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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DOMÉSTICAS CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO LATO SENSU CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO NA PERSPECTIVA DA SEGURANÇA E SOBERANIA ALIMENTAR E DA AGROECOLOGIA ALGODÃO E ALIMENTOS CONSORCIADOS EM ROÇADOS AGROECOLÓGICOS: ALTERNATIVAS DE PRODUÇÃO DE ALIMENTOS E GERAÇÃO DE RENDA NO SEMIÁRIDO Ricardo Menezes Blackburn Orientador: Paulo Cesar Oliveira Diniz Recife/PE Julho, 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DOMÉSTICAS

CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO LATO SENSU CONVIVÊNCIA COM O

SEMIÁRIDO NA PERSPECTIVA DA SEGURANÇA E SOBERANIA

ALIMENTAR E DA AGROECOLOGIA

ALGODÃO E ALIMENTOS CONSORCIADOS EM ROÇADOS

AGROECOLÓGICOS: ALTERNATIVAS DE PRODUÇÃO DE ALIMENTOS E

GERAÇÃO DE RENDA NO SEMIÁRIDO

Ricardo Menezes Blackburn

Orientador: Paulo Cesar Oliveira Diniz

Recife/PE

Julho, 2012

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Ricardo Menezes Blackburn

ALGODÃO E ALIMENTOS CONSORCIADOS EM ROÇADOS

AGROECOLÓGICOS: ALTERNATIVAS DE PRODUÇÃO DE ALIMENTOS E

GERAÇÃO DE RENDA NO SEMIÁRIDO

Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização, Lato sensu, Convivência com o

Semiárido na Perspectiva da Segurança e Soberania Alimentar e da Agroecologia,

apresentado ao Departamento de Educação e ao Departamento de Ciências Domésticas

da Universidade Federal Rural de Pernambuco, como requisito para obtenção do Grau

de Especialista em Agroecologia, Segurança e Soberania Alimentar.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________ Prof. Paulo Cesar Oliveira Diniz, Doutor em Sociologia, professor do CDSA/UFCG

(orientador)

_____________________________________ Prof. Jorge Roberto Tavares de Lima, Doutor em Agroecologia, Professor do

departamento de Educação, área de Educação Rural e Extensão Agrícola da UFRPE.

_____________________________________ Prof. Jorge Luiz Schirmer de Mattos, Doutor em Zootecnica, Professor da Universidade

Federal Rural de Pernambuco, Departamento de Educação.

Recife, _____ de agosto de 2012.

O Curso foi realizado pelo Núcleo de Agroecologia e Campesinato - NAC, da UFRPE, e teve apoio

financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico- CNPq/MCT/INSA

(EDITAL 35//2010) e da Secretaria de Agricultura e Reforma Agrária de Pernambuco-SARA, através da

Secretaria Executiva de Agricultura Familiar-SEAF e do Instituto Agronômico de Pernambuco-IPA.

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ALGODÃO E ALIMENTOS CONSORCIADOS EM ROÇADOS

AGROECOLÓGICOS: ALTERNATIVAS DE PRODUÇÃO DE ALIMENTOS E

GERAÇÃO DE RENDA NO SEMIÁRIDO1.

Ricardo Menezes Blackburn2

RESUMO

Este trabalho foi inspirado em um processo de sistematização participativa de

experiências. Apresenta o resultado de três anos de monitoramento de uma ação de

produção de algodão em consórcios alimentares agroecológicos na região semiárida do

Brasil. Aborda o aspecto da transição agroecológica com acesso a comércio justo e

mercado orgânico. Para melhor compreensão da importância da produção dos

consórcios para agricultura familiar, este trabalho aborda o contexto de inserção desta

experiência, conceitua os roçados consorciados na perspectiva agroecológica, resgata

uma perspectiva histórica da produção e das relações políticas econômicas e sociais que

o envolveram. Esta experiência desenvolvida por agricultores familiares do semiárido

assessorados pelo Projeto Dom Helder Camara, vinculado ao Ministério do

Desenvolvimento Agrário (MDA) através da Secretaria de Desenvolvimento Territorial

(SDT) em colaboração com o Fundo Internacional para o Desenvolvimento da

Agricultura (FIDA) e o Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF), apresenta

resultados importantes na geração de renda para as famílias, produção de alimentos, na

integração com a criação de animais, na consolidação de processos de produção em

roçados mais sustentáveis e no desenvolvimento social a partir da associação e

cooperação entre agricultores para certificação orgânica e acesso ao comércio justo e

mercado orgânico.

PALAVRAS CHAVE: consórcio agroecológico, semiárido, viabilidade econômica.

1 Artigo elaborado como Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização: Convivência com o

semiárido na perspectiva da segurança e soberania alimentar e da agroecologia. 2

Médico Veterinário pela Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE; Pós Graduado em

Gerenciamento de Projetos pela Faculdades Integradas Anglo-Americano, CG; Pós Graduando

Convivência com o Semiárido pela

Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE; Consultor do Projeto Dom Helder Camara; E-

mail: [email protected]

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ABSTRACT

This paper was inspired by a participatory process of experiences systematization. It

presents the results of three years monitoring an agroecological cotton and food

intercropping system in the semiarid region of Brazil. It addresses the aspect of

agroecological transition with access to fair trade and organic market. To better

understand the importance of the intercropping production for family farming, this work

addresses the context of this experience, conceptualizes the intercropping in

agroecological perspective and rescues a historical perspective of production and its

economic and social policies relations involved. This experience developed by family

farmers in the semiarid supported by Dom Helder Camara Project, under the Ministry of

Agrarian Development (MDA) through the Department of Territorial Development

(SDT) in collaboration with the International Fund for Agricultural Development

(IFAD) and the Global Environment Facility (GEF), presents important results in the

income generation for families, food production, in integrating with livestock, the

consolidation of a sustainable intercropping production processes, and social

development from the association and cooperation among farmers for organic

certification and access to fair trade and organic market.

KEYWORDS: agroecological intercropping, economic viability, semiarid.

1. INTRODUÇÃO

O principal objetivo deste artigo é apresentar os consórcios agroecológicos como

uma alternativa de produção de alimentos e geração de renda para a agricultura familiar

na região semiárida, a partir de uma transição de base agroecológica e o acesso ao

comércio justo e mercado orgânico.

Este artigo poderá contribuir com argumentos para o fortalecimento da

agroecologia com informações que comprovem a viabilidade de sistemas produtivos

familiares, no que se refere à produção de alimentos e sustentabilidade econômica.

As reflexões e análises realizadas no âmbito da elaboração do artigo poderão

contribuir nas várias esferas que trabalham com agricultura familiar, tais como,

organizações da sociedade civil, como alternativa na estratégia para desenvolvimento

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rural sustentável e apoio à superação da pobreza. Nos espaços governamentais,

sobretudo, no âmbito Federal, onde está traçada prioridade de erradicação da pobreza

extrema (PBSM)3, apresenta potencial de contribuir para os espaços criados pelo

governo para gestão social de políticas públicas, e programas como o já citado PBSM.

Fortalecendo os processos de produção/processamento/comercialização, assim como os

espaços de gestão social, segurança e soberania alimentar.

Este artigo tem como fonte inspiradora um processo de sistematização

participativa de experiência ocorrido no Projeto de Assentamento Zé Marcolino

(Assentamento Serrote Agudo), Prata – PB. Um grupo de famílias assentadas se reuniu

para sistematizar a experiência de produção de algodão e alimentos consorciados em

roçados agroecológicos.

O processo de sistematização foi realizado através de reflexões participativas

junto ao grupo de agricultores que desenvolve a produção de base agroecológica, e

refletiu, entre outros temas, sobre as mudanças e resultados em termos de ganhos

econômicos para as famílias. Estes ganhos foram enxergados pelas famílias tanto em

relação à entrada de recursos financeiros, como pelo consumo de produtos e insumos

gerados para outros subsistemas, que geram um “equivalente financeiro”. Desta forma,

a experiência da sistematização nos estimula a fazer uma reflexão mais profunda sobre

o tema da viabilidade econômica desta atividade de produção de sequeiro na região

semiárida.

A abordagem metodológica utilizada deste trabalho de sistematização teve como

referência uma conceituação de sistematização participativa de experiências, onde se

3 PBSM - Plano Brasil Sem Miséria.

Fig. 1: Oficina de sistematização. Fig. 2: Oficina de sistematização.

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resume que a sistematização é aquela interpretação crítica de uma ou várias experiências

que, a partir de seu ordenamento e reconstrução, descobre ou explicita a lógica do

processo vivido, os fatores que intervieram no dito processo, como se relacionaram

entre si e porque o fizeram desse modo (HOLLIDAY, 2006).

Segundo Oscar Hara Holliday (2006), esta afirmação básica, contém

sinteticamente várias afirmações particulares: define a sistematização como

interpretação crítica, quer dizer, como o resultado de todo um esforço para

compreender o sentido das experiências, tomando distância delas. Assinala ainda que

essa interpretação só é possível se previamente se ordenou e reconstruiu o processo

vivido nas experiências. É uma interpretação, portanto, que se caracteriza por descobrir

a lógica que conduz o processo, quais os fatores que intervêm nele e as relações entre

eles.

A partir dessas afirmações centrais, Oscar Hara Holliday (2006) acrescenta que

outras características importantes da sistematização: a sistematização de uma

experiência produz um novo conhecimento, um primeiro nível de conceptualização a

partir da prática concreta que, uma vez que possibilita sua compreensão, leva a

transcendê-la, a ir mais além dela mesma. Nesse sentido, permite-nos abstrair o que

estamos fazendo em cada caso particular e encontrar um terreno fértil onde a

generalização é possível. Ao reconstruir o processo da prática, a sistematização

identifica seus elementos, além de classificá-los e reordená-los, faz-nos objetivar o

vivido, “fazer uma parada para tomar distância” do que experimentamos vivencialmente

e converter assim a própria experiência em objeto de estudo e interpretação teórica e, ao

mesmo tempo, em objeto de transformação. A sistematização põe em ordem

conhecimentos desordenados e percepções dispersas que surgiram no transcorrer da

experiência. Assim, explicita intuições, intenções e vivências acumuladas ao longo do

processo. Ao sistematizar, as pessoas recuperam de maneira ordenada o que já sabem

sobre sua experiência, descobrem o que ainda não sabem sobre ela, mas também se

revela o que “ainda não sabiam que já sabiam”. Enfim, ao sistematizar não só se atenta

aos acontecimentos, seu comportamento e evolução, como também às interpretações

que os sujeitos têm sobre eles, criando-se assim um espaço para que essas interpretações

sejam discutidas, compartilhadas e confrontadas.

O processo de sistematização trouxe para o artigo, reflexões importantes sobre as

relações e fluxos dentro dos sistemas da agricultura familiar. Demonstrou que um

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processo de sistematização baseado em dados concretos e números produzem debates

calorosos, com grande participação e entusiasmo das famílias. O exercício de organizar

as informações da experiência de forma participativa com os agricultores ajudou as

famílias refletir sobre sua caminhada e usar este aprendizado para melhorar o futuro.

Muitas das reflexões trazidas para este artigo são desdobramentos dos debates da

sistematização, portanto, além de fonte inspiradora, trouxe elementos concretos para as

reflexões feitas neste texto.

2. CONTEXTUALIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA

A agricultura familiar no Brasil tem um papel importante na produção da

alimentação básica consumida pela população, com mais 4,3 milhões de

estabelecimentos e ocupando 24% da área total destinada a agricultura no país, com

valor bruto da produção correspondendo a 38% do gerado pela agricultura em uma

renda de R$ 515,00/ha/ano; em termos de mão de obra, ocupa 74,4% dos trabalhadores

na agricultura. Na região Nordeste 50% dos estabelecimentos agrícolas são familiares e

ocupam 35% da área destinada à agricultura (MDA, 2009).

Pesquisas divulgadas afirmam que há superioridade produtiva da agricultura

camponesa em relação à agricultura convencional como demonstra estudo realizado na

Itália, divulgado por Ploeg (2008), onde agricultores camponeses produziam em 1971

33% mais do que a agricultura empresarial, e em 1999 esta diferença subiu para 55%,

tendo as demais condições mantidas iguais. Ressalte-se que é a agricultura camponesa a

grande responsável pela produção de alimentos no mundo.

Na região semiárida do Brasil o roçado, plantado na época das chuvas, é uma

estratégia importante de produção de alimentos para as famílias e se integra com a

criação de animais, que é a principal atividade produtiva na região, através da produção

de grãos e forragem. Nesse sentido, os roçados no semiárido têm características que se

assemelham a uma forma de agricultura ecológica, na qual a produção animal deve ser

integrada a produção vegetal. Idealmente, os animais devem ser compatíveis com o tipo

e a quantidade de produtos vegetais que podem ser produzidos na propriedade para sua

alimentação. Com isso, evita-se a maioria dos riscos ambientais e o desperdício de

energia (KHATOUNIAN, 2001).

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Dentro do subsistema roçado, até os anos 80, o algodão desempenhava um papel

muito importante de geração de renda através da venda, em caroço4 para as empresas

que iniciavam o beneficiamento desta produção. Esta fonte de renda deixou de ser

viável depois da chegada do Bicudo-do-algodoeiro (Anthonomus grandis) e com as

progressivas mudanças nas condições de mercado para este produto, e até hoje o

agricultor familiar não encontra substituto à altura com esta função de geração de renda

dentro do subsistema roçado.

Por outro lado, os roçados sempre foram espaços de policultivos onde se

associava o cultivo do algodão, como fonte de renda, à produção de alimentos como

milho, feijão, jerimum, dentre outros. Segundo Bursztyn (1984) depois da colheita dos

alimentos e do algodão, o roçado fornecia palha e restos culturais para alimentação do

rebanho animal. Além da diversificação, o roçado sempre foi um espaço de pouco uso

de insumos químicos e sempre se utilizou, prioritariamente, da mão de obra familiar.

Este subsistema roçado traz em suas práticas produtivas integradas e conhecimentos

tradicionais acumulados, uma grande contribuição para construção coletiva do

conhecimento no processo de formação e transição agroecológica.

As práticas utilizadas pela agricultura familiar de base agroecológica que fazem

rotação de culturas com plantas leguminosas aplicam composto orgânico e

diversificação de culturas, incluindo adubação verde, cultivam em faixas e usam

misturas na alimentação animal, geram sistemas que conservam energia, protegem o

solo e imprimem o mínimo impacto ecológico (ALTIERI & NICHOLLS, 2003).

Quando se evolui neste sistema, pela adoção de esquemas diversificados com

produção animal e vegetal, se incrementam sinergismos assegurando a fertilidade do

solo, a regulação natural das pragas e produtividade das culturas. As técnicas e

estratégias tem diferentes efeitos na produtividade, estabilidade e resiliência dentro dos

sistemas de produção, dependendo das condições locais, limitações de recursos e, em

muitos casos, do mercado (ALTIERI & NICHOLLS, 2003).

O presente artigo trata da experiência do “Algodão em Consórcios Alimentares

Agroecológicos” (fig. 3 e 4), Incentivada e apoiada pelo Projeto Dom Helder Camara

(PDHC), ação piloto da Secretaria de Desenvolvimento Territorial do Ministério do

4 Algodão em caroço se refere ao algodão colhido no campo sem nenhum beneficiamento.

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Desenvolvimento Agrário do Brasil (SDT/MDA) em colaboração com o Fundo

Internacional para o Desenvolvimento da Agricultura (FIDA) e o Fundo Mundial para o

Meio Ambiente (GEF).

Inicialmente foram estabelecidas parcerias com a Embrapa Algodão e o

ESPLAR5, entidades de maior acúmulo de conhecimento com o tema do algodão

orgânico no Nordeste brasileiro. Além destas, foram estabelecidas parcerias com o

Governo do Estado do Ceará, através da Secretaria de Desenvolvimento Agrário (SDA)

e EMATERCE; com a Empresa de Pesquisa Agropecuária do Rio Grande do Norte

(EMPARN); com a EMBRAPA Cenargen; com a EMBRAPA Caprinos e Ovinos; com

a Universidade Federal do Ceará (UFC) e também parceria com a Universidade Federal

de Campina Grande (UFCG).

Segundo Sidesrky et al. (2010), a parceria desenvolvida com o ESPLAR e a

Embrapa Algodão para implementação desta ação, levando em conta a estrutura de

Assessoria Técnica Permanente do Projeto Dom Helder Camara, oferece um arranjo que

suporta um sistema complexo de formação pela experimentação6, acompanhamento

técnico e fortalecimento da gestão social para as famílias que aderiram a esta ação de

revitalização do algodão consorciado com alimentos e produzido em roçados

agroecológicos.

Para superar as distâncias culturais entre os técnicos e agricultores da cultura do

algodão e dos roçados agroecológicos, trabalhou-se um processo de formação em que o

5 ONG com sede em Fortaleza/CE iniciou o processo de resgate da cultura do algodão nos anos noventa,

através do plantio consorciado com culturas alimentares em roçados agroecológicos. 6 Formação através da prática.

Fig. 3: Cultivo da terra com tração animal. Fig. 4: Roçado agroecológico com curva de

nível.

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roçado foi utilizado para as práticas da experimentação7. Segundo Petersen (2007), a

incorporação do agroecossistema como unidade para organização do conhecimento, em

particular, cria novas perspectivas para que os técnicos possam apreender as

racionalidades e estratégias dos grupos de agricultores assessorados. Entre outras

razões, permite a superação do enfoque metodológico centrado em tecnologias pontuais,

passando a abordá-las a partir de uma perspectiva sistêmica, ou seja, pelas suas funções

como mediadoras de relações ecológicas e socioeconômicas nos agroecossistemas.

Um importante instrumento de monitoramento e avaliação dos consórcios foi a

criação de um Banco de Dados. Criado em cada um dos territórios envolvidos nesta

ação, ele é atualizado mensalmente com participação de agricultores e técnicos e sua

gestão é realizada pela organização dos agricultores, e contêm informações de área,

estimativa de produção, pluviometria, práticas adotadas no cultivo, características de

relevo, manejo de pragas, entre outras, referentes a cada família cadastrada. O PDHC

junta as informações de todos os territórios, faz um resumo do cenário produtivo dos

territórios, e compartilha com os compradores e com a rede de algodão agroecológico

do semiárido nordestino. Muitas análises aqui terão como referência exatamente as

informações geradas por esse banco de dados.

3. CONCEITUANDO ROÇADOS AGROECOLÓGICOS NA

AGRICULTURA FAMILIAR

Para maior compreensão da proposta de produção do “Algodão em Consórcios

Alimentares Agroecológicos”, apresenta-se um conceito de Agroecologia desenvolvido

por Sevilla Guzman (2006): a Agroecologia promove o “manejo ecológico” dos

recursos naturais através de formas de ação social coletiva, que apresentam alternativas

à atual crise de modernidade, mediante propostas de desenvolvimento participativo,

desde os âmbitos da produção e da circulação alternativa de seus produtos, pretendendo

estabelecer formas de produção e de consumo que contribuam para encarar a crise

ecológica e social e, deste modo, restaurar o curso alterado da coevolução social e

ecológica. Sua estratégia tem uma natureza sistêmica, ao considerar a propriedade, a

organização comunitária, e o resto dos marcos de relação das sociedades rurais

7 A formação pela experimentação é uma ferramenta metodológica da ação do PDHC, onde a geração

participativa de conhecimentos acontece na prática, em campos experimentais.

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articulados em torno à dimensão local, onde se encontram os sistemas de conhecimento

(local, agricultor familiar e/ou indígena) portadores do potencial endógeno que

permitem incrementar a biodiversidade ecológica e sociocultural.

No contexto do consórcio agroecológico é fundamental o entendimento do

conceito que envolve a agrobiodiversidade e a importância da mesma na agricultura

camponesa. Para compreendermos melhor o conceito da agrobiodiversidade precisamos

pensar que ela é construída ao longo do tempo; é o resultado de processos históricos que

se referem ao tempo e espaço e, de uma forma ou de outra, a atividade humana pode,

manter ou perturbar a agrobiodiversidade. Ao longo dos últimos 10 a 12 mil anos, os

agricultores foram responsáveis, em grande parte, pela enorme diversidade de plantas

cultivadas, de animais domesticados e de agroecossistemas “desenhados”. Através da

observação, seleção, troca e melhoramento com práticas de manejo, cultivo e cria, foi

alcançado o aumento da diversidade genética, e também a introdução de espécies

silvestres e seus genes para dentro do acervo de plantas cultivadas e animais de cria,

gerando o que chamamos hoje de agrobiodiversidade. Portanto, a agrobiodiversidade é a

base biológica para a segurança alimentar, afetando diretamente o sustento dos

camponeses, que ao longo dos anos são considerados os guardiões da

agrobiodiversidade. Aguiar (2010) ressalta que o conjunto da família camponesa

composta por homens e mulheres conserva e valoriza diferentes espécies e

agroecossistemas.

Outro entendimento importante para a Agroecologia é em relação aos solos. Em

sua concepção agroecológica o solo é enfocado como um organismo, cuja vida exige

alimentação e proteção. A alimentação se faz com a biomassa e oxigênio, para a

nutrição dos microrganismos e, sobretudo da mesofauna8. A proteção se refere

especialmente à incidência direta do sol e da chuva, visando à proteção contra erosão, à

manutenção da umidade, da temperatura e da porosidade propícias ao desenvolvimento

dos organismos do solo (KHATOUNIAN, 2001).

8 A mesofauna do solo compreende os organismos, como ácaros, colêmbolos, alguns grupos de

miriápodes, aracnídeos e diversas ordens de insetos, alguns oligoquetos e crustáceos. Esse conjunto de

organismos, apesar de extremamente dependentes da umidade do solo, é caracteristicamente terrestre

(SWIFT et al., 1979). As atividades tróficas desses animais incluem tanto o consumo de microrganismos

e da microfauna, como a fragmentação de material vegetal em decomposição (CORREIA & ANDRADE,

1999).

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Ainda segundo Khantounian (2001), na agricultura convencional há uma

compreensão que o solo é um corpo de natureza mineral, e uma vez que o solo seja

compreendido como mineral, e lhe sejam aplicados tratos químicos e mecânicos, ele se

tornará um corpo preponderantemente mineral, perdendo aquelas características

dependentes da atividade biológica. O solo vai morrendo, se "mineralizando", restando

como corpos vivos no seu interior apenas as raízes das culturas e os organismos que lhe

são associados.

À medida que o solo vai morrendo, observa-se uma queda no rendimento das

culturas e/ou na sua resposta à própria adubação mineral. Para compensar a perda

progressiva na resposta à adubação mineral, doses cada vez maiores de agroquímicos

vão se tornando necessárias. A velocidade da queda no rendimento das culturas devido

ao decréscimo da atividade biológica no solo depende das características mineralógicas

do terreno. Onde as características mineralógicas do terreno são excepcionalmente boas,

como nas terras roxas, a queda no rendimento poderá levar de uma a duas décadas. Em

terrenos como os do semiárido nordestino, a queda é observada em poucas safras

(KHATOUNIAN, 2001).

Diante disso, o trabalho de apoio e desenvolvimento da experiência com

“Algodão em Consórcios Alimentares Agroecológicos” buscou unir as condições de

desenvolvimento social e ecológico através de processos participativos de construção e

gestão, formação pela experimentação para uma transição agroecológica, com

valorização dos conhecimentos científicos e tradicionais, da agrobiodiversidade e da

conservação dos solos.

Assim busca gerar desenvolvimento social, econômico, de forma mais sustentável

com minimização dos problemas de erosão dos solos e dos riscos de perdas de safra

devido às frequentes irregularidades na distribuição das chuvas no semiárido nordestino

(LIMA, 2008).

Esta forma de produção aplicada aos roçados agroecológicos tem ganhado força

inclusive dentre as instituições de pesquisa como a Embrapa Algodão que tem

publicado em favor da Agroecologia reafirmando ser fundamental que a produção seja

em bases agroecológicas, conservando os solos e demais recursos naturais, eliminando o

uso de agrotóxicos e organismos geneticamente modificados, não fazer usos de adubos

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químicos e outros tipos de insumos prejudiciais à saúde humana e ao meio ambiente

(BELTRÃO et al. 2009).

Guimarães Duque (2004), um dos principais estudiosos do semiárido tendo sua

primeira grande obra “Solo e Água no Polígono das Secas” publicada em 1949, já

falava bem de como o plantio consorciado, associado a práticas de conservação pode ser

uma boa forma de se preservar o solo, que tem sido bastante degradado pela

substituição das matas por áreas agrícolas ou de pastagens na região semiárida do

Brasil. Onde a utilização de plantações mistas ou intercaladas, formando camadas

vegetativas em sequência, de diferentes espécies se sucedendo em curto período de

exploração, é o segredo de conseguir melhor produção agrícola com a melhor

conservação do solo.

Sobre o tema da biodiversidade e modelos de produção agrícola, Caporal (2009)

menciona que a aposta num modelo de monocultivos tem sido responsável pela perda

de biodiversidade em todos os nossos biomas. Menciona também que a simplificação

resulta, num crescente desequilíbrio ecológico, no rompimento de cadeias tróficas, na

artificialização extrema das áreas de produção, com necessidade de permanentes

subsídios externos.

Parte-se do pressuposto que esta forma de produção em policultivos, utilizando

sementes que são reproduzidas pelos próprios agricultores, dialoga com os princípios da

agroecologia e preservação da biodiversidade.

Aliás, sobre os policultivos encontramos várias referências que destacam as

vantagens de se trabalhar neste sistema. A principal delas trata da possibilidade de se

produzir mais em uma área semeada em sistema de policultivo do que em área

equivalente semeada com uma monocultura (ALTIERI, 2012).

Esse aumento da eficiência do uso da terra é particularmente importante em áreas

cujas propriedades são pequenas, nas quais os agricultores possuem condições

socioeconômicas precárias e onde a produção agrícola é limitada pela quantidade de

área que pode ser preparada e capinada manualmente, num espaço de tempo limitado

(ALTIERI, 2012), bem como, onde os regimes pluviométricos são irregulares. Outras

vantagens como estabilidade na produtividade e uso mais eficientes dos recursos

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naturais são levantadas por Altieri (2012) em relação aos sistemas de policultivos

semelhantes aos roçados no semiárido.

4. OS ROÇADOS SOB UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA

Desde a interiorização do Brasil, o roçado tem acompanhado a sociedade rural

com um importante papel na produção de alimentos para as famílias camponesas, assim

como, produzindo alimentos para o gado que é uma das principais atividades

econômicas na Região Semiárida do Brasil.

O processo de interiorização no semiárido brasileiro se deu através dos criadores

de gado e o estabelecimento das grandes fazendas. Na Paraíba, por exemplo, a

penetração do gado para o interior seguiu duas vias: a primeira de sentido Leste-Oeste

seguiu o curso do rio Paraíba e a segunda procedente da Bahia adentrou o território de

Pernambuco e na sequência o da Paraíba. Essa última via foi, de fato, a principal

corrente de povoamento das regiões dos rios Piranhas e Piancó no sertão paraibano

(MOREIRA & TARGINO, 1997).

Originou-se uma sociedade agrária que se manteve com os produtos extrativos, a

pecuária e os roçados, que mudavam de lugar na procura das terras virgens. Adveio uma

tradição de lavoura pouco cuidada, extensiva, com o mínimo de trabalho (DUQUE,

2004). Ao passar do tempo com a diminuição do tamanho e o aumento das cercas das

propriedades, com o aumento da população rural, o roçado passou a exercer uma função

mais importante, e essa lavoura pouca cuidada, passou a ser mais bem cuidada e mais

intensificada com produtos (policultivo) e mão de obra. Ou seja, essa lavoura de roçado

passou a ser estratégica para uma grande parcela da população agrícola.

No século XX, as subdivisões contínuas das grandes propriedades advindas das

sesmarias, a reprodução dos rebanhos, o aumento da população e a ampliação dos

roçados reduziram muito a área do pastoreio por animal sem o acréscimo da quantidade

de forragem produzida por hectare. Chegamos ao meado do século XX com mais bocas

humanas para alimentar. O suprimento forrageiro, nativo, insuficiente para o número de

cabeças dos rebanhos resultou, em muitos lugares, na terra nua exposta à insolação, aos

ventos e à enxurrada com a destruição do topsoil provedor de humo e microrganismos

alimentadores de nutrientes para as raízes das plantas (DUQUE, 2004).

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Na região do semiárido a atividade primária já esteve organizada a partir do tripé:

gado, algodão, lavouras alimentares. A forma de exploração das grandes propriedades

pode ser resumida da seguinte maneira: o gado era criado de forma extensiva, solto na

caatinga, requerendo um pequeno número de trabalhadores para o seu trato e

pertencendo, via de regra, ao proprietário. O algodão, por sua vez, era cultivado tanto

nas grandes quanto nas pequenas propriedades; quando cultivado nas grandes

propriedades, o seu cultivo fazia-se sob a forma de parceria (ou sistema morador,

relação de trabalho bastante difundida pós escravidão) ou de arrendamento, ficando,

portanto, os riscos da produção a cargo dos parceiros e arrendatários. A extração do

sobre-trabalho era feita basicamente através dos mecanismos de comercialização, uma

vez que a parte do produto, que cabia aos parceiros e aos arrendatários (geralmente a

meia ou terça parte) deveria ser comercializada diretamente com o proprietário

(MOREIRA & TARGINO, 2007).

A produção de algodão arbóreo e alimentos em consórcios nos roçados

acompanhou as relações de trabalho no sertão nordestino relacionadas ao período da

“bovinização”9 na década de 80, um produto típico de um esquema em que os meeiros

ou moradores dos latifúndios tinham o direito a cultivar o feijão, o milho e a mandioca

entre os arbustos que geravam renda ao proprietário da terra durante aproximadamente

quatro anos. Após a colheita, o gado do latifundiário entrava na área para se alimentar

da palha e do restolho que sobrava no terreno e, desta forma, funcionava como um

reciclador do arbusto do algodão, preparando-o para um novo ano agrícola

(BURSZTYN, 1984).

Enfim, percebe-se que historicamente tanto no Brasil, como em muitos lugares do

mundo, particularmente nos países em desenvolvimento, os agricultores geralmente

fazem seus plantios em combinações (policultivos ou consórcios), preferencialmente ao

plantio de culturas isoladas (monoculturas, ou culturas solteiras). Até aproximadamente

20 anos, as características desejáveis dos consórcios eram ignoradas pelos

pesquisadores. Recentemente, entretanto, a pesquisa com policultivos cresceu e muitos

dos benefícios potenciais destes sistemas estão ficando evidentes (LIEBMAN, 1993).

9 Segundo BURSZTYN este foi o período em que o estado incentivou a expansão da bovinocultura na

Região Nordeste do Brasil através do crédito barato.

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Diante deste levantamento é possível identificar que no semiárido a agricultura, a

pecuária e a vegetação nativa foram interagindo de forma a configurar sistemas de

produção baseados em quatro grandes subsistemas, o subsistema de produção de pasto

nativo (caatinga), o roçado, a criação de gado bovino e posteriormente o algodão

(NOGUEIRA & SIMÕES, 2009). Ainda se identifica que o subsistema roçado que

gerava renda e alimentos, hoje busca revitalizar esta perspectiva de geração de renda,

tendo em vista que sempre teve em sua estratégia a produção de alimentos para a

família assim como para os animais.

A seguir, apresenta-se uma experiência que vai nessa direção. O uso do roçado,

em bases agroecológicas, como componente estratégico para viabilidade econômica das

famílias agricultoras e para a sustentabilidade da agricultura familiar no semiárido

brasileiro dialogando com a produção de alimentos, geração de renda e integração com

a produção animal.

5. ALIMENTOS E RENDA NOS ROÇADOS AGROECOLÓGICOS DO

SEMIÁRIDO E NO ASSENTAMENTO ZÉ MARCOLINO

O Projeto de Assentamento Zé Marcolino foi implantado na antiga Fazenda

Serrote Agudo, uma das grandes fazendas da região do Cariri Paraibano, com seu

declínio cantado na voz de Luiz Gonzaga com letra do poeta Zé Marcolino “... já foi um

reino encantado... hoje só se vê porta fechada não reina mais alegria...”. Está localizado

na divisa dos municípios de Sumé, Prata e Amparo no Estado da Paraíba. Em dezembro

de 2001 foi emitida a posse para os agricultores assentados. Com uma área

desapropriada de 2.356,7200 hectares, encontram-se instaladas 86 famílias, divididas

em quatro agrovilas (Lajinha, Macacos, Formigueiro e Cumaru). Cada família possui

um lote de 19,8 ha para a criação de animais e o plantio dos roçados e as demais terras

estão destinadas a implantação das agrovilas e das reservas legais.

O Projeto Dom Helder Camara iniciou sua atividade de Assessoria Técnica

Permanente neste assentamento no ano de 2003, onde forneceu assessoria às famílias

agricultoras e financiamentos de projetos de investimento social e produtivos.

Desenvolveu ações afirmativas de gênero no apoio a estruturação do grupo de mulheres

com parceria de entidades feministas da Paraíba. Ajudou a estabelecer parcerias com a

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Universidade Federal de Campina Grande, através do projeto Universidade Camponesa

com formação de lideranças políticas e experimentação participativa de produção e

armazenamento de forragem, e com a Embrapa Algodão em unidades demonstrativas de

produção de forragem.

As famílias agricultoras do Assentamento Zé Marcolino por volta do ano de 2008

debatiam sobre as dificuldades da produção do roçado. Concluiram que “o rendimento

do roçado não estava pagando a mão de obra”, utilizada pelas famílias. Foi quando no

final de 2008, se iniciou a mobilização e formação de famílias agricultoras na produção

do Algodão em Consórcios Agroecológicos. Inicialmente, foram sensibilizadas,

mobilizadas e cadastradas 22 famílias, que passaram por formação com abordagem em

práticas de conservação de solo e água, manejo cultural, Agroecologia, certificação

orgânica e processos de comercialização. Após a formação e a conciliação com início

do período chuvoso, apenas 11 famílias cultivaram em 2009 o roçado utilizando as

culturas e as práticas dos consórcios agroecológicos. Apesar da adesão inicial de apenas

50% das famílias, esse foi o primeiro passo, e talvez o mais desafiador, para a

consolidação da experiência.

O “Algodão em Consórcios Alimentares Agroecológicos” desenvolvido pelas

famílias agricultoras se baseia em: a) uma proposta técnica de produção agroecológica

de alimentos para a família e animais, b) o algodão com função de gerar renda e

alimentos para os animais, colocado em um mercado diferenciado com certificação

orgânica, c) o fortalecimento da gestão social sobre a produção, certificação e

comercialização.

Na verdade, na busca por garantir um equilíbrio entre culturas alimentares e de

geração de renda, o algodão é reinserido no sistema familiar, cultivado consorciado com

outras culturas alimentares como o milho e o feijão, intercalado em faixas, e por ocasião

o grupo de agricultores em um acordo político estabeleceram que o algodão10

ocupasse

até o máximo de 50% da área do consórcio.

Um empreendimento produtivo agrícola pressupõe que a atividade proposta seja

rentável e gere emprego e ocupação produtiva para as famílias agricultoras e/ou

10

São utilizadas variedades de algodão herbáceo desenvolvidas pela Embrapa, entre elas a BRS Aroeira e

8H, que são livres de genes modificados por meio de transgenias, suas sementes produzidas nos próprios

roçados são importantes para a certificação orgânica gestão da agrobiodiversidade.

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proporcione melhoria no nível de segurança alimentar. Neste sentido, uma das

principais características dos empreendimentos produtivos é referente ao número de

famílias envolvidas, o incremento do nível de ocupação, renda e alimentação destas

famílias. Ou seja, o que se busca em um subsistema de roçado agroecológico, ou em

outras atividades produtivas da agricultura familiar é que se desenvolvam sistemas

economicamente viáveis, que sejam inclusivos e possam ser atrativos e utilizados por

muitas famílias, produzindo alimentos, fortalecendo a estratégia de convivência com o

semiárido, e gerando trabalho digno no ambiente rural.

Dentro de uma perspectiva da agricultura familiar com base agroecológica, a

viabilidade econômica de um sistema produtivo não deve ser olhada de forma isolada,

mas deve levar em conta as relações sistêmicas dentro da propriedade trabalhada pela

família. Estas relações dever ser representadas em números, levando em conta todos os

elementos de despesas e receitas do sistema.

Nesse sentido, um primeiro ponto importante para tornar possível um estudo de

viabilidade econômica com olhar para um determinado sistema produtivo, foi a

atribuição de valores monetários aos insumos produzidos internamente na

propriedade/sistema e produtos consumidos internamente na propriedade/sistema. Para

descrever estes valores monetários atribuídos aos produtos e insumos internos,

utilizamos aqui o termo “equivalente monetário”. Assim, equivalente monetário

significa valores atribuídos a todos os insumos produzidos internamente na

propriedade/sistema e produtos consumidos internamente na propriedade/sistema.

Outro fator que vale a pena destacar é que, com um sistema de policultivo

ocupando uma mesma área, toda a produção é somada e contabilizada em conjunto

gerando um “valor bruto da produção”. Ou seja, valor bruto da produção é a soma

agregada da produção consumida (com seu equivalente monetário), e a produção

comercializada.

Neste trabalho foram realizados dois olhares diferentes para os consórcios. Um

olhar mais geral, abordando os resultados obtidos pelas famílias envolvidas com a ação

e que estão sendo acompanhadas pela assessoria e monitoradas pelo projeto. Outro olhar

mais detalhado, para um consórcio em especial (uma família), com a perspectiva de

uma análise mais profunda do sistema de policultivo estudado.

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Nesta análise mais detalhada e direcionada ao subsistema produtivo do roçado

agroecológico, foram levados em consideração os custos de serviços internos da família

e os externos, isto é, serviços contratados, insumos internos e externos da propriedade e

custo das sementes. Para se avaliar as receitas, levou-se em consideração toda a

produção a partir deste espaço definido por roçado, desde os alimentos consumidos, os

alimentos vendidos, o algodão comercializado, e o ganho de peso dos animais que se

alimentaram exclusivamente dos restos culturais.

Conforme demonstrado na tabela 1, durante os três anos do monitoramento ficou

evidenciado como a variação pluviométrica interfere diretamente nos resultados da

produção dos roçados de sequeiro. Embora as análises sobre a relação produção-

pluviometria careça de um intervalo de tempo mais amplo, observou-se que em 2010,

onde tivemos estiagem, a produtividade média foi bem menor. Além da quantidade, o

fator distribuição é muito importante para este subsistema da agricultura familiar do

semiárido. Observando-se, por exemplo, o ano de 2011 no qual a chuva foi mais bem

distribuída, a produtividade foi bem superior a do ano de 2009 em que os índices

pluviométricos foram superiores, contudo as chuvas foram mais concentradas.

Outro fator que nos chama a atenção na tabela 1 é que o valor bruto da produção

do roçado de sequeiro na região semiárida no ano de 2011 foi de R$ 1.506,50,

correspondente ao triplo da média brasileira de R$ 515,00, dados do MDA (2008) em

relação à média do valor bruto na agricultura familiar/hectare/ano (conforme citado no

início desse texto).

O destaque importante na tabela 1 é o crescimento progressivo do número de

famílias envolvidas com a ação. Em 2011 (ano base de análise), elas já somavam 678

famílias, distribuídas pelos seis territórios envolvidos na ação11

. No Assentamento de Zé

Marcolino, das 22 cadastradas, 11 iniciaram a produção em 2009 e em 2011, 26 famílias

se cadastraram para plantio dos consórcios agroecológicos.

11

O Projeto Dom Helder Camara (PDHC), onde a experiência do “Algodão em Consórcios Alimentares

Agroecológicos” é levada a cabo, tem o propósito maior de gerar e difundir referências que orientam

ações de políticas públicas de combate à pobreza e promoção do desenvolvimento rural sustentável. Para

tanto, desenvolve uma ampla ação de assessoria técnica junto a mais de 15.000 famílias agricultoras,

distribuídas em 77 municípios, 356 assentamentos rurais e comunidades da agricultura familiar de oito

territórios, situados na porção semiárida de seis estados da região nordestina (CE, PB, PE, PI, RN, SE).

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Tabela 1: Dados básicos dos consórcios nos anos de 2009, 2010 e 2011. Territórios Inhamuns - CE,

Sertão Central - CE, Apodi - RN, Cariri - PB, Pajeú - PE, Araripe – PE.

Descrição Período

Evolução produtiva dos consórcios de 2009 a 2011 2009 2010 2011

Número de famílias cadastradas 138 524 678

Número de famílias que produziram 118 91 401

Área plantada (ha) 90,32 67,41 236,74

Produção de pluma de algodão (kg) 5.485,5 3.363,7 26.040,0

Produtividade média de grãos e algodão dos consórcios agroecológicos (kg/ha)

688,60 288,44 1.058,13

Valor bruto da produção médio/ ha (R$) R$ 580,96 R$ 452,46 R$ 1.506,50

Valor bruto da produção nos consórcios R$ 45.537,00 R$ 33.355,00 R$ 333.346,07

Média Pluviométrica (mm) 1.123,22 325,81 823,52

Fonte: Banco de Dados, PDHC.

Um estudo de caso mais detalhado mostra um cenário bastante favorável da

relação benefício-custo do subsistema roçado agroecológico. Nesta oportunidade

atribuímos valor “equivalente monetário”, ao que custaria o item descrito, tendo por

base o mercado local.

Neste estudo de caso, para que se pudesse incluir a importante interação deste

subsistema com a criação de animais, foi realizado um monitoramento de peso dos

animais alcançando os seguintes resultados: foram pesados, ao entrar no dia 29 de

agosto de 2011 na área do roçado para se alimentar exclusivamente dos restos culturais,

39 pequenos animais de um rebanho misto com caprinos e ovinos; 4 destes animais

foram separados durante o período por motivo de doenças. Ao tomar o peso na saída da

área do roçado no dia 23 de setembro de 2011 (ou seja, pouco menos de um mês), os 35

pequenos animais apresentaram um peso de 140 quilos superior ao do dia da entrada,

correspondendo a uma média de 4 quilos por animal.

Vale a pena destacar que alguns dados de produção não foram traduzidos em

números como, por exemplo, o que foi produzido de carne e leite a partir da forragem

plantada nos consórcios agroecológicos e estocada em silos. Contudo, esta estratégia de

produção de forragem dentro dos roçados é realidade em quase todas as famílias

agricultoras em geral. No caso das famílias envolvidas na ação, destacamos o sorgo

dentre as forragens mais produzidas com a finalidade de ser estocada. O sorgo

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desempenha um importante papel na produção de forragem, pois apresenta uma alta

produtividade, produz uma silagem com ótimas características fermentativas, possui um

bom nível energético, possui proteína bruta em torno de 8%, é uma planta forrageira que

se adapta a várias condições de clima e solo.

Os dados a seguir são do subsistema roçado do agricultor Anselmo residente no

assentamento Zé Marcolino (município de Sumé/PB) que cultivou com roçado em base

agroecológica 1,97 hectares (georreferenciado) no ano de 2011. Na tabela 2, por

exemplo, percebemos um bom indicativo de que grande parte do que é investido no

subsistema roçado não gera saída de recursos monetários, fator importante para a

agricultura familiar. Dentro de uma perspectiva agroecológica o fato de que mais de três

quartos (¾) do investimento produtivo é feito com recursos internos ao sistema, nos traz

uma ideia de que é um sistema que tem bastante autonomia, possuindo baixa

dependência externa e, portanto, menos susceptível a mudanças neste cenário. Neste

contexto, a autonomia em relação ao investimento produtivo permite ao agricultor maior

independência e segurança na implantação dos campos produtivos. Como diria Ploeg

(2008), a autonomia materializa-se na criação e no desenvolvimento de uma base de

recursos naturais e sociais autogerida. Ou seja, o valor atribuído de despesas ou

investimentos internos ao sistema totaliza R$ 1.493,55 enquanto que o valor atribuído

das despesas ou investimentos externos ao sistema totaliza R$ 430,00 pagos na

contratação de serviços.

Tabela 2: Despesas internas ao sistema de produção agrícola de Anselmo.

Interno do Sistema Familiar

Atividade/descrição Unidade Mão de obra

familiar (dias) Valor Unitário

(R$) Valor total

Atribuído (R$)

Corte da terra h/m 0 - 0,00

Preparo da terra d/h/a 0 - 50,00

Plantio d/h 3 20,00 60,00

replantio d/h 1 20,00 20,00

adubação d/h 1 20,00 20,00

Aplicação de caolim d/h 4 20,00 80,00

capina tração animal d/h 2 50,00 100,00

1ª capina d/h 8 20,00 160,00

2ª capina d/h 12 20,00 240,00

Catação de botão floral d/h 1 20,00 20,00

Colheita h/d 30 20,00 600,00

Beneficiamento h/d 2 20,00 40,00

Destruição dos restos culturais h/d 1 20,00 20,00

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Sub Totais 1.410,00

Sementes Unidade Banco de Sementes

Valor Unitário (R$)

Valor total Atribuído (R$)

milho kg 9,75 1 9,75

feijao kg 3 2,6 7,80

algodão kg 15 2 30,00

gergelim kg 0,5 5 2,50

sorgo kg 1 5 5,00

cunhã kg 0,5 15 7,50

Sub Totais 62,55

Insumos Unidade Interno da

Propriedade Valor Unitário

Valor total Atribuído

Biofertilizante 1 21 21,00

Sub Totais - - 21,00

Total de despesas internas - - 1.493,55

Fonte: Banco de Dados, PDHC.

Já a tabela 3 apresenta valores que correspondem à saída de recursos monetários

da família para implantação e manejo do subsistema roçado. Neste caso, observa-se que

não há grandes saídas de recursos do sistema, no caso de Anselmo foram gastos R$

430,00. Este é um fator importante em se considerando que o agricultor geralmente está

descapitalizado ou tem poucos recursos disponíveis quando da chegada das chuvas.

Tabela 3: Despesas externas ao sistema de produção agrícola de Anselmo.

Externo do Sistema Familiar

Atividade/descrição Unidade Mão de obra paga (dias)

Valor Unitário (R$) Valor Total Despesa

(R$)

Corte da terra h/m 3,5 60,00 210,00

Preparo da terra d/h/a 2,5 20,00 50,00

plantio d/h 1,5 20,00 30,00

replantio d/h - - -

adubação d/h - - -

Aplicação de caolim d/h - - -

capina tração animal d/h 2 50,00 100,00

1ª capina d/h - - -

2ª capina d/h - - -

Catação de botão floral d/h - - -

Colheita h/d - - -

Beneficiamento h/d - - -

Destruição dos restos culturais h/d 2 20,00 40,00

Totais de despesas externas 430,00

Fonte: Banco de Dados, PDHC.

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Na tabela 4 o primeiro destaque vai para a diversidade de produtos do roçado

agroecológico. Observa-se que estão listados 8 produtos, e além destes, outros são

cultivados nos roçados como maxixe, melão, melancia e fava entre outros, que não

foram apresentados por que o monitoramento apresentou um valor quantitativo muito

baixo destes alimentos. O fato de ter vários cultivos consorciados em uma mesma área

de plantio é fundamental para o equilíbrio do sistema na relação solo/planta com a

entrada de insetos polinizadores e convivência com as pragas. Pode-se ainda considerar

positivo o que se observa na tabela 4, onde se verifica que uma boa parte da produção

dos roçados está totalmente integrada a outros subsistemas produtivos da família, sendo

consumida internamente pelo sistema. Este fluxo interno de produtos e insumos dialoga

com os princípios da agroecologia, na medida em que promove o aumento do fluxo

interno de energia, aumenta a autonomia da família agricultora, aumenta a integração

entre os subsistemas e diminui a saída de recursos gerando sistemas produtivos mais

sustentáveis. Ou seja, o valor atribuído de receitas consumidas internamente ao sistema

totaliza R$ 1.620,00, que é um dinheiro que deixou de sair do sistema.

Tabela 4: Receita referente à produção consumida internamente no sistema agrícola de Anselmo.

Cultura Unidade

Produção Consumida

(kg)

Valor Unitário (R$)

Valor total Consumido R$

Algodão - Pluma kg - - 0,00

Algodão - Caroço kg 660 0,5 330,00

Amendoim kg 40 3 120,00

Feijão kg 120 1 120,00

Gergelim kg 200 5 1.000,00

Guandú kg 15 1 15,00

Jerimum kg 35 1 35,00

Carne kg - - 0,00

Totais de receitas “equivalente monetário” 1.620,00

Fonte: Banco de Dados, PDHC.

Observem que na tabela 5 está demonstrado que a volta do algodão como

componente de geração de renda dentro do roçado faz uma grande diferença na entrada

de recursos monetários para a família, mas a integração com a pecuária é fundamental

para a viabilidade do subsistema roçado. Neste ponto da comercialização do algodão já

descaroçado no comércio justo e mercado orgânico, é necessário destacar a importância

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da organização social para se alcançar a certificação orgânica e também volumes

significativos para comercialização.

De modo geral, as famílias agricultoras organizadas em grupos comunitários com

interesse em produção orgânica se juntam a um grupo de igual interesse territorial, o

que possibilita as mesmas a certificação orgânica da produção e colocação no comércio

justo e mercado orgânico. O contrato de compra antecipada da pluma é negociado entre

as famílias agricultoras e empresas com atuação no comércio justo, e também empresas

com atuação no mercado orgânico, mediadas, inicialmente, por organizações de apoio e

assistência técnica e extensão rural.

As famílias se apropriaram das negociações com os compradores ao longo do

tempo. No início, em 2009, a negociação foi realizada entre as organizações que

assessoram a cadeia do algodão e a Veja Fair Trade (empresa francesa ligada ao

comércio justo) compradora de toda a pluma neste primeiro ano. A partir de 2010, as

famílias agricultoras sentaram-se à mesa com a empresa compradora (Veja).

Apresentaram suas estimativas de produção e negociaram a venda antecipada de sua

produção, esta negociação resultou em contrato com preço de R$ 6,82, mesmo que o

preço de mercado caísse, como caiu no primeiro semestre do ano de 2011 quando o

algodão convencional passou de R$ 5,00 para R$ 2,30 por quilo de pluma. Garantiu-se

também 50% de adiantamento conforme estimativa apresentada e os 50% restantes no

ato da entrega dos produtos a empresa compradora. Um aspecto importante da

negociação foi à entrega da pluma sem o caroço, fundamental na estratégia do roçado

integrado a alimentação animal. No ano de 2011 os valores e as condições de mercado

foram mantidos, o debate sobre as condições contratuais foi realizado entre

representantes das organizações dos agricultores com representantes das empresas em

um único dia juntando todos os territórios.

Vale ressaltar que pela experiência das famílias, o roçado já não cobria os custos

da produção, embora elas nunca deixaram de fazer seus roçados mesmo com este fator

renda não sendo mais um fator de motivação. Esta reflexão nos traz novamente a ideia

de que os roçados tem uma função ampla dentro da estratégia de convivência com o

semiárido para as famílias camponesas.

Os resultados apresentados abaixo são representativos para agricultores que

conseguiram se organizar, certificar a produção, descaroçar o algodão, negociar

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contratos de venda antecipada com preços justos, e organizar a logística de juntar esta

pluma do território para comercialização. No ano de 2011, Anselmo comercializou parte

da sua produção gerando uma receita externa ao sistema que totalizou R$ 4.530,00.

Tabela 5: Receita referente à produção comercializada do sistema agrícola de Anselmo.

Cultura Unidade

Produção Comercializada

(kg)

Valor Unitário (R$)

Valor total Comercializado

(R$)

Algodão - Pluma kg 440 6,00 2.640,00

Algodão - Caroço kg - - -

Amendoim kg 80 3,00 240,00

Feijão kg - - -

Gergelim kg 50 5,00 250,00

Guandú kg - - -

Jerimum kg - - -

Carne kg 140 R$ 10,00 R$ 1.400,00

Totais de receitas monetárias R$ 4.530,00

Fonte: Banco de Dados, PDHC.

A importância da produção de algodão não se resume unicamente à venda da

pluma (aumentando significativamente o componente da renda familiar), mas também

tem importância na medida em que deixa o caroço do algodão na comunidade para

servir de alimentação para os animais (reforçando a integração entre roçado e criação

animal). Como ração animal, o caroço do algodão oferece uma rica fonte de proteína

para a alimentação animal, tendo em vista que é costume se observar no semiárido a

compra do resíduo da industrialização do caroço do algodão (a torta do algodão) para

complementação alimentar dos animais de produção de leite, que por sua vez

necessitam de uma alimentação com mais de 30% de proteína.

Por fim, observem que este estudo de caso apresentado demonstra, na tabela 6, um

saldo bastante positivo quando se relaciona os custos e benefícios do sistema. Ainda

nesta linha de análise, dividindo os R$ 4.226,45 gerados no sistema pelos 65 dias

trabalhados, podemos afirmar que a remuneração do trabalho investido por Anselmo foi

de R$ 65,00 reais por dia trabalhado, quando o dia pago na região tem valor atribuído

de R$ 20,00. Se compararmos ainda com um salário mínimo que no segundo semestre

de 2011 tinha valor de R$ 545,00, o valor gerado no sistema equivale a quase oito vezes

seu valor.

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Tabela 6: Relação benefício custo do sistema MÃO DE OBRA E INSUMOS TOTAL

Internos Externos

R$ 1.493,55 R$ 430,00 R$ 1.923,55

PRODUÇÃO

Consumida Comercializada

R$ 1.620,00 R$ 4.530,00 R$ 6.150,00

R$ 4.226,45

Fonte: Banco de Dados, PDHC.

Pode-se afirmar, finalmente, que o agricultor familiar camponês trabalha com

objetivo de, por um lado reproduzir, melhorar e ampliar os recursos naturais ou capital

ecológico, através de cuidado com a seleção de sementes e animais, assim como com

cuidado no manejo dos solos e da água. Por outro lado, por meio do uso deste recurso

natural ou capital ecológico, gerar uma produção que atenda as necessidades da família,

gerando também excedentes comercializáveis (PETERSEN, 2007). Neste contexto, os

roçados desempenham um papel fundamental e de forma bastante intensiva (em

produtos, atividades e mão de obra) garante alimentos para a família e para os animais,

bem como uma produção destinada à comercialização. No caso analisado, a renda

gerada através da venda dos excedentes de culturas alimentares dos consórcios, e

também com a venda da pluma do algodão que é um produto não alimentar do

consórcio, tem uma grande importância na estratégia do calendário agrícola, pois sua

renda chega durante o período mais seco do ano, quando a criação de animais e outras

atividades produtivas estão em estado de manutenção. Uma visão ampla, de toda a

complexidade do sistema e não apenas o produto de uma cultura apenas é um fator

importantes quando se leva em consideração a viabilidade econômica dos

estabelecimentos da agricultura familiar.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta experiência demonstra desenvolvimento em diferentes campos, com destaque

para a geração de renda e produção de alimentos para as famílias e alta integração com a

criação de animais. A produção dos consórcios em bases agroecológicas fortalece a

estratégia de convivência com o semiárido. Neste sentido os agricultores avaliaram que

a produtividade e a renda gerada são melhores no sistema de produção de “Algodão em

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Consórcios Alimentares Agroecológicos” do que em sistemas mais simples de

monocultivos.

Outro fator de destaque é a colocação do agricultor em contato com comércio

justo e mercado orgânico e o incentivo ao associativismo e cooperação entre produtores,

o que complementa uma estratégia de desenvolvimento socioeconômico e ambiental, e

coloca o agricultor como sujeito ativo no seu processo de desenvolvimento.

A participação das famílias nos processos de gestão coletiva tem gerado uma

dinâmica muito interessante entre as organizações, pois proporciona o aparecimento de

novas lideranças que se motivam pela abrangência produtiva social e ambiental da

proposta. É neste campo de fortalecimento das organizações sociais de base onde se

encontra o maior desafio desta ação, e é importante continuar avançando neste campo

para que as famílias consigam lidar com a complexidade que envolve todos os

processos da produção até a comercialização.

Outro grande desafio a ser considerado é a ampliação do número de empresas para

a compra da pluma orgânica, assim como a comercialização de outros produtos do

consórcio como o gergelim orgânico, no sentido de permitir maior poder de negociação

e maior autonomia às famílias frente às empresas. Esse desafio requer tempo no sentido

de sua superação, contudo as reflexões sugeridas aqui apontam um ciclo virtuoso nesse

processo. Talvez um caminho a ser percorrido, mas os primeiros passos foram dados.

Por fim, dialogando com a metodologia de Assessoria Técnica Permanente

desenvolvida pelo Projeto Dom Helder Camara, o “Algodão em Consórcios

Alimentares Agreocológicos” só se viabiliza a partir de uma abordagem com o olhar

para a organização social, a produção em base agroecológica, a comercialização e a

integração entre as diversas atividades produtivas da família agricultora. O que tem se

buscado é que a assessoria técnica possa trabalhar como facilitadora, onde as famílias

agricultoras possam caminhar rumo à autonomia ou autogestão do capital social e

ecológico, sendo protagonistas de seus processos de desenvolvimento e mudança.

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