UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE...

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO AS RELAÇÕES INVERTIDAS NO HADES: HUMOR IRÔNICO E CRÍTICA SOCIAL NA NARRATIVA DO HOMEM RICO E DO POBRE LÁZARO Rafael de Campos Dissertação apresentada em cumprimento às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião para a obtenção do grau de mestre. Orientador: Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira São Bernardo do Campo 2014

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PS-GRADUAO EM CINCIAS DA RELIGIO

AS RELAES INVERTIDAS NO HADES: HUMOR IRNICO

E CRTICA SOCIAL NA NARRATIVA DO HOMEM RICO E

DO POBRE LZARO

Rafael de Campos

Dissertao apresentada em cumprimento s

exigncias do Programa de Ps-Graduao

em Cincias da Religio para a obteno do

grau de mestre.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Augusto de

Souza Nogueira

So Bernardo do Campo 2014

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FICHA CATALOGRFICA

C157r

Campos, Rafael

As relaes invertidas no hades : humor irnico e crtica social na

narrativa do homem rico e do pobre Lzaro / Rafael Campos.-- So

Bernardo do Campo, 2014.

150fl.

Dissertao (Mestrado em Cincias da Religio) Faculdade de

Humanidades e Direito, Programa de Ps Cincias da Religio da

Universidade Metodista de So Paulo, So Bernardo do Campo

Orientao de: Paulo Augusto de Souza Nogueira

1. Bblia N.T. Parbolas I. Ttulo

CDD 226.8

3

A dissertao de mestrado sob o ttulo As Relaes Invertidas no Hades: Humor Irnico e

Crtica Social na Narrativa do Homem Rico e do Pobre Lzaro, elaborada por Rafael de

Campos foi apresentada e aprovada em 18 de Maro de 2014, perante banca examinadora

composta por Paulo Augusto de Souza Nogueira (Presidente/UMESP), Paulo Garcia

(Titular/UMESP) e Rodrigo Franklin de Sousa (Titular/Mackenzie).

__________________________________________

Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________

Prof. Dr. Helmut Renders

Coordenador do Programa de Ps-Graduao

Programa: Ps-Graduao em Cincias da Religio

rea de Concentrao: Linguagens da Religio

Linha de Pesquisa: Literatura e Religio no Mundo Bblico

4

Esta pesquisa foi realizada com o apoio da CAPES (Coordenao de

Aperfeioamento Pessoal de Nvel Superior).

5

Meu manifesto de gratido, respeito e estima

Ao estimado amigo e orientador, Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira, pelo auxlio e

apoio presente e constante nesta caminhada de dois anos. Aos colegas do Grupo Oracula, o

bero que me proporcionou gerar este sonho, minha gratido.

Aos colegas da Casa dos Estudantes (Instituto Ecumnico de Ps-Graduao em Cincias da

Religio). Sou grato por me acolherem e se tornarem minha famlia nessa etapa to

importante. Fui imensamente enriquecido com a presena e companhia marcante de cada um,

seja nos cafs de toda hora, nos almoos ou nas noites e madrugadas frias aprendendo sempre

a me humanizar. Cresci com vocs, pois da vida, o que levamos a essncia. Obrigado por

cada momento que, juntos, me levaram a captar to doce princpio.

A Ana Fonseca pelas conversas, risos, confiana, tratamento e tempo. Voc poetiza da vida

e, como poetiza, grande maestra. Meu respeito e obrigado por partilhar de sua poesia, vida

e obra; muito me fez seguir em frente.

Ao casal Rui e Sirley Antoni, vocs so espelhos e refletem carinhosamente a boa, prazerosa e

bela imagem do amor to banido dos relacionamentos. Foram poucos os momentos juntos, no

entanto, bem aproveitados e marcantes para minha vida. Espero, em breve, sentar com vocs

novamente e, simplesmente, deixar rolar.

Ao amigo Gabriel, o amigo das mesmas dores. Como agradecer pelo bem que me fizeste?

Espero que em sua caminhada nessa vida, encontre abrigos to seguros e lares to humildes

6

como encontrei atravs de voc. No qualquer pessoa que abre as portas de sua famlia para

acolher um peregrino. O teu sofrer o meu sofrer; a tua felicidade minha tambm.

A querida ngela Aleixo, amiga/irm, por me ajudar na tarefa do dividir o po, a intimidade,

a responsabilidade, a f, o amor. Tornei-me outro e voc uma das grandes responsveis. Seu

apoio, seus ouvidos e suas crticas me fizeram enxergar um pouco mais de mim e alm de

mim. com respeito e admirao que digo que ferro com ferro se afia. Mesmo sendo, eu,

seu espinho na carne (como jurei ser nesse tempo), foi voc quem evidenciou o meu

espinho, me tornando fraco, porm forte.

Ao amigo Everson Spolaor, que tanto me incentivou, que apostou em um telogo recm-

formado e cheio de questionamentos. Agradeo pelas viagens mensais ao Grupo Oracula, no

segundo bimestre de 2011, e as conversas que me fizeram acreditar que era possvel.

A minha famlia: pai, me, irmos e cnjuges e sobrinhos. No vou dizer que foi difcil ficar

longe de vocs, pois vocs sempre se fizeram perto. Mas isso no que dizer que foi fcil. Os

fins de semana foram longos sem a presena de vocs. No tenho como agradecer cada

incentivo, ajuda e palavra de carinho e orao. Espero um dia recompensa-los.

Ao programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio por abrir meus olhos ao universo

das religies e fazer de mim um religioso ainda mais convicto.

A CAPES (Coordenao de Aperfeioamento Pessoal de Nvel Superior) pelo

apoio.

7

Campos, Rafael de. As Relaes Invertidas no Hades: Humor Irnico e Crtica Social na

Narrativa do Homem Rico e do Pobre Lzaro. 2014. 150 f. (Dissertao de Mestrado)

Universidade Metodista de So Paulo, So Bernardo do Campo.

RESUMO

O trabalho aborda a micronarrativa do Homem rico e do pobre

Lzaro de Lc. 16. 19-31. As relaes entre os dois personagens da

narrativa se mostram invertidas, sugerindo um tom irnico por parte

do narrador lucano. A inverso os coloca no mesmo lugar, o Hades,

mas em posies diferentes, gerando um conflito na narrativa.

Buscou-se observar o motivo da inverso, seu papel na cena e seu

impacto na trama da narrativa e em seus leitores. Examinou-se na

sequncia narrativa da parbola a relao entre seu enredo unificante

e seu enredo episdico buscando o motivo dela dentro dessa

sequncia, o que demonstrou ser uma narrativa direcionada aos

fariseus, onde sugerimos ter um tom irnico em uma crtica social.

Buscou-se retratar o imaginrio desse lugar de inverso, trazendo

algumas imagens do imaginrio judaico e greco-romano a partir de

algumas fontes literrias, principalmente a obra Dilogo dos Mortos,

de Luciano de Samsata do II sc. Demonstrou-se haver uma

intertextualidade, onde ecos do relato lucano so vistos na obra de

Luciano. Para tal elaborao, os passos da narratologia evidenciaram

o que se pretendeu analisar.

Palavras-chave: Rico e Pobre Hades Inverso Dilogo dos

Mortos Imaginrio

8

Campos, Rafael de. As Relaes Invertidas no Hades: Humor Irnico e Crtica Social na

Narrativa do Homem Rico e do Pobre Lzaro. 2014. 150 f. (Dissertao de Mestrado)

Universidade Metodista de So Paulo, So Bernardo do Campo.

ABSTRAT

This dissertation focuses on the micronarrative of "The Rich Man

and Lazarus" in Luke 16. 19-31. The relationship between the two

characters in the narrative is inverted, suggesting an ironic tone of

the Lukan narrator. The inversion puts them in the same place,

Hades, but in different positions, creating a conflict in the narrative.

We attempted to observe the reason for this inversion, its role and its

impact on the scene in the plot of the narrative and its readers. The

relationship between the unifying plot and the episodic plot of the

narrative sequence of the parable was examined in orther to discover

its motifs. It proved to be a narrative addressing the Pharisees,

conveing a social critique in an ironic tone. We attempted to portray

this imaginary site of inversion, bringing some images of the Jewish

and Greco-Roman imagery from some literary sources, mainly the

Dialogue of the Dead, by Lucian of Samosata, a work of the second

century (CE). It emerged an intertextuality showing the existence of

echoes from the lukan text in the Lucianian text. The steps of the

narratology methodology made clear that was we intended to

analyse.

Key-Word: Rich and Poor Hades Inversion Dialogue of Dead

Imaginary

9

Sumrio

Introduo.................................................................................................................................12

Captulo I - Macronarrativa: O Evangelho de Lucas-Atos e sua Teologia .............................. 15

Introduo ................................................................................................................................. 15

1.1 Introduo a macronarrativa de Lucas: Literatura e Teologia ................................... 16

1.1.1 Evangelho de Lucas e Atos dos Apstolos ......................................................... 16

1.1.2 A Teologia e Literatura lucana Uma abordagem geral.................................... 24

1.1.3 Teologia do Caminho em Lucas (9. 51 19. 27) ............................................... 26

1.1.4 Proposta de uma Teologia do pobre em Lucas ................................................... 28

1.2 As micronarrativas do Evangelho de Lucas sobre os bens riqueza e pobreza

como pontes de construo da macronarrativa ..................................................................... 32

1.3 O Homem rico e o pobre Lzaro: A micronarrativa de reinveno da realidade ... 38

1.3.1 Linguagem de inverso ....................................................................................... 40

Considerao Final....................................................................................................................42

Captulo II - Micronarrativa: Anlise Narratolgica e Exegtica de Lucas 16. 19-31 O Hades

como Ambiente de Inverso e Conflito .................................................................................... 43

Introduo ................................................................................................................................. 43

10

Metodologia .............................................................................................................................. 45

2.1 Traduo da macronarrativa ...................................................................................... 45

2.1.1 Texto grego da micronarrativa de Lucas 16. 19-31 e anlise ............................. 45

2.1.2 Traduo Idiomtica ........................................................................................... 48

2.2 Crtica Textual: Reconstruindo o texto ...................................................................... 50

2.2.1 Variantes ............................................................................................................. 50

2.3 Clausura: Delimitando o sentido do texto .................................................................. 53

2.3.1 Onde comea e onde termina a narrativa? .......................................................... 53

2.3.2 Os quadros da narrativa ...................................................................................... 55

2.3.3 A sequncia narrativa ......................................................................................... 57

2.4 O Enredo .................................................................................................................... 58

2.4.1 O fio condutor ..................................................................................................... 59

2.4.2 A relao do enredo unificante e o enredo episdico ......................................... 63

2.4.3 O enredo de resoluo ou de revelao? .......................................................... 64

2.5 Os Personagens .......................................................................................................... 65

2.5.1 Inventrio dos personagens ................................................................................ 65

2.5.2 Os personagens a servio do enredo ................................................................... 68

2.5.3 Construo dos personagens ............................................................................... 73

2.6 O Enquadramento ...................................................................................................... 77

2.6.1 Indicaes temporais .......................................................................................... 78

2.6.2 Enquadramento geogrfico ................................................................................. 80

2.6.3 Enquadramento social da histria contada ......................................................... 81

2.7 A Temporalidade ....................................................................................................... 86

2.7.1 Variaes na velocidade da narrativa ................................................................. 86

2.7.2 Ordem: analepses e prolepses ............................................................................. 89

2.7.3 Frequncia: a narrativa singulativa, iterativa ou repetitiva? ............................ 92

Considerao Final ................................................................................................................... 93

Captulo III - Intertextualidade: Imaginrio da Vida Aps a Morte e Equalizao no Dilogo

dos Mortos, de Luciano Crtica Social e Tradio Cnica ................................................... 94

Introduo ................................................................................................................................. 94

3.1 Intertextualidade ........................................................................................................ 95

3.1.1 E os paralelos? .................................................................................................... 96

3.2 Imaginrio do Alm-mundo e Inverso Social .......................................................... 98

3.2.1 A vida aps a morte no judasmo do Antigo Testamento................................... 98

11

3.2.2 A vida aps a morte nos escritos de Homero e Plato...................................... 108

3.2.3 O Hades em Lucas 16. 19-31............................................................................ 117

3.3 Introduo a Literatura do Dilogo dos Mortos, de Luciano ............................... 125

3.3.1 Breve resumo: O autor e suas obras ................................................................. 125

3.3.2 Dilogo dos Mortos .......................................................................................... 127

3.3.3 Dilogo VII, XX, XXIV, XXVIII .................................................................... 134

3.3.4 Apresentao dos dilogos ............................................................................... 134

3.3.5 Dilogo dos Mortos, de Luciano e o homem rico e o pobre Lzaro lucano . 140

Considerao Final..................................................................................................................143

Consideraes Finais .............................................................................................................. 145

Referncias..............................................................................................................................148

12

INTRODUO

A pesquisa tem como tema estudado as Relaes Invertidas no Hades. O tema parte

da anlise da percope bblica do evangelho de Lucas 16. 19-31, a parbola do homem rico e

do pobre Lzaro. Temos como proposta uma abordagem da inverso entre o rico e pobre da

micronarrativa, evidenciada a partir da morte de ambos os personagens.

A micronarrativa relata dois homens em situaes bem diferentes; um rico que esbanja

sua situao de riqueza em banquetes e roupas suntuosas e, um homem pobre de nome Lzaro

que, diferente do rico, vive uma situao bem aqum quando comparado os dois homens.

Dele descrito ser um mendigo jogado porta do rico, necessitado de po e de cuidados. A

realidade presente no relato sobre a vida dos personagens alterada com a morte deles. Uma

nova cena se inicia com a inverso que, evidenciando o conflito, abre um novo cenrio onde o

rico atormentado no Hades e o pobre consolado no seio de Abrao.

O trabalho se desenvolve, a partir do texto relatado, na problemtica do ambiente de

inverso e das consequncias do padro de vida que explicitado antes mesmo da inverso. O

Hades aparece como uma realidade plausvel para inverter e sugerir um conflito

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socioeconmico e religioso na narrativa e, tambm, lembrar um novo conflito que se desvela

no tormento e consolo no alm. Essa uma condio inaltervel na narrativa.

Desse modo, a inverso salienta o conflito que torna nossa investigao mais centrada

no mundo do alm, apresentado pelo narrador lucano. A comear pelo questionamento de

como se d tal inverso, buscamos identificar o conflito social existente na figura dos

personagens e qual a funo da morada dos mortos na micronarrativa lucana referenciada.

A inverso dos personagens sugere humor irnico e o mundo inferior, o Hades, o

espao simblico e imaginrio dessa inverso irnica. Mais do que apenas retratar como

devemos utilizar as riquezas, o contexto de Lucas 16 e seu pice nos versculos 19-31 nos faz

questionar a tradio imaginria que o narrador lucano suscita e, como ele utiliza dentro desse

contexto.

Para a anlise do tema e da micronarrativa de Lucas 16. 19-31, utilizamos como

metodologia alguns passos do mtodo histrico crtico e a Narratologia a partir dos passos

indicados pelo livro Para ler as narrativas bblicas, de Daniel Marguerat, aprofundados na

exegese. Esse mtodo nos fez caminhar pela micronarrativa na perspectiva de enxerga-la

como um texto dentro de seu contexto narrativo. Assim, os passos que nos dispusemos a

seguir foram: traduo do texto grego e um exame das variantes a partir das edies crticas; a

delimitao da percope, o que identificamos como clausura; o enredo da micronarrativa, ou

seja, de como a histria est organizada; os que atuam nesse enredo, os personagens e suas

caractersticas apresentadas no texto; o enquadramento, que diz respeito quilo que constitui a

histria contada; e a temporalidade, que marca o tempo contante de uma narrativa.

A escolha metodolgica da narratologia nos ajudar com a interpretao do nosso

texto no vis da anlise narrativa, ou seja, considerando o efeito do texto no leitor ou a leitora.

Os leitores se tornam o foco a partir de seu questionamento do texto. Desse modo, tentamos

incluir intuies do texto sobre o seu leitor.

Esclarecido alguns pontos e a metodologia que utilizamos, demonstraremos quais os

assuntos que nos propomos abordar em cada captulo do presente trabalho:

Em primeiro lugar, fazendo uma exposio da teologia e literatura da macronarrativa

do evangelho lucano, iremos inferir algumas intuies quanto ao prlogo de Lucas, a autoria,

as relaes de Lucas como historiador, o Jesus que Lucas apresenta; a localizao, data e

propsito lucano; propomos uma teologia do caminho, onde entendemos haver uma proposta

14

do evangelho aos pobres e destitudos; em seguida, discorremos uma proposta sobre a

teologia do pobre no evangelho lucano, onde a mensagem do Reino de Deus marcada como

uma implantao revolucionaria nas palavras programticas de Jesus mediante o narrador;

abordamos algumas parbolas L como narrativas retricas a favor do Reino de Deus e sua

mensagem aos pobres; e num ultimo tpico, apresentamos uma nova realidade a partir da

micronarrativa de Lc. 16. 19-31, essa dada pela inverso.

Em segundo lugar, fazemos uma abordagem exegtica narratolgica na percope de

Lc. 16. 19-31. Apoiado pelas indicaes que o prprio texto nos d, analisamos o contexto

onde a narrativa est situada e como o captulo 16 e toda a narrativa do caminho (9. 51 19.

27) esto amarradas e expem a temtica que nossa micronarrativa apresenta: inverso,

riqueza e pobreza, mas com a novidade do Hades. O tratamento da narrativa, a partir dos

passos dados por Marguerat, tem como proposta ao leitor um maior entendimento da

disposio dos personagens dentro do texto, como eles marcam o andamento da histria em

relao ao tempo contado e contante e, principalmente, como o texto trabalha para dar sentido

s realidades que ele quer nos apresentar.

Em terceiro lugar, apoiados pela intertextualidade, tratamos de alguns modelos que

inferimos ser o ambiente cultural-literrio de onde a ideia do Hades e inverso surgem na

narrativa lucana. A partir de um tratamento inicial dos paralelos fixados narrativa, fazemos

uma viagem no suposto imaginrio acerca do mundo dos mortos em Homero (Ilada e

Odisseia), e Plato (Dilogos e obras), para ento sugerirmos uma comparao com alguns

escritos judaicos. Aps esse exerccio, introduzimos a obra Dilogo dos Mortos, de

Luciano, numa tentativa de intertextualidade com nossa narrativa parablica, onde ecos

aparecem e sugerem semelhanas com ela. Fazemos uma breve apresentao do autor e sua

obra e escolhemos alguns dilogos para fazer uma analogia com o texto de Lc. 16. 19-31,

apontando semelhanas e diferenas entre os dilogos e a narrativa parablica. Nosso objetivo

neste trabalho uma tentativa de aproximao da noo de vida aps a morte contida no

imaginrio lucano.

Tendo exposto nossa proposta, metodologia e aspectos introdutrios que abordaremos

nesse trabalho, seguiremos ao primeiro captulo.

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Captulo I

Macronarrativa: O Evangelho de Lucas-Atos e sua

Teologia

Introduo

O captulo prope discorrer uma anlise da teologia e da literatura acerca do evangelho

segundo Lucas para demonstrar como o narrador Lucas se ocupou de organizar os seus temas.

Tem tambm o propsito de abordar, dentro dessa anlise, as micronarrativas no evangelho

como discurso que exaltam o pobre e chamam o rico ao arrependimento. Desse modo,

estruturar essas micronarrativas como estratgia do narrador (Lucas) como uma acusao do

modo de vida destes na sociedade, e em um segundo momento, explorar as percepes de

estruturas imaginrias no mundo do alm, ideias do ps-morte, crtica social, ironia social,

etc.

16

1.1 Introduo macronarrativa de Lucas: Literatura e Teologia

A introduo macronarrativa tem por objetivo introduzir os escritos tidos de Lucas

o evangelho e os Atos dos apstolos dando nfase maior ao evangelho e, quando vivel,

apontaremos o assunto em sua segunda obra.

1.1.1 Evangelho de Lucas e Atos dos Apstolos

de comum acordo entre a vasta pesquisa dos estudiosos dos escritos de Lucas adotar

o estudo do evangelho juntamente com o livro dos Atos dos apstolos. Iniciamos

concordando que o evangelho de Lucas e os Atos dos Apstolos constituem uma obra de

conjunto e trazem a mesma mensagem1. A dupla composio funde-se em uma mensagem

nica que tem como valia o evangelho a todas as naes. Bull2 afirma que em ambos os

escritos temas essenciais podem ser reencontrados. Sobre essa unidade de Lucas e Atos que

tentaremos esclarecer.

Sobre o prlogo. Umas das evidncias narrativas que apoiam a obra lucana em dois

volumes so os prlogos (Lc 1. 1-4 e At 1. 1-2). Segundo Marguerat, a repetio do prlogo

de Lucas 1,1-4 em Atos 1,1 (Eu consagrei meu primeiro livro, Tefilo, a tudo o que Jesus

fez e ensinou, desde o comeo...) um indicio seguro de que Atos constituem a sequncia do

evangelho3. Conforme Bovon

4, o prlogo de Lucas d uma grande importncia e interesse

pela histria e que, tem como a motivao, convencer mais do que apenas informar algum

contedo. Em seu esquema geral, Fitzmyer entende que essa primeira parte do evangelho

corresponde ao propsito do narrador Lucas. Ele diz que o prlogo uma declarao de

intenes. Lucas manifesta o que pretende com sua narrao dos atos e ditos de Jesus: um

1 SCHREINER, Josef; DAUTZENBERG, Gerhard. Forma e Exigncias do Novo Testamento. So Paulo:

Hagnos, 2008, p. 254. 2 Cf. BULL, Klaus-Michael. Panorama do Novo Testamento: Histria, Contexto, Teologia. So Leopoldo:

Sinodal, 2009, p. 34. o motivo do caminho da salvao orientado pelo Esprito Santo, a teologia da palavra de

Deus e a problemtica de como lidar com os bens terrenos so as temticas indicadas pelo autor em prol da

unidade da obra. 3 MARGUERAT, Daniel (Org.). Novo Testamento: histria, escritura e teologia. So Paulo: Loyola, 2009, p.

107. 4 BOVON, Franois. El Evangelio segn San Lucas I (Lc 1. 1-9, 50). Tomo I. Salamanca: Ediciones Sgueme,

2005, p. 35.

17

relato fidedigno, com uma dedicatria a Tefilo5. Ainda corroborando, Fabris afirma que

Lucas,

[...] no seu breve prlogo, exemplo nico entre os evangelhos, ele no s

determina com exatido a finalidade e o mtodo de seu trabalho, mas explica

seu intento de oferecer um relatrio ordenado e exaustivo dos

acontecimentos que so o objeto de sua exposio6.

Sobre o prlogo de Atos dos Apstolos, Comblin7 diz fazer conexo com o final do

terceiro evangelho. Aps apresentar Jesus ressuscitado em Lc 24, o narrador inicia uma nova

obra, uma histria nova de certo modo paralela anterior. Essa nova histria tem como

contedo o testemunho desde Jerusalm at os confins do mundo (At 1. 8).

O terceiro evangelho narrava a histria de Jesus. Este livro narra a histria

do Esprito Santo. O tema fundamental o mesmo: o Reino de Deus, o reino

de Israel. Este reino tem duas etapas: a vinda de Jesus at sua exaltao no

cu, e a vinda do Esprito Santo8.

Fitzmyer, tambm acerca do prlogo e da unidade de Lucas-Atos, concorda com a

harmonia e coerncia contida nos escritos. Negando as opinies dos que dizem que a unidade

contem dois autores, ele diz que o vocabulrio e o uso das mesmas expresses, a semelhana

de estilo e forma de composio, e os temas, a teologia, o conjunto de seu pensamento so

semelhantes em um e outro volume que deve haver sido obra do mesmo autor9. Sobre sua

unidade como texto, h tambm uma evidente unidade narrativa, marcada pelo paralelismo.

O desenvolvimento do tratamento paralelo de Jesus, Pedro, e logo de Pedro e Paulo, aponta de

certo modo a uma unidade de concepo que domina a obra em dois volumes10

.

5 FITZMYER, Joseph A. El Evangelio segun Lucas: I Introduccion General. Madrid: Ediciones Cristiandad,

1986, p. 227. Tambm: Cf. BOVON, 2005, p. 29. 6 FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos II. 2 ed. So Paulo: Loyola, 1995, p. 12.

7 COMBLIN, Jos. Atos dos Apstolos. Comentrio Bblico Latinoamericano. So Paulo: Fonte Editorial, 2012,

p. 77. 8 COMBLIN, 2012, p. 77-78.

9 FITZMYER, Joseph A. Los Hechos de Los Apstoles I Traduccin, introduccin y comentrio (1, 1-8, 40).

Salamanca: Ediciones Sgueme, 2003, p. 92-93, traduo nossa. 10

FITZMYER, 2003, p. 93, traduo nossa.

18

Marguerat diz que o prlogo o que amarra o narrador com o leitor. Desse lao a

narratologia fala de um pacto de leitura para designar aqueles trechos iniciais de um texto

em que o autor estabelece o quadro dentro do qual sua obra deve ser entendida, assinalando,

pois, a maneira como o relato deve ser lido11

.

Segundo Fabris12

, a obra tem sua organizao num esquema unitrio e coerente. De

igual modo, Drury deduz que isso porque Lucas teve tempo para tal feito e pde amadurecer

com competncia sua verso das narrativas que se tornaram herana crist. Nem Marcos nem

Mateus, os narradores precedentes cuja obra ele incorpora na sua, gozaram dessa calma auto-

suficncia literria e autoconscincia13

.

No entanto a ciso, conforme Marguerat14

, alinha-se como contedo pois contm na

primeira macronarrativa a histria de Jesus e, na segunda, os incios da igreja. O corte Lucas-

Atos em duas obras lucana de cunho doutrinal, o que tende a obscurecer, a vista do leitor, os

Atos dos Apstolos em seu carter e sua ligao como segundo volume da obra. Entretanto,

seguindo Bovon15

e Fitzmyer16

, o autor no revela muito de si nas obras concedidas a ele.

Nem nome ele outorga a si mesmo em Lucas-Atos. Portanto, temos um autor annimo e obras

annimas. No relato, tal como tem chegado at ns, no h a mais mnima indicao sobre a

identidade do autor, nem sequer algum indcio textual que nos permita deduzir17

.

Sobre o autor. Mas, ento, quem o autor do dptico e qual sua origem?18

Entre a

proposta de atribuio dada pela tradio no segundo sculo e o real autor, muito se questiona

sobre o assunto. O uso da primeira pessoa se encontra tanto no evangelho, em Lc 1. 3 que se

identifica com um eu ou a mim, assim como em At 1. 1 fiz meu. Marguerat diz que

seu nome permanece desconhecido; mas costume dos autores bblicos desaparecer por trs

11

MARGUERAT, Daniel. A Primeira Histria do Cristianismo: Os Atos dos Apstolos. Coleo Bblica Loyola

35. So Paulo: Loyola & Paulus, 2003, p. 33, grifo do autor. 12

FABRIS & MAGGIONI, 1995, p. 12. 13

DRURY, John in: ALTER, Robert; KERMODE, Frank. Guia Literrio da Bblia. So Paulo: Unesp, 1997, p.

449. 14

Cf. MARGUERAT, 2009, p. 108. O corte: uma deciso doutrinal. O corte em dois da obra lucana ,

portanto, uma deciso doutrinal, devido ao fato de a Igreja primitiva reconhecer uma autoridade maior dos

evangelhos; a autoridade apostlica e cannica dos Atos ser admitida um pouco mais tarde, graas

especialmente aos esforos de Irineu (c. 180). Tambm: Cf. FITZMYER, 2003, p. 93; e COMBLIN, 2012, p.

65. 15

BOVON, 2005, p. 39. 16

FITZMYER, 2003, p. 93; Tambm: FITZMYER, 1986, p. 71. 17

FITZMYER, 1986, p. 71, traduo nossa. 18

De acordo com: BULL, 2009, p. 35: A mais antiga tradio sobre a autoria qual temos acesso encontra-se

em Irineu de Lio (aprox.. 180 d.C.). Ele cita Lucas, que era mdico e um acompanhante de Paulo, como autor

de Evangelho e dos Atos dos Apstolos. Irineu reporta-se nesse contexto expressamente passagens ns de

At [...] e deixa entrever assim, ao mesmo tempo, como a tradio sobre o autor provavelmente se originou.

19

da palavra que anunciam [...]19

; todavia alguns indcios do texto podem ajudar na construo

desse narrador/autor.

Assim se apresentam alguns dados textuais na construo desse narrador annimo:

bom domnio da Bblia judaica na verso Septuaginta; excelente Grego da koin; boa

administrao dos semitismos; no foi testemunha ocular do ministrio de Jesus (Lc 1. 2);

desprovido de conhecimento geogrfico e costumes locais da Palestina20

; ainda, conforme

Fitzmyer: sua diferena com outros evangelistas consiste essencialmente em sua inteno de

relacionar a vida de Jesus no s com o ambiente e a cultura contempornea, mas tambm

com o desenvolvimento expansivo da nascente igreja crist21

, o que vincula sua origem a um

cristianismo de segunda ou terceira gerao.

Segundo a tradio, o autor do dptico Lucas. Este escritor aquele Lucas de quem

falam as cartas de Paulo (Cl 4,14; Fm 24; cf. 2Tm 4,11)?[...] Lucas originrio de Antioquia

da Sria, mdico celibatrio, discpulo dos apstolos e companheiro de Paulo22

. A percepo

apropriada de Theissen apresenta o autor de Lucas-Atos como um grande contemplador de

Paulo, porm distncia, longe do apstolo. Ele viveu em um tempo diferente de Paulo. No

prefcio (Lc 1,1-4), ele olha para trs na cadeia de tradio de testemunhas oculares e

evangelistas e coloca-se em terceiro lugar23

.

Comblin24

, seguindo a mesma proposta, aborda a composio dos livros como uma

atribuio da tradio a Lucas, isso pelo simples motivo de sua aceitao apostlica e sua

ligao com os escritos paulinos. A partir da crtica bblica, muitas objees foram

apresentadas, fazendo com que os defensores da tradio recorressem s sees ns, que

apontam que o livro pode ter sido escrito por um companheiro de viagens de Paulo. Seguindo

a mesma linha, Frabis ajusta que Lucas o discipulo annimo que relata nos Atos alguns

episdios em primeira pessoa, durante a segunda e terceira viagem de Paulo (cf. At 16,10-17;

20,15 21,18; 27,1 28,16)25

. No entanto, Comblin mostra que tanto erros histricos na

19

MARGUERAT, 2009, p. 122. 20

Ainda: Tambm o fato dele renunciar de interpretar a morte de Jesus como morte expiatria merece ser

considerado nesse contexto. Pelo menos os destinatrios de Lc (especialmente Tefilo [1.3; At 1.1]) devero,

portanto, ser procurados prioritariamente em ambiente gentlico-cristo. Em favor disso tambm est o amplo

espao dado pelo autor descrio da passagem para a misso aos gentios em At; in: BULL, 2009, p. 35-36. 21

FITZMYER, 1986, p. 71, traduo nossa; Cf. FABRIS & MAGGIONI, 1995, p. 20. 22

FABRIS & MAGGIONI, 1995, p. 20. 23

THEISSEN, Gerd. The New Testament History, Literature, Religion. New York: T&T Clark Ltd, 2003, p.

109. 24

COMBLIN, 2012, p. 65. 25

FABRIS & MAGGIONI, 1995, p. 20.

20

narrativa de algum que pudesse ser testemunha ocular quanto ausncia teolgica

fundamental paulina em Atos (justificao pela f, a libertao da lei, a morte sacrificial de

Jesus na cruz), pode supor no ser o Lucas das narrativas paulinas.

Corroborando com os estudos de Comblin, Marguerat discute se os textos em primeira

pessoa do plural (principalmente em Atos) podem validar a autoria dos escritos ao

companheiro das viagens de Paulo. Ele assume que tanto o uso do ns em Atos quanto o

uso do eu em Lc 1, imprprio. Para isso ele d trs justificativas:

1) o eu do autor no a mesma coisa que um ns narrativo; 2) o eu de

Lc 1,1 exradiegtico, ao passo que o ns dos trechos posteriores

atribuido a um personagem (coletivo) da narrativa, o grupo dos

companheiros de Paulo, portanto intradiegtico; 3) diferente do eu do

prefcio, que est fora da histria contada, o ns no se dirige diretamente

ao leitor; fica intrnsico histria contada. Concluo que o uso do hJmei:V significa um procedimento de credibilizao da narrativa, com a inteno de

indicar sua origem dentro de um grupo do qual o narrador faz parte [...] Em

termos narratolgicos: o hJmei:V assinala a demarcao espao-temporal e ideolgica do ponto de vista adotado pelo narrador

26.

Deste modo, as pesquisas de Knight mostram que, o que podemos dizer sobre o autor

do evangelho de Lucas que ele no foi uma testemunha ocular de Jesus e que o novo

Testamento cita apenas o Lucas mdico das passagens paulinas. O pesquisador afirma que

tudo o que podemos dizer que Lucas foi, provavelmente, um gentio, que ele possivelmente

teve uma ligao com Paulo27

.

Lucas, o historiador. Primeiramente, Arens diz a respeito dos evangelhos que estes

combinam histria com pregao, catequese e apologtica [...] os Evangelhos no so

simples biografias de Jesus28

. O teolgo afirma que h um misto de informaes biograficas

que, no entanto, resignificam desse passado histrico para o presente numa mensagem que

querem comunicar. O propsito dos Evangelhos no foi escrever uma biografia de Jesus,

mas guiar os cristos de suas respectivas comunidades em sua vivncia como discpulos desse

26

MARGUERAT, 2003, p. 34-35. 27

KNIGHT, Jonathan. Lukes Gospel. London and New York: Routledge, 1998, p. 09-10, traduo nossa. 28

ARENS, Eduardo. A Bblia sem mitos uma introduo crtica. So Paulo: Paulus, 2007, p. 112.

21

mesmo Jesus, mas aqui e agora29

. Porm, outra opnio sugere que os evangelhos esto entre

os gneros narrativos novelesco, histrico e biogrfico antigos.

Em segundo lugar, concordamos com Drury a respeito de que o narrador Lucas

estabelece um vnculo entre o ontem da vida de Jesus e o anteontem das Escrituras que lhe

dizem respeito. A longa viso histrica de Lucas est longe de ser montona ou

monocomtica. Trata-se de um fluxo de fases diferentes mas vinculadas30

. Desse modo, o

narrador constri o cumprimento de profecias do passado nas narrativas do presente

(evangelho) e formula novas profecias no presente para uma realizao e cumprimento no

futuro (Atos).

Segundo Marguerat31

, Lucas pertencia a uma sociedade romana e que seguia, como

historiador, tanto a tradio escolar que Luciano de Samsata descreve em Como se deve

escrever a histria32

, quanto seguia os dez cdigos do historiador greco-romano. Ele afirma

que seja como for, a confrontao de Lc-At com o conjunto das normas do historiador

confirma que o escrito lucano corresponde ao padro da historiografia greco-romana33

.

Segundo o autor, Lucas utiliza: a) o moralismo da histria, ou seja, a histria deve edificar; b)

ele constri e faz um relato bem ordenado os prefcios nas extremidades evidenciam esse

feito; c) ele utiliza fontes, o ajuntamento do material preparatrio; d) variedade, vivacidade

so encontradas em Lucas principalmente pelo cuidado com que o autor varia seu estilo e

seus efeitos; e) as indicaes topogrficas detalhes de itinerrios, paisagens, etc.; f) os

discursos, que narrativamente institui uma espcie de meta-relato (relato sobre relato), pois

deixa os personagens da histria narrada inteerpretarem os acontecimentos narrados; g) um

assunto irrisrio, pois Lucas opta pela historiografia judaica narrativa de como Deus

intervm nas venturas e desventuras de um povo pequeno, o que no o mantm longe das

tradies historiogrficas helenistas; h) sua historiografia teolgica, pois alm de dar certa

importncia parresia () aos moldes de Luciano de Samsata, sua leitura da histria e de

quem cr, ele entende o tempo como algo que, de antemo, pertence a Deus34

.

29

ARENS, 2007, p. 112. 30

DRURY, in: ALTER & KERMODE, 1997, p. 451, grifo do autor. 31

MARGUERAT, 2003, pp. 24-25. 32

Cf. SAMSATA, Luciano. Como se deve escrever a histria. Edio Bilngue. Traduo e Ensaio Jacyntho

Lins Brando. Belo Horizonte: Tessitura, 2009, pp. 11-278. 33

Marguerat destaca que o narrador de Lc-At obedece das dez regras do cdigo do historiador greco-romano,

oito regras, transgredindo duas apenas. Ele diz que a utilizao dessas regras so enxergadas pelo leitor em Atos.

In: MARGUERAT, 2003, pp. 25. 34

Cf. MARGUERAT, 2003, pp. 25-33.

22

O Jesus de Lucas. Para Lucas, Jesus um profeta no incidental35

como afirmaram

os discpulos na estrada de Emas em Lc 24. 19: [...] que foi profeta poderoso em obras e em

palavras, diante de Deus e diante de todo o povo.

Koester36

diz que, a partir da interpretao dos evangelhos, Jesus apresentado com

trs ttulos messinicos e cristolgicos: Profeta, Mestre e Exorcista. Contudo, ele considera

que tais ttulos so insuficientes para estabelecer uma reconstruo da autoconsciencia de

Jesus. As funes religiosas sugeridas pela literatura das narrativas evanglicas so:

filsofo, visionrio apocalptico e mago. Koesler diz que filsofos, visionarios

apocalpticos e magos eram profissionais religiosos que eram ento modernos e totalmente

inseridos na realidade de sua poca37

. Mas, seguir qualquer uma dessas inclinaes sobre o

personagem Jesus de forma exclusiva, no levar em considerao os materiais nos

evangelhos que esto profundamente enraizados na tradio e na Escritura de Israel. Ele

conclui afirmando que qualquer construo do personagem e qualquer validao dos ttulos

ou funes, so mera racionalizao.

Para Drury, o Jesus de Lucas o cumprimento derradeiro da antiga linha proftica,

predizendo seu fim e o nicio de uma nova providncia na histria. Ele um eixo ou divisor

de guas, ponto central no tempo38

. Jesus seria o prenunciado aos eventos histricos

iminentes, ou seja, o narrador Lucas pinta o personagem Jesus como aquele que, do alto

anunciado e, a partir de seu nascimento (2. 8-19), seu protagonismo horizontal ocupa as

narrativas de anuncio de um reino iminente e que cumpre as antigas profecias dos profetas..

Sobre a localizao, data e proposito da escrita. De acordo com Schnelle, a

existncia de numerosas comunidades no leste do Mediterrneo at Roma forma para o

evangelista o quadro histrico para a elaborao de suas duas obras entre 90 e 100 d.C.39

.

Ainda na compreenso do autor, parece que ele se dirige principalmente a uma camada

urbana abastada, culta e interessada em assuntos religiosos-filosficos40

. Ele usa como

35

DRURY, in: ALTER & KERMODE, 1997, p. 452. 36

KOESTER, Helmut. Introduo ao Novo Testamento. 2. Histria e literatura do cristianismo primitivo.

Volume 2. So Paulo: Paulus, 2005, p. 89. 37

KOESLER, 2005, p. 90, grifo do autor. 38

DRURY, in: ALTER & KERMODE, 1997, p. 453. Cf. MARGUERAT, 2009, pp. 128-129, A cristologia,

Lucas no cessa de afirmar que a vinda do Messias satisfaz as promessas feitas a Israel e se inscreve na espera

despertada pelos profetas. 39

SCHNELLE, Udo. Teologia do Novo Testamento. Santo Andr & So Paulo: Academia Crist e PAULUS,

2010, p. 601. 40

SCHNELLE, 2010, p. 601.

23

confirmao os textos em Lc. 1. 1-4; At. 17. 22-31; 19. 23-40; 25. 13-26, 32, para afirmar que

o evangelista Lucas tem a inteno de convenc-los do ensino cristo.

Bull41

ajustando sobre a localizao da obra a reflexo intensa sobre como lidar com

os bens e as fortes advertncias contra os perigos da riqueza, conclui que Lucas esfora-se

em determinar mais precisamente o lugar da comunidade crist dentro da sociedade do

Imprio Romano.

Baseado na leitura da micronarrativa, juntamente em seu contexto literrio dentro da

macronarrativa, podemos inferir algumas sugestes sobre a comunidade de Lucas: Ou era

uma comunidade de ricos abastados que estavam sendo catequizados em prol da aceitao de

novos membros os pobres na ajuda e na generosidade; ou eram uma maioria de pessoas

pobres que enfrentavam a incluso de novos membros afortunados com dificuldade em ajudar

e se dispor financeiramente de seus bens.

Brown42

, sobre a possibilidade da localizao da comunidade destinatria lucana, diz

que a tradio externa aponta Antioquia. No entanto, a traduo que valida Lucas como

companheiro de viagem de Paulo, assegura que Lucas tinha como destinatrios os da misso

do apstolo. A tradio que julga internamente as duas obras (Lucas-Atos), apoia que Atos se

concentra na histria paulina, o que relaciona essa obra proclamao de sua mensagem

audincia de suas comunidades. A sugesto, portanto, seria Roma, por ser o marco final de

Atos. O evangelho, com algumas intenes diferentes de Mateus e Marcos, ecoa

estranhismo em relao sinagoga; relata narrativas instrutivas em banquetes; cenas

parecidas com relatos da bibliografia helenistica, etc. Brown conclui que essas observaes

fazem sentido se Lucas-Atos tinham como destinatrios uma rea predominantemente

gentlica, evangelizada direta ou indiretamente pela misso paulina43

.

Knight sugere que ns no temos nenhuma idia de onde Lucas foi escrito e onde

viveu os primeiros leitores [...] Roma proeminente entre eles. Sobre a nica coisa que

podemos dizer com confiana sobre esta questo que Lucas foi escrito fora da Palestina44

.

41

BULL, 2009, p. 36. 42

Cf. BROWN, Raimond E. Introduccin al Nuevo Testamento. 1. Cuestiones Preliminares , Evangelios Y

Obras Conexas. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 364-366. 43

BROWN, 2002, p. 366. 44

KNIGHT, 2007, p. 11, traduo nossa; Cf. KUMMEL, 2009, p. 188.

24

1.1.2 A Teologia e Literatura lucana Uma abordagem geral

De acordo com Tannehill45

, o texto de Lc. 4. 16-21 a narrativa que valida o

personagem central, Jesus, em cumprir sua misso acerca do plano de salvao de Deus. A

misso partilhada tanto para aqueles que aceitam ou rejeitam a mensagem do nazareno.

Jesus apresenta a mensagem universal de salvao em oposio ao plano da humanidade. Sua

mensagem confronta alguns personagens da autoridade religiosa: os fariseus e escribas, que

so tidos como personagens negativos, pois rejeitam o propsito de Deus. Isto fica perceptvel

ao leitor do evangelho mediante as caractersticas que o narrador lhes confere46

. Do outro

lado, esto aqueles que aceitam sua mensagem de salvao, os discpulos, que deixam tudo

para segui-lo47

, e estes so mostrados ao leitor como personagens positivos e que devemos

tomar como referenciais. Outros personagens, a multido, so mais diferenciados na resposta

a mensagem de Jesus. Sobre as multides, Szukalski diz:

No incio, grandes multides de perto e de longe respondem positivamente,

vindo para ouvir Jesus ensinar e para serem curados (6:17-19) e glorificar a

Deus quando eles testemunham seus milagres (7:16-17). Mais tarde, alguns

na multido comeam a responder negativamente e at mesmo com

hostilidade, uma indicao de que uma crise escatolgica est mo e que

requer arrependimento e uma deciso definitiva para aceitar ou rejeitar Jesus

(11:14-16, 23)48

.

Essa mensagem que atraiu tanto os personagens positivos quanto os negativos se

resumia em arrependam-se. No texto de Lc 4. 16-30 podemos ver o cumprimento da

profecia passada na narrativa presente e, h tambm, profecias feitas na narrativa presente

para se cumprir no futuro. Isso pode ser examinado em Atos 2. 38, no arrependei-vos das

primeiras converses dos gentios. Marguerat observa que nesse texto, como um programa

cristolgico de Lucas, se condensa que:

45

TANNEHILL, Robert C. The Narrative Unity of Luke-Acts : A Literary Interpretation. 2 Vols. Philadelphia:

Fortress Press, 1991, pp. 145-158, 167-172, 201-206. 46

Cf. Lc 7. 30; 12. 1; 14. 11; 16. 14,15; 18. 14. 47

Cf. Lc. 5. 11, 28; 18. 28. 48

SZUKALSKI, John A. Tormented in Hades: A Socio-Narratological Approach to the Parable of the Rich Man

and Lazarus (Luke 16: 19-31). The Catholic University of America, 2012. In:

http://aladinrc.wrlc.org/bitstream/handle/1961/10289/Szukalski_cua_0043A_10293display.pdf?sequence=1, p.

28, traduo nossa.

http://aladinrc.wrlc.org/bitstream/handle/1961/10289/Szukalski_cua_0043A_10293display.pdf?sequence=1

25

[...] a proclamao messinica est apoiada nas Escrituras (vv. 17-21); a

evangelizao dos pobres e a libertao dos cativos anunciam a dimenso

tica do Evangelho lucano (vv. 18 s.); o exemplo da viva de Sarepta e de

Naam antecipa a eleio dos pagos (vv. 25-27); a rejeio de Jesus

(nenhum profeta acolhido em sua ptria) prefigura a paixo (vv. 28 s.);

sua maneira de escapar da multido ilustra sua soberania em face a

hostilidade (v. 30)49

.

O discurso de Jesus est envolto em um esquema de inverso. Esse esquema bem

claro a partir do texto do Magnificat em Lc 1. 46-55. Szukalski50

observa que o motivo dessa

narrativa demonstrar o julgamento-como-inverso, ou seja, que a inverso cumpre o papel

de julgamento s situaes vigentes. Do mesmo modo, as bem-aventuranas em Lc 6. 20-26

marca essa inverso anunciando mudanas de situaes nesta vida e tambm na futura.

No podemos nos esquecer de que a mensagem de Jesus gira em torno da marcante

presena do Reino de Deus. Assim, o centro da pregao e atuao de Jesus foi a presena do

Reino de Deus51

. Isso pode ser visto em todos os evangelhos. Em Lucas est presente em 11.

20 [...] ento o Reino de Deus j chegou a vs e 17.21 [...] pois eis que o Reino de Deus

est no meio de vs. Horsley assume o conceito de Reino de Deus como o uso do poder de

Deus em obras poderosas para libertar, estabelecer ou proteger o povo em circunstncias

histricas52

, em oposio ao conceito de um domnio vindo de algum lugar.

A parbola outro esquema do narrador do evangelho de Lucas e no uso do

personagem Jesus para divulgar a sua mensagem de arrependimento. Por meio de parbolas,

Lucas tambm destaca sua teologia. De acordo com Donahue53

, so proeminentes as direes

teolgicas de Lucas mediante suas parbolas: Lucas transfere o lugar da salvao, ou seja, o

tempo da salvao do fim dos tempos para os dias atuais na narrativa, o que confirma a

realizao da mensagem de Jesus para a humanidade; o arrependimento se torna tema central

da sua teologia, principalmente por atingir as esferas cotidianas como a famlia, das disputas

legais, dos banquetes, viagens e o uso responsvel das riquezas; e uma f demonstrada em

aes que e que responda a pergunta o que que eu/ns vamos fazer?.

49

MARGUERAT, 2009, p. 119. 50

SZUKALSKI, 2012, p. 28. 51

HORSLEY, Richard A. Jesus e a Espiral da Violncia: resistncia judaica popular na Palestina Romana. So

Paulo: Paulus, 2010, p. 149. 52

HORSLEY, 2010, p. 149, grifo do autor. 53

DONAHUE, John R. The Gospel in Parable: Metaphor, Narrative and Theology in the Synoptic Gospels.

Philadelphia: Fortpress, 1988, pp. 204-211.

26

1.1.3 Teologia do Caminho em Lucas (9. 51 19. 27)

Concordamos que o evangelho de Lucas juntamente com os Atos dos Apstolos

harmoniza-se como uma s obra54

. Lucas e os Atos esto concatenados no s pela ideia do

caminho (ligao de espao e tempo como coordenadas de um movimento contnuo), mas

tambm pelo desenrolar desse processo e pela tenso que o sustenta55

. Falar de uma teologia

do caminho seria propor a pretenso que o autor do dptico tinha em relao ao enredo, o que

quis narrar. Entendendo que o autor da dupla obra pretende narrar o caminho do evangelho

desde a proclamao de Jesus at o centro do mundo: Roma56

, nossa proposta de uma

teologia do caminho teria seu contedo limitada na narrativa da viagem de Jesus para

Jerusalm.

Segundo Drury,

[...] o chamado ao arrependimento ocupa a maior parte da pregao de Jesus

a caminho de Jerusalm nos captulos 10-16 uma grande poro do livro.

Ele amaldioa aldeias judaicas impenitentes (10:13-15); compara essa

gerao impenitente, de modo desfavorvel, com os ninivitas de Jonas

(11:29-32); lembra em tom pressago o assassnio dos profetas (11:47-52);

susta desastres locais como avisos do pior por vir se no houver

arrependimento (13:1-5); uma srie de parbolas de arrependimento,

comeando com a figura em 13:6-9, tem seu clmax nas grandes parbolas

dos captulos 15-16, que no so dirigidas apenas ou principalmente a

pessoas particulares57

.

Pautados nessa jornada de Jesus para Jerusalm (9. 51 19. 27), queremos expor uma

teologia do caminho, ou seja, desse caminho onde o Jesus messias-profeta58

revela-se em uma

misso em favor dos que esto fixados narrativamente nessa viagem.

54

Cf. BROWN, 2002, p. 311; Tambm Cf. KUMMEL. Werner, G. Introduo ao Novo Testamento. 4 ed. So

Paulo: Paulus, 2009, pp. 182-187, 194-199. 55

SCHREINER & DAUTZENBERG, 2008, p. 265. 56

BULL, 2009, p. 34. 57

DRURY, in: ALTER & KERMODE, 1997, p. 452. 58

De acordo com Lc 13. 31-35; Cf. LOCKMANN, Paulo Tarso de O. Jesus, o Messias Profeta (Lc 9.51

19.48). Srie Teses. So Bernardo do Campo: Editeo, 2011, p. 13-14. Lockmann pesquisa a caminhada de Jesus

para Jerusalm mostrando pela investigao exegtica, que a viagem, mais que uma caminhada, , de fato, uma

marcha proftica, messinica e libertadora, da periferia (Galilia) ao centro de poder (Jerusalm), com desvios

intencionais em Samaria e Jeric.

27

O material narrativo da viagem de Jesus para Jerusalm encontrado tambm em

Marcos e Mateus59

. No entanto, diferem quanto proposta dada pelo narrador e sua

interpretao60

. Nessa viagem, em Lucas, podemos encontrar o vasto material de sua autoria

(L) e tambm uma grande parte das parbolas, que de acordo com Schreiner, o meio pela

qual o plano de Deus se realiza61

.

Seguindo essa proposta da realizao do plano de Deus, Marguerat62

assume que o

motivo da viagem serve de contexto para a seo do meio do evangelho (9,51-19,28) e que,

de valor mais interpretativo [...] um expediente literrio usado pelo narrador para situar

suas tradies sob o emblema de um Jesus que sob a Jerusalm. Em 9. 51, o narrador assume

um modelo cristolgico para o personagem Jesus, identificando o motivo de sua viagem:

Quando se completaram os dias de sua assuno (a\navlhmyiV),ele tomou resolutamente o

caminho de Jerusalm.

Esse modelo cristolgico reagrupa dois traos marcantes: 1) Jesus, a

exemplo dos filsofos antigos, dispensa seu ensinamento como mestre

itinerante; 2) Jesus o Messias destinado a sofrer, mas seu caminho

terminar na exaltao do Ressuscitado63

.

Permeada pelo verbo poreuvomai (caminhar) distribuda no material dessa seo da

viagem e, Jerusalm como eixo redacional, essa tem por finalidade destacar os pobres e

marginalizados como sujeitos centrais na redao da viagem64

. Isso fica evidente com os

dados que dizem que os termos vinculados ao pobre usado nove vezes por Lucas, sendo que

quatro vezes aparece dentro da viagem a Jerusalm65

. Desse modo, Jesus nesse caminho tem

como alvo os pobres, denunciando a injustia e fazendo justia mediante a proclamao do

Reino.

59

Cf. Marcos 9. 30, 10. 1; Mateus 19. 1 60

Cf. KUMMEL, 2009, p. 163. A chamada narrativa de viagem (9,51 19,27) , como o provaram os

trabalhos recentes sobre o assunto, uma criao de Lucas, que inseriu material de vrias origens na trama de

uma jornada at Jerusalm (uma trama no inteiramente desenvolvida). Nesta seco central no h

propriamente uma tradio primitiva aproveitada diretamente por Lucas, e sim uma composio do evangelista,

que assim preencheu o vcuo, criado por Mc 10, 1; 11,1 com a insero de material descontnuo. 61

SCHREINER & DAUTZENBERG, 2008, p. 268. 62

MARGUERAT, 2009, p. 120. 63

MARGUERAT, 2009, p. 120. 64

LOCKMANN, 2011, p. 71, 77. 65

Cf. LOCKMANN, 2011, p. 77.

28

nesse caminho a Jerusalm que Jesus profete um duro discurso contra as

autoridades, revelando assim um conflito com Israel e seus lderes. Esses conflitos

encontrados nos discursos de Jesus contra os fariseus e advogados giram em torno da pureza

ritual, da natureza do Reino de Deus, da associao de Jesus com os pecadores e o uso correto

dos bens. Nessa perspectiva, considerando que os fariseus eram a favor de uma pureza

externa, excluam pessoas do convvio e eram amantes do dinheiro, Jesus aparece

proclamando a pureza que advm do dar esmolas, contradiz a fidelidade aos bens e a

fidelidade a Deus e proclama o Reino como um tempo de grande inverso66

.

Matera entende que a narrativa da viagem a caminho de Jerusalm um andamento

designado ao cumprimento do plano de Deus, ou seja, uma viagem que cumpre esse plano de

acordo com o ministrio messinico de Jesus.

Em toda a seo da viagem, o leitor encontra Jesus instruindo os discpulos,

admoestando a multido e repelindo os ataques dos chefes religiosos,

especialmente os fariseus. Consciente do reino de Deus que esta irrompendo,

Jesus exige que os discpulos abandonem famlia, casa e posses para

proclamar o reino de Deus (9,57-62; 12,32-34; 14,25-33). Ciente de que

Israel no se arrependeu (10,13-16; 11,29-32), adverte a multido sobre o

que acontecer se no se arrependerem (13,1-9). E consciente de que o reino

trar uma reviravolta no destino de muitos, Jesus previne os fariseus de que

todo aquele que se exaltar ser humilhado (14,7-24)67

.

1.1.4 Proposta de uma Teologia do pobre em Lucas

Falaremos de uma teologia do pobre ou do destitudo no evangelho de Lucas com

base na mensagem do Reino proposta no mesmo. Nosso ponto de partida para o entendimento

da mensagem do Reino de Deus e os destitudos est em Lc. 17. 21 onde o personagem

central do evangelho afirma [...] pois eis que o Reino de Deus est no meio de vs; isso

como uma realidade atuante. De acordo com Aslan68

, esse versculo em Lucas valida que

Jesus no apresenta o Reino de Deus como um reino futuro distante, a ser estabelecido no

66

Cf. MATERA, Frank J. Jesus Journey to Jerusalem (Luke 9.51 19.46): A Conflict with Israel. JSNT 51

(1993), pp. 51-77, in: http://pt.scribd.com/doc/179416879/1993-Frank-J-Matera-Jesus-Journey-to-Jerusalem-

Luke-9-51-19-46-A-Conflict-with-Israel. 67

MATERA, Frank J. Cristologia Narrativa do Novo Testamento. Petrpolis, RJ: Vozes, 2003, p. 96, in: Uma

viagem para cumprir o plano de Deus (9,51-19,44). 68

ASLAN, Reza. Zelota: A Vida e a poca de Jesus de Nazar. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 139.

http://pt.scribd.com/doc/179416879/1993-Frank-J-Matera-Jesus-Journey-to-Jerusalem-Luke-9-51-19-46-A-Conflict-with-Israelhttp://pt.scribd.com/doc/179416879/1993-Frank-J-Matera-Jesus-Journey-to-Jerusalem-Luke-9-51-19-46-A-Conflict-with-Israel

29

fim dos tempos, e sim ele est apontando para a ao salvadora de Deus naquele momento,

em seu tempo presente. Caminharemos por essa via, entendendo que o Reino de Deus na

mensagem lucana no nem puramente celestial nem totalmente escatolgico, ento o que

Jesus estava propondo deveria ser um reino fsico e presente: um reino real, com um rei de

verdade que estava prestes a ser estabelecido na terra69

.

A via dos pobres uma das vias mencionadas pelo narrador, em que Jesus explicita

implantar o Reino de Deus. A vida social e econmica naquele tempo da Palestina do I sc.,

tempo onde Jesus cumpria sua misso, era determinada pelos romanos70

. A mensagem do

Reino de Deus vem como um chamado revoluo71

do sistema imperante.

Mas, o que os pobres e ricos tem haver com a mensagem do Reino de Deus em Lucas?

De acordo com Fabris72

, no exagero qualificar o evangelho de Lucas com o evangelho

dos pobres, isto porque a mensagem da boa nova de Deus em favor dos que se acham de

alguma maneira desprovidos do necessrio.

Na Galilia, no relato que d incio ao ministrio pblico de Jesus, em um sbado na

sinagoga em Nazar, o narrador parece programar o alvo de seu escrito ao por palavras na

boca do personagem referente ao profeta Isaas: O Esprito do Senhor est sobre mim,

porque ele me consagrou pela uno para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar

a libertao aos presos e aos cegos a recuperao da vista, para restituir a liberdade aos

oprimidos e para proclamar um ano de graa do Senhor (Lc. 4. 18-19; Cf. Is. 61. 1-2).

O termo utilizado pelo narrador ptwcoi:V (pobre). Esse mesmo adjetivo utilizado

no evangelho lucano em 6. 20; 14. 13, 21; 16. 20, 2273

. Para Fabris, o sentido deste termo

prevalentemente social, isto , designa uma pessoa ou categoria de pessoas destitudas de

bens, que dependem da assistncia pblica ou da esmola privada74

.

69

ASLAN, 2013, p. 139, grifo do autor. 70

Cf. HORSLEY, Richard A. Jesus e o imprio: o reino de Deus e a nova desordem mundial. So Paulo: Paulus,

2004, pp. 21-40, Imperialismo Romano. 71

Cf. ASLAN, 2013, p. 141. 72

FABRIS & MAGGIONI, 1995, p. 110. 73

O narrador usa o termo pobres, que corresponde ao vocabulrio grego ptchos (uma vez, penichros), 10

vezes num total de 24 vezes em todo NT (5 vezes em Mt, 5 vezes em Mc [...], in: FABRIS & MAGGIONI, 1995,

p. 111, grifo do autor. 74

FABRIS & MAGGIONI, 1995, p. 111.

30

Para Esler75

, o episdio de Nazar programtico, o que faz com que na pregao

inaugural de Jesus seja dado um destaque aos mendigos, pobres. O autor discute que,

mesmo que Lucas tenha tomado o assunto de Marcos e Q, no quer dizer que Lucas no

estivesse profundamente preocupado com a questo. Ele atribui o assunto do pobre na

tradio lucana no como uma lealdade tradio, mas como um interesse pessoal do

narrador. Desse modo, Lucas ao diferir textualmente a posio do episdio de Nazar em seu

evangelho (incio do ministrio pblico de Jesus em contrapartida a sua suposta fonte Marcos

que coloca tal episdio j no ministrio pblico de Jesus, Mc. 6. 1-6), conclui que Lucas

escolheu divergir da sua fonte Marcos de uma forma bastante radical, comeando sua

descrio do ministrio pblico de Jesus com um incidente que evidencia o lugar especial aos

pobres no esquema de salvao76

.

Fabris tambm concorda com o plano esquemtico do narrador lucano que concilia a

boa nova de salvao com as pessoas a quem so referidas:

Os destinatrios do anncio de Jesus, da sua misso de profeta e messias, so

aos pobres, especialemnte aos mais deserdados: prisioneiros, escravos,

endividados. Jesus proclama que a espera dos pobres, dos que contam com

esta promessa de Deus, agora est cumprida: ele est aqui para torn-la

realidade histrica [...] a estes pobres, diz Jesus, pertence o reino de Deus77

.

Outro texto que joga luz sobre o tema dos pobres so as Bem-aventuranas lucana

seguido das ameaas: [...] Felizes vs, os pobres, porque vosso o Reino de Deus. Felizes

vs, que agora tendes fome, porque sereis saciados. Felizes vs, que agora chorais, porque

haveis de rir. Felizes sereis quando os homens vos odiarem, quando vos rejeitarem,

insultarem e proscreverem vosso nome como infame, por causa do Filho do Homem. Alegrai-

vos naquele dia e exultai, porque no cu ser grande a vossa recompensa; pois do mesmo

modo seus pais tratavam os profetas. Mas, ai de vs, ricos, porque j tendes a vossa

consolao! Ai de vs, que agora estais saciados, porque tereis fome! Ai de vs, que agora

rides, porque conhecereis o luto e as lgrimas! Ai de vs, quando todos vs bendisserem, pois

do mesmo modo seus pais tratavam os falsos profetas (Lc. 6. 20-26).

75

ESLER, Philip F. Community and gospel in Luke-Acts: The social and political motivations of Luke theology.

New York: Cambridge University Press, 1987, p. 164. 76

ESLER, 1987, p. 167. 77

FABRIS & MAGGIONI, 1995, p. 111.

31

Esse discurso de Jesus, introduzido na narrativa evanglica lucana, especificamente

dirigido aos discpulos de Jesus: Erguendo ento os olhos para os seus discpulos, dizia

(Lc. 6. 20). Na concepo de Lucas, este discurso resume as instrues que Jesus d aos

personagens que vo ser suas de seu ministrio na Galilia, testemunhas de

sua pregao, de seu ensino e de sua atividade de curas78

. A partir desse discurso, queles

que seriam suas testemunhas, abraariam suas convices; convices essas que so refletidas

tematicamente na viagem de Jesus at Jerusalm.

De acordo com Lockmann79

, a construo redacional de Lucas 6. 20-26 um

paralelismo entre bem-aventuranas e as ameaas/ais. Esse paralelismo acontece entre Lc. 6.

20-21 e Lc. 6. 24-25. Tanto Lockmann como Fabris80

entendem que o narrador trabalha com

o personagem Jesus aderindo as correntes sapienciais e a proftica. No entanto Fabris diz que

perante o bem supremo que o reino de Deus, agora presente na pessoa e na ao de Jesus, o

homem chamado a uma deciso sem meios-termos. Lockmann reconhece que [...] ainda

como uma verdade escatolgica [...], em Lucas, esta presena j est no meio do povo, dos

discpulos81

.

Bovon82

, destacando as diferenas redacionais entre as bem-aventuranas de Mateus e

Lucas, afirma que o destaque que cada narrador d : nfase na inocncia do bem-aventurado

(Mateus) enquanto Lucas, a caracterizao da situao, a pobreza, a fome, a tristeza. O

narrador lucano enfatiza o concreto, a situao existencial do vs. A respeito disso,

Fitzmyer acerta:

As palavras de Jesus, na redao lucana do discurso, se referem existncia

normal de cada dia: pobreza, fome, sofrimento, dio, ostracismo. As bem-

aventuranas e as ms aventuranas pretendem introduzir um novo horizonte

nessas preocupaes dirias. Esse novo horizonte escatolgico; talvez

menos radical que na redao de Mateus, porque Lucas no est preocupado

pela iminncia do eschaton. Contudo, esta dimenso existe no discurso da

plancie. A adio caracterstica: (Lc 6,21 ac. 25ac) revela o

interesse pela vida concreta do cristo, com problemas especficos83

.

78

FITZMYER, Joseph A. El Evangelio segun Lucas: II Traduccion y Comentarios Captulos 1-8,21. Madrid:

Ediciones Cristiandad, 1987, p. 591, traduo nossa. 79

LOCKMANN, 2011, p. 55. Ver o quadro que o autor mostra o paralelismo. 80

FABRIS & MAGGIONI, 1995, p. 113. 81

LOCKMANN, 2011, p. 56. 82

BOVON, 2005, p. 421. 83

FITZMYER, 1987, p. 596, grifo do autor, traduo nossa.

32

Concordamos, portanto, que ambos os texto citados acima favorecem um programa do

narrador do evangelho lucano para uma elaborao de sua teologia do pobre. O narrador,

evocando tradies e firmando suas prprias narrativas dentro desse contexto, dirige sua

mensagem aos destitudos.

1.2 As micronarrativas do Evangelho de Lucas sobre os bens - riqueza e

pobreza - como pontes de construo da macronarrativa

Abordaremos nessa sesso algumas das parbolas tidas especiais L, estas como

discurso retrico do narrador em prol do Reino de Deus e dos pobres. Esse subconjunto de

narrativas, correspondentes ao material da Viagem de Jesus a Jerusalm, apresentam o tema

da riqueza e pobreza dentro de um esquema de inverso, o que tambm Ricoeur84

reconhece

como um esquema de reorientao pela desorientao. Levamos em conta que:

[...] no se trata de riqueza abstrata, o evangelho nunca fala de riqueza ou

pobreza, mas em ricos e pobres; esto submetidas a juzo as pessoas que,

enquanto opressora dos fracos e indefesos, tornaram-se ricas criando zonas

de misria. A acumulao de bens, neste caso, no s um perigo de auto-

exaltao, de falsa segurana, mas sinal do pecado de injustia85

.

Esse esquema de desorientao e reorientao parte de uma situao j estabelecida no

texto, o que seria a orientao. As parbolas iniciam orientadas por essa situao/realidade do

texto e so submetidas textualmente desorientao para ento, serem reorientadas. Isso

proporciona ao leitor uma dramaticidade e uma viso alternativa da realidade. Desse modo, o

leitor tambm passa por esse processo estratgico, sendo submetido em sua leitura do texto a

uma reorientao associada a essa realidade outra.

Szukalski intitula um subconjunto de sete parbolas de filavrguroi amigos do

dinheiro (Lc 16. 14), ou seja, parbolas que, para ele, possuem certa afinidade estratgica e

propsito narrativo em sua retrica como tentativa de arrependimento aos ricos. Desse modo,

84

RICOEUR, Paul. A Hermenutica bblica. So Paulo: Loyola, 2006, pp. 230-232. 85

FABRIS & MAGGIONI, 1995, p. 113.

33

a maioria das sete parbolas filavrguroi em apresso possuem esta trplice estrutura de

orientao, desorientao e reorientao proporcionando um tipo e modelo terico para

abraar um ou mais aspectos da proclamao do reino86

. As parbolas que ele destaca so:

[...] a parbola do Bom Samaritano (10: 30-35), a parbola do rico insensato

(12: 16-20), a parbola do Grande Banquete (14: 16-24), a parbola do Filho

Prdigo (15: 11-32), a parbola do administrador desonesto (16: 1-8), a

parbola do homem rico e Lzaro (16: 19-31) ea parbola do fariseu e do

cobrador de impostos (18: 10-14)87

.

Nossa inteno utilizarmos dessas parbolas e aplicarmos a regra da reorientao

pela desorientao com o objetivo de mostrarmos que a realidade, que estas apresentam,

mostra-se de algum modo defeituoso, desarranjado dentro da proposta e realidade do Reino

oferecida por Jesus aos pobres. Essa subverso, portanto, programada nessas parbolas e,

essas, retratam personagens que devem estar de acordo com novos critrios para julgamentos

de valor e das relaes humanas88

.

O Bom Samaritano (Lc. 10. 30-35). Sobre o questionamento de um nomivkoV (legista), acerca

de quem seria o prximo, esse confrontado por Jesus para que v e use de misericrdia (vv.

36-37). Na descida de Jerusalm para Jeric, um homem assaltado e deixado despojado,

espancado e semimorto. Trs personagens, casualmente e um aps o outro, passam pelo

local: um sacerdote, um levita e um samaritano. Sobre esse, o texto bem sucinto. A parbola

descreve que os dois primeiros personagens nada fizeram em prol do homem cado. Sobre o

samaritano, o texto diz: viu-o e moveu-se de compaixo. O samaritano aqui um

personagem que atua como contraponto dos dois anteriores, membros respeitveis da

comunidade judia palestinense, que teriam que considerar este individuo praticamente como

um pago89

.

De acordo com Szukalski90

, os dois primeiros personagens representam a classe

dominante dos religiosos e dos ricos. Entendendo que os trs personagens eram ricos e

86

SZUKALSKI, 2012, p. 74, traduo nossa. 87

SZUKALSKI, 2012, p. 53, traduo nossa. 88

SZUKALSKI, 2012, p. 73, traduo nossa. 89

FITZMYER, Joseph A. El Evangelio segun Lucas. III Traduccion y Comentario capitulos 8,22 18,14.

Madrid: Ediciones Cristiandad, 1987, p. 286, traduo nossa. 90

SZUKALSKI, 2012, p. 54, traduo nossa.

34

poderiam oferecer ajuda ao homem assaltado, o samaritano quem sente compaixo. A

estrutura narrativa da parbola deixa claro que ela dirigida aos ricos e insta o seu

arrependimento na forma de demonstrar misericrdia alm da compreenso tradicionalmente

restrita ao prximo como companheiro israelita91

. O leitor, sabendo do cisma92

entre os

israelitas e samaritanos, entendero a desorientao e inverso existente na parbola, pois o

cumprimento correto da lei vem atravs do personagem pago. Podemos inferir que o leitor

chamado realidade daquele samaritano que revela seu carater no cuidado do pobre homem.

O rico insensato (Lc. 12. 16-20). Um dentre a multido exige que Jesus intervenha em seu

favor pela partilha da herana que est com seu irmo (v. 13-14). Sobre a multido, pode-se

supor que uma parcela significativa da multido composta dos ricos que Jesus exorta contra

a ganncia e a acumulao de riqueza por causa de sua incapacidade de praticar a esmola93

.

Assim sendo, Jesus adverte a multido sobre a avareza, dizendo: [...] mesmo na abundncia,

a vida do homem no assegurada por seus bens (v. 15). Depois dessa advertncia, ele

proponhe essa parbola do rico insensato como uma mxima.

Na parbola, a terra de um rico produiziu tanto que, em um solilquio do prprio

personagem, ele decide demolir seus antigos celeiros e construir maiores para guardar toda

sua colheita e, assim, ter seus bens por muitos anos e sua alma gozar em repousar, comer,

beber, regalar. De acordo com Fitzmyer, a avareza se manifesta no s em disputas

familiares por questoes de herana, mas sim, tambm, na desmedida ambio por procurar

muito mais do que o necessrio94

. Essa a condio do personagem rico da parbola e, a

chamada de ateno para todo aquele que no rico para com Deus.

A desorientao acontece quando o narrador, que confivel, expe o carter desse

personagem rico pelas palavras do outro personagem, Deus. O carter do rico pode ser

resumido na maneira dele agir querendo acumular tanto95

. Talvez, o que pode estar em jogo

aqui seja o no cumprimento de esmola. No entanto, fica claro que o discurso de Deus

91

SZUKALSKI, 2012, p. 55, traduo nossa. 92

Cf. KOESTER, Helmut. Introduo ao Novo Testamento: I. Histria, cultura e religio do perodo

helenstico. So Paulo: Paulus, 2005, pp. 246-248. 93

MATERA, 1993, p. 70, traduo nossa, in: http://pt.scribd.com/doc/179416879/1993-Frank-J-Matera-Jesus-

Journey-to-Jerusalem-Luke-9-51-19-46-A-Conflict-with-Israel. 94

FITZMYER, 1987, p. 449, traduo nossa. 95

Cf. I Enoque 97. 8-10, onde o acmulo de riquezas tambm advertido.

http://pt.scribd.com/doc/179416879/1993-Frank-J-Matera-Jesus-Journey-to-Jerusalem-Luke-9-51-19-46-A-Conflict-with-Israelhttp://pt.scribd.com/doc/179416879/1993-Frank-J-Matera-Jesus-Journey-to-Jerusalem-Luke-9-51-19-46-A-Conflict-with-Israel

35

qualifica o homem como um tolo e ridiculariza a futilidade de suas maquinaes, dada

imanncia de sua morte96

, levando o leitor a reorientar seus ideais sobre o acmulo de bens.

O grande banquete (Lc. 14. 16-24). Na casa de um dos chefes dos Farisaivwn (fariseus), em

um sbado, juntamente com os nomikou;V (legistas), Jesus se dirige para tomar uma refeio

(vv. 1, 3). Em meio elite religiosa e questionamentos desses, Jesus profere essa parbola.

Nela v-se nitidamente o contraste que caracteriza os ricos e os pobres.

De incio, o convite estendido a muitos que, por ocasies diversas, recusam o convite

do banquete. O anfitrio do banquete, indignado com a recusa dos convidados, pede ao servo

que v depressa pelas praas e ruas da cidade, e introduz aqui os pobres, os estropiados, os

cegos e os coxos. Nessa parbola, a desorientao acontece na inverso dos convidados do

banquete. O leitor reorientado sobre quem, de fato participar do banquete escatolgico. O

personagem anfitrio representado como quele que se arrependeu e cumpriu justia para

com os pobres.

O filho prdigo (Lc. 15. 11-32). Na presena de publicanos e pecadores, dirigida aos

farisai:oi (fariseus) e grammatei:V (escribas) na ocasio da murmurao: esse homem

recebe os pecadores e come com eles (v. 1), Jesus prope essa parbola do filho perdido.

Em contraste com a elite religiosa e uma parcela significativa das multides, o chamado de

Jesus ao arrependimento encontra uma audincia entre os considerados ritualmente poludos

pelos lderes de Israel97

.

Dois personagens, o filho mais jovem e o filho mais velho, representam essa parbola.

O mais jovem pede a parte de sua herana ao pai e o pai a reparte entre eles. Aps uma

jornada de desperdcio da herana, o filho mais jovem retorna a casa de seu pai. A

desorientao acontece quando, o filho mais velho ao saber que o pai recebeu o seu irmo,

fica com raiva e se recusa a entrar na festa que o pai ordenou. Ao leitor se espera a excluso

do filho da parte do pai, assim como o filho mais velho esperava. Mas, a reorientao

acontece na incluso de uma iminente excluso.

O administrador desonesto (Lc. 16. 1-8). Dirigida aos maqhtavV (discpulos), essa parbola

difere das outras quanto ao destinatrio. O personagem, em seu monlogo interior e sua

interao com os devedores de seu senhor, ao saber que no mais seria administrador, revela

96

SZUKALSKI, 2012, p. 121, traduo nossa. 97

SZUKALSKI, 2012, p. 59, traduo nossa.

36

seu carter. O contexto de nossa parbola faz assim pensar no que enquadrava a parbola do

rico insensato (Lc 12, 16-21)98

.

Sua reflexo para proteger seu futuro99

(v. 3), determina como resultado uma

estratgia para reverter sua situao perante seu senhor, a[nqrwpovV tiV h\n plouvsioV (um

homem rico), que se pode pensar, pelo contexto, um proprietrio de terras na Palestina, dono

de um patrimnio considervel100

. A soluo, posta em prtica, louvada por seu senhor. A

suposta desorientao do futuro do administrador invertida na estrutura da narrativa

reorientada por sua ao prudente. O leitor levado a considerar a prudncia do administrador

infiel por meio da atitude que o homem rico tem: louvar sua prudncia.

O fariseu e o cobrador de impostos (Lc. 18. 10-14). Nesse segmento final das narrativas da

Viagem para Jerusalm, a parbola voltada a alguns que, convencido de serem justos,

desprezam os outros (v. 9). Para Szukalski101

, se volta aos que permanecem impenitentes ao

longo da viagem que Jesus vem percorrendo, o que para Jeremias so queles que punham

sua confiana em si mesmos (em vez de p-la em Deus), porque se consideravam justos e

olhavam para os outros cheios de desprezo, isto , os fariseus102

.

Um qarisai:oV (fariseu) e um telwvnhV (publicano) so os personagens dessa

micronarrativa. Ambos sobem para orar no Templo e, assim, comea o solilquio interior de

cada um deles. O fariseu agradece porque no como o publicano, enquanto o publicano pede

por piedade da parte divina. Revelando uma perspectiva elitista que pressupe superioridade

sobre o resto da humanidade103

, o fariseu representa aqui a elite rica e impenitente a quem

Jesus vm desafiando e confrontando nas narrativas anteriores. O publicano, equivalente ao

resto dos homens, ladres, injustos, adlteros (v. 11), representa os excludos, margem.

O v. 14a parece definir ao leitor a mensagem da narrativa, mas esta no identifica o pecado do

fariseu e nem se o publicano foi ouvido104

. No entanto, dizer que um foi justificado expressa

a transformao do personagem, seu novo estado de ; ao que no era mais

que , Deus o faz e o declara 105

. Aqui reside a reorientao.

98

GOURGES, Michel. As parbolas de Lucas: Do contexto s ressonncias. So Paulo: Loyola, 2005, p. 135. 99

A deciso tomada pelo administrador quer juntar bem todos os cabos para garantir o futuro; Cf.

FITZMYER, 1987, p. 702, traduo nossa. 100

FITZMYER, 1987, p. 700, traduo nossa. 101

Cf. SZUKALSKI, 2012, p. 63. 102

JEREMIAS, J. As Parbolas de Jesus. 10 ed. So Paulo: Paulus, 2007, p. 142. 103

SZUKALSKI, 2012, p. 63, traduo nossa. 104

Cf. FITZMYER, 1987, p. 856. 105

FITZMYER, 1987, p. 866, traduo nossa.

37

O que queremos identificar que essas parbolas, juntamente com a do homem rico e

do pobre Lzaro, esquematizam um subconjunto de micronarrativas que parecem interessar

ao narrador como um lao que esquematiza o tema do arrependimento dos ricos a elite

superior , e assim, convenc-los a partir da reorientao proposta nas narrativas. Szukalski

apresenta alguns levantamentos que sua pesquisa apontou sobre o assunto:

Em resumo: (A) Seis das sete parbolas so dirigidas por Jesus a um ou mais

personagens rico e impenitente na narrativa (um advogado, a multido,

fariseus e advogados, fariseus e os escribas, os fariseus e todos os

impenitentes). (B) Quatro das sete parbolas ilustram a necessidade de

arrependimento na forma de prtica misericordiosa de esmola ou outra para

os necessitados (compaixo para com a vtima de violncia, a partilha de po

com o faminto, o perdo para o pecador arrependido, a remisso da dvida),

enquanto as outras trs ilustram as consequncias de no faz-lo (a morte,

tormento na vida aps a morte, a no justificao). (C) Todas as sete

parbolas revelam os personagens e as disposies interiores de um ou mais

dos seus atores atravs do seu discurso (um samaritano rico ainda

compassivo, um idiota rico, um rico anfitrio de banquetes virou generoso

para com os pobres, um filho mais jovem arrependido e seu irmo mais

velho implacvel, um mordomo inteligente, um homem rico, cruel e

hipcrita, fariseu hipcrita). (D) A estrutura retrica de quatro destas

parbolas conduz o leitor atravs de um processo explcito trplice de

reverso composto por orientao, desorientao e reorientao (o Bom

Samaritano, o Grande Banquete, do Filho Prdigo, eo homem rico e Lzaro),

enquanto os trs restantes ilustram tal reverso atravs de um processo

abreviado. (E) Seis destas parbolas so parbolas especiais "L", que

geralmente exibem uma atitude menos radical e menos negativa em relao

riqueza e os ricos, quando comparadas com outros materiais no evangelho.

Nenhuma dessas parbolas defende a renncia completa da riqueza, mas sim

modelos da esmola e outras formas de assistncia aos necessitados (o Bom

Samaritano, o Grande Banquete, do Filho Prdigo, eo administrador

desonesto)106

.

Apresentado as parbolas que identificam certa igualdade quanto ao conjunto dos

temas da lei, sobre a vida eterna e aproximao com o prximo107

, aplicaremos na estrutura

narrativa da parbola do homem rico e pobre Lzaro o esquema de reorientao pela

desorientao.

106

SZUKALSKI, 2012, p. 64, traduo nossa. 107

SZUKALSKI, 2012, p. 55, traduo nossa.

38

1.3 O Homem Rico e o Pobre Lzaro: A Micronarrativa de Reinveno

da Realidade

Entendemos a narrativa do homem rico e do pobre Lzaro (Lc. 16. 19-31), como

uma micronarrativa de trs partes, ou uma estrutura tripartida108

. Essa estrutura nos possibilita

dizer que essa micronarrativa apresenta o esquema de orientao, desorientao e

reorientao.

Na narrativa, Jesus dirige esta parbola aos qarisai:oi qilavrguroi (fariseus amigos

do dinheiro)109

, seguindo a mesma inteno das parbolas citadas supra. A relao de Jesus, o

narrador intradiegtico, com os fariseus no era nada boa, principalmente o comportamento

de Jesus aos olhos deles. Essa deduo corrobora com a rispidez do personagem Jesus em

seus discursos, diretamente formulados contra esse e outros movimentos.

O comportamento de Jesus, que negligenciava as purificaes rituais e os

jejuns de devoo, e frequentava a casa de cobradores de impostos e

pecadores, devia provocar uma oposio feroz da parte dos fariseus [...]. Por

outro lado, o fato de o povo simples tornar-se incapaz de seguir as

prescries impostas pela classe sacerdotal, como sendo as normas

necessrias para uma vida a caminho da santidade, fazia com que os fariseus

desprezassem o povo, atitude esta que Jesus recriminou profundamente [...]

Em relao ao povo, gozavam de enorme ascendncia sobre o mesmo110

.

A narrativa do homem rico e do pobre Lzaro, tendo como alvo os fariseus,

representa bem a realidade desses em relao ao prximo. Pensando no mundo da narrativa,

podemos sugerir que ela retrata bem o destino desses amigos do dinheiro que, diante da

mensagem do Reino pronunciada por Jesus no evangelho, no se arrependem e nem cumprem

108

Essa estrutura tripartida ser apresentada na exegese narratolgica, no captulo seguinte. Cf. GOURGUES,

2005, p. 153. 109

Cf. MOXNES, Halvor. A Economia do Reino: conflito social e relaes econmicas no Evangelho de Lucas.

So Paulo: Paulus, 1995; SZUKALSKI, 2012. 110

SCHLAEPFER, Carlos F.; OROFINO, Francisco R.; MAZZAROLO, Isidoro. A Bblia: Introduo

historiogrfica e literria. Rio de Janeiro: Vozes, 2004, p. 120. Tambm: Cf. JEREMIAS, 2007, p. 232,

Fariseus; ou para uma leitura mais explicativa, Cf. JEREMIAS, J. Jerusalm no Tempo de Jesus: Pesquisas de

histria econmico-social no perodo neotestamentrio. Santo Andr & So Paulo: Academia Crist & Paulus,

2010, pp. 333-360.

39

as exigncias da lei e dos profetas, principalmente sobre as esmolas111

. Por isso, na vida ps-

morte, os fariseus identificados com o rico, se apresentam excludos e atormentados enquanto

o pobre Lzaro includo e abrigado no seio de Abrao.

Em um breve resumo da micronarrativa, encontramos dois personagens, um

caracterizado como plouvsioV (rico) e outro como ptwco;V (pobre). A narrativa representa

uma realidade ficcional112

, e a realidade significada por esses dois adjetivos nos leva h um

imaginrio e a uma cultura extratextual113

, uma sociedade do primeiro sculo onde tais

caracterizaes eram importantes, visto que para o narrador do evangelho e para a divulgao

da mensagem crist, foi muito posta em crtica.

Retomando o esquema de reorientao pela desorientao, apresentaremos como o

prprio texto se vale de uma subverso da ordem estabelecida:

Orientao: 19. E certo homem era rico, e adornava-se com prpura e com linho mais fino

festejando todos os dias suntuosamente. 20. E certo pobre por nome Lzaro, foi jogado junto

ao porto do rico, e era afligido por lcera 21. e ansiava alimentar-se a partir das coisas que

caiam da mesa do rico; mas tambm os ces vinham e lambiam suas lceras.

Desorientao: 22. E sucedeu morrer o pobre e ele ser conduzido pela ao dos anjos at o

peito de Abrao; morreu tambm o rico e foi sepultado. 23. E no hades/manso dos mortos o

rico levantou os olhos, estando em tortura; v Abrao de longe e Lzaro em seus peitos.

Reorientao: 24. E suplicando disse: Pai Abrao, tenha pied