.

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2.6 Hannibal Lecter ou Dr. Fell

Conforme já dissemos, a transição entre a seqüência onze e doze possui um

efeito plástico muito bonito. Uma paisagem é enquadrada a longa distância. Trata-se

da Basílica di Santa Maria del Fiore é a catedral, ou Duomo, da Arquidiocese da

Igreja Católica Romana de Florença. Famosa pela sua monumental domo (ou

cúpula) - obra do celebre arquiteto renascentista Brunelleschi - e pelo campanário,

de Giotto, é uma das obras da arte gótica e da primeira renascença italiana,

considerada de fundamental importância para a História da Arquitetura, registro da

riqueza e do poder da capital. Não há qualquer referência na tela, mas o espectador

sabe do que se trata – a voz de Hannibal ainda é ouvida. A câmera vai girando

lentamente e confirma-se que a paisagem é a mesma dos desenhos de ficavam na

cela de Lecter no Hospital de Baltimore.

Dessa maneira, Hannibal Lecter e Clarice Starling se encontram por trás das

imagens que remetem ao passado. No presente, a câmera transporta o espectador

para Florença. Em breve, a atenção da própria Clarice vai voltar-se para esse lugar

tão longe de seu país.

Ilustração 20 - Imagem de transição entre as sequências

Após essa breve apresentação do espaço geral da diegese, a câmera se

desloca para outro lugar, um pouco mais específico. A tomada em plano geral e

ângulo plongée procuram mostrar uma praça. No chão, pode-se ver uma figura e

sua insignificância perante as construções à sua volta. Enquanto o sino badala, a

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câmera se aproxima do homem que é mostrado em enquadramento lateral de corpo

inteiro. Ele está terminando de fumar seu cigarro e por isso joga o que sobrou no

chão. Nesse momento, o sino toca novamente e algumas pombas levantam voo

assustadas.

A câmera abre para o plano geral e acompanha a caminhada do sujeito que

se adentra nas construções. Novamente, ele fica insignificante frente à grandeza dos

edifícios à sua volta, ou seja, a tomada sugere a superioridade das edificações (por

metonímia das Instituições) em relação à pequenez da figura humana20. Com um

corte, a câmera o enquadra nos jardins do prédio e por todo o percurso até chegar

ao seu destino: um salão onde está acontecendo uma reunião.

Como se percebe, a câmera deseja mostrar o percurso total, ou seja, o

deslocamento desde a entrada até o salão. Nesse momento, acreditamos que se

relacione com a insignificância da personagem. Em outras situações, outras

personagens não precisam percorrer todo o trajeto.

Aos poucos, a câmera identifica o homem que acabou de entrar no edifício.

Trata-se do inspetor Rinaldo Pazzi que aguarda o término de uma reunião. Os

demais presentes estão no lado oposto, em volta de uma grande mesa. A câmera

em travelling lateral vai mostrando a todos em primeiro plano; somente o Sr.

Sogliato, um diretor da Biblioteca Capponi, fala. Os outros dirigentes o ouvem

atentamente.

Sr. Sogliato é contra a permanência de Dr. Fell como curador da biblioteca,

como vemos expresso em sua fala. Seu argumento se apóia no fato do Dr. Fell ser

um estrangeiro:

Sr. Sogliato: Os documentos da Biblioteca Capponi remontam ao século

XIII. Dr. Fell pode ter em suas mãos um documento pessoal de Dante

Aliguieri. Mas, ele seria capaz de reconhecê-lo? Eu acho que não!

Cavalheiros, não vou negar que o italiano medieval dele é admirável por

tratar-se de um estrangeiro. Mas ele conhecer as personalidades da pré-

renascença de Florença? Eu acho que não. [...] (grifo nosso).

20

No capítulo 1.1.1, páginas 29-30, destacamos que a câmera narrou algo semelhante, ou seja, o efeito de sentido

provocado pela tomada panorâmica da paisagem foi o mesmo.

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O grupo determina que Dr. Fell, que ainda não foi mostrado pela câmera, se

apresente para a diretoria e demonstre ter conhecimentos sobre a obra de Dante

Alighieri (1265–1321). Por isso, eles agendam uma palestra do curador interino para

o grupo sobre o autor. A aprovação daquele para o cargo efetivo dependerá de seu

desempenho nessa palestra.

Destacamos que o discurso do Sr. Sogliato estabelece uma relação dialógica

com a tradição uma vez que a cidade de Florença é um lugar de raízes profundas,

com ligações culturais e históricas que remetem à Idade Média. Veremos o quanto

influenciam o andamento da diegese o aspecto cultural e histórico da cidade.

A câmera focaliza em plano distante aberto o grupo se desfazendo. Isso faz

com que o inspetor Pazzi levante de onde se encontra e se dirija até a única pessoa

que permanece ao lado da mesa de reuniões. A câmera acompanha, pelas costas, o

deslocamento do inspetor em direção ao referido local.

Quando está próximo do homem, ele o chama: “Dr. Fell”. O outro se vira

sendo focalizado em primeiríssimo plano frontal e a visão que temos é de Hannibal

Lecter. Porém ele atende ao chamado do inspetor. Portanto, a câmera mostra ao

espectador que Lecter assumiu a identidade de Dr. Fell21.

O diálogo entre os dois é mostrado em primeiro plano. Há a alternância entre

o ponto de vista objetivo e o subjetivo. Entretanto o que chama a atenção é o

ângulo: Pazzi vê Hannibal contra-plongée e é visto pelo outro em plongée22. Ou seja,

pelo ponto de vista de cada um, o inspetor parece estar em posição inferior em

relação ao outro.

Pazzi: [...] Estou investigando o desaparecimento de seu antecessor,

signore de Bonaventura.

Dr. Fell: “Antecessor” implica que o cargo é meu. Infelizmente, não é. Ainda,

mas tenho esperança. Estão me deixando cuidar da biblioteca. Tenho uma

remuneração.

Pazzi: Os policiais que verificaram anteriormente não acharam nenhum

bilhete de despedida nem de suicídio. Será que...

Dr. Fell: Se eu encontrar algo na biblioteca numa gaveta ou num livro, ligarei

imediatamente.

21

Destacamos que não há modificações físicas na personagem. Pode-se observar somente uma mudança na

vestimenta. Esta inclui um chapéu branco que deixa o rosto da personagem sob uma sombra. 22

Diríamos que é típico de Lecter: sentir-se superior ao outro.

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Pazzi: Obrigado. (grifo nosso)

O inspetor se vira e caminha em direção a saída da sala. Porém, no meio do

caminho, o outro faz um comentário de caráter pessoal e por isso ele para onde está

e fica.

Dr. Fell: Você foi reconvocado.

Pazzi: O que foi?

Dr. Fell: Trabalhou no caso Il Monstro lembro de ter lido.

Pazzi: Isso mesmo.

Dr. Fell: Agora está nesse. Um caso bem menos importante, eu diria.

Pazzi: Se julgasse meu trabalho nesses termos, sim. Concordo.

Dr. Fell continua provocando o outro a se mostrar, porém ele se desvia do

assunto.

Até o momento, Dr. Fell não consegue uma refração do outro. Então ele

continua com sua anácrise. Faz uma reformulação em sua pergunta e para

aumentar o clima de intimidação a câmera o mostra em primeiro plano: “Uma pessoa

desaparecida?”

O questionamento feito dessa maneira, ou seja, sugerindo que o trabalho

atual do inspetor é insignificante parece que surte efeito. O inspetor muda sua

postura se aproximando da câmera e refrata: “O quê?”. Porém sua reação não

passa disso. [...] “Com relação a este, Dr. Fell. Os pertences do signore ainda estão

no Palazzo?”.

O espaço da diegese é todo iluminado por pela luz natural que entra pelas

grandes janelas. Entretanto, o ambiente está poluído pela fumaça dos cigarros dos

presentes. Outro elemento a destacar, é o fundo musical que provoca um efeito de

indefinição, ou seja, de algo a ser descoberto.

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Ilustração 21 - Primeira vez que a câmera focaliza Dr. Fell

2.7 Hannibal Lecter e Clarice Starling – a carta perfumada

Nos Estados Unidos, a câmera mostra que Clarice está mergulhada na vida

de Lecter. Ela procura por pistas que possam levá-la a ele. Temporariamente, a

câmera desvia-se dela e mostra em primeiro plano frontal seu funcionário que está

entrando na sala. Deve ser algo importante, pois Clarice também se distrai com ele.

Destacamos que mais uma vez, a câmera em travelling lateral descreve o

local: todo fechado e sem luz natural. As paredes estão cobertas por painéis muito

iluminados que trazem as imagens de Lecter. Também, pode-se observar que há

grades nas janelas. Portanto, todos os elementos, que são destacados pelo foco da

câmera, traduzem em imagens os sentimentos de Clarice: aprisionada e isolada do

exterior. Acreditamos que por isso, ela mergulha no passado em busca de algo que

lhe devolva a vida.

As duas personagens da ação são mostradas no quadro a quadro, ou seja, a

câmera intercala o enquadramento entre os dois. A atenção maior da câmera volta-

se para Clarice que é focalizada de costas ângulo contra-plongée. Dessa maneira, é

possível ver os documentos que estão sendo manuseados por ela.

Ela abre um envelope e reconhece a letra de Lecter. A câmera congela a

imagem e um som agudo traduz o choque que a carta provocou na agente. Clarice

pede ao seu mensageiro que se retire. Depois, cuidadosamente abre a carta, não

pode causar nenhum tipo de dano ao material que pode lhe servir como prova.

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A cena da leitura da carta é feita em dois planos alternados, ou seja, ora

vemos Clarice, ora Lecter. Em primeiro plano subjetivo vemos as mãos enluvadas de

Starling enquanto ela abre o envelope. Em seguida, desdobra a carta e a leitura da

carta é feita pelo locutor, ou seja, Lecter. Esse recurso auxilia a câmera a fazer a

ligação entre os dois espaços da narrativa, Florença e Estados Unidos, contribuindo

para diminuir a distância física que há entre eles.

Enquanto o espectador e Clarice ouvem as palavras de Lecter, a câmera

mostra para o espectador o cotidiano do locutor, ou seja, ele está vivendo livremente

e de maneira confortável em Florença. A câmera mostra que ele está

acompanhando a vida de Clarice, pois há jornais sobre o piano que falam da

desastrada operação pela qual ela foi suspensa.

Lecter, em sua carta, se diz triste pelo que acontecera com Clarice. A forma

como encerra a carta, sugere que ele “adivinha” onde ela está: “Imagino-a num

porão escuro, curvada sobre papéis e computadores. (...) Está claro que essa nova

tarefa não foi escolha sua. (...) Seu trabalho é tramar a minha desgraça. Não sei o

que lhe desejar, mas sei que nos divertiremos muito”.Por sua fala, percebe-se que

Hannibal conhece muito bem Clarice, pode inclusive prever suas ações.

Por outro lado, nos Estados Unidos, a câmera e Clarice mantêm a sua frente

e por todos os lados painéis e fotografias que mostram o canibal. A câmera sugere

que ela não quer se esquecer, dessa vez, quem é Hannibal Lecter. Dessa maneira,

somos induzidos a ficar do lado da policial, que está trabalhando em um depósito e

foi punida injustamente por seus superiores.

Veremos nas sequências seguintes que Clarice percebe que a carta está

perfumada. Esse detalhe do aroma estabelece uma relação dialógica com o primeiro

filme, pois a personagem e o espectador se recordam da primeira vez que a agente

e Lecter se encontraram que ele demonstra grande sensibilidade para os aromas23.

Além disso, a análise dos odores feita com a ajuda de especialistas a leva ao

fornecedor do produto usado por Hannibal e consequentemente ao fugitivo.

Portanto, concluímos que ele queria ser descoberto, uma vez que deixou pistas para

que Clarice chegasse até ele.

23

A análise da sequência mencionada se encontra no capítulo 1.2.1, páginas 38-50.

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Em Florença, a câmera mostra o Inspetor Pazzi entrando na delegacia, onde

trabalha. Ele parece estar preocupado, porém seu problema é de natureza

particular: os ingressos para a ópera estão esgotados. Nesse minuto, a câmera

focaliza alguns colegas fazendo piada com o fato e referem-se à esposa do colega

de maneira grosseira: “É a bela e jovem esposa exigente que precisa das entradas.”

Esse despretensioso acontecimento mostrado pela câmera, em realidade,

desencadeia a degradação da personagem. Conforme veremos no desenvolvimento

da diegese, para satisfazer os desejos de sua esposa ele precisa de muito dinheiro.

Nesta sequência, a câmera chama a atenção do inspetor para a figura do Dr.

Fell. Isso é feito por intermédio de um vídeo que um colega está gravando na

delegacia. Enquanto, o inspetor Pazzi olha o que há no filme, o outro lhe conta que

se trata do conteúdo da câmera de segurança de uma loja de perfumes. A gravação

foi solicitada pelo FBI, porém ele não sabe de mais detalhes, pois o departamento

não forneceu mais informações.

Em um minuto, a câmera deixa de olhar para o vídeo e vira-se para o inspetor

Pazzi. Seu rosto está em primeiro plano, seus olhos estão fixos na televisão. Ele

congela a imagem do filme e certifica-se de que o homem que está lá é Dr. Fell.

A partir daqui, ele inicia sozinho suas investigações. A câmera o focaliza em

sua residência pesquisando nos arquivos do FBI. Usando sua senha de

investigador, ele localiza o banco de dados com os dez maiores inimigos dos

Estados Unidos, Hannibal Lecter é um deles. O inspetor Pazzi decide trabalhar

sozinho para receber a recompensa que Verger oferece por informações sobre

Hannibal Lecter. As necessidades financeiras do inspetor o levam a perseguir o

prêmio e consequentemente Hannibal Lecter ou Dr. Fell.

2.8 O final de Hannibal

Como dissemos anteriormente, Verger contrata Krendler para ajudá-lo a usar

Clarice como isca para atrair Hannibal. Porém todos os inimigos, ou melhor, os

perseguidores do ex-prisioneiro acabam mortos. Clarice na última sequência é salva

por Lecter e sai com ela nos braços como um genuíno herói.

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A câmera os mostra em uma casa, as imagens indefinidas sugerem que as

mesmas são provenientes do ponto de vista de Clarice que está sob o efeito de

anestésicos. Quando ela acorda está vestida com uma roupa de festas, porém está

cambaleante, ainda sob o efeito dos remédios que Hannibal lhe havia aplicado

durante a operação.

Além de salvar Clarice, Hannibal oferece a ela um último jantar que parece de

despedida ou de celebração, pois estão no dia 04 de julho. Ele já tinha tudo

planejado, a câmera mostrou enquanto fazia compras, emprestou alguns

instrumentos de um hospital, transportou inclusive uma cadeira de rodas. Depois

descarregou tudo em uma casa a beira de um lago. Essas informações ficaram

pendentes. Somente nesse final de filme e que elas se ligaram ao resto da história.

Durante o jantar, Hannibal olha frequentemente para o relógio. Tal fato sugere

que ele espera por alguma coisa. A refeição é bastante inusitada: o cérebro de

Krendler, o maior inimigo de Clarice.

Hannibal: Se pudesse, me privaria da minha vida, não é?

Clarice: Não da sua vida.

Hannibal: A minha liberdade. Tiraria isso de mim. E se o fizesse, acha que a

receberiam de volta? O FBI? As pessoas que despreza tanto quanto elas a

você? Eles lhe dariam uma medalha, Clarice? Colocaria num quadro e

penduraria na parede para olhar e lembrar da sua coragem e

incorruptibilidade? Para isso, só precisa de um espelho?

O diálogo mostra que Hannibal reconhece que Clarice foi a única pessoa que

não se deixou corromper pelo dinheiro. Com o fim da refeição, Hannibal empurra

Krendler, que está em uma cadeira de rodas, para fora da sala de jantar.

O espectador já foi avisado pela câmera que os policiais estão chegando, eles

se aproximam em silêncio, parece que não querem perturbar o encontro entre Lecter

e Clarice.

Enquanto eles não chegam, Hannibal prende Clarice à geladeira e a beija.

Uma lágrima corre pelo rosto dela enquanto o prende a ela com as algemas. Para

fugir, ele precisa cortar um dos pulsos. Em primeiro plano frontal Clarice grita.

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Os policiais chegam, pode-se ouvir o som das sirenes. Em ângulo contra-

plongée, vemos Clarice do lado de fora da casa ao lado do lago, procurando

Hannibal. Em plano geral, do outro lado do lado: fogos de artifícios iluminam os

céus.

Na tomada final, em plano geral, um avião corta os céus. Do lado interno, a

câmera mostra Hananibal em plano aberto, pela tomada da câmera pode-se

observar que ele está com o braço esquerdo enfaixado.

A câmera muda para o ângulo subjetivo e vemos suas mãos abrindo uma

caixa de alimentos. Um garoto oriental que está ao seu lado quer provar da sua

comida. A princípio Lecter diz que ele não vai gostar, depois diz: “Sempre devemos

provar novas coisas.” A iluminação sobre Hannibal vai escurecendo ao final a tela

fica preenchida com o olho esquerdo de Hannibal.

Ilustração 22 - Hannibal Lecter na última cena do filme

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Capítulo 3 - A Personagem em Dragão Vermelho

O objetivo deste capítulo é apresentar e analisar as personagens que povoam

a narrativa fílmica Dragão Vermelho. Para atingir tal objetivo, promo-nos a descrever

os processos de narração, ou seja, os recursos expressivos da linguagem fílmica,

utilizados na construção delas.

É oportuno relembrar que cronologicamente, Dragão Vermelho antecede O

Silêncio do Inocentes e Hannibal, por isso apresenta uma narrativa onde presente e

passado vão sendo intercalados. Dessa maneira, durante a projeção das sequências

veremos o uso constante de recursos narrativos que buscam entrelaçar as três

películas. Por exemplo, em alguns trechos, a câmera faz uso de um processo

narrativo chamado de anisocronia. Segundo AGUIAR E SILVA (2007, p.757), as

anisocronias resultam “do fato do narrador excluir do discurso determinados

acontecimentos diegéticos, dando assim origem a mais ou menos vazios narrativos”.

Em decorrência disso, cabe ao espectador preencher esses vazios recorrendo à

própria memória, ou seja, ao que já foi mostrado nos dois primeiros filmes.

Outra particularidade dessa película é que o espectador sempre sabe mais do

que as personagens, isso contribui para o aumento do suspenso. Além disso, o pré-

conhecimento proporciona ao espectador a dupla emoção, quer dizer, antes da

personagem por antecipação e junto com ela, quando os fatos se concretizam.

3.1 Hannibal Lecter em encontros sociais

Em plano geral distante, é assim que a câmera escolhe mostrar o espaço

cenográfico onde acontece a sequência de abertura do filme de Brett Ratner. Trata-

se de um auditório, na cidade de Baltimore, Maryland, 1980, onde está acontecendo

um concerto musical. A orquestra está sendo conduzida por Lalo Schifrin e executa

o Scherzo – A dança dos Clowns, terceira parte da obra de Felix Mendelsshon,

Sonho de uma Noite de Verão, escrita em 1843. O vocábulo scherzo, que em

italiano significa brincadeira, é um gênero musical de caráter alegre ou lírico em

geral com movimento acelerado.

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Ao refletirmos sobre o tema do trecho da peça apresentado, a festa e a

dança, verifica-se que o mesmo mote se estende da primeira seqüência para a

segunda. A melodia faz a transição entre as duas e chega a confundir o espectador

que a princípio acredita que os dois eventos acontecem no mesmo dia, porém

pequenos detalhes nos fazem refutar essa hipótese. Vejamos como isso é mostrado

pela câmera.

A opção pela tomada em plano geral demonstra que a intenção da câmera

não é descrever o local, mas situar o espectador e as personagens no espaço. Isso

se comprova pela movimentação para frente do equipamento fechando o ângulo de

visão e mudando o foco para os músicos que são enquadrados individualmente.

Além deles, o espectador pode observar também as movimentações do regente da

orquestra.

Passado algum tempo, ainda com o concerto em andamento, a câmera vira-

se para a plateia. A observação da técnica, ou seja, a mudança de ponto de vista, o

travelling para frente e o congelamento da imagem, conduz o espectador a desligar-

se momentaneamente da música e voltar-se para o público, ou mais

especificamente, para Hannibal Lecter.

Logo após a câmera ter localizado Hannibal da plateia, ela passa a mostrá-lo

em alternância com a figura de um dos músicos. Hannibal olha fixamente para o

outro e balança negativamente a cabeça demonstrando sua insatisfação com a

performance do flautista. O quadro a quadro enfatiza a importância dessas duas

personagens nesse trecho, pois todo o resto fica em segundo plano. Além de

Hannibal e do espectador que o acompanha, o regente e outros músicos também

demonstram certo desconforto em relação à falta de competência de tal sujeito.

Não há diálogos. O único som é aquele produzido pelos músicos. O

encerramento da cena acontece com o enquadramento do rosto de Hannibal em

primeiro plano. A transição para a sequência seguinte, como já dissemos, é feita

com o auxílio da melodia que acompanha o corte e o início da próxima sequência.

Ela se inicia com uma tomada externa em plano geral noturno. Em ponto de

vista objetivo, o espectador observa do outro lado da rua uma casa que se destaca

por ser a única que está iluminada. Com um corte, a câmera entra na sala e

descobrimos que se trata da residência de Hannibal Lecter. Ele é acompanhado pela

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câmera e pelo espectador enquanto circula entre seus convidados servindo-lhes

vinho e plagiando Horácio segundo um de seus convidados: “Pense que cada dia

será o último, a hora que não deve esperar virá como uma boa surpresa [...]”.

Ao recitar os versos de Horácio referindo-se a brevidade da vida, Hannibal

está antecipando a diegese e mostra-se consciente de sua condição de

contraventor. Em breve, sua outra identidade de canibal será tornada pública e em

conseqüência disso ele será privado de sua liberdade. Dessa maneira, o jantar pode

ser lido como uma despedida da personagem de sua vida social. Destacamos que

na película Hannibal, ocorre uma situação similar. Hannibal, ou melhor, Dr. Fell se

despede de Florença logo após a apresentação de uma ópera. Ele estava no limiar

de ser descoberto pelo Inspetor Pazzi.

BAKHTIN (2010, p. 124) afirma que a introdução de outros gêneros do

discurso24, a ópera e o poema, pertencentes respectivamente à esfera musical e à

esfera literária, no romance, ou no nosso caso, na narrativa fílmica é uma forma

importante e substancial de introdução e de organização do plurilinguismo na obra.

Além de trazerem outros discursos para o filme, auxiliam na caracterização da

personagem Hannibal Lecter, que vem sendo mostrado a pinceladas. Nesse início

de película vemos a personagem em dois momentos do cotidiano. O primeiro de

caráter mais abrangente socialmente, a ópera; e o segundo de caráter mais íntimo e

festivo, o jantar.

A câmera focaliza as dez pessoas em um ambiente fechado pelos

enquadramentos em plano geral médio. Os mesmos, algumas vezes, são

intercalados com o primeiro plano. Acreditamos que a câmera busca a concentração

do espectador nas personagens e não no espaço onde elas se encontram. Vê-se

que o uso dessa técnica cria uma sensação de intimidade, de aproximação e de

familiaridade entre as personagens envolvidas, é a mais adequada considerando a

pequena quantidade de pessoas presentes no evento.

Segundo BAKHTIN (Ibid., p. 258), nos encontros para refeições ocorre a

liberação da palavra, dessa forma no ambiente familiar criado pela câmera, o

espectador observa a informalidade dos diálogos, haja vista a piada feita por um dos

24

Segundo Bakhtin (2000, p. 279), os gêneros do discurso são “tipos relativamente estáveis de enunciados”

elaborados em determinada esfera de utilização da língua,

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presentes: “Devo dizer, Hannibal, falando pelo resto da horda25[...]”. Ocorre a

interrupção e o homem refaz sua frase “em nome da diretoria da orquestra que seus

saraus são a melhor coisa do ano”. Em seguida, uma das mulheres se diz culpada

por estar se divertindo, enquanto há um músico da orquestra desaparecido. O

cômico do grupo se manifesta novamente: “Posso confessar algo cruel?”. Nesse

momento a câmera onisciente e o espectador fixam-se em Hannibal: os três sabem

o que houve com o músico. ”Não posso deixar de me sentir um pouquinho aliviado”.

A atenção volta-se para o grupo, a câmera quer mostram como eles recebem as

palavras que virão: “Parece horrível, eu sei. Mas era assim26 que o homem tocava”.

A brincadeira sarcástica a respeito do músico de certa maneira “justifica” o

crime praticado por Hannibal se considerarmos que segundo Barney, em Hannibal,

Hannibal Lecter comete seus crimes por dois motivos, quais sejam, prestar um favor

para a humanidade ou livrar-se de pessoas que são rudes.

Os presentes silenciam e isso é quebrado por uma das mulheres que

entusiasmada muda de assunto e questiona Hannibal sobre a refeição que está

sendo servida. A câmera está sob o ponto de vista objetivo: “Hannibal, confesse. O

que é esse amuse-bouche de aparência divina?”. Em tom vitorioso, Hannibal

responde: “Se eu lhe disser, temo que não irá nem provar”, ele abaixa a cabeça e os

outros riem. Hannibal completa: “Bon appétit”. Todos: “Bon appétit”.

Nesse trecho do filme, destacamos que em associação a imagem do

banquete, fato que “libera a palavra”, observamos o riso. Sendo que este último

permeia todo o encontro e incrementa o caráter informal do evento. Segundo

BAKHTIN:

O verdadeiro riso, ambivalente e universal não recusa o sério, ele purifica-o

e completa-o. Purifica-o do dogmatismo, do caráter unilateral, da esclerose,

do fanatismo e do espírito categórico, dos elementos de medo ou

intimidação, do didatismo, da ingenuidade e das ilusões, de uma nefasta

fixação sobre um plano único, do esgotamento estúpido. O riso impede que

o sério se fixe e se isole da integridade inacabada da existência cotidiana.

Ele restabelece essa integridade ambivalente (2010, p.105, grifos nosso).

25

O chiste que brinca com a sonoridade das palavras só funciona na língua inglesa, pois o vocábulo usado para

designar diretoria, board, possui o som muito parecido com horde. 26

A personagem faz outra piada que funciona bem oralmente, uma vez que ele brinca com o som da palavra.

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Da citação de BAKHTIN destacamos a ambivalência do riso, ou seja, o sério e

o cômico que se refletem mutuamente, assim como as identidades das personagens

dessa narrativa que vão se mostrar transitórias, ou seja, em transformação. As

personagens riem, fazem piadas, ironizam tudo e todos. Dessa maneira, “o riso, o

alimento e a bebida vencem a morte” (Ibid., 2010, p. 261)

É com esse clima festivo que a câmera encerra a sequência. Na continuidade

da história, o clima de intimidade é quebrado com a tomada em plano geral da sala

onde aconteceu o jantar, Hannibal está sozinho fazendo a limpeza da mesa. Um

travelling para frente mostra a toalha vermelha sobre a mesa em oposição a uma

xícara branca marcada pela boca de uma das convidadas, um pequeno detalhe que

antecipa a diegese. A personagem trabalha com muita calma e em silêncio.

3.2 Hannibal Lecter e Will Graham – o primeiro encontro

No evento descrito anteriormente as personagens se encontravam em um

ambiente estável e controlado por Hannibal, portanto não havia clima para conflitos.

Nos diálogos não observamos refrações, pois todos compartilhavam das mesmas

idéias. Entretanto, para que Hannibal se mostre verdadeiramente para a câmera, ou

seja, sua concepção de mundo e de si mesmo, é preciso que ele seja colocado no

limiar ou num momento de crise. Por isso, o espectador e a câmera aguardam por

algo que tire a personagem dessa “quietude”.

A mudança acontece com o som da campainha que quebra o silêncio. A

câmera mostra a personagem se deslocando de um lugar para o outro e depois

corta para que aconteça a mudança de espaço. A abertura da porta permite a

câmera apresentar uma nova personagem e mudar bruscamente o tom da narrativa.

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Ilustração 23 - Porta vermelha atrás de Graham. Seria ela um símbolo de Hannibal Lecter?

Em sua fala preocupada o Agente Especial Graham se desculpa por sua

visita inesperada e tarde da noite. Relembramos que a Agente Starling também

costumava visitar Hannibal a qualquer hora do dia ou da noite. Como anteriormente,

isso parece não incomodar Dr. Lecter: “Nós dois somos pessoas noturnas. Entre. O

que você tem em mente?”.

Ilustração 24- Porta da frente da casa do Dr. Hannibal Lecter

A porta quadriculada ou multifacetada, pela qual atravessam feixes de luz, se

fecha atrás deles. O manejo da câmera chama a atenção do espectador para as

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portas. CHEVALIER E GHEERBRANT (2009, p. 734) afirmam que a “porta simboliza

o local de passagem entre dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e o

desconhecido, a luz e as trevas, o tesouro e a pobreza extrema”. Lembram, ainda,

que “a porta se abre sobre um mistério” que em breve será revelado pela câmera.

Após o cumprimento dos dois, a porta se fecha atrás deles. Quando as

personagens retornam à tela, eles estão em outro espaço. O lugar parece um

escritório e ambos estão sentados frente a frente. Em conseqüência desse

posicionamento a câmera os focaliza quadro a quadro, ou seja, de maneira

intercalada.

O diálogo é iniciado pelo agente27, o qual deixa transparecer em seu tom de

voz e postura corporal seu cansaço e desânimo. Além disso, percebe-se que o

policial está inseguro em relação às suas descobertas e anseia por compartilhá-las

com Hannibal. Por esse motivo, Hannibal ganha uma nova identidade: “parceiro”,

“companheiro”, “guru”, “um porto seguro”, “professor”.

Em suma, por conta da influência e dependência que Will Graham demonstra

ter em relação ao outro, fica claro que os dois estão trabalhando há algum tempo

juntos e a câmera transmite um clima de amizade e confiança. Portanto, a relação

entre os dois se mostra harmoniosa.

Nesse fragmento, o foco da câmera é mantido atrás de Hannibal na altura de

seu ombro, assim o espectador vê o outro pelos olhos daquele. Hannibal ouve tudo

atentamente, dessa maneira, demonstra seu interesse no assunto.

Graham: Estivemos na pista errada o tempo todo. Você e eu. Procurávamos

por alguém com algum rancor doentio e algum conhecimento de anatomia:

médico que perderam a licença, alunos que largaram a faculdade, demitidos

do necrotério. (grifo nosso)

Hannibal: A julgar pela precisão do corte e a escolha dos suvenires, sim.

Destacamos que até o momento, a câmera não interferiu na relação entre as

personagens. Ela deixa que tudo se resolva na diegese. Porém, o espectador,

27

Nesse tipo de cena, onde há diálogo, a câmera costuma mudar muito o seu posicionamento conforme sua

intenção em mostrar a reação do falante ou do interlocutor. Por isso, só mencionaremos o movimento de câmera

quando isso for relevante para a expressividade e compreensão do todo.

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conhecedor do passado de Lecter, fica atento a tudo o que está acontecendo,

procurando sinais de mudança no comportamento de Hannibal Lecter.

Graham: É onde estamos errando. Ele não está colecionando partes de

corpos. (grifo nosso)

Hannibal: Então para que ficar com elas?

Graham: Ele não fica com elas... Ele as come. (grifo nosso)

Momentaneamente, após a fala de Graham, a câmera abre para o plano

geral, o rosto de Hannibal está sombreado pela pouca luminosidade que incide

sobre ele. Esse efeito colabora para o aumento da tensão no espectador e na

personagem Hannibal Lecter, pois ambos sentem que Will está se aproximando da

verdade, qual seja, a outra identidade daquele.

É Graham quem continua falando, discorrendo sobre como chegou às suas

conclusões. Percebemos em sua fala que Hannibal conhecia, pelo menos pelo

nome, a esposa do agente “Fomos ver os pais de Molly no Ano Novo e o pai dela

mostrou ao meu filho, Josh, como trinchar um frango assado”.A câmera vira-se para

Hannibal, enquanto o outro continua contando:

Graham: Ele disse: “A parte mais tenra do frango são as ostras em ambos

os lados das costas.”. Nunca havia ouvido essa expressão antes: “ostras”.

Então, de repente, eu me lembrei da terceira vítima, Darcy Taylor. Estava

faltando carne nas costas. Então eu percebi fígado, rim, língua, timo. Todas

as vítimas perderam alguma parte do corpo usada em culinária. (grifo

nosso)

Hannibal: Você já disse isso à Agência?

Notamos que Lecter se conscientiza de que foi descoberto pela sua última

fala. Para o espectador ela tem duplo sentido, pois ele já usou o mesmo tipo de

discurso em outro contexto. Conforme BAKHTIN (2000, p. 404), “toda palavra (todo

signo) de um texto conduz para fora dos limites desse texto. A compreensão é o

cotejo de um texto com os outros textos”, portanto o espectador que viu a segunda

película, Hannibal, entende que por trás de um simples questionamento está a

sentença de morte de Graham.

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Graham não tem consciência disso tudo que observamos, mas notamos que

a partir daqui há uma mudança na entonação de sua fala. Isso se traduz no uso da

primeira pessoa do singular, ou seja, a unidade antes observada parece ter se

rompido: Não, precisava vê-lo primeiro. Mas estou certo sei que estou. Estou

conseguindo pensar como este elemento. (Graham) (grifo nosso)

O trecho grifado confirma com nossa hipótese de que Graham necessita do

aval do outro para seguir com suas investigações. Os motivos que o levam a sentir-

se tão inseguro não ficam claros no momento. Acreditamos que seja o tipo de

relação que há entre os dois de dependência, levando o Agente a buscar a

aprovação do “professor” ou do “tutor” antes de tomar suas próprias decisões.

Como já destacamos, Hannibal reconhece que o outro está prestes a

descobri-lo e por isso muda o tom da conversa. Além disso, suas informações são

relevantes, pois garantem a verossimilhança interna da narrativa fílmica.

Hannibal: É fascinante. Você sabe, como eu sempre suspeitei. Você é

sensitivo.(grifo nosso)

Graham: Eu não sou médium, doutor.

Hannibal: Não, isso é diferente. Tem mais a ver com imaginação artística.

Pode assumir o ponto de vista emocional dos outros mesmo aqueles que o

assustam ou enojam. É um dom perturbador, acho. Eu adoraria tê-lo no

meu divã. (grifo nosso)

As palavras de Hannibal elogiando o outro soam como um lamento, ou um

pedido de desculpas, pois ele não pode confessar que Graham está certo em suas

interpretações dos fatos: ”Algo ainda não faz sentido para mim. Você é o melhor

psiquiatra forense que eu conheço. E de algum modo, em todo esse tempo essa

possibilidade nunca lhe ocorreu”.

Como vimos, o agente se mostra intrigado com o erro cometido pelo

companheiro. Desviando o olhar do outro, Hannibal tenta se justificar.

Hannibal: Eu sou apenas humano. Talvez eu tenha me enganado.

Graham: Você não me parece ser um homem que comete muitos erros.

Hannibal: Sinto pensar que talvez não vá mais gozar da sua confiança.

(olhando para baixo, grifos nossos).

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Nesse excerto, pode-se notar que Graham parece não acreditar que Hannibal

tenha simplesmente errado, entretanto não quer se indispor com o colaborar e

procura desfazer qualquer mal entendido que suas palavras possam ter provocado.

Graham: Não, eu não disse isso. Não sei o que estou dizendo. Estou muito,

muito cansado... Eu quase cheguei lá. (grifo nosso)

Hannibal: Chegará até você. Por que você não volta de manhã? Vou liberar

algum tempo na minha agenda e podemos revisar o nosso perfil. Tudo

bem? (grifo nosso)

Graham: Sim.

Hannibal: Descanse aqui, eu pegarei o seu casaco. Não vou demorar. (com

as mãos no ombro do Agente) (grifo nosso)

Hannibal sente que chegou a hora da verdade e ausenta-se

momentaneamente da sala. Enquanto isso, Graham, seguindo o conselho do outro,

levanta-se da cadeira para relaxar e circular pela sala. Sua movimentação obriga a

câmera a mostrá-lo de costas. É nessa posição que o espectador o observa se

dirigindo em direção a uma grande estante repleta de pequenos objetos e livros. A

câmera focaliza demoradamente cada detalhe que também está sendo visto pela

personagem e pelo espectador. As figuras que estão sendo destacadas parecem ter

um valor apenas decorativo, porém, a insistência da câmera em focalizar cada um

deles deixa o espectador em estado de alerta.

Paulatinamente, a câmera vai mostrando a mão do policial em primeiro plano

acariciando as penas de algumas flechas; segue com seus olhos em travelling lateral

apreciando a pequena coleção mostrada sob o ponto vista subjetivo, ou seja, da

personagem. Nada chama a atenção de Graham, a não ser um livro azul que está

deitado. É um exemplar da Larousse Gastronomique e o inspetor o abre na página

marcada. Em outro contexto a publicação não causaria estranheza e seria apenas

um livro de receitas. Porém dentro da diegese, ele assume um valor de signo e,

portanto adquire um novo sentido, qual seja, a chave para Graham desvendar o

mistério que cerca Hannibal Lecter.

Nesse momento, um travelling rápido para frente coloca a página do livro em

primeiro plano, em seguida é o rosto do inspetor que está em evidência, o que leva o

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espectador a perceber que nesse momento Graham toma consciência de que está

na casa e em companhia do assassino a quem procura. O movimento brusco da

câmera assusta o espectador e inicia a sequência quatro. As imagens em câmera

lenta e focalização em primeiro plano são de caráter dramático.

Graham é atacado por Hannibal Lecter que o atinge no abdômen com um

estilete. O inspetor consegue sacar o revólver, mas não tem tempo de reagir e atirar.

O agressor sussurra ao ouvido do outro algumas palavras que em seu sentido literal,

“não quero que sinta dor” e “lamento” sugerem que Hannibal se importa com o bem

estar do outro.

Não se mexa. Você está em estado de choque. Não quero que sinta dor.

Logo você sentirá a cabeça leve. Depois, sonolento. Não resista. É suave

(ouve-se o barulho da carne sendo cortada) como entrar em um banho

quente. (afunda o objeto cortante contra o outro que se estica e grita de

dor). Lamento que tenha sido assim, Will. Mas todo jogo precisa terminar.

(grifo nosso)

Isso se comprova pela maneira gentil com que o agente é colocado no chão

lentamente por seu agressor enquanto esse último continua falando: “Você é um

garoto extraordinário. Eu admiro a sua coragem... Acho que comerei o seu coração.”

E continua sobre o outro para completar o serviço. Porém, não contava com a

reação do “morto”.

Graham atinge Hannibal com uma flecha. Com isso, este se distancia daquele

para observar o que o atingiu. A câmera acompanha os olhos de Hannibal enquanto

ele olha para o local onde foi agredido. Imediatamente retorna na direção do agente.

Este último mesmo muito ferido dispara contra aquele.

Após vários disparos, Hannibal Lecter cai de costas sobre uma mesa. A

câmera o mostra em primeiro plano de cabeça para baixo com os olhos abertos. Ao

fundo, vemos Graham caído no chão. Destacamos que a expressividade das

imagens é intensificada pela música que acompanha tudo.

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Ilustração 25 - Hannibal Lecter no momento em que agride o Agente Especial Will Graham

A tela fica toda escura, o fade-out é utilizado para a transição entre as

seqüências e o encerramento da primeira parte do filme. Quando a imagem

reaparece, não se sabe quanto tempo passou, pois não há nenhuma referência

temporal. Juntamente com o acompanhamento da apresentação dos créditos iniciais

a câmera e o espectador tomam conhecimento através de um diário daquilo que

aconteceu às personagens após o fade-out.

Relembramos que o diário é um gênero do discurso de caráter subjetivo que é

utilizado para o registro de vivências muito pessoais e que não pressupõe um

receptor. Inserido nesse ponto da narrativa fílmica, o livro, em primeiro lugar, cumpre

o papel de narrador da história, uma vez que ele mostra os acontecimentos

passados. Além disso, é uma forma de apresentação da personagem, conforme

afirmação de BRAIT (1985, p. 62):

Quando a personagem expressa a si mesma, a narrativa pode assumir

diversas formas: diário íntimo, [...]. Cada um desses discursos procura

presentificar a personagem, expondo sua interioridade de forma a diminuir a

distância entre o escrito e o “vivido”. [...] cada página procura expor a “vida”

à medida que se desenvolve, flagrando a existência da personagem nos

momentos decisivos de sua existência, ou pelo menos nos momentos

registrados como decisivos (grifo nosso).

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Os trechos grifados na citação acima dizem respeito a essa nova personagem

que nesse momento da narrativa prefere apresentar-se de maneira indireta, ou seja,

pelo seu diário. Dessa forma, ela tem a nos dizer que os fatos mais importantes de

sua vida estão contidos naquele livro. Portanto, a personagem está de alguma

maneira ligada a Hannibal Lecter e a Will Graham.

As páginas do diário são viradas por seu locutor e ele não quer ser visto. A

câmera focaliza somente as páginas em primeiro plano e assim o espectador pode

identificar as manchetes e as fotografias que acompanham as notícias todas elas

relacionadas com o que acabamos de descrever, ou seja, o encontro.

Além desses fatos narrados, a câmera expõe outros textos e imagens que

não produzem nenhum sentido, ou seja, elas não entram em relação dialógica com o

que está acontecendo no momento: a gravura de uma mulher batendo em uma

criança; uma fotografia com a legenda “avó”, gravuras de animais, a foto de um

garoto com a boca e olhos riscados, um trecho do Apocalipse 12.3, além de uma

figura, a qual chama a atenção pelo ponto de intersecção entre o homem e o

dragão.

Nas páginas seguintes, o diário volta novamente a sua atenção para as

manchetes dos jornais que expuseram a vida dupla de Hannibal Lecter: “Maníaco

servia órgãos humanos aos convidados”, “Diretoria da orquestra de demais no

tribunal”, “Hannibal culpado“, ”Canibal enjaulado para sempre. 09 prisões

perpétuas”. Sobre Will os jornais disseram o seguinte: “Policial herói vai para o

hospício. Motivo: estresse” e com a apresentação dessas duas últimas o livro vai se

fechando “Agente especial se aposenta do FBI”, “Agente deixa a Agência”.

As notícias dos jornais ajudam a câmera a dar um desfecho para o duplo

ataque entre Hannibal Lecter e Will Graham. Além disso, o fechamento do diário ao

final da sequência sugere que os fatos fazem parte do passado e lá devem ser

deixados.

No que diz respeito às personagens, a primeira parte do filme mostra que

Hannibal Lecter mora em Baltimore e leva uma vida dupla, ou seja, ele tem duas

personalidades. Em certos momentos, ele é o colaborador do FBI e homem comum

que freqüenta teatros, concertos e recebe amigos em casa. Em outros momentos,

ele é um assassino que come partes de suas vítimas ou as serve para seus amigos

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em jantares íntimos. Seu verdadeiro eu só vem à tona quando ele é colocado frente

a frente com Will Graham. Ou seja, é na relação do eu com o outro que a

personagem se revela como ponto de vista de mundo e do seu próprio eu.

Hannibal qualifica Will Graham como “sensitivo”. O Dicionário Houaiss28 traz

várias acepções do termo. Destacamos àquelas que se relacionam com o perfil da

personagem:

■ adjetivo

1 relativo aos sentidos e às sensações

2 receptivo a impressões sensoriais

■ adjetivo e substantivo masculino

5 que ou aquele que é muito suscetível

6 que ou aquele que, com facilidade, é emocionalmente atingível

7 que ou aquele que é dotado de poderes parapsicológicos

Portanto, suas reações vão estar sempre aparentes, elas se refletem na sua

maneira de olhar. Por conta de sua sensibilidade, Graham mantém uma forte relação

com sua família e isso se estende para suas relações sociais. A respeito dessa

característica da personagem, destacamos que mais a frente da diegese a câmera

mostra como ele se emociona ao ver uma família almoçando em um restaurante. É

essa imagem que o impulsiona para frente, ou seja, é ela que lhe dá forças para

enfrentar Hannibal Lecter. E por fim, o responsável pela coletânea que narrou os

últimos acontecimentos ainda é desconhecido.

3.3 Will Graham longe do FBI e em nova fase

A história dá um salto para anos depois. A câmera mostra uma bonita

paisagem em tomada panorâmica em ângulo contra-plongée. Uma legenda identifica

o espaço: Marathon, Flórida. Alguns elementos como a luminosidade, o canto dos

pássaros e o barulho do mar sugerem que o equilíbrio foi restabelecido. Porém, a

harmonia é quebrada pelo ruído dos pneus de um carro que desliza sobre o

cascalho que recobre a estrada.

28

Disponível em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=sensitivo+&stype=k. Acesso em 13 dez 2011.

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O veículo é mostrado em primeiro plano e isso o isola do resto do lugar. Ele

só se enquadra na paisagem, ou seja, é mostrado em plano geral distante, quando

estaciona na porta de uma casa. A câmera corta e focaliza um barco, onde estão

uma criança e um adulto. O menino chama a atenção do pai para a pessoa que

chega. O espectador já identifica Will Graham que observa o visitante se aproximar.

A câmera deixa em elipse os cumprimentos iniciais, pois ambos dispensam

apresentação para o público. Quando focalizados novamente, já estão sentados

lado a lado e vão direto ao assunto. Nesse momento, eles são mostrados de costas

e à sua frente está a família de Graham (a esposa e o filho) e a bela paisagem.

Pensamos que tal tomada busca enfatizar a ligação que há entre Graham e sua

família. Esse novo elemento é introduzido nessa narrativa fílmica e veremos no

decorrer da diegese que ele se associa ao perfil do assassino que destrói famílias

inteiras.

Com outro corte a câmera vira-se de frente para eles e fecha o plano,

portanto os dois são vistos mais próximos. Isso muda o tom da conversa, ou seja,

deixa-a com um caráter de mais intimidade. Limitando o campo de visão a câmera

sugere, também, que a conversa não deve ser ouvida pelos outros.

O visitante é Jack Crawford, que foi o guru de Clarice Starling. Eles

conversam sobre os recentes assassinatos nas cidades de Atlanta e Birminghan. O

criminoso matou as duas famílias em noites de lua cheia, ele não deixa impressões

digitais, abusa sexualmente das vítimas. Crawford o chama de “anormal”.

O real motivo da visita de Crawford é que ele precisa da ajuda de Graham,

pois o considera mais experiente e menciona a maneira “diferente” do outro pensar.

Para persuadi-lo, lhe mostra a foto das famílias mortas. Nesse momento, Graham

troca olhares com sua esposa e a câmera focaliza o rosto de Crawford em primeiro

plano sugerindo que é deste último a palavra final, ou seja, Graham vai ajudá-lo.

Embora já tenha tomado sua decisão, à noite, Graham conversa com a

esposa, Molly, sobre voltar a trabalhar. Os dois são mostrados em um momento de

intimidade, uma vez que, a cena acontece no quarto do casal. Enquanto tenta

convencer a esposa de que ele tem experiência e por isso pode ajudar a salvar

famílias, a câmera mostra os dois em posições opostas, ou seja, em quadros

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diferentes. Tal posicionamento da câmera sugere a relutância da esposa em aceitar

a ideia do marido.

A câmera auxilia na argumentação contrária de Molly, pois focaliza a enorme

cicatriz no abdômen de Will, descoberta no momento em que ele despe a camisa.

Dessa forma, a expressividade da cena se relaciona com essa marca, que tanto a

família quanto o espectador sabem que resultou do embate daquele com Hannibal.

Portanto, nesse contexto, a cicatriz adquire caráter de signo, simbolizando o medo,

ou seja, o principal argumento da esposa. Por outro lado, ela, assim, como o FBI,

confiam que a experiência do marido pode ajudar. As palavras de Graham não

permitem réplicas: ”Pode ser que eu os ajude a salvar algumas vidas... Como

poderia dizer não?”.

Nesse momento, Graham usa o discurso do outro, ou seja, repete as palavras

que de Crawford sem refração. Assim, está consciente que ao assumir a ideologia

do sistema, está abdicando de seu eu, de sua família, de seu bem estar; em favor de

seu trabalho, de outras famílias as quais ele pode ajudar a salvar. Por outro lado,

significa a volta dos riscos, de mais cicatrizes e do deixar matar-se novamente.

A câmera corta para a esposa, que se levanta e se dirige para junto do marido

demonstrando sua concordância. Esse movimento sugere a tomada de decisão e o

profundo entendimento. Dessa maneira, a partir daqui, os dois estão sentados na

cama e assim a câmara os mostra no mesmo quadro. Graham continua dizendo

que: “Esse jamais me verá ou saberá o meu nome”.

Considerando o que se conhece do ex-inspetor, essa fala soa mais como um

diálogo interior, ou seja, ele próprio tenta se convencer de que conseguirá manter-se

a uma distância segura daquele a quem procura. Porém, assim como ele, a esposa

demonstra sua dúvida em relação a essa promessa. Isso se comprova pela maneira

como ela o encara sem dizer nada. “Só vou ajudar a encontrá-lo. Os policiais vão

prendê-lo, não eu”. A mulher balança a cabeça negativamente. “‘Estarei na

retaguarda, Molly, eu prometo”. A esposa responde ironicamente: “Nunca fará isso.

Eu te conheço”.

Nesse momento, ele a chama para si dizendo: “Deixa disso. Venha cá”. Os

dois se abraçam indicando a harmonia entre o eu e o outro. A diegese é acelerada.

Já é de manhã e Graham se despede da família. Ele promete voltar em alguns dias,

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porém os suspiros de Molly demonstram que ela sabe que isso não vai acontecer.

Ele entra no carro e a câmera mostra o veículo se afastando deles.

3.4 Hannibal Lecter e Will Graham – o (re) encontro

Graham inicia seu trabalho e rapidamente descobre evidências que auxiliam o

FBI a montar o perfil do assassino, que é apelidado de Fada dos Dentes. O

criminoso foi chamado assim porque ele morde suas vítimas. A marca que ele

deixou em uma delas levou os policiais a descobrirem que sua mordida é única e

conseguiram algo para incriminá-lo caso seja apanhado. Isso tudo, porém não

satisfaz Graham que se acha incapaz de achá-lo e prendê-lo.

Como sabemos, Graham se mostrou muito inseguro para solucionar seus

casos sem o aval de Hannibal. Por isso, veremos no decorrer da diegese a maneira

como Crawford sugere a Graham que procure a ajuda de Lecter.

Isso acontece após uma entrevista coletiva para a imprensa onde eles

prestaram contas das investigações. Graham e Crawford tomam café em um bar. A

câmera os mostra em primeiro plano, os dois conversam sobe o caso. No diálogo

que transcrevemos percebemos que Graham está muito contrariado, que ele

gostaria de ter ajudado mais, porém prefere ir para casa.

Graham: Não tenho a menor ideia de quem seja o cara. Eu só dei as linhas

gerais. Ele não tem rosto para mim.

Crawford: É o que disse sobre Garrett Hobbs, lembra? E você o descobriu.

Graham: Não, eu não.

Na interação face a face, percebemos que há um embate entre o sistema,

que é representado por Graham, e o pai de família, pelo ex-agente Graham. A

câmera mostra que Crawford está ocultando alguma coisa do outro. Isso é

evidenciado pela maneira que olha para seu interlocutor. Por isso, a câmera e o

espectador ficam atentos, esperando por alguma movimentação diferente de

Graham.

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Crawford: Não?

Graham: Não, estava travado com Hobbs... (silêncio) Eu tive ajuda...

Crawford: De Lecter?

Graham: Pois é...

Nesse momento, Graham toma consciência daquilo que deseja Crawford e

por isso, refrata: “Jack, não jogue comigo. Não faça isso. Só me diga o que tem em

mente”. Crawford tenta contornar a ira do outro, porém sua expressão corporal o

denuncia: “Acho que talvez tenhamos um recurso a utilizar”.

A reação de Graham é explosiva: “Era isso? Você queria me pedir isso o

tempo todo?”. Crawford tenta amenizar e diz em fala tranqüila:

Não fique bravo comigo. Só faço o meu trabalho. Se conhecer algum atalho

melhor me avise. Se achar que há alguma chance dele falar comigo, eu irei

sozinho. Se não puder, Deus sabe que entenderei (grifo nosso).

Pelo primeiro termo grifado, notamos que Crawford incorpora o discurso da

Instituição, ou seja, ele se coloca no lugar do outro. Dessa maneira, demonstra que

na categoria do eu ele faria de modo diferente. Quer dizer, em sua fala está implícito

que agiria de outra forma em uma situação que não se relacionasse ao seu trabalho.

Sobre o segundo termo grifado, destacamos que Crawford confere ao outro

toda a responsabilidade sobre o caso, em outros termos, “se você mandar eu vou”, o

que nos parece incoerente, pois trabalham em conjunto. E por último, Crawford

clama por uma Instituição espiritual, dessa forma insinua a sua incapacidade de

resolver o problema racionalmente.

A câmara vira-se para Will. Ele olha para baixo e depois para frente. Dessa

forma, é sob o ponto de vista de Will que vemos em uma mesa um pai e uma mãe

alimentando os três filhos pequenos. Com a apresentação dessa imagem, isto é, da

família reunida, fica claro ao espectador que Will aceita conversar com Hannibal

Lecter. Dessa forma, novamente é a câmera que responde por Will, ou seja, ele não

verbaliza sua decisão.

Uma tomada externa em plano panorâmico mostra o Hospital Estadual e

Prisão Psiquiátrica de Baltimore. Uma voz em off, que é de uma personagem da

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ação, faz a transição entre as seqüências. Destacamos que muitos trechos dessa

sequência vão estar em relação dialógica com o filme O Silêncio dos Inocentes, pois

o espaço da diegese é o mesmo. Além disso, Hannibal Lecter é a mesma

personagem e Graham está em posição similar a de Starling.

Com um corte, a câmera entra no hospital. A voz em off é do Dr. Chilton, a

quem o espectador já conhece das películas anteriores. Ele está olhando para Will

e, fazendo uso de seu peculiar tom irônico, pede a Will que interceda junto a Lecter

no sentido de que este responda a alguns questionários. Em sua argumentação, Dr.

Chilton expõe a fragilidade de seus métodos psicológicos, pois afirma que Hannibal

os transforma em origami.

Graham está consciente de que está ali por outro motivo, ou seja, precisa

impedir que outras famílias sejam mortas por Fada dos Dentes. Para ele não

interessa analisar Hannibal Lecter e assim responde que precisa sair dali

rapidamente para voltar para Atlanta. Dr. Chilton, que esperava a colaboração do

outro, mostra-se contrariado e procura rapidamente levar o visitante para a cela de

Hannibal. Entretanto, pouco antes de Graham passar pelas últimas portas que o

levam até Hannibal, Dr. Chilton tenta novamente. Dessa vez, usa a linguagem da

praça pública: “Dane-se cara. Você deve ter algum conselho. Você o pegou. Qual foi

o seu truque?” (grifo nosso).

Graham é mostrado pela câmera sob o ponto de vista do outro: “Eu o deixei

me matar”. A resposta do agente denota que ele atingiu o nível máximo de risco, ou

seja, chegou próximo da morte. A câmera volta-se rapidamente e mostra o rosto do

Dr. Chilton marcado por uma expressão de espanto. A reação do diretor às palavras

daquele indicam que há uma mudança na forma como o Dr. Chilton enxerga o outro.

Percebe-se que ambos estão em um momento de crise: Graham está ali para

reencontrar Lecter e o diretor precisa entrar na mente do prisioneiro. Portanto, diante

da revelação de Graham, Dr. Chilton conscientiza-se de que o outro a sua frente é

alguém que sente, se emociona e morre. A câmera encerra o diálogo entre os dois

de maneira brusca, pois vemos e ouvimos as pesadas portas se fecharem atrás de

Graham.

Com a continuação da história, a câmera mostra que Will inicia sua

caminhada pelo corredor que leva até Lecter. A dramaticidade do momento é

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sugerida pelo uso do ponto de vista da personagem. Dessa maneira, o espectador

vê o estreito corredor com paredes de pedras que ele terá de percorrer. Muito

lentamente, Graham transpõe a distância que o separa de Lecter. O espectador, ao

caminhar com ele, observa tudo ao redor. Ele precisa passar pela cela de outros

três prisioneiros, somente um deles é mostrado, porém nada acontece. O silêncio do

lugar é quebrado pelo caminhar de Graham. Isso tudo ajuda a criar um clima tenso,

o tempo da diegese parece estar congelado.

Quando, afinal, Graham chega a seu destino, fica frente a frente com

Hannibal Lecter. Devemos considerar que a vida os colocou em posições opostas e

por isso a câmera deixa claro que há uma tensão, que ambos estão inseguros e

temerosos. Além disso, observamos que a personagem Hannibal Lecter é mostrada

em primeiro plano, mas não em primeiríssimo plano, como na película O Silêncio

dos Inocentes, o que causava uma impressão de gigantismo, monstruosidade.

Dessa forma, a imagem da câmera enfatiza o enfraquecimento da personagem

Hannibal Lecter que se reflete em sua fala, como veremos em seguida.

Hannibal se mostra inconformado com o fato de ter sido pego, ou seja, ele

parece não acreditar que o outro é melhor que ele. Isso se comprova pelo uso do

termo leigo que, segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss29, significa “que ou aquele

que é estranho a ou que revela ignorância ou pouca familiaridade com determinado

assunto, profissão etc.; desconhecedor, inexperiente”.

Lecter: Você diz ser leigo. Mas foi você que me pegou. Não foi, Will. Sabe

como você conseguiu? .

Will: Tive sorte.

Lecter: Não acho que você acredita nisso (grifo nosso).

Nesse contexto é Graham quem precisa provocar a palavra do outro, para

conseguir completar sua missão, qual seja, obter informações sobre Fada dos

Dentes. Para tanto, ele tenta dissuadir Lecter oferecendo-lhe algumas regalias:

livros, computador, ou seja, coisas de que este último gosta. Além disso, Graham

sabe como suscitar a ira do outro: “Achei que gostaria do desafio. Saber se é mais

29

Disponível em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=leigo&stype=k&x=11&y=7. Acesso em: 13 dez

2011.

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esperto que a pessoa que estou procurando” (grifo nosso). A isso Lecter responde

indignado: “Então, está insinuando que é mais esperto que eu, pois foi você quem

me pegou” (grifo nosso).

Graham: “Sei que não sou mais esperto que você.”

No primeiro contato entre os dois, percebemos que há uma mudança do tom

do diálogo. Entre eles há uma barreira física e outra que não é visível: o medo. A

câmera mostra Hannibal enquanto ele pergunta de maneira áspera, procurando

respostas para sua derrota:

Hannibal: Então como você me pegou?

Graham: Você estava em desvantagem.

Hannibal: Que desvantagem?

Graham: Você é louco. (grifo nosso)

Segundo o Dicionário Eletrônico Aulete30, o adjetivo louco remete a pessoa

que “1. Que sofre de perturbações psíquicas, que não está em seu juízo perfeito. 2.

Que não é razoável, que contraria a razão, sendo, por isso, surpreendente, ou

absurdo, ou arriscado; insensato.” Portanto, pelas definições apresentadas Graham

desqualifica o outro ao chamá-lo de louco, colocando-o em uma posição inferior, de

irracionalidade e de acabamento.

Um longo silêncio segue a fala de Graham, ou seja, Hannibal não responde

prontamente. Parece estar sob choque. Passado algum tempo, ele pede os arquivos

que estão com Graham e um recesso de uma hora para poder examiná-los e emitir

sua opinião.

Desse re-encontro entre os dois, concluímos que as personagens buscam

atacar o ponto frágil um do outro, ou seja, a loucura e a pouca experiência. Medo e

loucura (o louco é um outro eu) se misturam expondo a fragilidade das duas

personagens. Do cotejo deste encontro com o primeiro analisado no capítulo 3.2,

páginas 95-104, destacamos a quebra da consonância que havia entre eles. Os dois

entram em desacordo, depois que Will descobre a verdadeira identidade de Lecter,

em conseqüência “da perda da inocência da inconsciência que permitia ao homem

30

Disponível em http://aulete.uol.com.br. Acesso em: 05 nov 2011.

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formar um todo” (BRAVO, 2005, p. 271) eles se mostram cindidos, enfraquecidos e

esfacelados.

Durante o intervalo, a câmera mostra imagens de Graham em ângulo contra-

plongée. Esse ângulo sugere a degradação da personagem; ele transpira muito,

solta o nó da gravata e retira um café em uma máquina. Pelos elementos mostrados

pela câmera, Graham fez um tremendo esforço para conseguir encarar Lecter.

Após o tempo de uma hora, ele já é mostrado sentado à frente de Hannibal

ouvindo o que este pensa sobre o assassino. Nesse momento, Lecter fica próximo

ao vidro e o tom hostil expressa sua avaliação apreciativa em relação a Graham:

Você fede a medo com essa loção barata. Você fede a medo, Will, mas

você não é covarde. Tem medo de mim, e mesmo assim, veio. Você teme

esse garoto tímido, mas ainda assim o procura. Você não entende, Will.

Você me pegou porque somos parecidos.

Sem nossa imaginação, seríamos como qualquer idiota. O medo é o preço

do nosso instrumento. Mas vou ajudar a suportá-lo.

Segundo BRAVO (Brunel et al., 2005, p. 271), “a consciência humana, com

sua capacidade de desdobramento, seu poder de imaginar, torna-se fonte de terror”.

Em decorrência disso, no medo encontra-se também o embate do ser e do não-ser,

pois nem Lecter nem Will querem ser um a cópia do outro. Segundo BAKHTIN

(2000, p. 46), “uma identificação com o outro que acarrete a perda do lugar que

somos os únicos a ocupar fora do outro é quase impossível e, em todo caso,

totalmente desprovida de utilidade e de sentido”. Em outros termos, Graham está

consciente de que é parecido com Hannibal, porém, também tem plena certeza de

que não é como ele e que não deve se confundir com ele.

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Ilustração 26– Hannibal e Will Graham em seu reencontro

Portanto, o Agente precisa buscar sua independência em relação ao outro,

ou seja, ele deve extrair as imagens, que dão o acabamento ao outro, do seu

excedente de visão31, de sua vontade e de seus sentimentos e, assim, pensar por si

mesmo e reencontrar o seu eu.

Nas próximas seqüências, a câmera mostra ao espectador como é o trabalho

investigativo de Graham. Em uma de suas diligências, na residência da família

Jacobi, em Birmingham, Alabama, ele encontra um galho quebrado que o leva até

um desenho gravado em uma árvore. Will assume que tenha sido feito pelo

assassino: “Você é orgulhoso. Tinha de assinar a sua obra”.Nessa fala, o inspetor

presume que o criminoso sente satisfação pelo que faz, ou seja, ele gosta de matar.

Porém, o agente não consegue se desvincular do outro, pois a cada pequeno

avanço em sua investigação, a câmera mostra, que ele necessita da ajuda de

Hannibal Lecter. Por isso, ele retorna a prisão para falar com Lecter sobre o

desenho.

As imagens de Lecter mostram que ele já está se recuperando de sua crise

de insegurança e demonstra sua superioridade intelectual e cultural ao recitar um

trecho do poema de William Blake, Auguries of Innocence (Augúrios de Inocência),

que diz “Sabiá de peito vermelho enjaulado/ Enfurece os céus”. O poema será

retomado pela personagem na sequência seguinte. Nesse momento, a pista leva o

31

Conforme BAKHTIN (2000, p. 43), “o excedente da visão estética, que consta de minha visão de meu

conhecimento a respeito do outro, é condicionado pelo lugar que sou o único a ocupar no mundo: neste lugar,

neste instante preciso, num conjunto de dadas circunstâncias – todos os outros se situam fora de mim.”

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inspetor até uma biblioteca. As descobertas que ele faz o aproximam do Fada dos

Dentes – o assassino.

3.5 Dragão Vermelho ou Francis Dolarhyde

Na seqüência seis, a câmera não mostra a personagem, mas sugere, por

meio das reações de Graham ao olhar para as fotos das famílias mortas, que aquele

é um assassino cruel. Ele é “um anormal”, segundo Crawford, não têm digitais, pois

usa luvas e calça sapatos número 45. Entretanto, têm-se amostras de sangue,

sêmen e saliva do assassino, pois ele abusa de suas vítimas.

Outros elementos sobre a personagem vão surgir na seqüência dez. Os

mesmos se relacionam com o fato do criminoso morder as vítimas, por isso os

peritos conseguiram um molde de sua arcada dentária. Além disso, sabe-se que ele

não deve interromper sua jornada criminosa, pois isso faz dele “um Deus”, segundo

palavras de Graham.

Mais à frente, na seqüência dezenove, Graham encontra no local do crime

uma marca deixada pelo assassino. Tal sinal, que é uma letra chinesa, provoca um

novo encontro entre Will e Hannibal. Como conseqüência da reunião, Graham chega

até a imagem de William Blake. E assim, a câmera mostra que o policial está bem

próximo da identidade do criminoso, pois na sequência seguinte, ela o focalizará em

sua casa.

O assassino começa a ser mostrado ao espectador na sequência vinte, mais

ou menos no meio da narrativa fílmica. A câmera deixa de dar ênfase à investigação

de Graham e a partir de um plano geral e ângulo plongée focaliza a entrada da

Clínica de Repouso Dolarhyde, conforme dizeres de uma placa presa no muro. Não

há portão e por isso a câmera entra e focaliza de longe uma longa alameda cercada

por árvores, que estão todas sem folhas. Tal imagem transmite uma sensação de

abandono e solidão. Em seguida, a câmera passa a focalizar o chão e caminha

rapidamente por uma espécie de passeio. O foco da câmera só muda quando um

espelho d’água mostra uma casa. Tudo é visto muito rapidamente, porém o

abandono pode ser notado: o chafariz está sujo, o jardim malcuidado e a casa

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precisa de uma manutenção. Entretanto, alguém mora lá, pois há um veículo

estacionado na porta da residência.

De maneira apressada, o artefato chega até a porta da frente e entra. Os

movimentos rápidos da câmera sugerem que a vida do morador passa muito

rapidamente, não há detalhes significativos a serem destacados. Além disso, todos

os elementos remetem ao passado, inclusive o diálogo que acontece entre uma

criança e sua avó. Aos poucos o espectador percebe que a discussão tem caráter

de flashback, uma vez que não há personagens, e as vozes não correspondem às

imagens mostradas.

Segundo BAKHTIN (2000, p. 378), o sujeito se forma a partir da interação

com o outro. Dessa maneira,

Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em

minha consciência, vem-me do mundo exterior, da boca dos outros (da mãe,

etc.), e me é dado com a entonação, com o tom emotivo dos valores deles.

Tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros: deles recebo

a palavra, a forma e o tom que servirão para a formação original da

representação que terei de mim mesmo.

Pela citação do teórico, deduzimos que ao trazer para o presente as vozes do

passado, a câmera busca mostrar ao espectador como Francis Dolarhyde se vê

como adulto. As palavras negativas da avó, quer dizer, do outro, ainda lhe causam o

mesmo impacto. Dessa maneira, conclui-se que a decadência do espaço físico

reflete a decadência moral da personagem que se mostra presa ao passado, isto é,

ao outro que era submetido às grosserias e ameaças verbais da avó.

Vovó! Vovó!

Francis! Nunca vi uma criança tão suja e repugnante como você. Olha para

você? Está encharcado. Saia da minha cama [...]

Vovó, está me machucando!

Cale a boca, seu animalzinho imundo!

Neto ou não, deveria ter te colocado num orfanato.

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A câmera prossegue com sua apresentação da personagem, por isso sobe as

escadas e entra em um dos dormitórios. Nesse momento, a voz da criança some e

em seu lugar ouvimos uma voz masculina adulta que está abafada e que responde a

avô. A última fala reflete o desejo de se fazer o que o outro quer. Dessa maneira,

aquele que está sendo dominado busca fugir dos castigos:

Vovô, não me machuque.

Tire seu pijama e limpe-se. Rápido! Agora pegue a tesoura na caixa de

remédios.

Por favor, não. (Ouve-se gemidos no presente).

Peque aquela coisa imunda na sua mão e estique.

Não, vovó (no presente).

[...].

Serei um bom garoto. Eu prometo.

Finalmente, a câmera mostra a pessoa que fala, porém seu rosto está oculto

por uma máscara, sua respiração está ofegante por causa do esforço físico. O

homem sem face, o espelho quebrado e as marcas dos dentes deixadas nas vítimas

indicam que a personagem está em conflito, que busca firmar sua identidade.

Nessa primeira tomada do assassino, a câmera antecipa a diegese ao

acompanhar outro momento em que o artefato focaliza as mãos daquele. Ele abre

um cofre e retira de lá um grande livro, cuja primeira página diz “Vejam um grande

Dragão Vermelho”. As letras estão escritas sobre a figura de Willian Blake intitulada

O grande Dragão Vermelho e a mulher banhada de sol. Um recorte de jornal que

mostra a fotografia de Will Graham é colado no livro.

Ao final da sequência, as páginas do livro são folheadas e a câmera focaliza

várias fotografias de Hannibal Lecter, cujos olhos são acariciados suavemente pelo

homem desconhecido. Esse ato simboliza que o desconhecido se espelha em

Hannibal e na continuidade da história veremos que ambos se juntam para matar

Will Graham.

Algumas sequências à frente, a verdadeira identidade do assassino é

revelada. Portanto, os filmes trabalham o tempo todo com a questão da identidade,

fulcral para o estudo do duplo.

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Figura 27 - Dragão Vermelho

Como Dragão Vermelho percebe-se que a personagem sente-se mais segura,

ele se esqueça de sua dificuldade e isso se reflete em seu discurso. Segundo

BAKHTIN:

O tom não é determinado pelo material do conteúdo do enunciado ou pela

vivência do locutor, mas pela atitude do locutor para com a pessoa do

interlocutor (a atitude para com sua posição social, para com sua

importância, etc), (2000, p. 396, grifo nosso).

Dragão Vermelho tem uma atitude forte frente ao seu interlocutor, no entanto

Francis Dolarhyde é justamente o contrário. Trabalhava no Laboratório Chromalux e

quase não tem amigos. A câmera o focaliza pela primeira vez de costas e depois no

escuro, dessa maneira enfatiza o não reconhecimento do eu da personagem e seu

medo de se apresentar frente ao outro.

Francis, que possui uma cicatriz no lábio, sente-se bem ao lado de Reba,

personagem deficiente visual, dessa maneira, a diegese enfatiza o medo que aquele

tem de sua aparência e o desejo de não ser visto. Reba percebe isso e diz: “Posso

ouvir que você teve algum tipo de reparo de palato. Mas [...] você fala muito bem.”.

Porém, a vida dupla de Francis não tem mais volta, e o relacionamento deles é

rapidamente interrompido pela morte daquele.

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3.6 Hannibal Lecter e Will Graham – na jaula de exercícios

Will Graham visita novamente Hannibal. Desta vez, os dois se encontram na

“jaula de exercícios” do prisioneiro. O local é bastante sugestivo e revela que o

prisioneiro se encontra em uma nova fase.

Nesse momento, já se observa a coisificação de Lecter, ou seja, ele já não vê

Graham como outra consciência, pois observamos que ele deixa de provocá-lo com

o intuito de levá-lo a autoconsciência. Os dois caminham lado a lado e a câmera os

mostra em plano geral. Graham consulta Hannibal sobre o desenho que viu na

árvore. Trata-se de uma peça do jogo majongue que marca a figura do Dragão

Vermelho. Essa informação faz com que Lecter retome os versos de Blake: “Sabiá

de peito vermelho enjaulado/ Enfurece os céus”.

Como comentamos anteriormente, nessa sequência a personagem Hannibal

Lecter está diferente. As tomadas da câmera, quer dizer, as focalizações em

primeiro plano, sugerem que ele já restabeleceu sua autoconfiança, ou seja, ele está

ficando mais forte. Podemos constatar que esse fortalecimento é também físico, haja

vista a ilustração abaixo.

Além do aspecto físico, destacamos uma mudança na sua maneira de falar.

Relembramos que no capítulo 3.4, páginas 107-114, havíamos destacado que o

enfraquecimento da personagem era perceptível em sua voz. No entanto, aqui

observamos o oposto, o uso da ironia demonstra que ele está se sentindo

revigorado: “Já ficou de peito vermelho, Will? Claro que sim! Nunca sentiu uma onda

de pânico repentina?”.

Ilustração 28 - O ataque repentino de Hannibal Lecter

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Nesse momento, Hannibal, que está acorrentado, se projeta para cima do

outro. Não o alcança, mas o ruído e o movimento do prisioneiro assustam Will e

assim o faz com o espectador. O agente sente medo e olha para o guarda que os

observa de longe. Em seguida, acontece um longo diálogo entre eles. Do mesmo,

decorre a decisão de Lecter de matar o outro:

Hannibal: Sim, é o medo do qual falávamos. É preciso experiência para

dominá-lo. Você pressentiu quem eu era quando estava cometendo o que

chama de meus “crimes”.

Graham: Sim.

Hannibal: Você se feriu não por uma falha de percepção ou do instinto, ma

porque falhou em não agir até ser tarde demais.

Graham: Pode dizer isso.

Hannibal: Mas agora você está mais sábio.

Graham: Sim.

Hannibal: Imagine o que faria, Will. Se pudesse voltar no tempo?

Graham: Colocaria duas balas na sua cabeça antes que pegasse o estilete.

Hannibal: Muito bem, Will. Sabe de uma coisa, acho que estamos

progredindo...

Os dois são despertados pela campainha avisando que o tempo da visita

chegou ao fim. Hannibal continua suas provocações “Minhas lembranças para Molly

e Josh.”. Após essa conversa os dois não se encontram mais.

A próxima sequência mostra em montagem alternada que Hannibal retorna a

sua cela e lhe foi concedido o direito de falar ao telefone com seu advogado. Porém

ele o usa para outro fim, isto é, fazendo uma ligação não convencional, em outras

palavras, ele usa não o discador e sim o botão de desconectar. Por meio dessa

ligação inusitada ele contata o Departamento de Psicologia da Universidade de

Chicago com o objetivo de conseguir o endereço particular do inspetor Graham.

Facilmente ele convence a recepcionista e consegue o número desejado. A

informação é repassada para Fada dos Dentes, por meio de anúncio pessoal

publicado em um jornal, que atenta contra a vida da família de Graham.

Graham, sem desconfiar de nada, segue as pistas de Lecter. Dessa forma,

ele é mostrado em uma biblioteca procurando referências dos versos citados por

Lecter. Ao final de suas pesquisas, ele chega ao Dragão Vermelho de William Blake,

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que para o espectador não é novidade. Essa e outras descobertas vão levá-lo ao

assassino, cujo nome muda para Dragão Vermelho, conforme descrevemos no

capítulo 3.5, páginas 114-117.

3.7 O final circular de Dragão Vermelho

A sequência final do filme Dragão Vermelho sugere que Hannibal Lecter, após

ter falhado na sua tentativa de matar Will Graham, conscientiza-se de sua condição

de prisioneiro e compartilha isso com esse último por meio de uma carta. Apoiando-

se nas lembranças, utilizando o fluxo de consciência e o monólogo interior –

apresentação direta e imediata, na literatura narrativa, dos pensamentos não falados

de uma personagem, sem a intervenção do narrador – ele faz um relato comovente

de suas experiências. Seu olhar voltado para o passado cria um discurso de reflexão

sobre sua condição de prisioneiro. Sua voz ecoa na sequência final num grito de

contestação e liberdade provocando o despertar de consciência sobre si e sobre o

mundo.

O texto é lido pelo remetente e a câmera inicia sua focalização em plano

distante e ângulo plongée mostrando o corpo de Will após ter sido agredido por

Francis Dolarhyde: “Meu caro, Will:

Você já deve estar curado. Pelo menos, do lado de fora.

Espero que não esteja muito feio “.

Nesse trecho inicial, destacamos a relação das personagens com a marca na

pele. Hannibal está em sua cela e a câmera o mostra em plano distante e ângulo

plongée: “Que coleção de cicatrizes você tem. Nunca esqueça quem lhe deu as

melhores e seja grato. Nossas cicatrizes têm o poder de nos lembrar que o passado

foi real”.

Conforme a leitura vai progredindo a câmera movimenta-se para baixo e

assim modificando o ângulo de focalização para o contra-plongée.

Vivemos em uma época primitiva. Não, Will. Nem selvagens, nem sábios. O

meio termo é sua maldição.

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Uma sociedade racional me mataria ou me utilizaria alguma forma.

Você sonha muito, Will? Penso sempre em você.

Antes que a carta seja finalizada, é essa a imagem que o espectador vê.

Ilustração 29- Hannibal Lecter no momento em que encerra a leitura de sua carta

Enquanto o espectador ouve o fechamento da carta, a câmera mostra, em

ângulo plongée distante, Will em um barco com sua família.

Seu velho amigo.

Hannibal Lecter.

Ao final da carta, Will amassa o documento e o joga ao mar. O travelling para

trás da câmera é utilizado, segundo MARTIN (2001, p. 48), para afastar a imagem

“do casal cujo drama familiar acabamos de viver e reintegra os dois protagonistas na

multidão dos espectadores de uma sala de cinema”. Entretanto, o filme não termina

aqui. Uma voz em off chama por Lecter:

Dr.Chilton: Hannibal? Alguém aqui quer te ver. Quer fazer algumas

perguntas. Disse que iria recusar. Uma jovem mulher. Diz que é do FBI.

Mas se quer saber, ela é muito bonita. Direi a ela que você disse não.

Hannibal: Qual é o nome dela?

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Conforme explica Martin, “os primeiros planos terminais buscam manter o

espectador na plenitude do envolvimento dramático, mesmo depois de terminada a

história” (Ibid., p. 141), por isso a ilustração anterior em associação à personagem,

Dr. Chilton, remetem ao filme O Silêncio dos Inocentes, sugerindo o ciclo da vida, ou

seja, a forma circular dos episódios.

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Capítulo 4 – As relações dialógicas em O Silêncio dos

Inocentes, Hannibal e Dragão Vermelho

Nos capítulos precedentes, tratamos do primeiro objetivo da nossa

dissertação, que era analisar o construto da personagem nas narrativas fílmicas O

Silêncio dos Inocentes, Hannibal e Dragão Vermelho. Para cumprirmos nosso

objetivo, foi necessário observar as imagens produzidas pelos movimentos da

câmera, sob a supervisão do diretor, que dão forma ao objeto estético direcionando

o olhar do espectador.

Além das imagens produzidas pela câmera, o meio cinematográfico emprega

outros recursos narrativos, tais como os diálogos, os ruídos, a música e outros

materiais escritos com o intuito de aumentar a expressividade da sequência e assim

conseguir captar a atenção e a emoção do espectador. Entretanto, não foi possível,

pelo teor de nosso trabalho, apresentarmos o detalhamento de cada um dos

elementos que fazem parte do todo da narrativa fílmica. Detivemo-nos, apenas, nos

movimentos de câmera e nas falas das personagens. Algumas vezes, porém,

fizemos menção às músicas e aos ruídos sem pretensão de analisá-los.

Além dos recursos da linguagem fílmica, notamos no decorrer da nossa

análise que os diretores trabalham com uma variedade de gêneros e estilos que se

misturam nos filmes: literários (poemas, peças líricas, etc.) extraliterários (religiosos,

jornalístico, científico, epistolar, etc.).

Essa dinâmica da intercalação de gêneros cria o plurilinguismo nos filmes. Os

gêneros que foram introduzidos nas narrativas fílmicas, geralmente, conservam a

sua forma estrutural, a sua autonomia e a sua originalidade lingüística e estilística.

Dessa maneira, incorporam-se aos filmes novas linguagens que auxiliam na

estratificação da unidade linguística daqueles.

Segundo BAKHTIN, a intercalação de gêneros pode ser apenas mostrada,

isto é, sem outras intenções do autor;

na maioria das vezes, porém, eles refrangem em diferentes graus as

intenções do autor, e alguns dos seus elementos podem afastar-se, de

diferentes maneiras, da última instância semântica da obra (2010a, p. 125)

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No nosso contexto, esses gêneros intercalados auxiliam no construto da

personagem, em outros termos, à focalização da câmera são agregados outros

recursos narrativos que ampliam a visão do espectador.

A partir dessa constatação, regressamos aos fragmentos submetidos à leitura

analítica para tratarmos do segundo objetivo de nosso texto que é refletir sobre as

relações dialógicas. Sob a perspectiva de BAKHTIN (2008, p. 47), as relações

dialógicas são fenômenos bem mais amplos do que “as réplicas do diálogo

expresso”, pois penetram toda a linguagem humana e todas as relações e

manifestações humanas, ou seja, “tudo o que tem sentido e importância”.

Em suma, as relações dialógicas são permeadas pelo funcionamento real da

linguagem e assim se materializam em discurso, ou seja, num enunciado que é

produzido por um autor, criador de dado enunciado cuja posição ele expressa. (Ibid.

2008, p. 209). Por isso, o dialogismo não deve ser confundido

com a interação face a face [...] o dialogismo é sempre entre discursos. O

interlocutor só existe enquanto discurso. Há, pois, um embate de dois

discursos: o do locutor e o do interlocutor, o que significa que o dialogismo

se dá sempre entre discursos (FIORIN et al. 2010a, p. 166).

O discurso, que representa o ponto de vista do sujeito, resulta da organização

contextualizada dentro de determinados parâmetros sociais e históricos nos quais o

sujeito32 falante está inserido e serve de arcabouço para a recriação da realidade

propondo um universo circundante no qual se empresta ao fictício o contorno do

real, resultando na verossimilhança. Complementa MACHADO (1995, p. 142) que a

verossimilhança da personagem é a verossimilhança de seu discurso interior sobre

si mesma. Portanto, processo de autoconsciência bakhtiniano.

Reiteramos que as relações são de caráter verbal e que, para que a interação

entre os sujeitos aconteça é necessário que haja um consenso entre os indivíduos

socialmente organizados num dado momento da história no sentido de chegarem

aos valores dos signos. É por isso que “as formas do signo são condicionadas tanto

pela organização social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação

32

O sujeito se define como pessoa por “suas relações entre os sujeitos: seu caráter concreto (nome), sua

totalidade, sua responsabilidade, etc., seu caráter inesgotável, inconcluso, aberto” (Bakhtin, 2000, p. 378).

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acontece” (BAKHTIN, 2010b, p. 45), ou seja, essa coletividade deve ser regida pelas

mesmas normas morais, jurídicas, estéticas, etc.

Portanto, a palavra deve ser pensada como signo social, que por isso

“penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de

colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas

relações de caráter político, etc.” (Ibid., p. 42). Além disso,

Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da

palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em

relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim

e os outros. Se ela se apóia em mim numa extremidade, na outra apóia-se

sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do

interlocutor (p. 117, grifos do autor).

Em suma, nas relações dialógicas “o herói principal é o discurso bivocal, que

surge inevitavelmente sob as condições da comunicação dialógica, ou seja, nas

condições da vida autêntica das palavras”. (Ibid., 2008, p. 211)

4.1 Hannibal Lecter – o EU e o OUTRO em O Silêncio do Inocentes

A primeira narrativa fílmica analisada foi O Silêncio dos Inocentes,

protagonizada por Clarice Starling e Hannibal Lecter. Como já foi dito, o filme possui

um processo narrativo linear, o que se comprovou pelo pouco uso da montagem

alternada. Dessa forma, conclui-se que a trama é simples, ou seja, de fácil

compreensão pelo espectador.

Nas cenas iniciais, o espectador só conhece a personagem mediante os

elementos extraverbais, ou seja, pelas imagens mostradas pela câmera as quais

trazem detalhes de sua dura rotina de treinamentos e dedicação à academia. Dessa

maneira, o que é visto deixa claro ao espectador as idéias que permeiam o ambiente

em que ela está inserida. Porém, tais elementos nada revelam sobre a personagem

“enquanto ponto de vista, enquanto concepção de mundo e de si mesma” (Idem,

2008, p. 53).

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É importante destacar que os aspectos exteriores e sociais da personagem

não interessam de modo proeminente: o ponto principal configura-se em seus

caracteres interiores e a maneira pela qual se expressa, ou seja, o valor de tais

traços para ela mesma, para sua autoconsciência, isto é, “a última palavra da

personagem sobre si mesma e sobre seu mundo” (Ibid. 2008, p.53).

A estabilidade das primeiras imagens é quebrada quando Clarice é tirada de

seu treino para se encontrar com Crawford, seu superior. Como apontamos no item

1.1.1, página 30, ilustração 1, o plano geral distante mostra que a personagem é

minúscula quando comparada à edificação, porém ela caminha para dentro do

edifício percorrendo um longo corredor. O destaque dado pela câmera para o

elemento extraverbal, na perspectiva de BAKHTIN, sugere o diálogo da personagem

com o sistema. Nesse momento da narrativa, existe uma simbiose entre os dois que

se confirma pela forma como a personagem flui por entre os corredores e espaços

focalizados em detalhes pela câmera.

Além disso, pensamos que metaforicamente essa cena simboliza a trajetória

profissional seguida pela personagem para chegar a esse encontro, com Crawford,

que se revelará como uma oportunidade de trabalho em reconhecimento ao esforço

e desempenho acadêmico daquela.

Antes da concretização do encontro, um último obstáculo se coloca à frente

da personagem, qual seja a predominância masculina no ambiente em que ela está.

Isso é mostrado pela câmera na cena do elevador, a qual descrevemos no item

1.1.1, página 31 e ilustramos com a figura 3, na mesma página. Nesse espaço

fechado e restrito, em que Clarice é colocada frente a frente com o outro, não há

falas. A relação dialógica se estabelece pelos elementos visuais: a camisa de cor

diferente, a posição corporal de Clarice e o primeiro plano.

Por tudo isso que é mostrado pela câmera, o espectador sabe que a jovem

tem plena consciência de sua posição dentro do sistema social. Porém, ela está

eufórica demais, isto é, ansiosa para saber o que Crawford quer com ela. Em

resposta aos olhares dos outros, a jovem responde de forma não-verbal, ou seja,

mantendo-se ereta com o olhar voltado para o alto, atenta ao mostrador do elevador

que a leva até sala do diretor.

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Após ter saído do elevador, Clarice ainda transita por estreitos corredores até

chegar a seu destino. Na sala de Crawford, descrita no item 1.1.1, página 31, a

câmera expõe a sensibilidade da jovem, ou seja, seu sofrimento em relação ao

outro. Aqui ela é mostrada em primeiro plano frontal após ter visto um quadro com

imagens de mulheres que foram assassinadas por Buffalo Bill.

O quadro mencionado está atrás da mesa de Crawford e é colocado, pelo

enquadramento da câmera, em relação dialógica com as personagens: Hannibal

Lecter, Clarice Starling e Buffalo Bill. Dessa forma, ao ser designada para entrevistar

Hannibal Lecter, preso por matar e praticar canibalismo, Clarice inicia um novo

tempo de sua vida dentro da narrativa. Nos encontros com Lecter, ela será colocada

em situações que a levarão a revelar-se.

dialogalmente, a elucidar, captar aspectos de si mesma nas consciências

alheias e construir escapatórias protelando e, com isto, expondo sua última

palavra no processo da mais tensa interação com outras consciências

(BAKHTIN, 2008, p. 61).

Uma digressão nesse momento é pertinente para acrescentarmos que além

do episódio do elevador, Clarice é colocada em outra situação similar, isto é, em

relação dialógica com um grupo de policiais. O fato acontece fora da academia em

uma casa de velório, Grieg Funeral Home33, espaço propício para reflexões, por ser

um lugar onde vida e morte se encontram. Crawford e Starling estão lá para ver uma

das vítimas de Buffalo Bill encontrada recentemente. Ao chegarem ao local, eles

entram em uma sala que está repleta de policiais locais. A câmera mostra que

Clarice chama a atenção deles, insinuando que se trata de uma reação ao fato dela

ser mulher. Isso se comprova com a maneira como a câmera focaliza a estudante:

em primeiro plano e seus olhos transmitem a sensação de desconforto que os

olhares dos outros lhe causam.

A situação fica ainda mais desconfortável para Starling quando Crawford,

adotando uma postura similar a dos colegas, sai da sala com o xerife alegando que

o assunto é delicado e não deve ser tratado em frente a uma mulher.

33

Tradução nossa: Casa Funerária rieg.

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Nessa situação de limiar, ou seja, de crise, Clarice é obrigada a refletir sobre

sua posição nesse espaço. Com o intuito de desviar-se dos olhares, a câmera a

mostra entrando em outra sala. Nesse momento, presente e passado se misturam,

pois ela se lembra do velório de seu pai. A imagem do pai morto a leva a olhar-se

para si mesma, ou seja, conscientizar-se de que está sozinha e deve enfrentar a

situação na categoria do outro. Dessa maneira, ela pode vivenciar o próprio aspecto

físico “como valor” que a “engloba e a acaba” e assim ver-se a si mesma (BAKHTIN,

2000, p. 54). É na categoria do outro que Clarice, mais tarde, falando firme com o

grupo consegue a cooperação deles no sentido de esvaziarem a sala do corpo para

que o médico pudesse prosseguir com seu trabalho.

Pelo exposto destacamos o esforço feito por Clarice para colocar a máscara

social da agente em frente ao grupo de policiais. Em decorrência disso, na

sequência da diegese, pouco antes do início da autopsia, a câmera mostra a face de

Clarice refletida no espelho. É no reflexo que estão todas as emoções, que pela

circunstância, precisam ser ocultadas.

Após essa digressão, retornamos para o Hospital onde Clarice deve se

encontrar com Hannibal Lecter. Porém, antes de chegar a ele, Clarice conversa com

o diretor da instituição Dr. Chilton. As primeiras imagens mostradas pela câmera são

em primeiro plano, pois o diretor tenta imprimir um tom intimista e irônico ao

encontro. O ângulo plongée e contra-plongée se intercalam apenas por

circunstância, isto é, ele está sentado e ela em pé à sua frente, não há intenções

expressivas no ângulo adotado pela câmera.

Em sua fala, Dr. Chilton encarna uma voz social que se estrutura em torno de

alguns enunciados básicos que são pronunciados com um maroto sorriso nos lábios.

Ele carrega sempre consigo uma caneta. O objeto representa no decorrer da

diegese a chave para a liberdade de Hannibal Lecter:

Recebemos muitos detetives, mas não me lembro de nenhum tão atraente;

Vai passar a noite em Baltimore? Essa cidade pode ser muito divertida, se

tiver o guia certo!; Crawford é muito esperto, não é? Por utilizar você?;

Moças bonitas o estimulam. Duvido que Lecter tenha visto uma mulher em

oito anos. Você é o tipo dele (grifo nosso).

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Ao final da fala do médico, a câmera se afasta das personagens, dessa

maneira, o plano geral sinaliza a quebra do caráter intimista que estava sendo

estabelecido pelo discurso do daquele. Clarice responde que não tem intenções em

ficar mais tempo na cidade e os dois se dirigem para a cela de Lecter.

Nessa passagem, a situação de produção do enunciado é decisiva tanto para

a produção do sentido pretendido pelo médico quanto para o sentido final construído

na interação. O tom de brincadeira, que expressa uma avaliação apreciativa da parte

do médico em relação à estudante, é suficiente para inverter os sentidos esperados

na fala de uma pessoa na posição do Dr. Chilton.

Clarice, por sua vez, se desestabiliza momentaneamente, a câmera a mostra

baixando a cabeça, procurando disfarçar seu desconforto frente àquela abordagem

sexista. A reação-resposta de Clarice acontece quando os dois chegam ao local da

cela de Lecter. Clarice deseja entrar sozinha e introduz “o enunciado alheio no

contexto” (BAKHTIN, 2000, p. 316) de seu próprio enunciado. A câmera os mostra

em primeiro plano com a intercalação do ponto de vista da personagem ou da

câmera.

Clarice: Se Lecter acha que o senhor é inimigo dele... talvez tenhamos mais

sorte se eu entrar sozinha. O que acha?

Dr. Chilton: Poderia ter dito isso na minha sala para não perdermos tempo!

Clarice: Verdade, mas não teria tido o prazer de sua companhia (grifo

nosso).

Agindo dessa maneira, a estudante posiciona-se e assim em relação dialógica

refuta o discurso do outro imbuindo-o de um tom provocante ao enunciá-lo com um

sorriso nos lábios. Com isso, ao final do diálogo, é a vez do Dr. Chilton

desconcertar-se e ficar sem resposta. Sem ter o que fazer, dirigi-se ao enfermeiro

Barney: “Quando terminar, acompanhe-a até a saída”.

Sozinha, Clarice precisa atravessar um corredor estreito para chegar ao seu

destino, ou seja, entrar em um contexto desconhecido, que se mostra diverso do

ambiente regrado e seguro que costuma freqüentar. No item 1.2.1, páginas 38-39,

descrevemos todos os recursos expressivos utilizados pelo diretor para criar a cena

da travessia do corredor.

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O longo encontro entre as personagens, que acontece no subsolo, pode ser

dividido em três partes. A primeira, chamada por nós de fase de reconhecimento,

tem início com um cumprimento cordial, ou seja, eles seguem as normas sociais

mesmo nesse lugar inóspito.

Porém, quando Clarice exibe sua carteira de estudante, Hannibal se mostra

desapontado. Ele não esconde sua irritação ao ser notificado de que está

conversando com alguém em treinamento, em desenvolvimento. Em suma, alguém

que ainda não atingiu a maturidade.

Observamos nessa passagem que a identidade de Clarice está ligada ao

aspecto profissional e estudantil da personagem. Por isso, seu interesse em frisar

isso na sua fala: ”Estou aqui para aprender com o senhor. Talvez possa decidir se

tenho qualificação para tanto”.

Ao usar o tom “bajulador”, como é descrito por Lecter, Clarice procura

estabelecer uma relação de confiança com o outro. Ela procura tratá-lo como sujeito

e não como um objeto de estudo, que é a forma como o diretor Chilton vê o

prisioneiro. Além disso, percebemos que Lecter também se comporta, até o

momento, de maneira normal, quer dizer, sua monstruosidade não aflorou, parece

estar sendo contida por ele.

As gentilezas de ambas as partes continuam. Na interação face a face, Lecter

deixa transparecer seu sentimento de desprezo pela atitude grosseira do prisioneiro

da cela anexa a sua, descrita na página 41, por meio de suas reações físicas que

são mostradas pela câmera. Além disso, faz uso de um tom compreensivo, dessa

maneira procura convencer Clarice de que está sendo sincero. E assim ambos

continuam a observar o aspecto físico um do outro, ou seja, cada um busca um

melhor posicionamento, ”adotando esta ou aquela expressão” que lhes “parece

essencial e desejável” (BAKHTIN, 2000, p. 53).

É nesse clima em que ambos estão tateando, que Clarice tenta provocar a

palavra do outro para conseguir completar sua missão, qual seja, obter as respostas

de Lecter nos relatórios pedidos por Crawford. Para atingir seu objetivo ela tenta

dissuadir o prisioneiro fazendo referências aos objetos que estão na cela.

Nesse momento, Hannibal se mostra um pouco dialogando com o segundo

filme Hannibal ao se referir à cidade de Florença, palco de parte da narrativa fílmica

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mencionada. Starling procura demonstrar seu interesse pelas coisas do outro e

Lecter não está vendo problemas em responder as perguntas dela. Devemos

destacar que os dois estão se tratando de maneira formal “senhor” e “agente

Starling”.

Clarice: Foi o senhor quem fez os desenhos?

Lecter: Este é o Duomo visto do Belvedere. Conhece Florença?

Clarice: Todos os detalhes só de memória?

Lecter: Memória, agente Starling é o que eu tenho em vez de uma

vista.(grifo nosso)

Clarice não responde se conhece Florença. Acreditamos que ela não tenha

essa vivência e, nesse momento, não quis revelar isso ao outro. Já Lecter, se refere

à memória no sentido de recordação, lembrança. Dessa forma, segundo BAKHTIN,

as recordações correspondem ao eu, ou seja:

a vivência reconstituída, puramente interior de minhas alegrias, de meus

sofrimentos, de meus arrependimentos, de meus desejos, de meus

arroubos que impregnam esse mundo visível dos outros, em outras

palavras, terei evocado minha ótica interna em determinadas circunstâncias

de minha vida, e não minha imagem externa (2000, p. 77, grifo nosso) .

Pela citação de BAKHTIN, deduzimos que Lecter está sozinho consigo

mesmo, uma vez que seu exterior só pode ser dado pela alteridade do outro e

dentro da prisão não há outros, ou seja, não há relações dialógicas. Dessa forma, o

vocábulo “vista” na fala de Lecter remete ao outro, em outros termos, ao lado

exterior do qual ele foi privado por ter praticado crimes contra a sociedade.

Para que Lecter saia de suas “memórias”, isto é, do eu-para-mim, é

necessário que ele seja colocado em situações de conflito, que alguém lhe provoque

a palavra, uma vez que

Não é na categoria do eu mas na categoria do outro que posso vivenciar

meu aspecto físico como valor que me engloba e me acaba, e devo

insinuar-me nessa categoria para ver a mim mesmo como elemento de um

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mundo exterior que constitui um todo plástico-pictural (BAKHTIN, 2.000,

p.54, grifo nosso).

Veremos na seqüência da diegese como se estabelecem as relações entre o

eu e o outro. Destacamos que a imagem do cárcere como privação da visão da

personagem é bastante significativa, pois ele a retoma mais à frente e o tom utilizado

em sua fala soa como um diálogo interior, a palavra que se dirige a si mesmo. A

imagem do externo enfatiza a vontade que Lecter tem de sair dali. Veremos que

esse desejo é compartilhado com Starling.

Clarice não desiste de sua tarefa, ou seja, sair dali com seu questionário

preenchido por Lecter e, então, usa a palavra “vista” em um trocadilho pedindo ao

outro que “Mostre seu ponto de vista no questionário” que ela portava. Lecter não

reage bem, acreditamos que ele tenha se sentido reificado, quer dizer, ela está ali

somente para cumprir as ordens de Crawford.

O rosto de Hannibal está em primeiro plano, ele inicia sua fala com um tom

irônico, com um leve sorriso nos lábios: “Não, não, não! Você estava indo bem. Foi

educada, gentil. Estabeleceu confiança com a constrangedora verdade sobre

Miggs”. Depois, percebemos uma alteração para um tom rude que soa como uma

advertência: “E agora essa canastrice de tentar passar seu questionário, não foi

boa!”.

Sentindo-se descoberta Starling tenta simplificar: “Só estou pedindo que olhe.

É simples: sim ou não”. Lecter deixa claro que não quer falar sobre si, ou seja, não

deseja olhar-se no espelho, por isso evita os questionamentos do outro. Enquanto, o

diálogo seguia de maneira despretensiosa ele aceitou. Entretanto, Clarice não quer

apenas conversar, ela quer completar sua missão. Isso parece provocar a revolta de

Lecter, que muda de assunto.

A câmera insiste nas tomadas em primeiríssimo plano, por isso pode-se

perceber bem a fisionomia de Lecter quando critica o sistema que lhe envia uma

estudante. Por outro lado, a câmera acompanha em plano mais aberto e ângulo

contra-plongée Clarice afundando-se cada vez mais na cadeia, mostrando-se

surpresa com o comportamento grosseiro do prisioneiro.

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Além de criticar o sistema, Lecter traz para o diálogo um novo tema. Ele quer

saber sobre o apelido do assassino Buffalo Bill. Nesse excerto, a câmera retoma

para o plano normal.

Clarice: Começou com uma brincadeira na D.P. de Homicídios em Kansas

City. Diziam: “Esse aí gosta de esfolar as reses.”

Hannibal: Por que você acha que ele remove as peles, agente Starling?

Choque-me com sua perspicácia.

Clarice: Isso o excita. A maioria dos assassinos seriais guarda troféus das

vítimas.

A câmera muda o plano e o rosto de Hannibal é focalizado novamente em

primeiro plano: “Eu não.”. Olhando fixamente para o outro, Starling conclui: “Não.

Não, o senhor comia os seus.” (grifo nosso). Com suas palavras, em relação

dialógica, a estudante coloca seu campo de visão, ao lado do campo de visão do

outro; sua concepção de mundo, ao lado da concepção de mundo do outro

(BAKHTIN, 2008, p. 55, 56) e provoca a palavra do outro.

A resposta de Lecter não é verbalizada. A câmera o mostra em primeiro

plano, dessa maneira podemos ver seu olhar desviar-se de seu interlocutor e

focalizar o chão. Nesse momento, a câmera registra a tomada de consciência de

Hannibal, após ter sido colocado em frente ao espelho por Starling. Entretanto, ele

reage prontamente e pede a Clarice que lhe passe os documentos para que ele

possa vê-los.

Ilustração 30 - Reação visual de Lecter às palavras de Clarice.

A rápida recomposição de Lecter é sugerida pelo afastamento da câmera. Na

sequência, Clarice parece estar acreditando no seu sucesso, pois enquanto ele

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deposita os documentos na caixa, a câmera a mostra com um discreto sorriso nos

lábios. O prisioneiro olha fixamente para sua interlocutora e se rebela, porque

[...] procura a qualquer custo manter para si essa última palavra, sobre si

mesmo, essa palavra da sua autoconsciência, para nela não ser mais aquilo

do que ele é. A sua autoconsciência vive de sua inconclusibilidade, de seu

caráter não-fechado e de sua insolubilidade (BAKHTIN, 2008, p. 59-60).

O momento descrito anteriormente encerra a primeira parte do encontro. Ao

final dele, percebe-se que as duas personagens assumem cada um seu ponto de

vista, ou seja, Clarice é policial e Hannibal, um marginal. Tudo leva a crer que os

dois devem caminhar em direções opostas.

No capítulo 1.2.1, páginas 43-46, fizemos a análise dos movimentos de

câmera que compõem a segunda parte do encontro, que chamamos de a

descoberta. O nome está relacionado com o que a câmera nos revela sobre a

personagem Hannibal Lecter. Como dissemos anteriormente, o prisioneiro parece

estar contendo seu lado mal, reluta em ser este ou aquele. Porém, nessa parte da

história ele se despe de sua máscara social, isto é, de bonzinho e colado ao vidro

começa a provocar verbalmente Clarice.

Em relação dialógica com Clarice, Hannibal se coloca como outro e assim,

por meio de seu discurso procura revelar o interior de Clarice, ou seja, levá-la à

autoconsciência.

Hannibal: Ah! Agente Starling, você acha que pode me dissecar com este

instrumento pobre?

Clarice: Não. Eu achei que, com o seu conhecimento...

Hannibal: Você é muito ambiciosa, não é? Sabe o que você parece com

essa bolsa cara e esses sapatos34

baratos. Parece uma jeca [...].

Ter se alimentado bem lhe deu ossos fortes, mas [...] Com esse sotaque

que tenta desesperadamente esconde do oeste da Virgínia. O que é que

seu pai faz? Ele é mineiro de carvão? Faz sermões demorados? Eu sei que

34

Em Hannibal, Clarice recebe de presente, de Lecter, um par de sapatos da grife Gucci.

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os rapazes descobriram você bem cedo, nos tediosos e desastrados

agarramentos nos bancos dos carros. Enquanto você só pensava em cair

fora e ir para algum lugar, para o FBI. (grifo nosso)

Percebemos que Hannibal ataca os valores pessoais de Clarice: seu trabalho,

seu passado e sua família. Ela, por sua vez, ouve calada a todos os xingamentos e

insinuações do outro. Nesse momento, a câmera a mostra em um ângulo contra-

plongée demonstrando seu recolhimento frente ao outro. E assim ela permanece até

o final da fala de Lecter35.

Ilustração 31 - Clarice ao final da fala de Lecter

Quando Lecter silencia, abre uma brecha para que a jovem responda. Para

que isso seja possível, ela precisa levantar a cabeça. O movimento que é mostrado

pela câmera possui um caráter ambíguo, ou seja, de recuperação e de refração.

Clarice assume o seu eu e diz:

O senhor vê muito doutor! Mas é forte o bastante para apontar esta alta

percepção pro senhor mesmo? O que me diz do senhor? Por que não olha

o senhor mesmo e escreve o que vê? Talvez esteja com medo?

O desafio de Clarice não provoca o outro o suficiente. Hannibal não parece

disposto a revelar-se mais, por isso devolve os documentos na caixa. Ele imprime

35

Sobre essa atuação de Jodie Foster ver comentários do ator Anthony Hopkins disponível na Edição Especial

do DVD.

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muita força para fechá-la e isso provoca um som agudo. A câmera mostra a reação

de Clarice ao barulho. Ela dá um pulo na cadeira, sua reação é perfeitamente

condizente com o ataque que acaba de sofrer. Hannibal mostrou-se uma pessoa

cruel e conseguiu com seu discurso desnudá-la.

O foco da câmera volta-se novamente para Hannibal, ele não parece

satisfeito com o efeito provocado por suas palavras em tom ameaçador: “Um

recenseador uma vez tentou me testar. Eu comi o fígado dele com um prato de feijão

e um belo vinho.”. Ainda colado no vidro e olhando fixamente para sua interlocutora,

ele encerra sua fala com a emissão de horríveis ruídos. Momentaneamente a

câmera mostra Clarice, porém Hannibal encerra a conversa e a manda embora,

virando-se de costas e dirigindo-se para o fundo da cela.

Clarice estava saindo da cela, totalmente derrotada, porém algo inusitado,

trecho analisado na página 46, acontece e isso a obriga a voltar para junto de

Lecter. O retorno, que marca a terceira parte do encontro, aproxima a policial e o

marginal. A partir daqui as duas concepções de mundo vão permanecer um no

campo de visão do outro, levando-os a autoconsciência.

A câmera mostra que a distância entre os dois diminuiu, ou seja, não existe

mais medo. Ambos concordam em aproximar os dois mundos, isto é, o mundo

marginal e o mundo policial, dessa maneira quebram as barreiras sociais. Para

Clarice isso significa aceitar as regras impostas por Lecter, ou seja, fazer o que ele

lhe “pedir’’. Em suma:

Além da realidade da própria personagem, o mundo exterior que a rodeia e

os costumes se inserem no processo de autoconsciência, transferem-se do

campo de visão do autor para o campo de visão da personagem (BAKHTIN,

2008, p. 55).

É por esse motivo que as personagens não podem ser concluídas e fechadas.

Já não podemos afirmar quem são elas e para onde elas vão. “Nós não vemos quem

a personagem é, mas de que modo ela toma consciência de si mesma.” (BAKHTIN,

2008, p. 54).

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Por fim, concluímos que as relações de Clarice e Hannibal se sustentam na

dualidade das identidades. Hannibal Lecter transita entre o mundo marginal e o

mundo social; Clarice, por vezes, se mostra a curiosa e empenhada estudante e em

outras ocasiões, a garota problemática com muitos assuntos pendentes.

Vários são os momentos que permitem que se chegue a essa conclusão de

que as identidades são ambivalentes. Em primeiro lugar, destaca-se a preocupação

de Lecter por mostra-se disposto a ajudá-la. Nesse sentido, ele faz com que ela

chegue a autoconsciência e ajudá-a a desenvolver-se profissionalmente. Por outro

lado, o presente que ele dá a ela, a morte de Miggs, é proveniente do lado negro

daquele.

Quanto a Clarice, a câmera a mostra em momentos de busca pelo

aprimoramento, ou seja, é desejo dela se desenvolver profissionalmente. Porém, em

sua relação com Lecter, ela se deixa provocar pelo outro, em outros termos, a

agente aceita as regras do jogo que são impostas pelo prisioneiro. Também é

preocupação dela a busca pelo seu eu interior, o qual se mostra repleto de assuntos

pendentes.

Lecter, nesse episódio, é mostrado pela câmera predominantemente em

primeiro e primeiríssimo plano. Segundo MARTIN (2003, p. 40), as tomadas

correspondem em primeiro lugar “a uma invasão do campo da consciência”. Essa

primeira característica da imagem na diegese permitiu que Lecter “enxergasse” o

interior de seus interlocutores.

Em segundo lugar, as tomadas mencionadas correspondem “a uma tensão

mental considerável” e isso é facilmente observado nos momentos em que Lecter

interroga seus interlocutores e procura levá-los a autoconsciência.

Em terceiro e último lugar, MARTIN se refere ao “modo de pensamento

obsessivo” que se mostrou a principal fonte de conflito entre o marginal e o

gentleman.

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4.2 Hannibal Lecter – o EU e o OUTRO em Hannibal

A segunda narrativa fílmica analisada foi Hannibal, protagonizada por

Hannibal Lecter, Clarice Starling e Mason Verger. Como já destacamos, a película

exige a atenção do espectador, pois a câmera transita entre a cidade de Florença e

os Estados Unidos. Dessa maneira, para que não haja interrupção da diegese,

observamos o uso freqüente da montagem alternada, ou seja, a narração de duas

ações que acontecem ao mesmo tempo, e das tomadas panorâmicas que auxiliam

na apresentação dos espaços da trama para o espectador.

Nas cenas iniciais, o diálogo apresentado pela câmera acontece em um local

refinado. Porém, as personagens que conversam pertences a círculos sociais

diversos. Com o desenrolar da diegese, a câmera mostra que o que está

acontecendo na realidade é uma transação comercial. É por isso que um deles é

advertido ao emitir seu ponto de vista.

O tom estabelecido na primeira sequência se estende por toda a narrativa

fílmica, ou seja, Hannibal é uma história circundada pela ideologia do poder

financeiro. Portanto, supõe-se que com a entrada do interesse monetário, as

relações sociais vão ficar mais objetificadas e podem se tornar mais conflituosas.

Começando por Mason Verger sua visão de mundo se relaciona com sua

grande fortuna, pois nada mais é mostrado dele. A câmera destaca por várias vezes

a forma como manipula tudo: a um toque de dedo. O valor que ele atribui à máscara

de Hannibal mostra sua apreciação em relação ao objeto e por extensão, ao canibal.

Por esse motivo, veremos que seu objetivo dentro da diegese é vingar-se de

Hannibal, o causador da mutilação daquele. Vejamos no diálogo abaixo como a

personagem se comporta em uma relação face a face:

Verger: Quando você trabalhava no hospital observava Clarice Starling e

Hannibal Lecter interagindo?

Barney: Interagindo?

Verger: Conversando um com o outro?

Barney: Sim. Parecia-me que eles..., porém...

Barney: Na maioria das vezes, o Dr. Lecter não respondia aos visitantes.

Abria os olhos o tempo suficiente para insultar algum aluno que ia vê-lo. Ele

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respondia às perguntas de Starling. Ela o interessava. Ela o intrigava. Ele a

achava encantadora e divertida. (grifo nosso)

Verger: Então Clarice Starling e Hannibal Lecter tornaram-se amigos?

Barney: Dentro de uma certa estrutura formal ... sim”.

Verger: E ele gostava dela?

Barney: Sim.

Percebe-se que Verger procura direcionar a fala do outro, isto é, ele quer que

Barney diga o que ele precisa: Clarice e Lecter gostavam um do outro. Essa idéia da

relação entre os dois no contexto anterior do outro filme ficou suspensa, ou melhor,

sem resposta. Aqui ela é retomada pela palavra refratada de Barney e Verger lhe

atribui um novo significado. Para ele, o suposto relacionamento representa uma

saída para sua tão desejada vingança.

O protagonista se mostra um sujeito acabado, encerrado na máscara que

recebeu de Hannibal. No campo das relações, a diegese não coloca a personagem

em conflito, em virtude do mesmo se considerar acima de todos. Conforme já

destacamos no capítulo 2.5, páginas 76-81. Sobre as relações sociais dessa

personagem, percebemos que elas se pautam no poder de barganha. Pela palavra

do outro, Verger é “rico”, que possui “amigos influentes”. E ainda que “não pode

comprar um senador, mas pode alugá-lo”.

Nesse mundo da barganha que se estabelece ao redor de Mason, Clarice é a

voz de contraponto, ou seja, ela se rebela desde o início contra essa coisificação.

Sua atitude comprova que ela não se curva frente ao capital ou a corrupção.

Destacamos, que a câmera desde o início do filme a mostra dessa maneira,

ou seja, como oposição à voz do capital. Por isso, retomamos o excerto analisado no

capítulo 2.2, páginas 66-68, com o intuito de demonstrarmos que a personagem

vale pelo seu discurso, ou seja, ela é diferente em virtude das suas atitudes e não

por ser mulher.

No trecho citado, a câmera destaca a agente. Starling entre muitos outros

policiais. Ela é a autoridade máxima ali naquele momento, porém, o Policial Bolton

tenta derrubá-la, conforme fragmento abaixo:

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Starling: Muito bem, pessoal. O plano é esse.

Bolton: Desculpe. Sou o Policial Bolton, Washington, D.C.

Starling: É o que diz o seu distintivo.

Bolton: Sou o responsável aqui.

Starling: Policial Bolton, sou a Agente Especial Starling. Antes de

começarmos, deixe-me explicar porque estamos aqui. Estou aqui porque

conheço Evelda Drumgo. Prendi-a duas vezes. O DEA e o ATF estão me

dando apoio. Vieram pelas drogas e pela armas. (grifo nosso)

O discurso de Clarice é fortemente marcado pelo uso da primeira pessoa,

dessa forma fica evidenciado que ela trabalha sozinha. E assim pela permanece o

tempo todo da diegese. Porém, isso não diminui sua capacidade profissional que se

pauta no aprimoramento constante de suas qualidades e no desenvolvimento de

suas habilidades.

Em destaque, ao fazer uso da palavra autoritária baseia-se em argumentos

concretos, sua experiência e conhecimento, e não políticos, conforme sugere sua

fala dirigida ao Policial Bolton: “Você está aqui, porque o prefeito é rígido com as

drogas, depois de ter sido pego com cocaína”.

Sobre a palavra autoritária, BAKHTIN (2010a, p. 143-144) escreve que esse

tipo de palavra “exige de nós o reconhecimento e a assimilação”, ela se impõe a nós,

pois “nós já a encontramos unida à autoridade”. Além disso, é muito mais difícil de

ser utilizada em caráter ambíguo “seu sentido se refere ao pé da letra, se torna

rígido”. Por fim, Bakhtin complementa que “ela procura definir as próprias bases de

nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso comportamento”.

Clarice, como personagem dialógica, procura se posicionar diante da

realidade, buscando o significado do mundo para si. É subversiva e transgressora,

porque traz à tona o que se procura esconder e é dominado ideologicamente. O

mundo apreendido passa a ser conhecido pelas impressões e sentimentos dessa

personagem, que se manifesta em forma de voz e expressa o inconsciente coletivo

que vêm à tona, num coro polifônico, portador da crítica social.

Entre Clarice e Verger, encontramos Hannibal Lecter. No filme, a personagem

surge na história na sequência onze, sua voz é utilizada para fazer a transição entre

sequências. Além disso, ela estabelece uma relação de sentido com a película

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anterior O Silêncio dos Inocentes, pois retoma assuntos que ficaram pendentes e

agora se aproximam de seu desfecho. Dr. Lecter é apresentado com uma nova

identidade. Suas características são, no entanto, similares a ele mesmo, Lecter, no

início do filme Dragão Vermelho, antes de ser reconhecido como o canibal.

No trecho que destacamos, a personagem elabora um discurso dentro do

discurso, ou seja, por trás da fala enobrecida da personagem Dr. Fell esconde-se o

discurso vulgar da personagem Hannibal Lecter. A cena mostra o momento em que

o candidato ao cargo de curador da Biblioteca Capponi pronuncia um discurso numa

cerimônia formal para um público seleto. A linguagem ajuda a recuperar alguns

valores como o espírito de nacionalidade, de identidade, de moralidade e de língua

que a sociedade italiana procura preservar e divulgar.

As tomadas iniciais da câmera mostram a cidade de Florença em vista

noturna, as imagens externas mostram que Hannibal está sendo vigiado pelo

inspetor Pazzi e pelos primos italianos de Verger. Eles o aguardam no lado externo

do prédio da Biblioteca Capponi.

Do lado interno do prédio, a câmera mostra em primeiro plano as rodas de um

carrinho. Um travelling para trás possibilita ao espectador ver outras partes do

objeto. Assim como, parte da pessoa que o manuseia: é um homem de papel

insignificante na diegese.

Há um corte e vemos em ângulo subjetivo um circuito de TV. Por ele, vemos

que o carrinho continua a ser transportado lentamente para cima. Outro corte da

cena e novamente a câmera em ângulo contra-plongée enquadra o teto de uma

sala: há a projeção de uma sombra. A princípio, ela tem grandes proporções; depois,

vai diminuindo. Então, um travelling para baixo e vemos em ângulo subjetivo que o

dono da sombra é o Dr. Fell. Ele cumprimenta um guarda e entra em uma sala.

A palestra do Dr. Fell já começou. Entretanto, para o espectador é mostrado o

que aconteceu antes dos convidados chegarem. Ou seja, a preparação do evento. O

carrinho é entregue para ele, o telão é baixado; as cadeiras estão posicionadas.

Tudo está pronto para que aconteça a consolidação do Dr. Fell como novo curador

da Biblioteca Capponi.

A câmera focaliza o auditório em que está acontecendo a apresentação de

Lecter – o enquadramento é a meia distância frontal. Enquanto isso, o inspetor Pazzi

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é visto no mesmo lugar em que há pouco estava Lecter - a câmera o focaliza a meia

distância. O espectador continua ouvindo a palestra de Lecter.

Um travelling lateral da câmera mostra a reação dos presentes, os estudiosos

que estão lá para avaliar o desempenho do Dr. Fell. O inspetor entra no salão, e

chama a atenção para si, quando seu celular toca: é a Agente Starling.

Pazzi, no entanto, está alienado, precisa do dinheiro da recompensa e não

ouve Clarice, pois prontamente desliga o celular. O travelling lateral rápido desvia a

atenção de Lecter para aquele, que se desculpa. O palestrante convida o inspetor a

juntar-se ao grupo.

A melodia que acompanha a palestra imprime um tom lírico para a sequência.

Esta apresentação foi combinada no começo do filme na sequência onze. Na

ocasião Lecter já tinha provocado o inspetor, pois o último estava cuidando de uma

caso de pouca importância: o desaparecimento do curador anterior da biblioteca. Dr.

Fell escolhe falar sobre a personagem da Divina Comédia - Pier della Vigna. Ele é o

protagonista do 13th Canto do Inferno, onde Dante descreve os círculos em que são

punidos aqueles que cometeram suicídio ou que usufruiram de todo seu dinheiro.

Dr. Fell: O peregrino de Dante encontra Pier della Vigna no 7º nível do

Inferno e como Judas Escariotes, morreu enforcado. Judas e Della Vigna

estão ligados pela avareza que Dante via neles. A avareza e o

enforcamento estão ligados no pensamento medieval.

O palestrante projeta no telão imagens onde há detalhes do enforcamento de

Judas. Em um deles, Judas é representado com as entranhas para fora. Ao final de

sua apresentação, se vira e a câmera o mostra caminhando em sua direção:

“Avareza, Enforcamento, Autodestruição. Faço da minha própria casa a minha

forca.”

Um rápido travelling para frente coloca os versos em relação dialógica com a

imagem do inspetor Pazzi que a câmera traz para o primeiro plano. Esse momento,

o inspetor toma consciência de que está sendo julgado e sentenciado por Lecter.

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Ao final da apresentação, a câmera mostra que Dr. Fell é aplaudido de pé, o

que representa sua aceitação. Por último é cumprimentado pelo inspetor, que lhe

convida para sair.

A câmera mostra que a distância entre o mundo catedrático e o mundo do

marginal diminuiu, ou seja, ambos compartilham a mesma visão de mundo: baseada

no discurso tradicional. Para Hannibal isso significa aceitar as regras impostas pelo

grupo social em que está inserido, ou seja, repetir o discurso tradicional sem

refração. Pelo exposto, é como se a personagem retornasse para o status quo que

tinha antes de ter sido descoberto por Will Graham.

4.3 Hannibal Lecter – o EU e O Outro em Dragão Vermelho

O terceiro filme analisado foi Dragão Vermelho, protagonizado por Hannibal

Lecter e Will Graham. Relembramos que cronologicamente, esta película antecede

O Silêncio dos Inocentes e Hannibal, por isso observamos um processo de retomada

do passado, ou seja, de fatos já narrados anteriormente. Essa forma de narrar

contribui para o aumento do suspense, uma vez que o espectador pode antecipar-se

a diegese e assim viver as emoções em dobro, quer dizer, antes da personagem por

antecipação e junto com ela, quando da concretização dos fatos.

Nas seqüências iniciais, a câmera mostra Hannibal Lecter enquanto ouvinte

de um concerto musical. Isso não causa estranhamento, pois esse gosto da

personagem pelas artes já foi destacado em Hannibal. Porém, a câmera chama a

atenção do espectador ao colocar a imagem da personagem em oposição à imagem

de um dos músicos. As expressões faciais de Hannibal sugerem seu

descontentamento em relação ao desempenho daquele, porém esse tipo de reação

é aceitável considerando o gosto refinado da personagem.

Nesse excerto, observamos uma aparente normalidade de Lecter, quer dizer,

ele convive com os outros socialmente como ele mesmo, parece não haver conflito

entre a máscara social e a máscara interior. Porém, essa condição da personagem

sofre uma alteração a partir de sua relação com Will Graham. Conforme nossa

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análise, no capítulo 3.2, páginas 95-104, a diegese mostra que a relação que havia

entre os dois se baseava na confiança e no respeito. Porém, Will descobre que

Hannibal não é quem diz ser, ou seja, ele tem uma personalidade dupla.

Ao final da sequência que narra o episódio acima, a câmera mostra que os

dois se separaram: Lecter foi preso e Will mudou de cidade e de emprego.

Entretanto, novos acontecimentos vão exigir que as duas personagens se enfrentem

novamente, porém em lados opostos: Hannibal é um marginal e Will é um policial.

O excerto do reencontro é o que nos interessa retomar no momento, pois é

onde observamos as personagens em momento de crise. Da análise da construção

da personagem, capítulo 3.4, páginas 107-114, depreendemos que as personagens

se depararem com o seu duplo, ou seja, elas se percebem cindidas. Para esse

pensador, o indivíduo

na frente de um espelho, quase sempre posamos, adotando está ou aquela

expressão que nos parece essencial e desejável. Tais são as diversas

expressões que, no nosso rosto refletido no espelho, entram em luta e em

simbiose fortuita. Nunca é nossa alma, singular e única, que se encontra

expressa no acontecimento-contemplação: sempre se introduz um segundo

participante – o outro fictício, o autor não fundamentado e não autorizado;

não estou sozinho quando me olho no espelho, estou sob o domínio de

outra alma (2000, p. 53, grifo nosso).

Nessa analogia entre o sujeito diante do espelho e o sujeito diante do outro,

Bakhtin expressa que o indivíduo, face ao outro, assume a “máscara” das

convenções, ou seja, ele passa a agir, a falar conforme o outro. Em outros termos: o

indivíduo deixa de ser ele mesmo para ser o reflexo do outro, para assumir o

discurso do outro. Hannibal Lecter diante de seu outro, Will Graham também diante

de seu outro, ambos aguardam por descobrir as pistas da “máscara” que cada um

usará nessa interação.

O silêncio das duas personagens, manifesto no início e no final do excerto,

denuncia a incapacidade daqueles dois homens de resolverem a equação que se

constrói diante deles, pois falta-lhes a incógnita necessária para a solução. Talvez

essa incógnita seja o grande problema do espelhamento: não se sabe ali quem é o

original e quem é a cópia.

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Capítulo 5 A Carnavalização em O Silêncio dos Inocentes,

Hannibal e Dragão Vermelho

Neste capítulo, faremos a leitura dos filmes sob a perspectiva bakhtiniana da

carnavalização na literatura. A teoria da literatura construída por Bakhtin, a partir de

suas reflexões sobre as festas medievais, pode ser utilizada como uma ferramenta

capaz de explicar muitos aspectos dos filmes O Silêncio dos Inocentes, Hannibal e

Dragão Vermelho enquanto narrativas fílmicas que se pautam na ambivalência do

sujeito, na transitoriedade de pólos, nos gestos exacerbados e nas vozes das

personagens36, as quais são mostradas em seus momentos de crise.

Em adição a isso, devemos considerar “o principal palco das ações

carnavalescas”, ou seja, “a praça pública e as ruas contíguas” (BAKHTIN, 2008, 146-

147), que é o lugar onde as personagens atuam por isso ela também se torna

“biplanar e ambivalente”. No nosso corpus, a prisão, o teatro, a sala de estar ou

“outros lugares de ação motivados em termos de enredo e realidade” transformam-

se, por analogia, na praça pública. Os encontros e o contato de pessoas de

diferentes esferas sociais acontecem nesses espaços citados anteriormente.

Segundo BAKHTIN (Ibid.), o carnaval não deve ser visto como algo simples,

ou seja, um espetáculo vazio. O teórico considera que o carnaval é muito mais do

que uma banal festa de mascarados, quer dizer, ela:

é uma grandiosa cosmovisão universalmente popular dos milênios

passados. Essa cosmovisão, que liberta o medo, aproxima o máximo o

mundo do homem e o homem do homem (tudo é trazido para a zona do

contato familiar livre), com o seu contentamento com as mudanças e sua

alegre relatividade, opõe-se [...] à seriedade oficial unilateral e sombria,

gerada pelo medo, dogmática, hostil aos processos de formação e à

mudança, tendente a absolutizar um dado estado da existência e do

sistema social p.184, grifo nosso).

36

Segundo Bakhtin, a polifonia de uma obra diz respeito à multiplicidade de vozes que, orientada para fins

diversos, se apresentam libertas do centro único incorporado pela intencionalidade ao autor. A importância do

conceito se relaciona com o fato da polifonia realizar-se “entre diferentes consciências, ou seja, de ser interação e

a interdependência entre estas” (Ibid. p.. 41).

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Consideramos o medo, ou melhor, a libertação do medo, o principal elemento

da carnavalização, pois o sentimento se manifesta em todas as esferas sociais.

Pode mostrar-se nas formas religiosas, sociais, estatais e ideológicas. Ao libertar-se

do medo, o homem sente-se livre para procurar novas formas de exprimir seus

sentimentos, de relacionar-se com o outro, ou seja, a liberdade possibilita um maior

contato familiar entre os homens.

Além disso, com a libertação do medo, o homem sente-se apto a opor-se à

seriedade oficial. Dessa maneira, passa a viver a sua própria verdade e sente-se

livre para mudanças. A partir dessas observações, podemos dar início às nossas

reflexões sobre a cosmovisão carnavalesca no nosso corpus.

A cosmovisão carnavalesca aplicada à literatura faz surgir a carnavalização

da literatura. Em conseqüência dessa transposição de uma linguagem para a outra,

BAKHTIN (2008, p. 140-141) observa o surgimento de quatro categorias

carnavalescas. Essas categorias não são apenas

ideias abstratas acerca da igualdade e da liberdade, da inter-relação de

todas as coisas ou da unidade das contradições, etc.. São, isto sim, idéias

concreto-sensoriais, espetacular-rituais vivenciáveis e representáveis na

forma da própria vida [...]

A primeira categoria carnavalesca é “o livre contato familiar entre os homens”,

que proporciona a eliminação de toda e qualquer distância entre os homens. Através

dessa categoria todas as barreiras hierárquicas são destronadas, ou seja, “os

homens, separados na vida por intransponíveis barreiras hierárquicas, entram em

livre contato familiar na praça pública carnavalesca.” (Ibid., 2008, p. 140).

A outra categoria da cosmovisão carnavalesca: as mésalliances

carnavalescas são derivadas da primeira. Nessa categoria, “a livre relação familiar

estende-se a tudo: a todos os valores, idéias, fenômenos e coisas.” (p. 141). Em

decorrência da aproximação dos elementos distintos, o sagrado com o profano, o

elevado com o baixo, o grande com o insignificante, o sábio com o tolo, etc.

Dessa ideia da mistura de tudo; de que tudo é nivelado por baixo relaciona-se

outra categoria carnavalesca: a profanação. Esta é formada pelos sacrilégios

carnavalescos, por todo um sistema de descidas e aterrissagens carnavalescas,

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pelas indecências carnavalescas, relacionadas com a força produtora da terra e do

corpo, e pelas paródias carnavalescas dos textos sagrados e sentenças bíblicas,

etc..

BAKHTIN (2008, p. 140) aponta, ainda, para a excentricidade, que

organicamente relaciona-se com a categoria do contato familiar. O comportamento,

o gesto e a palavra do homem libertam-se do poder de qualquer posição hierárquica

(de classe, título, idade, fortuna) que os determinava totalmente na vida

extracarnavalesca, razão pela qual se tornam excêntricos e inoportunos do ponto de

vista da lógica do cotidiano não-carnavalesco.

A seguir nos propomos a tarefa de demonstrar a presença da carnavalização

nos filmes que fazem parte do nosso corpus e revelar as suas funções básicas nas

obras.

5.1 As categorias carnavalescas inseridas nas narrativas fílmicas

A primeira obra que analisamos sob a perspectiva da câmera e do dialogismo

foi O Silêncio dos Inocentes. Por meio da análise da construção da personagem e

das relações entre o eu e o outro, observamos a presença de algumas categorias

carnavalescas. Portanto, retomamos o trecho analisado no capítulo 1.4, página 51-

54 para tratarmos do seu aspecto relacionado com a carnavalização.

Como já dissemos, o carnaval liberta o homem do medo e o aproxima do

mundo e dos outros homens. É esse movimento de libertação que possibilita o livre

contato entre os homens, em que acontece a participação ativa de todos; a vida é

desviada do cotidiano, não havendo divisão entre atores e espectadores. Nesse

mundo “às avessas”, os policiais e bandidos, personagens dos filmes em questão,

conversam abertamente sobre o seu dia a dia.

No episódio citado acima, observamos em primeiro lugar que o espaço em

que se encontra Lecter, ou seja, a prisão não recebe mais tanta atenção da câmera.

Clarice chega até a cela de Hannibal rapidamente, em outros termos, a distância

entre os dois encurtou. Isso já sugere uma aproximação entre eles. Em segundo

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lugar, destacamos que a visita está sendo feita durante a noite, está chovendo e não

há fatos relevantes que precisem ser resolvidos nesse momento.

Pela observação desses dois elementos, deduzimos que Clarice está na

prisão para conversar, para compartilhar suas hipóteses com o outro. Talvez queira

se mostrar inteligente. Isso se confirma, pois a câmera mostra que a jovem está

sentada no chão, próxima ao vidro. Devemos relembrar que pelas normas do diretor

Chilton, ela não deve se aproximar do vidro e nem aceitar nada dele. No entanto,

aceita a toalha que Lecter lhe oferece para que possa se secar. A fala dela está

rápida e agitada, ela precisa muito das respostas às suas perguntas.

O prisioneiro está oculto pela escuridão do lugar, porém se dispõe a

conversar com ela. A pouca luminosidade do local contribui para a criação de um

espaço mais afetivo e acolhedor, por isso passa a ser a praça pública, lugar do livre

contato familiar. Ele direciona a conversa para um campo um pouco mais íntimo e

Clarice não se opõe. Vejamos no plano do discurso como essa aproximação

acontece.

As falas iniciais tratam das investigações feitas por Clarice a partir das pistas

que ela recebeu de Hannibal. Eles discutem sobre o corpo que Clarice encontrou em

um depósito. Durante o diálogo, a câmera está posiciona acima deles, por isso as

personagens são mostradas de cima para o espectador. Considerando o ponto de

vista das personagens, a câmera oculta o prisioneiro no escuro, por isso Clarice não

pode vê-lo. Quanto a Lecter, sob o ponto de vista dele Clarice está posiciona sob

um feixe de luz.

Hannibal: O que sentiu ao vê-lo, Clarice?

Clarice: Assustada, a princípio. Depois, entusiasmada.

Hannibal: Jack Crawford está ajudando na sua carreira, não está? Parece

que ele gosta de você e você também gosta dele.

Clarice: Nunca pensei nisso.

Hannibal: Acha que Jack Crawford a deseja sexualmente? É muito mais

velho, mas acha que ele fantasia situações de troca? Comer você?

Clarice: Isso não me interessa. É bem coisa que Miggs diria.

Hannibal: Não mais.

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No fragmento acima, percebe-se que Lecter faz uso da linguagem popular da

praça pública. Segundo BAKHTIN

A ausência de palavras e expressões neutras caracteriza essa linguagem.

Como linguagem falada, esta dirige-se sempre a alguém mostra, orienta-se

para um interlocutor, fala-lhe, fala por ele ou acerca dele (2010, p. 368, grifo

nosso).

Esse tipo de linguagem se diferencia daquela que é oficial, pois esta última

reflete essa concepção de mundo, ou seja, a “hierarquia social instaurada, a

hierarquia oficial das apreciações (em relação às coisas e noções) e as fronteiras

estáticas entre as coisas e os fenômenos”. Portanto, no discurso de Lecter não há

palavras neutras, tudo que ele diz revela-se ambivalente. O termo injurioso que ele

usa “comer você” possui dupla face, pois devemos considera que ele próprio

costuma consumir partes de suas vítimas. No entanto, sua interlocutora o interpreta

no sentido figurado, isto é, como sinônimo de relação sexual. Ela faz inclusive uma

referência ao outro prisioneiro que anteriormente se manifestara usando a

linguagem da praça pública.

Ao final do diálogo, notamos que as duas últimas falas provocam o riso dos

dois. Porém, a manifestação é breve e em seu lugar vemos o rosto contraído e

preocupado de Clarice. Ao pronunciar o nome de Miggs, prisioneiro cuja morte foi

provocada por Lecter, a estudante toma consciência de que está na prisão falando

com Hannibal Lecter, o canibal. Além da expressão corporal e facial da personagem,

Barney acende as luzes e isso provoca um forte estampido. Todos esse elementos

contribuem para dar mais expressividade ao momento em que Starling desperta de

sua hipnose temporária.

A claridade quebra o clima de intimidade e os dois voltam a tratar-se como

visões de mundos diferentes, ou seja, eles retomam o discurso oficial. É Lecter que

a câmera mostra em plano geral distante, quando ele se levanta e caminha em

direção a Clarice. Nesse momento ele se revela, seu rosto está em primeiro plano,

porém ele está olhando para o teto e não para a câmera.

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Já estou nesse quarto há oito anos, Clarice. Sei que nunca me libertarão

enquanto eu viver. O que quero é uma vista. Quero uma janela onde possa

ver uma árvore ou mesmo a água. Quero ir para uma instituição federal,

bem longe do Dr. Chilton.

Portanto, se considerarmos o tom de voz empregado pela personagem e o

enquadramento da câmera descrito anteriormente, esse trecho adquire um caráter

de monólogo interior e não de ameaça. O que veremos com o decorrer da diegese é

que na verdade Hannibal está compartilhando com Clarice seus planos de fuga: “Eu

esperei, Clarice [...]

Em seguida, ele se vira para Clarice e se mostra disposto a ajudá-la: “Estou

lhe oferecendo um perfil psicológico de Buffalo Bill baseado nas pistas do caso. Vou

ajudá-la a pegá-lo, Clarice [...]”. E por fim ele a coloca no limiar: “Nosso Billy já deve

estar procurando a próxima vítima.”

Num segundo episódio carnavalizado do filme, Lecter já estava fora do

Hospital de Baltimore, conforme era seu desejo. Ele estava sendo transferido para

Memphis, Tennesee. Isso foi possível com ajuda do dr.Chilton, que, em troca de

favores, fez um acordo com a senadora Ruth Martin. Destacamos que a cena é

escandalosa e excêntrica, pois as imagens iniciais ludibriam o espectador, que

induzido pela câmera, acredita que está prestes a presenciar um encontro

diplomático.

Os encontros diplomáticos, segundo BAKHTIN, são “sempre regulamentados

com rigor, onde o tempo, o lugar e a composição dos que se encontram são

estabelecidos segundo o grau da pessoa que é encontrada” (2010a, p. 223). Na

sequência mencionada anteriormente, destacamos um encontro diplomático

carnavalizado, pois as regras listadas a priori não são observadas. Vejamos como

isso se mostra na narrativa fílmica.

A sequência é iniciada com a construção do espaço cenográfico. Dessa

maneira, a primeira tomada da câmera é panorâmica em plano geral noturno. A

legenda avisa o espectador que a ação irá acontecer no Aeroporto Internacional de

Memphis.

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Um travelling para frente da câmera aproxima a imagem. Nesse momento, é

possível ver que há um grande esquema de proteção. Isso se reflete na enorme

quantidade de viaturas policiais, que se entrecruzam na pista do aeroporto e se

dirigem para um hangar. O barulho das sirenes é ensurdecedor, as imagens não

estão nítidas, pois está chovendo e as luzes se refletem nas poças de água.

Já dentro do hangar, a câmera mostra em primeiro plano, Hannibal Lecter que

está com usando uma máscara que lhe cobre o nariz e a boca (ver ilustração 12,

página 63). Ele está sendo retirado do avião, uma vez que está preso a um carrinho

com uma camisa de forças.

Ainda em primeiro plano, vemos alguns policiais locais que se identificam e

aguardam pela assinatura do Dr. Chilton no documento que transfere definitivamente

o prisioneiro para outro Estado.

Efetivada a transferência, a câmera faz uma tomada panorâmica do lado

interno do hangar e mostra as reais dimensões do evento. Como já dissemos, são

essas imagens em plano panorâmico que confundem o espectador, pois

percebemos que há muito contingente mobilizado para receber Lecter. Podemos

entender que ele é um prisioneiro perigoso, porém reforçamos a idéia de que ele

está chegando com todas as honrarias e cercado por um amplo aparato policial e

diplomático.

Feita a análise do espaço cenográfico, vejamos como o encontro se mostra

no plano do discurso.

Senadora Ruth: Dr. Lecter trouxe uma declaração que garante seus novos

direitos.

Hannibal: Não perderei o tempo de Catherine [...] Clarice Starling e Jack

Crawford já desperdiçaram tempo demais. Rezo para que eles não tenham

condenado a pobre moça. Deixe-me ajudá-la. Confiarei em você quando

tudo acabar.

Senadora Ruth: Tem minha palavra. Paul! (grifo nosso)

Até esse momento, tudo se encaminhava dentro do campo diplomático.

Porém, Hannibal muda o tom de seu discurso e passa a usar a linguagem da praça

pública.

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Hannibal: O verdadeiro nome de Buffalo Bill é Loues Tefferredo. Diga-me,

senadora. Você amamentou Catherine?

Senadora Ruth: Como?

Hannibal: Deu o seio a ela?

Paul: Espera aí?

Senadora Ruth: Eu dei, sim.

Hannibal: Endureceu seus mamilos, não?

Paul: Seu filho da puta?

Hannibal: Ampute a perna de um homem e ele ainda consegue senti-la

coçar. Diga, mamãe, quando sua garotinha estiver no necrotério, onde

sentirá coçar?

Senadora Ruth: Leve essa coisa de volta a Baltimore.

Hannibal: E, senadora! Só mais uma coisa: adorei seu tailleur. (grifo nosso)

A linguagem da praça pública como já dissemos é ambivalente e transpõe as

barreiras das posições sociais no encontro carnavalizado. Quando anuncia a morte

próxima da filha da senadora, Lecter traz para a praça pública o tema do limiar

BAKHTIN (2008, p. 202). E por fim, o contraste carnavalesco é ressaltado nas

vestes: o mascarado vestindo uma camisa de forças e a senadora vestindo tailleur.

Depois do escândalo, Lecter é aprisionado no prédio do Tribunal do Condado

de Shelby e de lá ele consegue fugir matando os dois policiais que eram

responsáveis por sua guarda.

Hannibal foi o segundo filme analisado e nele distinguimos a presença de

algumas categorias carnavalescas. Como já comentamos, o filme Hannibal é

narrado a partir de duas cidades diferentes, por isso a câmera mostra algumas

cenas de forma paralela.

O centro do filme é ocupado pela imagem carnavalescamente ambivalente do

falso curador Dr. Fell. Ele vive livremente e confortavelmente em Florença e as

ações se concentram em torno dele. Relembramos que Dr.Fell é na verdade

Hannibal Lecter, o canibal, que fugiu da polícia dos Estados Unidos há dez anos.

Dessa maneira, essa vida em Florença é desviada de seu curso normal, é quase um

“mundo às avessas.” (Ibid., 2008, p. 188).

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Nessa película, destacamos um aspecto do carnaval que é o ritual de

coroação bufa e o posterior destronamento do rei do carnaval. Segundo BAKHTIN

(2008, p. 143)

a coroação-destronamento é um ritual ambivalente biunívuco, que expressa

a inevitabilidade e, simultaneamente, a criatividade da mudança-renovação,

a alegre relatividade de qualquer regime ou ordem social, de qualquer poder

e qualquer posição (hierárquica).

O ritual de coroamento é observado no fragmento em que o antiherói

Hannibal está prestes a consolidar sua nova identidade (Dr. Fell), ele recebe os

diretores da biblioteca Capponi e faz a sua apresentação conforme o grupo havia

combinado. O pronunciamento do Dr. Fell, pleno de argumentos convincentes e

imagens, é enunciado em tom solene com um final bem convincente em italiano.

O evento foi acordado nas primeiras sequências que se desenvolvem na

cidade de Florença. Em sua apresentação, analisada no capítulo 4.2, páginas 138-

143, Dr. Fell escolhe falar sobre Píer della Vignna, personagem que protagoniza o

13th Canto do Inferno, da Divina Comédia, onde Dante descreve os círculos em que

são punidos aqueles que cometeram suicídio ou que usufruíram todo seu dinheiro.

Abaixo destacamos parte da apresentação do Dr. Fell.

O peregrino de Dante encontra Píer della Vigna no 7º nível do Inferno e

como Judas Escariotes, morreu enforcado. Judas e Della Vigna estão

ligados pela avareza que Dante via neles. A avareza e o enforcamento

estão ligados no pensamento medieval.

Dr. Fell escolhe falar do Inferno, como se ele não vivesse nele e ironicamente

escolhe o tema da avareza, já destacado como elemento que permeia a narrativa.

Por fim, a apresentação do Dr. Fell cumpre plenamente a função de lhe assegurar o

cargo de curador efetivo. Porém, ele fica impedido de assumir o cargo, pois precisa

fugir dos primos de Verger. Portanto, o rei é logo destronado, dessa maneira se

consolida o “rito do destronamento”, que é inseparável da coroação (BAKHTIN,

2008, p. 142).

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Considerações finais

Nossa proposta neste trabalho era fazer um estudo da personagem nas

narrativas fílmicas O Silêncio dos Inocentes, Hannibal e Dragão Vermelho partindo

da premissa de que um filme cria uma realidade própria, “a partir da reprodução

fotográfica da realidade”; portanto, habitada por personagens, “que aparecem e

falam, dirigem-se aos sentidos e à imaginação” (MARTIN, 2003, p. 18).

Nas produções analisadas observamos todo um processo de identificação

entre o público e a personagem que visa a manter o espectador preso aos filmes ao

possibilitar que ele receba um conteúdo específico que é aparentemente real, pois é,

segundo MARTIN (2003, p. 28) “dinamizado pela visão artística do diretor”. Além

disso, a imagem trabalhada busca emocionar o espectador, isto é “afetar seus

sentimentos” e por fim transmitir um significado ideológico e moral. Nesse sentido, o

espectador entra em contato com modos de vida que orientam e dão sentido à

vivência das personagens.

Assim, a câmera foi nosso guia pelo mundo ficcional em que transitam nossas

personagens e foi por meio desse tipo especial de narrador que elaboramos os

capítulos que tratam da construção da personagem. Vejamos as conclusões a que

chegamos a partir da análise dos elementos expressivos da linguagem fílmica, mais

especificamente, dos movimentos de câmera.

Começando pelo filme O Silêncio dos Inocentes, já destacamos que a

narração dos fatos é feita de forma linear, a personagem Clarice vai sendo mostrada

pela câmera durante seu processo de crescimento pessoal, profissional e de

reconhecimento de si mesma. Percebe-se que há uma preocupação com a

verossimilhança interna da obra, pois a câmera mostra, frequentemente, a agente

enquanto ela busca seu aprimoramento técnico de maneira que ela possa estar apta

a passar por seus desafios, além disso, enfatiza que a busca do conhecimento e a

descoberta faz parte de sua visão de mundo.

Desde a sequência inicial, a câmera conduz o espectador a identificar-se com

a Clarice Starling. Não é por acaso que o enredo coloca a personagem à prova

constantemente, é preciso mostrar para o espectador que ela está apta a superar os

obstáculos e assim ocupar o papel principal da narrativa, qual seja, o de

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protagonista ou “starling”, estrela brilhante como sugere seu nome. Além disso,

percebe-se que embora tenha tido uma infância dificíl, a câmera mostra, por várias

vezes, seu apego ao pai, de quem se lembra sempre que está em dificuldades, isso

não afetou o seu caráter.

Entretanto, os pontos fundamentais da ação não estão na academia, por ser

um ambiente onde tudo pode ser controlado, não há diálogos, não há interação

entre a personagem e os outros que transitam pelo mesmo espaço. Na academia

Clarice recebe treinamentos que lhe auxiliam no desenvolvimento de habilidades,

mas não lhe ajudam a constituir-se como sujeito. Lembramos que na concepção de

BAKHTIN (2000, 2008, 2010a e 2010b) é impossível pensar o sujeito fora das

relações com o outro, isto é, na intersubjetividade, pois é ela que permite contemplar

a subjetividade o auto-reconhecimento do sujeito pelo reconhecimento do outro.

Dessa forma, é no limiar que Clarice se vê frente a frente com o outro.

O limiar, a sala do Dr. Chilton, o corredor que leva à cela de Hannibal, o

depósito, o avião, o carro, a ante-sala do necrotério, a sala de autópsia, o topo da

escada, a descida da escada, os corredores da casa de Buffalo Bill, eis os espaços

do filme. É nesses espaços que Clarice vai se conhecendo e se reconhecendo.

Nesse processo a câmera mostra-a em seus diálogos com Hannibal Lecter. Ele

provoca Clarice por meio da anácrise, que é a técnica da provocação da palavra

pela própria palavra, dessa maneira, leva-a a livrar-se dos preconceitos que

carregava e, depois, para conquistar o seu espaço, o seu lugar na sociedade.

Dessa maneira, concluimos que a liberdade, ao mesmo tempo em que é

desejada, é, também, temida por ela. Por isso, a necessidade de rever o passado,

resolver os conflitos e, finalmente, tomar posse de sua existência.

Ao analisarmos Hannibal Lecter, nos deparamos com suas várias facetas. A

princípio a câmera cria um grande suspense em torno de sua imagem por intermédio

das personagens que o caracterizam como “um monstro psicopata”. Em

consequência disso, quando ele é visualizado pela primeira vez, a figura do homem

comum que a câmera mostra decepciona sua visitante. Isso se comprova pela

fisionomia da jovem Clarice focalizada pela câmera. Acreditamos que a mesma

reação de Clarice se reflete no espectador.

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Por outro lado, com o andamento da diegese, a câmera vai revelando a

monstruosidade de Hannibal Lecter pelo uso do primeiro plano e, também, do

primeiríssimo plano. As tomadas nesses planos, as quais colocam os olhos de

Hannibal Lecter em evidência, amedrontam seu interlocutor e, também, o

espectador. Com esse culto da imagem de Hannibal, a câmera demarca a

característica mais forte de Lecter que é sua capacidade de enxergar as coisas,

inclusive o interior das pessoas, e isso lhe proporciona o dom de antecipar-se aos

fatos.

Concluímos que o uso do recurso descrito é pertinente por dois motivos. O

primeiro, se relaciona com o apontamento para a verossimilhança interna da obra.

Pois, alguns fatos mostrados pela câmera no decorrer da diegese poderiam soar

fantásticos demais e levar o espectador a desinterar-se pelo filme. Já o segundo, diz

respeito ao conceito bakhtiniano de personagem voz que adotamos no nosso

trabalho. Se considerarmos que Hannibal está restrito ao espaço mínimo de sua cela

ele não poderia falar por si mesmo, mas tão somente, ser mostrado pela câmera ou

pelos outros como acontece no início do filme.

Por sua característica de sujeito multifacetado, Hannibal Lecter é uma

personagem indefinível e, conforme o que nos é mostrado pela câmera, possui

plena consciência de sua condição de psicopata. As motivações que o levam a

cometer seus crimes não são reveladas e sobre seu passado temos uma única

referência que é a cidade de Florença.

Buffalo Bill é mostrado ao espectador por partes: os olhos, as mãos, as

costas, etc. Até que seu corpo seja visto pelo espectador, decorre um tempo e isso

acontece pelos olhos da câmera, pois a personagem não se olha no espelho. Por

essa forma de apresentação a câmera faz sugestões ao espectador que aos poucos

se concretizam. O assassino é movido pela cobiça, por isso os olhos são mostrados

inicialmente. Depois, seu objetivo de costurar uma roupa de mulher é revelado, daí a

atenção da câmera às mãos. Em suma, cada uma das partes da personagem vai

sendo anexada a um corpo de que ele não gosta e que deseja mudar. Pelo que foi

exposto na narrativa, concluímos que se trata de um indivíduo que não se reconhece

no outro, ou seja, na alteridade, dessa forma ele é conduzido à alienação, à perda

da identidade e à morte.

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Destacamos, por fim, que o filme expressa, de maneira geral, uma opinião

positiva em relação à intituição federal, FBI. No decorrer da diegese não observamos

nenhuma cena em que pudéssemos questionar a integridade moral das

personagens ligadas à instituição. Por outro lado, chamou-nos a atenção a cena em

que mobilizou-se um gigantesco aparato para salvar a filha da senadora Ruth Martin.

O que questionamos é caso fosse um cidadão comum, ou seja, sem influências

políticas, o tratamento dado ao caso seria o mesmo?

Na segunda película, Hannibal, dez anos após Lecter ter fugido da prisão,

observamos uma mudança relacionada aos espaços onde as ações acontecem.

Notamos que tais mudanças foram determinantes para a introdução de novos

elementos na história de Hannibal Lecter.

Em primeiro lugar, destacamos a introdução da influência do capital, ou seja,

do dinheiro. Dentro desse novo contexto, as personagens não são mais movidas

pelos valores institucionais, pelo ideal profissional, pela moral ou por um ideal

religioso. Em Hannibal é o capital que conta, é a ganância que motiva as

personagens; é uma necessidade, por menor que seja, um bilhete de ópera, que

leva um profissional a colocar sua vida em risco. Em suma, é como se as

personagens vivessem num mundo sem leis que não as do próprio instinto.

Por tudo isso, Hannibal trouxe uma reflexão sobre os ideais de conduta, de

aparência; a desintegração dos poderes policiais, das instituições públicas. Enfim, as

promessas de felicidade acessíveis para aqueles que podem pagar seu preço, pois,

como vimos, o inspetor Pazzi perde a vida enquanto levanta dinheiro para satisfazer

um desejo de sua esposa.

Em segundo lugar, em oposição ao dinheiro, encontramos o discurso

tradicional, o saber, que é incorporado pelo Dr. Fell, ou melhor, Hannibal Lecter, de

chapéu. Em Florença, a personagem candita-se ao cargo de curador da Biblioteca

Caponi e para ser aceito precisa provar que é conhecedor da obra de Dante

Aliguieri. Esse é o primeiro desafio que Dr. Fell precisa superar e ele o faz

brilhantemente. Quanto ao segundo desafio, que é esconder a identidade de canibal,

esse ele não consegue cumprir, pois a máscara de Hannibal sempre o persegue.

Como ele mesmo diz em uma carta que escreve à Clarice: “Preciso sair do

isolamento e voltar à vida pública.”

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Entre esses dois mundos está Clarice Starling, que procura manter sua

integridade moral que luta contra a própria coisificação. Não se deixa influenciar nem

por Hannibal Lecter e nem por Mason Verger. O primeiro por seu discurso eloquente

e o segundo por seu dinheiro com o qual acredita poder comprar tudo. Da sua

relação com Clarice, pensamos que Lecter busca algo mais, porém ela não aceita os

galanteios deste.

Por último destacamos que o filme se constrói em clima onírico e isso suscita

a dúvida no espectador, que se pergunta se as coisas realmente aconteceram

daquela forma, ou se ao final seremos notificados de que alguém estava sonhando.

Na terceira narrativa, Dragão Vermelho, chegamos ao início de tudo. Dessa

maneira, a câmera mostra que Hannibal, antes de ser preso, vivia confortavelmente

como um membro da sociedade de Baltimore. Sua segunda personalidade, de

canibal, foi descoberta por Will Graham e exposta ao público pelos jornais. Tais fatos

desencadeiam uma crise de identidade em Hannibal Lecter. Dessa maneira, a

história se desenvolve em torno da superação dessa crise de identidade de Hannibal

que procura uma maneira de se vingar de seu opositor Will Graham. Para atingir seu

objetivo, Hannibal seduz o problemático Francis Dolarhyde e seu duplo Dragão

Vermelho.

Paralela a crise de identidade de Hannibal, observamos o mesmo acontecer

com o inspetor Will Graham, que não tenta matar o seu opositor, mas, sim, procura

encarar aquele para conseguir a superação de seus temores. A relação entre os

dois, que inicialmente era de cooperação, passa a ser de disputa, de desafio e de

desprezo.

Como pano de fundo para as crises identitárias está a família. A moral familiar

dá a forma circular ao filme, pois aponta para a ambivalência. Ela motiva os crimes

de Dolarhyde que sofreu maltratos dos familiares e sem orientação torna-se um

assassino. Por outro lado, Graham enfrenta seus medos para defender a sua família

e as outras que poderiam se tornar futuras vítimas. A câmera deixa isso bem claro

quando mostra uma família em primeiro plano pouco antes de Will decidir-se por

pedir ajuda a Hannibal.

Após termos concluído a análise da construção da personagem, nosso

trabalho tratou das relações dialógicas. À luz de BAKHTIN (2000, 2008, 2010a e

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2010b), consideramos que essas relações personificaram-se na linguagem em forma

de enunciado e, assim, converteram-se em posições de diferentes sujeitos

expressas na linguagem. Dessa forma, o sujeito bakhtiniano não é um ser abstrato,

mas alguém que se expressa e se posiciona ativamente, construindo-se frente ao

outro em interação.

Procuramos apontar, por meio da retomada das seqüências analisadas no

capítulo das personagens, as transformações por que passam as personagens em

decorrência da relação eu – outro. Da análise dos filmes depreendemos que

Hannibal Lecter suscita o bem e o mal.

Na primeira narrativa, diríamos que Clarice não teria a oportunidade de

aprender tanto, ou seja, não teria passado por tantas experiências, se não tivesse

sido colocada frente a frente com Hannibal Lecter. Se confrontarmos a figura de

Clarice antes (ilustração 2, p. 30) e depois de Hannibal Lecter (ilustração 9, p. 57)

notamos uma grande mudança, que acreditamos não esteja relacionada apenas

com o tempo, uma vez que este não pôde ser mensurado, mas também com todo o

processo de crescimento pessoal pelo qual ela passou.

Quanto a Lecter, não podemos afirmar que ele tenha mudado, pois a câmera

o flagra cometendo assassinatos bárbaros. Além disso, ao final, observamos que

Hannibal persegue seu algoz com intenções de “comê-lo”. Porém, na segunda

película, Hannibal, após ter saboreado o cérebro de Paul Krendler, o perseguidor de

Clarice, Hannibal mostra-se disposto a fazer algo pelo outro. Para fugir de ser preso,

ele opta por cortar o próprio braço e não o de Clarice. Será que foi uma

demonstração de amor?

Em Dragão Vermelho, vimos que as crises de identidade, ou seja, o não

reconhecimento do eu no outro, foram marcadas por conflitos que se instalaram e se

resolveram no seu tempo. Francisco Dolarhyde, após ter comido seu duplo, é morto

pela esposa de Will Graham. Este retorna para sua vida em Marathon, considerando

que a câmera o mostra em um barco. E Hannibal Lecter conscientizá-se de sua

condição de prisioneiro e vai atormentar a jovem Clarice Starling.

Finalmente, da análise do corpus apreende-se que a carnavalização

representada pelas violações do discurso, declarações inopoturnas,

comportamentos contrários às normas e etiquetas foi a fórmula que o diretor

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encontrou para subverter e transgredir o discurso oficial, já que há justificativas para

a conduta de Lecter, ou seja, mostrar sua própria cosmovisão.

Ao chegarmos ao final deste trabalho, gostaríamos de destacar que notamos

outros temas passíveis de serem analisados futuramente. Primeiramente,

apontamos a questão do olhar, pois é um elemento que se destaca na maior parte

das tomadas da câmera. Uma segunda possibilidade se relaciona com os espaços

onde as ações se desenvolvem. E, por fim, a questão do tempo, considerando que

os filmes foram narrados em tempo não cronológico, poderíamos desenvolver algo

que se relacionasse com a questão do tempo histórico, do tempo cronológico e do

tempo da narrativa.

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ANEXO I. FICHA E SINOPSE DOS FILMES ESTUDADOS

Hannibal (EUA, 2001) Sinopse: Sete anos se passaram desde que o Dr. Hannibal Lecter (Anthony

Hopkins) escapou da prisão. O múltiplo homicida agora trabalha na biblioteca de

uma família nobre de Florença e transita livremente pela Europa. A agente do FBI

Clarice Starling (Julianne Moore), que entrevistou o Dr. Lecter antes que ele fugisse

do hospital de segurança máxima para criminosos insanos, nunca esqueceu o

assassino, cuja voz ainda atormenta seus sonhos. Mas também Mason Verger (Gary

Oldman) não se esqueceu de Hannibal. Vítima que conseguiu sobreviver ao ataque

do psicopata e ficou terrivelmente desfigurado, Verger se torna um obcecado pela

vingança e percebe que, para fazer com que o Dr. Lecter seja descoberto, terá que

usar como isca a própria Clarice Sterling.

Ficha técnica:

Título original: Hannibal

Tempo de duração: 131 minutos

Gênero: suspense policial

Estúdio: MGM/ Universal Pictures

Direção: Ridley Scott

Roteiro: David Mamet e Steven Zailian

Baseado na obra: de Thomas Harris, Hannibal de 1999.

Produzido por: Dino de Laurentiis, Martha Laurentiis e Ridley Scott.

Produtores Executivos: Branko Lustig.

Música: Hans Zimmer.

Figurinos: Janty Yates

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Edição: Pietro Scalia

Diretor de Arte: David Crank.

Diretor de Fotografia: John Mathieson.

Elenco original:

Dr. Hannibal Lecter: Anthony Hopkins.

Clarice Starling: Julianne Moore

Mason Verger: Gary Oldman

Paul Krendler: Ray Liotta

Rinaldo Pazzi: Giancarlo Giannini

Allegra Pazzi: Francesca Neri

O Silêncio dos Inocentes (EUA, 1991)

Sinopse: Um psicopata conhecido como Buffalo Bill está raptando e assassinando

jovens mulheres. Acreditando que um bandido reconhece o outro, o FBI envia

agente Clarice Starling (Foster) para entrevistar um prisioneiro demente que pode

fornecer uma percepção do perfil psicológico e pistas para os atos do assassino. O

prisioneiro é um psiquiatra, Dr. Hannibal Lecter (Hopkins), um brilhante e perigoso

canibal, que decide ajudar Starling apenas se ela alimentar sua curiosidade mórbida

com detalhes sobre sua própria complicada vida. Esse horrendo assassino, uma

encarnação tão poderosa do mal, que ela pode não ter coragem – ou forças – para

detê-lo.

Ficha Técnica

Título original:The Silence of the Lambs

Gênero: Suspense

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Duração: 118 minutos

Ano de lançamento: 1991

Estúdio: Orion Pictures

Distribuidora: Orion Pictures Corporation

Direção: Jonathan Demme

Roteiro: Ted Tally, baseado em livro de Thomas Harris

Produção: Kristi Zea

Música: Howard Shore

Fotografia: Tak Fujimoto

Direção de arte: Tim Galvin

Figurino: Colleen Atwood

Edição: Craig McKay

Premiações:

OSCAR

Ganhou:

Melhor Filme

Melhor Diretor - Jonathan Demme

Melhor Ator - Anthony Hopkins

Melhor Atriz - Jodie Foster

Melhor Roteiro Adaptado

Indicações:

Melhor Som

Melhor Edição

GLOBO DE OURO

Ganhou

Melhor Atriz - Drama - Jodie Foster

Indicações

Melhor Filme - Drama

Melhor Diretor - Jonathan Demme

Melhor Ator - Drama - Anthony Hopkins

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Melhor Roteiro

FESTIVAL DE BERLIM

Ganhou

Urso de Prata

Elenco original:

Dr. Hannibal Lecter: Anthony Hopkins

Clarice Starling: Jodie Foster

Ardelia Mapp: Kasi Lemmons

Jack Crawfor: Scott Glenn

Frederick Chilton: Anthony Heald

Barney: Frankie Faison

Miggs: Stuart Rudin

Jaime Gumb: Ted Levine

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Dragão Vermelho (EUA, 2002)

Sinopse: Will Graham (Edward Norton) é um agente do FBI que por pouco não foi

morto por Hannibal Lecter (Anthony Hopkins) quando tentava capturá-lo. Com

Lecter já preso, Graham é obrigado a usar o psicopata como consultor para obter

maiores informações sobre Francis Dolarhyde (Ralph Fiennes), um serial killer que

tem deixado a cidade em pânico. Mas o que Graham não sabe é que ao mesmo

tempo em que Lecter o auxilia em sua investigação também repassa ao próprio

Dolarhyde informações sobre a família do policial que o persegue.

Ficha técnica: Título original: (Red Dragon)

Direção: Brett Ratner

Duração: 126 min

Gênero: Suspense

Site oficial: http://www.reddragonmovie.com/

Estúdio: Universal Pictures / Dino De Laurentiis Productions / Scott Free

Productions

Distribuidora: Universal Pictures / Metro-Goldwyn-Mayer / UIP

Direção: Brett Ratner

Roteiro: Ted Tally, baseado em livro de Thomas Harris

Produção: Dino De Laurentiis e Martha Schumacher

Música: Danny Elfman

Fotografia: Dante Spinotti

Direção de arte: Steve Saklad

Figurino: Betsy Heiman

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Edição: Mark Helfrich

Elenco original:

Dr. Hannibal Lecter: Anthony Hopkins

Francis Dolarhyde: Ralph Fiennes

Moly Graham: Emily Watson

Reba McClane: Mary-Louise Parker

Jack Crawford: Harvey Keitel

Freddy Lounds: Philip Seymour Hoffman