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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE - UFF
RÔMULO BUCKENTIN DE ALMEIDA LIMA
A INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA POST MORTEM E SEUS
REFLEXOS NO DIREITO SUCESSÓRIO
Niterói - RJ
2015
2
A INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA POST
MORTEM E SEUS REFLEXOS NO DIREITO
SUCESSÓRIO
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado à Universidade Federal
Fluminense como requisito parcial para a
obtenção do grau Bacharel em Direito.
ORIENTADOR: João Marcos Marcondes
Niterói
2015
RÔMULO BUCKENTIN DE ALMEIDA LIMA
3
A INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA POST
MORTEM E SEUS REFLEXOS NO DIREITO
SUCESSÓRIO
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado à Universidade Federal
Fluminense como requisito parcial para a
obtenção do grau Bacharel em Direito.
Aprovada em __ de Julho de 2015
Banca Examinadora
_________________________________
Prof. Dr. João Marcos de Melo Marcondes (Orientador) Universidade Federal Fluminense
_________________________________
Profª. Ms. Fernanda Pontes Pimentel Universidade Federal Fluminense
_________________________________
Profª. Ms. Giselle Picorelli Yacoub Marques Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
4
“Quem acredita, sempre alcança”.
Renato Russo
5
RESUMO
O presente estudo dedica-se à análise dos impactos do emprego de técnicas de
reprodução artificial no direito das sucessões, tendo como foco a inseminação
artificial homóloga post mortem, por ir de encontro ao princípio da saisina, base do
direito sucessório pátrio, e aos arts.1784 e 1798 do Código Civil. O estudo será feito
a partir da análise histórica do instituto, bem como das legislações estrangeiras e
das opiniões doutrinárias pátrias sobre o tema.
Palavras-chave: Direito das Sucessões, Reprodução Artificial, Inseminação Artificial
Homóloga Post Mortem, Princípio da Saisina.
6
ABSTRACT
This study is dedicated to the approach of the assisted reproduction techniques into
the sucession law, being the homologus artificial insemination posthumus the focus
because it diverges from articles 1784, 1798 of the Civil Code and from the saisine
principle. The study starts from a historical analysis of these techniques before going
into foreign laws about the institute and into brazilian academic opinion about the
theme.
Key Words: Sucession Law, Assisted Reproduction, Homologus Artificial
Insemination Posthumus, Saisine Principle.
7
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................... 9
2. INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL ................................................................................................................. 11
2.1. Definição de inseminação artificial ............................................................................................. 11
2.2. Classificação das técnicas de inseminação artificial .................................................................... 12
2.3. Evolução histórica ....................................................................................................................... 15
2.4. Início das discussões acerca da inseminação artificial post mortem: o caso francês “Affair
Parpalaix” ........................................................................................................................................... 16
3. O TRATAMENTO DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA NO DIREITO ESTRANGEIRO ................................... 18
3.1. Portugal ....................................................................................................................................... 18
3.2. Espanha ....................................................................................................................................... 19
3.3. Itália ............................................................................................................................................. 20
3.4. Reino Unido ................................................................................................................................. 21
3.5. Estados Unidos ............................................................................................................................ 22
3.6. Conclusões ................................................................................................................................... 23
4. PANORAMA ATUAL DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE A REPRODUÇÃO ASSISTIDA .................. 25
4.1 Disposições no Código Civil de 2002 ............................................................................................ 25
4.2. Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina ............................................................... 25
4.3. Projeto de Lei 1184/2003 ............................................................................................................ 26
4.4. Conclusões ................................................................................................................................... 26
5. A PROBLEMÁTICA SOBRE O DIREITO DAS SUSCESSÕES NO CONTEXTO DA INSEMINAÇÃO
ARTIFICIAL HOMÓLOGA POST MORTEM .............................................................................................. 28
5.1. O direito das sucessões no ordenamento jurídico brasileiro ...................................................... 28
5.1.1. O princípio da saisina e o momento de abertura da sucessão ............................................ 29
5.1.2. Espécies de Sucessão ........................................................................................................... 30
5.1.3. Vocação hereditária ............................................................................................................. 32
5.1.3.1. Ser vivo ou concebido .................................................................................................. 33
5.1.3.2. Ser capaz de suceder .................................................................................................... 33
5.1.3.3. Ser digno ....................................................................................................................... 34
8
5.1.4. Prole eventual ...................................................................................................................... 35
5.2. A inseminação artificial dentro do direito sucessório ............................................................. 35
5.2.1. Inseminação artificial homóloga ..................................................................................... 36
5.2.2. Inseminação artificial heteróloga .................................................................................... 36
5.2.3. Inseminação artificial homóloga póstuma ...................................................................... 37
6. ASPECTOS DOUTRINÁRIOS SOBRE O DIREITO SUCESSÓRIO DO FILHO CONCEBIDO POR
INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA PÓSTUMA ............................................................................. 38
6.1. Corrente exclusiva ....................................................................................................................... 38
6.2. Corrente inclusiva ........................................................................................................................ 41
7. CONCLUSÃO ....................................................................................................................................... 45
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 48
9
1. INTRODUÇÃO
O presente estudo possui cerne na questão dos direitos sucessórios
garantidos aos filhos concebidos através da inseminação artificial post mortem, isto
é, utilizando-se dos avanços da medicina e da tecnologia em termos de
criopreservação de gametas o que possibilita a utilização de técnicas de reprodução
assistida mesmo que já falecido o doador. Neste caso, iremos analisar a
inseminação artificial homóloga póstuma, que significa que o material utilizado é o
do casal que irá assumir a paternidade e maternidade da criança gerada.
Neste diapasão, o direito das sucessões é a “pedra no sapato” dos
operadores do direito, uma vez que, conforme uma análise perfunctória da situação,
verifica-se que esse filhos, gerados postumamente, não fariam jus à herança de seu
falecido pai, uma vez que sequer estavam concebidos na época da abertura da
sucessão, fugindo totalmente do princípio da saisina, base do direito das sucessões,
e dos arts. 1784 e 1798 do Código Civil.
Entretanto, a doutrina é divergente, pois uma parte dela admite a flexibilização
desse princípio em prol de princípios constitucionais modernos, mormente a
igualdade entre os filhos e a dignidade da pessoa humana.
E essa divergência, somada à falta de regulamentação legislativa sobre o
tema que nos traz questionamentos acerca da capacidade sucessória desses filhos
concebidos postumamente, bem como em que classe de sucessores devem figurar,
legítimos ou testamentários.
O direito, como ciência social aplicada, não pode se colocar à margem dos
problemas que atingem a sociedade, ao contrário, devendo sempre acompanhar
essas mudanças de modo a nunca desamparar questões relevantes como a que se
põe neste estudo, tendo em vista que o direito à herança é garantido
constitucionalmente.
O trabalho se encontra dividido em seis capítulos, buscando a forma mais
didática de abordar o tema, tendo em vista a sua complexidade por conter, também,
expressões de cunho médico-científico.
Por estas razões, o primeiro capítulo trata sobre o instituto da reprodução
artificial como método de procriação medicamente assistido, abordando suas
10
classificações e espécies, bem como a evolução histórica até o caso “Affair
Parpalaix”, paradigma dos estudos acerca da inseminação póstuma.
O segundo capítulo traz um estudo sobre as legislações alienígenas acerca
da inseminação artificial, de modo a construir modelos que possam servir de
comparação ou de inspiração para a situação legislativa atual do Brasil sobre o
tema, que será tratado no capítulo seguinte.
O quinto capítulo trará uma breve introdução ao direito sucessório pátrio,
abordando as suas principais características, de modo a subsidiar a leitura do sexto
e último capítulo que traz as posições doutrinárias sobre o tema da inseminação
póstuma e o direito das sucessões.
11
2. INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL
O capítulo de abertura tratará dos aspectos gerais sobre a inseminação
artificial no cenário atual, tais como suas espécies, conceitos e denominações, bem
como a sua evolução através dos tempos, desde suas técnicas mais rudimentares,
como a descrita no Código de Manu, até o caso “Affair Parpalaix”, limiar das
discussões acerca da inseminação artificial homóloga post mortem.
2.1. Definição de inseminação artificial
A reprodução assistida consiste no auxílio médico à reprodução, utilizando-se
de técnicas que intervêm no ato reprodutivo de maneira a propiciá-la de modo
artificial, dentre elas, a pioneira e mais difundida é a inseminação artificial.
Etimologicamente, a expressão deriva do latim inseminare e artificialis1. A
primeira significa “introduzir uma semente” (prefixo „in‟ anteposto à palavra
„seminare‟) e a segunda, “feito com arte”, ou seja, concepção feita com arte.
O procedimento da inseminação tem início com a coleta do material
fecundante do marido, companheiro ou terceiro doador para a posterior análise
quantitativa e qualitativa dos espermatozoides e, após, a sua criopreservação em
solução específica para ulterior fecundação do gameta feminino, seja in vivo ou in
vitro, conforme explica Eduardo Leite, citado por Lima Júnior:
“Na realização da inseminação artificial, primeiramente recolhem-se os
espermatozóides do marido ou companheiro ou de um doador, através da
mastrubação. Os espermatozóides, então, são analisados quanto à
quantidade e mobilidade, separando-se os normais dos anormais. O
esperma, então, é diluído em uma solução crioprotetora composta por uma
glicerol misturado à frutose, antibióticos e gema de ovo, a qual é distribuída
automaticamente em tubos de plástico numerados, os quais estão prontos
para serem conservados em azoto líquido a uma temperatura de 196 graus
abaixo de zero; os capilares são colocados em botijões de estocagem cheio
1 LIMA JÚNIOR, Daniel Veríssimo de. Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no
âmbito do direito sucessório. 2013. Pág. 5 Disponível em http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj041943.pdf>. Acesso em 12/03/2015.
12
de azoto líquido, podendo ser conservados pelo prazo, atualmente, de 20
anos”2
Com o advento da criopreservação de gametas, através da qual é possível
conservar as propriedades biológicas do material fecundante por longos períodos, a
problemática sobre o direito das sucessões abordada nesta pesquisa se mostra
plenamente factível pois a inseminação post mortem já é uma realidade, tanto é que
possui previsão legal no ordenamento pátrio – ainda que de forma incipiente.
2.2. Classificação das técnicas de inseminação artificial
As técnicas de inseminação artificial podem ser classificadas sob duas
perspectivas: (i) local da fecundação e; (ii) origem dos gametas.
Em relação ao local da fecundação, temos que a mesma pode dar-se in vivo
ou in vitro.
Na fecundação in vivo, a concepção ocorre dentro do corpo da mulher através
da introdução dos gametas masculinos no aparelho reprodutor feminino (vagina,
colo ou útero) e depende do cálculo exato da ovulação para ser bem sucedida.
Já a fecundação in vitro dá-se em laboratório, ou seja, de maneira extra-
uterina. Trata-se de uma técnica mais complexa, pois, além da coleta do material
fecundante masculino, também é necessário coletar o óvulo feminino e realizar o
seu encontro em ambiente controlado. Essa técnica também é conhecida
popularmente como “bebê de proveta”, justamente pelo fato de a concepção ocorrer
dentro de um tubo de ensaio.
No que tange à origem dos gametas, tem-se quatro modalidades: (i)
homóloga, (ii) homóloga post mortem, (iii) heteróloga e; (iv) bisseminal.3
A fecundação artificial homóloga consiste na implantação do material
fecundante do companheiro ou marido no útero da mulher, diferindo-se em relação à
fecundação homóloga post mortem apenas pela época da implantação – esta, após
o falecimento do marido ou companheiro, aquela, em vida.
2 LIMA JÚNIOR, Daniel Veríssimo de. Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no
âmbito do direito sucessório. 2013. Pág. 5 Disponível em http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj041943.pdf>. Acesso em 12/03/2015. 3 LIMA JÚNIOR, Daniel Veríssimo de. Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no
âmbito do direito sucessório. 2013. Pág. 7 Disponível em http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj041943.pdf>. Acesso em 12/03/2015.
13
Já a fecundação artificial heteróloga dá-se com a utilização de material
fecundante de terceiro doador a ser implantado no útero da mulher, cujo marido ou
companheiro será considerado pai da criança que vier a nascer, conforme art. 1597,
V do Código Civil, desde que haja prévio consentimento deste.
O método procriativo artificial bisseminal é empregado em casos específicos
de insuficiência de espermatozoides do marido ou companheiro e, conforme própria
nomenclatura, insemina-se a mulher com uma solução fecundante na qual há o
material do marido ou companheiro e de um terceiro doador com características
semelhantes.4
2.3. Evolução histórica
Os primeiros registros históricos que denotam a busca da humanidade por
uma solução para a incapacidade reprodutiva são da ordem do século XVIII a.C,
com o código de Hamurabi ao tratar do instituto da adoção e, posteriormente, no
século X a.C, o Código de Manu, ao prever a primeira forma de reprodução com o
auxílio de terceiros, na qual o filho gerado não era proveniente do material genético
de um de seus genitores.
A antiga preocupação com a fertilidade humana tem uma explicação religiosa:
nessa época, como a religião era doméstica e acreditava-se que a morte era apenas
uma mudança de plano, era necessário mantê-la para garantir a vida eterna dos
entes que viviam no plano espiritual, logo, uma família sem descendentes estaria
toda fadada à extinção.
O Código de Manu, utilizado pelas antigas civilizações hindus, permitia que,
diante da esterilidade do marido, seu irmão – ou qualquer parente até sexto grau –
fosse incumbido da missão de conseguir-lhe um filho, coabitando com a sua mulher
para tal, sem que se configurasse o crime de adultério. O procedimento era regulado
pelos artigos 59 a 63, do Livro IX:
4 LIMA JÚNIOR, Daniel Veríssimo de. Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no
âmbito do direito sucessório. 2013. Pág. 8 Disponível em http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj041943.pdf>. Acesso em 12/03/2015.
14
Art. 59. Não havendo filhos, a desejada gravidez pode ser obtida pela
coabitação da esposa, convenientemente autorizada, com um irmão, ou
algum outro parente até sexto grau do marido;
Art. 60. Untando com manteiga derretida e em silêncio, o parente
encarregado deste mister reunir-se-á durante a noite com a viúva ou mulher
casada sem filhos e gerará um filho somente, nunca um segundo;
Art. 61. Alguns sábios conhecedores da Lei, depois de estudarem a
questão, entenderam que, se houver necessidade de um segundo filho, ele
poderá ser gerado;
Art. 62. Realizando esta tarefa, as duas pessoas, irmão e cunhada, deverão
portar-se um para o outro com um pai e um enteada;
Art. 63. O irmão, seja mais velho ou mais novo, que, encarregado desta
tarefa, não observar a regra prescrita e somente se satisfizer, ficará
degradado – se é mais velho, como tendo manchado o leito de sua enteada
e, se é mais novo, do seu Guru.5
Como é possível observar, ainda que o auxílio reprodutivo ao casal infértil
fosse prestado através do método primário de reprodução, ou seja, com o ato
sexual, a matéria era suficientemente regulada para a época.
Além de prever o consentimento do marido, através da autorização (art. 59),
as Leis de Manu também trazem previsões sobre o número de gestações
permitidas, o tratamento entre quem auxilia e quem é auxiliado e uma sanção para
quem desrespeita alguma das regras.
Passo contínuo, nas civilizações greco-romanas, onde a filiação se dava,
sobretudo, pela agnação6 (ou cognatio virilis), tem-se o aperfeiçoamento do instituto
da adoção, com estabelecimento da regras tais como a idade mínima de 60 anos
para o adotante e a sua vedação aos que já tivessem filhos naturais, também com a
finalidade de propagar o culto familiar.
5 SCALQUETTE, Ana Cláudia S. Estatuto da reprodução assistida. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 54.
6 A filiação por agnação é mais específica do que a por cognação uma vez que, além de levar em
consideração os laços sanguíneos, significa o parentesco por via estritamente masculina.
15
No entanto, nessa época, conforme os notáveis avanços da humanidade nos
campos da filosofia, política e medicina, a esterilidade e a infertilidade já eram
encaradas como doenças pelo povo grego, sendo natural a busca por uma cura.7
No século IV a.C. surge o primeiro estudo sobre a embriologia humana,
empreendido por Aristóteles, cuja tese era que o feto formava-se através da união
do sêmen masculino e o sangue menstrual, e, após, no século II d.C, Galeno
desenvolve uma obra chamada “Sobre a formação dos fetos” na qual são descritas
as membranas fetais e a placenta.
Com o advento do microscópio, no século XVI, foi possível aprofundar os
estudos sobre o material fecundante masculino e feminino e chegar à conclusão que
o feto forma-se através da fecundação de um óvulo por um espermatozoide.
Em 1777 o fisiologista italiano Lázaro Spallanzani empreendeu os primeiros
experimentos científicos acerca da inseminação artificial, relatados no seu livro
“Dissertations relative to the natural history of animals and vegetable”. Primeiro foram
postos casais de rãs, cujo macho estava equipado com uma espécie de calça feita
de tafetá8, para acasalarem. Nesse experimento observou-se que dos ovos liberados
pela fêmea não se desenvolviam girinos mas, ao uni-los às substâncias retidas no
calção do macho, havia fecundação do ovo.9
O segundo experimento foi feito com mamíferos. Ao extrair sêmen de um cão,
Spallanzani o introduziu com uma seringa dentro aparelho reprodutor de uma cadela
que se encontrava no cio e, dois meses depois, nasceram filhotes com
características semelhantes às do macho.
Contudo, apenas com o advento da criopreservação de espermatozoides, em
1945, que foi possível realizar a inseminação artificial em seres humanos (in vivo),
técnica que se tornou muito popular nos Estados Unidos, onde, na década de 1950,
cerca de vinte mil crianças nasciam por ano através desse método.
7 LIMA JÚNIOR, Daniel Veríssimo de. Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no
âmbito do direito sucessório. 2013. Pág. 7 Disponível em http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj041943.pdf>. Acesso em 12/03/2015. 8 Tecido fino e acetinado feito de seda cuja principal característica é a resistência à químicos.
9 MONTANARI, Tatiana. Disponível em<http://www.ufrgs.br/auladeembrio/ppts/hist%C3%B3rico.pdf>.
Acesso em 18/04/2015.
16
Já a técnica de reprodução assistida in vitro ganha notoriedade com o
nascimento da menina Lousie Brown, na Inglaterra, ano de 1978, como o primeiro
bebê de proveta do mundo.
No Brasil, conforme anota Ana Cláudia S. Scalquette, o primeiro bebê de
proveta nasceu em 1984, Anna Paula Caldeira.10
Conforme o exposto, após os experimentos de Spallanzani, os avanços na
seara da reprodução assistida foram galopantes, de modo que em menos de 200
anos já era possível aplicar a técnica em escala mundial, favorecendo milhares de
casais que tinham um projeto parental definido, mas sofriam com a esterilidade.
2.4. Início das discussões acerca da inseminação artificial homóloga post
mortem: o caso francês “Affair Parpalaix”
Conforme anota Carlos Alberto Ferreira Pinto, o romance protagonizado pelo
casal francês Allain Parpalaix e Corine Richard, em 1984, foi o “marco inicial das
discussões sobre a inseminação artificial homóloga post mortem”.11
Poucas semanas após o início do relacionamento, Allain descobriu estar
acometido de um grave câncer nos testículos, cujo tratamento poderia deixá-lo
estéril, caso sobrevivesse. Como desejava formar uma família com Corine e diante
desse iminente risco, antes de iniciar o tratamento, procurou um banco de sêmen e
lá depositou seu material fecundante.
Com o rápido avanço da doença e diante das poucas possibilidades de cura,
o casal contraiu núpcias às pressas, quase em previsão à morte de Allain dois dias
depois.
Em decorrência da morte e diante do desejo incontido de ter um filho de seu
amado, Corine procura o banco de sêmen para se submeter à inseminação artificial,
o que é negado pelo banco, sob a justificativa de não haver previsão para esta
prática (na modalidade homóloga post mortem) na legislação francesa.
Tem início, então, uma longa batalha judicial entre Corine e o banco de
sêmen. O tribunal francês entendeu que, por conta do contrato de depósito, o banco
10
SCALQUETTE, Ana Cláudia S. Estatuto da reprodução assistida. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 91. 11
PINTO, Carlos Alberto Ferreira. Reprodução assistida: inseminação artificial homóloga post mortem e o direito sucessório. Disponível em <http://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/879805>. Acesso em 15/04/2015.
17
era obrigado a restituir o material depositado. Entretanto, o banco alegava que não
havia pacto de entrega de material de pessoa falecida.
Ao final, o tribunal da cidade de Créteil decidiu condenar o banco de sêmen a
a entregar o material de Allain para Corine, para que a viúva o levasse a médico de
sua confiança a fim de realizar a inseminação. No entanto, pelo longo tempo de
discussões judiciais, o material estava inutilizável, o que levou ao fracasso da
técnica e eterna frustração de Corine.
Foi a partir desse caso e dos seus desdobramentos que se iniciaram as
discussões acerca do destino do material criopreservado e da possibilidade de sua
utilização para inseminação homóloga post mortem. Nesta oportunidade, em que
pese a ciência jurídica carecer da rapidez da ciência médica para regular as
situações que desta se originam, vários países já elaboraram legislações sobre o
tema.
No caso particular do Brasil, apesar da previsão da técnica no art. 1597, III do
Código Civil em relação à presunção de paternidade, o legislador é omisso em
relação aos direitos sucessórios e acerca das condições para utilização da referida
técnica.
18
3. O TRATAMENTO DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA NO DIREITO ESTRANGEIRO
Neste capítulo serão estudadas as legislações específicas sobre reprodução
assistida elaboradas por países que tiveram de enfrentar a questão da inseminação
artificial póstuma, na medida em que poderão contribuir com a regulação da matéria
no caso brasileiro.
3.1. Portugal
Em Portugal a regulação do tema se dá pela Lei nº 32 de 11 de julho de 2006,
que tem por objetivo normatizar a utilização das técnicas de reprodução assistida
como um todo, sendo a inseminação artificial homóloga post mortem uma de suas
ramificações.
A lei portuguesa é bastante completa e trata, também, de temas como a
maternidade de substituição, destino dos embriões excedentários, clonagem,
eugenia e, inclusive, prevê sanções que vão desde a multa à reclusão de quem não
cumprir o estabelecido em seus artigos.
Em relação ao objeto deste estudo, deve-se destacar os artigos 3º, 4º, 22 e
23 da referida lei.
O artigo 3º traz a garantia do respeito à dignidade da pessoa humana, tanto
de quem faz uso da técnica de reprodução assistida quanto da pessoa gerada
através da mesma, bem como, em relação à última, da proibição da sua
discriminação em relação à sua origem genética, in verbis:
Art. 3º: As técnicas de PMA (procriação medicamente assistida) devem
respeitar a dignidade humana, sendo proibida a discriminação com base no
patrimônio genético ou no fato de se ter nascido em resultado da utilização
de técnicas de PMA.
Não vacila a legislação portuguesa ao tratar do tema da discriminação, ainda
que inédito, pode vir a ser realidade, uma vez que, outrora, o filho ilegítimo,
conhecido como “bastardo”, em razão de ter sido concebido fora do casamento, e o
19
adotado, em razão de ter sido abandonado e não ser filho biológico, já foram alvo de
preconceito social12.
O artigo 4º estabelece que o tratamento de procriação assistida é admitido
apenas em caso de infertilidade, tratamento de doença grave ou de transmissão de
doenças, dentre outras, as de origem genética ou infecciosa, vedando a sua
utilização ao bel prazer de quem lhe possa arcar, em privilégio da reprodução pela
via natural.
A inseminação póstuma é tratada no artigo 22 da lei portuguesa, cujo
legislador optou por proibi-la, ainda que haja prévio consentimento do marido ou
companheiro, abrindo-se uma única exceção quando houver projeto parental
estabelecido por escrito antes do falecimento do mesmo.
Vale salientar que a lei portuguesa, com o intuito de proteger os interesses da
criança, não tornando incerta a sua paternidade, estabelece no seu art. 23 que, em
caso de violação da norma e realização da inseminação póstuma, deverá ser
atribuída a paternidade ao falecido, exceto se, à data da inseminação a mulher tiver
contraído novas núpcias ou se encontrar vivendo em união estável há, pelo menos,
dois anos com homem que haja consentido com o procedimento, hipótese em que
ele será considerado pai.13
3.2. Espanha
No território espanhol foi editada a Lei nº 14, de 26 de maio de 2006, que
regula a aplicação das técnicas de reprodução assistida e, assim como a lei
portuguesa, também dispõe sobre clonagem, cessão temporária de útero e eugenia
– proibindo-os.
Merecem destaque os artigos 3º e 7º do diploma espanhol, ao tratarem sobre
o consentimento expresso e a inscrição no Registro Civil de filhos havidos por meio
de técnicas de PMA.
12
SCALQUETTE, Ana Cláudia S. Estatuto da reprodução assistida. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 246. 13
LIMA JÚNIOR, Daniel Veríssimo de. Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no âmbito do direito sucessório. 2013. Pág. 40 Disponível em <http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj041943.pdf>. Acesso em 12/03/2015.
20
O artigo 3º assevera que a aceitação das técnicas será explicitada em um
formulário de consentimento informado em que se fará menção expressa de todas
as condições concretas de cada caso em que se decida pela sua aplicação.14
Assim como legislação portuguesa, a Lei espanhola nº 14 também traz a
preocupação com uma possível discriminação que possa vir a ser sofrida por
pessoas que nasceram em decorrência das técnicas de PMA.
O artigo 7º traz que, em relação aos filhos, a inscrição do Registro Civil, em
nenhum caso, refletirá dados dos quais se possa inferir o caráter de concepção
artificial.15
A inseminação artificial póstuma está prevista no art. 9º da lei espanhola que,
a priori, lhe dispende tratamento restritivo, a não ser que, em vida, o extinto preste
consentimento expresso e o seu material seja utilizado em até doze meses após o
falecimento.
Maricruz Vargas, citada por Ana Cláudia S. Scalquette, comenta:
“O elemento determinante para estabelecer a filiação dos filhos nascidos
por este tipo de fecundação é o consentimento prestado pelo marido ou
companheiro em testamento ou escritura pública, para que se fecunde seu
cônjuge ou companheira depois de sua morte, dentro de certos prazo
determinados expressamente.”16
Logo, tem-se que a chave para a atribuição e reconhecimento da filiação, e
dos direitos que dela decorrem, está no consentimento expresso deixado pelo
falecido em relação ao desejo de que um filho fosse gerado após a sua morte17
3.3. Itália
14
SCALQUETTE, Ana Cláudia S. Estatuto da reprodução assistida. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 255. 15
SCALQUETTE, Ana Cláudia S. Estatuto da reprodução assistida. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 246. 16
VARGAS, Maricruz Gomes de La Torre apud SCALQUETTE, Ana Cláudia S. in Estatuto da Reprodução Assistida, São Paulo, Saraiva, 2010, p. 258. “El elemento determinante para estabelecer la filiación de los hijos por este tipo de fecundación es el consentimento prestado por el marido ovarón de la pareja em escritura pública o testamento, para que se fecunde a su cónyuge o mujer – sea por inseminación artificial o transferência de embrión formado com su semen – después de su muerte, dentro ciertos plazos señalados expresamente”. 17
SCALQUETTE, Ana Cláudia S. Estatuto da reprodução assistida. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 258.
21
A Itália, em que pese possuir a legislação mais restritiva dentre as analisadas
neste estudo, segue a linha de garantir a inviolabilidade do direito de todos os
envolvidos no procedimento. O artigo 1º da Lei 40 de 19 de fevereiro de 2004 assim
estabelece:
“Com o fim de favorecer a solução dos problemas reprodutivos diante da
esterilidade ou da infertilidade humana é permitido o recurso à procriação
medicamente assistida, pelas condições e segundo as modalidades
previstas na presente lei, que assegura os direitos de todos os sujeitos
envolvidos, incluindo o concebido”18
Em seu artigo 5º, a legislação italiana limita o acesso às técnicas de
reprodução assistida aos casais casados ou conviventes, de sexos diversos, em
idade fértil, proibindo expressamente a modalidade heteróloga do método – sob
pena de sanção pecuniária que varia de cinco a seiscentos mil euros.
A legislação italiana é omissa em relação à inseminação póstuma, no entanto,
permite a criopreservação de gametas, o que abre margem para a discussão quanto
ao seu uso após a morte de um dos possíveis genitores.
3.4. Reino Unido
No Reino Unido a regulação da inseminação artificial se dá através do Human
Fertilization and Embryology Act de 1990, e trata de matérias como a doação de
material fecundante, armazenagem de óvulos espermas e embriões e a pesquisa
com células-tronco embrionárias.19
Bem como as legislações anteriormente analisadas, o Act britânico dota de
grande importância o consentimento (art. 3º), tanto anterior à utilização das técnicas
de reprodução assistida, onde o médico deverá informar ao paciente todas as
18
“Al fine di favorire la soluzione dei problemi riproduttivi derivanti dalla sterilità o dall infertilità umana è consentio il ricorso alla procreazione medicalmente assistida, alle condizione e secondo le modalità previste dalla presente legge, che assicura i diritti di tutti i soggetti coinvolti, compreso il conceptio.” 19
SCALQUETTE, Ana Cláudia S. Estatuto da reprodução assistida. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 277.
22
informações relevantes acerca de sua aplicação, bem como aconselhá-lo; quanto
posteriormente à sua aplicação, em relação ao destino de seu material genético.
Quando o consentimento for para o armazenamento, deverá especificar o
período máximo de armazenamento e declarar o que deverá ser feito com os
gametas ou embrião se a pessoa que deu o consentimento falecer ou se tornar
incapaz.
Anota Daniel Veríssimo de Lima Júnior que, para os ingleses, em que pese a
inseminação póstuma ser permitida pela legislação, não se vislumbra a proteção ao
direito sucessório da criança gerada através desta técnica, salvo disposição
expressa em testamento.20
3.5. Estados Unidos
Os Estados Unidos, conforme já visto no capítulo de abertura deste estudo,
foram os pioneiros em relação à utilização de técnicas de reprodução assistida em
larga escala desde a década de 1950, o que os torna o país com maior produção
legislativa e jurisprudencial sobre o tema.
No entanto, por ser um país cuja tradição jurídica é a da Common Law, e pelo
fato de cada Estado poder prever suas próprias regras, a maior característica é a de
não haver, por vezes, coincidência na disciplina legal conferida21, sendo certo que,
atualmente, mais de 30 Estados americanos possuem disposições próprias acerca
da reprodução assistida homóloga e heteróloga.22
Contudo, no ano 2000 houve a promulgação do Uniform Parentage Act, onde
há manifestação expressa que todos os Acts anteriores que cuidem sobre filiação e
parentesco deveriam ser desconsiderados, sendo ele o único reconhecido para
tratar do assunto.23
20
LIMA JÚNIOR, Daniel Veríssimo de. Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no âmbito do direito sucessório. 2013. Pág. 39 Disponível em <http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj041943.pdf>. Acesso em 12/03/2015. 21
SCALQUETTE, Ana Cláudia S. Estatuto da reprodução assistida. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 282. 22
LIMA JÚNIOR, Daniel Veríssimo de. Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no âmbito do direito sucessório. 2013. Pág. 39 Disponível em <http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj041943.pdf>. Acesso em 12/03/2015. 23
SCALQUETTE, Ana Cláudia S. Estatuto da reprodução assistida. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 282.
23
O art. 7º do referido diploma trata especificamente da reprodução assistida,
sendo sua principal preocupação a organização de regras relativas à filiação, cujo
principal parâmetro será a existência ou não de consentimento de um ou ambos os
interessados no uso da técnica de PMA.
O diploma não olvida regular a inseminação homóloga póstuma,
estabelecendo que não basta o consentimento do marido ou companheiro para a
utilização da técnica, mas sim um consentimento específico expresso acerca do uso
de seu material fecundante após a sua morte.
3.6. Conclusão
Conforme o exposto, é perceptível que, mesmo em países cuja cultura
jurídica seja mais experiente e sólida que a brasileira, a matéria da reprodução
assistida, que inclui a modalidade de inseminação artificial, inspira as mais diversas
regulamentações, cada qual com suas peculiaridades, umas mais abrangentes que
outras.
No que tange à inseminação artificial póstuma, observa-se uma padrão
adotado pelas legislações analisadas: a priori, a restrição mas, caso haja expresso
consentimento ou projeto parental, é permitida.
O consentimento expresso é o ponto nevrálgico de todas as legislações
estudadas, uma vez que, sem ele, a utilização da técnica é expressamente vedada.
Em relação ao direito sucessório dos filhos havidos pelo emprego dessa
técnica na modalidade póstuma, as legislações vacilam em regulamentá-lo e,
quando o fazem, como é o caso do Act britânico, se limitam a estabelecê-los
conforme a disposição de última vontade do extinto.
Contudo, cabe ressaltar que, diferentemente do Brasil, a elaboração de
testamentos, isto é, a cultura de se programar para a morte é comum nos países da
Europa e América do Norte, cujas legislações foram analisada neste capítulo, logo, a
garantia que se faz à criança fruto da inseminação post mortem acerca de seus
direitos sucessórios apenas se assim constar em testamento, pode ser o suficiente.
No caso brasileiro, a legislação vindoura, caso o legislador opte por
regulamentar a reprodução assistida póstuma, deverá garantir ao filho gerado status
24
de herdeiro necessário, uma vez que a sucessão testamentária é prevista pelo
Código Civil mas de aplicação em raríssimos casos.
25
4. PANORAMA ATUAL DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE A
REPRODUÇÃO ASSISTIDA
No presente capítulo, em continuidade à análise comparativa das disposições
legais estrangeiras sobre a inseminação artificial homóloga póstuma, será realizada
uma explanação acerca do momento atual da legislação brasileira em relação ao
tema de estudo.
4.1. Disposições no Código Civil de 2002
O Código Civil atual possui muito pouco sobre as técnicas de reprodução
medicamente assistida, mormente sobre a sua aplicação póstuma.
Para Sílvio de Salvo Venosa, o “Código Civil não regulamenta nem autoriza a
reprodução assistida, mas apenas constata a existência da problemática e procura
dar solução à questão da paternidade”.24
O artigo 1597 é o único que trata especificamente do tema, que se encontra
no capítulo de filiação, in verbis:
Art. 1597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
...
III – havidos por inseminação artificial homóloga, mesmo que falecido o
marido.
Apesar de ser inegável o avanço que o referido artigo traz na seara da
filiação, o legislador silenciou acerca dos direitos sucessórios, chamando a doutrina
ao debate para decifrar se esse filho gerado seria, de fato, herdeiro do de cujus. E,
se o é, em que tipo de herdeiro se encaixaria: legítimo ou testamentário.
4.2. A Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina
A Resolução nº 1358/92 do CFM é o único regramento que dispõe sobre a
reprodução assistida, ainda que dotado unicamente de cunho deontológico, isto é,
24
VENOSA, Sílvio de Salvo apud PISETTA, Francieli. Reprodução assistida homóloga post mortem: aspectos jurídicos sobre a filiação e o direito sucessório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 107.
26
uma norma que não possui caráter coercitivo uma vez que serve apenas de
parâmetro ético para os profissionais da medicina que trabalham com essa técnica.
Em que pese não inovar na ordem jurídica, a referida resolução, editada em
1992, é pioneira, em relação às legislações alienígenas trazidas no capítulo anterior,
ao determinar, na alínea 3 da seção I25, a obrigatoriedade do consentimento
informado por parte dos pacientes que fariam uso da técnica, ou seja, aqueles
pacientes que não assinarem o termo de consentimento estariam impedidos de
tratar-se com técnicas de reprodução assistida.
4.3. Projeto de lei nº 1184/2003
Apesar de não haver, ainda, a esperada regulamentação, há de se
reconhecer que a possível legislação vindoura acerca da reprodução assistida já
está em trâmite no Congresso Nacional.
Trata-se do Projeto de Lei 1184/2003, de autoria do Senado Federal e,
conforme Lima Júnior, apensou mais de 10 projetos de lei acerca do tema26 e se
encontra, desde 2011, aguardando o parecer do Deputado João Campos (PSDB-
GO) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
O projeto de lei em comento, seguindo a tendência das legislações
estrangeiras, também trata sobre a prática da clonagem (art. 25) e da barriga de
aluguel (art. 3º) – proibindo-as –, bem como positiva a obrigatoriedade do termo de
consentimento informado, o qual, dentre outras informações de ordem médica e
jurídica, deverá esclarecer as condições em que o doador ou depositante autoriza o
uso dos seus gametas, inclusive após a sua morte (art. 4º VII).
Entretanto, no que importa ao uso das técnicas de reprodução assistida a
futura legislação ser bem sucedida, permanece a lacuna em relação aos direitos
sucessórios, que não é abordado pelo referido projeto de lei.
25
BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.358, de 19 de novembro de 1992. Disponível em http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1992/1358_1992.htm. Acesso em 10/05/2015. 26
LIMA JÚNIOR, Daniel Veríssimo de. Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no âmbito do direito sucessório. 2013. Pág. 30 Disponível em <http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj041943.pdf>. Acesso em 12/03/2015
27
4.4. Conclusão
Conforme visto, o legislador civil optou, claramente, por abrir mão de regular o
uso das técnicas de reprodução assistida e suas consequências legais e deixá-lo a
cargo de uma legislação específica.
A Resolução nº 1358/92 do CFM não possui o condão de inovar na ordem
jurídica – e nem poderia – se limitando a estabelecer regras para a aplicação das
técnicas de reprodução assistida, dentre as quais a obrigatoriedade do termo de
consentimento informado.
Ao dispor de maneira insuficiente sobre o tema, especificamente em relação à
inseminação artificial póstuma – modalidade a qual o legislador apenas constata a
existência –, reconhecendo somente o direito de filiação e não dispondo sobre o
direito sucessório, o legislador criou uma situação de enorme insegurança a ser
preenchida pela doutrina e pela jurisprudência enquanto não vier a aguardada
regulamentação – e o projeto de lei 1184/2003, que está mais próximo de se tornar a
lei de referência em se tratando de reprodução assistida, não trata sobre os direitos
sucessório do filho gerado postumamente, ou seja, mesmo com a sanção desta lei,
permaneceria a lacuna.
No entanto, deixar tal questão a cargo das nuances de cada doutrinador ou
juiz não extingue a insegurança que as diversas interpretações podem trazer ao
caso concreto.
28
5. A PROBLEMÁTICA SOBRE O DIREITO SUCESSÓRIO NO CONTEXTO DA
INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL POST MORTEM
Neste capítulo serão abordados os aspectos do direito sucessório, dispostos
na legislação brasileira, como as espécies de sucessão e a capacidade sucessória,
de modo a relacioná-los com a problemática do filho gerado após a morte do pai,
autor da herança, de modo a introduzir o tema ao próximo capítulo, onde serão
trazidas as correntes doutrinárias que buscam solucionar a questão.
5.1. O direito das sucessões no ordenamento jurídico brasileiro
O direito sucessório é o ramo do direito civil que trata sobre a transferência de
bens, direitos e obrigações de uma pessoa para outra por conta da morte de uma
delas, e encontra previsão legal no Livro V do Código Civil entre os arts. 1784 e
2046, último artigo do referido diploma, sendo o direito à herança, também,
garantido constitucionalmente no art. 5º, XXX da Constituição Federal.
Eduardo de Oliveira Leite, citado por Francieli Pisetta explica que a sucessão
estudada no âmbito do direito é, justamente, a causa mortis, isto é, em seu sentido
estrito, uma vez que a sucessão, em sentido lato, também pode se dar entre vivos:
“A palavra “sucessão”, na técnica jurídica, possui vários significados. No
sentido amplo, suceder a uma pessoa significa vir depois dela, tomar o seu
lugar, assumindo todo ou parte dos direitos que lhe pertencem. É nesse
sentido, por exemplo, que se aplica o vocábulo na sucessão inter vivos, por
meio da qual o comprador sucede ao vendedor, ou o donatário ao doador.
No sentido restrito, que é empregado pelo legislador, a palavra sucessão
designa a transmissão de bens de uma pessoa em virtude de sua morte.
Isto é, transmissão causa mortis. A sucessão implica na transmissão do
patrimônio de uma pessoa falecida a uma ou outras pessoas.”27
27
LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito das sucessões: arts. 184 a 2027. Comentários ao novo código civil. apud PISETTA, Francieli. Reprodução assistida homóloga post mortem, aspectos jurídicos sobre a filiação e o direito sucessório. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2014. p. 100
29
Destarte, o direito das sucessões é o ramo, ao qual, em decorrência da morte
do autor da herança, cabe a responsabilidade pela transferência do patrimônio ativo
e passivo, bem como de direitos e obrigações do de cujus, a seus sucessores.28
5.1.1. O princípio da saisina e o momento de abertura da sucessão
O princípio da saisina – assim traduzido por Pontes de Miranda29 do francês
droit de saisine – é o princípio base de todo o ordenamento jurídico relacionado à
sucessão, o qual estabelece que a herança se transfere imediatamente aos
sucessores do de cujus no momento da morte deste.
Tal princípio encontra-se positivado no art. 1784 do Código Civil, ao asseverar
que “aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos
e testamentários”.
Maria Helena Diniz, citada por Pisetta, discorre sobre o princípio supra
mencionado:
“O princípio da saisine, introduzido no direito português pelo Alvará de 1745,
donde passou para o direito das sucessões pátrio, determina que a
transmissão do domínio de da posse da herança se dê no momento da
morte do de cujus independente de quaisquer formalidades”30
Também leciona sobre a saisina Washington de Barros Monteiro31:
“A existência da pessoa natural termina com a morte. Verificado esse
evento, abre-se a sucessão. Desde o óbito, sem solução de continuidade,
opera-se a transmissão da herança, ainda que os herdeiros ignorem o fato
28
LIMA JÚNIOR, Daniel Veríssimo de. Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no âmbito do direito sucessório. 2013. Pág. 26 Disponível em <http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj041943.pdf>. Acesso em 12/03/2015. 29
CARVALHO, Luís Camargo Pinto. Saisine e Astreinte. Disponível em http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/25222-25224-1-PB.html> . Acesso em 18/06/2015. 30
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. apud PISETTA, Francieli. Reprodução assistida homóloga post mortem, aspectos jurídicos sobre a filiação e o direito sucessório. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2014. p. 105 31
MONTEIRO, Washington de Barros. Direito das Sucessões. apud CARVALHO, Luís Camargo Pinto. Saisine e Astreinte. Disponível em < http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/25222-25224-1-PB.html> . Acesso em 18/06/2015.
30
do falecimento. Antes da morte, o titular da relação jurídica é o de cujus;
depois dela passa a ser o herdeiro, legítimo ou testamentário. E é o próprio
defunto que investe o sucessor no domínio e posse dos bens hereditários.
Esse princípio vem expresso na regra tradicional do direito gaulês le mort
saisit le vif. Quer dizer, instantaneamente, independente de qualquer
formalidade, logo que se abre a sucessão investe-se o herdeiro no domínio
e posse dos bens constantes do acervo hereditário”.
A importância deste princípio se explica pela segurança jurídica, outro
princípio basilar, não só para a seara das sucessões, mas para todo o ordenamento
jurídico, uma vez que não se admite a hipótese da res nullius, ou seja, “coisa de
ninguém”.32
Afastando-se a saisina teríamos que os bens, direitos e obrigações do de
cujus ficariam sem titular até que formalizada a partilha dos mesmos, o que geraria
demasiada insegurança para os então participantes de negócios jurídicos com o
falecido.
5.1.2. Espécies de sucessão
As espécies de sucessão trazidas pelo artigo 1786 do diploma civil são duas,
a saber, a legítima, que decorre por força da lei, e a testamentária, decorrente da
disposição de última vontade do de cujus, não havendo óbice para uma sucessão
mista, isto é, na qual conjugam-se, ao mesmo tempo, as duas espécies supra
mencionadas.
A sucessão legítima, ou ab intestato, baseia-se no clássico pensamento de
que o patrimônio deve se transferir dentro da própria família, os chamados herdeiros
legítimos, estabelecidos no rol preferencial do art. 1829 do Código Civil.
Vale ressaltar que os herdeiros legítimos se subdividem em necessários, que
são os ascendentes, descendentes e cônjuges, e facultativos, que, conforme o novo
Código Civil, são apenas os colaterais até 4º grau.
Tal diferenciação se mostra necessária uma vez que, de acordo com o art.
1850, os colaterais, ainda que herdeiros legítimos, podem ser excluídos da sucessão
se o de cujus dispuser de seu patrimônio em testamento e não os contemplar.
32
PISETTA, Francieli. Reprodução assistida homóloga post mortem, aspectos jurídicos sobre a filiação e o direito sucessório. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2014. p. 107
31
Eduardo de Oliveira Leite fundamenta a sucessão legítima da seguinte forma:
“Sucessão Legítima é a que, na falta de disposição testamentária do de
cujus, a lei defere aos seus parentes, reforçando o vínculo familiar e
atendendo à vontade presumida do defunto. O seu fundamento maior
continua sendo a preocupação social com a unidade a solidariedade da
família.”
“A sucessão legítima baseia-se, pois, no vínculo de família, de sangue e de
afinidade. E verifica-se quando existem herdeiros legítimos (necessários ou
facultativos), quando não há disposição testamentária.”33
Entretanto, data vênia ao disposto pelo ilustre jurista, a não existência de
disposição de última vontade não é condição para a ocorrência da sucessão
legítima, tendo em vista que ambas podem ocorrer concomitantemente.
A sucessão testamentária, por sua vez, é aquela que ocorre por disposição de
última vontade de uma pessoa para depois de sua morte. Zeno Veloso elucida a
questão:
“A sucessão testamentária (que, em última análise, também é prevista em
lei e nesse sentido é igualmente legítima) toma por base as disposições de
última vontade feitas em testamento pelo autor da herança. Não é,
exatamente, como alguns dizem, a vontade de um morto que se vai cumprir.
Morto não tem vontade. Trata-se da vontade de um vivo, para depois de sua
morte. A vontade foi do vivo, os efeitos ocorrem com o falecimento dele.”34
Conforme exposto alhures, a existência de herdeiros legítimos não impede a
disposição testamentária, tampouco esta condição impede que o autor da herança
teste em favor de um dos herdeiros legítimos, aumentando o seu quinhão em
relação aos demais.
Esta prática, que não encontra vedação no ordenamento jurídico, visa abarcar
o princípio da predileção, através do qual se reconhece que o autor da herança,
33
LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito das sucessões: arts. 184 a 2027. Comentários ao novo código civil. apud PISETTA, Francieli. Reprodução assistida homóloga post mortem, aspectos jurídicos sobre a filiação e o direito sucessório. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2014. p. 103 34
VELOSO, Zeno. Testamentos – noções gerais; formas ordinárias; codicilo; formas especiais. apud PISETTA, Francieli. Reprodução assistida homóloga post mortem, aspectos jurídicos sobre a filiação e o direito sucessório. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2014. p. 104
32
ainda que deseje a transmissão de seu patrimônio dentro de sua própria família,
pode, em ato discricionário, possuir preferência por um de seus herdeiros legítimos
em detrimento de outros, conforme inteligência do art. 1849 do novel civil.
O autor da herança pode, conforme disposição do art. 1846 do Código Civil,
caso haja herdeiros legítimos necessários, dispor de até metade de seu patrimônio
no testamento. É a chamada quota disponível.
Caso o testador não possua nenhum herdeiro legítimo necessário, pode
dispor livremente de seu patrimônio no testamento.
Sobre o tema, dispõe Carlos Roberto Gonçalves:
“A meação do falecido, havendo herdeiros necessários, é dividida em
legítima e metade disponível. A legítima, nesse caso, corresponde a ¼ do
patrimônio do casal, ou a metade da meação do testador. Dela o herdeiro
necessário não pode ser privado, pois é herdeiro imposto por lei. A legítima,
ou reserva, vem a ser, pois, a porção de bens que a lei assegura a ele. Por
outro lado, a porção ou quota disponível, constitui a parte dos bens de que o
testador pode dispor livremente, ainda que tenha herdeiros necessários.”35
Ainda dentro da sucessão testamentária há os legatários, que são os
instituídos por testamento para receber determinado bem, certo e individualizado, a
título singular, podendo, também, coincidir com a pessoa do herdeiro testamentário
ou legítimo.
5.1.3. Vocação hereditária
A vocação hereditária, também chamada de capacidade sucessória passiva,
está disposta entre os artigos 1798 e 1803 do Código Civil, e estabelece requisitos
que devem ser observados com relação aos herdeiros no momento da abertura da
sucessão.
35
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol: 7. Direito das Sucessões. In: IBELLI, Paula. Restrição à liberdade de testar. Disponível em < http://www.viajus.com.br/viajus.php?pagina=artigos&id=2518&idAreaSel=1&seeArt=yes>. Acesso em 19/06/2015.
33
Heloísa Helena Barboza assevera que há três condições para que o sucessor
possa receber a herança, a saber, “ser vivo ou concebido, capaz [de suceder] e
digno”.36
Partiremos à analise de cada uma dessas condições.
5.1.3.1. Ser vivo ou concebido
Ser vivo ou estar concebido no momento da morte do autor da herança é uma
condição que decorre da expressa inteligência do art. 1798 do Código Civil, ao
dispor que “legitimam-se para suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no
momento da abertura da sucessão”, e de sua conjugação com o art. 2º do mesmo
diploma, ao prescrever que “a personalidade civil da pessoa começa com o
nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direito dos
nascituro.”
Perceptível é a preocupação do legislador com aquele que não é nascido à
época do falecimento do autor da herança, mas na iminência de nascer, posto que
vivo (concebido) no ventre materno.
Em relação ao tema, o Conselho da Justiça Federal, na III Jornada de Direito
Civil, aprovou o Enunciado 267 que diz:
“Enunciado 267/CJF. Art. 1798. A regra do art. 1798 do Código Civil deve
ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de
reprodução assistida, abrangendo, assim a vocação hereditária da pessoa
humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras
previstas para a petição de herança” (sem grifos no original)37
Logo, a regra do art. 1798 do CC deve ser interpretado de forma ainda mais
abrangente, estendendo-se seus efeitos aos embriões concebidos em laboratório e
36
BARBOZA, Heloísa Helena. A filiação em face da inseminação artificial e fertilização in vitro. apud PISETTA, Francieli. Reprodução assistida homóloga post mortem, aspectos jurídicos sobre a filiação e o direito sucessório. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2014. p. 109 37
BRASIL. Conselho da Justiça Federal. III Jornada de Direito Civil. Disponível em <file:///C:/Users/Almeida%20Lima/Downloads/III%20JORNADA%20DE%20DIREITO%20CIVIL%202013%20ENUNCIADOS%20APROVADOS%20DE%20NS.%20138%20A%20271.pdf>. Acessado em 19/06/2015.
34
não apenas no ventre materno, devendo, também, ser-lhes reconhecida a vocação
hereditária.
5.1.3.2. Ser capaz de suceder
Importante salientar que a capacidade civil e a capacidade de suceder são
dois institutos que não devem ser confundidos, conforme explica Maria Helena Diniz:
“A capacidade civil é a aptidão que se tem uma pessoa para exercer, por si,
os atos da vida civil; é o poder de ação no mundo jurídico. A legitimação ou
capacidade sucessória é a aptidão da pessoa para receber os bens deixados
pelo de cujus, ou melhor, é a qualidade virtual de suceder na herança deixada
pelo de cujus. P. ex., uma pessoa pode ser incapaz para praticar os atos da
vida civil e ter capacidade de suceder; igualmente, alguém pode ser incapaz
de suceder, apesar de gozar de plena capacidade civil, como ocorre com o
indigno de suceder, que não sofre nenhuma diminuição na sua capacidade
para os atos na vida civil, mas não a tem para herdar (...)”38
Logo, a capacidade de suceder difere da capacidade civil uma vez que o
incapaz pode ser capaz de suceder, caso preencha os outros requisitos (vivo e
digno), e uma pessoa plenamente capaz pode não a ter por ser indigna.
5.1.3.3. Ser digno
Ser digno em relação ao autor da herança significa que, durante a vida, o
herdeiro há de tê-lo tratado com respeito, honra e afeto, os quais resumem os bons
sentimentos que uma relação próxima, seja familiar ou não, pode proporcionar.
Ao contrário, o indigno, aquele que tenha praticado atos ofensivos e
criminosos contra a pessoa do autor, deve ser afastado da vocação hereditária.
Sílvio de Salvo Venosa pontifica sobre a dignidade no direito sucessório:
“A vocação hereditária nascida no parentesco ou da vontade (legítima ou
testamentária) supõe uma relação de afeto, consideração e solidariedade
38
DINIZA, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. Apud PISETTA, Francieli. Reprodução assistida homóloga post mortem, aspectos jurídicos sobre a filiação e o direito sucessório. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2014. p. 110
35
entre o autor da herança e o sucessor. No entanto, o sucessor, chamado
pela ordem de vocação hereditária, pode praticar atos indignos dessa
condição de afeto e solidariedade humana. É moral e lógico que quem
pratica atos de desdouro contra quem lhe vai transmitir uma herança torna-
se indigno de recebê-la, Daí por que a lei traz descritos os casos de
indignidade, isto é, fatos típicos que, se praticados, excluem o herdeiro da
herança.”39
A saber, os casos de indignidade estão previstos no art. 1814 do Código Civil
e, diante de sua gravidade, uma vez que excluem o sucessor da herança, não
podem ser, simplesmente, alegadas ao livre arbítrio de qualquer interessado, sendo
a sua comprovação feita por ação judicial, conforme inteligência do art. 1815, o qual
traz que “a exclusão do herdeiro ou legatário em qualquer desses casos de
indignidade será declarada por sentença”.
5.1.4. Prole eventual
O instituto da prole eventual está previsto no art. 1799, I do Código Civil e
prevê que, na sucessão testamentária, podem ser chamados a suceder os filhos,
ainda não concebidos, de pessoas vivas no momento da abertura da sucessão.
Desse modo, se o herdeiro esperado nascer com vida, ser-lhe-á deferida a
sucessão, com os frutos e rendimentos referentes a sua deixa, a partir do
falecimento do testador.
Entretanto, em prol do princípio da segurança jurídica, o legislador entendeu
por bem determinar um limite temporal para que ocorra a concepção, estabelecendo
no parágrafo 4º do art. 1800 do Código Civil que “se decorridos dois anos após a
abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados,
salvo disposição em contrário, caberão aos herdeiros legítimos.”
5.2. A inseminação artificial dentro do direito sucessório
39
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. apud PISETTA, Francieli. Reprodução assistida homóloga post mortem, aspectos jurídicos sobre a filiação e o direito sucessório. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2014. p. 110
36
Vistos, brevemente, os principais aspectos do direito sucessório, quais sejam
o momento da abertura da sucessão, a vocação hereditária e as espécies de
sucessão, tratar-se-á do instituto da inseminação artificial, isto é, das pessoas
geradas através desta técnica em relação ao seu direito sucessório.
5.2.1. Inseminação artificial homóloga
A inseminação artificial homóloga se dá quando são usadas, na concepção,
as células germinativas do homem e da mulher que irão, efetivamente, exercer a
paternidade e a maternidade da criança gerada40, e pode ser realizada de maneira
intrauterina ou extrauterina (in vitro).
Ou seja, biologicamente não difere do filho concebido pelo método primário
de procriação, logo, se, no momento da realização da técnica, estiver vivo o pai,
herdará, a criança, normalmente, como herdeiro necessário, posto que descendente
direto do de cujus.
Frise-se que, a rigor, o embrião já concebido in vitro e não implantado no
útero materno, também faria jus à condição de herdeiro necessário, tendo em vista o
Enunciado 267/CJF supra mencionado, em que pese a evidente lacuna legislativa
em relação ao prazo de implantação ou nascimento e o embate doutrinário sobre o
tema.
5.2.2. Inseminação artificial heteróloga
Ao contrário da inseminação artificial homóloga, na heteróloga tem-se que um
dos matérias germinativos utilizados na realização da técnica é de um terceiro,
estranho ao casal, ao qual não será concedida a paternidade.
Neste caso, biologicamente, temos que a criança gerada não é filha do
indivíduo que irá exercer a paternidade, mas o Código Civil garante esta condição
no inciso V do art. 1597, desde que a técnica de inseminação artificial heteróloga
tenha sido realizada com a sua anuência, enquanto marido.
40
PISETTA, Francieli. Reprodução assistida homóloga post mortem, aspectos jurídicos sobre a filiação e o direito sucessório. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2014. p. 121
37
Logo, caso realizada enquanto ainda em vida o varão, não se vislumbram
problemas em relação à condição da criança de herdeira necessária do mesmo,
visto que, legalmente, é sua descendente.
Se realizada após a sua morte, não há que se falar, porém, em direitos de
filiação e sucessório em relação ao falecido marido da mulher que realizou a técnica,
tampouco do doador do material genético.
5.2.3. Inseminação artificial homóloga póstuma
O cerne deste estudo está na figura do indivíduo gerado através das técnicas
de reprodução assistida homóloga póstuma, isto é, a criança havida pelo emprego
destas técnicas com o uso do material genético do casal que lhe irá assumir a
paternidade e a maternidade, após a morte do varão, e a sua condição no direito
sucessório, posto que a filiação é reconhecida pelo art. 1597, III do Código Civil.
A questão divide a doutrina, uma vez que, a rigor do art. 1798 do novel civil,
esta criança, fruto de uma concepção que conjugou o material genético de ambos,
seu pai e sua mãe, não seria herdeira necessária de seu pai, pois nem viva,
tampouco concebida estava no momento da abertura da sucessão.
Ou seja, uma criança que possui a mesma descendência genética de seus
pais, isto é, um filho biológico dos mesmos, seria preterida na sucessão pelo, por
exemplo, filho havido por meio da inseminação heteróloga que, em que pese
também lhe ser reconhecido o direito de filiação, não importando sua origem
genética, e o direito constitucional à igualdade, a rigor, não possui semelhança
genética com o autor da herança.
Frise-se que o caso aqui exemplificado não tem por objetivo deslegitimar o
direito sucessório do filho havido pela inseminação heteróloga, mas reconhecer o
quão inusitada é a situação de um descendente biológico ao qual não é reconhecida
a condição de herdeiro necessário.
Tal situação é reconhecidamente anômala pela doutrina, a qual traz duas
correntes sobre esta temática, cada qual com suas conclusões, que serão trazidas
no capítulo seguinte.
38
6. ASPECTOS DOUTRINÁRIOS SOBRE O DIREITO SUCESSÓRIO DO FILHO
CONCEBIDO POR INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA PÓSTUMA
No último capítulo deste estudo, serão expostos os argumentos das duas
correntes doutrinárias, diametralmente opostas, em relação ao direito sucessório dos
filhos gerados postumamente através do uso de técnicas de inseminação artificial
homóloga.
A primeira corrente a ser tratada é a chamada de exclusiva, pois, sob o pálio
da segurança jurídica, não flexibiliza o princípio da saisina e estabelece que o filho
gerado, inicialmente, não possui capacidade sucessória.
A outra corrente é a inclusiva, que visa aplicar os princípios constitucionais ao
direito das sucessões, flexibilizando a segurança jurídica e a saisina em nome da
igualdade material entre os filhos e da dignidade da pessoa humana, concedendo-
lhe status de herdeiro legítimo.
6.1. Corrente exclusiva
É a corrente doutrinária mais numerosa e conta com doutrinadores de peso
no estudo do direito civil, como Maria Helena Diniz, José de Oliveira Ascenção,
Sílvio de Salvo Venosa e Guilherme Calmon.
Inicialmente, os adeptos desta corrente não vislumbram nenhum direito de
ordem sucessória aos concebidos post mortem pois se encontram indiscutivelmente
fora do âmbito dos artigos 1798 – “Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou
já concebidas no momento da abertura da sucessão” – e 1784 – “Aberta a sucessão,
a herança transmite-se desde logo aos herdeiros legítimos e testamentários” – do
Código Civil.
Esse pensamento prioriza a segurança jurídica dos herdeiros preexistentes
quando da abertura da sucessão e se mostra totalmente fiel ao princípio da saisina.
Nesse sentido, argumenta Maria Helena Diniz41:
41
DINIZ, Maria Helena apud LIMA JÚNIOR, Daniel Veríssimo de. Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no âmbito do direito sucessório. 2013. Pág. 32 Disponível em <http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj041943.pdf>. Acesso em 12/03/2015.
39
“A capacidade sucessória para adquirir herança, inclusive por via
testamentária, pressupõe existência de herdeiro, ou legatário, á época da
morte do testador. (...) Ao tempo do falecimento ao autor da herança o
herdeiro deve estar vivo ou ao menos concebido, para ocupar o lugar que
lhe compete. Pessoa ainda não concebida (nondum conceptus) ao tempo
da abertura da sucessão não pode herdar.”
José de Oliveira Ascensão atenta para a necessidade da rápida resolução da
partilha de bens, que estaria fadada à duração eterna caso ao nondum conceptus
fosse reconhecido o direito à herança:
“(...) toda a estrutura da sucessão está arquitetada tendo em vista um
desenlace da situação em curto prazo. Se admitisse a relevância
sucessória dessas situações, nunca seria praticamente possível a
fixação dos herdeiros e o esclarecimento das situações sucessórias.
E a partilha que porventura se fizesse estaria indefinitivamente
sujeitada a ser alterada.” 42
Maria Helena Diniz43, novamente, e Milena Caggy44 vão além ao dizer que,
em que pese a previsão legal da sobre a existência e, consequentemente, a
aplicação da técnica de reprodução assistida póstuma, a mesma seria proibida por
ser considerada socialmente danosa, pois feriria o princípio da paternidade
responsável a geração de uma criança que jamais terá a possibilidade de conhecer
seu pai e de dispor de sua figura em sua criação, fato que, segundo as autoras,
poderia acarretar em problemas de ordem psicológica à criança.
Logo, mesmo havendo expressa manifestação do extinto favorável à
utilização póstuma de seus gametas, não haveria que se aplicar a referida técnica.
42
ASCENSÃO, José de Oliveira apud LIMA JÚNIOR, Daniel Veríssimo de. Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no âmbito do direito sucessório. 2013. Pág. 32 Disponível em <http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj041943.pdf>. Acesso em 12/03/2015. 43
DINIZ, Maria Helena apud LIMA JÚNIOR, Daniel Veríssimo de. Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no âmbito do direito sucessório. 2013. Pág. 32 Disponível em <http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj041943.pdf>. Acesso em 12/03/2015. 44
CAGGY, Milena. Inseminação Artificial Post Mortem. Disponível em: <www.soartigos.com>. Acesso em: 26/06/2015.
40
Guilherme Calmon assevera que, em hipótese alguma, deverá a viúva ter
acesso ao material crioconservado do falecido:
“É inegável a vedação do emprego de qualquer das técnicas de reprodução
assistida no período pós-falecimento daquele que anteriormente forneceu
seu material fecundante e consentiu que o embrião formado ou seu material
fosse utilizado para formação de nova pessoa humana. A violação
aos princípios da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da
futura criança, além da própria circunstância de ocorrer afronta ao
princípio da igualdade material entre os filhos sob o prisma
(principalmente) das situações jurídicas existenciais, não autoriza a
admissibilidade do recurso a tais técnicas científicas. Assim, a questão
se coloca no campo da inadmissibilidade, pelo ordenamento jurídico
brasileiro, das técnicas de reprodução assistida post mortem. Daí não ser
possível sequer a cogitação da capacidade sucessória condicional (ou
especial) do embrião congelado ou do futuro embrião (caso fosse
utilizado o material fecundante deixado pelo autor da sucessão) por
problema de inconstitucionalidade”45
Dentro dessa mesma corrente, há autores que, ainda que sejam contra a
aplicação de técnicas de reprodução assistida postumamente, tecem comentários
sobre sua eventual ocorrência, tendo em vista que essa é uma possibilidade real.
O próprio Guilherme Calmon é a favor da responsabilização civil da genitora
caso se submeta a supracitada técnica:
“A despeito da proibição no direito brasileiro, se eventualmente tal técnica
for empregada (...) pode conduzir a criança prejudicada a pleitear a
reparação dos danos materiais que sofrer de sua mãe e dos profissionais
que a auxiliaram a procriar utilizando-se do sêmen de cônjuge ou
companheiro já falecido (...)”.46
45
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. Nova Filiação – Biodireito e as relações Parentais. 1ª Ed. Renovar, São Paulo, 2003. Apud CAPOZZI, Bruno Etore. Biodireito: Inseminação póstuma. Pág. 26. Disponível em <http://busca.unisul.br/pdf/98256_Bruno.pdf>. Acesso em 26/06/2015. 46
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. Nova Filiação – Biodireito e as relações Parentais. 1ª Ed. Renovar, São Paulo, 2003. Apud CAPOZZI, Bruno Etore. Biodireito: Inseminação póstuma. Pág. 27. Disponível em <http://busca.unisul.br/pdf/98256_Bruno.pdf>. Acesso em 26/06/2015.
41
Tal posicionamento é rebatido por Catarina Medeiros de Luca uma vez que a
responsabilização da mãe pela concepção da criança após a morte de seu marido
utilizando-se da técnica de reprodução assistida póstuma abriria margem à
indenização quando a criança fosse fruto – indesejado – de uma relação casual,
contrariando princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa
humana.47
Para essa corrente doutrinária, a única forma da criança gerada por esse
método herdar seria mediante disposição em testamento como prole eventual,
conforme o art. 1799, I do Código Civil, que ensina: “Na sucessão testamentária
podem ainda ser chamados a suceder: I – os filhos, ainda não concebidos, de
pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão”,
pois, conforme ensina Juliane Fernandes Queiroz, “se o testador pode atribuir a sua
herança à prole eventual de terceiros, também o pode, sem qualquer restrição, à sua
própria prole”.48
No caso, o autor da herança testaria em favor da prole eventual de sua
própria esposa, que deveria obedecer ao prazo de dois anos para que seja realizada
a concepção, previsto no parágrafo 4º do art. 1800, sob pena de exclusão da
herança.
6.2. Corrente inclusiva
A corrente inclusiva, a qual acreditamos ser a mais próxima do correto
tratamento da matéria, conta com as vozes de Maria Berenice Dias, Giselda
Hironaka e Carlos Cavalcanti Albuquerque Filho, e defende a aplicação dos
princípios constitucionais ao caso do concebido post mortem, assegurando-lhe seus
direitos de ordem sucessória como herdeiro legítimo do pai falecido.
Antes de adentrar no cerne do direito da sucessões, é importante salientar
que o nosso ordenamento jurídico, no art. 226 da Constituição da República
47
DE LUCA, Catarina Medeiros. O concebido post mortem no Direito das Sucessões. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em <www.emerj.tjrj.jus.br/.../2semestre2010/...22010/catarinaluca.pdf>. Acesso em 20/06/2015. 48
QUEIROZ, Juliane Fernandes. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicas de reprodução artificial. Belo Horizonte, Del Rey, 2001 apud LIMA JÚNIOR, Daniel Veríssimo de. Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no âmbito do direito sucessório. 2013. Pág. 36 Disponível em <http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj041943.pdf>. Acesso em 12/03/2015.
42
reconhece a protege e entidade familiar, em sentido aberto, isto é, não se limitando
às entidades familiares nele descritas, por serem meramente explicativos, e a
liberdade do planejamento familiar – este, muitas das vezes, se inicia em vida e, por
infortúnios, vem a se concretizar após a morte de um dos cônjuges ou
companheiros, não parecendo justo qualquer restrição ao direito de realizar a
inseminação artificial na modalidade póstuma.
Bruno Etore Capozzi, em seu trabalho monográfico, comenta sobre os efeitos
metajurídicos de uma restrição ao planejamento familiar:
“Parece ser incabível qualquer ordenamento jurídico vir a restringir o
planejamento familiar mesmo após o falecimento de um dos cônjuges ou
companheiros, pois, se assim agisse, nosso sistema jurídico viria a frustrar
mais do que um planejamento, pode-se dizer que, muitas vezes, nosso
sistema jurídico entraria em ação frustrando um sonho, alimentando ainda
mais a dor da perda, sendo que neste caso ocorreria uma perda dupla, ou
seja, além do falecimento do cônjuge ou companheiro, faleceria também
todo o sonho do planejamento familiar do casa por intermédio de um
sistema jurídico que não vem respeitar seus próprios princípios como o da
dignidade humana, da paternidade responsável e, inclusive, do pluralismo
das entidades familiares”. 49
Logo, havendo prévia manifestação (em vida) do extinto acerca da utilização
de seus gametas na reprodução assistida póstuma, e conservando a sua esposa a
condição de viúva, sem ter constituído outra união estável ou casamento, a fim de
não haver confusão na filiação, nos parece um equívoco afirmar, conforme a
corrente exclusiva, que a aplicação das técnicas de reprodução assistida
postumamente devem ser proibidas, uma vez que estariam sendo utilizadas de
acordo com o princípio da paternidade responsável e da dignidade humana.
A supressão, mínima que seja, do direito à liberdade do planejamento familiar
como direito fundamental, também violaria o princípio constitucional da vedação ao
retrocesso, isto é, o Estado, após implementar um direito fundamental, não pode
suprimi-lo sem medidas compensatórias, logo, estando a inseminação artificial
homóloga póstuma prevista no Código Civil e plenamente atrelada ao direito do
49
CAPOZZI, Bruno Etore. Biodireito: Inseminação póstuma. Pág. 29. Disponível em <http://busca.unisul.br/pdf/98256_Bruno.pdf>. Acesso em 26/06/2015.
43
planejamento familiar, bem como ao direito à saúde, a mesma não poderia ser
extirpada do nosso ordenamento.
Também é importante salientar que o direito à saúde, como direito social, não
seria passível de regressão nem sob compensação, pois é dotado de
progressividade, conforme explica Geraldo Magela Melo:
“Calha acrescentar que os direitos sociais possuem a característica da
progressividade, isto é, a sua alteração deve ocorrer para amoldar a
sociedade às mutações na vida cotidiana, mas dita alteração apenas pode
vir a acontecer desde que implique acréscimo á carga de fruição, de
efetividade na realidade prática ou, no máximo, modificação, sem perda da
concretude para o cidadão.”50
Acerca da segurança jurídica dos herdeiros nascidos ou concebidos à época
da abertura da sucessão, alicerce pelo qual não seria possível reconhecer o status
de sucessor legítimo aos filhos concebidos postumamente, conforme a corrente
exclusiva, não se deve olvidar que, no direito sucessório, a segurança é sempre
relativa, uma vez que é assegurado ao herdeiro não contemplado na partilha pleitear
seu quinhão através de petição de herança, prevista nos arts. 1824 a 1828 do
Código Civil.
Ou seja, mesmo que já tenha ocorrido a partilha, através da petição de
herança movida contra os herdeiros que estão na posse da herança, o direito do
herdeiro preterido retroagirá até a data da abertura da sucessão, sendo-lhe
restituídos todos os frutos e rendimentos, logo, questiona-se a plenitude da
segurança em se tratando de direito das sucessões, tendo em vista que, a qualquer
momento, dentro do prazo prescricional, a partilha pode ser alterada.
Para Aline de Castro Vargas51, é inaceitável, conforme o princípio da
igualdade ente os filhos, previsto no art. 227, § 6º da Constituição da República que
filhos concebidos postumamente tenham tratamento diferenciado daqueles havidos
50
MELO, Geraldo Magela. A vedação ao retrocesso e o direito do trabalho. Disponível em <http://www.trt3.jus.br/escola/download/revista/rev_82/geraldo_magela_melo.pdf> Acesso em 20/06/2015. 51
VARGAS, Aline de Castro Brandão. Embrião criopreservado implantado post mortem tem direito sucessório? Disponível em http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/embri%C3%A3o-criopreservado-implantado-post-mortem-tem-direito-sucess%C3%B3rio> Acesso em 21/06/2015.
44
por inseminação enquanto o varão ainda estava vivo, ou daqueles adotados, os
quais, por força da lei civil, teriam direito à sucessão legítima, enquanto aqueles
fariam jus, apenas, à testamentária, com base na previsão da prole eventual.
Conforme o exposto, tendemos a concordar com esta corrente uma vez que a
perspectiva excludente do direito de se realizar a inseminação artificial homóloga
póstuma e a restrição do direito de ter um filho é diametralmente oposta a vários
princípios constitucionais em relação ao direito de família, como os princípios da
igualdade de filiação, da afetividade e da dignidade da pessoa humana.
45
7. CONCLUSÃO
Conforme os galopantes avanços da medicina e da tecnologia, que
permitiram o aprimoramento das técnicas de reprodução assistida, mormente após o
advento da criogenia, em 1945 – há setenta anos – observamos que, em que pese o
assunto ter se tornando cada vez mais debatido, tanto nos campos da ética, moral,
religião e direito, este último, especificamente, não consegue acompanhar o avanço
tecnológico.
Hoje, vários países já possuem legislações específicas sobre o tema, a
maioria datada dos anos 2000, ou seja, também tardiamente, mas complexas o
suficiente para regular o tema em sua plenitude dentro dos limites impostos por cada
cultura, sociedade e legislação, tanto é que, acerca da inseminação póstuma, países
como a Itália, não a permitem.
No Brasil, o uso das técnicas de reprodução assistida, bem como suas
consequências, não é regulado por nenhuma legislação, havendo tão somente a
Resolução nº 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, de cunho deontológico,
cuja principal regra é a de exigir um termo de consentimento informado do casal que
irá fazer uso dessas técnicas, bem como do doador que deseja crioconservar seu
material fecundante – tal disposição é de tamanha importância que já está abarcada
pela possível legislação vindoura sobre o tema, o Projeto de Lei 1184/03 – o qual,
infelizmente, não dispõe sobre o direito sucessório do filho concebido
postumamente, cerne deste estudo.
A questão fica a cargo da doutrina, então, que se divide um duas correntes
totalmente opostas: a exclusiva e a inclusiva.
Os adeptos da corrente exclusiva concordam que, em prol da segurança
jurídica dos herdeiros, aos filhos concebidos post mortem não deve ser garantido
nenhum direito sucessório – salvo se disposto em testamento – uma vez que não
estavam vivos ou concebidos no momento da abertura da sucessão, ou seja, não
coexistiram em nenhum momento com o extinto.
Já a corrente inclusiva, com a qual concordamos, conjuga os princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade entre os filhos para
46
defender a garantia plena dos direitos sucessórios a esta criança, dotando-a do
status de sucessor legítimo.
Acreditamos ser a corrente inclusiva a melhor opção a se considerar face a
um caso concreto, uma vez que está de acordo com os princípios constitucionais
modernos, bem como ser a segurança, em se tratando da partilha de bens e do
testamento, um conceito relativo no direito das sucessões.
Conforme o já exposto, o quinhão hereditário de cada herdeiro não está
totalmente imutável até que prescreva o direito de petição de herança de eventual
herdeiro preterido, ou esquecido, no momento da partilha uma vez que, caso
reconhecida a sua capacidade sucessória, retroagirá até o momento da morte do
autor da herança para nova partilha.
Na mesma esteira, garantir ao concebido postumamente o direito de ser
sucessor testamentário, relegando o seu direito constitucional à herança ao ato de
última vontade do de cujus, é algo de extrema insegurança na sociedade brasileira.
Ao contrário dos países europeus e norte-americanos, a sucessão
testamentária é figura que nunca esteve em voga no Brasil, uma vez que não é da
nossa cultura cogitar a morte, tampouco se preparar, no sentido patrimonial, para o
fatídico dia, logo, deixar o direito à herança do concebido post mortem a cargo do
testamento do de cujus é o mesmo que negar-lhe tal direito.
Fato é que o ordenamento jurídico brasileiro necessita urgentemente
regulamentar a matéria, pois abandoná-la à sempre divergente opinião dos
doutrinadores ou aos tribunais significa um grande risco de se cometerem injustiças.
No Brasil ainda não houve um caso concreto sobre o tema do direito
sucessório do concebido postumamente, mas já estamos chegando bem perto da
judicialização desta polêmica.
A 13ª Câmara Cível de Curitiba já enfrentou a questão acerca da
possibilidade de ser obter uma gestação com o material fecundante crioconservado.
No caso concreto, a professor Katia Lenerneier conseguiu decisão favorável à
utilização da técnica de inseminação artificial homóloga póstuma com o uso do
esperma congelado de seu marido, falecido de câncer, que não havia deixado
autorização expressa em relação ao uso de seu material, mas a professora
conseguiu provar na justiça a existência de um projeto parental que foi interrompido
47
com a morte de seu marido.52 No entanto, a decisão não enfrentou a questão
sucessória.
Outro caso que será possivelmente decidido na justiça, é o do ex-participante
do reality show Big Brother Brasil, Edílson Buba, falecido por conta de um câncer no
estômago, cuja esposa, à época, em 2006, manifestou publicamente o desejo de
realizar a inseminação artificial com o esperma criopreservado do marido.53
Logo, demonstrado está que a questão se mostra palpável em um futuro
próximo, e que o nosso ordenamento necessita se adequar o quanto antes aos
avanços científicos e tecnológicos para que não tenhamos que nos confrontar com
conflitos judicializados cuja matéria não possua embasamento legal, sob pena de
decidir-se contra os princípios constitucionais e de dotar a demanda de uma
profunda insegurança jurídica.
52
CURITIBA. Tribunal de Justiça do Paraná. Processo nº. 00278627320108160001. Kátia Lenerneier vs Androlab. 53
G1. Engravidar de esperma congelado é caro e depende de sorte. Disponível em <http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,AA13612505603,00ENGRAVIDAR+DE+ESPERMA+CONGELADO+E+CARO+E+DEPENDE+DE+SORTE.html>. Acesso em 20/06/2015.
48
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G1. Engravidar de esperma congelado é caro e depende de sorte. Disponível em
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49
PERMA+CONGELADO+E+CARO+E+DEPENDE+DE+SORTE.html>. Acesso em
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LIMA JÚNIOR, Daniel Veríssimo de. Reflexos da inseminação artificial homóloga
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50