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UNIVERSIDADE MUNICIPAL DE SÃO CAETANO DO SUL GRADUAÇÃO BACHARELADA EM DIREITO LUCCAS MIRANDA MACHADO DE MELO MENDONÇA ESTADO MODERNO E NEUTRALIDADE POLÍTICA: análise histórica da ideologia jurídica institucional São Caetano do Sul 2015

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UNIVERSIDADE MUNICIPAL DE SÃO CAETANO DO SUL

GRADUAÇÃO BACHARELADA EM DIREITO

LUCCAS MIRANDA MACHADO DE MELO MENDONÇA

ESTADO MODERNO E NEUTRALIDADE POLÍTICA:

análise histórica da ideologia jurídica institucional

São Caetano do Sul

2015

LUCCAS MIRANDA MACHADO DE MELO MENDONÇA

ESTADO MODERNO E NEUTRALIDADE POLÍTICA:

análise histórica da ideologia jurídica institucional

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Programa de Graduação Bacharelada em Direito da Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS.

Orientadora

Prof. Ms. Rosana Marçon da Costa Andrade

São Caetano do Sul

2015

REITOR DA UNIVERSIDADE MUNICIPAL DE SÃO CAETANO DO SUL – USCS

Prof. Dr. Marcos Sidnei Bassi

PRÓ REITOR DE GRADUAÇÃO

Prof. Ms. Marcos Antonio Biffi

GESTOR DA ESCOLA DE DIREITO

Prof. Dr. Robinson Henriques Alves

.

Dedicado

À família e a quem soube entender minhas ausências para

concluir este trabalho. Ao pôr do sol na cidade do Porto.

Agradeço

Aos professores que contribuíram para que o amor ao

conhecimento se tornasse uma prioridade. À professora

orientadora Rosana Marçon da Costa Andrade (Ms.), por ter

ajudado a tornar raciocínio o que no início era somente ideia. À

professora Neyde e ao professor Robinson, que me

estimularam o gosto pela pesquisa acadêmica.

VI

“E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,

Sem ler nada, sem pensar em nada, nem dormir,

Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,

E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme”.

(Alberto Caeiro, O guardador de rebanhos, XLIX, 1925.)

Resumo

O conceito de que o Estado corresponde à instituição de defesa da coletividade

é comum no contexto geopolítico dos países que partilham valores ocidentais. A

despeito das determinações nacionais, a forma das instituições políticas atuais se

assemelha à do Estado moderno, constituído ao compasso das revoluções do

século XVIII. Na época o sistema econômico feudal foi contraditado pelo progresso

capitalista, que ocasionou profundas modificações sociais. O Estado medieval

passou por uma reconfiguração valorativa, a teoria jurídica da igualdade formal

transcreveu-se politicamente no contrato social, justificando um modelo de governo

representativo, voltado à defesa dos direitos naturais dos cidadãos. A equivalência

formal consolidada pela norma jurídica suprimiu a antiga desigualdade de castas,

mas encobriu a relação desigual entre proprietários e não proprietários na prática

capitalista. Em nossa análise percebemos que o Estado moderno correspondeu à

síntese político-jurídica do modelo econômico hegemônico de sua época. A

aparência de neutralidade disfarça a natureza de classe do Estado, encobrindo a

correlação orgânica entre o poder político e o domínio econômico, fato que pode ser

constatada ainda hoje. Esta pesquisa se utilizou do método exploratório.

Palavras-chave: Estado de Direito; Filosofia política; Teoria contratualista

Abstract

The concept that the State corresponds to the community defense establishment

is common in the geopolitical context of the countries that share western juridical

values. Despite national peculiarities, the shape of the current political institutions

resembles the modern State, constituted within the context of the eighteenth century

revolutions. At that time the feudal economic system was contradicted by capitalism's

progress, which led to profound social changes. The medieval State went through an

evaluative change; the juridical theory of formal equality transcribed itself politically in

the social contract, justifying a model of representative government, focused on the

defense of the natural law. The formal equivalence consolidated by the legal norm

suppressed the former inequality of castes, but concealed the uneven relation

between landlords and non-owners in the capitalist practice. Our analysis realizes

that the modern State corresponded to the political and juridical synthesis of the

hegemonic economic model of its time. The neutral appearance disguises the class

nature of the state, covering the organic correlation between political power and

economic dominance, fact that can be noticed even today. This research employed

the exploratory method.

Keywords: Rule of law; Political philosophy; Contractualist theory.

Sumário

1 Contextualização .................................................................................................. 10

1.1 Poder e direito em sociedade .............................................................................. 10

1.2 O fundamento jusnaturalista do Estado moderno ............................................... 17

2 A interpretação racional da filosofia do direito ................................................. 22

2.1 A justificativa moral do sujeito livre ...................................................................... 26

2.2 Da autodeterminação ética ao contratualismo político ........................................ 32

3 Contratualismo político: o pacto social ............................................................. 37

3.1 Alegoria do estado de natureza ........................................................................... 37

3.2 Os poderes do contrato: soberania absoluta ou representativa? ........................ 42

4 Aspectos econômicos da infraestrutura do Estado. ......................................... 50

4.1 Estado medieval e sistema de produção feudal .................................................. 50

4.2 Práticas econômicas liberais e velhas instituições absolutistas. ......................... 52

5 Valores jurídicos da superestrutura do Estado ................................................. 56

5.1 Fraternidade ........................................................................................................ 59

5.2 Liberdade ............................................................................................................ 62

5.3 Igualdade ............................................................................................................. 67

5.4 Propriedade ......................................................................................................... 72

6 Estado moderno: síntese da prática econômica – considerações finais ........ 78

6.1 O término do processo revolucionário ................................................................. 78

6.2 A constitucionalização da política ........................................................................ 80

6.3 A função organizacional do Estado ..................................................................... 82

6.4 Dominação de classe e neutralidade política ...................................................... 85

Referências .............................................................................................................. 92

10

1 Contextualização

1.1 Poder e direito em sociedade

A partir de uma análise semiológica1 da interação social, percebe-se que desde

o passado das mais remotas civilizações o convívio humano se estabelece segundo

relações de poder, em torno de instituições ideológicas.

O termo ‘ideologia’ assume diferentes significados conforme a escola de

pensamento que o analisa. Segundo uma visão materialista histórica2, trata-se do

conjunto de princípios considerados essenciais em um determinado contexto,

correspondentes às bases intelectuais de uma vanguarda política.

Conceituar ideologia como um tratado de ideias em abstrato, eminentemente

interiorizadas no ser humano, desprovidas de qualquer interação com o meio,

acarretaria uma simplificação parcial de seu significado.

O campo da ideologia é o campo do imaginário, não no sentido da irrealidade ou da fantasia, mas no sentido de conjunto coerente e sistemático de imagens ou representações tidas como capazes de explicar e justificar a realidade concreta3.

Certamente o termo denota a forma dominante de interpretar a realidade, mas

dessa interpretação só resulta dominância prática quando dela surge como efeito

uma instituição política de controle social.

1A Semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por

objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno de produção de significação e de sentido. Conceito extraído de: <<http://www.dicionarioinformal.com.br>>, acesso em: 09/02/2015.

2“Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem entre outras coisas uma consciência, e é em consequência disso que pensam; na medida em que dominam enquanto classe e determinam uma época histórica em toda a sua extensão, é lógico que esses indivíduos dominem em todos os sentidos, que tenham, entre outras, uma posição dominante como seres pensantes, como produtores de ideias, que regulamentem a produção e a distribuição dos pensamentos da sua época; as suas ideias são, portanto, as ideias dominantes da sua época.” ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã, p.29.

3ALVES, Allaôr Caffé. Estado e ideologia: aparência e realidade, p.287.

11

A compreensão da ideologia, e a análise de sua influência na formação de um

modelo de Estado que segue determinados valores jurídicos passa, em princípio,

pelo estudo do homem.

A evolução humana é observada historicamente pelo aprimoramento na

satisfação das necessidades básicas e pela procura de melhorar as condições de

vida, fatores que levaram a espécie a estabelecer vida social.

Nos primórdios da história, a preocupação do homem consistia apenas em

sobreviver, ante o estado de carência das condições materiais. As primeiras

instituições sociais correspondem a uma decorrência das necessidades humanas e

foram determinadas segundo uma relação de poder, a fim de garantir certo tipo de

ordem. “O poder, num sentido social ou político, implica autoridade e uma relação de

superior para inferior4”.

A distribuição do poder em sociedade implica em relações de imposição e

submissão entre os indivíduos, e o exercício do poder está historicamente

relacionado à posse e utilização do conhecimento5.

Nas primeiras sociedades, a sobrevivência ocupava a maior parte da

preocupação humana, pouco era o tempo restante e raros os que tinham disposição

a proceder na investigação das causas do mundo.

O poder em sociedade derivava do domínio do conhecimento, da compreensão

das causalidades. Nas civilizações originárias o saber é considerado um dom, uma

virtude que emana do divino. Intrinsecamente, o conhecimento pode ser aplicado

como ferramenta política, estabelecendo o vínculo entre o saber e o poder.

Esse binômio (saber e poder) representa a correlação entre a capacidade

intelectiva e a possibilidade de sua aplicação política. Contudo, ainda que estejam

historicamente relacionados, desde a Grécia clássica esses conceitos são

ideologicamente considerados heterogêneos.

4KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado, p.191. 5“O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber.” FOUCAULT, Michel. A verdade e as

formas jurídicas, p.51.

12

Conhecimento é o fogo celeste roubado de Júpiter pelo titã Prometeu, que

“dotou o homem da razão, e da faculdade de cultivar a inteligência, as ciências e as

artes6”.

PROMETEU Graças a mim, os homens não mais desejam a morte.

O CORO Que remédio lhes deste contra o desespero?

PROMETEU Dei-lhes uma esperança infinita no futuro.

O CORO Oh! Que dom valioso fizeste aos mortais!

PROMETEU Além disso, consegui que eles participem do fogo celeste.

O CORO O fogo?!... Então os mortais já possuem esse tesouro?

PROMETEU Sim; e desse mestre aprenderão muitas ciências e artes7.

O poder, por outro lado, “é taxado de ignorância, inconsciência, esquecimento,

obscuridade8...”. Considera-se o domínio político um ato contrário à natureza, injusto

quando implica a imposição de comandos que não estejam de acordo com a lei da

razão.

Neste sentido, entendemos que a prevalência do direito natural sobre o direito

positivo ilustrada em Antígone9 demonstra que o poder político do rei Creonte não

possui legitimidade quando vai de encontro à lei natural que vincula os homens aos

deuses.

CREONTE (...) Fala, agora, por tua vez; mas fala sem demora! Sabias que, por uma proclamação, eu havia proibido o que fizeste?

ANTÍGONE Sim, eu sabia! Por acaso poderia ignorar, se era uma coisa pública?

CREONTE E apesar disso, tiveste a audácia de desobedecer a essa determinação?

ANTÍGONE Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando vigoram!10 (...).

6SÓFOCLES. Rei Édipo; Antígone; Prometeu acorrentado: tragédias gregas, p.111. 7Ibidem, p. 119. 8FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, p.50. 9Tragédia de Sófocles de escrita estimada em 441 a.C. 10SÓFOCLES. Rei Édipo; Antígone; Prometeu acorrentado: tragédias gregas, pp.85-6.

13

Os valores ocidentais clássicos em que se assenta nossa civilização estão

consubstanciados no argumento de que entre o conhecimento e o poder há uma

contradição explícita, à medida que somente aquele conceito encerra a verdade, e a

verdade pura deve renunciar ao poder11.

O ocidente vai ser dominado pelo grande mito de que a verdade nunca pertence ao poder político, de que o poder político é cego, de que o verdadeiro saber é o que se possui quando se está em contacto com os deuses ou nos recordamos das coisas, quando olhamos o grande sol eterno ou abrimos os olhos para o que passou12.

Nossas instituições políticas foram moldadas pela ideologia jurídica que dissocia

o poder e o saber e apenas concede legitimidade às normas de direito se estiverem

justificadas na lei natural.

A lei natural constitui o conhecimento divino a ser transcrito em norma jurídica.

Numa relação verticalizada em relação à norma positiva, a lei natural estabelece

parâmetros axiológicos para que o direito seja aplicado. Pela norma jurídica o poder

político se manifesta em todas as instâncias de convívio humano.

O poder se apresenta em sociedade até nas relações mais íntimas à vida do

homem, por exemplo, a família. Na civilização romana, simbolizado na autoridade do

pater, o poder paterno impõe as regras básicas de convivência, de acordo com a

moral familiar de culto aos lares13.

O convívio primitivo entre as pequenas instituições familiares ocorre pela

interação entre esses grupos dotados de autoridades familiares distintas, mas

geralmente permeados pelo mesmo sentimento religioso.

Na base desse sentimento comum encontra-se o ponto de convergência entre o

direito natural dos seres humanos e as leis divinas relevadas, a conexão entre as

vidas humanas finitas e a infinidade do todo.

XXIV – Não te esqueças do Ser total, do qual participas numa parcela mínima, da duração total, da qual um curto, um mínimo instante te foi reservado, e que és uma ínfima parte do destino universal!14

11FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, p.51. 12Ibidem, p.51. 13“Sem dúvida, não foi a religião que criou a família, mas certamente foi ela que lhe deu normas.” COULANGES,

Fustel de. A cidade antiga, p.53. 14MARCO AURÉLIO. Meditações, p.49.

14

Quando aplicada em sociedade, a ideologia jusnaturalista impõe um tipo de

poder, um padrão de conduta moral obediente ao costume. O primeiro controle

ideológico consiste na imposição da moralidade de conduta que permite alcançar o

propósito divino. Há uma relação direta entre o sujeito e deus.

Em seguida, no âmbito do convívio, a lei natural prescreve aos homens o padrão

de comportamento social para alcançar o bem comum, de acordo com as mesmas

máximas éticas que vinculam a humanidade ao divino.

Orientado pelas premissas do direito natural, baixo aos comandos divinos da

razão, o homem tem naturalmente o direito de viver livre e socialmente o dever de

viver em paz.

O que preza a alma dotada da razão universal quer apenas conservar em sua própria alma disposições e atividades racionais e sociais, e ajudar o próximo a desenvolver idêntica disposição15.

A partir dessa concepção abstrata dos limites do direito natural16 surge a utopia

do estado em que se concretizam as máximas do suum cuique tribuere e do

neminem laedere.

Uma vez que a lei natural não possui mecanismos de execução, nem autoridade

concreta que imponha sua aplicação, o dever ser é deixado à escolha do homem,

que optará por obedecê-lo segundo sua conveniência.

No sentido de proteger a lei natural idealiza-se uma instituição política cujo

sentido consista em tornar eficaz a lei da razão, conferindo-a poder executivo

perante os cidadãos organizados em sociedade.

Os preceitos jusnaturalistas, mediante um salto qualitativo, seriam convertidos

em normas positivas dotadas de eficácia garantida por um poder político com força

executiva. Institui-se o Estado com base na justificativa de manter o convívio ético.

Essa instituição assume ideologicamente a tarefa de promover o bem comum, e

materialmente exerce controle sobre a sociedade em dois momentos – no primeiro,

15Ibidem, p.55. 16“O ponto de partida é geralmente um conceito do estado de natureza em que o homem teria vivido

primitivamente, formulado, por isso, não pela observação dos fatos atuais, mas por um esforço de abstração e imaginação.” MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito, p.272.

15

legisla, isto é, normatiza o padrão de conduta (dever ser); no segundo, o governo

resguarda a eficácia da norma pela força de execução.

Do poder político surgem dois elementos subjacentes: lei e governo,

estabelecendo-se a distinção entre os que legislam e aplicam a lei, e os que a ela se

submetem, conforme as relações e o propósito do poder.

Para garantir a ordem social, considerava-se a necessidade da imposição de

comandos normativos de conduta e mecanismos de execução, cuja imperatividade

asseguraria a força da comunidade.

A relação entre a lei e o governo coloca em evidência a questão da necessidade

de se criar um espaço institucional para o debate das questões políticas

relacionadas à comunidade.

O poder político deve assumir uma forma específica, dar corpo a um órgão

estruturante, em que a partir da análise acerca do que é conforme ou contrário ao

direito natural seja assegurado o bem comum.

O controle da vida social mediante regras de conduta de observância obrigatória

e sujeita a constrangimento legal caracteriza a forma política de poder instituído

como Estado.

O Estado é uma sociedade politicamente organizada porque é uma comunidade constituída por uma ordem coercitiva, e essa ordem coercitiva é o Direito17.

A concepção organizacional de Estado não constitui uma ideia recente.

Conforme o panorama ideológico traçado acima se percebe que a forma de controle

social é antiga como a história ocidental.

A despeito das justificativas dadas ao poder político ou ao tipo de governo

instaurado, enquanto operador da força da comunidade o Estado acompanha o

desenvolvimento das civilizações.

Inserido em distintos contextos históricos e culturais, o Estado e os elementos

que compõem sua essência (valores jurídicos e propósito do poder político) são

sujeitos à mutabilidade tanto quanto o meio em que atuam.

17KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado, p.191.

16

Em linhas gerais o Estado é visto como a instância promotora da ordem social, o

espaço em que ocorre o debate político oficial entre membros legítimos da

comunidade, submetidos ao domínio das leis.

Pelo rito de governo oficializa-se um espaço da sociedade e nesta arena política

opera-se o controle social na defesa de valores jurídicos, por meio de uma

instituição rígida, detentora dos poderes legislativo, executivo e da força coativa.

Não há uma única maneira de interpretar a finalidade e os valores jurídicos do

Estado, a diversidade de fatores que influenciam sua composição reflete as

condições materiais do meio.

A sociedade comporta uma pluralidade de indivíduos dotados de interesses

distintos, que ora se corroboram e ora se contrapõem. Quando esse choque de

interesses diz respeito ao poder político, o resultado do confronto tende a moldar a

forma do Estado. A classe que assume a soberania da instituição civil promove

consigo um arcabouço de valores, seu fundamento ideológico.

As premissas ideológicas presentes no Estado atuam como aparente

direcionamento da atuação governamental e propósito das normas jurídicas, e

consistem nos valores dominantes de um determinado cenário.

As circunstâncias econômicas e a ideologia jurídica dos séculos XVII e XVIII

foram determinantes para a configuração política do modelo de Estado de que

derivam as instituições atuais, em países que compartilham valores jurídicos

ocidentais.

O Estado hoje, no contexto geopolítico ocidental, corresponde a uma instituição

erigida sobre valores éticos comuns às democracias capitalistas ocidentais. Os

diferentes modelos nacionais encontram-se sustentados em raízes axiológicas

originadas no período do liberalismo clássico.

A história do Direito acompanha a do Estado, em ambas se estuda o

desdobramento e os efeitos das instituições em sociedade. Compreender o Estado

moderno, portanto, corresponde a investigar historicamente quais premissas foram

utilizadas para legitimar o sistema político ainda vigente.

17

Observando-se o direito do ponto de vista político, percebe-se que incumbe a

ele determinar a legitimidade jurídica da organização e da distribuição do poder do

governo na sociedade.

Analisar a neutralidade do Estado pressupõe a investigação dos valores

jurídicos em que se fundamenta o poder, interpretando de maneira crítica a

conjuntura de interesses que existem por detrás das premissas ideológicas.

Atualmente, não apenas os valores jurídicos do Estado podem ser considerados

lugar comum no contexto ocidental, também o modelo econômico adotado segue um

mesmo padrão hegemônico.

Nos próximos capítulos desenvolveremos a inquirição da correspondência

histórica entre valores jurídicos e interesses econômicos sistêmicos, no sentido de

constatar uma causalidade entre a legitimação jurídica da política e a afirmação

política do sistema econômico.

Investigaremos, em síntese, se a ideologia jurídica instituída pelo Estado

pretende convencer a sociedade de certo modelo utópico de neutralidade para, sub-

repticiamente, sustentar uma instituição política desigual.

1.2 O fundamento jusnaturalista do Estado moderno

O contexto histórico estudado compreende desde as modificações sociais da

renascença até as revoluções liberais, momento em que a interpretação

jusnaturalista do direito desenvolve uma nova imagem de Estado.

Os fundamentos dessa ideologia decorrem da reviravolta nos meios produtivos,

que suscitou um novo modelo econômico hegemônico, e da interpretação da

moralidade ética sob outro enfoque, não mais religiosamente obscuro, mas

racionalmente claro.

18

A partir de alterações concretas nas práticas econômicas e da difusão do

método científico como validação do conhecimento, desconstruíram-se as bases

material e ideológica da sociedade medieval.

A racionalidade aplicada ao mercado alterou a lógica das relações de produção;

aplicada à política, proporcionou ao fundamento ideológico do Estado aparente

certeza científica, legitimando o poder político mediante um vínculo racional18.

Percebemos que a interpretação racional do direito natural eleva a razão a sumo

atributo da natureza humana e, uma vez sendo comum a todos os humanos, a

equivalência da espécie expressa um status de igualdade.

A igualdade de status promovida pelos iluministas ia de encontro ao estratificado

sistema feudal da sociedade medieval e à justificativa jurídica dada ao poder

absolutista do Estado.

O sistema feudal, eixo econômico da sociedade medieval, foi desequilibrado

pelo modelo de produção capitalista, que desconcentrou a riqueza do estamento

patrimonialista daquela época.

Por sua vez, a ideologia jurídica dogmática não mais teve forças para sustentar

os principados absolutistas, quando exposta à interpretação racional do direito

natural e aos critérios do método científico.

No sentido de fornecer as bases intelectuais do Estado liberal, a ideologia

jusnaturalista partiu do atributo da igualdade racional para estabelecer um vínculo

jurídico entre os seres humanos. Um instrumento que funcionasse como ponto de

partida de um poder político representativo, ao mesmo tempo em que servisse para

legitimar os negócios da vida privada. Esse vínculo corresponde ao contrato.

No plano da aplicação prática o contrato funciona como vínculo jurídico

interindividual, sua força protege a propriedade privada, aliena a mão de obra,

institui o casamento, estabelece compromisso, em suma, instrumentaliza a

alteridade social.

18Ver capítulo dois infra.

19

Ideologicamente, a teoria contratualista foi utilizada como fundamento jurídico do

Estado por meio da ideia do pacto social: o contrato primitivo que institui o poder

legislativo e o governo, inaugurando a sociedade civil.

O jusnaturalismo parte das utópicas hipóteses do estado de natureza19 e da

igualdade de status20 para atribuir amplos efeitos práticos à teoria dos contratos.

Dessa abstração jurídica surge concretamente a forma política do Estado.

A legitimidade institucional do Estado está vinculada à representatividade no

campo político. O Estado moderno inova ao expandir o status representativo a todo

indivíduo dotado de razão, e o contrato social age como o símbolo desse modelo

político21.

Neste estudo dos acontecimentos dos séculos XVII e XVIII – época de declínio

da ideologia jurídica absolutista e do sistema de produção feudal, e de ascensão da

ideologia jurídica liberal e do sistema de produção capitalista – investigaremos a

correlação entre os valores do Estado moderno e as práticas econômicas.

No modelo político medieval, a obtenção de riquezas e a operacionalização

econômica do Estado derivavam eminentemente da guerra, de confisco e de litígios

judiciais22. A propriedade privada restava insegura e o direito correspondia somente

à continuidade do conflito23.

Durante a transição do sistema feudal para o capitalista alguns aspectos

econômicos passaram por significativas alterações: o valor da simples propriedade

perdeu significado diante do valor da produtividade; a alienação do trabalho adquire

proporções bastantes a torna-la o padrão da atividade produtiva; e as práticas

mercantis disseminam-se como meio de circulação de riquezas24.

A lógica de acumulação do sistema capitalista ressignifica a utilização da

propriedade privada, voltando-a para a produção em larga escala de produtos que

serão objeto de negociações mercantis.

19Ver item 3.1 infra. 20Ver item 5.3 infra. 21Ver capítulo três infra. 22FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, p.67. 23Ibidem, p.68. 24Ver capítulo quatro infra.

20

A prática econômica da racionalidade pelo lucro pressupõe o aprimoramento da

produtividade, mediante a utilização de vasta mão de obra e um conhecimento

estratégico do trabalho humano.

Pelo trabalho alienado, contratado junto ao empreendedor, o homem que não

trabalha para si opera as ferramentas e os recursos produtivos, percebendo em

contraprestação um símbolo de riqueza que lhe possibilita adquirir sua subsistência

no mercado.

A teoria econômica considera o homem por duas vezes na equação de

especulação: de um lado como assalariado, estuda-o e o disciplina, promovendo um

detalhamento das condições do ambiente, do tempo e do corpo no trabalho, a fim de

traçar um itinerário de condutas25 que estimule a produtividade; de outro, como

consumidor, considera-o o destinatário da demanda produzida, aquele que absorve

a oferta e remunera a aquisição com moeda, valorizando o investimento do

empreendedor e refinanciando o processo produtivo.

A produção e o consumo completam o ciclo das relações econômicas

capitalistas e conduzem o sistema feudal ao esquecimento. O modelo liberal altera

os pressupostos de concentração de riqueza, promovendo uma nova dinâmica de

domínio econômico que reflete influência no poder político.

Intrínseca e simultaneamente à nova conjuntura de forças entre os poderes

político e econômico, a moralidade iluminista elevou-se a fundamento jurídico de

justificação do poder político.

A interpretação racional do direito natural realizada por meio da união entre a

essência ética estoica e o método científico26 possibilitou a reformulação do Estado

Medieval.

Incorporado ao discurso ideológico oficial, o racionalismo desconstruiu as bases

jurídicas do principado absolutista, substituindo-as pela forma liberal de governo

representativo.

25“O poder se articula diretamente sobre o tempo; realiza o controle dele e garante sua utilização.” FOUCAULT,

Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão, p.154. 26Ver capítulo dois infra.

21

O símbolo da ideologia jurídica do Estado, ante a mutação do cenário

econômico e das bases da moralidade medieval, recai sobre o contrato, em cuja

teoria justifica-se sua necessidade tanto como forma de validação de vontades

(contrato como vínculo racional), quanto como fundamento axiológico da vida

social (vínculo ético).

O desdobramento da estrutura jurídica em específicos mecanismos de controle,

e o estabelecimento da lei positiva com o sumo propósito de proteger a propriedade

privada são resultado do rearranjo institucional do Estado, influenciado pela

ideologia jusnaturalista e determinado pela infraestrutura econômica.

O direito natural herdado da doutrina escolástica passou por uma remodelagem

liberal no período clássico: o encaminhamento da revolução social por meio da

alteração das práticas econômicas, e a consequente reformulação dos conceitos

jurídicos (liberdade, igualdade, propriedade e fraternidade) impulsionaram a

reconfiguração do poder político27.

A igualdade racional dos seres humanos, ilustrada pelo vínculo contratualista,

consistiu no fundamento precursor da estratégia política do Estado moderno. Como

denominador comum, o Estado apresentava-se aparentemente neutro quanto ao

poder.

Os valores liberais foram responsáveis por sedimentar o jusnaturalismo

iluminista no Estado, por meio da teoria do contrato, delineando o contorno político

institucional conforme as práticas econômicas.

Conforme análise dos próximos capítulos, percebemos que o Estado moderno

incorpora uma específica instância de intermediação interindividual, que a despeito

da aparente neutralidade, atua politicamente na defesa do sistema econômico

dominante.

27Ver capítulo cinco infra.

22

2 A interpretação racional da filosofia do direito

Este trabalho não compreende as épocas anteriores ao desenvolvimento do

Estado moderno, entretanto, sua análise se faz necessária, uma vez que a

continuidade entre ideias de distintos períodos da humanidade ocorre naturalmente

no processo histórico.

A construção dos valores jurídicos do Estado moderno ocorreu lentamente com

a gestação do pensamento politico acumulado ao longo de uma serie de distintas

interpretações. Sujeito à gradual transitoriedade do mundo, o Estado não nasceu de

súbito.

A síntese a que correspondeu a ideologia jurídica institucional remonta a um

processo de construção racional do conhecimento, mediante sistematização do

método científico e ceticismo na valoração do mundo. A filosofia política assume um

aspecto distinto das premissas ideológicas que encabeçavam o momento histórico

imediatamente anterior.

A hermenêutica jurídica iluminista adapta-se ao formato da realidade empírica

dos novos modos de produção e promove a alteração do fundamento ético outrora

vigente, interpretando sob outro ponto de vista o direito na vida social e na prática

econômica28.

A interpretação racional da filosofia do direito promoveu a ressignificação de um

elemento filosófico de suma importância para a sociedade medieval: a ética.

Falar em ética é falar em escolha individual. E falar em escolha humana é falar na nossa inescapável falibilidade no pensamento e no agir. Ética, liberdade de escolha e falibilidade são conceitos ligados entre si de modo inextrincável29.

A moral religiosa, imperativa sobre a filosofia medieval, perdeu espaço para uma

nova abordagem crítica das questões metafísicas do homem. Como especulação

28A análise da revolução nas bases econômicas do mundo medieval para o moderno encontra-se no capítulo

quatro infra; a influência dessa revolução nos valores jurídicos é objeto de análise do capítulo cinco. 29GIANNETTI, Eduardo. Vícios privados, benefícios públicos? : a ética na riqueza das nações, p.21.

23

filosófica que lida com o comportamento humano: “A ética lida com aquilo que pode

ser diferente do que é30”.

O poder da religião possuía significativa influência na formação política da

sociedade medieval. No período, a moralidade cristã exercia de maneira soberana a

função de modelador comportamental dos indivíduos.

Durante a alta Idade Média a influência da religião na política e a justificação

dogmática do Estado mantiveram-se inquestionáveis, a Igreja sustentava a

autocracia rural, legitimando o poder político e fomentando as guerras santas, no

sentido de expandir o domínio ideológico do cristianismo e seu próprio domínio

territorial.

A baixa Idade Média preservou as relações de poder e os fundamentos

religiosos de Estado, contudo, haja vista o fracasso na empresa militar e o

surgimento de novos parâmetros gnosiológicos nas ciências físicas e na filosofia,

esse declínio resultou na desconstrução do poder político do Estado absoluto.

Pela justificação da autoridade divina do Estado, não há questionamento à

legitimidade do poder político terreno. A sujeição à autoridade é encarada como um

direito natural, e o príncipe possui livre discricionariedade para conduzir a sociedade.

A Renascença abarcou as primeiras manifestações de dissonância ao poder

político dos principados cristãos, propondo mudanças drásticas nas premissas

jurídicas que sustentavam a forma de governo.

Nos séculos XVI e XVII a cultura predominantemente cristã da Renascença,

dentro de seu rigoroso dogma, começava a irradiar luzes aos paradoxos aos quais a

ideologia religiosa não fornecia justificativa satisfatória.

Com Descartes e Galileu inicia-se uma nova era de ‘ideias claras e distintas’. À luz brilhante e nítida das ‘duas novas ciências de Galileu e da análise geométrica e lógica de Descartes, as ‘ciências ocultas’ da Renascença começaram a perder terreno31.

Em princípio no plano das ciências da natureza, indagação analítica e

observação empírica começam a delinear os contornos da ação racional. O

pensamento matemático aplicado ao espaço e ao tempo passa a extrair conclusões

30Ibidem, p.19. 31CASSIRER, Ernst. O mito do Estado, p.181.

24

válidas, formular conceitos incontroversos, fornecendo uma espécie de certeza

científica; esboça-se uma teoria física.

A filosofia tem por objeto de conhecimento os aspectos físicos e metafísicos que

se apresentam na vida humana. Os questionamentos suscitados por filósofos

iluministas redefiniram a sabedoria acerca do mundo palpável, e os resultados

cientificamente obtidos contraditaram certas premissas religiosas que explicavam o

mundo físico à sua maneira.

O desenvolvimento do pensamento filosófico, desta forma, tem lugar comum

com o pensamento físico, ao definir certos axiomas e postulados em busca de

demonstrar sua validade tal qual ocorre com as ciências da natureza.

A filosofia política passa a formular “juízos que possuem a mesma validade

objetiva e são capazes da mesma firme demonstração que qualquer proposição

matemática32”.

A busca pela demonstração objetiva do conhecimento ia de encontro aos

dogmas religiosos. De acordo com a concepção dogmática, a compreensão das

peculiaridades do mundo derivava da interpretação de um saber revelado aos

homens, responsável por atribuir ao intérprete autoridade.

Sob o enfoque escolástico, a filosofia jurídica partia da existência de um direito

revelado, isto é, normas de conteúdo ético transmitidas pela entidade divina ao

príncipe, que deveriam fundamentar a legislação e o governo civil.

O direito revelado não comporta em si a objetividade e verificabilidade do

método científico. A ideia da base jurídica do Estado ser revelada e imobilista se

opunha à forma como a nascente filosofia iluminista procurava compreender a

relação entre o poder e o direito em sociedade.

As premissas do Estado absolutista, sustentado por direitos místicos e atributos

divinos, passaram a esbarrar no novo método de conhecimento, dotado de

racionalidade científica e empirismo prático.

32Ibidem, p.182.

25

A propagação do método racionalista enuncia a reelaboração do conhecimento

jurídico, mediante uma nova definição do estado de natureza e pela formulação

sistemática dos direitos individuais.

Nesse contexto florescem as ideias dos filósofos: a evidência, a clareza, a conformidade com a razão; um universo admirável, mecânico, obedecendo as leis eternas estabelecidas por um ser supremo, Deus, ao mesma tempo ‘todo-poderoso e todo inteligente’; um mundo fundamentado sobre leis naturais, um direito natural, uma moral natural, que convém redescobrir; (...)33.

A lei natural passa a ser considerada cientificamente demonstrável e assume

força de verdade imutável e eterna, o discurso jusnaturalista feito à espécie humana

faz da razão o denominador comum, de caráter universalmente válido.

Com o declínio da influência religiosa no poder político do Estado medieval, a

tarefa da ideologia jurídica racionalista consistia em demonstrar a validade da

política pela filosofia tal qual se demonstrava a das ciências físicas pela matemática.

A partir do método científico os pensadores racionalistas investigavam o mundo

segundo critérios espaciais e temporais, e igualmente acreditavam na necessidade

de investigar as relações da natureza humana com a política, questionando o

fundamento ideológico do Estado34.

Para haver uma alteração valorativa de fundamentos do poder político, a

interpretação racional do direito promove a alteração jurídica dos fundamentos

institucionais. “Nem Deus, nem História. A Razão humana, acima da História e

independente de Deus, deveria indicar aos homens o caminho da juridicidade35”.

O contexto do enfraquecimento da escolástica medieval frente ao surgimento da

teoria racionalista reflete a síntese das alterações sociais latentes36. Os poderes

ideológicos da religião e do Estado, por longo período justificados unitariamente,

33BEAUD, Michel. História do capitalismo: de 1500 aos nossos dias, pp.79-80. 34“O mesmo vale para Hobbes. Desde o princípio da sua Filosofia, ele tinha a grande ambição de criar uma

teoria do corpo político igual à teoria de Galileu dos corpos físicos – igual em claridade, em método científico e em certeza”. CASSIRER, Ernst. O mito do Estado, p.182.

35BATALHA, Wilson de Souza Campos; RODRIGUES NETTO, Sílvia Marina L. Batalha de. Filosofia jurídica e história do direito, p.56.

36“Os acontecimentos mais dramáticos da história são aqueles que causam o desmoronamento simultâneo das instituições políticas e das instituições sociais”. DE JOUVENEL, Bertrand. As origens do estado moderno: uma história das ideias políticas no século XIX, p.66.

26

sofrem uma continuada ruptura que se inicia no florescimento da ideologia jurídica

liberal, ainda na renascença.

Diante do processo de reconfiguração do poder do Estado, distanciando-se da

influência da igreja e aproximando-se da interpretação filosófica racional, os

principados absolutistas perdem espaço para a forma política do Estado

representativo.

O advento do método científico de conhecimento conduziu as bases jurídicas

ideológicas do Estado moderno ao predomínio de uma aparentemente neutra

racionalidade.

A partir do método científico, a interpretação racional do direito sustentará a tese

de um novo pressuposto moral entre o poder político e a sociedade, um vínculo

tanto racional quanto ético.

2.1 A justificativa moral do sujeito livre

O enfoque racionalista adquirido pela filosofia política inaugura uma

hermenêutica distinta da teoria dogmática, ainda que ambas consistam em

interpretações teológicas do poder.

Objeto comum tanto da filosofia eclesiástica quanto da racionalista, o direito

natural representa o arcabouço de exigências que a natureza impõe ao homem.

Trata-se da ideia de um conjunto de leis eternas no tempo e no espaço, não

escritas, verdadeiras e de ordem racional.

Desde a Grécia antiga, as questões essenciais da política gravitam em torno do

direito natural, em suas prerrogativas e obrigações inatas à razão e vinculadas ao

divino37.

37Ver capítulo introdutório, item 1.1.

27

Com o pensamento racionalista, a relação entre deus e o homem não deixa de

corresponder ao centro das indagações filosóficas, passa apenas a ser encarada

segundo uma nova perspectiva, distante da dogmática das escrituras e mais

próxima da investigação lógica das causas.

A teoria eclesiástica justifica o Estado a partir do conhecimento revelado pela

entidade divina, entidade esta que corresponderia à figura do criador do universo, da

razão e dos seres humanos.

Nesse sentido, a razão consiste no fruto de um ser divino que a transcende, e o

direito natural é encarado como fonte jurídica secundária, subordinada a um direito

divino, anterior e mais abrangente.

O conhecimento jurídico revelado torna perceptível, num primeiro momento, a

igual subordinação dos homens ao divino, e destaca a razão como o atributo natural

da espécie, concedido pelo criador. Nessa perspectiva há duas relações de direito: a

primeira entre o indivíduo e deus e a segunda dos indivíduos entre si.

Para a filosofia escolástica as máximas jusnaturalistas expressam a ética do

dever ser, preenchendo o conteúdo do livre arbítrio em direitos e deveres conformes

à razão.

Acima da razão, contudo, colocam-se as imposições verticais da dogmática

religiosa que delimitam a atuação do indivíduo em sociedade a limites mais estreitos,

outorgados pelo direito divino e impostos pelo Estado absolutista.

A análise jusnaturalista medieval revela uma interpretação mais restritiva ao

conceito de livre arbítrio, nela os limites da ação humana passam não só pelo crivo

da razão, mas também pelo filtro de dogmas religiosos.

A filosofia jurídica medieval examina a essência por detrás das relações de

poder segundo o comando das normas reveladas. O conhecimento místico

superpõe-se à investigação racional das causas, fazendo do Estado medieval uma

instância de interpretação teológica.

A cultura da sociedade medieval ocidental estava envolta na moralidade cristã. A

partir da interpretação dogmática das escrituras construíam-se as instituições sociais

28

do período, e segundo o padrão ético revelado, a conduta individual era moldada

pelas normas jurídicas absolutistas.

O estreito laço entre a instituição religiosa (Igreja) e a instituição política (Estado)

possibilitava um rígido controle da sociedade, submetendo-a a moral cristã, à lei civil

e ao governo.

O vínculo entre a Igreja e a autocracia rural foi responsável por originar uma

forma política de conteúdo jurídico eclesiástico e absolutista, o Estado medieval

corporificou-se nos principados, justificados, em última instância, a partir de Deus.

Por séculos essa correlação de forças político-jurídicas manteve-se vigente, até

o momento em que a unidade entre a Igreja e o Estado passou a enfrentar ameaças

de secessão. Após anos de conflito entre Igreja e Estado:

A unidade e profunda harmonia da cultura medieval tinham sido desfeitas. (...) O cismo dentro da Igreja punha em perigo e minava os alicerces do dogma cristão. Nem o mundo religioso nem o mundo ético pareciam possuir um centro fixo. Durante o século XVII teólogos e filósofos acalentaram a esperança de encontrar novamente esse centro38.

A partir da Renascença, a sociedade e o Estado passaram por significativas

alterações em relação aos padrões medievais, fazendo necessária a modificação

das bases ideológicas tornadas obsoletas.

A perda de influência política da religião a partir da reinterpretação do direito

natural provocou a falência dos fundamentos do Estado absolutista. O contexto

histórico moderno fazia emergir um poder político que necessitava de outra forma

ideológica.

A validação do poder do Estado moderno tinha de ser operada segundo valores

jurídicos sustentados por uma nova moralidade ética. Essa operação foi feita

mediante o revolvimento das ideias estoicas.

A influência do pensamento estoico fora contínua e permanente. Podemos descobri-la na jurisprudência romana, nos Padres da Igreja, na Filosofia escolástica. Mas tudo isso era mais de um interesse teórico que de um efeito prático imediato. O tremendo significado prático dessa grande corrente de pensamento só aparece nos séculos XVII e XVIII. A partir de

38CASSIRER, Ernst. O mito do Estado, p.186.

29

então a teoria do direito natural deixa de ser uma teoria ética abstrata para

se tornar numa das molas da ação política39.

Ao longo da história, a cultura helênica não deixou de se fazer presente nas

sociedades. O pensamento grego estabeleceu parâmetros para as civilizações que

sucederam e muitas das diretrizes filosóficas iniciadas no helenismo mantêm-se

vivas.

A escola estoica caracterizou-se por um acentuado interesse filosófico pela

ética. Fundada por Zenão40, a escola desenvolveu-se no sentido de fornecer

orientações morais passíveis de conduzir a vida humana de maneira racional e

virtuosa.

Para os estoicos, a ação racional corresponde à própria felicidade, que por sua

vez só é alcançada a partir da virtude, que se trata do padrão ético de

comportamento que o homem deve apresentar41.

A virtude estoica representa o culto à sabedoria e a indiferença em relação a

tudo o que escapa ao controle do homem. Ao homem estoico basta a autarquia

interior, uma vez que o restante encontra-se sujeito ao determinismo universal; a

ação humana encontra limites no fatalismo da natureza.

A filosofia estoica consistia em um guia para a vida virtuosa e a uma preparação

para a morte, sua ética defende o pensamento racional e se opõe à paixão,

enxergando na última os vícios da natureza humana.

O estoicismo esteve silenciosamente presente em Roma e ao longo de toda a

Idade Média, ainda que mitigado sob a forma de mera prática religiosa de disciplina

física e mental.

No período da Renascença, todavia, sua tese da racionalidade da natureza

humana42, garantiu os fundamentos teóricos do nascente Estado moderno. “O

39Ibidem, p.185. 40Zenão de Citium, 334 a 262 a.C. 41“Pois então, só uma coisa é digna de estima: cultivar a verdade e a justiça, ser tolerante até para os

mentirosos e os injustos.” MARCO AURÉLIO. Meditações, p.61. 42“O estoicismo não teria realizado sua missão histórica sem essa clara aliança entre o pensamento filosófico e

o pensamento politico”. CASSIRER, Ernst. O mito do Estado, p.119.

30

Direito natural assume, nos tempos modernos, aspecto de combatividade política

(...) 43”.

Pode-se alegar que a apathea estoica contradizia a combatividade racionalista,

pois aos estoicos bastava a intimidade com o saber racional, enquanto que aos

iluministas importava emprega-la na realidade prática, a seu favor. Ocorre que à

teoria estoica incumbia somente desempenhar uma reconciliação ética na cultura

moderna:

E somente o estoicismo parecia capaz dessa finalidade. Tornou-se o alicerce de uma religião ‘natural’ e de um sistema de direito natural. A Filosofia estoica não podia auxiliar o homem a resolver os problemas metafísicos do universo. Mas continha uma promessa maior e mais importante: a promessa de restaurar o homem na sua dignidade ética44.

Inserido na tradição cristã, o indivíduo se orientava e justificava seus direitos no

sentido de uma integridade moral religiosa. Sob a interpretação estoica, a ética do

indivíduo abandona sua qualidade dogmático-religiosa, direcionando a natureza

humana ao pressuposto ideológico da moralidade do sujeito racional.

A mudança promovida pela reconciliação ética resultou não somente em uma

nova concepção homem, mas também em outro modo de enxergar deus. A razão

deixa de ser considerado instrumento da criação divina, para assumir-se essência

da divindade em si.

O direito natural, antes subordinado ao direito divino, adquire autarquia; a razão

e deus agora se confundem. “Deus, ou seja, uma substância que consta de infinitos

atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita existe

necessariamente45”.

Da ideia estoica de que a razão corresponde ao atributo transcendental da

realidade, a filosofia racionalista conclui que, nos infinitos aspectos físicos e

metafísicos do universo, toda esta realidade equivale a Deus46.

43BATALHA, Wilson de Souza Campos; RODRIGUES NETTO, Sílvia Marina L. Batalha de. Filosofia jurídica e

história do direito, p.55. 44CASSIRER, Ernst. O mito do Estado, p.186. 45SPINOZA. Ética, p.19. 46“Tudo o que existe é atributo de Deus, ou afecção de algum atributo de Deus.” Ibidem, p.22.

31

As leis do universo são regidas segundo um determinismo racional, “não existe,

na natureza das coisas, senão uma única substância (...)47”.

A partir do método científico, a filosofia racionalista argumenta no sentido de

demonstrar por meio de proposições matemáticas e argumentos lógicos a existência

de deus, construindo sob um novo enfoque a moralidade ética dos valores jurídicos.

O vínculo entre os seres humanos e a lei natural corresponde também à

aproximação daqueles em relação a deus, pois a razão se estende dos “seres finitos

dotados de razão e vontade, incluindo até o ser infinito como inteligência suprema48”.

A ética racional substituiu a religião como justificativa do poder político, por

estabelecer suas proposições mediante um raciocínio científico, sem, contudo,

abandonar a abordagem teológica.

E como todos os homens são obra de um Artífice onipotente e infinitamente sábio – todos servos de um único senhor soberano, aqui postos por ordem d’Ele, para cumprir-lhe a missão –, são propriedade d’Ele que os gerou, destinados a durar o tempo que a Ele aprouver, e não a uns e outros49...

A reconciliação ética encontra-se justamente no estabelecimento dessa ponte

entre o humano e o divino sem o intermédio de profecias ocultas, mas sim mediante

o atributo comum entre ambos. A lei da razão vincula o homem a deus.

A vontade moral do sujeito livre50 da filosofia jusnaturalista dialeticamente

contradita a dogmática do livre arbítrio cristão, e origina como contracultura a

aplicação política do pensamento racional.

Igualados os homens enquanto sujeitos racionais dotados de vontade moral faz-

se o enlace entre eles e deus, concretizando o fundamento jusnaturalista em que se

assenta o Estado moderno.

47Ibidem, p.19. 48KANT, Immanuel. Crítica da razão prática, p.51. 49LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.16. 50“Por conseguinte, a liberdade do homem e a liberdade de agir consoante à própria vontade baseiam-se no

fato de possuir ele razão bastante para instruí-lo na lei que terá de ser seu rumo, dando-lhe a saber até que ponto estará ao sabor da própria vontade”. Ibidem, p.48.

32

2.2 Da autodeterminação ética ao contratualismo político

No período renascentista a distribuição do poder político começava a se alterar

de acordo com a nova conjuntura econômica. A transição de poder da nobreza em

declínio para o empreendedorismo capitalista assinalava que a ideologia dominante

do Estado absolutista seria contraditória à organização econômica do novo sistema

de produção.

Fez-se necessário dar início à formação de uma nova tese jurídica do poder do

Estado, pautada não mais pela hereditariedade dos privilégios, mas por uma

igualdade inerente à espécie humana.

A incompatibilidade entre o Estado absolutista e o embrionário modelo

econômico capitalista encontrou solução por meio da aplicação política do

pensamento racional.

Segundo esse pensamento, a igualdade natural dos homens proporciona

equivalente representatividade política e chances à ascensão econômica. A doutrina

liberal utiliza o jusnaturalismo como justificativa econômica do interesse individual,

vinculando-o à ideia de progresso, “... a luta pelo ganho material é a moral agindo

como cimento social51”.

As décadas entre o renascimento e as revoluções liberais do século XVIII

correspondem a um período em que as mudanças no eixo econômico alteravam a

própria ideologia do poder político.

Os novos meios de produção de riqueza, o crescimento da capacidade produtiva

e a expansão do domínio econômico fizeram com que a classe comercial assumisse

parte na tomada das decisões políticas.

51CARNOY, Martin. Estado e teoria política, p.42.

33

A derrocada da aristocracia frente à nova classe colocava em contradição a ideia

de que só o direito ao governo é hereditário. A condição humana assume o papel

de justificação da representatividade universal.

Do jusnaturalismo advém a premissa de que a vontade moral do sujeito livre

decorre da igual racionalidade da espécie, e considerar os seres humanos

formalmente iguais consiste no primeiro aspecto da reformulação do Estado.

Pelo ponto de vista da ideologia jurídica liberal, tratam-se os indivíduos dos

construtores de uma ordem econômica individualisticamente idealista. Para tanto, a

liberdade do indivíduo deverá assumir proporções econômicas e políticas52.

A vontade livre deve se submeter apenas à lei da razão – objetivamente

indispensável – e à vontade coletiva – subjetivamente concebida como o Estado. O

homem é dotado naturalmente de autodeterminação racional e disciplinado

politicamente pelas leis civis, desde que estas sejam conformes àquela.

A racionalidade é enaltecida como a lei moral determinante da vontade

subjetiva, e mediante essa moralidade ética o poder político justifica a legitimidade

das normas jurídicas.

A fim de tornar coerente a aplicação política do jusnaturalismo, os iluministas

necessitaram organizar sua argumentação sistematicamente, dotando-a do teor

científico que consolidaria no Estado a aparência de racionalidade, universalidade e

lógica.

A lei natural é o ponto de partida da ideologia liberal clássica: “A razão pura é

por si mesma prática, facultando (ao homem) uma lei universal que denominamos lei

moral53”.

Ao exaltar a autonomia e a suficiência da razão humana, KANT (1788)

pressupunha inato em todos os homens a consciência de uma lei moral fundamental

condicionante da vontade, e que: “portanto, é um imperativo que manda

categoricamente, porque a lei é incondicionada54”.

52Ver capítulo cinco infra, subitem 5.2. 53KANT, Immanuel. Crítica da razão prática, p.49. 54Ibidem, p.51.

34

O argumento de que a imperatividade da lei natural decorre da igualdade

racional dos seres humanos exclui a hipótese de que exista desigualdade de fato: “A

vontade é concebida como independente de condições empíricas e, por

conseguinte, como vontade pura, determinada mediante a simples forma da lei (...)

55”.

Se por um lado há uma constatação empírica da racionalidade humana, por

outro o raciocínio é conduzido a uma abstração de todos os demais aspectos da

vida social. Há um nivelamento pela forma (a condição humana), mas um

alheamento de conteúdo em relação à realidade.

Avalia-se o homem apenas pelo prisma de sua natureza e nesse aspecto a

racionalidade da espécie é bastante para congregar todos perante o imperativo

moral.

Minimizam-se as diferenças concretas, posto que empíricas, e sobressai um

idealismo que “tem o caráter de verdades universais e eternas56”, distante da

realidade, mas útil porque conveniente ao estabelecimento de uma equivalência57.

Agora, convenhamos: este princípio da moralidade, precisamente pela universalidade legislativa, que o torna fundamento determinante formal da vontade, independente de todas as diferenças subjetivas da mesma, declarando-o a razão, ao mesmo tempo, lei para todos os seres racionais conquanto tenham uma vontade (...) 58.

Os postulados da filosofia jusnaturalista conduzem ao raciocínio de que a

natureza proporciona a cada indivíduo igual capacidade para autodeterminação.

Dessa maneira, a racionalidade atribui à espécie humana o status da igualdade

perante o direito natural.

Uma vez considerados equivalentes, compete aos homens orientar suas vidas

de maneira ética, de modo que o convívio social e os compromissos estabelecidos

encontrem resguardo na lei natural e, por conseguinte na razão.

55Ibidem, p.49. 56CASSIRER, Ernst. O mito do Estado, p.182. 57Ver capítulo cinco infra. 58KANT, Immanuel. Crítica da razão prática, pp.50-1.

35

Constrói-se a ideia de que as instituições sociais somente adquirem legitimidade

se estabelecidas mediante compromissos que a todos vincule, tendo em vista o igual

status da natureza humana.

Quando a filosofia jusnaturalista, empregada pela vanguarda iluminista, assume

proporções de ação política, a força do compromisso passa a ser aplicada também

em relação ao Estado, “... por que não é qualquer pacto que faz cessar o estado de

natureza entre os homens, mas apenas a concordância mútua em formar uma

comunidade, estabelecendo um corpo político59”.

O contratualismo é uma vertente do direito natural que estabelece na

coletividade uma instância política racional, a quem se atribui determinar a lei civil e

o governo.

As especulações jusnaturalistas constroem a ideologia da origem do Estado

moderno mediante o contrato, elaborando um comparativo abstrato entre o momento

anterior (estado de natureza) e posterior (estado civil) à formação das sociedades

políticas.

O contrato social não consiste em uma criação do período iluminista, trata-se

de uma utopia política manifestada inicialmente no pensamento helênico, reavivada

pela vanguarda liberal dos séculos XVII e XVIII.

De toda a cultura grega que se manteve viva ao longo dos séculos e daquilo que

foi absorvido pelo iluminismo, destaca-se a espiritualidade ética que reacendeu a

primitiva ideia estoica do pacto social.

A força ética do contrato social esteve presente nas mais variadas vertentes

políticas da Idade Moderna, manifestando-se em doutrinas absolutistas, tal qual a de

HOBBES (1651), assim como noutras liberais, como a de LOCKE (1689).

O modelo de Estado de Hobbes possibilita analisar a influência do

contratualismo nos indivíduos da sociedade medieval, no contexto histórico de uma

forma política conservadora.

Diante da reorganização produtiva da sociedade ocasionada pela ascensão do

sistema capitalista, o Estado conservador defendido por HOBBES (1651) sucumbiu.

59LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.21.

36

Ainda assim, as linhas gerais do modelo continuaram presentes na forma política

liberal que sucedeu. A partir daí, LOCKE (1689) demonstrou a aplicação do

contratualismo político no racionalismo prático das relações econômicas.

A teoria do contrato social consiste em uma construção jusnaturalista da

sociedade, mediante a qual o Estado origina-se do pacto estabelecido entre sujeitos

iguais, ao menos formalmente. O capítulo seguinte cuidará da exposição detalhada

do tema.

37

3 Contratualismo político: o pacto social

3.1 Alegoria do estado de natureza

Para ilustrar o nascimento das sociedades políticas pelo pacto social, faz-se

necessário, primeiramente, propor a indagação a respeito de como ocorreriam as

relações interindividuais antes do estabelecimento da lei civil. Esta abstração

corresponde ao estado de natureza.

Entendemos que, de certa forma, o estado de natureza assume um caráter

mitológico, haja vista que a história humana é marcada pela presença constante do

governo, ainda que sob formas distintas. Nos registros da história humana, desde as

civilizações mais antigas, como a babilônica e a mesopotâmica, já se

apresentassem características de sociedades políticas.

O motivo dessa abstração jusnaturalista consiste em que na sociedade política

que antecede o modelo liberal há uma inerente desigualdade de status entre os

indivíduos.

A teoria dos contratos e os valores jurídicos liberais que se propagavam no

prólogo e no limiar das revoluções iluministas necessitavam partir de um

denominador comum, que se fazia ausente na estratificada sociedade anterior.

Iniciando sua argumentação a partir do estado de natureza, as doutrinas

políticas contratualistas conseguiam alcançar esse denominador comum pelo

conceito de igualdade natural decorrente da razão humana.

Em relação ao Estado medieval, o Estado moderno promove uma modificação

simbólica, no sentido de atenuar a desigualdade de status. Toda a ideologia liberal é

calcada no consenso, que só se alcança quando as partes se equivalem.

Já em doutrinas políticas escolásticas encontrava-se o embrião da

imperatividade da lei natural. As ideias jusnaturalistas da época moderna

38

absorveram máximas de justiça e caridade da religião cristã, procedendo na

mudança de um foco dogmático das leis divinas para analisar a lei natural pelo

prisma da razão.

Sob a Terra todos os homens nascem dotados de igual capacidade de

raciocínio60, no estado de natureza a ação do homem é desimpedida61, a cada

indivíduo assiste o direito natural de agir em liberdade62 e o “direto privilegiado sobre

qualquer outra pessoa, de herdar, com os irmãos, os bens do progenitor63”.

O estado natural corresponde à condição originária de toda a espécie humana,

trata-se da situação em que a natureza qualifica os homens “(...) criaturas da mesma

espécie e da mesma ordem, todas aquinhoadas aleatoriamente com as mesmas

vantagens da natureza e com o uso das mesmas faculdades64”.

A lei fundamental da natureza estipula o equilíbrio que deve haver entre os

direitos de cada um face ao de todos os outros:

(...) o homem deve concordar com a renúncia a seus direitos sobre todas as coisas, contentando-se com a mesma liberdade que permite aos demais, na medida em que considerar tal decisão necessária à manutenção da paz e de sua própria defesa65.

Ocorre que nesse estado cada homem tem direito sobre todas as coisas66 e,

portanto, a vontade de cada um esbarra na do outro, ocasionando litígios que se

resolvem tanto por meios pacíficos, quanto mediante violência. O estado natural

possibilitar a perfeita igualdade, em que não há superioridade ou jurisdição de um

ser sobre o outro que decorra da natureza.

No estado de natureza, o homem tem a liberdade de exercer dois poderes: o primeiro está em fazer o que julgar adequado para a própria preservação e a dos outros, dentro do que permite a lei da natureza; esta, sendo comum,

60HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, p.102. 61No estado de natureza o homem procede “sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro

homem”. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.15. 62Liberdade, segundo o autor, corresponde à: “ausência de empecilhos externos, que podem, muitas vezes,

tirar parte do poder de cada um de agir como quiser, mas não impedir que cada pessoa use o poder restante de acordo com seu julgamento e razão”. HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, p.107.

63LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.124. 64Ibidem, p.15. 65HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, p.108. 66Ibidem, p.108.

39

ele e os demais membros formam uma comunidade, constituindo uma sociedade única, distinta de todas as demais67.

Antes da criação do Estado o convívio entre semelhantes ocorria em atenção

aos costumes, sob a autoridade familiar e em obediência à religião. A despeito da

moralidade muitas vezes coercitiva dessas instituições, inexiste poder soberano

fundado em lei civil.

Nesse sentido, ainda que a sociedade possua aparatos de coerção moral, não

há uma instância de poder jurídico que instaure e vigie a lei, e na ausência dela

inexistem os conceitos de justiça e injustiça68.

O movimento de reflexão jurídica acerca do justo nas sociedades humanas

consiste num dos primeiros passos para a formação do estado civil. A lei natural

estipula os preceitos de uma vida ética, falta-lhe, contudo imperatividade.

No estado de natureza as obrigações são seladas pela palavra humana, que

pouco ou de nada vale em relação aos compromissos, a não ser quando freada “por

medo das consequências advindas do não cumprimento da palavra ou por orgulho

de não ser necessário faltar a ela69”.

Por não ser escrita, a lei da natureza não se pode encontrar senão no espírito dos homens, e os que a citam fora de propósito ou a aplicam mal, levados por paixão ou interesse próprio, não são facilmente convencidos de seu erro se não houver juiz autorizado; por isso, não se presta para determinar os direitos e limitar as posses dos que sob ela vivem, uma vez que todos são juízes, executores e intérpretes dela, em causa própria70.

No estado de natureza inexistem normas coercitivas, nem quem as execute, ou

quem julgue eventuais transgressões. Não há a legitimidade externa proveniente de

um terceiro equidistante da relação.

Às transações efetuadas entre seres humanos, dá-se o nome de contrato71,

instrumento que, mediante palavras referentes ao passado, presente e também ao

67LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.85. 68“Desejos e paixões não são intrinsecamente pecados, como também não o são as ações resultantes dessas

paixões, até o momento em que seja editada uma lei que as proíba; enquanto não existir uma lei, a proibição será inócua.” HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, p. 106.

69Ibidem, p.116. 70LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.92. 71“Contrato é a palavra com que os homens designam a transferência mútua de direitos.” HOBBES, Thomas.

Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, p.110.

40

futuro72, implica numa troca recíproca, embora não necessariamente simultânea, de

direitos, constituindo um vínculo obrigatório.

Em estado de natureza, HOBBES (1651) suspeita da validade dos contratos:

As palavras, sozinhas, são insuficientes para fazer que seja garantido o cumprimento por ambas as partes, pois são fracas diante da ambição, da avareza, da cólera e de outras paixões dos homens, quando estes não sentem o temor de um poder coercitivo; esse poder não existe na condição de mera natureza, em que todos os homens são iguais e juízes da retidão de seus próprios temores73.

Para LOCKE (1689), o estado natural, diferentemente do posicionamento

anterior, não enseja necessariamente a guerra; esta se origina quando no estado de

natureza “a força aplicada sem o direito sobre uma pessoa, gera um estado de

guerra, tendo ou não juiz comum74”. Nesse sentido, o estado de guerra pode estar

presente nos estado de natureza e civil.

Ante os embaraços suportados e causados entre os homens no estado de

natureza, o convívio depende de uma série de precauções contra a volatilidade das

paixões e os inconvenientes da ausência de uma autoridade comum75.

É certo que há algumas criaturas vivas, como abelhas e as formigas, que vivem sociavelmente umas com as outras (e por isso são contadas por Aristóteles entre as criaturas políticas), sem outra direção senão seus juízos e apetites particulares, nem linguagem através da qual possam indicar umas às outras o que consideram adequado para o benefício comum76.

A despeito de o homem não ser considerado uma criatura política tal as

espécies mencionadas no excerto, é uma criatura social, e a satisfação de suas

necessidades depende do convívio com semelhantes.

O propósito da renúncia, da transação de direitos, ou em geral de quaisquer

outros pactos firmados entre homens corresponde a obter segurança e melhorias

nas condições de vida77, pois em estado de guerra a produção humana não

prospera.

72Ibidem, p.112. 73Ibid., p.113. 74LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.25. 75“Por fim, concordo que o governo civil seja o remédio correto para os inconvenientes do estado de natureza,

que devem certamente ser grandes, se os homens têm de ser juízes em causa própria”. Ibidem, p.20. 76HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, p.138. 77Ibidem, p.110.

41

Considerado o risco a quaisquer empreendimentos, há improdutividade na

indústria, precariedade no cultivo da terra, estagnação da navegação mercantil78, de

modo que a divergência entre os desígnios individuais contrapostos impossibilita o

progresso79.

Faz-se necessário superar o estado de guerra, conferir aos contratos a

legitimidade de um poder civil que inexiste no estado de natureza, impor coerção às

obrigações, pois: “Sem a espada, os pactos não passam de palavras sem força, que

não dão a mínima segurança a ninguém80”.

Se a socialidade não decorre da lei natural81, dependerá do pacto de cada

homem com todos os outros. Antes e no sentido de criar, estabelecer e garantir a lei

surge a necessidade de unificação82 do poder comum.

(...) a primeira providência positiva e fundamental de todas as comunidades é justamente estabelecer o poder legislativo; e a primeira lei natural básica que deve nortear até o próprio poder legislativo consiste na preservação da sociedade e, até onde seja compatível com o bem público, de todos seus membros83.

A relação obrigacional no pacto de cada um com todos apresenta-se da seguinte

maneira: dentro de um conjunto desordenado de indivíduos, estabelece-se que cada

pessoa abdica o sumo direito que lhe fora conferido pela natureza e aceita ter para

si as mesmas prerrogativas que assente em conferir a todos os demais. Aí estão

obrigações e direitos, respectivamente.

Equivaleria a todos os cidadãos dizendo:

(...) é preciso designar um homem ou uma assembleia de homens para representar a todos, considerando-se e reconhecendo-se cada membro da multidão como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar, em tudo o que se refere à paz e à segurança comuns, submetendo, assim, suas vontades à vontade do representante, e seus julgamentos a seu julgamento84.

78Ibid., p.105. 79“Se as ações de cada um dos homens que compõem uma multidão forem determinadas pelo juízo e pelos

apetites individuais, não é de esperar que tal multidão seja capaz de defender e proteger a ninguém, seja contra o inimigo comum, seja contra as injúrias mutuas.”. Ibid., p.137.

80Ibid., p.136. 81Ibid., p.138. 82“Nenhuma lei poderá ser editada enquanto os homens não entrarem num acordo e designarem uma pessoa

para promulga-la.” Ibid., p.105. (grifo nosso). 83LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.90. 84HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, p.140.

42

3.2 Os poderes do contrato: soberania absoluta ou representativa?

No tocante aos poderes derivados do pacto, o raciocínio de HOBBES (1651)

diverge do pensamento de LOCKE (1689), à medida que o primeiro pretende uma

submissão à autoridade do representante, ao passo que o segundo exalta uma

transferência limitada de poder:

Contudo, uma vez que uma sociedade política não pode existir nem manter-se sem ter em si o poder de preservar a propriedade e, para isso, punir as ofensas cometidas contra qualquer de seus membros, só podemos afirmar que há sociedade política quando cada um dos membros abrir mão do próprio direito natural transferindo-o à comunidade, em todos os casos passíveis de recurso à proteção da lei estabelecida85.

A finalidade do pacto originário consiste em conferir força legítima a todos os

contratos firmados perante a lei civil. O direito positivo asseguraria a distinção entre

o meu e o teu, prescrevendo preceitos gerais de propriedade86, desfazendo as

incongruências existentes na natureza pela imperatividade de uma força pública.

Surgiria então o poder de punir e de julgar.

E aqui nos deparamos com a origem dos poderes legislativo e executivo da sociedade, que deve julgar por meio de leis estabelecidas em que medida se devem punir as ofensas cometidas dentro dos limites da comunidade, bem como determinar, através de julgamentos baseados nas circunstâncias atuais do fato, até onde os danos vindos do exterior devem ser vingados; e num e noutro caso utilizar toda a força da comunidade quando for necessário87.

O propósito do Estado, segundo a teoria contratualista, estaria vinculado à

elaboração de leis e à garantia da execução dos comandos pela força da

comunidade, garantindo a conservação da propriedade88.

85LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.61. 86“Essas regras de propriedade (ou meum e tuum), tal como o bom e o mau, ou legítimo e o ilegítimo nas ações

dos súditos, são as leis civis.” HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, p.145.

87LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.62. 88Ibidem, p.14.

43

Do raciocínio acima se extraem três princípios fundamentais ao entendimento

da forma do Estado moderno, a saber, o poder político, a propriedade privada e a

força da comunidade.

O maior e principal objetivo, portanto, dos homens se reunirem em comunidades, aceitando um governo comum, é a preservação da propriedade. De fato, no estado de natureza faltam muitas condições para tanto89.

Quando LOCKE (1689) atribui ao Estado a prerrogativa fundamental de legislar

acerca da propriedade, essa premissa liberal encontra semelhanças com o

posicionamento conservador de HOBBES (1651):

Em sétimo lugar, o poder de prescrever as regras mediante as quais todo homem pode saber de que bens pode desfrutar e que ações pode praticar, sem ser molestado por nenhum de seus concidadadãos, pertence à soberania, e é conhecido pelos homens como propriedade90.

Tanto para o contratualismo liberal quanto para o conservador, o objetivo do

Estado repousa na manutenção e proteção da propriedade. Todavia, diferem à

medida que atribuem a força da comunidade a sujeitos distintos.

Segundo HOBBES (1651), o contrato social corresponde à somatória de direitos

naturais renunciados por todos e cada um, atribuídos a um mesmo representante.

Uma multidão de homens é transformada em uma pessoa quando é representada por um só homem ou pessoa, de maneira a que tal seja feito com o consentimento de cada um dos que constituem essa multidão. Porque é a unidade do representante, e não a unidade do representado que faz com que a pessoa seja una91.

Na pessoa do representante constitui-se a soberania – prerrogativa exclusiva de

poder sobre a criação, a execução e o julgamento das leis da sociedade civil. O

contrato originário é responsável pelo nascimento da civitas92.

Segundo a lógica conservadora, a inoponibilidade do soberano decorre da

unidade das forças e dos recursos da multidão93. O peso das decisões tomadas pelo

representante concentra o poder de representação concedido por todos os

contratantes do pacto originário.

89Ibid., p.84. 90HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, p.145. 91Ibidem, pp.133-4. 92“É esta a geração daquele grande Leviatã, ou, antes (para usarmos termos mais reverentes) daquele deus

mortal a quem devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa”. Ibid., p.140. 93Ibid., p.140.

44

Uma vez nomeado, o representante seria competente a promulgar a lei civil,

utilizando-se dos meios necessários para estabelecer a ordem no sentido de

desenvolver a sociedade civil.

Conforme a lei e sob a espada, os compromissos assumidos seriam envolvidos

pelo dever de obediência à regra geral e pelo temor das consequências do

rompimento. O Estado defende a paz pela ordem ao mesmo tempo em que impõe o

peso do castigo à leveza da palavra humana. O poder político se desenvolve no

sentido de garantir a observância do pacto originário, opondo a força da comunidade

a eventuais transgressões.

Ao mesmo tempo em que o contrato corresponde ao instrumento de criação do

poder civil, o Estado originado assume a tarefa de afiançar os demais contratos

interindividuais, em defesa da propriedade.

A natureza da justiça consiste no cumprimento dos pactos válidos, e essa validade começa com o estabelecimento de um poder civil que obrigue os homens a cumpri-los; é também diante dessa instituição que tem inicio o direito de propriedade94.

O Estado decorre do contrato e corresponde à instituição primeira em sua

defesa. Trata-se da instituição que concentra forças coativas e coercitivas na tarefa

de vigiar o cumprimento dos pactos.

A segurança jurídica que o contrato social tem por objetivo pressupõe a não

secessão95, a obrigatoriedade que impeça o retorno ao estado de natureza, senão

em casos de calamidade96. Estabelecido o contrato, os cidadãos são proibidos de se

libertar da sujeição97.

O pacto legitima a maioria a agir pela totalidade98, incluindo também aqueles

que tiverem discordado da escolha do representante; quanto a esses, considerando

que voluntariamente ingressaram na assembleia do contrato originário e, portanto,

94Ibid., p.118. 95LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.82. 96O contratualismo liberal introduz a oponibilidade ao pacto social pelo exercício do direito de resistência, que

será explicado a seguir. 97HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, p.142. 98“Ora, se a maioria não for capaz de resolver pela totalidade, não poderá agir como um corpo e, por isso, será

imediatamente dissolvida”. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.69.

45

tacitamente fizeram um pacto99, devem acatar a decisão da maioria, “ou então

serem justamente destruídos pelos restantes100”.

O modelo contratual conservador objetivou alcançar a segurança jurídica

inexistente no estado de natureza, inaugurando um estado civil em que a violência e

as paixões seriam controladas pela submissão irrestrita dos súditos à autoridade do

príncipe.

O soberano absoluto não pode sofrer a denúncia do contrato, pois dele não foi

parte, mas resultado. “Cada homem, diante de cada outro homem é obrigado a

reconhecer e a ser considerado autor de tudo o que o seu soberano fizer e

considerar bom fazer101”. A justificativa para isso consiste em que:

(...) o direito de representar a pessoa de todos é conferido àquele que se torna soberano, por meio de um pacto celebrado apenas entre cada um e cada um, e não entre o soberano e cada um dos outros, não pode haver quebra de pacto por parte do soberano102.

Os atos do príncipe e a representatividade que lhe fora conferida são

considerados simétricos para efeito de responsabilidade. Por essa proposição

lógica, em que os poderes se diferenciam ao passo que as responsabilidades se

equivalem, os súditos são atraídos à teia de um poder que não comete injúrias103:

Pois quem faz alguma coisa em virtude da autoridade de um outro não pode nunca causar injúria àquele em virtude de cuja autoridade está agindo, e cada súdito é, por instituição de um Estado, autor de todos os atos e decisões do soberano. Por conseguinte, aquele que se queixa de injúria feita por seu soberano se estará queixando daquilo que ele próprio é autor; logo, não deve acusar a ninguém, a não ser a si mesmo; e não pode acusar-se a si mesmo de injúria, pois causar injúria a si próprio é impossível104.

Em síntese, o Estado conservador corresponde ao produto de uma operação

contratual de soma, em que a adição dos direitos naturais renunciados pelos súditos

produz um poder unitário personificado, caracterizando a soberania absoluta.

Quanto aos embaraços ocasionados pela soberania, minimizam-se seus efeitos,

sob a alegação de que a vida social está fadada a pequenos dissabores, que não se

99HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, p.143. 100Ibidem, p.143. 101Ibid., pp.141-2. 102Ibid., p.142. 103A palavra é empregada em mesmo sentido da etimologia, significa injustiça, atitude contrária ao direito. 104HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, p.144.

46

comparam às “misérias e terríveis calamidades que acompanham a guerra civil ou a

condição dissoluta de homens sem senhor, sem sujeição às leis e a um poder

coercitivo capaz de atar suas mãos, impedindo a rapina e a vingança105”.

Segundo outra ótica, LOCKE (1689) defende a impessoalidade do governo das

leis106, contrapondo-a a parcialidade do governo dos homens. O contrato não

garante poderes absolutos ao soberano, pois só há segurança jurídica na sociedade

civil se o soberano estiver incluído nos limites do pacto.

Questionando o Estado absolutista, o contratualismo liberal pontua que o poder

institucional não deve corresponder a um órgão arbitrário107, mas deve estar restrito

ao bem da comunidade, não lhe assistindo mais do que essa exata medida108.

O liberalismo que superou o conservadorismo político do Estado questionou a

sujeição integral dos indivíduos à autoridade, defendendo um modelo jurídico de

salvaguarda dos cidadãos contra abusos de poder.

A autoridade do rei somente se aplica por meio da lei, não lhe sendo possível autorizar alguém a agir contra a lei, ou justifica-la, por aquela incumbência, a assim proceder (...) pois não é a incumbência mas a autoridade que gera o direito de agir, e contra a lei não pode haver autoridade alguma109.

Pelo desenho político do Estado absolutista, a tirania da espécie humana é

freada pela submissão comum e total ao representante escolhido, símbolo

inconteste de ordem.

A estratégia de contra submissão empregada pela ideologia jurídica liberal

propunha o redimensionamento do poder político para o limite da conservação do

bem comum e da propriedade privada.

Para conter a violência dos homens, os contratualistas liberais exaltavam a

sublimação das paixões violentas por meio da força civilizadora do contrato social,

permeada pelo espírito empreendedor dos mercados livres.

105Ibidem, p.149. 106“Salus populi suprema lex é com certeza uma regra tão justa e fundamental que quem a seguir com

sinceridade não incorrerá em erros perigosos”. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.106. 107Pois “(...) seria como se os homens que deixam o estado de natureza e entram em sociedade concordassem

em que todos eles, menos um, ficassem submissos à lei, mantendo aquele, contudo, toda a liberdade própria do estado de natureza, aumentada pelo poder e tornada licenciosa pela impunidade.” Ibidem, p.65.

108 Ibid., p.91. 109LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.133.

47

Historicamente, o Estado absoluto deixou de corresponder ao modelo político

compatível com a sociedade liberal, por apresentar prerrogativas exacerbadas de

controle sobre a propriedade privada, impedindo o progresso da empresa capitalista.

A reconfiguração da natureza do Estado passa em princípio pela mitigação das

prerrogativas do representante nos aspectos relacionados à liberdade da vida

privada. Contra a arbitrariedade, a ideologia liberal invoca o direito de resistência.

No Estado medieval o governo mantém com os indivíduos uma relação

verticalizada, de incontestável imposição, uma vez que a forma política absoluta

concentra em si os poderes político e econômico110.

O monopólio das forças coativa e coercitiva, e o domínio econômico presentes

na forma política medieval faziam com que o Estado prescindisse de fundamento

representativo na sociedade civil.

As modificações socioeconômicas promovidas durante o período revolucionário

alteraram a dinâmica dos meios produtivos, o domínio econômico foi retirado do

monopólio estatal, e porventura adquirido pela classe comercial.

Com a modificação na infraestrutura econômica, fez-se necessário ao Estado

incorporar a ideia de um órgão institucional representativo. O fundamento jurídico

do Estado moderno deve ser buscado no contratualismo entranhado no direito

natural.

A sociedade não perde nunca, pela culpa de quem quer que seja, o direito natural e primário que tem de se preservar, o que só consegue instituindo um poder legislativo e através da execução correta e imparcial das leis promulgadas111.

Segundo a ideologia jurídica liberal, o contrato social instaura um compromisso

político marcado pela confiança dos indivíduos representados nos poderes

institucionais representantes. O poder político é originado mediante um contrato

firmado em fideicomisso:

(...) sendo o legislativo somente um poder fiduciário que entra em ação apenas em certos casos, cabe ainda ao povo o poder supremo para afastar

110Ver capítulo quatro infra. 111LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.140.

48

ou modificar o legislativo, se constatar que age contra a intenção do encargo que lhe confiaram112 (...).

Do pacto entre iguais sedimenta-se a justificativa político-jurídica do Estado

representativo de um poder soberano que se encontra, em última instância, nos

sujeitos de direito.

O Estado moderno é considerado a decorrência contratualista do governo

representativo, que objetiva a garantia das liberdades individuais e da propriedade

privada. O desvio dessa finalidade constitui causa suficiente para o exercício do

direito de resistência113.

Quando, pois, o legislativo infringir esta regra básica da sociedade, e movido por cobiça, medo, loucura ou corrupção, tentar apossar-se ou entregar a terceiros o poder absoluto sobre a vida, liberdade e propriedade do povo, perde, com isso, o poder que a comunidade lhe confiou para fins opostos, fazendo com que volte ao povo; este tem agora o direito de reassumir a liberdade primitiva e escolher um novo legislativo, mais conveniente, que zele pela segurança e garantia, que é o objetivo da sociedade114.

A rebelião consiste em uma oposição que se dirige à autoridade, ato no qual se

busca resguardar a soberania individual contra leis injustas ou em face da má

condução do governo.

Concretamente, por meio do direito de resistência, a ideologia liberal assegura

a proteção à propriedade privada, estabelecendo o cenário jurídico propício à

consolidação do sistema econômico capitalista.

A formulação do Estado moderno partiu da premissa do laissez faire115, teoria

intensamente difundida pelos fisiocratas franceses do século XVIII, que defendia

interferência governamental mínima nos assuntos da sociedade.

De acordo com os fisiocratas a ordem econômica e as ações individuais

prescindem de rígido controle estatal, sendo que a atividade humana desimpedida

reflete para a sociedade resultados mais prósperos.

112Ibid., p.141. 113Ibid., p.152. 114Ibid., p.141. 115Laissez faire, expressão francesa para “deixe estar”, ou “allow to do” segundo o conceito que consta no sítio

eletrônico: <<http://www.britannica.com/EBchecked/topic/328028/laissez-faire>>. Consulta realizada em 03/03/15, às 21h50.

49

O poder político, segundo tal raciocínio, deve permanecer débil perante as

práticas econômicas, garantindo somente, mediante o menor número possível de

embaraços à liberdade individual, a estabilidade necessária à ordem, segurança e

unidade do corpo social.

O contratualismo liberal delineia esse panorama ideológico, cumprindo a tarefa

de adaptar a estrutura político-jurídica do Estado moderno à contemporânea

dinâmica dominante nos meios de produção.

Ainda que o laissez faire defendesse a fragilidade do poder político em face da

autonomia individual, não deixava de enxergar no Estado o papel essencial de

execução dos contratos e garantia da ordem116.

Do ponto de vista jurídico, o contratualismo cumpre a função de estabelecer um

vínculo ético entre o poder e o direito. Com o contrato social, o Estado assume-se

espaço legítimo para o debate político, garantindo à lei civil observância obrigatória a

partir de sua origem racional.

A alegoria do pacto origina uma instituição política que denota aparente

neutralidade. Verificamos que o fundamento contratualista liberal fornece a

legitimação ideológica para que o Estado se consolide como operador do sistema

econômico.

116“But laissez-faire advocates nonetheless argued that government had an essential role in enforcing contracts

as well as ensuring civil order.” Citação extraída de: <<http://www.britannica.com/EBchecked/topic/328028/laissez-faire>>. Consulta realizada em 03/03/15, às 21h50. (Tradução livre: O laissez faire defende que o governo possui um papel essencial na garantia dos contratos e da ordem civil).

50

4 Aspectos econômicos da infraestrutura do Estado.

4.1 Estado medieval e sistema de produção feudal

A Idade Moderna, período no qual se concretiza o arquétipo do Estado de

Direito, caracterizou-se pela iminência do capitalismo mercantil, sistema econômico

que veio a se tornar o modelo hegemônico do mundo ocidental.

Na prática capitalista, a lógica econômica funciona de acordo com o monopólio

dos meios produtivos e a utilização do trabalho alienado voltado à produtividade em

larga escala para trocas mercantis e acumulação.

A partir desse aspecto concreto toda a configuração do Estado é adaptada a

outro tipo de relações de produção, os movimentos político-institucionais são

direcionados no sentido de um novo domínio econômico.

Embora seja tolice tentar datar o declínio do feudalismo e a origem do capitalismo, é evidente que durante os séculos XVI e XVII ocorreram importantes transformações na velha ordem social117.

As condições econômicas que consolidaram o sistema ocorreram ao longo de

séculos, de modo que se torna difícil precisar o surgimento do modelo capitalista. Há

indícios do padrão econômico desde o século XIII na região adriática118.

De todo modo, o surgimento pode ser datado a partir do processo de reviravolta

no eixo econômico. Antes da proliferação do padrão econômico capitalista, vigorava

uma espécie distinta de poder econômico, o feudal.

Na composição do mundo medieval ocidental, condicionado por relações servis,

a distribuição do poder e da riqueza em sociedade estava adstrita ao direito sobre a

terra.

117Ibidem, p.22. 118CARNOY, Martin. Estado e teoria política, p.21.

51

O controle do território pertencia à autocracia rural, formada por detentores de

terras que sucederam aos conquistadores europeus, nas propriedades deixadas por

Roma119.

As relações sociais ocorriam em condições materiais desiguais, pois a

propriedade da terra concentrava-se no estamento político. O poder gravitava em

torno dos monarcas e da aristocracia, legitimados ideologicamente pela religião

católica.

A conquista territorial e o domínio político consistiam nos objetivos principais do

Estado medieval, ao qual o correto manejo dos instrumentos econômicos era

subordinado.

Pode-se dizer, esquematicamente, que um dos traços fundamentais da sociedade feudal europeia ocidental é que a circulação dos bens é relativamente pouco assegurada pelo comércio. Ela é assegurada por mecanismos de herança, ou de transmissão testamentária e, sobretudo, pela contestação belicosa, militar, extra-judiciária (sic) ou judiciária120.

As intervenções judiciárias de confisco e a ocupação forçada da terra

asseguravam o investimento para as empreitadas militares. “Estamos em uma

fronteira fluida entre o direito e a guerra, na medida em que o direito é uma certa

maneira de continuar a guerra”121.

De acordo com a ideologia jurídica medieval: o príncipe ilustrava a figura de

liderança, a igreja moralizava a consciência coletiva, e a nobreza operava o préstimo

militar. Abaixo das castas de domínio restava a parcela dos súditos que apenas se

submetiam ao poder político.

O sistema feudal assentava-se em bases agrícolas: a propriedade do território,

considerada a área útil ao cultivo, restava sob o controle do estamento, enquanto

aos servos era imputado o ônus do trabalho e da tributação.

A relação entre proprietários que não produzem e produtores não proprietários

evidenciava a desigualdade de aquisições inerente à configuração social daquele

contexto122.

119Ibid., p.22. 120FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, p.63. 121Ibidem, p.63. 122Ver capítulo cinco, subitens 5.3 e 5.4.

52

Ainda que ocorressem difusas trocas mercantis, utilização de moeda e atuação

de corporações comerciais, o modelo produtivo medieval mantinha-se

predominantemente feudal, politicamente concentrado e economicamente

dependente do trabalho servil.

A ideologia jurídica do Estado medieval assegurava a manutenção da

concentração da propriedade da terra, a desigualdade natural e imutável dos

homens, e o privilégio do estamento político em detrimento dos súditos.

O Estado medieval atuava de maneira discricionária em relação ao direito de

propriedade, resultando em um cenário no qual a aquisição e a segurança dos bens

dependiam do subjetivismo do poder político.

As práticas econômicas capitalistas, por outro lado, pressupunham condições

objetivas para as relações de produção, ao mesmo tempo em que declaravam

autonomia em relação ao Estado.

O capitalismo surge como o paradigma de contestação ao sistema feudal, e seu

funcionamento pressupõe mecanismos institucionais antitéticos ao Estado

absolutista. O contraste entre a velha sociedade estratificada e dogmática e a nova

prática capitalista racional resultava num paradoxo a ser resolvido.

4.2 Práticas econômicas liberais e velhas instituições absolutistas.

A legitimidade das velhas instituições medievais encontrava-se instável desde as

perdas ocasionadas por séculos de guerras santas. O declínio da aristocracia e do

clero desconstruiu a força ideológica do Estado absoluto.

Do rígido estrato social medieval advém uma classe de mercadores que se

caracteriza, diferentemente do homem-médio feudal, pela produção destinada à

troca.

53

Com as práticas de mercado, a circulação econômica deixa de derivar do cultivo

feudal de subsistência, passando a se movimentar mediante a produção em larga

escala, destinada a troca mercantil e acumulação de capital.

O que se observa a partir da reconfiguração liberal do Estado corresponde a

uma inversão na relação entre os poderes político e econômico. O Estado medieval

detinha a reserva econômica de riquezas, de uma perspectiva de poder político,

dominava o território, e dele derivavam as relações de produção; de uma

perspectiva de poder econômico, controlava os produtores, e eles trabalhavam na

produção.

A atividade capitalista provoca a ruptura do vínculo entre a concentração de

capital e o poder absolutista, o sistema inova ao desarticular a unicidade do fluxo

econômico, libertando o capital do domínio fixo da terra.

O capitalismo se desenvolveu a margem do modelo servil, conseguindo supera-

lo em produtividade, atingindo, por conseguinte, mais eficiente concentração de

riqueza.

Diante das novas práticas econômicas, a infraestrutura feudal e sua respectiva

superestrutura político-jurídica perdem a hegemonia social para um sistema

econômico autônomo e independente da antiga concentração patrimonialista.

A produção servil é contrastada pelas práticas de troca e pela especulação

mercantil. Antes um fim em si mesmo, o domínio da terra passa a ser considerado

apenas um dos elementos produtivos no processo de criação de valor.

Inicia-se um processo de substituição do valor natural da terra pelo valor

agregado dos meios produtivos destinados a produção em larga escala. A prática

racionalista altera as condições de trabalho e determina a utilização mercantil da

terra.

Gradualmente, a prática econômica capitalista passa a substituir em efetividade

a velha lógica feudal. O domínio econômico não mais consiste no poder sobre o

solo, mas sim no que a partir dele se pode produzir, vender e gerar capital.

O período renascentista comporta o embrião de um novo sistema de produção,

que se maximiza pela exploração da produtividade e pela troca especulativa. Esse

54

sistema ressignificou o valor dos recursos naturais, passando a considera-los meios

incorporados ao processo produtivo, e a determinar a acumulação de capital como o

fim.

O fundamento do padrão econômico ainda hoje adotado deriva da apropriação

dos recursos naturais, com o intuito de constituir valor. “E somente quando esses

recursos naturais são apropriados por alguns indivíduos e se tornam coisas suas de

que dispõem pessoalmente, que tais recursos se tornam fonte de valor123”.

O conceito de valor passa por uma mudança qualitativa, abrangendo todas as

etapas do processo produtivo e sendo determinado pelo tempo de trabalho aplicado

aos meios de produção.

Assim o capital de uma indústria que se estabelece, constitui-se a princípio de uma certa soma de dinheiro que se transforma desde logo em instalações, maquinaria, matéria prima, força de trabalho paga em salário; transmuta-se em seguida nos artigos produzidos pelo concurso desses fatores; artigos esses que uma vez vendidos como mercadoria, restituem ao capital sua forma monetária original com que se renova o ciclo124.

A teoria econômica racionalista lidava com os fatores de produção segundo esta

lógica: “O capital, a terra e o trabalho constituem pois os elementos ou fatores de

produção que geraram e criaram o valor resultante do processo produtivo125”.

O capital simboliza um tipo de relação produtiva em que o valor resultante não

possui forma concreta, antes pode ser expresso por tudo aquilo capaz de gerar

retorno financeiro maior do que o investimento inicial. Toda a compreensão do

modelo econômico liberal passa pela interpretação deste elemento.

O ‘capital’, tal como aparece nas relações econômicas, não representa uma ‘coisa’, uma ‘entidade’, e nada mais é que uma relação, isto é, um conjunto de valor que pode ser representado por qualquer bem material, inclusive dinheiro, mas não se confunde com nenhum desses bens em particular126.

Os empreendedores mercantis partiram do ciclo do capital para organizar um

sistema de acumulação e dinamização de riquezas, ampliando a extensão do

padrão econômico, modificando as condições de trabalho, a função da propriedade

e a coordenação estratégica entre o Estado e a economia.

123PRADO JÚNIOR, Caio. Esbôço (sic) dos fundamentos da teoria econômica, p.66. 124Ibidem, p.66. 125Ibid., p.68. 126Ibid., p.66.

55

A teoria do capitalismo constitui a expressão da racionalidade aplicada à

economia:

(...) expressão ideológica da experiência adquirida na sua prática, e ao mesmo tempo norma de conduta a seguir para a obtenção dos melhores resultados nessa prática. Do empirismo dos primeiros momentos, evolui-se aos poucos para uma sistematização teórica que assinala os primeiros passos da Economia Política, como disciplina científica; isto é, teoria explicativa da ação e dos fatores econômicos de natureza capitalista, e doutro lado norma diretriz para a conveniente condução e orientação de tais fatos (...) 127.

A prática, apoiada na experiência e fundamentada no racionalismo conduzia a

uma eficiência cada vez maior dos meios de produção128. As mudanças no eixo

produtivo traziam consigo o substrato jurídico para alterar a natureza do sistema

econômico e a forma do poder político.

Ações revolucionárias que pretendem mudanças sociais sistemáticas dependem

de condições materiais propícias, não basta o questionamento ideológico

desacompanhado da infraestrutura que as possibilite.

Somente quando foram alcançadas as condições produtivas ideais para a

consolidação da prática econômica capitalista tornou-se possível reconfigurar o

modelo de Estado segundo outros valores jurídicos institucionais. Devemos

constatar o sentido de tais valores.

127Ibid., p.53. 128“A prática faz a teoria, e a teoria ilumina e promove a prática. E assim o sistema capitalista se vai

progressivamente estruturando, e a teoria dele, a Economia Política, se constitui”. Ibid., p.53.

56

5 Valores jurídicos da superestrutura do Estado

Para compreender a transição do Estado medieval para o moderno, faz-se

necessário analisar quais foram as alterações ideológicas promovidas pelo processo

revolucionário dos séculos XVII e XVIII.

Na organização social medieval, o controle da ação humana e a moralidade

oficial imposta derivavam de uma força convergente de poder – o Estado

ideologicamente protegido pela igreja. A força do Estado medieval estava atrelada

ao domínio sobre a terra e justificada pela ideologia jurídica do direito divino129.

Compreendemos que a justificativa dogmática desse domínio baseava-se

em um suposto conhecimento divino revelado à autoridade política, fazendo do

Estado a instância de controle corporal dos homens, ao passo que da Igreja a

instância de controle do espírito, em conformidade à vontade revelada.

O estamento medieval concentrava o domínio das instituições sociais sob o

direcionamento ideológico da igreja e mediante a disciplina jurídica das normas

coercitivas. Sob essa rígida forma de poder o direito servia apenas como ferramenta

de imposição de penalidades, de confisco e de organização administrativa do

Estado.

O Estado medieval detinha o monopólio dos poderes militar e judiciário no

sentido de assegurar o controle territorial e a concentração de riquezas. A forma

política absolutista concentra os mecanismos de liquidação interindividual de litígios

durante a Idade Média130.

Dotado de conteúdo fechado e exegese limitada, o direito atuava como o

porta-voz oficial dos dogmas de Estado, reproduzindo mediante a técnica legiferante

129“Contudo, os preceitos religiosos serviram para legitimar todas essas relações, inclusive as econômicas, por

mais de mil anos”. CARNOY, Martin. Estado e teoria política, p.21. 130FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, p.66.

57

a vontade soberana. Inserido no método dogmático, ao direito competia apenas

garantir a ordem.

O direito propagava a moral oficial, mas não lhe competia fornecer as bases

éticas senão de maneira secundária e tecnicista. O fundamento do dever ser

competia à moralidade religiosa, responsável por retificar o comportamento

individual e tornar legítima a dominação do Estado absoluto.

Se por um lado a responsabilidade pela moralização era atribuída à religião

– por medo do castigo divino ou pela vontade virtuosa de aproximar o espírito da lei

de deus –, por outro, responsabilizava-se o direito em manter a disciplina social dos

indivíduos, fazendo-lhes temer penas corporais – suplícios e aprisionamento – ou

sanções de natureza tributária.

A rígida estrutura social medieval dividia-se simplificadamente em duas castas,

que se distinguem precisamente pela presença ou ausência de força política – o

estamento que compõe o alto escalão do poder, e os que estão fora dele.

Nessa organização piramidal, a ascensão social não se apresentava como

alternativa às classes desprovidas de poder, sendo ideologicamente sublimada pelo

dogma cristão de pacificidade.

A essência do homem, vista como contemplativa, aceitava a condição de

desigualdade real como a expiação necessária à vida futura no reino divino.

A ideia de viver livremente era atravessada pela moralidade religiosa, e essa

moralidade sustentava a hierarquia política. A liberdade contemplativa abstinha-se

de combatividade e traduzia o seu significado somente na ideia cristã de resignação.

Durante os séculos XVI e XVII, a sociedade da renascença ainda estava

fortemente vinculada ao dogma cristão, mas o crescimento econômico da classe

comerciante colocava em xeque a inflexibilidade das castas sociais.

A alteração estrutural da economia propagou reflexos na sociedade, contudo,

não havia legitimidade jurídica do sistema econômico dentro da configuração do

Estado absolutista.

58

O desenho das instituições sociais medievais não comportava a participação

política da classe comercial no poder, e a moralidade católica de resignação não

consubstanciava a ética apropriada para justificar a representatividade política

daquela classe.

A autonomia do modelo econômico liberal necessitava adquirir segurança

jurídica frente à instabilidade que lhes ocasionava a política absolutista, pois inserida

nesse sistema encontrava-se em um vácuo de representatividade.

O capitalismo surge, em princípio, como a locomotiva de mudança nas relações

de produção. A partir daí assume pautas extra econômicas que propõem

modificações jurídicas e políticas em sociedade, adquirindo assim contornos

ideológicos mais relevantes.

Assim, no fervilhamento de ideias do século XVIII na França, constitui-se um arsenal ideológico de uma extrema diversidade: armas para contestar a monarquia (contrato social, vontade geral, democracia), para questionar os privilégios da nobreza (liberdade, igualdade), para unir os camponeses e artesãos das cidades (liberdade, igualdade, propriedade), para atender às aspirações dos fabricantes e dos negociantes (liberdade, ainda, mas de produzir e de comerciar). O longo enfrentamento da nobeza com a burguesia terá por desfecho as crises do fim do século, com a burguesia sobendo, num primeiro tempo, apoiar-se no descontentamento camponês e no movimento popular, e encontrando aliados em certas camadas da nobreza e do clero131.

As condições materialistas da economia liberal estabeleceram sua pragmática

em bases eminentemente quantitativas, utilizando o cálculo racional para conduzir o

funcionamento das estruturas e para condicionar o comportamento dos sujeitos.

A importância da prática sobressaiu ao valor da ideologia, contudo, o emprego

da última no contexto de consolidação do Estado moderno foi fundamental para

fornecer as bases da nova axiologia jurídica.

A oposição entre as práticas econômicas e as instituições medievais surtiu

efeitos significativos no plano político. Dessa contradição dialética resulta um modelo

de Estado que emprega valores jurídicos seletivos, para melhor operacionalização

das práticas econômicas.

O Estado moderno será instituído mediante um conjunto de valores que

estabelecem a continuidade política da economia; a organização institucional da

131BEAUD, Michel. História do capitalismo: de 1500 aos nossos dias, p.99.

59

sociedade passa por um processo de compatibilização com o ciclo de produção de

riquezas.

Dentre os questionamentos deflagrados no processo revolucionário, a crítica

inicialmente velada ao Estado absolutista transformou-se na vontade explícita de

reconfigurar os valores jurídicos que o fundamentam.

5.1 Fraternidade

Enquanto a ideologia absolutista deteve força política, a visão de Estado

correspondeu à imagem do próprio soberano, chefe do poder institucional dotado de

privilégios exclusivos, individualistas e hereditários.

A unidade política medieval originava-se da coalizão institucional entre o Estado

e a Igreja. Simbolicamente, essa unidade eleva a figura do príncipe como o vetor

dos interesses da comunidade.

A despersonalização da soberania corresponde a uma etapa de reconstrução

jurídica do Estado moderno e se opera mediante a substituição simbólica da figura

mítica do príncipe para o signo da humanitas, a fraternidade de homens.

Etimologicamente, a palavra fraternidade deriva do verbete latino frater, que se

traduz por irmão. A aplicação do conceito teve o sentido de fornecer um sentimento

mais coesivo à axiologia jusnaturalista do Estado.

Nesta concepção, a razão, que serve de denominador comum à espécie

humana, seria responsável pela fraternidade universal dos homens. Por meio dela, o

auto arbítrio individual promoveria laços de boa conduta, concretizando o ideal

cosmopolita de cidadania.

A razão corresponde ao fundamento da humanitas, e trata-se de um atributo

metafísico da coletividade que sustenta a identidade da natureza humana.

60

IV – Tanto a inteligência é comum a todos como também o é a razão, graças à qual somos racionais. Dessa forma, a razão que prescreve o que devemos ou não devemos fazer é comum a todos. Então, a lei é comum. Dessarte, somos todos concidadãos. Assim sendo, participamos do mesmo Estado132.

A despeito da utilização do conceito de fraternidade sob tal enfoque

cosmopolita, a utilização restrita do termo se mostrava mais interessante para a

criação de uma unidade política forte e estável.

Afunilando a perspectiva de análise da fraternidade, entendemos que sua

utilização como símbolo de coesão resultou em efeitos ideológicos de significação

emocional, fazendo com que a luta pelo governo adquirisse caráter nacional.

O compartilhamento do espaço territorial e de atributos culturais concretiza um

vínculo sentimental em indivíduos de uma determinada sociedade capaz de originar

uma unidade política nacional.

A fraternidade permitiu opor ao egoísmo da simbologia real um fundamento

compartilhado de poder dos membros da comunidade: se o modelo do Antigo

Regime concentrava sua imagem de gestão na figura do príncipe, tal imagem é

substituída pelo imponente sigma da nação.

Entretanto, era indispensável o aparecimento de um símbolo de unidade popular, tanto para obter do povo por via emocional, sua adesão à luta contra o absolutismo, quanto para a institucionalização de lideranças133.

A fraternidade nacional corresponde à roupagem sociológica que revestiu o

Estado moderno no período revolucionário dos séculos XVII e XVIII. A significação

emocional que o conceito alcançou contribuiu para que a burguesia conquistasse o

poder134.

Ainda que os conceitos de nação e governo de Estado fossem distintos, ambos

foram albergados sob a mesma bandeira a fim de que a revolução política contasse

com a legitimidade do apoio popular.

132MARCO AURÉLIO. Meditações, p.34. 133DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, p.112. 134Ibidem, p.113.

61

Enquanto o governo de Estado representa um conceito científico de complexo

entendimento135para uma população à época majoritariamente analfabeta, a ideia de

nação representa um termo vago, elástico, mais facilmente aceito pelas massas.

A construção simbólica da nação advém do específico estabelecimento das classes dominantes. A narrativa da história segue exatamente a sequência da sucessão de tais classes. O Estado opera de modo privilegiado nas tarefas de consolidação dessa simbologia136.

Nação constitui um ideal sociológico com efeitos políticos, não indica um vínculo

jurídico entre seus componentes137, mas antes um vínculo sentimental de influência

no funcionamento do Estado.

O ideal fraterno utilizou-se do sentimento nacional para desconstruir a

organização social medieval e legitimar, de maneira aparentemente representativa, o

Estado moderno.

Para ser efetivo, aquele ideal sensibilizou as massas ao questionar a

desigualdade mais visível na estrutura medieval: a ausência de representatividade

política decorrente da estratificação social.

A luta encampada pelos liberais, mediante a simbologia da fraternidade

nacional, assumia o aspecto de representatividade plena dos excluídos das

instâncias de decisão.

Num povo habituado durante tanto tempo a ver o princípio de sua unidade corporificado numa só pessoa, a pessoa nação vai ocupar toda a extensão, todo o espaço necessário para encher o vazio e fazer muito mais que isso138.

A nação surge como forma de manifestação transcendental do domínio territorial

político, a fraternidade dos homens livres desconstrói os pilares da sociedade de

castas e desarticula o funcionamento institucional do estamento.

Com as alterações promovidas pelo processo revolucionário, a ideia do poder do

príncipe legitimado na divindade é substituída por um ideal se não mais palpável,

mais racional e abrangente.

135Ibid., p.113. 136MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política, p.78. 137Ibid., p.113. 138DE JOUVENEL, Bertrand. As origens do estado moderno: uma história das ideias políticas no século XIX,

p.117.

62

O resultado mais impressionante da Revolução é a substituição da pessoa do Rei, que assumia caráter mitológico, por uma outra pessoa de caráter mitológico que é a nação139.

O ideal fraterno construiu a forma territorial do Estado a partir de uma justificativa

sentimental do vínculo estabelecido, ao defender um ‘nacionalismo’ inexistente na

estratificada sociedade feudal.

A partir desse valor comum de representatividade, a ideologia jurídica legitima o

Estado moderno, preenchendo o vácuo institucional deixado pela antiga forma de

poder.

Fraternidade, igualdade, liberdade e propriedade ensejam valores sociais

juridicamente reconstruídos pela ideologia liberal, inovados em relação à forma

como eram aplicados no Estado absolutista.

5.2 Liberdade

Há uma questão existencial que acompanha a história humana desde os

primórdios, que sobreviveu ao apogeu e declínio das sociedades políticas antigas,

que motivou desde tratados filosóficos a guerras sangrentas neste milênio, e que

corresponde ainda hoje a um problema fundamental.

A definição do que é ser livre, a relação do conceito com a natureza humana, a

presença ou ausência de limites ao que venha a ser a liberdade, correspondem a

perguntas cujas respostas efêmeras estão sujeitas ao passar do tempo e à dialética

das ideias.

Questionar a liberdade constitui um exercício filosófico atemporal, que revolve o

intérprete ao passado, remete-o ao presente e o faz meditar a respeito do futuro.

Diante do estreito vínculo que a liberdade possui com a política, tendo em vista

que a última delimita a atuação da primeira no convívio social, compreender o que

implica ser livre pressupõe, necessariamente, investigar as relações de poder em

sociedade.

139Ibidem, p.116.

63

Se hoje em dia queremos avaliar a liberdade, procuraremos verificar no que consiste ela para os governados. Até o alvorecer de nosso século procurava-se, pelo contrário, descobrir no que consistia para os governantes140.

Durante a vigência da forma política absolutista na Europa medieval ocidental,

interpretava-se a liberdade do ponto de vista do governante, em uma tentativa de

compreender se havia e quais eram os limites das prerrogativas do príncipe.

No contexto absolutista, a liberdade aplicada ao poder político resultava em uma

definição despótica de soberania, que elevava a força do Estado ao plano da

incontestabilidade. A soberania absoluta:

Produz nos homens o efeito que os poetas atribuem ao néctar dos deuses: o mortal que o tenha experimentado desprezará todos os alimentos humanos; além disso, encontrará dentro de si novas forças e uma nova vida; sua natureza modificou-se e, ao tomar assento em sua mesa, sente que se iguala aos imortais141.

A reconfiguração do Estado moderno ocasionou uma interpretação distinta:

deixou-se de interpretar a liberdade do ponto de vista do governante, passando ao

ponto de vista dos governados.

A fim de desconstruir a tirania dos governos absolutistas, a ideologia jurídica

liberal buscou inspiração na sólida teoria filosófica da antiguidade clássica.

Partindo da racionalidade humana, pensadores clássicos chegaram à conclusão

de que a liberdade equivale àquilo que é causa de si mesma, isto é, o que se pode

autodeterminar. A autodeterminação, por sua vez, pressupõe a capacidade de fazer

uma escolha.

O homem, portanto, consiste num ser livre, justamente pelo fato de ser capaz de

determinar a própria sorte a partir das causas e efeitos de seus atos, de acordo com

o que a razão lhe possibilita entender.

Por conseguinte, a liberdade do homem e a liberdade de agir consoante à própria vontade baseiam-se no fato de possuir ele razão bastante para instruí-lo na lei que terá de ser seu rumo, dando-lhe a saber até que ponto estará ao sabor da própria vontade142.

Quando essa autodeterminação incide sobre a sociedade, o homem realiza uma

escolha política, condicionando os efeitos da sua própria liberdade às deliberações

do conjunto.

A liberdade política assume a forma de debate institucional, em que a partir da

somatória das capacidades de autodeterminação individual são estabelecidas as

diretrizes que orientam o convívio.

140SISMONDI apud DE JOUVENEL. Ibidem, p.143. 141Ibidem, p.143. 142LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.48.

64

Ao contrário do pensamento absolutista, segundo a concepção liberal o Estado

corresponde ao resultado das liberdades individuais consideradas em conjunto.

Essa análise opera de acordo com um raciocínio indutivo ao invés de dedutivo, isto

é, das partes para o todo.

A liberdade clássica retomada pelo iluminismo institucionaliza os freios à

soberania do Estado perante o direito natural dos indivíduos. Por esse raciocínio, a

vontade coletiva origina-se das autodeterminações individuais e não aprisiona a

liberdade humana.

A justificativa dessa interpretação de liberdade decorre da vida pública dos

cidadãos, ou seja, do aspecto de sua autonomia que lida com a comunidade. O

Estado deve corresponder a uma arena política caracterizada pelo direito à palavra.

O reflexo dessa antiga exegese do conceito de liberdade renasce nas palavras

de um dos porta-vozes do liberalismo político do século XVIII:

Da liberdade, pois, diria que, em toda a plenitude de seu alcance, ela está na ação não obstruída de acordo com nossa vontade, mas a liberdade justa é a ação livre de conformidade com nossa vontade dentro dos limites traçados em torno de nós pelos direitos iguais de outros. Não acrescento ‘dentro dos limites da lei’ porque a lei é, muitas vezes, apenas a vontade do tirano, e é sempre assim quando viola o direito do indivíduo143.

Para essa ideologia jurídica, a liberdade possui status inderrogável de bem

comum, pois à lei civil é defeso tudo aquilo que contraria a razão. Destaque-se a

semelhança entre o trecho colacionado acima e o discurso de Antígone da página

12 desta pesquisa.

Nenhum homem tem o direito natural de atentar contra os direitos iguais de outrem, e isso é tudo que as leis devem proibi-los de fazer; e isto é tudo o que as leis naturais o devem fazer cumprir; e nenhum homem tendo o direito natural de ser o juiz entre si próprio e outem, é seu direito natural submeter-se à arbitragem de um terceiro imparcial144.

O Estado origina-se do aspecto de alteridade que a liberdade implica. O direito,

por sua vez, corresponde à ferramenta apta a garantir a harmonia entre os sujeitos

livres, que porventura vierem a entrar em conflito. Nessa perspectiva, “(...) apesar do

equívoco ser possível, o objetivo da lei não consiste em abolir ou restringir, mas em

preservar e ampliar a liberdade145”.

Acerca da liberdade clássica, ressaltamos, contudo, o matiz de classe do

conceito na Grécia Antiga, haja vista a distinção entre homens livres e escravos:

aqueles participantes da política ao passo que estes desprovidos de

representatividade.

143JEFFERSON, Thomas. Escritos políticos, p.52. 144Ibidem, p.53. 145LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.45.

65

Dentro da polis a liberdade correspondia a um privilégio, os homens livres

possuíam primazia de decisão a respeito dos rumos do Estado, enquanto os

escravos cuidavam apenas dos afazeres domésticos.

O aspecto classista da liberdade à grega não foi suprimido pela reinterpretação

liberal, pois ainda que a aplicação jurídica do conceito idealizasse a liberdade

universal, verificamos que a influência política na construção do Estado moderno

beneficiava de fato uma classe social.

Os homens do século XVIII desejaram um sistema novo que comportasse não somente a abertura para baixo, mas também a abertura para cima, não somente a liberdade de candidatar-se a todas as funções, mas ainda a liberdade de empresa de todos os gêneros. Pensaram que, ao suprimir todos os privilégios de acesso às posições, estas seriam mais bem providas, e que, ao suprimir todas as restrições quanto aos métodos de trabalho, os mais eficientes se imporiam. Pareceu-lhes que com essas modificações fundamentais a ganhadora seria a sociedade146.

A ideologia jurídica liberal idealizou a supressão dos privilégios aristocráticos da

forma política imediatamente anterior, sem, entretanto, considerar o privilégio que o

domínio econômico capitalista acarretava na neutralidade do Estado moderno.

A partir da interpretação jurídica inglesa, o conceito de liberdade passa a ser

visto sob uma nova ótica, concomitante, mas oposta ao aspecto da vida pública. A

liberdade política enseja também a proteção aos direitos individuais que dizem

respeito à vida privada.

O objetivo dos antigos consistia na partilha do poder social entre todos os cidadãos da mesma pátria. Era a isso que davam o nome de liberdade. O objetivo dos modernos consiste na segurança da fruição dos direitos privados; e dão o nome de liberdade às garantias que as instituições proporcionam a essa fruição147.

Até o contratualismo político clássico, a ideia de liberdade importava na

possibilidade de participação nas decisões soberanas do Estado (liberdade

pública); a partir da interpretação econômica do liberalismo, a liberdade abrange

proteção ao sossego, à felicidade e à intimidade doméstica (liberdade privada).

Uma das ideias mais importantes do século XVIII – e que constituirá a própria essência do liberalismo que se seguirá – é a de que o homem, na sua condição ‘particular’, deve sofrer no seio da sociedade o menor volume possível de embaraços148.

Segundo essa interpretação, a vida doméstica do homem diz respeito somente a

ele, e o Estado não deve ter poderes senão em relação àquilo que é indispensável

para a justa condução da ordem pública.

146DE JOUVENEL, Bertrand. As origens do estado moderno: uma história das ideias políticas no século XIX, pp.

225-226. 147CONSTANT apud DE JOUVENEL. Ibidem, p.141. 148DE JOUVENEL. Ibidem, p.133.

66

Tornou-se uma posição universal e quase incontestada nos vários Estados que os objetivos da sociedade não exigem a cessão de todos os nossos direitos a nossos governadores comuns; há certas parcelas de direito não necessárias para que possam eles desempenhar um governo eficaz149.

O poder do Estado encontra limites no que é essencial ao convívio, o direito se

estende somente à medida que o fato social faz surgir a necessidade de legislação,

tomando-se, de qualquer maneira, a lei natural como o limite.

No que diz respeito à vida privada (por exemplo, a religião) imposições advindas

do Estado são abusivas e incompatíveis com a finalidade do poder político na

sociedade civil.

Perante a vida pública, os valores jurídicos garantem mecanismos150 que

fornecem a segurança jurídica necessária para impedir cerceamentos de liberdade.

Ferramentas jurídicas como o habeas corpus, que apesar de já existente restava

geralmente sem efeito, foram consagradas.

Os valores jurídicos liberais assumem-se fundamento ideológico do Estado

moderno, perante eles a concepção universalista da lei toma o propósito de fornecer

eficaz proteção à liberdade.

Ainda que de forma idealizada a liberdade revolucionária possuísse o

fundamento da ampla representatividade, a aplicação jurídica do conceito denotava

contradições de classe.

Contrariamente à justificativa racional propagada para legitimar o Estado

moderno, perante a nova forma política a liberdade mantinha-se condicionada à

desigualdade de fato.

Neste excerto da época, percebemos os limites da liberdade do trabalhador:

Artigo 4º - Se os cidadãos dedicados às mesmas profissões, artes e ofícios, contrariando os princípios da liberdade e da Constituição, tomarem deliberações ou celebrarem convenções entre si, que tenham por fim recusar mútuo acordo, ou só concordar a oferecer a um preço determinado os recursos de seu trabalho ou indústria, tais deliberações e convenções, acompanhadas ou não de juramento, são declaradas inconstitucionais e atentatórias à liberdade e à declaração dos direitos do homem, e destituídas de qualquer efeito; as entidades administrativas e municipais assim deverão declará-las; os autores, chefes e instigadores que as tiverem provocado, redigido ou presidido serão citados perante o tribunal de política, a requerimento do procurador da comuna, e condenados à multa de 500 libras, e ainda terão suspensos por um ano todos os direitos de cidadãos ativos, bem como o de ter assento nas assembleias151.

149JEFFERSON, Thomas. Escritos políticos, p.54. 150“... há também certos obstáculos que a experiência tem provado ser peculiarmente eficazes contra a

injustiça e raramente obstruidores de direitos, os quais ainda as forças governamentais tem mostrado disposição para enfraquecer e eliminar.” Ibidem, p.54.

151DE JOUVENEL, Bertrand. As origens do estado moderno: uma história das ideias políticas no século XIX, p.235.

67

Entendemos que a liberdade jurídica no Estado liberal extinguiu privilégios

nobilitários, mas manteve privilégios de classe relacionados ao sistema econômico

que se estava consolidando.

5.3 Igualdade

O conceito de igualdade corresponde à diretriz fundamental da forma política do

Estado moderno. Sobre esse conceito foi assentada a base de aparente

neutralidade que desvincula o direito do poder.

Na vigência do Estado absoluto, a política refletia nitidamente a desigualdade já

constatada pelos costumes: a casta reflete a posição do indivíduo na relação de

hierarquia e subordinação, o status social – senhor ou servo – implica em poder ou

submissão.

Durante o período medieval a política reproduzia a desigualdade que o sistema

produtivo em primeira instância produzia. A diferença de representatividade entre

senhor e servo confirmava a correlação entre o domínio econômico e o poder

político.

A distribuição agrária medieval beneficiava o estamento e excluía da partilha os

produtores, cujas terras, se as possuíssem, permaneciam inseguras. A

concentração da propriedade da terra acentuava a desigualdade de patrimônio.

Pela análise econômica, verificamos que o domínio territorial ocasionava

acúmulo de riquezas em favor da classe dirigente, ainda assim, o custeio social via

sistema de tributação visava especialmente o patrimônio dos servos.

Por essa perspectiva, a desigualdade medieval era marcante em três pontos de

vista: a desigualdade de status, inerente às castas; a de patrimônio,

68

consequência do domínio territorial; e a de aquisições, resultado da disparidade no

custeio social152.

Das espécies apontadas, o valor jurídico da igualdade promoveu a supressão de

uma delas: a desigualdade de status. A ética contratualista do Estado moderno teve

como objetivo desconstruir a fronteira que separava o nobre do plebeu (ou ao menos

alterar a sua posição).

A representatividade política, que no modelo precedente correspondeu a uma

exclusividade de classe, alcança na nova formatação do Estado universalidade e

abrangência, suprimindo as castas em nome de uma condição comum aos

nacionais, a cidadania.

A supressão das castas promoveu os cidadãos a uma equivalência racional de

espécie, juridicamente convertida no conceito de igualdade.

Por ‘igualdade jurídica’ nós entendemos o princípio segundo o qual o Direito pretende se dirigir a todos os indivíduos do grupo ao qual ele se aplica, sem distinção e sem estabelecer discriminação153.

A história do direito é marcada pela tentativa contínua de solucionar o problema

fundamental da igualdade. Por meio do jusnaturalismo a solução apresentou-se a

partir da vontade moral do sujeito livre154.

A cidadania fundamenta a forma de neutralidade do Estado. Pautado na

racionalidade humana, o modelo político revigorado pela ética jusnaturalista se

apresenta como antítese absolutista.

Embora a igualdade jurídica esbarre nas desigualdades concretas presentes em

sociedade, a alteração ideológica obtém êxito na tarefa de arregimentar as massas

perante o símbolo da mudança social, proporcionando legitimidade ao Estado

moderno. Basta à forma política a aparência de neutralidade, obtida a partir do

conceito da igualdade jurídica.

Os valores jurídicos liberais do Estado moderno ocupam-se mais em

ressignificar a correlação entre poder político e domínio econômico do que em

suprimi-la.

152Ibidem, p.172. 153ARNAUD, André-Jean. O direito traído pela filosofia, p.206. 154Ver item 2.1 supra.

69

(...) não é tanto a supressão da fronteira que separa o nobre do plebeu, mas antes o deslocamento dessa fronteira; é o que se verificará no século XIX. Os

sentimentos e costumes de desigualdade apenas serão transferidos155.

A igualdade jurídica extinguiu a relevância das castas no processo de

representatividade política, estabelecendo a equivalência universal no plano

normativo. Idealisticamente transformou o antigo Estado de privilégios e em uma

instituição política racional.

A equivalência jurídica possui eficácia formal, uma vez que apenas estabelece

um denominador comum perante a lei. Se o Estado medieval constituía uma

instituição dotada de natureza de classe, o Estado moderno mantém essa

característica.

Os valores jurídicos liberais ocasionam tão somente a alteração ideológica do

Estado, isto é, dos aspectos que dizem respeito à imagem do poder, e não àqueles

que descem às relações materiais. Como mera norma programática, a igualdade de

direito contradiz-se com a própria realidade em que atua.

As premissas jusnaturalistas do Estado moderno atribuíam à racionalidade

humana o leitmotiv da ordem social; a razão aplicada à política adquire a retidão de

uma teoria científica. Contudo:

Tudo se complica ainda mais quando os jurisconsultos observam que o Direito não é de forma alguma metafísico, e que é conveniente reservar o termo igualdade para o domínio da moral, reservando-se para o direito o termo ‘igualização’156.

A legitimidade do Estado moderno, ainda que inserido na contradição real entre

a artificial equivalência jurídica e as desigualdades materiais, foi adquirida a partir do

caráter formal157 que se lhe atribui.

Se não há metafísica que solucione o impasse entre a igualdade racional dos

homens e as condições concretas de desigualdade, a contradição real deve ser

mitigada por meio de uma norma programática que estabeleça ao menos

formalmente a equivalência.

155DE JOUVENEL, Bertrand. As origens do estado moderno: uma história das ideias políticas no século XIX, p.

171. 156ARNAUD, André-Jean. O direito traído pela filosofia, p. 205. 157O elemento formal “começa a se manifestar na construção do sistema sócio-jurídico, depois na aplicação

desse sistema”. Ibidem, p. 207.

70

A equivalência lógica possui o condão de encobrir a natureza de classe do

Estado moderno, substituindo a noção do ser igual pelo dever ser igual.

A igualdade é abstrata porque ela visa situações que não têm nada a ver com a realidade sócio-econômica. A construção do legislador, preocupado em administrar uma certa ordem moral legalizada em ordem pública, mas cedendo às transformações dos costumes, é uma construção destinada às contradições158.

Busca-se, nesse sentido, alcançar uma aparência neutra mediante a edição de

normas jurídicas abstratas e genéricas, para encobrir as causas da desigualdade de

fato.

(...) mas ainda, e talvez sobretudo, que a igualdade proclamada seja uma igualdade abstrata, virtual, potencial, o tipo de igualdade que frequenta as declarações de direitos do homem, e que aparece, ao nível ideológico, como um ato de boa consciência dos servidores da classe dirigente159.

A equivalência estabelecida parte de uma perspectiva genérica do indivíduo

submetido à norma e molda a imagem do sujeito de direito ao homem médio que

representa os valores liberais: o proprietário de meios de produção que

operacionaliza as práticas econômicas.

No Estado absolutista, a desigualdade prejudicial à classe comercial

corresponde à de status; uma vez suprimida, garante-se a representatividade

necessária para institucionalizar o modelo político que garante o sistema econômico.

À época da Revolução Francesa de 1789, por exemplo, Condorcet160 assim

percebia o panorama ideológico da instituição política:

Se examinarmos a história das sociedades, teremos ocasião de ver que muitas vezes existe um grande hiato entre os direitos que a lei reconhece aos cidadãos e os direitos que eles realmente usufruem, entre a igualdade estabelecida pelas instituições políticas e aquela que existe entre os indivíduos161 (grifos no original).

À margem dos benefícios da igualdade de status a grande parcela dos não

proprietários, cuja imagem não reflete o homem médio burguês, vivem a contradição

entre a aparente neutralidade e as condições econômicas que tornam a sociedade

desigual.

158 Ibid., p.212. 159Ibid., p.212. 160Marquês de Condorcet, filósofo e matemático francês (1743-1794). 161CONDORCET apud DE JOUVENEL, Bertrand. As origens do estado moderno: uma história das ideias políticas

no século XIX, p.174.

71

De um lado, a igualdade revolucionária defende os interesses sistêmicos do

capitalismo que equivalem aos do homem médio burguês; de outro, propagandeia a

igualdade idealista às massas, mediante a promessa de representatividade.

E é preciso não perder de vista que toda aparência de compromisso, de igualização, no que nos diz respeito, não passa na realidade de uma ‘demarché integrada’ cujo produto opera uma vacinação que imuniza a sociedade contra um eventual retorno do elemento perturbador162.

Em nossas considerações, percebemos que a igualdade não é juridicamente

realizável – o idealismo jusnaturalista não rompeu a barreira entre o poder e a

político, apenas encobriu a lógica de seu funcionamento.

Com o advento do Estado liberal a desigualdade de status que deriva da casta é

suprimida pela forma neutra do Estado, todavia outra desigualdade de status se

manifesta e se torna usual: a de subordinação.

Esta espécie de desigualdade de subordinação expressa a alteração das

condições econômicas de produção. Não existem mais castas políticas, mas a

sociedade encontra-se dividida entre detentores de meios de produção e

trabalhadores assalariados163.

O trabalho é um dos símbolos de transição entre os modelos econômicos feudal

e capitalista: naquele modelo era empregado como mão de obra servil; neste por

meio da alienação contratual do tempo do trabalhador.

Tornados iguais perante o mesmo status, os cidadãos passam a poder constituir

obrigações e firmar contratos de maneira legitimamente equivalente, independente

das condições econômicas que possuam.

Ao sustentar uma justificativa ética, a igualdade formal determina a equivalência

de condições dos sujeitos de direito no livre mercado. O Estado constitui a fiança

política da equivalência dos agentes econômicos e da higidez dos contratos. A partir

daí, estão determinadas as condições jurídicas de legitimidade do sistema capitalista

de produção.

162ARNAUD, André-Jean. O direito traído pela filosofia, p.20. 163Ver item 4.2 supra e capítulo seguinte.

72

5.4 Propriedade

A análise jusnaturalista da propriedade parte de especulações filosóficas que se

originam no direito natural, retratando o cenário utópico de um estado de

apropriação originária da terra mediante o trabalho.

No estado de natureza, a ideia de propriedade vincula-se ao trabalho dispendido

para torna-la útil. Por meio do labor surge o direito do homem a apropriação, “pelo

esforço que os retira daquele estado comum em que a natureza os deixou164”.

Podemos fixar o tamanho da propriedade obtida pelo trabalho pelo tanto que podemos usar com vantagem para a vida e evitado que a dádiva se perca; o excedente ultrapassa a parte que nos cabe e pertence aos outros165.

O fundamento utilitário da propriedade estabelece a justa medida166 da

apropriação, limitando-a ao que pode ser trabalhado pelo homem, e ao que lhe

serve a conservação e sustento.

Onde existem em qualquer país terras não cultivadas e pobres desempregados, é claro que as leis da propriedade se estenderam, de tal forma, a ponto de violarem o direito natural167.

Conforme a ideia de que o fundamento da propriedade vincula-se à utilidade que

dela pode resultar, a relação entre a imensidão da terra e a pequena quantidade de

seres humanos limitaria naturalmente o tamanho da propriedade privada, evitando

injusta distribuição.

Ninguém se julgaria prejudicado se alguém bebesse, embora fosse longo o trago, se dispusesse de um rio inteiro da mesma água para matar a sede; e o caso da terra e da água, quando há bastante para ambos, é perfeitamente o mesmo168.

164LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.31. 165Ibidem, p.32. 166“Esta medida limitava todas as posses a proporções moderadas, de modo que lhe fosse possível cuidá-las

sem causar prejuízo a ninguém...” Ibid., p.34. 167 JEFFERSON, Thomas. Escritos políticos, p.54. 168LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p.33.

73

De acordo com a conotação religiosa da teoria contratualista, a apropriação

constitui dádiva do artífice divino169 aos homens desde o momento da povoação

originária.

A origem da propriedade privada é contemporânea à fixação do homem a terra,

em detrimento da vida nômade que vivia170. A disposição racional dos recursos

naturais garantiria a subsistência da espécie humana, alicerçando assim seu direito

de propriedade171.

A transformação do processo de obtenção da propriedade privada opera-se a

partir da introdução do dinheiro. O marco interruptivo entre a aquisição da

propriedade pelo trabalho e a aquisição operada mediante contrato corresponde ao

momento em que se atribuiu valor monetário aos recursos naturais.

– a mesma regra sobre a propriedade, isto é, que todo homem deva possuir tanto quanto possa utilizar, valeria ainda no mundo de hoje sem prejuízo para ninguém, uma vez que existe terra bastante para o dobro de habitantes, se a invenção do dinheiro e o tácito acordo dos homens que atribuiu valor monetário à terra, não tivessem consentido à existência de maiores posses e do direito a elas172.

O dinheiro possui valor consensual e não perecível, diferentemente de

alimentos, por exemplo, sua posse em excesso não deteriora. Sob essa justificativa

a acumulação de riquezas seria legítima e não prejudicial à comunidade.

No momento seguinte ao de apropriação da terra pelo trabalho, quando à

propriedade já se atribuía valor especulativo, o trabalho útil deixa de corresponder

ao fundamento do direito de propriedade.

A alteração na forma de aquisição decorre da perspectiva de que o homem

passou, em certo momento histórico, a almejar a acumulação de riquezas,

utilizando-se da moeda como denominador comum para solver quaisquer

necessidades.

169Ibidem, p.33. 170“... e então, por consentimento, chegaram ao ponto de estabelecer os limites dos seus respectivos

territórios, estipulando divisas entre vizinhos e, por meio de leis estabeleceram a propriedade dos membros na mesma sociedade no território”. Ibid., p.36.

171“Assim, a ordem de Deus para dominar concedeu autoridade para a apropriação; e a condição da vida humana, que exige trabalho material com que trabalhar, necessariamente introduziu a propriedade privada.” Ibid., p.34.

172Ibid., p.35.

74

Com a inserção do padrão monetário, o direito de propriedade pelo trabalho útil

é substituído pelo valor que da propriedade pode ser feito a partir das práticas

comerciais, no sentido de acumular riquezas.

De elemento originário e personalíssimo de aquisição, o trabalho virá a ser

considerado somente um dos componentes do processo de produção no sistema

capitalista.

O raciocínio acerca da origem do direito de propriedade é lugar comum tanto no

contratualismo absolutista quanto em doutrinas liberais173. Em ambos os casos,

trabalho e propriedade são considerados fatores responsáveis pelo desenvolvimento

das civilizações, devendo, portanto, possuir proteção legal.

Com o tempo, porém, em alguns lugares do mundo – onde o aumento da população e da riqueza, estimulados pelo uso do dinheiro, provocara certa escassez e valorização da terra –, as comunidades humanas fixaram limites aos respectivos territórios e, pelas leis, regulamentaram as propriedades dos indivíduos dentro da sociedade; desse modo, por meio de acordos e pactos, ratificaram a propriedade que o trabalho e a indústria tinham começado a definir174.

A partir de tal explicação, o contratualismo exalta a importância da propriedade,

junto à necessidade de um governo cujo propósito consista em protegê-la.

As teorias contratualistas conservadora e liberal partem da mesma origem

interpretativa, entretanto retiram da análise entre a propriedade e Estado conclusões

distintas.

Sob a ótica absolutista, o animus domini incidente sobre a propriedade privada

limitava-se de acordo com o poder dirigente do Estado. Por essa perspectiva, o

Estado teria a prerrogativa de interferir na aquisição da propriedade, condicionando

tal processo no sentido do dirigismo territorial.

Em sendo fontes geradoras de insumos e, por conseguinte produtoras de

riqueza, exercer dirigismo político sobre as propriedades resulta ao Estado em

hegemonia de território e em soberania econômica.

173Ver capítulo três supra. 174LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, pp.39-40.

75

O exercício dessa gerência territorial e econômica sobre a sociedade foi

ilustrado politicamente pelo Estado medieval e economicamente pelo sistema de

produção feudal.

A lógica feudalista incorpora o conceito de concentração oligárquica de poder,

mediante a qual o Estado administra as propriedades inseridas na produção servil e

controla o trabalho dos servos.

Por outro lado, sob o enfoque analítico liberal, o poder do Estado encontra

limites na autonomia individual dos proprietários, não lhe assistindo soberania

dirigista sobre a economia, competindo a ele somente a conservação operacional do

sistema econômico e a proteção do território.

Entendemos que o Estado absolutista entrou em declínio pelo fato de engessar

o desenvolvimento econômico capitalista, aprisionando o processo produtivo ao

método servil.

A emancipação do sistema econômico dependia de que o Estado fosse reduzido

a mero administrador da sociedade, a um agente que fiscaliza o funcionamento do

modelo capitalista sem nele interferir.

Esta ideologia jurídica se apoia em uma lógica de interpretação da relação entre

poder e propriedade distinta do sistema de produção feudal. O Estado moderno

resguardar a sistemática capitalista sob a aparência de que garante a todos os

cidadãos a propriedade.

Qual é, depois da agricultura, a pedra angular da sociedade? Qual é a garantia mais poderosa de sua estabilidade?... A propriedade. E qual é a salvaguarda da propriedade? O Governo175.

A expectativa social de redistribuição de terras desencadeada pela revolução

atingia ideologicamente a todos os cidadãos. Porém, a garantia da propriedade

correspondia somente a uma condição genérica de legitimidade jurídica do sistema

capitalista.

175CAMBACÉRÈS apud DE JOUVENEL, Bertrand. As origens do estado moderno: uma história das ideias políticas

no século XIX, p.151.

76

O Estado moderno iguala a forma de acesso à propriedade no sistema

econômico capitalista de modo a encobrir que a natureza desse mesmo sistema

comporta uma desigualdade inerente.

A lei garante a todos a propriedade, mas uma vez que a produção capitalista

depende do trabalho alienado, a condição de que alguns indivíduos não sejam

proprietários é vital para o sistema.

A narrativa idealista liberal visa o proprietário dos meios de produção, ainda que

toda a sociedade civil seja ouvinte. Ao proprietário se destina o chamado a deliberar

a respeito da condução política da econômica.

Os homens cujas posses garantem a fidelidade serão chamados daqui por diante a escolher aqueles cujas luzes, sabedoria e dedicação deverão servir de garantia às deliberações176.

O ideário propagado, quando comparado à realidade concreta, transparecia o

viés retórico da ideologia jurídica institucional, denotando “... o esquecimento

completo a que ficam relegados todos aqueles que não são proprietários177”.

O Estado moderno assenta seus valores jurídicos no solo fértil da ideologia

jusnaturalista. No centro da nova forma política restam seguros os valores

burgueses.

De um lado a proteção da lei promove o respeito à propriedade178, de outro, na

consciência coletiva do grande número de não proprietários, dissemina o etéreo

desejo de obterem para si o mesmo direito.

A condição de proprietário constitui a base do espírito público. Justificavam os

oradores governistas que tal espírito ligaria a estabilidade da pátria à do próprio

território; as máximas em defesa da propriedade inspirariam o amor às leis.

Entretanto:

O que poderia leva-lo [o não-proprietário] a desejar que cada um conserve o que lhe pertence, quando ele mesmo nada tem? (...) E sou da opinião que essa multidão [de proprietários] não tem nenhum direito, visto que ela só o poderia ter adquirido em virtude de um contrato que esse indivíduo isolado

176PORTALIS apud DE JOUVENEL. Ibidem p.149. 177DE JOUVENEL. Ibidem, p.150. 178“Quanto mais salienta a importância da propriedade, mais patente se torna a desigualdade entre

proprietários e não proprietários”. Ibidem, p.148.

77

não foi chamado a celebrar com os outros, e que por isso mesmo não o obriga179.

Nas fundações do Estado liberal encontra-se um paradoxo entre sua função

como garantidor da ordem social que se funda na propriedade, e a natureza do

sistema econômico que comporta a desigualdade entre o proprietário dos meios de

produção e o trabalhador.

A apologia ao direito de propriedade evidencia a contradição mais concreta da

neutralidade do Estado moderno. Apropriação e livre disposição dos meios

produtivos alcançam proteção jurídica de natureza abstrata e alcance genérico,

contudo passam ao largo de todos aqueles “que não possuem nenhuma propriedade

e não têm esperança de adquiri-la. O problema do proletariado está colocado180”.

179FICHTE apud DE JOUVENEL. Ibidem, p.156. 180DE JOUVENEL. Ibidem, p.159.

*Nota do capítulo: as citações feitas em referência a Cambacérès (1753-1824), Condorcet (1743-1794),

Constant (1767-1830), Fichte (1762-1814) e Sismondi (1773-1842) foram indiretas porque não obtivemos consulta à fonte original, uma vez que correspondem a documentos políticos de difícil acesso.

78

6 Estado moderno: síntese da prática econômica – considerações

finais.

6.1 O término do processo revolucionário

Iniciando nossas considerações finais, argumentamos que ao término do

processo revolucionário o Estado havia sido profundamente modificado em relação

às antigas instituições medievais. A superação do modelo produtivo feudal pelo

sistema capitalista alterou o símbolo político-jurídico das relações de poder.

A distinção entre a simples propriedade e a que concentra os meios produtivos

assinala o modo de funcionamento do sistema de capitalista. O valor de uso da

propriedade é substituído pelo valor agregado dos elementos da produção (terra,

insumos e trabalho alienado), o controle sobre eles objetiva o grande comércio e a

acumulação de capital.

Quando inserida na lógica feudal, a prática econômica possuía o potencial

produtivo limitado pela característica estamental do sistema servil. O Estado

moderno consagra o funcionamento exitoso da empresa capitalista, tornando-a

modelo oficial de produção.

A revolução criou uma nova classe dirigente, o que é um fenômeno natural; e essa classe quer manter-se, o que também é um fenômeno natural. E, o que é mais, a manutenção de sua posição garante a manutenção das modificações realizadas no curso da Revolução181.

O modelo capitalista foi fundamentado em valores jurídicos liberais que

obtiveram forte coesão social, institucionalizando o Estado enquanto estratégia de

disciplina coletiva apoiada na lógica racional.

Os valores jurídicos fornecem a legitimidade necessária à manutenção

institucional do sistema produtivo, haja vista o substrato racional de que se originam.

A forma do Estado aparenta critérios puros de racionalidade.

181DE JOUVENEL, Bertrand. As origens do estado moderno: uma história das ideias políticas no século XIX, p.76.

79

A garantia jurídica dos contratos, a segurança da propriedade privada, o ideal

fraterno dos objetivos nacionais, a liberdade e a igualdade jurídica asseguram a

aparência representativa do corpus político-jurídico que sustenta o sistema

produtivo.

O Estado é a instância político-jurídica que resulta da conexão entre a ideologia

do contratualismo político e as práticas econômicas liberais. O contrato social

antepõe a imagem de representatividade política fundada em critérios de

racionalidade para promover a aceitação do sistema de produção.

A ideologia contratualista e a prática capitalista econômico atuam de maneira

simbiôntica, consolidadas no Estado moderno. O resultado das modificações

econômicas concretizadas no curso da revolução é uma forma política de natureza

capitalista.

O ideal contratualista afirma que o poder político fora concebido em fideicomisso

pelos membros da sociedade ao governo, originando o Estado, que por sua vez,

sendo uma instituição de lógica racional, garantiria a eficácia dos valores jurídicos

em sociedade.

A teoria do contrato social fornece o fundamento ético ao sistema econômico

de produção. Em suma, a inserção do sujeito (livre contratante) nas relações

(paritárias) de produção (livre mercado) origina a necessidade de uma espécie de

árbitro que, pautado por critérios neutros e racionais, vigia a manutenção da ordem

social.

O ideal econômico do laissez faire (não interferência governamental no sistema

produtivo), defendido durante o processo revolucionário, teve de ser adaptado ao

modelo político necessário para a proteção de sua própria continuidade.

Os espíritos não saíram de dez anos de revolução com o mesmo corpus de ideia com que nela haviam entrado. Sem dúvida, vamos encontrar no ano VIII as mesmas ideias sobre os direitos individuais que reinavam no começo do movimento. Mas a elas se acrescenta uma nova ideia pragmática, a de um poder executivo forte e estável, destinado a garantir esses direitos. Não que no início não houvesse o desejo de garanti-los; apenas, não se pensava que para isso fosse necessário um poder forte182.

182Ibidem, p.82.

80

A reprodução continuada das práticas econômicas pressupôs um modelo de

disciplina social que mantivesse a relação contratual de trabalho, e assegurasse a

propriedade privada dos meios de produção contra interferência governamental.

O resultado final da destituição do Antigo Regime é a consolidação do

sistema de produção capitalista como o modelo econômico hegemônico, e a

formatação contratualista do Estado moderno como o arquétipo de poder político.

6.2 A constitucionalização da política

A defesa do status quo pelo Estado é estabelecida mediante regras de conduta

que juntas compõem a ordem jurídica. O caráter imperativo e abstrato das normas

promulgadas ilustra uma pretensão de universalidade.

O Estado afirma-se poder equidistante dos cidadãos a ele subordinados, sua

atuação é licita na medida da necessidade e da conveniência, somente quando a

ordem se encontre ameaçada.

Contra abusos de poder, o pacto social assegura o direito de resistência,

sujeitando o Estado a regras que limitem suas investiduras e mantenham-no

reduzido ao necessário. O sistema jurídico do Estado moderno determina um duplo

controle: da ordem social, no nível dos indivíduos; e da ordem institucional, no

âmbito do governo.

O direito deve estabelecer a disciplina que insira os cidadãos nos padrões de

conduta do Estado, mas o Estado não escapa de estar inserido em um estrito

compromisso de manutenção do status.

Para tanto, o ordenamento jurídico responsável por delimitar, interpretar e vigiar

o funcionamento do Estado moderno no sentido de sua natureza correspondeu à

constituição política.

81

Este documento oficial promove a formalização estrutural do poder em

sociedade, determinando os elementos pelos quais a política é conduzida, aplicada

e limitada.

No pacto civil, o Estado equivale ao produto representativo da soberania

somada de cada um dos cidadãos. A delimitação máxima e a atuação mínima dessa

representatividade correspondem ao objeto de outro pacto, um que normatiza a

relação entre o governo e seus membros.

Mediante o processo de constitucionalização da política, a garantia da lei civil

pelo Estado é assegurada por outra lei da qual o Estado figura como um dos

contratantes. “A lei que regula as relações entre os membros da sociedade é a lei

civil. A lei que regula as relações entre a sociedade e seus membros é a lei

constitucional183.”

A Constituição estabelece a organização e a distribuição de competências do

governo, o direcionamento e os limites de sua atuação, os direitos particulares que a

ação governamental deve respeitar e os valores jurídicos em que a ordem política

toma assento.

O documento constitucional possui o objetivo de circunscrever a atuação do

Estado à estrita legalidade, a fim de que o Estado, por seu turno, não se desvie da

funcionalidade para o qual fora instituído.

Mediante a constitucionalização inaugura-se a normatização jurídica do poder

político. O Estado originado pelo contratualismo é chamado ele mesmo a firmar um

contrato com a sociedade, obrigando-se a gerir o sistema de produção e replicar o

modelo oficial, aumentando-o em abrangência e efetividade.

Os valores jurídicos liberais adotados pelo Estado garantem o substrato ético

para que o exercício de sua função de gerência mantenha o aspecto de neutralidade

política e desinteresse prático quanto à economia. Orientado de acordo com a

ideologia liberal, o símbolo do Estado assume-se compromisso calcado em

premissas racionalistas.

183Ibidem, p. 152.

82

O processo de constitucionalização mistifica a natureza do Estado moderno, ao

elevar o direito à ferramenta de controle da instituição política, levando ao raciocínio

de que a força do direito pode dominar a instituição política e está acima dela.

A Constituição delineia um contratualismo nacional de interesse público,

mediante o qual a estrutura político-jurídica é modelada de tal forma a aparentar

uma racional persecução aos objetivos da sociedade.

Além da tarefa de estabelecer limites às prerrogativas de governo e juramentar a

atuação do Estado em conformidade ao sistema econômico, a Constituição tem o

condão de atenuar a turbulência do período revolucionário, refreando os ânimos

sociais pela a positivação de garantias:

A Constituição baseia-se nos verdadeiros princípios do Governo representativo, nos direitos sagrados da propriedade, da igualdade, da liberdade. Os poderes por ela instituídos são fortes e estáveis. A revolução fixou-se nos princípios sob os quais foi iniciada: a Revolução terminou. Assinado: Bonaparte184 (Declaração feita em 24 Frimário do ano VIII).

O emprego dos valores jurídicos liberais impulsiona uma visão de

representatividade garantida por meio da constituição, o documento oficial que

chancela interesses puramente nacionais.

A estrutura político-jurídica filtra o comportamento social por intermédio da

distinção entre condutas lícitas ou ilícitas, conforme estejam ou não de acordo com a

ordem social a ser mantida.

O Estado moderno transmite um aspecto juridicamente isonômico e

desinteressadamente racional, responsável por fazer com que o percebamos como

um poder político neutro quando nos limitamos a analisar sua forma.

6.3 A função organizacional do Estado

184BONAPARTE apud DE JOUVENEL, ibidem, p.76.

83

O significado da palavra forma pode ser transcrito como o modo sob o qual uma

coisa existe ou se manifesta185. Pensar a forma política do Estado consiste em

cogitar da aparência do poder instituído em sociedade.

O modo como o Estado se manifesta está profundamente inserido no cenário

social e no momento histórico em que se institucionaliza, sua roupagem ideológica

reflete os valores defendidos pela classe dominante186.

Enquanto instância de controle da coletividade, o Estado reflete a distribuição e

o propósito do poder político. A estrutura jurídico-política é o “conjunto de

aparelhamentos institucionais e normas destinados a regulamentar o funcionamento

da sociedade em seu conjunto187”.

Fez-se possível notar a natureza de classe188 do Estado por meio da análise dos

aspectos econômicos e ideológicos189 modificados no contexto de transição do

Estado medieval para o Estado moderno.

Percebemos que a consolidação do sistema de produção capitalista como

modelo hegemônico revolucionou as instituições medievais até então vigentes,

elevando uma nova classe ao poder político e investindo o Estado em um novo

propósito190.

Por intermédio da análise histórica, tornou-se possível perceber a correlação

íntima entre a prática econômica dominante em um determinado contexto social e o

poder político responsável por assegurar a manutenção de tal prática.

Ainda que, diferentemente do Estado medieval, o exercício do poder político seja

realizado por pessoas distintas dos agentes que interferem diretamente na produção

econômica, a finalidade do governo liberal caminha no sentido assegurar os

elementos sistêmicos de funcionamento do capitalismo.

185Verbete consultado no sítio eletrônico: <<http://michaelis.uol.com.br/>>, em 24/01/2015. 186Ver capítulo introdutório. 187HARNECKER, Marta. Os conceitos elementais do materialismo histórico, p.113. 188“Nas sociedades de classes, o jurídico-político está assegurado por um aparelho autônomo: o Estado, que

monopoliza a ‘violência legítima’ e cuja principal função é manter sob a sujeição de uma classe dominante todas as demais classes que dependem dela.” Ibidem, p.113.

189 Ver capítulo cinco, especialmente itens 5.4 e 5.5. 190“O que determina, portanto, o tipo de Estado é a estrutura econômica sobre a qual o Estado se erige em

superestrutura política.” HARNECKER, Marta. Os conceitos elementais do materialismo histórico, p.121.

84

A conquista da instituição política por Napoleão Bonaparte na França pós-

revolucionária ilustra uma forma de Estado em que o domínio econômico e o poder

político não se encontravam nas mesmas mãos.

A despeito dessa manifestação imperial de poder político, as ações institucionais

do Império Napoleônico mantiveram-se fiéis às máximas liberais, compromissadas

em assegurar e reproduzir o sistema econômico capitalista.

A aparência impessoal e a universalidade valorativa jusnaturalistas resultam na

forma neutra do Estado moderno, de modo que a visão que se tem do Estado

corresponde à de que essa instância cuida por excelência do interesse público.

A ética contratualista promoveu mais do somente a interpretação racional do

poder em sociedade, possibilitou também a consolidação da imagem do Estado

como um ente idealisticamente superior às partes que o compõe. Por esse raciocínio

o Estado possuiria somente uma função organizacional, teria apenas tarefas

administrativas a serem cumpridas.

A função organizacional diz respeito ao gerenciamento burocrático dos

interesses comuns de um grupo etnicamente homogêneo, ligado por laços culturais,

que habita o mesmo território.

Com efeito, essa função circunscreve o interesse público tutelado e o denomina

interesse nacional. A construção ideológica da nação191 investe o Estado na função

organizacional de garantia da ordem interna e de proteção contra ameaças externas.

Sob tal ótica, o Estado é nada mais que o corpo técnico de organização e

compatibilização dos diversos interesses antagônicos que se manifestam em

sociedade.

A universalidade e a racionalidade expressas por meio das garantias jurídicas

reforçam o viés ideologicamente racionalista do Estado moderno, à medida que em

sua forma o poder político não aparenta pertencer a nenhuma classe.

Junto à função organizacional amplamente divulgada, o Estado possui outra

função obscurecida, vinculada ao seu propósito, que revela a natureza de classe do

poder político.

191Ver capítulo cinco, item 5.2.

85

Ao assumir o objetivo de manutenção do status quo o Estado assegura a

continuidade do sistema de produção capitalista, reproduzindo e legitimando o

desenvolvimento desigual que lhe é inerente. A natureza do Estado encerra domínio:

O Estado tem uma dupla função: técnico-administrativa e de dominação política. Esta última é a que define propriamente o Estado sobredeterminando a função técnico-administrativa, isto é, orientando-a, colocando-a a serviço da função de dominação política. Não há, portanto, tarefas técnico-administrativas com caráter neutro192. (grifos no original).

Ultrapassada a análise da forma do poder, que constitui o último véu ideológico

da neutralidade política, torna-se possível avançar na consideração final a respeito

da recôndita natureza do Estado moderno.

6.4 Dominação de classe e neutralidade política

Ao lado da função organizacional, acobertada pelas abstrações ideológicas de

racionalidade e universalidade jurídica, encontra-se a função de dominação política

do Estado.

A primeira função, de aspecto gerencial, aparenta neutralidade técnica,

refletindo o propósito de administração burocrática dos interesses da comunidade.

A segunda função, cujo conteúdo envolve a vigilância193, implica a utilização de

mecanismos de exame, correção e punição, no sentido de assegurar a continuidade

das relações produtivas em que se fundamenta o Estado.

Se a função técnico-administrativa responsabiliza-se pela organização da ordem,

a função de dominação política, por sua vez, garante a manutenção e reprodução

dessa ordem.

192HARNECKER, Marta. Os conceitos elementais do materialismo histórico, p.116. 193“O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior

‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo.” FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão, p.164.

86

A função de dominação política diz respeito à manutenção coercitiva e coativa

das relações de classe existentes em sociedade que derivam em última instância, da

própria divisão social da economia (entre detentores dos meios de produção e

produtores assalariados).

O Estado reproduz politicamente as condições de domínio econômico de uma

classe sobre outra, da mesma maneira que no âmbito das relações de produção a

classe detentora subordina a classe produtora.

O sistema capitalista corresponde a um método produtivo cíclico, em que a

circulação de riqueza em sociedade inicia-se na produção destinada ao mercado, e

termina na maximização de capital mediante o lucro adquirido pela troca mercantil.

Dentro desse sistema operam classes sociais distintas, mas interdependentes,

sendo que uma delas concentra a propriedade dos elementos produtivos, enquanto

a outra oferece a força de trabalho, sua única propriedade194, em troca de salário.

Para o capitalista, o ciclo econômico se origina no consumo, sendo estabelecido

a partir da compra do tempo de trabalho mediante contrato, para incorporar a mão

de obra do trabalhador junto aos demais elementos da produção.

Do trabalho resultará um produto, que ao ser vendido gerará um valor final ao

capitalista, destinado a remunerar a mão de obra inicialmente empregada, investir

na aquisição de matéria prima, amortizar o desgaste das ferramentas e maquinários

utilizados, e incorporar ao capital o lucro excedente.

Para o trabalhador, o ciclo econômico é estabelecido a partir da produção, no

momento em que vende sua força de trabalho ao capitalista, comprometendo-se a

aplica-la matéria prima que dará origem ao produto final.

Do valor final de venda de tal produto parte será utilizada para remunerar o

trabalho dispendido, na forma de salário. Este, por sua vez, corresponde ao valor de

troca da força de trabalho expresso em padrão monetário e possibilita ao trabalhador

a compra dos meios de subsistência.

É isso que essencialmente ocorre quando o trabalhador vende sua força de trabalho ao capitalista e proprietário dos meios de produção; e com o

194 Ver capítulo cinco, especialmente itens 5.4 e 5.5.

87

resultado financeiro dessa venda, que forma o salário, adquire seus meios

de subsistência de outro capitalista – o comerciante195.

Essa relação econômica encerra a desigualdade sintomática de que o salário

pago pelo capitalista ao trabalhador corresponde o valor de troca da força de

trabalho, “mas o que o capitalista adquire nessa compra não é um valor de troca, e

sim o valor de uso da força de trabalho196”, caracterizando a mais valia.

O salário pago sobre o tempo de trabalho não reflete a produção excedente que

seu uso possa acarretar. O valor de troca do produto supera o valor de tempo de

trabalho197, a produtividade excedente ao preço da mão de obra gera um sobre

valor, incorporado ao lucro do capitalista.

Traduzindo isso em termos de uma economia mercantil, como a do capitalismo, o valor de troca do produto gerado pelo emprego da força de trabalho supera o valor de troca dessa força que é determinado pela subsistência do trabalhador198.

No sistema econômico capitalista os trabalhadores são incorporados ao

processo produtivo a partir da alienação contratual de sua mão de obra. A

“exploração ‘pacífica’ realiza-se mediante um ato pacífico de compra e venda: o

contrato de trabalho199”.

Na relação contratual, por exemplo, entre o capitalista e o trabalhador assalariado, as partes se comportam como ‘sujeitos de direito, segundo papeis previamente definidos e independentemente das posições de classe, e se enfrentam nos limites de suas respectivas forças, ou seja, em função da quantidade de mercadorias que possam reciprocamente se ofertarem [sic] (força de trabalho e dinheiro sob a forma de salário)200.

Sob o fundamento dos valores jurídicos abstratos, a exploração se materializa

dentro da lei. No ato de estabelecimento do contrato de trabalho, entre os

contratantes firmara-se uma relação de obrigações recíprocas, pautada nos

princípios de equivalência jurídica do Estado.

195PRADO JÚNIOR, Caio. Esbôço (sic) dos fundamentos da teoria econômica, p.48. 196Ibidem, p. 62. 197“O fundamento, o ponto de partida da fisiologia do sistema burguês – para compreender seus nexos

orgânicos internos e processo vital – é a determinação do valor pelo tempo de trabalho.” (grifos originais) MARX, Karl. Teorias da mais-valia: história critica do pensamento econômico, p.598.

198PRADO JÚNIOR, Caio. Esbôço (sic) dos fundamentos da teoria econômica, pp.63-64. 199HARNECKER, Marta. Os conceitos elementais do materialismo histórico, p.122. 200ALVES, Allaôr Caffé. Estado e ideologia: aparência e realidade, p.284.

88

Esse sistema produtivo comporta a exploração originária que impõe à classe

trabalhadora alienar seu trabalho, sob pena de não obter o salário que fornece os

insumos necessários à vida201.

O Estado, como conjunto de instituições e normas, destina-se a regulamentar o funcionamento da sociedade de tal maneira que este permita a constante reprodução das condições econômicas, ideológicas e jurídico-políticas que assegurem uma reprodução das relações de dominação de uma classe sobre as demais202.

Na sociedade de classe há a necessidade de uma instância intermediária entre

as classes antagônicas, que assegure e reproduza sistematicamente as condições

produtivas, impedindo eventuais distúrbios à ordem. O Estado moderno apresenta-

se um terceiro sujeito entre as classes, o órgão garante da unidade social,

economicamente nulo e politicamente neutro.

Isso significa que ao Estado cumpre precisamente afiançar, como razão de si mesmo, e sob a forma da igualdade abstrata, a relação social produtiva burguesa, a relação estrutural capitalista, que de modo essencial compreende o vínculo assimétrico e contraditório entre capitalistas e trabalhadores assalariados203.

Este é o propósito do Estado moderno na sua origem: não proteger interesses

concretos, mas assegurar a manutenção e permitir a reprodução do modelo

produtivo hegemônico.

Estabelecido o modelo hegemônico, isto é, a partir do momento em que os

meios de produção já estão concentrados e o trabalho encontra-se alienado, o

Estado abstém-se de atuar na economia, interferindo apenas em caso de riscos ao

funcionamento do sistema.

O Estado exprime os interesses do ‘capital total’, ou seja, do sistema econômico;

não exprime interesses particularistas nem atua como poder meramente

instrumental de indivíduos específicos. O Estado assegura as regras do jogo.

Por isso e para que possa apresentar-se como uma força social ‘neutra’, de caráter público, o Estado aparece e opera como um gestor não capitalista que assegura a unidade das relações de produção burguesa, ou melhor

201“O jornaleiro é pego na armadilha do livre mercado: ‘Ele só tem para vender o aluguel de seus braços, que

podem ser dispensáveis por dois dias, três dias; e vendem pão a ele, o qual ele não pode dispensar por vinte e quatro horas.” Du pain et du blé. Londres, 1774, apud BEAUD, Michel. História do capitalismo: de 1500 aos nossos dias, p.89.

202HARNECKER, Marta. Os conceitos elementais do materialismo histórico, p.121. 203ALVES, Allaôr Caffé. Estado e ideologia: aparência e realidade, p.274.

89

dito, que sustenta e afiança o capital como relação social, e não os capitalistas individuais proprietários das unidades discretas de capital204.

A síntese da ideologia jurídica desenvolvida concomitantemente às modificações

pragmáticas das revoluções liberais concretiza uma estrutura político-jurídica

formalmente equidistante das classes.

Ao se colocar como expressão de um interesse mais abrangente que o das classes sociais de cuja relação contraditória se origina, o Estado aparece mistificado como uma força neutra ou igualitária, pairando sobre a sociedade civil para o resguardo do bem comum205.

A visibilidade atribuída à função organizacional antepõe um fetiche ao real

funcionamento do sistema de dominação, que encerra “de um lado, a divisão social

em classes e, de outro, o predomínio econômico e político de uma classe sobre

outra206”.

Em aparência, o Estado moderno manifesta um idealismo superior a interesses

concretos. O fundamento ético da axiologia liberal legitima o Estado moderno, uma

vez o caráter racional do dever ser cria a expectativa da ordem social justa a ser

atingida.

O direito contribui como elemento motivador de obediência à lei, pois convence

os cidadãos das garantias que a norma jurídica lhes confere, desenvolvendo o

sentimento de possuírem tal status.

De qualquer modo, aquele fenômeno da positivação normativa, condicionando um direito formal-racional, um ordenamento jurídico impessoal, contribui sobremaneira para a configuração do Estado como um fator de neutralidade externa, não confundindo com os capitalistas, nem com os trabalhadores207.

Sem a integração ideológica que o Estado formalmente neutro promove, as

condições eminentemente desiguais do sistema de produção capitalista tornar-se-

iam nítidas, comprometendo a funcionalidade desse sistema.

A fim de que o funcionamento do sistema produtivo mantenha-se ileso, o poder

político deve mistificar as contradições das relações de produção, distinguindo o

propósito e os valores do Estado do interesse sistêmico da economia.

204Ibidem, pp.276-7. 205Ibid., p.279. 206Ibid., p.280. 207Ibid., p.285.

90

Essa distinção se contrapõe aos desígnios privados tanto da classe comercial,

quanto da classe trabalhadora. Coloca-se em supremacia um aparente interesse

público:

O corte entre o público e o privado fundamenta, em última análise, a possibilidade das relações capitalistas, precisamente porque permite a ‘mobilidade contratual na esfera da circulação’, o que pressupõe a existência destacada de ‘sujeitos jurídicos livres e iguais’, tutelados pelo apoio da coerção oficial sobrevinda como algo eventual e não inerente às relações sociais de produção208.

A instituição política atua em conformidade às praticas econômicas; o Estado

moderno correspondeu à instância de operacionalização sistêmica do capitalismo; o

direito e as instituições de controle constituíram, em última análise, mecanismos que

fomentaram o modelo hegemônico de produção.

Se há autonomia do Estado, ela existe de modo necessariamente relativo, quer dizer, fincada na dependência estrutural e existencial de determinado tipo de reprodução social, capitalista209.

Analisando as relações concretas por detrás dos valores jurídicos institucionais

percebemos que a neutralidade do Estado é comprometida em razão da natureza

mesma da instituição política, posto que ela se origina e reproduz um sistema de

dominação de classe.

A simples existência do Estado demonstra o caráter paradoxal das contradições

que habitam a infraestrutura econômica. A anteposição da forma política

representativa, calcada em valores jurídicos universais, torna o Estado “opaco e

recria, na permanência de sua ilusão, o obstáculo destinado a ocultar as conexões

reais de exploração econômica e de sujeição política210”.

Constatar essa característica essencial do Estado moderno constitui um

exercício de análise histórica que reflete uma crítica importante às instituições do

presente.

Por esse motivo, o claro reconhecimento crítico dos aspectos políticos e ideológicos escamoteados nas relações sócio-econômicas é a condição indispensável para superar a perspectiva alienada que se tem do Estado como uma imaginária força transcendente aos limites do próprio sistema social capitalista211.

208Ibid., p.286. 209MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política, p.46. 210ALVES, Allaôr Caffé. Estado e ideologia: aparência e realidade, p.281. 211Ibidem, p.290.

91

Atualmente, o funcionamento do poder político no Brasil e nos países que

compartilham os valores jurídicos ocidentais assemelha-se à forma política

inicialmente sedimentada no Estado moderno.

Ainda que o Estado hoje seja diferente daquele iniciado há cerca de três

séculos, tendo evoluído com o resultado dos sucessos e crises que a história o

proporcionou desde então, a essência do sistema econômico se manteve e, por

conseguinte permanece a mesma a natureza do Estado.

Enxergar a relação entre o Estado e o sistema econômico permite-nos superar a

miopia que afasta o estudo do direito da compreensão do poder em sociedade. A

análise semiótica da natureza do Estado torna possível perceber a complexa

conjuntura social, e talvez superar os limites éticos em que ela se encontra.

92

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