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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA MESTRADO EM PSICOLOGIA A PRODUÇÃO DO ‘PROBLEMA DA DROGA’ COMO CASO DE POLÍCIA E SAÚDE PÚBLICA Priscila Cravo Vianna Orientadora: Profª. Drª. Claudia Elisabeth Abbês Baeta Neves NITERÓI 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

MESTRADO EM PSICOLOGIA

A PRODUÇÃO DO ‘PROBLEMA DA DROGA’ COMO CASO DE POLÍ CIA E SAÚDE PÚBLICA

Priscila Cravo Vianna

Orientadora: Profª. Drª. Claudia Elisabeth Abbês Baeta Neves

NITERÓI

2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE – UFF

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

MESTRADO EM PSICOLOGIA

A PRODUÇÃO DO ‘PROBLEMA DA DROGA’ COMO CASO DE POLÍ CIA E

SAÚDE PÚBLICA

Priscila Cravo Vianna

Dissertação apresentado ao Programa de Pós-graduação de Psicologia – Estudos da Subjetividade – do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do diploma de Mestre em Psicologia.

Linha de Pesquisa: Subjetividade, Política e Exclusão Social.

Orientadora: Profª. Drª. Claudia Elisabeth Abbês Baeta Neves.

NITERÓI

2009

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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

V614 Vianna, Priscila Cravo.

A produção do "problema da droga" como caso de polícia e saúde pública / Priscila Cravo Vianna. – 2009.

154 f. Orientador: Claudia Elisabeth Abbês Baeta Neves. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense,

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia, 2009.

Bibliografia: f. 147-154.

1. Droga de abuso. 2. Poder. 3. Biopolítica. 4. Saúde pública. I. Neves, Claudia Elisabeth Abbês Baeta. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. III. Título.

CDD 351.765

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Priscila Cravo Vianna

A PRODUÇÃO DO ‘PROBLEMA DA DROGA’ COMO CASO DE POLÍ CIA E SAÚDE PÚBLICA

Dissertação apresentado ao Programa de Pós-graduação de Psicologia – Estudos da Subjetividade – do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do diploma de Mestre em Psicologia.

Data da aprovação: ____ / ____ / ______.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________

Profº Drª. Claudia Elisabeth Abbês Baeta Neves – UFF (Orientadora)

_______________________________________________

Profº Drª. Maria Lívia do Nascimento – UFF

_______________________________________________

Profª Drª. Liliana da Escóssia – UFS

NITERÓI 2009

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a acolhida carinhosa e carismática da minha orientadora, professora Cláudia Abbês,

que esteve comigo na maior parte deste estudo e cujos encontros sempre me foram muito

fecundos, repletos de boas discussões e sugestões. Agradeço também à professora Sílvia

Tedesco que fez com que as primeiras idéias desse trabalho começassem a aparecer.

Agradeço à colega Patrícia, pela leitura atenta e cuidadosa deste texto.

Aos intercessores Érika, Raphael, Marcelo, Homero e Julieta, cujas conversas deveriam

constar na bibliografia.

Agradeço ao professor Amir Geiger pelos bons encontros entre a UERJ e Copacabana, além

do incentivo em trilhar o Mestrado.

Agradeço também ao REUNI, pela concessão de bolsa de estudo a esta pesquisa, sem a qual

não teria sido possível realizá-la.

Agradeço ao Victor, por tudo.

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DEDICATÒRIA

Victor,

Here, there, and everywhere

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Pensar só nos traz alegria,

Saber já é outra questão,

Somente quando sonha o homem vai ao Céu,

E o resto é pelo chão.

Almir Sater

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RESUMO Este estudo traça, a partir de uma perspectiva genealógica, a produção do ‘problema da droga’ desde fins do século XIX até o contemporâneo, considerando que é neste período que as drogas se transformam em um fecundo objeto de investimento das relações de poder e saber no Ocidente. Assinalamos três vetores que se conjugam na iminência da emergência do problema da droga: questões políticas e diplomáticas no contexto internacional do início do século XX, os modos de reorganização do trabalho em um momento onde a disciplinarização de condutas se mostra favorável ao desenvolvimento do Capital e a demanda de gerência dos ditos ‘ilegalismos populares’, expressão utilizada por Foucault para designar as diferentes relações entre determinados setores de uma sociedade com suas leis. Pela análise desses três vetores, verifica-se que o ‘problema da droga’ foi produzido em uma configuração histórica que se faz favorável ao seu desenvolvimento no interior de determinadas relações de poder e saber que remetem a um contexto maior de gerência da vida pelo biopoder. Sob esta perspectiva, afirma-se que a produção do problema está mais atrelada aos interesses políticos e econômicos e às demandas de dispositivos de controle da população e da legitimação de práticas de assujeitamento, racismo e criminalização, que em função da atribuição de periculosidade associada às drogas em si. A fim de ilustrar tal afirmação, são examinados aqui dois pontos-chave que se coagulam no ‘problema da droga’: o processo de demonização do traficante circunscrito por um dispositivo maior o qual Foucault chama de Racismo de Estado e a fetichização de uma ‘gorda saúde dominante’, de uma saúde idealizada que constrange movimentos de produção de saúde. Abarcando todo o problema, recorremos ao conceito de Império formulado pelos filósofos Tony Negri a Michael Hardt para compreender o lugar ocupado pelo ‘problema da droga’ nas relações de poder contemporâneas. Finalmente, consideramos os focos de resistência biopolítica aos modos hegemônicos de enfrentamento e produção do problema: as intervenções direcionadas à minimização dos riscos do uso de drogas, e não à sua erradicação, exemplificada pelas ações conhecidas como Redução de Danos e as possibilidades de um encaminhamento ético no cuidado ao usuário de drogas. Por fim, tratamos dos riscos associados às possibilidades de captura desses focos de luta biopolítica pelas relações hegemônicas de poder. Palavras-Chave: Drogas; Império; Biopolítica; Produção de Saúde; Redução de Danos.

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ABSTRACT This study traces, from a genealogical perspective, the production of the 'drug problem' since the late nineteenth century until to the contemporary, once that was in this period that the drugs become a fruitful object of investment by power and knowledge relations in the West. We note three vectors that culminate in the emergence of drug problem: political and diplomatic issues in the international context of early twentieth century, the ways to reorganize the work in a moment that the disciplining of behavior was favorable to the development of the Capital, and the demands of management of the so-called 'popular illegalities', a term used by Foucault to designate the different relationships between certain sectors of society with its laws.Through the analysis of these three vectors, we conclude that the 'drug problem' was produced in a historical setting that become favorable its development within specific relations of power and knowledge that lead to a larger context of life management by biopower . From this perspective, we show that the production of the problem is more linked to political and economic interests and the demands of devices of population control and legitimacy of practices of subjugation, racism and criminality, and less in accordance with the award of danger associated with drugs themselves. To illustrate this statement, we examined two key points that coagulate the 'drug problem': the process of demonization of the trafficker surrounded by a larger device which Foucault calls State Racism and the fetishization of a ‘fat dominant health ', an idealized health which constrains the movement of health production. Spanning the whole problem, we use the concept of Empire elaborated by philosophers Tony Negri Michael Hardt to understand the place occupied by the 'drug problem' in contemporary power relations. Finally, we consider the biopolitical sources of resistance against the hegemonic ways of coping and producting the problem: interventions to minimize the hazards of drug use, not its eradication, as exemplified by the actions known as Harm Reduction and the possibility of a ethic care to the drugs users. Finally, we treat the risks associated to the potential catch of these outbreaks of fighting biopolitics by hegemonic relationships of power. Key-Words: Drugs; Empire; Biopolitical; Health Prod uction; Harm Reduction.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..........................................................................................................................12

Por que problematizar o ‘problema da droga’?............................................................................15

PARTE I

A PRODUÇÃO DO ‘PROBLEMA DA DROGA’

CAPÌTULO I: COMO SE PRODUZ UM ‘PROBLEMA’?.......... .....................................26

1.1 Problema: acontecimento que emerge nas relações de poder.............................................26

1.2 O ‘Problema da Droga’: Operações Diagramáticas............................................................30

CAPÍTULO II: O TRAÇADO DO ‘PROBLEMA DA DROGA’...... ................................40

2.1 Vetores de composição do ‘problema da droga’.................................................................41

2.1.1 Primeiro vetor: o cenário político e diplomático no início do século XX...............41

2.1.2 Segundo vetor: disciplinarização de condutas e reorganização do trabalho............45

2.1.3 Terceiro vetor: uso e comércio de drogas como ilegalismo popular.......................50

2.2 Ressonâncias dos primeiros momentos do ‘problema da droga’ no Brasil........................54

PARTE II

LINHAS MOLARES QUE ATRAVESSAM O ‘PROBLEMA DA DROGA’

CAPÍTULO I: RACISMO DE ESTADO E DEMONIZAÇÃO DO TRAF ICANTE.......64

1.1 Direitos sobre a vida e a morte, biopoder e biopolítica.......................................................64

1.2 A repressão no “varejo”: um recorte do Racismo de Estado em Sociedades como a

nossa..........................................................................................................................................73

CAPÍTULO II: MENS SANA IN CORPORE SANO: A PROMOÇÃO DA ‘SAÚDE’

COMO DISPOSITIVO DO BIOPODER.............................................................................84

2.1 A constituição da saúde como dispositivo do biopoder......................................................85

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2.2 Mente sã, corpo são: saúde como dever..............................................................................91

2.3 Abstinência como Imperativo Sanitário (e Legal): abordagens repressiva e punitiva em

nome da Saúde..........................................................................................................................95

CAPÍTULO III: ENTRELAÇANDO TODAS AS LINHAS: O IMPÉR IO...................101

PARTE III

ENTRE O MOLAR E O MOLECULAR

CAPÍTULO I: REDUÇÃO DE DANOS: UMA ZONA FRONTEIRIÇA DE

PRODUÇÃO DE SAÚDE....................................................................................................120

1.1 Redução de Danos: o que é, para o quê serve?.................................................................121

1.1.1 Caracterização geral da Redução de Danos...........................................................121

1.1.2 Redução de Danos: entre o micro e o macro.........................................................123

CAPITULO II: POR UMA INTERVENÇÃO ÉTICA NO CUIDADO A O USUÁRIO

DE DROGAS.........................................................................................................................129

2.1 O Corpo sem Órgãos: Saúde(s) Possíveis.........................................................................129

2.1.1 Entre o CsO e a organização plena da Gorda Saúde Dominante: uma questão de

prudência.................................................................................................................................131

2.2 Redução de Danos como intervenção ética.......................................................................136

2.3 Redução de Danos e linhas molares de captura................................................................140

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................145

REFERÊNCIAS....................................................................................................................147

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INTRODUÇÃO

A proposta deste trabalho é discutir e visibilizar questões relacionadas a alguns

discursos e práticas acerca das drogas ilícitas1 no Ocidente. Neste sentido, são aqui

diferenciados dois segmentos discursivos/práticos acerca do tema que, paradoxalmente,

coexistem e se atravessam. O primeiro, de caráter hegemônico, apresenta-se como um vetor

de combate às drogas, instrumentalizando práticas discursivas que prezam pela sua

demonização e erradicação. Já o segundo dá passagem a um discurso minoritário, não-

hegemônico, caracterizado pela problematização dos discursos e práticas do primeiro

segmento, traçando, a partir deste estranhamento, outras linhas, desvios e caminhos possíveis

de nortearem a compreensão e as práticas vinculadas à problemática das drogas no

contemporâneo2.

Ambos os campos discursivos constituem-se a partir das relações de força entre

enunciados, práticas e saberes que vão sendo encorpadas pelo poder. São relações que, no

contemporâneo, concatenam uma biopolítica – uma política que incide sobre a vida (bios). A

biopolítica toma por objeto a população como massa afetada por processos de conjunto que

são “próprios da vida, como a morte, a produção, a doença” (PELBART, 2003, p. 57).

Mediante este quadro, a “lógica de guerra” contra o uso e tráfico de drogas é

convocada como uma questão biopolítica, um dos pontos estratégicos de incidência do

biopoder - de um poder sobre a vida, de controle e gerência da vida. No entanto, a biopolítica

comporta outro plano, o plano das forças fronteiriças no biopoder: biopotência ou potência da

vida3. A biopotência é justamente aquilo que resiste ao biopoder e às suas tentativas de

regulamentação, expressando uma problematização do hegemônico pelo minoritário. Aqui,

1O leitor deve ter em mente que este trabalho não tem como objeto os discursos acerca de outras drogas, como o álcool, o cigarro e os psicofármacos. Este corte metodológico foi feito tendo-se em consideração o fato de que os discursos sobre estas outras drogas diferem em muitos aspectos cruciais dos discursos que recaem sobre as drogas ilícitas. Por muito tempo, houve a glamourização do uso do tabaco (discurso, este, que vem perdendo espaço) e ainda há a glamourização do uso do álcool, e mesmo dos psicofármacos. As suas práticas discursivas, assim como seus efeitos, em muito diferem da problemática das drogas ilícitas. 2Ressalte-se que ao se tratar de discursos hegemônicos e outros não-hegemônicos, não se quer dizer que exista entre ambos uma relação dicotômica, na qual um se oponha ao outro em todos os sentidos. Ao contrário, existem múltiplos pontos de conexão entre estes discursos (inclusive, pontos de captura, onde o maior pode “fagocitar” o menor). Esta questão ficará mais nítida ao leitor no decorrer deste trabalho, especialmente no tocante aos efeitos possíveis das ações de Redução de Danos. 3Biopoder, biopolítica e biopotência são conceitos que serão discutidos ao longo deste trabalho. Apresentamos, por hora, algumas definições bastante sucintas dos mesmos.

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trata-se da potência da vida contra o poder sobre a vida, de uma potência política da vida

conforme ela a faz variar em suas formas (PÉLBART, 2003).

O primeiro ponto deste trabalho consiste na tentativa de iluminar algumas das

conexões e os modos de conjugação das relações entre forças que estratificam o “problema da

droga”, tanto em relação aos discursos hegemônicos quanto com respeito aos discursos

minoritários acerca do tema. Trata-se de visibilizar alguns segmentos que encorpam o

“problema da droga”, o qual, para além de um problema de saúde pública, vem assumindo de

forma notória, em países como o Brasil, contornos de uma questão de segurança pública.

O segundo ponto remete à problematização ético-estética destes dois discursos e das

práticas que lhes são recíprocas. Algumas questões que norteiam esta investigação são: como

pensar um posicionamento e uma prática em relação às drogas ilícitas que se afirmem como

biopotência, resistentes aos dispositivos que se apresentam como focos de exercício do

biopoder? Como bifurcar a existência do indivíduo que se “hiper-territorializa” na droga,

fazendo dela seu único ponto de investimento e fechando-se para outras experimentações?

Como fazer com que o indivíduo construa novos agenciamentos, para além do território

“droga”, sem com isso constranger seus movimentos de autonomia?

A prática privilegiada aqui a fim de situar esta questão é a estratégia de

acompanhamento do usuário de drogas conhecida como Redução de Danos, na medida em

que é possível que ela funcione como um vetor de existencialização ou de abertura à invenção

de outros possíveis.

As ações de Redução de Danos (RD) podem ser entendidas, em um sentido lato, como

intervenções que visam minimizar as consequências adversas decorrentes do uso de drogas. A

RD parte, segundo Mesquita (2001), do pressuposto de que o uso de drogas existe e sempre

existirá. Considera que vários usuários não irão interromper seu uso, seja porque não o

querem, seja porque não o conseguem – um mundo sem drogas seria uma idéia utópica. A RD

se compõe a partir de três princípios básicos: o de que é possível criar um ambiente onde o

uso de drogas seja menos prejudicial à saúde; de que tratamentos que abdicam da exigência da

abstinência também são possíveis; e de que os usuários de drogas não devem ser vistos como

incapazes (MESQUITA, 2001). Algumas estratégias de RD são a distribuição de seringas

descartáveis para usuários de drogas injetáveis, a substituição de uma droga por outra menos

danosa (por exemplo, substituição da heroína por metadona), distribuição de preservativos a

fim de preservar os usuários de drogas injetáveis do risco de contaminação pelo vírus HIV

etc.

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Contextualizando a RD a partir de um discurso minoritário, na medida em que este se

opõe ao ideal de erradicação das drogas bem como ao paradigma de que todo uso de drogas

seria necessariamente destrutivo, pretende-se mostrar como a RD pode emergir como uma

potente prática clínica, catalisadora de desvios, produtora de traçados de novas linhas de

existencialização. Nesta perspectiva, a proposta da Redução de Danos é factível de se prestar

à promoção da saúde – não de uma saúde ideal, mas de uma saúde possível – à proporção em

que sua principal função é amenizar os problemas e os riscos associados ao uso danoso de

drogas. Uso danoso que aqui referimos como uma espécie de ‘hiper-territorialização maciça

em um território infértil’4, comprometendo as possibilidades de insurgência da biopotência,

impedindo a emergência de outros modos de subjetivação. Portanto, a Redução de Danos não

diz respeito apenas à saúde física, mas também à produção de subjetividade.

Entretanto, contextualizar a RD a partir desta ótica minoritária não significa idealizá-

la, ou seja, colocá-la acima da possibilidade de captura pelas forças hegemônicas. Dado o

caráter diagramático5 dos discursos e práticas atrelados às drogas, que permitem tanto pontos

de abertura quanto de captura, as ações de Redução de Danos – como qualquer outra prática -

também podem ser exercidas como práticas de controle e funcionar como dispositivos

prescritivos da vida e do viver, próprios ao exercício do biopoder. Nesse sentido, o que este

estudo pretende é verificar como as estratégias de Redução de Danos podem ser investidas de

potência, inscrevendo-se em forças de resistência ao discurso hegemônico em torno das

drogas no contemporâneo - porém atentando para as práticas e usos desta estratégia nos

movimentos que as colocam a serviço da usurpação desta mesma potência.

4O conceito ‘território’ possui um significado bem singular na filosofia de Deleuze e Guattari. Mais do que um espaço físico delimitado, território aqui se refere a um espaço vivido. “O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos” (GUATTARI, ROLNIK, 1986, p. 323). A partir dessa concepção se desdobram as noções de desterritorialização e reterritorialização: enquanto a primeira se refere à abertura de um território que se desfaz, a segunda remete à “recomposição de um território engajado num processo desterritorializante” (GUATTARI, ROLNIK, 1986, p. 323), ou seja, à alocação em um novo território como desdobramento do abandono de outro território. 5A noção de ‘diagrama’ é um termo cunhado por Foucault para indicar as relações de força entre vetores que configuram uma rede de poder. O diagrama comporta tanto as formações discursivas quanto as não-discursivas (práticas, acontecimentos políticos, econômicos etc) além de estar sempre aberto a novos elementos e conexões com outros diagramas. Este conceito será retomado no primeiro capítulo dessa dissertação.

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Por que problematizar o ‘problema’ da droga?

Os discursos e práticas de combate às drogas estão presentes nas políticas públicas

fundamentados no compromisso com a saúde e bem-estar da população. Comumente, estes

apresentam a droga como objeto dotado de propriedades intrinsecamente más - de onde seu

uso seria necessariamente nocivo à saúde, o que justificaria sua total erradicação6. O apelo

contra as drogas encontra-se, sob este prisma, inserido em uma perspectiva dicotômica, com

base em uma ótica moral de “bem” e “mal” - fruto da lógica binária própria ao modo de

funcionamento capitalista contemporâneo7. Trata-se, aqui, de discursos comprometidos com a

saúde física e mental, com a vida e as formas de torná-la cada vez melhor.

Ao mesmo tempo, tais discursos e práticas estão também intimamente atrelados a

dispositivos jurídicos, fundamentando o combate às drogas em estratégias de repressão

vinculadas a um mecanismo maior de criminalização. O embasamento jurídico destes

discursos, desdobrados na repressão exercida pelo aparato policial, visa tanto coibir o uso –

marginalizando o usuário – quanto o comércio, ou seu tráfico.

Quando estes discursos atribuem à droga um caráter necessariamente nocivo, e que por

essa nocividade deve ser proibida, verifica-se a inserção do objeto “droga” numa relação de

causalidade (sendo a droga má, ela deve ser proibida) no qual a causa é identificada com as

qualidades supostamente intrínsecas à droga, e a conseqüência, com a sua proibição.

Admitem-se aqui, perante este raciocínio, dois tempos relativos ao objeto droga – o primeiro

em que ele é dado como mau e o momento em que é proibido. A condição de ilegalidade da

“droga” seria, portanto, determinada por suas qualidades. Este raciocínio ignora que qualquer

qualidade atribuída a qualquer objeto só o é em um contexto histórico determinado, a partir do

momento em que o objeto é convocado a nascer, e que tais qualidades podem perfeitamente

se metamorfosear em outras. Assim, antes de ser convocada como objeto – e, portanto, como

ponto de incidência do saber, do poder – a droga seria uma espécie de “falsa questão”.

Apenas a posteriori, quando a droga é supostamente desvelada como “má”, é que o uso e

tráfico de drogas são convocados como condutas criminosas. A droga como problema oferece

então um vasto campo para a regulamentação e tipificação das condutas.

6Basta pensar na freqüência com que estas campanhas vinculam o uso de drogas à morte e à decadência do organismo. 7Este mecanismo de produção de dicotomias é muito bem descrito por Deleuze e Parnet na obra Diálogos (1998), e será retomado mais adiante neste estudo.

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Partimos então da idéia que os discursos de combate às drogas, ancorados

especialmente pelos saberes dos “especialistas” da saúde e do aparato judiciário visam menos

à promoção da saúde que a produção da criminalização, de modo que a condição de

legalidade/ilegalidade de uma determinada substância determina-se menos por sua

periculosidade à saúde que por fatores políticos, sociais e econômicos. Com isso, temos que a

promoção da saúde, enquanto vinculada a políticas públicas que deveriam assistir toda a

população, serve à normalização desta, ou seja, ao enquadramento desta população. Por outro

lado, onde estas políticas fracassam, ou onde surgem focos de resistência em relação a este

enquadramento, ocorre a produção da marginalização.

Mais do que se tornarem hegemônicos, estes discursos também produzem aquilo que

Foucault nomeia, ao longo de sua obra, como efeitos de verdade. Os efeitos de verdade

permitem aos discursos que estes não se apresentem como algo construído, de caráter

contingente, localizado em uma dada configuração do tempo e do espaço. Ao contrário: os

efeitos de verdade deslocam estes discursos para uma esfera supostamente transcendente,

naturalizada e, portanto, pretensamente incontestável.

Na medida em que os efeitos de verdade entrelaçados aos discursos anti-droga se

pulverizam globalmente (em escala geopolítica), podem ser entendidos a partir de um novo

regime biopolítico, um novo modo de regulação do capital na atualidade, que Negri e Hardt

(2001), definem como Império8. Como o “combate às drogas” vem sido inscritos nesta lógica

imperial? O que faz enunciar este combate como “guerra”?

Os autores identificam no pragmatismo jurídico do Império duas tendências

fundamentais: a de universalização e a de atemporalidade. A primeira delas remete ao direito

que se afirma na construção de uma ordem que demanda o abarcamento de um espaço

ilimitado, ou seja, universal. A segunda corresponde à demanda de circunscrever todo o

tempo sob a lógica de seu fundamento moral, a valores pretensamente universais9. Nesse

sentido “o Império exaure o tempo histórico, suspende a história, e convoca o passado e o

futuro para dentro de sua própria ordem ética. Em outras palavras, o Império apresenta sua

8É preciso alertar o leitor, como o fazem Hardt e Negri (2001), que tal noção de ‘império’ não se confunde com a de ‘imperialismo’. O imperialismo se caracterizara pela centralidade do poder em um Estado-Nação forte, bem como pela rígida delimitação de fronteiras entre as colônias. Já o Império se caracteriza, como veremos adiante, pelo declínio da soberania dos Estados-Nação, pela descentralização do poder e pela ausência de fronteiras fixas, uma vez que o império está sempre em expansão. Mas a principal diferença entre o “Imperialismo” e o “império” consiste em sua justificativa: enquanto o primeiro trabalha para “levar a civilização à barbárie”, o segundo trabalha “para levar a paz”. 9De fato, conforme lembram os autores, cada sistema jurídico reflete um conjunto de valores específicos, e uma particularidade do Império é fazer coincidir ao extremo a “universalidade” do ético e do jurídico.

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ordem como algo permanente, eterno e necessário” (NEGRI, HARDT, 2001, p. 29). Dito de

outro modo, a ordem imperial trabalha com a lógica de que existiriam valores morais

universais e eternos, que seriam legítimos em todos os espaços abarcados pelo Império. Mais

do que legítimos em relação à extensão espacial, seriam também legítimos em relação à sua

extensão temporal, dada sua pretensão de eternidade. E é justamente a partir destes valores

que o Império norteia e direciona suas estratégias de intervenção e regulamentação da ordem

global no capitalismo.

A conjugação destas duas tendências indica as formas pelas quais os mecanismos

regulamentadores deste Direito Universal apresentam-se como necessários, permanentes, uma

vez que corresponderiam a uma ordem dada, naturalizada, calcada em uma espécie de moral

transcendente, universal. A reificação destas práticas jurídicas que ganha força a partir da

dimensão global desta nova ordem imperial é que torna possível, conforme será mostrado no

decorrer deste estudo, que uma nação como os EUA adquira perante as demais nações

legitimidade para capitanear o controle das políticas de combate às drogas, que desta maneira

podem ser pulverizadas para as outras nações e se converterem em uma política internacional.

É o mecanismo que confere a este país o “direito legítimo” de intervenção em países onde a

situação diante das drogas é tida como crítica, especialmente no caso dos países produtores

pertencentes à periferia do capitalismo, como a Colômbia ou a Tailândia.

Ainda segundo Negri e Hardt, as formas de intervenção imperial não se restringem às

intervenções militares, recorrendo também a modalidades distintas de intervenção, como a

moral e a jurídica. A intervenção moral é comumente a primeira, sendo seguida pela jurídica

e militar, e é exercida por vários agentes sociais (mídia de massa, ONGs, instituições

religiosas etc) ocupados na “produção simbólica” do(s) “inimigo (s)”. É importante frisar que

neste sentido, a efetividade da intervenção moral depende do estabelecimento de um consenso

que o legitime e justifique – daí a necessidade de universalização de valores presente na

pragmática imperial. Por isso, “a primeira obrigação do Império é ampliar o domínio dos

consensos que dão apoio ao seu próprio poder” (NEGRI, HARDT, 2001, p. 33). É deste

quadro que decorre a fundamentação para intervenção jurídica (criminalização) e militar

(aparato policial).

No caso do Brasil e do “problema da droga”, este mecanismo é explicito: a grande

mídia compromete-se com a produção da imagem demonizada do traficante e do usuário

através da super-exposição e da super-exploração de episódios de violência vinculados ao uso

e tráfico de drogas – filhos que matam os pais sob uso de drogas, conflitos entre traficantes e

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policiais, inclusive ocasionando grande número de vítimas muitas vezes não diretamente

envolvidas com o tráfico, etc – produzindo na população sentimentos de indignação e medo

que a leve a demandar políticas públicas extensivas de segurança e de punição (vide o apoio

de parte significativa da população à política de “tolerância zero”, à criação de milícias, aos

caveirões, além dos recentes debates sobre pena de morte e redução da maioridade penal

etc)10. Tais políticas, na medida em que se dirigem principalmente àqueles que são

“indesejáveis” e “descartáveis”, ou não adequadamente inseridos na lógica do consumo – i.e.,

notadamente o negro, pobre, favelado – revelam um mecanismo perverso de “inclusão-

exclusiva” (NEVES, 2009), na qual tudo é incluído, onde absolutamente todos estão incluídos

na ordem do Capital – ainda que alguns estejam mais que os outros. Poder-se-ia colocar, neste

sentido, que apesar de “desviantes”, ou apesar de não partilhar de maneira expressiva dos

benefícios ofertados pelo Capital, estes indesejáveis ainda assim são enquadrados,

significados, presentes – seja, por exemplo, pela representação da figura do traficante em um

veículo midiático, seja a inclusão de sua morte nas estatísticas de mortes por homicídio, seja

sua inclusão nas estatísticas dos presídios, ou dos “bandidos procurados”. Convém considerar

também a existência de uma política de extermínio em relação a estes “indesejáveis”, que são

os que podem morrer, ou ainda, no caso específico dos traficantes, aqueles que devem morrer,

segundo a lógica beligerante que versa na atualidade a “guerra contra as drogas”.

Daí a pertinência da colocação de Alessandro Baratta, em prefácio da obra Difíceis

ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro, de Vera Malaguti Batista:

A visão seletiva e repressora da segurança urbana e as campanhas de pânico moral e alarme social que a alimentaram permitiram a sobrevivência, até os dias de hoje, da lógica e da estrutura do controle social próprio do período do governo militar, uma interiorização do autoritarismo e uma introjeção da ideologia de extermínio maior e mais maciça que nos anos posteriores ao fim da ditadura. (BARATTA, 2003, p. 22)

Tal situação denuncia, pela ótica foucaultiana, um Racismo de Estado – presente,

inclusive, desde a formação das primeiras leis americanas anti-drogas, nas quais a atribuição

do uso e comércio de tais substâncias às minorias marginalizadas guardava estreitas relações

com a promulgação destas leis, conforme demonstram Malaguti Batista (2003), Batista (1998)

e Rodrigues (2002). No Brasil dos dias de hoje, as políticas repressoras de combate ao tráfico,

10De acordo com o relatório do das Nações Unidas sobre as execuções extrajudiciais sumárias ou arbitrárias no Brasil, referente a 2007, “as execuções extrajudiciais e a justiça dos vigilantes contam com o apoio de uma parte significativa da população que teme as elevadas taxas de criminalidade, e percebe que o sistema da justiça criminal é demasiado lento ao processar os criminosos”.

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justificadas pelas demandas de segurança pública, estabelecem o corte do qual nos fala

Foucault (2005) entre quem deve viver e quem deve (ou pode) morrer. Este racismo seria o nó

górdio destas políticas. Foucault o atribui a prerrogativas como “se você quer viver, é preciso

que faça morrer”, no qual a segurança vincula-se à anulação de um outro. A forma pela qual a

polícia vem realizando seus ataques às favelas, a mídia sensacionalista, o apoio da opinião

pública – ou daqueles que querem viver – a estas operações sanguinárias são diretamente

atravessadas por este racismo. É sabido que não são apenas os traficantes que se encontram

expostos à morte nestas operações, mas também toda a população ao seu redor, geralmente

negra, nordestina e pauperizada. O assassínio ocasional de indivíduos não envolvidos com o

tráfico é utilizado como desculpa para intensificar ainda mais estas operações, em vez de

motivar seu estranhamento. Neste sentido, mesmo estes assassinatos “indiretos” também estão

previstos pelas tecnologias racistas de regulamentação, atravessadas pelo “fato de expor a

morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a

exclusão, a rejeição, etc.” (FOUCAULT, 2005, p. 306). Assim é que, segundo Foucault, o

racismo emerge como condição de aceitabilidade de tirar a vida em uma sociedade de

normalização como a nossa e nos dá indícios sobre a enunciação contemporânea de uma

“guerra” as drogas.

Os envolvidos com o problema não são afetados da mesma maneira. No interior das

políticas anti-drogas, é possível verificar que tais medidas repressivas são seletivas,

direcionadas a grupos específicos, em uma conveniente “gestão dos ilegalismos”11.

Corroborando esta afirmação, temos a constatação de que a guerra contra as drogas pouco ou

nada faz contra os verdadeiros “empresários da droga”, atacando apenas a extremidade mais

frágil e potencialmente descartável do sistema (os traficantes de favelas, vendedores do

varejo, que são utilizados por estes mega-empresários como mão-de-obra barata e facilmente

substituível) não combatendo de forma efetiva outros agentes envolvidos. É neste sentido que,

ao tratar do sensacionalismo midiático em torno da figura dos traficantes varejistas e de uma

pretensa “organização” atribuída a estes grupos – de onde decorre a colocação de que as

facções ligadas ao tráfico, como o Comando Vermelho e o Terceiro Comando seriam “crime

11Em termos gerais, a “gestão dos ilegalismos”, tal como a entende Foucault, se refere não a uma gerência que prima por fazer cumprir a lei incondicionalmente, mas sim a uma forma de gestão diferencial onde pode haver tolerância no tocante ao descumprimento das leis. Daí que a lei seja “uma gestão dos ilegalismos, permitindo uns, tornando-os possíveis ou inventando-os como privilégio da classe dominante, tolerando outros como compensação às classes dominadas, ou mesmo, fazendo-os servir à classe dominante, finalmente, proibindo, isolando e tomando outros como objeto, mas também como meio de dominação” (DELEUZE, 1991, p. 39).

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organizado”12 – Souza (2004) alerta para a função implícita destes discursos, cujos efeitos se

desdobram não apenas na promoção do sentimento de pânico na população, mas também no

obscurecimento desta função:

Quais seriam as motivações para se exagerar o nível de organização dos traficantes de favela, os quais operam no varejo, no abastecimento do mercado local? Para além do sensacionalismo, nada estranho à imprensa, e da pura e simples ignorância, resta o fato de que, ao se exagerar o poder e o alcance dos traficantes de favela, desvia-se a atenção da opinião pública daqueles atores que, igualmente envolvidos com o tráfico, passam despercebidos e permanecem incólumes – justamente os grandes traficantes, operando com a importação, a exportação e o atacado, bem como seus sócios e aqueles que são corrompidos e cooptados. (SOUZA, 2004, p. 429-430).

Souza (2004) distingue dois subsistemas interconectados que estruturam o tráfico: o

subsistema importação/exportação/atacado (I-E-A) e o subsistema varejo. No primeiro

subsistema, o autor localiza os grandes traficantes (importadores e atacadistas) bem como

seus sócios e parceiros (lavadores de dinheiro, transportadores da droga, etc.) secundados

pelos principais facilitadores do negócio em grande escala (funcionários de portos e

aeroportos, policiais corruptos etc.). Já o segundo subsistema remte às quadrilhas que tem

como “bases de apoio logístico favelas e outros espaços segregados” (SOUZA, 2004, p. 430).

Sendo assim, o que causa incômodo é o fato de que ao falarmos de tráfico de drogas

podermos inferir que a primeira imagem que vem à cabeça da população sobre quem são os

traficantes, recai precisamente no estereótipo do “favelado”:

Embora muito menos importantes, em termos estratégicos, que o subsistema I-E-A, é sobre o subsistema varejo – e notadamente sobre os traficantes de favela – que se concentram as atenções da mídia e da polícia, e são justamente os traficantes de favela que representam apenas o braço menos rico e refinado do crime organizado, que normalmente morrem ou vão presos.” (SOUZA, 2004, p. 432).

A presença, portanto, de tais mecanismos de extermínio não significa o sepultamento

das técnicas mais sutis de controle e regulamentação social frente às drogas. Todos estes

mecanismos coexistem e funcionam juntos, a fim de referendar a guerra contra as drogas. Tal

guerra não visa somente o extermínio dos menos favorecidos, mas comparece também como

estratégia de controle da população em geral.

12De acordo com Souza (2004), o tráfico varejista não poderia se enquadrar como “crime organizado” por não obedecer a uma série de requisitos. O tráfico das favelas, local, seria, ao contrário, desorganizado, ainda que o tráfico tomado em escala transnacional seja organizado Outros exemplos de crime organizado seriam a Máfia Italiana o jogo do bicho.

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No contemporâneo, a classificação do uso de drogas não apenas como desvio da

norma social (ou seja, não apenas em termos infracionais/jurídicos), mas também como

patológica evidencia a articulação dos discursos médicos no interior da formulação das

políticas anti-drogas. A adicção como categoria médica, tanto no CID quanto no DSM,

reveladora da condição patológica pelo uso de drogas, endossa o discurso anti-drogas e

legitima a adoção de políticas públicas de combate a substâncias (ainda que este combate não

se efetue de forma igualitária contra todas as substâncias capazes de causar dependência física

e/ou psicológica, como o cigarro, o álcool e os diversos psicotrópicos legais forjados pela

Indústria Farmacêutica), em nome da promoção da saúde da população. Neste sentido, o

conceito de “saúde” assume posição estratégica no interior da biopolítica, configurando-se

como meta a ser atingida através do investimento e na purificação consonante ao “corpo

saudável”. É assim que a “saúde” é apresentada como um dos motores das políticas de Estado

contra as drogas, mediante a super-exploração da imagem do “drogado”, apresentado como

um ser degradado, sem vontade própria, acabado, doente, incapaz de agenciar a própria vida.

Trata-se aqui da produção de subjetividades reificadas, hegemônicas; se o sujeito usa drogas,

é imediatamente encaixado neste estereótipo, o que justifica até mesmo seu tratamento

obrigatório e compulsório. Note-se que este prisma não admite variações ou diferenças entre

os usuários.

É também a partir desta perspectiva contra a doença e em favor da vida que podem ser

pensados diversos programas de atendimento a usuários – quer estes façam uso nocivo ou não

das drogas – calcados no princípio de abstinência. Uma vez que tais programas atribuem às

substancias qualidades intrinsecamente nocivas à saúde, a única maneira por eles encontrada

de promovê-la é a exigência da abstinência – ainda que muitas vezes, para que esta

abstinência seja garantida, alguns destes programas se utilizem de psicofármacos legais

capazes de causar dependência. O próprio programa de Justiça Terapêutica destinado a

infratores usuários é sintomático da aliança entre o Direito e as políticas de saúde pública,

revelando-se como um mecanismo de exercício do biopoder.

As diversas modalidades de tratamento disponíveis para usuários de drogas inscrevem-

se, portanto, como técnicas disciplinares. A técnica disciplinar, segundo Foucault (2005, p.

297) é “centrada no corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como foco de

forças que é preciso tornar úteis e dóceis ao mesmo tempo” (basta pensar nas formas pelas

quais as atividades laborais e os sedativos prescritos de forma indiscriminada são “parte do

tratamento” em muitos destes programas). Já as propagandas anti-drogas, os discursos dos

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especialistas em saúde, a mídia em geral, especialmente sob a égide da “prevenção”,

funcionam como tecnologias regulamentadoras que objetivam a massa, a população como um

todo – “uma tecnologia que procura controlar (eventualmente modificar) a probabilidade

destes eventos, em todo caso, em compensar seus efeitos” (FOUCAULT, 2005, p. 297). Desta

maneira, observa-se a conjugação, nas políticas anti-drogas, de tecnologias disciplinares e

regulamentadoras.

Strictu sensu, a estratégia de Redução de Danos também pode se inscrever como uma

tecnologia disciplinar e regulamentadora, uma vez que supõe certo controle e ordenamento

sobre o uso que o indivíduo faz da droga. O que faz a diferença, entretanto, é se esta

regulamentação se movimenta em direção a um compromisso ético, que parte de uma

prudência, ou em direção a um compromisso moral, que parte de um assujeitamento. É neste

sentido que, ao tratar da diferença entre ética e moral a partir da perspectiva foucaultiana,

Deleuze coloca que:

A diferença é esta: a moral se apresenta como um conjunto de regras coercitivas de um tipo especial, que consiste em julgar ações e intenções referindo-as a valores transcendentes (é certo, é errado...); a ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função do modo de existência que isso implica. (DELEUZE, 2004, p. 125-126)

Sendo assim, o que em linhas gerais nos indicará como a Redução de Danos pode se

exercer como prática moral ou prática ética é se suas regulamentações funcionam em favor da

promoção de efetivos movimentos de autonomia naqueles que utilizam seus serviços, ou se ao

contrário, funcionam sufocando estes movimentos e as possíveis escolhas que daí poderiam

advir.

Assim, os discursos e práticas de combate às drogas cumprem inúmeras funções no

interior das tecnologias do biopoder. Uma delas consiste em desviar a atenção dos fatores de

cunho social, político e econômico que concorrem para a produção de criminalidade e

violência. Ao super-explorar a figura do traficante, demonizando-o e atribuindo seus crimes a

sua “personalidade sociopática”, são obscurecidos outros elementos que contribuem para sua

emergência13. A demonização do traficante, a produção simbólica de sua figura como

“inimigo público numero um” da sociedade faz com que as únicas políticas direcionadas a

estes sejam as de repressão e extermínio, enquanto que medidas promotoras da cidadania e de

13De fato, uma perspectiva intimista, atrelada a um discurso psicologizante, atribui ao indivíduo e/ou sua família a culpabilidade por seu “caráter” desviante, pouco questionando os fatores de cunho social, político e econômico que engendram este agenciamento.

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oportunidades capazes de promover novos modos de subjetivação são negligenciadas. O

destaque dado à violência neutraliza as condições de extrema carência social, desigualdade e

miséria que efetivamente contribuem para a produção de criminalidade.

Os discursos e políticas anti-drogas, portanto, obedecem essencialmente a mecanismos

de produção de criminalização que fazem parte do Racismo de Estado (ou ao racismo

“imperial”), ao controle de corpos e mentes, à normalização. Faz-se urgente, portanto, a

desconstrução destes discursos por uma via micropolítica capaz de produzir outros sentidos

que desmitifiquem tantas perspectivas simplórias e sensacionalistas atreladas tanto ao uso

quanto ao tráfico de drogas.

Neste contexto, as ações de Redução de Danos, na medida em que podem ser

afirmadas como práticas potencializadoras de uma ética de si, emergem como uma potência a

ser explorada por aqueles que se deparam com as conseqüências adversas decorrente do uso

de drogas, mas que não pretendem abandonar seu uso - o que expressa uma negação da

concepção de que as drogas deveriam, necessariamente, ser erradicadas. Não se trata de se

fazer uma apologia em favor do uso de drogas, mas de atentar para o fato de que também os

usuários de substâncias ilícitas são cidadãos que devem ter seus direitos – especialmente de

escolha, e de promoção à saúde e de dignidade – salvaguardados e afirmados.

É com esta discussão que se pretende fechar este estudo – apresentar as correlações

entre as ações de redução de danos a partir do compromisso com a saúde e a ética. Estas,

entendidas como viés de bifurcação existencial que rompe com a linha dura que caracteriza o

uso hiper-territorializado de drogas – ao mesmo tempo em que abre caminho para novos

movimentos de autonomia propiciando aos usuários outras aberturas, outros movimentos em

direção a outros modos de subjetivação que podem vir a agenciar.

Á luz de tais questões, será adotada uma perspectiva genealógica, a fim de

compreender as relações de forças e os encontros que tornaram possível o surgimento do

“problema da droga” e seus desdobramentos no contemporâneo. Note-se que não se trata de

um trabalho de “estudo das origens” do problema da droga, uma vez que a própria genealogia

se opõe à “pesquisa de origem”. Em outras palavras, são se trata de uma “pesquisa de

origem” porque não é o caso de tentar apreender “o que era imediatamente”, “o aquilo mesmo

de uma imagem adequada a si” (FOUCAULT, 2004a, p. 17), não se trata de desvelar uma

essência escondida que revelaria a origem do “problema da droga”; ao contrário, a perspectiva

genealógica pressupõe a ausência de uma essência – se há uma “essência”, esta teria sido

“construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas” (FOUCAULT, 2004a, p.

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18), o que em última instância nos revela que tal “essência” foi construída, maquinada,

através de acasos, de encontros. O “problema da droga”, tal como o entendemos é, portanto,

entendido metodologicamente como um acontecimento, engendrado por múltiplas

contingências, fruto de acasos – o que não quer dizer que sejam acasos dispostos

aleatoriamente, mas sim acasos que, uma vez conectados e conjugados, revelam um

agenciamento coletivo. O esforço metodológico deste estudo, neste sentido, é a tentativa de

iluminar o traçado que engendra o “problema da droga”, a fim de compreender como tais

agenciamentos coletivos maquinaram esta questão tal qual esta se expressa.

Neste contexto, trata-se especialmente de verificar quais foram as condições ou

configurações históricas que convergiram para o encorpamento da “droga” como objeto de

saberes e poderes, traçando o “problema da droga” como um acontecimento, revelando seu

caráter contingente, bem como esta questão foi sendo instrumentalizada em relação às

tecnologias disciplinares e regulamentadoras, à normalização e ao controle social.

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PARTE I

A PRODUÇÃO DO ‘PROBLEMA DA DROGA’

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CAPÍTULO I

COMO SE PRODUZ UM ‘PROBLEMA’?

1.1 Problema: acontecimento que emerge nas relações de poder

Como situar a emergência do tema da droga como um problema? Que condições

sócio-históricas, que condições políticas, que encontros tornaram possível a construção da

temática do uso de drogas como uma questão no mundo ocidental? De fato, as formas através

das quais os discursos anti-drogas se apresentam obscurecem seu caráter de transitoriedade e

contingência, bem como negligenciam o fato de que o fenômeno das drogas apenas

recentemente na história do homem configura-se como um problema. Faz-se necessário,

portanto, pensar que elementos e atores14 engendraram e construíram “as drogas” como

objetos de incidência de diversos mecanismos de poder e saber, que saberes vêm constituindo

o conhecimento que se tem hoje sobre o objeto “droga” – já que este é objetivado

historicamente - e que interesses estão conjugados à formatação das políticas de segurança

pública e de saúde direcionadas para o tratamento do fenômeno das drogas no

contemporâneo.

Já em A Ordem do Discurso, Foucault se preocupa em restituir aos discursos seu

caráter de acontecimento, o que revela às práticas discursivas seu caráter contingente.

A noção de acontecimento, trabalhada por Foucault a partir de sua leitura de

Nietzsche, sugere não existir linearidade histórica; os acontecimentos históricos não teriam

um ponto de origem, e não se efetuariam de um momento para outro, por mera decisão ou por

uma mecânica específica. Ao contrário, a noção de acontecimento vincula-se a de acaso, ao

porvir, ao intempestivo, aos jogos de força em seus embates cujos efeitos não são previsíveis:

É preciso entender como acontecimento não uma decisão, um tratado, um reino ou uma batalha, mas uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores (...) As forças que se encontram em jogo na história não obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta. (FOUCAULT, 2004a, p. 28).

14Quando falamos aqui em “ator”, tomamos a atribuição que o antropólogo da ciência Bruno Latour confere ao termo. Em linhas gerais, “ator” seria qualquer elemento que possua agência, ou seja, que produza efeitos no mundo e por outro lado, também seja afetado por este. É importante frisar que os atributos destes atores emergem apenas a partir do encontro com outros atores. Como estes atributos são delineados a partir deste encontro, tem-se que o elemento “em si”, enquanto ator, não se define a priori. Em outros termos, os atributos de um ator dependem fundamentalmente das conexões que ele irá travar. Cf. MORAES (2004).

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Diante desta perspectiva, Foucault (2002b) concebe os discursos como uma violência

que é imposta às coisas, e que, portanto, não mantém com elas uma relação necessária. Em

outras palavras, os discursos não revelam uma verdade sobre as coisas, eles engendram

determinadas atribuições às coisas. O problema surge quando o discurso se apresenta como

verdade, ou produz “efeitos de verdade”. É neste sentido que Foucault (2005) afirma que o

poder exige a verdade, para que esta sirva de parâmetro para julgar, normalizar, estabelecer

parâmetros de classificação: o poder se entrelaça com o saber para se tornar legítimo e

justificável, do mesmo modo que o saber só se caracteriza enquanto tal quando investido pelo

poder. Deste modo é que, quando pensamos os discursos sob a ótica do poder, estes

compareçam como efeitos de verdade, amparados sempre por um saber:

Essas produções de verdade não podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque estes mecanismos de poder tornam possíveis, induzem essas produções de verdades, e porque essas produções de verdade tem, elas próprias, efeitos de poder que nos unem, nos atam. (FOUCAULT, 2006, p. 229).

Nesse sentido, Deleuze (1991) coloca que poder e saber mantém uma relação de

reciprocidade: o poder convoca o saber para se legitimar, ao mesmo tempo em que todo saber

está sempre remetido a um poder que o ampara. O poder precisa do saber para efetuar a

“diferenciação sem a qual ele não passaria a ato” (DELEUZE, 1991, p. 48). Por ‘passar ao

ato’ entende-se que o saber atrela-se à concretude do poder: daí que não exista relação de

poder sem constituição correlata de um plano de saber; daí que o saber se refira aos

‘agenciamentos concretos’ da ‘máquina abstrata’15 que constitui o poder; daí que o poder se

concretize e produza efeitos por intermédio do saber. Poder, portanto, que produz verdades e

mundos, e que se alimenta desta mesma produção, que nos enquadra a partir destas verdades

ao mesmo tempo em que nos questiona sobre as mesmas, para que mais verdades sejam

produzidas:

O poder não para de nos interrogar, de indagar, registrar e institucionalizar a busca da verdade, profissionaliza−a e a recompensa. No fundo, temos que produzir a verdade como temos que produzir riquezas, ou melhor, temos que produzir a verdade para poder produzir riquezas. Por outro lado, estamos submetidos à verdade também no sentido em que ela é lei e produz o

15Por ‘máquina abstrata’ não se quer referir a um modo de funcionamento transcendente. Ao contrário, o poder é imanente, pois se realiza em agenciamentos concretos. O sentido de ‘abstrato’ nesse caso se refere mais propriamente á idéia de maleabilidade, de potência infinita de produção e variação que caracteriza o próprio poder. O poder é abstrato pela sua capacidade de se tornar concreto através de uma variabilidade infinita de arranjos.

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discurso verdadeiro que decide, transmite e reproduz, ao menos em parte, efeitos de poder. Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder. (FOUCAULT, 2004a, p. 180).

Mas, afinal, de que poder nos fala Foucault? Por que se diz que o poder é imanente e

não transcendente, produtivo mais que repressivo, conforme sugerem os postulados

tradicionais acerca do poder?

De fato, Deleuze (1991) define a caracterização do poder em Foucault a partir da

negação de seis tradicionais ‘postulados básicos’ do poder: o postulado da propriedade, o

postulado da localização, o postulado da subordinação, o postulado da essência ou atributo,

o postulado da modalidade e o postulado da legalidade.

O postulado da propriedade se refere à concepção de que o poder seria pertencido por

alguém. Para Foucault, o que ocorre é justamente o contrário: o poder não pertence a

ninguém; trata-se de uma estratégia, de algo que se exerce e só existe enquanto exercido, e

não de uma propriedade. Os efeitos de poder não são atribuídos a uma apropriação, “não é

privilégio adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito conjunto de suas

posições estratégicas” (DELEUZE, 1991, p. 35).

O postulado da localização é refutado de forma análoga ao postulado da propriedade.

De acordo com este postulado, o poder teria uma localização específica, haveria um centro

específico de poder, e este centro seria o Estado – mesmo os ‘poderes privados’ teriam uma

independência apenas aparente, sendo, ainda, desdobramentos do aparelho de Estado. Para

Foucault, o que ocorre, neste caso, também é o inverso: o Estado é que é um efeito de poder, e

não o contrário: o poder não vem do Estado, ele produz o Estado. O poder não se localiza em

nenhum lugar específico; em sua imanência, ele é co-extensivo por todo o socius. Não é

global, nem local: é capilar. O poder não é localizável; ele é onipresente, “não porque tenha o

privilégio de agrupar tudo sob sua invencível unidade, mas porque se produz a cada instante,

em todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto e outro. O poder está em toda

parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares” (FOUCAULT,

1990, p. 89).

Já o postulado da subordinação remete à idéia de que o “poder encarnado no aparelho

de Estado estaria subordinado a um modo de produção, tal como a uma infra-estrutura”

(DELEUZE, 1991, p. 36). Foucault se distancia aqui da concepção marxista clássica de que o

poder possuiria, em última instância, uma determinação econômica (a infra-estrutura

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econômica ou as condições materiais de produção determinando a super-estrutura, ou o

Estado, o saber, as instituições). Para ele, “as relações de poder não se encontram em posição

de exterioridade com respeito a outros a tipos de relações (...) mas lhes são imanentes”

(FOUCAULT, 1990, p. 90). Tampouco há um ‘algo’ que determine o poder. Ao contrário, ele

se caracteriza pela sua capacidade de atualização, de produção, de não se deixar formalizar ou

totalizar: O poder tem como atributos “a imanência de seu campo, sem unificação

transcendente, a continuidade de sua linha, sem uma centralização global, a continuidade de

seus segmentos sem uma totalização distinta: espaço serial” (DELEUZE, 1991, p. 37).

O postulado da essência ou do atributo corresponde à concepção de que o poder seria

dotado de uma essência, e seria um atributo daqueles que o possuíssem, donde se segue que

haveria “dominantes” e “dominados”. Ocorre que, para Foucault, o poder é operatório, é uma

relação de forças que atravessa tanto as “forças dominadas” quanto as “forças dominantes”,

uma vez que o poder também investe nos “dominados”, e os próprios dominados solicitam o

poder. Em suma, o poder não se divide entre os que o possuem e os que não o possuem – o

poder é algo que circula, que funciona em rede, não pode ser apropriado por ninguém

(FOUCAULT, 2004a). As relações de poder emergem a partir das mais variadas situações

cotidianas, “discussões de vizinhos, brigas de pais e crianças, desentendimentos de casais,

excessos alcoólicos e sexuais, rixas públicas (...)” (DELEUZE, 1991, p.38).

De acordo com o postulado da modalidade, o poder seria exercido por intermédio da

violência, da repressão, da ideologia, da propaganda – sempre reprimindo, iludindo,

ludibriando. Para Foucault, o poder, mais que propriamente reprimir, produz realidades; o

poder produz verdades mais que as mascara (produzindo saber), como coloca Deleuze (1991).

A violência também não é o poder, ela é um efeito de poder, expressa o efeito de uma força

sobre outra coisa, mas não é uma relação de forças.

Finalmente, de acordo com o postulado da legalidade, o poder do Estado seria

expresso pela lei; à lei estaria oposta à ilegalidade, entendida como o inverso da lei.

Entretanto, Foucault substitui a relação lei-ilegalidade pela ilegalismos-lei, uma vez que “a lei

é sempre uma composição de ilegalismos, que ela diferencia ao formalizar” (DELEUZE,

1991, p. 39). O “ilegalismo” não tem um sentido propriamente negativo – ele é positivo na

medida em que sua gestão possibilita diversas formas de manejo, de interpretação (as figuras

do ‘promotor’ e do ‘defensor’ expressam estas possibilidades). Um determinado ilegalismo

pode assim ser reprimido ou tolerado, suscitado, dependendo das circunstâncias. Desta forma,

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as leis não se opõem, como poderia parecer, à ilegalidade, na medida em que “umas

organizam explicitamente o meio de não cumprir as outras” (DELEUZE, 1991, p. 39).

Desta forma, ao propormos o estudo das condições e práticas que instituíram a droga

como objeto de dispositivos de saber e poder apontamos para uma configuração histórica que,

produzida no encontro entre diferentes forças e na conjugação entre fluxos diversos, tornou

possível a emergência dos discursos e práticas acerca de determinadas substâncias como o

acontecimento “problema da droga”. Em outros termos, este problema aparece em uma série

de relações de forças, um diagrama de forças imanente ao poder, objetivado historicamente.

1.2 O ‘Problema da Droga’: Operações Diagramáticas

O diagrama de forças, de acordo com Deleuze (1991), pode ser entendido como um

composto que expõe as relações de força constituintes do poder em um dado momento – é o

mapa destas próprias relações de forças, indicando suas intensidades e densidades, os pontos

por onde correm, seus pontos livres e de inflexão e conexão com novas forças. Nesse sentido,

abarca tanto as formações discursivas, ou campo do enunciável, quanto as não-discursivas, ou

o campo do visível16 (práticas, instituições, acontecimentos políticos, econômicos). O

diagrama não se caracteriza pela estabilidade ou pela inércia: ele é instável, fluido, flexível, e

está em devir no plano inter-social, sempre aberto a novas combinações, novas relações que o

tempo todo redefinem suas linhas diagramáticas. Por estas razões, a noção de diagrama não se

confunde com a de estrutura, que supõe um sistema fechado e previsível, e se diferencia desta,

(...) na medida em que as alianças [do diagrama] tecem uma rede flexível e transversal, perpendicular à estrutura vertical, definem uma prática, um procedimento ou uma estratégia distintos de qualquer combinatória, e formam um sistema físico instável, em perpétuo desequilíbrio, em lugar de um ciclo de troca fechado. (DELEUZE, 1991, p. 58).

Daí que o diagrama seja mutante, maleável, adaptável, irredutível a uma aplicação

específica, “um funcionamento que se abstrai de qualquer obstáculo ou atrito, e que deve se

destacar de qualquer uso específico” (DELEUZE, 1991, p. 44). Não há tampouco um sujeito

por detrás da formação de um diagrama, ou um centro específico de poder que o alimente:

16Vale lembrar que não existe uma relação de causalidade necessária entre as formações discursivas e não-discursivas. Elas não supõem umas as outras, apesar de manterem uma relação de pressuposição recíproca, conforme lembra Deleuze (1991).

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suas relações se formam sempre a partir do coletivo, do pré-pessoal, das relações vizinhas que

lhes são contemporâneas. Destas colocações, decorre também que não há uma

intencionalidade “mecânica” anterior que predetermine a formação do diagrama: as relações

que ele comporta são imprevisíveis, não-factíveis de qualquer planejamento a priori, e se há

intencionalidade, esta provém do arranjo entre as relações de força, nunca anteriormente a

estas, expressando-se por meio de investimento em práticas reais e efetivas17.

O diagrama do problema da droga, nesse contexto, se refere aos discursos, práticas,

acontecimentos políticos, econômicos e sociais que o delineiam, sem que esteja fechado para

novas formações discursivas e não-discursivas, novos vetores, novos elementos, novas

aplicações e novas formas de exercício. O ‘problema da droga’, menos que intencionalmente

criado por uma decisão de um sujeito, é mais propriamente resultado das relações

estabelecidas entre determinados vetores ou linhas de força que em algum momento

terminaram por convergir. Da mesma maneira, seus efeitos não podem ser antecipados: os

efeitos emergem apenas quando estas forças entram em relação.

Ao se colocar que o diagrama expõe as relações de força que constituem o poder, não

se quer dizer que tais relações sejam imediatamente perceptíveis; tampouco se quer afirmar

que sejam relações ocultas. O enunciável e o visível não se esgotam em sua aparente

obviedade, assim como não devem ser tomados separadamente. Como lembra Deleuze

(1991), o visível não se reduz às suas qualidades sensíveis, assim como o enunciado não se

trata de um amontoado de frases e preposições: ao contrário, as frases e preposições o

encobertam, encobertam as relações de força que o engendram por detrás de aparentes –

apenas aparentes - estruturas. Fazer aparecer os enunciados e as visibilidades significa

compreender as condições que tornaram possíveis a emergência de suas relações. As próprias

visibilidades, as frases e as proposições surgem apenas a posteriori, segmentando e

formatando o visível e o enunciável, já que “os enunciados (...) são anteriores às frases ou às

preposições que os supõem implicitamente, são formadores de palavras e objetos”

(DELEUZE, 1991, p. 24). Em suma, para que se possa apreendê-los, é preciso acompanhar o

17 Apesar de não remeter o poder a um individuo ou grupo específico que possa concatenar independentemente as relações de poder, Foucault nos adverte que elas são sempre intencionais, pois não existe poder que se exerça sem uma “mira”, sem uma direção. Não se deve tampouco buscar um grupo, ou uma casta, ou os aparelhos de Estado por detrás da lógica do poder:”a racionalidade do poder é a das táticas muitas vezes bem explicitas no nível limitado em que se inscrevem (...) que, encadeando-se entre si, invocando-se e se propagando, encontrando em outra parte apoio e condição, esboçam finalmente dispositivos de conjunto: lá, a lógica ainda é perfeitamente clara, as miras decifráveis e, contudo, acontece não haver mais ninguém para tê-las concebido (...)” (FOUCAULT, 1990, p. 91).

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traçado que os configura no plano imanente do poder, ou ainda, que condições concorreram

para a maquinação do seu diagrama.

Nesse contexto é que, uma vez que o diagrama é instável e encontra-se em perpétuo

devir, não se trata de desnudar um ponto de origem para este problema – o que seria uma falsa

questão - mas sim de considerar como estas forças convergiram para a emergência do

“problema da droga”, ou ainda, desvelar a visibilidade de suas relações de força. Deste modo,

o “problema da droga” não é anterior a tais relações, às formações discursivas e não-

discursivas que o compõem: ele é contemporâneo ao exercício destas relações de força, que

constroem “domínios de objetos, em relação aos quais se poderá afirmar ou negar

proposições” (FOUCAULT, 2002b, p.19). Também não se trata de afirmar que a “droga” não

existisse anteriormente, ou que seus efeitos apenas tenham sido “descobertos” em um

momento específico – ao contrário, o uso de substâncias psicoativas para os mais diversos fins

aparece regularmente na história da humanidade, nas mais diversas sociedades (MacRAE,

2004; RODRIGUES, 2002; CARNEIRO, 2002). Trata-se de convocar suas relações de força

para além de sua visibilidade óbvia, além do que é explicitamente dito e visível. O problema

da droga, como todo diagrama, não se esgota no que se vê de imediato. Não diz respeito

apenas à violência em torno do tráfico, à saúde dos usuários ou aos grandes lucros oriundos da

indústria da droga. É mais que uma questão de salvaguardar a saúde ou a segurança pública.

Compondo este quadro, não aparecem apenas os discursos e práticas sobre as drogas

“em si”, mas também sobre o “uso da droga”, ou mesmo sobre o que estaria condicionando

este uso – por exemplo, é comum escutarmos que o sujeito faz uso de drogas em função de

advir de uma “família desestruturada”, ou por manter relações com “más companhias”, ou por

“não prestar” simplesmente, ou por ser “incapaz de lidar com a realidade”, dentre diversas

outras razões, que tendem a categorizar este uso como sendo decorrente de condições

depreciativas. Outras diversas forças são então mobilizadas, a fim de dar conta destas

questões que vão emergindo; conforme as conexões se multiplicam, mais o diagrama do

“problema da droga” ganha peso, até que por fim, se consolida em uma série de linhas duras

ou linhas molares, atravessando todo o tecido social18 e expressando-se nas mais variadas

formas – um problema de saúde pública, um problema de segurança pública, um problema de

moralidade, um problema político e assim por diante.

18Apesar de se colocar como uma “linha-dura”, isso não quer dizer que o “problema da droga” seja atravessado apenas por linhas molares ou por outras linhas-duras. Se assim fosse, não seria possível tratar também dos discursos menores, não hegemônicos, neste estudo. Sempre existem fluxos que escapam, fluxos moleculares que funcionam como dispositivos de resistência à sobrecofidicação, ao assujeitamento derivado das linhas molares.

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Nesse contexto, é preciso lembrar que o diagrama também comporta uma dimensão de

estabilidade, que lhe é conferida pelas linhas duras que o compõem, da mesma maneira que

sua instabilidade relaciona-se com outras linhas mais flexíveis, produtoras de pontos de

inflexão no traçado do diagrama.

As linhas molares, ou as linhas de segmentaridade dura, podem ser definidas, em

termos gerais, como linhas cujos encontros e pontos de conjugação engendram o plano de

organização do socius em estado de coisas e enunciados. Este plano se constitui mediante a

“cristalização” de territorialidades e de fixações de códigos a partir de agenciamentos

coletivos de enunciação. Estes agenciamentos coletivos de enunciação expressam, em um

sentido lato, o conjunto de falas que convergem para a objetivação histórica de um objeto a

partir de um arranjo semiótico, i.e, de um regime de signos que se articulam formando

discursos e mundos. Trata-se de enunciações coletivas justamente por decorrerem de falas que

não podem ser definidas a partir um sujeito, e sim, a partir do social, daquilo que circula pelo

socius, formando uma espécie de “coagulado discursivo”. É importante lembrar que “o

‘coletivo´ aqui não deve ser entendido somente no sentido de agrupamento social: ele implica

também a entrada de diversas coleções de objetos técnicos, de fluxos materiais e energéticos,

de entidades incorporais, de idealidades matemáticas, estéticas etc.” (GUATTARI, ROLNIK,

1986, p. 319).

A definição dos discursos sobre as drogas como sendo decorrentes de agenciamentos

coletivos de enunciação pode ser entendida mediante a colocação de Deleuze e Guattari, para

os quais “a linguagem vai sempre de um dizer a um dizer” (DELEUZE, GUATTARI, 1997,

p.13), tratando sempre daquilo que se ouviu dizer, e não de um pronunciamento individual, no

qual um “EU” seria o autor genuíno dos enunciados. Toda linguagem, todo enunciado, todo

discurso, é transmitido através de um plano coletivo, pré-individual e pré-pessoal, resultando

sempre de múltiplos agenciamentos. Daí que sejam “todos os tipos de voz em uma voz, todo

um rumor, glossolalia: isto porque todo discurso é indireto, e a translação própria à linguagem

é a do discurso indireto” (DELEUZE, GUATTARI, 1997, p.13). É desta forma que o

enunciado “drogas são más”, poder-se-ia dizer, resultam de uma bibliografia, comparecendo

como discurso indireto livre – compostos por atos de fala médicos (basta lembrar que tanto o

CID quanto o DSM-IV incluem a adicção como categoria médico-patológica), jurídicos (“não

use drogas porque é ilegal”), religiosos (“usar drogas é atentar contra o corpo, que pertence a

Deus, e só ele pode dispor dos corpos”) etc.

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Desta maneira, enunciados como “drogas matam” ou “drogas são más” resultam de

agenciamentos coletivos de enunciação que convergiram para um determinado regime de

signos cuja constante básica repousa na atribuição de qualidades consideradas em si mesmas

negativas em relação às drogas. Note-se que apesar de constantes, estas relações são de

caráter contingente, sendo, portanto, provisórias, uma vez que o agenciamento coletivo de

enunciação, em sua relação de co-extensão com a linguagem, introduz também pontos de

variação, ou seja, pontos de inflexão nos discursos. Assim, tem-se que as relações de fixação

de códigos, como entre sujeito e predicado, e também de signo e significado, em uma frase

como “drogas são más” são relações contingentes, i.e, não-necessárias, de modo que conteúdo

e expressão não possuem uma conexão a priori, sendo tais relações forjadas em função destes

agenciamentos coletivos de enunciação. É também em função desta potência de variação que

o enunciado “o usuário de drogas é um doente” – onde predominam agenciamentos sanitários,

médicos – pode transitar em direção a um enunciado socialmente menos complacente, como

“o usuário de drogas é um degenerado”, ou ainda em casos extremados, “o usuário de drogas

é um criminoso” – onde predominam agenciamentos coletivos de cunho jurídico. Este mesmo

mecanismo de variação também é aquele que é capaz de transformar, de um momento para

outro, um usuário ocasional de drogas em um dependente químico, desde que entre em

relação com um determinado coagulado de discursos médicos.

Importante notar que este plano de organização do socius é um plano imanente, cujos

efeitos se fazem sentir na produção e na sobrecodificação dos modos de subjetivação - uma

vez que se trata de um plano co-extensivo à produção de subjetividade. Desta forma, quando

se coloca que o “problema da droga” vem sendo agenciado de modo a delinear uma linha dura

que permeia o tecido social, é em função de esta questão, na atualidade, se ligar a diversos

outros fluxos molares que traçam o plano de organização do socius: políticas de segurança

pública, destaque nos meios de comunicação de massa etc.

Estas linhas, apesar de sua amplitude, não são dadas, naturalizadas ou eternas, não

obedecendo a um “ideal transcendente” dado de organização ou algo do tipo. Trata-se de “um

tipo de linha, a linha segmentarizada, que nos concerne a todos, em determinada data, em

determinado lugar” (DELEUZE, PARNET, 1998, p. 147). Assim é que, de acordo com

Deleuze e Parnet, as linhas molares de segmentaridade dura possuam três tipos de caracteres

que explicam seu agenciamento. Em primeiro lugar, “os segmentos dependem de máquinas

binárias (...) de classes sociais, de sexos, homem-mulher, de idades, criança-adulto, de raças,

branco-negro, de setores, público-privado (...)” (DELEUZE, PARNET, 1998, p. 149). Em

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outras palavras, trata-se da fórmula do OU....OU... que classifica, ordena, organiza, limita, em

detrimento da lógica do E...E...que restitui às coisas seu potencial de variação. Em segundo

lugar, “os segmentos implicam também dispositivos de poder, bem diversos entre si, cada um

fixando o código e o território do segmento correspondente” (DELEUZE, PARNET, 1998, p.

149). Ou seja, trata-se de dispositivos de poder sobrecodificadores, de agenciamentos

coletivos de enunciação que “hiper-territorializam”, que usurpam a potência de variação dos

elementos. Em terceiro lugar, “toda segmentaridade dura, todas as linhas de segmentaridade

dura envolvem um certo plano que concerne, a um só tempo, às formas e seu

desenvolvimento, os sujeitos e sua formação. Plano de organização, que dispõem sempre de

uma dimensão suplementar (sobrecodificação)” (DELEUZE, PARNET, 1998, p. 151).

Tratar, portanto, do surgimento da problemática das drogas implica na consideração

de determinados marcos históricos e das forças e agentes implicados nesses acontecimentos,

que, por sua vez, configuram a questão. Contemplar o problema da droga como

acontecimento histórico requer a análise de seus fluxos de engendramento, tendo em vista

que:

(...) o importante é que a história não considere um acontecimento sem definir a série de que ele faz parte, sem especificar o modo de análise de que esta série depende, sem procurar conhecer a regularidade dos fenômenos e os limites de probabilidade da sua emergência, sem se interrogar sobre as variações, as inflexões e o comportamento da curva, sem determinar a condições de que elas dependem. (FOUCAULT, 2002b, p. 15)

Os discursos acerca das drogas vêm sendo articulados, portanto, pela conexão entre

múltiplos atores, e instrumentalizados de modo a fomentar práticas médicas, jurídicas, e

políticas numa relação de retroalimentação recíproca. A formatação hegemônica através da

qual vem sendo construída a imagem da droga encontra-se atrelada à noção de que a mesma é

dotada de qualidades intrinsecamente nocivas, negativas, tanto em relação ao indivíduo – com

respeito a sua saúde física e mental – quanto em relação à sociedade em geral - drogas como

causa da desarticulação familiar, comprometimento da vida social, vinculações com episódios

de violência, tráfico de drogas etc.

Tais qualificações atribuídas às drogas justificam perante o meio social a legitimação

de uma política anti-drogas, cuja intensidade e formas de exercício – incluindo aqui as

intervenções políticas e militares – a caracterizam como sendo uma verdadeira guerra.

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Justificam também uma série de práticas executadas pelos atores em rede19 que atuam com

vista à promoção da saúde, dos direitos e dos deveres dos cidadãos – como médicos,

psicólogos, assistentes sociais, juristas etc. Mas como ocorre a legitimação destas práticas?

Como veio se construindo uma imagem tão negativizada das drogas, capaz de compor um

consenso que entende como legítima a “guerra” contra as drogas?

Antes de avançarmos neste ponto, é preciso colocar que a rede de atores não concebe

uma conexão necessária entre elemento algum, não supondo, portanto, nenhuma ordenação

dada. Ao contrário, uma rede de atores:

(...) não pode ser confundida com um tipo de vínculo que liga de modo previsível elementos estáveis e perfeitamente definidos, porque as entidades da quais ela é composta, sejam naturais ou sociais, podem a qualquer momento redefinir sua identidade e suas mútuas relações, trazendo novos elementos. (MORAES, 2004, p. 322-323)

Ou seja, o “problema da droga” não pode ser visto como um problema dado,

naturalizado, e sim construído, agenciado por múltiplos elementos diversos. A atribuição dada

às drogas como naturalmente “más” decorre do obscurecimento deste mecanismo como sendo

a posteriori. Desta maneira, as drogas não são, naturalmente, más. Elas podem ter esta

atribuição em função de um determinado contexto, de uma determinada mobilização dos

atores em rede, que, no entanto, pode ser redimensionada.

É importante lembrar que a definição de ator, para Latour, comporta seres animados e

inanimados, não havendo, para o autor, separação entre sociedade e natureza na rede de atores

– para o autor, haveria um coletivo. A separação entre natureza e sociedade teria sido um

equivoco epistemológico característico da modernidade, que o autor critica severamente.

Assim, em relação ao coletivo, “ao contrário de sociedade, que é um artefato imposto pelo

acordo modernista, esse termo se refere às associações entre humanos e não-humanos. Se a

divisão entre natureza e sociedade torna invisível o processo político pelo qual o cosmo é

coletado num todo habitável, a palavra “coletivo” torna esse processo crucial” (LATOUR,

2001, p. 356). Sendo assim, a droga também é um ator, que enquanto tal, sofre efeitos e causa

efeitos no mundo, e faz parte do coletivo

Deste modo, quando consideramos a imensa rede que circunscreve os discursos anti-

drogas, observa-se a mobilização de inúmeros atores que estabelecem entre si variadas

19Quando se fala em uma “rede de atores” que circunscreve a questão das “drogas”, deve-se considerar que uma rede de atores de caracteriza por suas conexões, seus pontos de convergência e também de bifurcação, de modo que uma rede possui múltiplas entradas, podendo abarcar ou redimensionar seus atores infinitamente. Cf: MORAES (2004).

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conexões, interligando-se de diversas maneiras – como exemplo hipotético, podemos

considerar campanhas anti-drogas na mídia, sustentadas por falas médicas, patrocinadas por

empresários que investem em casas de tratamento para a drogadição, recebendo auxílio

subsidiário do governo, ou ainda investimentos de empresas de convênio privado de saúde,

ou da indústria farmacêutica, etc20. Tais mobilizações e conexões, conforme se expandem,

proporcionam uma maior coesão da rede, resultando no engendramento de um discurso mais

ou menos homogêneo, culminando em um consenso que acaba por se tornar hegemônico e

que produz “efeitos de verdade”. Em outras palavras, quanto maior a quantidade de atores

mobilizados por este discurso – ou seja, quanto mais ampla for sua rede de exercício - quanto

maior o número de conexões estabelecidas por estes diversos atores, mais este se apresentará

como necessário, unívoco e verdadeiro. Assim, “por meio dessa mobilização, o mundo se

converte em argumento” (LATOUR, 2001, p. 120 ).

É desta maneira que, ao apresentar sob o signo da verdade a noção de que as drogas

possuem qualidades intrinsecamente maquiavélicas, ao mesmo tempo em que cristaliza esta

noção de modo hegemônico, os discursos anti-drogas mascaram o fato de que “tal verdade”

encontra-se situada em uma determinada configuração histórica, social e política a qual é

continuamente construída e redimensionada por diversos atores. Consequentemente, ao

estabelecer uma relação necessária entre a droga e determinados atributos, os discursos anti-

drogas potencializam sua capacidade de se apresentar como neutros – especialmente o dos

“especialistas”, como médicos, psicólogos, dentre outros - uma vez que invisibilizam o fato

de que estas qualidades são atribuídas mediante agenciamentos específicos. Sendo assim, a

aparente cisão entre o “produto discursivo” (drogas “más”) e produtores do discurso (atores

discursivos) mascara o fato de que a “droga”, também como ator, não pode ser qualificada,

objetiva e intrinsecamente, de forma neutra e “verdadeira”, a partir de qualidades boas ou

más, uma vez que em realidade ela só emerge com alguma atribuição a partir das conexões

que são estabelecidas com outros atores. Tal cisão acaba, portanto, também por comprometer

a singularização do seu uso21, na medida em que a droga seria necessariamente má e seu uso,

portanto, também seria necessariamente mau. É a partir deste quadro que é possível situar as

justificativas para a exigência e busca de total abstinência em muitas modalidades de

acompanhamento terapêutico para a drogadição. Também é possível situar aqui os discursos

20Os termos em destaque refletem alguns exemplos de como diversos atores se entrelaçam na construção dos discursos sobre as drogas. 21A atribuição intrínseca de nocividade às drogas justifica apostas de tratamentos para a drogadição pautadas no princípio da abstinência, indistinção entre usuários leves, moderados e pesados etc.

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que atribuem sempre uma significação de decadência, “doença”, ou mesmo “morte” em

relação a qualquer um que faça uso de drogas – sem negligenciar a estigmatização, a

marginalidade que acompanha os consumidores de drogas, “viciados”, “drogados”.

Destas considerações extrai-se, portanto, uma conseqüência importante: a “droga” e a

significação da droga aparecem como desvinculadas da rede de atores que a engendra. Estes

outros atores comparecem como “neutros”, pois uma vez que a droga é constituída como um

mal em si mesma, basta a estes atores analisá-la, estudá-la e desvendá-la de acordo com um

protocolo científico pretensamente objetivo e imparcial, que obscurece o caráter interessado –

e, por conseguinte isento de neutralidade - da instrumentalização dos discursos em torno da

droga por estes atores. É obscurecido o fenômeno da “concrescência22” – obscurecimento este

enquadrado pelo o que Latour (2001) define como “acordo modernista” – o que na prática

consiste na aplicação de categorias humanas de pensamento a um objeto tido como exterior,

em detrimento da concepção que pensa não haver tal separação entre o objeto de

conhecimento e aquele que conhece - uma vez que ambos se constróem a partir das conexões

que estabelecem entre si, de forma que não é possível considerar suas existências individuais

a priori. Ou seja, não existe separação entre “aquele que conhece” e “objeto a conhecer”.

Ambos emergem e se constituem no momento em que entram em relação, o que significa

“uma modificação de todos os componentes ou circunstâncias do evento” (LATOUR, 2001, p.

347), implicando em um redimensionamento contínuo de todos os atores implicados23. No

limite da questão, é possível colocar que tais discursos “neutros”, “desinteressados”,

aparecem como se estivessem desvinculados da política. Como resultado, há pouco

questionamento sobre quais interesses, quais relações de poder e de forças estariam

implicados nos agenciamentos que culminam na produção do consenso de que haveria uma

nocividade necessária – e não contingente - atribuída às drogas.

Em outras palavras, os vários elementos que caracterizam os discursos sobre as drogas

são desqualificados em favor de uma dicotomia a qual, de acordo com Latour (1994) produz

um abismo entre as dimensões humana/política e natureza/conhecimento, produzindo a

percepção de que a droga, como substância objetiva, pertenceria a esta última dimensão,

atravessada pelo ideal de neutralidade do conhecimento, que seria assim despolitizado,

atemporal, transcendente – e, portanto, “verdadeiro”, independentemente dos atores e das

22Latour se apropria deste termo empregado por Whitehead para nomear a ocorrência de um fenômeno sem fazer uso do idioma kantiano do fenômeno. Cf. LATOUR (2001). 23Entendendo aqui “evento” como “encontro”, como estabelecimento de conexões.

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conexões estabelecidas em sua produção24. No máximo, o conhecimento verdadeiro estaria

sempre ali localizado intrinsecamente “no objeto”, dependendo tão somente de uma adequada

análise capaz de desnudar sua verdadeira “essência”.

No estudo dos modos através dos quais tais discursos e práticas vêm sendo construídos

e traçados, é possível articular novas maneiras de se pensar as questões vinculadas ao uso e

tráfico de drogas no país e no mundo, desmitificando efeitos de discursos demonizadores e

criminalizantes, uma vez que estes são problematizados como universais e necessários.

Entretanto, esta mesma desmitificação não se constrói partindo do zero, do nada; ao contrário,

a produção de outros discursos e práticas acerca das drogas também se entrelaça com a

atuação destes mesmos e diversos atores, pulula entre as próprias relações de força que

engendram o diagrama do “problema da droga”, em detrimento à concepção de que seria

necessária uma ruptura radical entre tais práticas discursivas ainda hegemônicas e outras por

vir. Não é preciso romper peremptoriamente com o saber “anti-drogas”, sob o preço de recair

na própria perspectiva dicotômica que tentamos evitar: a proposta da Redução de Danos, por

exemplo, admite que o uso da droga pode ser destrutivo ao indivíduo – mas não o é

necessariamente, ao mesmo tempo que admite a impossibilidade, em determinadas condições,

de uma saúde ideal, em favor de uma saúde possível, sem que, no entanto, isso represente

estar “em favor da doença”, ou ainda, da “falta de saúde”. Trata-se, portanto, de considerar

em quais condições as ações da Redução de Danos podem operar como pontos de inflexão em

relação às linhas duras que traçam o diagrama do “problema da droga”, como linhas flexíveis

capazes de desestabilizar suas relações de força, em direção à afirmação da vida.

24Vale lembrar aqui o princípio da simetria de Latour. Este princípio não faz distinção entre os atores “sociais” e a natureza, ou entre “objetos”, de forma que todos estes se configuram como atores cuja presença e atuação é que produz determinada configuração. Tal fato implica uma espécie de dês-verticalização epistemológica, em desacordo com o dito “acordo modernista” que se pauta na distinção mencionada (de onde decorrem os mitos de neutralidade do cientista, objetividade etc). Cf. LATOUR (2001).

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CAPÍTULO II

O TRAÇADO DO ‘PROBLEMA DA DROGA’

De saída, caberia situar a construção dos discursos anti-droga nas políticas interna e

externa norte-americanas do início do século XX. De fato, este país ocupa uma posição de

destaque com relação à formatação da política mundial de combate às drogas, conforme

demonstram muitos autores (CARVALHO, 2006; MALAGUTTI BATISTA, 2003;

BATISTA, 1998; CARNEIRO, 2002; RODRIGUES, 2002; FIORE, 2007). Porém, restringir

a construção destes discursos, bem como de suas práticas recíprocas, em função unicamente

da política norte-americana é negligenciar o papel de outros elementos em relação ao

surgimento das “drogas” como questão. Neste sentido, o que parece ser o nó górdio de

incidência do fenômeno são as próprias práticas políticas, relações de força e poder que se

conjugam na configuração do telos capitalista. Se há o destaque da política norte-americana, é

em função de esta expressar de maneira mais incisiva uma política de “guerra e erradicação

das drogas” e por representar uma espécie de supra-sumo do modus operandi do capital; mas

de forma alguma isso quer dizer que outros agentes ligados de forma mais ou menos explícita

à política não tenham sua parcela de atuação na objetivação da drogas como um problema.

Ao considerarmos a configuração histórica, social, econômica e política que faz

emergir o “problema da droga” concomitantemente aos discursos e práticas que constroem

suas bases, optou-se aqui por discernir três vetores de agenciamento das relações de poder

que, ao compor o diagrama de forças atrelado à problemática da droga, fizeram com que esta

começasse a ganhar contornos mais definidos.

O primeiro destes vetores seria o plano da política e da diplomacia internacionais,

atravessadas então pelo “problema do ópio”, causando grande tensão entre Inglaterra, China,

EUA, Alemanha e outras potências da época, interessadas na regulamentação e/ou proibição

das ditas “substâncias entorpecentes”, no início do século XX. Já o segundo compete à

consolidação da sociedade industrial, levando a um redimensionamento da organização do

trabalho mediante a regulamentação e o controle da vida privada dos trabalhadores, por

intermédio das tecnologias disciplinares. O terceiro vetor, por fim, delineou-se a partir de

práticas de marginalização e criminalização dirigidas a grupos minoritários, os quais, em

função de circunstâncias diversas, tiveram sua imagem negativizada frente à opinião pública

associada ao uso de “drogas”, remetendo também à seleção que o sistema criminal realiza

sobre os criminosos: o da gestão dos ilegalismos.

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Os modos de conjugação e conexão entre estes diversos vetores, possibilitados por

agenciamentos coletivos, concorreram para encorpar o “problema da droga” como problema

social que, se de início adquirira nuances mais discretas, causando “pouco” alarde e dizendo

respeito a grupos relativamente selecionados, no contemporâneo estende-se sobre toda a

população, abandonando a antiga discrição para ocupar a desonrosa condição de um dos

maiores problemas a serem enfrentados pela humanidade. Neste sentido, Rodrigues (2002)

nos fala de uma unanimidade acerca da urgência em se combater o tráfico e o uso de drogas.

Para o autor:

Amparada em lastros morais, escorando-se também em saberes médicos-sanitários, a luta contra o narcotráfico é acionada politicamente quando o próprio tráfico de drogas é içado ao posto de maior antígeno a ‘infectar’ e ‘corromper’ a vida social e institucional dos Estados neodemocráticos. O narcotráfico, considerado o amálgama que congrega e patrocina diversas manifestações de criminalidade organizada, passa a ser alvo de Estados que não discutem tão-só a internacionalização de suas economias, mas que investem no enrijecimento harmônico das políticas de repressão à produção, tráfico e consumo de drogas. (RODRIGUES, 2002, p. 102).

Ainda para o autor, existem, no plano hegemônico dos discursos governamentais

proibicionistas, dois grandes “males do Ocidente”, dois flagelos que deveriam ser erradicados

por meio de “cruzadas” ou “guerras santas”: as drogas e o terrorismo. As expressões “guerras

santas” e “cruzadas” sinalizam para a bagagem moral que encorpa o “problema das drogas” e

para a oficialização de um “estado de exceção” (NEGRI; HARDT, 2001) no trato da mesma.

Finalmente, tratemos então de cada um destes vetores e dos pontos de articulação entre

os mesmos, a fim de visibilizar as relações de força que irão culminar na emergência do

“problema da droga” como um ponto privilegiado de incidência de linhas de saberes, poderes,

práticas e discursos.

2.1 Vetores de composição do ‘problema da droga’

2.1.1 Primeiro vetor: o cenário político e diplomático no início do século XX

O primeiro destes vetores seria aquele encorpado a partir dos planos da política e

diplomacia internacional, cujos agentes principais seriam diretamente ligados ao aparelho de

Estado, em suas mais altas esferas. No caso do “problema das drogas”, as políticas e medidas

adotadas pelos Estados – como é o caso do Brasil – no que tange ao seu enfrentamento

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buscam alinhar-se com as diretrizes forjadas por este plano, evidenciando uma explícita

relação de co-extensão da organização nacional com a política internacional. Trata-se de um

plano de agenciamento onde as decisões tomadas no nível internacional forjam pontos de

ressonância no nível das decisões e políticas nacionais, delineando linhas molares de

segmentaridade dura que se capilarizam na configuração de cada Estado, reorganizando-o

internamente – por exemplo, através de rearranjos jurídicos e penais, de políticas de

prevenção e tratamento da drogadicção etc. Os mecanismos disciplinares e regulamentadores

atrelados ao enfrentamento e ordenação do “problema das drogas”, portanto, se engendram

também a partir deste plano, que é o mesmo o qual, conforme será levantado adiante neste

estudo, gradualmente vai sendo maquinado a partir de agenciamentos que não são de mero

enfrentamento, mas de uma verdadeira guerra contra as drogas em escala planetária, e

também, “imperial”. Neste sentido é que, segundo Carvalho (2006), a transnacionalização do

controle sobre as drogas conjuga-se à transnacionalização do controle social. Neste contexto é

que:

O que, à época, era conhecido como o ‘Problema do Ópio’ expandiu-se lentamente com relação ao número de substâncias sob um controle internacional compulsório cooperativo, que se intensificou em termos de mecanismos de proibição utilizados, e gerou o que agora é conhecido como uma verdadeira ‘Guerra às Drogas’.” (SCHEERER, 1991, p. 170).

O “problema do ópio” remete às pressões internacionais exercidas pelo imperador

chinês e por outras nações – destacando-se os EUA – para que fosse interrompido o comércio

do ópio entre China e Inglaterra. Segundo Batista (1998), eram principalmente negociantes

ingleses que comercializavam o ópio da Índia para a China, de modo que o conflito opunha a

decisão do imperador chinês em suspender o comércio de ópio e os interesses concernentes

aos investimentos ingleses na produção e distribuição da droga, que à época era bastante

expressiva na estratégia da balança de pagamentos internacional inglesa. Assim, até 1910, o

problema do ópio “significava também um conflito geopolítico entre Inglaterra e EUA tanto

com relação ao lucro puro e simples, quanto em termos de estilos políticos drasticamente

diferentes que colidiam no Extremo Oriente. Colonialismo tradicional de um lado e

capitalismo moderno do outro” (SCHEERER, 1991, p. 171). A fim de discutir o

problema, ocorre a Comissão de Xangai, em 1909. Suas resoluções não chegam a colocar

determinações impositivas aos países signatários – inclusive o Brasil – porém, constrangem

potências internacionais com fortes indústrias farmacêuticas que, de forma oposta aos EUA,

estavam interessadas pelo lucrativo mercado de ópio e seus derivados (RODRIGUES, 2002).

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Neste quadro é que o governo americano se propõe a “salvar o povo chinês do vício, o

governo chinês da colonização e o povo chinês dos monopólios europeus” (SCHEERER,

1991, p. 172), ao aliar-se ao governo chinês contra os interesses britânicos. O governo

americano fora então convocado pela delegação chinesa em Xangai a “liderar a grande

cruzada moral do século XX em nome da eterna lei do céu, assim como da consciência cristã

(sic)” (WISSLER, 1931, apud SCHEERER, 1991, p. 172) a favor da proibição do uso não-

medicinal do ópio.

Em 1909, o governo americano envia os convites às demais nações para a realização

da Conferência da Haia, a fim de oficializar as resoluções adotadas na Conferência de Xangai,

resoluções estas até então restritas ao ópio. Esta restrição acaba quando, em 1910, a Inglaterra

propõe que os tópicos a serem discutidos nas decisões em Haia fossem modificados. A

estratégia diplomática adotada pela Inglaterra consistiu no desvio da atenção do “problema do

ópio” para o enfoque na morfina e na cocaína, exigindo redimensionamentos na política

mundial de drogas (SCHEERER, 1991).

Note-se que a Inglaterra fora então a nação cujos interesses foram os mais

prejudicados nas resoluções em Xangai, uma vez que o comércio do ópio, conforme já foi

visto, representava um elemento estratégico para o equilíbrio da balança de pagamentos

internacional deste país. Assim, quando a Inglaterra coloca como condição para seu

comprometimento com a política mundial de drogas a inclusão nesta dos temas da produção e

tráfico da morfina e da cocaína (produtos farmacêuticos de alta tecnologia), “a Alemanha,

deve ser lembrado, era o principal rival econômico da Grã-Bretanha na Europa, sendo o maior

produtor e exportador de cocaína nos anos que procederam a Primeira Guerra Mundial”

(SCHEERER, 1991, p. 174).

Considerando este quadro político é que Scheerer (1991) localiza no ultimato inglês o

ponto de inflexão que faz com que o “problema do ópio” fosse evoluindo, no plano

internacional, no “problema das drogas”. A Inglaterra teria sido, segundo o autor, exposta ao

ridículo na Conferência de Xangai em 1909, tendo sua reputação seriamente abalada perante a

opinião pública internacional, em função da cruzada moral liderada pelos EUA contra o

comércio inglês do ópio. Deste modo, a pré-condição de se discutir também a cocaína como

condição para sua presença em Haia,

(...) solucionou o dilema inglês de ou participar novamente de uma conferência que transformaria a Inglaterra no bode expiatório internacional ou se recusar a participar, o que por sua vez poderia significar uma imprevisível explosão de sentimentos anti-britânicos na opinião pública

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mundial. Com as pré-condições, a Inglaterra pôde virar a mesa – quem estava sendo acusado agora era o maior exportador mundial de morfina e cocaína, o império alemão, e se a Alemanha se recusasse a participar para não prejudicar seus interesses econômicos (isso tudo antes mesmo da conferência ter início), ela é que se tornaria o bode expiatório, e o problema teria sido transferido. Se, por outro lado, as potências concordassem com a proposta inglesa, então estaria feito: o assunto importante seriam os alcalóides industrializados, muito mais que o ópio, e o estigma atrelado ao ópio e à Inglaterra teria de ser dividido entre as nações industrializadas, assim como entre as substâncias em estado bruto e industrializadas. (SCHEERER, 1991, p. 176).

Nos EUA, desde 1907 diversos estados já haviam aprovado legislações contra a

cocaína, depreciando-a a partir de uma mistura de argumentos racistas e interesses médicos25.

Também a China passou a ter interesse na questão, uma vez que, desde a proibição do ópio,

quantidades significativas de morfina e cocaína estavam sendo contrabandeadas para o seu

território (SCHEERER, 1991). Ainda de acordo com o autor, apenas três países resistiam

então à política proibicionista contra as drogas: França, Holanda e Alemanha.

No caso da França, segundo coloca Scheerer (1991) sua produção de cocaína e

morfina não era decisiva para a sua economia, possuindo pouca expressão. Entretanto, este

país atravessava uma fase anti-proibicionista, e por isso, era desfavorável às políticas de

enfrentamento das drogas propostas pela Conferência de Haia. Por fim, a França, em função

da pressão internacional, acabou por sucumbir a mesma, ainda que tenha sido um dos últimos

países a concordar com as diretrizes de controle de tais drogas.

Já a Holanda propunha não a proibição, mas a regulamentação do comércio de tais

drogas. Note-se que este país foi por muito tempo após a Conferência de Haia, um fornecedor

legal de cocaína para o contrabando, adiando a adoção do sistema de controle restrito em

relação às substâncias em questão o máximo possível, comprometendo-se com o mesmo

apenas a partir de 1928.

Nos idos de 1910, na Alemanha, o uso de morfina e cocaína para fins não-médicos era

pouco expressivo, praticamente restrito a ex-combatentes de guerra e a profissionais de saúde,

e, ao contrário dos EUA, o uso de cocaína e morfina não era associado a “temidas e

desprezadas minorias étnicas” (SCHEERER, 1991, p. 179), e os mecanismos legais de

controle da produção e do comércio destas substâncias revelavam-se bastante eficientes e

adequados.

25Já foi discutido como o uso de cocaína, nos EUA, era associado aos negros.

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Pressionada pelas outras potências, o caso é que a Alemanha não conseguira forjar

uma estratégia diplomática eficiente a fim de defender seus interesses. Esta estratégica acabou

consistindo basicamente em tentar ganhar tempo, adiando o máximo possível seu

comprometimento com as resoluções ordenadas na Conferência de Haia, o que terminou por

denegrir a reputação alemã. Finalmente, com o fim da Primeira Guerra Mundial e o

subseqüente Tratado de Versailles, a Alemanha é forçada a acatar tais condições, de modo

que “toda a esperteza e o adiamento tinham sido em vão. A cruzada moral americana e a

contra-ofensiva inglesa haviam juntado forças e eram agora hegemônicas na formulação da

política mundial de drogas” (SCHEERER, 1991, p. 186). Era o início da política contra as

drogas em escala geopolítica.

2.1.2 Segundo vetor: Disciplinarização de Condutas e Reorganização do Trabalho

O segundo vetor que abordamos corresponde à reorganização do trabalho, que à

época da consolidação do modelo fordista/taylorista de produção nos Estados Unidos e -

posteriormente por todo o mundo - agenciou a maquinação dos mecanismos cada vez mais

sofisticados de controle e disciplina sobre os trabalhadores. Neste contexto, Carneiro (2002)

aponta que tanto o proibicionismo quanto o puritanismo foram elementos essenciais na

construção de um novo modelo de organização do trabalho26, concorrendo para um estrito

controle da vida dos trabalhadores.

Segundo Rodrigues (2002), o início do século XX nos Estados Unidos foi marcado

pela insurgência de diversos movimentos reivindicatórios dirigidos ao Estado por parte das

agremiações puritanas. Estas reivindicações exigiam o estabelecimento de medidas

coercitivas para as práticas consideradas imorais, os vícios e as degenerações sociais.

Finalmente, a consolidação do puritanismo organizado nas instâncias representativas norte-

americanas fez com que os movimentos proibicionistas alcançassem ampla repercussão nas

altas esferas políticas do país, ao mesmo tempo em que “as práticas governamentais do Estado

aceleravam a marcha das medidas de controle social com base no rastreamento de hábitos e

disciplinarização das condutas” (RODRIGUES, 2002, p. 103). Desta forma, observa-se que as

26 Em sua obra clássica “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, o sociólogo alemão Marx Weber sugere que o ascetismo suscitado pelo protestantismo teve papel fundamental no desenvolvimento do capitalismo norte-americano. Esta ascese, bastante rigorosa, inclui uma série de restrições em torno de atividades “prazerosas”, descomprometidas com a produção e o trabalho. O trabalho sob a égide capitalista, é, de fato, o elemento mais valorizado por esta ética, para quem “o ócio é a oficina do diabo”. Substâncias entorpecentes, portanto, comprometeriam a performance produtiva do trabalhador

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políticas de proibicionismo emergem profundamente vinculadas a práticas de controle e

disciplina, com o objetivo de coagir a emergência de comportamentos tidos então como

excessivos ou imorais.

Note-se que a base discursiva que legitima em grande parte estas práticas é de caráter

profundamente moralista, de modo que o proibicionismo e as práticas de controle a ele

atreladas são a própria instrumentalização da já mencionada “ética protestante” que pregava

valores ascéticos, uma vida temente à religião, e profundamente afeiçoada ao trabalho – a

melhor forma de se honrar a Deus. A abnegação dos prazeres seria o preço para a elevação da

virtude e a realização no trabalho, e a garantia de um lugar ao lado do Senhor.

É dentro deste quadro que podemos considerar os primeiros momentos da guerra

contra as drogas no século XX à luz das tecnologias disciplinares que incidem sobre o

“homem-corpo”, estabelecendo um fecundo ponto de investimento para o biopoder. Tais

tecnologias, de acordo com Foucault, visam gerir os homens na medida em que estes são

convocados como “corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados,

eventualmente punidos” (FOUCAULT, 2005, p. 289). O objetivo das tecnologias

disciplinares, que se coadunam com o desenvolvimento do sistema capitalista, portanto, é o de

tornar os homens ao mesmo tempo úteis e dóceis.

É importante notar, entretanto, que este momento não caracteriza a primeira vez em

que o corpo é tomado como alvo de investimento pelo poder, como assinala o próprio

Foucault. O que diferencia o controle sobre o corpo atrelado às tecnologias disciplinares é a

sua escala, seu objeto e sua modalidade. Esta nova modalidade de controle disciplinar já

começa a aparecer no fim do século XVIII, com a explosão demográfica e o desenvolvimento

do aparelho de produção. As tecnologias disciplinares surgem em um momento onde é

preciso gerir esta população ao mesmo tempo em que é necessário colocá-la a serviço do

desenvolvimento econômico, e assim formatá-la nos limites da racionalização industrial:

Na verdade os dois processos, acumulação de homens e acumulação de capital, não podem ser separados; não teria sido possível resolver o problema da acumulação de homens sem o crescimento de um aparelho de produção capaz ao mesmo tempo de mante-los e de utilizá-los; inversamente, as técnicas que tornam útil a multiplicidade cumulativa de homens aceleram o movimento de acumulação de capital. A um nível menos geral, as mutações tecnológicas do aparelho de produção, a divisão do trabalho, e a elaboração das maneiras de proceder disciplinares mantiveram um conjunto de relações muito próximas. (FOUCAULT, 2004b, p. 182).

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A escala de controle vai se tornando mais capilar: não se trata de cuidar do corpo em

massa, como uma unidade indissociável, “mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer

sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao mesmo nível da mecânica – movimentos,

gestos, atitudes, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo” (FOUCAULT, p. 118,

2004b). O novo objeto de controle é a economia, a eficácia dos movimentos e sua

organização interna, onde a “coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais”

(FOUCAULT, p. 118, 2004b). Por fim, a modalidade do controle, que opera por meio de

uma coação ininterrupta, interessada mais propriamente nos processos que nos seus

resultados, e que “se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o

tempo, o espaço, os movimentos” (FOUCAULT, 2004b, p. 118).

A disciplina tornou-se um dispositivo a serviço do poder pelo qual foi possível exercer

a separação, o controle e a coordenação das tarefas, o quadriculamento analítico do tempo,

dos movimentos, das forças dos corpos, de maneira eficaz e pouco custosa, configurando um

esquema operatório aplicável aos grupos e aos mecanismos de produção – uma “anatomo-

política”:

(...) a projeção maciça dos métodos militares sobre a organização industrial foi um exemplo dessa modelação da divisão do trabalho a partir de esquemas de poder. Mas em compensação a análise técnica do processo de produção, sua decomposição "maquinal" se projetaram sobre a força de trabalho que tinha como tarefa realizá-lo: a constituição dessas máquinas disciplinares onde são compostas e assim amplificadas as forças individuais que elas associam é o efeito dessa projeção. Digamos que a disciplina é o processo técnico unitário pelo qual a força do corpo é com o mínimo ónus reduzida como força "política", e maximalizada como força útil. O crescimento de uma economia capitalista fez apelo à modalidade específica do poder disciplinar, cujas fórmulas gerais, cujos processos de submissão das forças e dos corpos, cuja "anatomia política", em uma palavra, podem ser postos em funcionamento através de regimes políticos, de aparelhos ou de instituições muito diversas. (FOUCAULT, 2004b, p. 182).

É a partir deste contexto de desenvolvimento do capital e das tecnologias de controle,

delineado desde o final do século XVIII e início do século XIX, que finalmente emerge o

modelo fordista de produção, cujo marco inicial Harvey (1999) localiza no ano de 1914 e

assinala profundas transformações na organização do trabalho assalariado. De fato, não se

pode afirmar que tais mudanças se deram apenas em função do fordismo: estas já vinham se

delineando a partir das idéias de Taylor com seus Princípios de Administração Científica, de

1911 – um verdadeiro tratado acerca dos modos de se aumentar a produtividade dos

trabalhadores por intermédio da decomposição do processo de trabalho em movimentos

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componentes, bem como da fragmentação das tarefas do trabalho de acordo com padrões

rígidos de tempo e movimento (HARVEY, 1999), o que já caracterizava os dispositivos

disciplinares. O que Ford trouxe de novo, e que iria redimensionar a organização capitalista,

foi “seu reconhecimento explícito de que a produção de massa significava consumo de massa,

um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência

do trabalho” (HARVEY, 1999, p. 121). O dito ‘consumo de massa’ baseava-se na concepção

de que os níveis de consumo e demanda de produção deveriam ser aumentados através do

aumento do poder de consumo dos próprios trabalhadores: daí a lógica salarial de Ford,

introduzindo a jornada de oito horas de trabalho por cinco dólares:

É preciso que o tempo dos homens seja oferecido ao aparelho de produção; que o aparelho de produção possa utilizar o tempo de vida, o tempo de existência dos homens. É para isso e desta forma que o controle se exerce. São necessárias duas coisas para que se forme a sociedade industrial. Por um lado, é preciso que o tempo dos homens seja colocado no mercado, oferecido aos que o querem comprar, e comprá-lo em troca de um salário; e é preciso, por outro lado, que este tempo dos homens seja transformado em tempo de trabalho. (FOUCAULT, 1999, p. 116).

A reorganização do trabalho, portanto, neste momento de expansão do capital, se

refere à demanda de conversão da capacidade de homens e mulheres de efetivarem um

trabalho ativo em um processo produtivo cujos resultados pudessem ser apropriados pelos

capitalistas. A expectativa de otimizar a capacidade produtiva do trabalhador, e

consequentemente, elevar os níveis de produção levantavam a questão de disciplinarização

das condutas dos trabalhadores, não apenas no interior da fábrica e nas linhas de produção,

mas também fora dela – o que implicava uma necessidade de controle contínuo não apenas do

trabalhador mas de sua família; não apenas daquilo que ele exercia no trabalho, mas também

como aproveitava suas horas de lazer:

A disciplinarização da força de trabalho para os propósitos de acumulação do capital - um processo a que vou me referir, de modo geral, como “controle do trabalho” – (...) envolve, em primeiro lugar, alguma mistura de repressão, familiarização, cooptação e cooperação, elementos que tem de ser organizados não somente no local de trabalho como na sociedade como um todo. A socialização do trabalhador nas condições de produção capitalista envolve o controle social bem amplo das capacidades físicas e mentais. A educação, o treinamento, a persuasão, a mobilização de certos sentimentos sociais (a ética do trabalho, a lealdade aos companheiros, o orgulho local ou nacional) e propensões psicológicas (a busca da identidade através do trabalho, a iniciativa individual ou a solidariedade social) desempenhavam um papel e estão claramente presentes (...) e afirmadas pela simples articulação de sua experiência por parte dos que fazem o trabalho. (HARVEY, 1999, p. 119).

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Como observa Harvey (1999), a jornada de oito horas a cinco dólares objetivava não

apenas conferir poder de consumo aos trabalhadores, mas especialmente fazer com que estes

adquirissem a disciplina necessária para a operação do sistema de linha de montagem de alta

produtividade. Mas discipliná-lo significava também regular seus lazeres, seus modos de

vida, para garantir que os trabalhadores gastassem seu dinheiro de forma apropriada sem

comprometer o nível da produção: eis uma preocupação que se aprofunda no modelo fordista.

O que o trabalhador fazia em seu tempo livre? Teria ele o hábito de jogar, ou de beber?..

É neste cenário, em suma, que se incluem as técnicas de gerência do corpo-trabalho –

a fim de assegurar a separação, alinhamento e vigilância destes corpos, investindo em sua

força útil mediante o exercício, o treinamento etc. O sexo e a droga – especialmente o álcool27

– constituíram-se como objetos privilegiados de incidência dos mecanismos de controle sobre

a vida dos trabalhadores, a fim de aumentar ao máximo sua produtividade e disciplinar

mesmo sua vida íntima. Os instintos deveriam ser racionalizados, formatados pela política

industrial, “para ter certeza de que o ‘novo homem’ da produção de massa tinha o tipo certo

de probidade moral, de vida familiar e de capacidade de consumo prudente (isto é, não

alcoólico) e ‘racional’ para corresponder às necessidades e expectativas da corporação”

(HARVEY, 1999, p. 122). Tal controle foi facilitado pela criação, por parte dos industriais,

das “vilas operárias” e suas derivações, localizadas próximas às indústrias, o que permitiu que

os trabalhadores fossem vigiados de forma mais eficiente por meio de inspeções. A Lei Seca

americana, que vigorou entre 1919 e 1932 nos Estados Unidos, é um reflexo direto desta

demanda de controle sobre a vida dos trabalhadores. Proibia a produção, o transporte, a

importação e também a exportação de bebidas alcoólicas em todo o território dos Estados

Unidos. Como conseqüência desta proibição, formou-se uma ampla rede ilegal em torno das

bebidas ilícitas, que aos poucos foi se ligando a outras redes ilegais, como o jogo, a

prostituição etc. (CARNEIRO, 2002).

Desta maneira, as tendências proibicionistas relativas ao uso de drogas, não por acaso

foram encorpadas neste momento de reorganização dos modos de produção. O

proibicionismo, conforme atrelado aos dispositivos disciplinares, à necessidade de

docilização, à racionalização dos corpos e à formatação dos indivíduos é apenas um dos

recursos do biopoder, uma de suas faces mais explícitas.

27Embora este trabalho trate das drogas hoje ilícitas, cabe lembrar o proibicionismo relacionado ao álcool no início do século XX, que inspirou a Lei Seca norte-americana (1919-1932) e se refletiu também no Brasil, em campanhas anti-alcoolismo no mesmo período.

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Mas, se alguns são devidamente enquadrados, produtivos, docilizados, como o poder

se relaciona com aqueles que resistem às tentativas de adestramento, ou que são considerados,

até certo ponto, desnecessários para o sistema de produção, sendo assim impossibilitados de

gozar das benesses advindas da sociedade capitalista? Que lugar ocupam estes

desenquadrados, estes desviantes, infratores da norma, geralmente com baixo poder de

consumo, estes muitos outros que escapam ao padrão? Como eles se encontram com o

biopoder e com o problema da droga?

2.1.3 Terceiro vetor: uso e comércio de drogas como ilegalismo popular

O “problema da droga” foi profundamente marcado, ao longo de sua história, pela

criminalização. A conveniência de enquadrar determinados grupos sob a égide da

criminalização aparece desde os primeiros contornos da questão. Estes grupos são,

principalmente, formados por aqueles que, de alguma forma, não se enquadram nos moldes da

racionalização industrial; aqueles que de alguma maneira afrontam o “padrão”: homem,

branco, trabalhador, cristão. Em relação a este vetor, o problema da droga estaria mais

relacionado às propriedades da dita “droga”, ou mais precisamente aos grupos os quais seu

uso é atribuído? Como o uso e o comércio de drogas se convertem em ilegalismo, e qual a

lógica desta conversão?

Sob a perspectiva de Foucault, verifica-se que até certo momento, os ditos

“ilegalismos populares” foram perfeitamente tolerados pela sociedade – inclusive, é possível

falar em uma certa romantização do ‘bandido’, do ladrão, que muitas vezes acabava se

mesclando com a figura do herói. No Antigo Regime, havia certo ajuste, um equilíbrio entre

os ilegalismos, e estes não comprometiam o funcionamento social. Malgrado a ocorrência de

grandes suplícios, de castigos atrozes, a figura do bandido era aceita. Com efeito, a prática dos

ilegalismos era não somente tolerada, mas em muitos casos, também conveniente: como

exemplo, Foucault aponta os interesses econômicos de uma burguesia interessada em driblar

os impostos e as taxas alfandegárias, e que por isso, apoiava as lutas das camadas populares

da população contra os impostos (FOUCAULT, 2006).

Chegando ao final do século XVIII, percebe-se uma mudança de perspectiva onde esta

tolerância é diminuída. Quando o processo de capitalização coloca nas mãos das classes

populares uma riqueza expressa em equipamentos e matérias-primas, torna-se necessário para

os donos dos meios de produção proteger essa riqueza: os ilegalismos populares, até então

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tolerados, tornaram-se intoleráveis. Emerge assim uma demanda em direção à supressão dos

ilegalismos populares, que culmina com o surgimento da prisão, instituição com fins mais

propriamente ortopédicos, de enquadramento, que de repressão pura e simples:

Foi absolutamente necessário constituir o povo como um sujeito moral, portanto, separando nitidamente o grupo de delinqüentes, mostrando-os como perigosos não apenas para os ricos, mas também para os pobres, mostrando-os carregados de todos os vícios e responsáveis pelos maiores perigos. (FOUCAULT, 2004a, p. 133, grifo nosso).

De fato, a criminalização do uso de determinadas drogas nos Estados Unidos, país

pioneiro quanto ao proibicionismo, expressou-se em grande parte em função de conflitos

econômicos que foram reconfigurados em conflitos sociais (BATISTA, 2003), na forma de

marginalização de grupos “menores”, que não se enquadravam no padrão norte-americano –

homem branco, trabalhador, protestante, ascético. A concorrência pelo mercado de trabalho –

especialmente em épocas de crise -, a vasta oferta de mão-de-obra barata desdobrada destes

fluxos imigrantes, ajudam a concorrer para a marginalização destas minorias, com o objetivo

de excluí-las destes mercados e exacerbar o controle sobre as mesmas. O uso de substâncias

psicoativas converte-se em mais uma categoria dos ilegalismos populares, um vício perigoso,

que pode redundar nos ‘maiores perigos’:

A primeira lei federal contra a maconha tinha como carga ideológica a sua associação com imigrantes mexicanos que ameaçavam a oferta de mão-de-obra no período da Depressão. O mesmo ocorreu com a migração chinesa na Califórnia, desnecessária após a construção das estradas de ferro, que foi associada ao ópio. No Sul dos Estados Unidos, os trabalhadores negros do algodão foram vinculados a cocaína, criminalidade e estupro, no momento de sua luta por emancipação. O medo do negro drogado coincidiu com o auge dos linchamentos e da segregação social legalizada. Estes três grupos étnicos disputavam o mercado de trabalho nos Estados Unidos, dispostos a trabalhar por menores salários que os brancos. (BATISTA, 2003, p. 81).

Nesse contexto, o combate ao uso de drogas e as penalidades dirigidas ao consumo e

ao seu comércio podem ser entendidas como um dispositivo de gestão dos ilegalismos,

conforme se relaciona com políticas e práticas que tem por objetivo mais propriamente a

contenção, o controle e a normalização de determinados grupos em detrimento de outros. A

penalidade, ou ainda, a possibilidade de prisão para os usuários e os comerciantes de droga

reflete mais a demanda por normalização destes que pura e simplesmente a repressão:

A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar

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proveito daqueles. Em resumo, a penalidade não "reprimiria" pura e simplesmente as ilegalidades; ela as "diferenciaria", faria sua "economia" geral. E se podemos falar de uma justiça não é só porque a própria lei ou a maneira de aplicá-la servem aos interesses de uma classe, é porque toda a gestão diferencial das ilegalidades por intermédio da penalidade faz parte desses mecanismos de dominação. Os castigos legais devem ser recolocados numa estratégia global das ilegalidades. (FOUCAULT, 2004b, p. 226-227).

Quando se considera que a criminalização do uso de drogas atrela-se à produção de

estereótipos e estigmatização de determinados grupos que não se alinham aos padrões

hegemônicos, observa-se que há neste processo um esforço de sobrecodificação (próprio à

máquina abstrata) que faz funcionar os mecanismos de poder cujas maquinações traduzem-se

em linhas de segmentariedade dura, reificadoras, formatadoras dos modos de subjetivação28.

É este processo de sobrecodificação que permite o “encaixe” de diferentes grupos em

categorias como “maus” ou “perigosos”, na medida em que estes são, a princípio, distintos

das formas-padrão de subjetividade (ou subjetividades hegemômicas) que se engendram a

partir da configuração de linhas molares e segmentarias em um determinado momento

(formando o “padrão”). Trata-se de grupos – poder-se-ia dizer – desterritorializados, de

outros, de alteridades que não ancoram sua territorialidade nas formas hegemônicas, e que por

isso precisam ser sobrecodificadas a fim de abrir espaço para que a atuação dos mecanismos

de controle e disciplinarização se dêem em sua plenitude. Nos Estados Unidos, verifica-se que

tais mecanismos exerceram-se substancialmente sobre fluxos literalmente migrantes –

chineses, mexicanos, negros – i.e, desterritorializados, estranhos à forma-sujeito padrão do

cidadão norte-americano, com culturas, hábitos e práticas diversas.

Em suma, a construção do “problema das drogas” alimentou-se de outros

agenciamentos de controle e disciplinarização, desta vez atrelados a mecanismos de

marginalização e criminalização de grupos socialmente visados, caracterizados por ocuparem

uma espécie de “não-lugar” em relação àqueles “socialmente enquadrados”. Trata-se de outro

nível ou plano da produção do “problema das drogas”, cujas linhas serão preponderantes na

28É esta máquina abstrata que cumpre a função de sobrecodificação e ordenação destas linhas, fluxos, segmentos, cujo agenciamento concreto, segundo Deleuze e Guattari (2004) é operado pelo aparelho de Estado. As políticas de segurança pública, ou as de saúde pública, por exemplo, que atravessam o “problema da droga” dependem deste agenciamento por parte do Estado, da mesma forma que se ligam a mecanismos de binarização/dicotomização que sobrecodificam e enquadram os fluxos e movimentos atrelados ao “problema da droga” de modo a buscar sempre usurpar qualquer potência de variação em relação às formas já sobrecodificadas.Um exemplo pertinente a este estudo que ilustra esta produção de dicotomias seria o par saúde-doença, ou normal-patológico, ou ainda, corpo purificado –corpo doente, impuro, “drogado”, sobre o qual a lógica dicotômica entende o uso de drogas como sendo necessariamente nocivo, de modo que o único “tratamento viável” seria a abstinência, ou “purificação”. Esta discussão será retomada no decorrer deste estudo, em relação com a concepção da busca por uma saúde possível, e não uma saúde ideal.

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definição das políticas de combate às mesmas por todo o século XX até os dias atuais,

delineando aquilo que, de acordo com a perspectiva foucaultiana, define-se como Racismo de

Estado – revelando-se então como uma eficiente ferramenta na construção da estigmatização

tanto de grupos “convenientemente” vinculados ao uso de drogas, quanto daqueles associados

ao seu comércio e produção, justificando sua marginalização, criminalização, exclusão e, no

limite, o extermínio. Este racismo de estado funciona como ferramenta para a gestão dos

ilegalismos, elegendo aqueles sobre os quais os mecanismos de punibilidade devem incidir, e

aqueles que se deve (ou se pode) tolerar.

Em relação a este racismo, que será tratado com mais profundidade adiante29, é

necessário colocar desde já que se trata de uma segmetaridade dura que apesar de sua

molaridade, opera por molecularização, uma vez que atravessa diretamente as massas30. Desta

forma, é possível vislumbrar a capilarização do Racismo de Estado – segmento molar – em

segmentos moleculares, “microfascismos”, ou ainda, microagenciamentos extensivos por todo

corpo social, uma vez que:

Quanto mais a organização molar é forte, mais ela própria suscita uma molecularização de seus elementos, suas relações e seus aparelhos elementares. Quando a máquina torna-se planetária ou cósmica, os agenciamentos tem uma tendência cada vez maior a se miniaturizar e a tornar-se microagenciamentos. (DELEUZE, GUATTARI, 2004, p. 93)

De fato, Deleuze e Guattari identificam o fascismo a fluxos de agenciamentos

moleculares, uma vez que são maquinados pelas massas, já que ele não se separa de focos

moleculares “que pululam a saltam de um ponto a outro, em interação (...)” (DELEUZE,

GUATTARI, 2004, p. 92). É a esta molecularização que podemos vincular, no caso do

“problema das drogas”, uma espécie de consenso entre a massa de que o traficante seria um

dos maiores inimigos de nossa sociedade31, “traficante herege que pretende apossar-se das

almas de nossas crianças” (BATISTA, 2000, apud BATISTA, 2003, p. 12); é esta

molecularização que torna possível ainda que toda espécie de violência seja justificada e

legitimada, desde que, de acordo com Batista (2003) a vítima seja um suposto traficante.

29 O Racismo de Estado é abordado de forma mais profunda na próxima seção, por entendermos ser ele um dos mais fortes componentes (ou uma das linhas mais duras e inflexíveis) das políticas de combate às drogas. 30Neste sentido, é importante considerar que apesar de a princípio a noção de massa parecer corresponder a um segmento molar, em verdade, trata-se de um segmento molecular, uma vê que “a noção de massa é uma noção molecular, procedendo por um tipo de segmentação irredutível à segmentaridade molar de classe [de cunho binário, enquadrada pela lógica do OU...OU]” (DELEUZE, GUATTARI, 2004, p. 91). 31Um exemplo recente de tal hostilidade das massas perante a figura do traficante e que ilustra bem este caso seria o sucesso do filme Tropa de Elite, e a consagração do personagem Capitão Nascimento, conhecido pelo “rigor” com que lida com o tráfico e os “bandidos” em geral, como herói (sic).

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Assim é que, considerando o “problema da droga” e o potencial de mobilização que

este vem adquirindo perante a massa, observa-se que tal problemática atrela-se a uma

“microgestão de pequenos medos, toda uma insegurança molecular permanente” (DELEUZE,

GUATTARI, 2004, p. 94). Em outras palavras, o horror à violência atrelada ao tráfico de

drogas, a hostilidade da massa aos grupos aos quais se vinculam o uso de drogas desde a

emergência desta questão - como será visto a seguir – os próprios atributos vinculados aos

usuários, o medo de “o filho tornar-se um viciado” faz com que o “problema da droga” atinja,

de uma forma ou de outra, toda a população.

Daí que a produção de estigmas, os estereótipos maquinados a partir dos processos de

sobrecodificação, sejam importantes vetores de molecularização deste racismo. De todo

modo, quando se verifica o fervor por “justiça” por parte da massa colocando em pauta

discussões sobre pena de morte, endurecimento das penas, redução da maioridade penal,

verifica-se que “é uma potência micropolítica ou molecular que torna o fascismo perigoso,

porque é um movimento de massa: um corpo canceroso mais do que um organismo

totalitário” (DELEUZE, GUATTARI, 2004, p. 92). É neste sentido que o fascismo atrela-se à

insurgência do “problema da droga”, desde seus primeiros movimentos.

2.2 Ressonâncias dos primeiros momentos do combate às drogas no Brasil

De acordo com Fiore (2007), não havia no Brasil, até o final do século XIX, uma

preocupação direta com o uso de substâncias psicoativas. Todavia, na década de 1830 o uso

da maconha já havia sido proibido pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro:

É proibida a venda e o uso do Pito do Pango, bem como a conservação dele em casas públicas: os contraventores serão multados, a saber, o vendedor em 20$000 e os escravos e mais pessoas que dele usarem, em 3 dias de cadeia32.

Observa-se que entre a penalidade dirigida aos ‘traficantes’ (em sua maioria brancos,

de classe média, especialmente boticários) da droga há uma diferença qualitativa em relação

aquela dirigida aos ‘escravos e mais pessoas’ que a consumissem – enquanto aos primeiros

cabia o pagamento de multa, aos segundos, cabia a privação de liberdade provisória. Verifica-

se uma gestão de ilegalismos, uma diferença que ilustra a economia da punibilidade, na qual

os ilegalismos ‘populares’ vão para a prisão.

32Fonte: Rocco, 1999.

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Conforme aponta Adiala (1986 apud FIORE, 2007), este fato se relaciona com a

necessidade de controlar uma crescente população negra e miscigenada formada por escravos

e já por ex-escravos. Já naquela época, a maconha era vinculada aos negros, aos mulatos e às

camadas mais empobrecidas. Neste momento, conforme aponta Fiore (2007, p. 26), “não era

para as propriedades da planta que o Estado imperial parecia estar voltado no século XIX, e

sim contra a propagação de práticas específicas de classe e/ou raça que, de alguma maneira,

eram vistas como perigosas”. Não havia ainda, conforme assinala o autor, uma preocupação

direta com a planta por parte do Estado. Era possível, inclusive, colher pés da planta no

Palácio Imperial de São Cristóvão.

Assim é que, com respeito ao Brasil, desde seu início, a criminalização relacionada ao

uso e comércio ilícito de drogas atingiu principalmente jovens negros, pobres, residentes em

área de baixa renda, conforme demonstram os estudos de Batista (2003). Já no início do

século XX, o uso de drogas (especialmente os derivados de opiáceos e da cocaína) era

remetido principalmente a artistas, aos intelectuais e a poucos grupos excêntricos, e seu

comércio, atrelado especialmente aos boticários, não possuindo significação econômica

(BATISTA, 1998) nem gerando alarde social. Porém, a partir da década de vinte, já com o

Brasil comprometido com as resoluções firmadas pela Convenção em Haia em relação ao

controle de opiáceos e da cocaína33, os “vícios elegantes” foram se disseminando entre as

“classes perigosas” (RODRIGUES, 2002), indo ao encontro das falas que consideravam o uso

de substâncias psicoativas como característico dos “vagabundos”, dos “degenerados”,

daqueles que supostamente teriam uma disposição inata para não se enquadrar nas normas

sociais. Se os ditos “vícios elegantes” eram convenientemente tolerados, quando o uso de

drogas passa a ser definitivamente associado às ‘classes perigosas’, torna-se factível de maior

rigor em seu controle – era preciso suprimir os ilegalismos populares. A herança lombrosiana

no discurso jurídico-penal, a ascensão da psiquiatria como “ciência”, os vestígios da

escravidão, foram alguns dos elementos que concorreram para embasar a criminalização do

uso de drogas no Brasil. Deste modo é que, a partir de estudos que comparam a

criminalização do uso de drogas no Brasil e nos Estados Unidos, o antropólogo Edward

MacRae coloca que:

Enquanto lá se tratava da população de migrantes de origem mexicana, aqui os visados eram os negros quando, em 1936, a promulgação ocorreu, após violentas campanhas de cunho declaradamente racista. Estas retratavam o costume de fumar Cannabis como a “vingança do derrotado”, enfatizando a

33Sobre a Convenção em Haia, ver o item 2.1.1 deste capítulo.

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sua origem africana. Associavam seus efeitos aos dos opiáceos (daí a utilização da expressão “ópio do pobre”) e apresentavam-no como uma ameaça à “raça brasileira”. Muniu-se, assim, as autoridades de novos pretextos para manter a população negra, então considerada “classe perigosa”, sob vigilância. Qualquer negro tornava-se suspeito de ser maconheiro ou traficante e, portanto, passível de ser revistado e detido. (MaCRAE, 2004, p. 11-12)

No caso brasileiro, já em 1921, tornou-se notável a relação entre o uso de drogas e a

necessidade de disciplinarização e controle dos “intoxicados” como potenciais desordeiros,

criminosos e imorais. É o que se verifica através do decreto 4.294/21, que determina que os

intoxicados “por substâncias venenosas (sic) com qualidades entorpecentes” estariam sujeitos

à internação compulsória para “evitar a prática de atos criminosos ou a completa perdição

moral” (BRASIL, art.6º, § 2º, 4.94/21 apud BATISTA, 1998). Note-se que a internação

compulsória justificava-se pela possibilidade de o “intoxicado” cometer atos ilícitos ou

imorais – logo, a função da internação era menos punir, menos tratar, que disciplinar,

minimizar as possibilidades de ocorrência de atos sujeitos à reprovação social ou à

desarticulação desta ordem. Em outras palavras, a função da internação, como mecanismo

disciplinar, seria a de corrigir virtualidades, e se o “intoxicado” é internado é graças à

periculosidade que lhe é atribuída pelas instâncias de ordem. A presença da noção de

periculosidade na lei 4.294/21 seria assim um desdobramento lógico das teorias penais do

século XIX, cujos agenciamentos culminaram na produção de um controle “não tanto sobre se

o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que

podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na

iminência de fazer” (FOUCAULT, 1999, p. 84), de maneira que “a noção de periculosidade

significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e

não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das

virtualidades de comportamento que elas representam” (FOUCAULT, 1999, p. 84). Desta

maneira, os “intoxicados”, de forma bastante semelhante aos loucos, representariam riscos

potenciais de danos à sociedade, e deveriam ser devidamente confinados e disciplinarizados, a

fim tanto de isolá-los da sociedade quanto de “corrigi-los”.

Assim, após a Conferência em Haia, seguiram-se outras direcionadas ao combate e

repressão das “substâncias entorpecentes”, todas subscritas pelo Brasil e promulgadas

internamente, exigindo uma série de reformulações sucessivas na legislação penal brasileira,

revelando uma “internacionalização do controle” (BATISTA, 1998, CARVALHO, 2006). A

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esta altura, tendo em vista o quadro de consolidação internacional da política proibicionista,

especialmente com relação à “cruzada moral” americana, é preciso ter em mente que:

Estar alinhado às determinações acordadas nos encontros internacionais significava, em larga medida, estar sintonizado com a postura proibicionista defendida pelos Estados Unidos; postura que se pautava pela proibição total à livre produção, circulação e consumo de substâncias psicoativas e pela repressão cerrada aos segmentos sociais associados (em parte pela prática, em parte pelo discurso governamental) ao tráfico de drogas. Se os encontros internacionais dos anos 1920 a 1930 foram ciceroneados pela Liga das Nações, após a Segunda Grande Guerra tais reuniões continuaram a se dar no âmbito da Organização das Nações Unidas (com seus organismos especializados) sempre contando com a incitação estaduniense. O Brasil, assíduo freqüentador destas reuniões, pauta o ritmo de suas sucessivas reformas legais na matéria, seguindo as determinações destes encontros. (RODRIGUES, 2002, p. 104).

No contexto das reformulações constantes destas leis, através de decretos com fins de

alinhamento à política internacional de combate às drogas, predominou no Brasil até 1964,

segundo Batista (1998), o “modelo sanitário”, ou ainda, o modelo médico-sanitário-jurídico,

de acordo com Carvalho (2006). Este modelo embasou-se a partir de discursos que Carvalho

(2006) apresenta como representantes da lógica da “ideologia de diferenciação”. De acordo

com esta lógica, ao consumidor e ao traficante aplicam-se paradigmas distintos. Sobre os

traficantes, ou “delinqüentes”, recaíra então o discurso jurídico de onde decorre “o estereótipo

criminoso do corruptor da moral e da saúde pública” (CARVALHO, 2006, p. 10) enquanto

que sobre os consumidores de drogas incidira um prisma sanitarista, difundindo o estereótipo

da dependência34. São aqui ilustrativas as palavras de Hungria – que transplantou o princípio

de não-criminalização do usuário ou experimentador de drogas ao Código Penal de 1940 –

citadas por Batista (1998, p. 81-82): “o viciado atual (já toxicômano ou simples intoxicado

habitual) é um doente que precisa de tratamento, e não de punição (...) o ainda não viciado

não deixa de ser uma vítima do perigo de ser empolgado pelo vício, e não um criminoso”.

A identificação do usuário de drogas como ‘doente’, bem como a demanda por seu

isolamento, revelam a presença das tecnologias sanitaristas e higienistas que ganharam relevo,

no Brasil, entre o século XIX e através do século XX. Foucault associa o higienismo e as

preocupações sanitárias ao surgimento da medicina urbana e social, ainda no século XVIII,

quando o crescimento das cidades se viu às voltas com doenças epidêmicas, miasmas, os

problemas com o esgoto, chamando a atenção para a saúde da população etc. Chama de 34Deste modo, os discursos sanitaristas e higienistas, quando considerados em relação ao problema das drogas à luz das relações de poder e dos mecanismos de controle e disciplina, revelam-se importantes contribuintes para a sobrecodificação, em nível molar, dos consumidores de drogas como “doentes”, “dependentes”.

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higiene pública a “técnica de controle e de modificação dos elementos materiais do meio que

são suscetíveis de favorecer ou, ao contrário, prejudicar a saúde (...) é o controle

político−científico deste meio” (FOUCAULT, 2004a, p. 93) 35. O higienismo é direcionado

para a população como um todo, à promoção da salubridade dos meios, e estabelece uma

relação dicotômica entre doença e saúde. Foucault também nos chama a atenção para a

vinculação que estes dispositivos possuem com as noções de eugenia e de raça, como estas se

relacionam com as ‘doenças’ e ‘anomalias’ e como estes servem ao controle e normalização

da população36. De todo modo, o ponto central do sanitarismo e do higienismo é o combate à

doença e à promoção da saúde: daí que, quando estas técnicas tomam o usuário de drogas

como objeto, este seja evocado como um ‘doente’.

Em relação aos “delinqüentes”, segundo Batista (1998), estes eram, nos primeiros

momentos do combate às drogas no Brasil, essencialmente médicos, boticários,

farmacêuticos, que trabalhavam com “substâncias entorpecentes”. Note-se que havia

“permissão” para que os médicos passassem receitas recomendando o uso médico de tais

substâncias, porém, havia um controle estrito sobre tais receitas – uma vez que as autoridades

sanitárias deveriam ser devidamente informadas sobre o fato - de maneira que o profissional

que as prescrevesse continuamente era declarado suspeito, e seu receituário era detido para

uma “fiscalização especial e rigorosa”. O fato é que, no momento do predomínio do modelo

sanitário, “o abuso de drogas não atrai a atenção dos juristas, dos criminólogos e mesmo dos

legisladores” (BATISTA, 1998, p. 84), e as estatísticas sobre o tráfico são pouco expressivas.

Neste momento, o “traficante” não é um dos “grandes inimigos públicos”, e sua figura

mobiliza pouca atenção por parte da sociedade.

Entretanto, note-se que mesmo o controle do tráfico era então regido pelo sanitarismo

e pelas técnicas de saberes higienistas, “para as quais as barreiras alfandegárias são

instrumentos estratégicos no controle das epidemias e na montagem de tal política criminal”

(BATISTA, 1998, p. 81) – daí que a drogadicção tenha sido convertida, através do decreto no

20.930 de onze de junho de 1932 em doença de notificação compulsória, evocando as mesmas

preocupações com “contaminados”, tais como a quarentena.

35Conectada à noção de higiene, aparece a de saneamento. Os médicos sanitaristas teriam a função de implementar grandes planos de atuação nos espaços públicos e privados, sendo responsáveis pelos grandes projetos públicos; já os higienistas seriam os responsáveis pelo desenvolvimento das pesquisas e pela atuação cotidiana no combate a epidemias. Na prática, entretanto, estas duas formas de atuação são indiferenciadas (SCHWARCZ, 1993). 36Esta discussão será retomada aprofundada na segunda parte deste estudo que trata especificamente do Racismo de Estado como linha segmentar no ‘problema da droga1.

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A internação, de acordo com este modelo, poderia ser obrigatória ou facultativa, com

ou sem tempo determinado; inclusive, a internação facultativa “a requerimento do

interessado”, poderia ser requisitada por parentes até o quarto grau colateral do “intoxicado”,

ou do “viciado”. Mas este mecanismo não se desdobrava apenas como um instrumento de

controle intra-familiar, conforme alerta Batista (1998), uma vez que também implicava em

sérias repercussões patrimoniais, já que a internação, uma vez decretada pelo juiz, levava este

a nomear uma pessoa idônea a fim de “acautelar os interesses do internado” (BATISTA,

1998, p. 82). Aqueles envolvidos com o uso de drogas, portanto, estavam sujeitos não só à

intervenção jurídica e médica, como também a interesses de terceiros, que uma vez

solicitando a internação, poderiam dispor dos bens do internado.

Chama aqui a atenção da atuação do juiz no processo decisório de internação,

revelador da forte aliança entre o direito e a medicina. Quando fosse conveniente à ordem

pública, cabia à autoridade policial ou ao Ministério Público a decretação da internação

obrigatória. Conforme destaca Batista (1998), sempre que julgasse urgente, a polícia poderia

determinar a internação com bases nos resultados de laudos de exame efetuados por dois

médicos idôneos, confinando o usuário em “hospital oficial para psicopatas” (sic). Os

mecanismos de controle e disciplinarização do modelo médico-jurídico-sanitário destinados

aos usuários capilarizavam-se, multiplicavam-se, passando por variadas hierarquias de

controle social, criando conexões entre variados atores e instituições, tornando este controle

mais denso e coeso:

Todo diretor de hospital que recebesse os toxicômanos para tratamento estava obrigado a comunicar o fato à autoridade sanitária, que por seu turno o transmitiria à polícia e ao Ministério Público; o diretor, na linha do controle burocrático e suspeição generalizada, deveria comunicar “a quantidade de droga inicialmente ministrada” e quinzenalmente, “a diminuição feita na toxi-privação progressiva [§ 7º e 8º decreto-lei número 891 de 25 de novembro de 1938]” (BATISTA, 1998, p. 82)

A saída dos internos de tais instituições de “tratamento” dependia ainda de uma

atestação médica de cura, e caso fosse requerida voluntariamente, deveria ser comunicada ao

juiz. Caso a alta fosse concedida, este decreto exigia ainda que a autoridade sanitária deveria

notificar a polícia, para fins de vigilância. Desta forma é que, “incontestavelmente, a alta do

paciente não era uma decisão médica e sim uma decisão judicial, assimilável a um alvará de

soltura, informada por um parecer médico” (BATISTA, 1998, p. 82), confirmando a lógica da

“correção de virtualidades”.

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Na próxima seção, será discutida a passagem deste modelo predominantemente

sanitário para o modelo bélico, que tem seu início a partir do golpe militar deflagrado em

1964. É nesse momento que, no Brasil, o problema da droga assume contornos de uma

verdadeira política de guerra, pautada na lógica de um estado de exceção permanente, em

escala global, à luz do conceito de “império”, tal qual formulado por Hardt e Negri (2001).

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PARTE II

LINHAS MOLARES QUE ATRAVESSAM O ‘PROBLEMA DA

DROGA’

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Ao falarmos em linhas molares37 remetidas à guerra contra as drogas nos referimos a

um conjunto de práticas e discursos que permeiam esta questão de forma ampla,

atravessando-a de maneira tal que não é possível, no interior de qualquer debate acerca das

drogas, negligenciar os efeitos desdobrados destes mesmos discursos e práticas. De fato, estas

“linhas molares” se referem a problemas centrais na discussão em torno das drogas, ao mesmo

tempo em que também organizam tal problemática, elegendo os focos sobre os quais incidem

a maior parte da atenção em relação a esta discussão, ao mesmo tempo em que “formatam” os

olhares e os corpos aos quais são dirigidos.

Elegemos neste capítulo duas “linhas básicas” capazes de servir como analisadores da

problemática das drogas em relação aos seus mecanismos e dispositivos de execução, bem

como da extensão de seus efeitos. Por fim, trataremos do dispositivo no qual se conjugam

essas linhas: o Império38.

A primeira linha corresponde ao traçado da questão do tráfico, remetida a um

dispositivo mais amplo que identificamos com a noção de Racismo de Estado, tal como

proposta por Michel Foucault, conjugado ao processo de demonização do traficante39. Em

um sentido lato, coloca-se que as políticas dirigidas ao enfrentamento do tráfico de drogas

servem a mecanismos de extermínio e exclusão legitimados pelas próprias políticas estatais de

segurança pública, cuja finalidade seria a de proteger aqueles que “devem viver”, ou seja,

aqueles que se encontram em melhores condições de desfrutar as benesses oferecidas pelo

Capital - quiçá mais enquadrados e normalizados em relação às demandas e exigências sociais

– os devidos cumpridores do “pacto social”, ou ainda, os “contratantes” deste pacto.

Os que “devem viver” correspondem aos ditos “cidadãos de bem”, pagadores zelosos

dos seus impostos, respeitadores da lei e da ordem, devidamente disciplinados e “civilizados”.

Em contrapartida, seu oposto corresponde àqueles a quem “se deixa morrer”, ou no limite, se

faz morrer: os “inimigos”, que vivem à margem do “pacto social”, respondem por condutas

37A definição teórica deste conceito foi exposta na primeira seção deste texto. 38Vale lembrar que o conceito de Império abrange muito mais que o problema da droga: com efeito, o tema da droga é apenas mais um dos diversos ‘dispositivos imperiais’ de controle e normalização. O Império é ilimitado, e se caracteriza justamente pela ausência de fronteiras e pela sua expansão constante. 39A expressão “demonização do traficante” é utilizada pela criminóloga Vera Malaguti Batista de forma bastante pertinente em vários de seus estudos para especificar o lugar dos traficantes no imaginário social. O termo “demonização” é portador de forte carga negativa, especialmente se considerarmos que a luta contra o tráfico se dá muitas vezes, no plano do discurso, em favor de argumentos humanitários e cristãos. No plano metafórico (porém não menos digno de efeitos pragmáticos) este processo de demonização complementa a cruzada moral, ou guerra santa contra as drogas, na medida em que estas seriam portadoras de um mal legítimo e irrefutável – o pecado.... O traficante (ou a serpente tentadora) portanto, nada mais seria que um pequeno demônio capaz de desestruturar a ordem social e corromper a moralidade.

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marginais ou desviantes, e constituem um perigo aos “cidadãos de bem”. O Racismo de

Estado constitui, em última análise, a medida deste perigo40: matar para não morrer.

A segunda linha corresponde à saúde como ideal, analisada neste estudo a partir de um

mecanismo maior de sobrecodificação instado pelas forças do biopoder, que de modo mais

específico responde pela produção social da subjetividade “drogada”, “viciada”. Neste

sentido, a sobrecodificação corresponde, de acordo com Guattari e Rolnik (1986), a uma

codificação em segundo grau: em outras palavras, se trata do esforço em atribuir significados

e sentidos formatados a acontecimentos, fenômenos, grupos ou indivíduos por intermédio de

um suporte prévio de inteligibilidade e racionalização, permitindo sua compreensão e

servindo de base para seu controle. A sobrecodificação serve, portanto, para enquadrar,

organizar, tornar inteligível aquilo que a princípio (em sua “codificação primária”) escapa aos

mecanismos de codificação, de entendimento. A sobrecodificação possui uma função

tradutora, sendo condição para a gerência dos elementos os quais busca (re)significar.

Em relação aos usuários de droga, os mecanismos de sobrecodificação assinalam uma

suposta correlação com determinados modos de subjetivação que apontam para a decadência,

o descontrole, a degeneração, o desvio, a marginalidade e a patologização, conduzindo à

produção de variados estereótipos e estigmas que recaem sobre esta população, formando a

“subjetividade drogada”. Sendo assim, este capítulo se propõe a discutir esta sobrecodificação

a partir dos ideais de normalização propostos por uma ‘gorda saúde dominante’ em relação

aos quais os usuários de drogas encontram-se à margem. Trata-se da saúde como objeto do

biopoder: seria a saúde um direito ou uma obrigação? A quem se deve remeter quando se trata

da questão de dispor do próprio corpo? Seria esta uma prerrogativa do Estado ou do próprio

indivíduo?

Por fim, entrelaçando todas essas linhas duras, o último capítulo dessa seção se refere

ao estudo do Império como um paradigma de poder. Como a guerra contra as drogas serve de

mecanismo para a expansão imperial e para majorar os efeitos de poder? Qual seria seu papel?

Haveria uma efetiva guerra contra as drogas no sentido de que o Império precisaria erradicá-

las ou, ao contrário, a manutenção dessa guerra otimizaria seu poder e seu alcance?

Exposto este breve panorama acerca do conteúdo deste capítulo, passemos então ao

estudo dessas linhas as quais ao mesmo tempo em que atravessam a problemática da “guerra

contra as drogas” também a retroalimentam, repercutindo em seus efeitos.

40 Este perigo se refere não apenas ao perigo real, mas também o perigo virtual (periculosidade) e à sensação subjetiva de estar em perigo.

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CAPÍTULO I

RACISMO DE ESTADO E DEMONIZAÇÃO DO TRAFICANTE

Antes de entrarmos diretamente na questão sobre as drogas em relação ao Racismo de

Estado, faz-se necessário uma exposição teórica acerca deste conceito à luz das contribuições

do filósofo Michel Foucault. Articulado a noções centrais que atravessam sua obra - como

biopoder e biopolítica - o Racismo de Estado, especialmente na medida em que é atrelado aos

mecanismos de punição, representa um dispositivo fundamental em sociedades “em estado de

exceção permanente”, capazes de sancionar o direito de matar. Por outro lado, aqueles que

devem morrer são os portadores do mal, pequenos demônios banalizados que circulam pelas

ruas – demônios porque perigosos, diferentes dos “humanos” devidamente civilizados.

O Racismo de Estado expressa, portanto, a legitimação do direito de matar –

configurando, inclusive, uma condição necessária, essencial, segundo Foucault, para que se

possa matar em sociedades como a nossa. Cabe então apresentar alguns aspectos que vem

configurando este direito de matar no devir da história, buscando os traçados de seus

redimensionamentos até que este assumisse a forma de exercício contemporânea.

1.1 Direitos sobre a vida e a morte, biopoder e biopolítica

O direito de matar (ou direito de vida e de morte) foi por um longo tempo, de acordo

com Foucault (1990), um dos privilégios mais representativos do poder soberano.

Remontando ao hábito romano de os pais poderem dispor da vida de seus filhos e escravos a

seu bel-prazer, o direito de vida e de morte do soberano se distinguiria pelo fato de só se

exercer como réplica, como resposta a uma ofensiva contra o soberano. O soberano poderia

ainda expor seus próprios súditos à morte caso achasse necessário entrar em guerra a fim de

fazer valer seus direitos – mas ele mesmo não é exposto à morte.

Foucault (1990; 2005) assinala o caráter assimétrico deste direito. O rei não é capaz,

obviamente, de dar a vida – na verdade, seu poder incide apenas na sua capacidade de

provocar a morte. É um poder que, em realidade, pouco se ocupa da vida, podendo, no

máximo, apenas poupá-la. Sendo assim, “o soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a

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vida, exercendo seu direito de matar ou contendo-o; só marca seu poder sobre a vida pela

morte que tem condições de exigir. O direito que é formulado como ‘de vida e morte’ é, de

fato, o direito de causar a morte ou deixar viver” (FOUCAULT, 1990, p. 128).

Ainda que este direito se legitime pela réplica, isso não quer dizer que ele seja

proporcional à ameaça. Em outras palavras, a proporcionalidade da punição não era medida

pela proporção do crime apenas com relação aos prejuízos que dele decorriam: sua medida

deveria situar-se para mais além – é também a vingança do soberano, acrescida de algo a mais

além do mero castigo. O soberano é, portanto, essencialmente um víndice. Tal é o processo

que caracteriza a economia do poder de punição atrelada ao direito soberano de vida e de

morte: assimetria tanto em relação ao próprio alcance deste direito quanto em relação à

natureza de punição que ele pressupõe.

Sendo assim, a constituição de crime não se restringia aos danos voluntários infligidos

contra os interesses da sociedade, mas obtinha o status de crime cometido efetivamente contra

o soberano, indo de encontro aos seus direitos e suas vontades, de maneira que “ele atacava a

força, o corpo, o corpo físico, do soberano. No menor crime, um pequeno fragmento de

regicídio” (FOUCAULT, 2002a, p. 102). A punição do criminoso seria a restauração do poder

soberano ferido e afrontado - a medida de punição deveria corresponder não à medida do

crime, mas a um excesso, que se materializava no horror da punição, na punição grotesca e

atroz, única maneira de restaurar o poder soberano em sua magnitude. O castigo, conjugado

ao terror, deveria servir de exemplo a fim de intimidar qualquer conduta criminosa futura.

Nenhum crime, nenhuma afronta estaria isenta de uma resposta que a superasse, por mais

feroz que fosse. O poder soberano sempre haveria de vingar-se e colocar-se acima de qualquer

crime cometido. Nesta economia punitiva e neste terror,

(...) devia haver (...) como elemento fundamental, o brilho da vingança do soberano que devia se apresentar como insuperável e invencível. Enfim, neste terror, devia haver a intimidação de todo crime futuro. (...) O que ajustava o crime e seu castigo não era uma medida comum: era o atroz. (...) Os castigos atrozes eram destinados a responder, a repetir em si, mas anulando-as e triunfando nelas, as atrocidades do crime. Tratava-se, na atrocidade da pena, de fazer a atrocidade do crime reverter no excesso do poder que triunfa. Réplica, por conseguinte, e não medida. (FOUCAULT, 2002a, p. 103-104)

Neste contexto e nessa dinâmica do poder, a expiação do crime nada mais é que a

demonstração do poder do soberano, que anula e se superpõe a qualquer crime. O criminoso

em si, ou a natureza do crime não eram então problematizados, não eram ainda questões, não

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constituíam ainda objetos de saber e não mobilizavam discussões. O interesse sobre os

mesmos se localiza, segundo Foucault (2002a) por volta do século XVIII, unido a uma nova

economia dos mecanismos de poder. Trata-se de um poder que vai se exercendo de modo

cada vez mais contínuo, mais rigoroso, em um plano muito mais extenso de incidência, ao

mesmo tempo de maneira mais otimizada e menos custosa. Poder que utiliza mecanismos

mais eficazes de vigilância e controle por todo o corpo social. É a majoração dos efeitos de

poder:

Majorar os efeitos de poder quer dizer, enfim, que ele [o poder] soube torná-los, em princípio, inevitáveis – isto é, destacá-los do princípio arbítrio do soberano, da boa vontade do soberano, para fazer dele uma espécie de lei absolutamente fatal e necessária, pesando, em princípio, da mesma maneira sobre todo mundo (...) o século XVIII aperfeiçoou toda uma série de mecanismos graças aos quais o poder ia se exercer com despesas – despesas financeiras, econômicas - menores do que na monarquia absoluta. Vai-se também diminuir seu custo, no sentido de que vão se reduzir as possibilidades de resistência, de descontentamento, de revolta (...). (FOUCAULT, 2002a, p. 108-109)

Esta majoração dos efeitos de poder assinala um redimensionamento das técnicas de

poder. O interesse que surge pelo criminoso anuncia um movimento diferenciado em relação

ao exercício do poder, especialmente no que este se interessa pela vida – é a partir deste ponto

que podemos entender a ampliação dos campos de incidência do poder e sua otimização.

Segundo nos aponta Foucault (2005), até os séculos XVII e XVIII, as técnicas de poder

centravam-se principalmente no corpo individual, isolado, com objetivos pragmáticos de

controle e utilização da sua “força útil” mediante uma série de procedimentos. Estes

procedimentos incluíam técnicas de vigilância que garantissem a visibilidade destes corpos

(por exemplo, a partir de sua distribuição espacial em filas), treinamentos etc. Os homens-

objeto destas técnicas poderiam ser trabalhadores de uma fábrica, ou presos de uma prisão, ou

mesmo alunos em escolas que eram continuamente mapeados e supervisionados através de

inspeções, relatórios e graus hierárquicos. Eram corpos que deveriam ser devidamente

regrados, disciplinados, para que não causassem transtornos à sociedade, a fim de garantir a

ordem. A estas técnicas de enquadramento que se efetuavam sobre os homens na medida em

que estes eram corpos, cujo exercício era delimitado por muros institucionais, Foucault

denomina como técnicas disciplinares. Poder sobre o homem em uma dimensão

predominantemente objetiva e imediatamente pragmática.

Contudo, a partir da metade do século XVIII algo acontece. É neste ponto que

Foucault (2005) localiza uma nova tecnologia de poder, que não se opõe às anteriores. Pelo

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contrário, as complementa e potencializa, e “não suprime a técnica disciplinar simplesmente

porque é de outro nível, está noutra escala, tem outra superfície de suporte e é auxiliada por

instrumentos totalmente diferentes” (FOUCAULT, 2005, p. 289). É nesse momento que as

técnicas de poder vão se voltar para o homem como ser vivo. Não apenas o homem-corpo,

alvo das técnicas disciplinares, mas o homem enquanto espécie; perspectiva biologizante dos

mecanismos de poder. Trata-se dos homens enquanto massa global, “afetada por processos de

conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a

produção, a doença etc.” (FOUCAULT, 2005, p. 289). Neste sentido é que o poder se ocupa

da gerência própria da vida, e se constitui como biopoder – daí a necessidade de uma

biopolítica, de dispositivos capazes de dar conta desta nova atribuição41.

É neste momento que a psiquiatria aparece como um ramo especializado da higiene

pública, voltado para a proteção social, com vistas de proteger a sociedade dos “loucos

perigosos”. Note-se ainda, conforme assinala Foucault (2002a), que o núcleo de análise da

“loucura” não era tanto o delírio, e sim a insurreição, a resistência.

Com os novos dispositivos de vigilância e a emergência da psiquiatria, o século XVIII

vê imergir uma nova e intrincada rede de controle, suplementada pelo aparelho de justiça e

pela polícia, responsável por não deixar escapar qualquer ato criminoso. A tecnologia de

punição passa também por uma inovação; ao crime não se responde mais com a vingança

soberana, e sim com a própria medida do crime, assinalada à garantia de aquele crime não se

repetirá. A medida de punição tem de equivaler ao interesse do crime, ao seu móbil, e deve

neutralizá-lo. A base do cálculo para a ação da justiça passa a ser então a inteligibilidade do

crime, aquilo o torna compreensível a partir de um fundo de racionalidade “imanente à

conduta criminal” (FOUCAULT, 2002a, p. 111, grifo nosso). São estas circunstâncias que

aproximarão a psiquiatria enquanto saber sobre a inteligibilidade (e a loucura) junto ao

aparato judiciário.

Definida esta nova economia de punição, a atenção finalmente recai sobre a natureza

do criminoso, sobre a qual a psiquiatria teria muito a “iluminar”. A nova questão passa a ser

qual seria a natureza de um interesse tal cuja veemência o faz capaz de se sobrepor aos

interesses de todos os outros, e no limite, aos próprios interesses do criminoso – 41 Foucault não estabelece uma distinção clara entre biopoder e biopolítica, quase sempre remetendo ambos os termos aos dispositivos de gerência da vida. Entretanto, autores como Hardt, Negri e Pélbart ampliam o conceito de biopolítica ao acoplar também os movimentos de resistência ao biopoder: “biopolítica não mais como o poder sobre a vida, mas como a potência da vida (...) Ao poder sobre a vida deveria responder o poder da vida, a potência ‘política’ da vida na medida em que ela faz variar as formas e reinventa suas coordenadas de enunciação” (PÉLBART, 2003, p. 83). Neste estudo consideramos que o termo biopolítica abarca tanto os dispositivos de controle e gerência sobre a vida quanto os movimentos de resistência a estes mesmos dispositivos, considerando-os como políticas em favor da vida (bios).

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especialmente na medida em que o este sabe que deve esperar como conseqüência do seu ato

uma punição, ou mesmo a morte, na pior das hipóteses. Arriscar a própria integridade física

deve corresponder a uma motivação violenta, imprópria, um instinto excessivo, perigoso,

anormal – e é este ponto que marca a linha de interseção entre o crime e a patologia.

Será que este interesse que leva o indivíduo ao crime (...) não deveria ser concebido como um interesse tão forte e tão violento que nem calcula suas próprias conseqüências, que é incapaz de ver além de si mesmo? E, de todo modo, será que não se trata de um interesse irregular, desviante, não conforme à natureza mesma de todos os interesses? (FOUCAULT, 2002a, p. 112).

Esta nova economia da punição levanta alguns problemas. A partir do momento em

que se admite ser passível de punição todo crime que comporte certa inteligibilidade (a não

ser que se tratasse de um caso detectável de loucura garantindo a inimputabilidade do autor)

que providências tomar em relação aos crimes que não possuíssem tal suporte e tampouco

fossem cometidos em função de um estado demencial? Trata-se dos crimes inexplicáveis, que

não assinalam nenhuma correlação de ganho para o criminoso – o “crime pelo crime”. Como

tornar passível de intervenção legal condutas que por si mesmas não comportam nenhum

critério de razoabilidade? A fim de ilustrar esta discussão, Foucault (2002a) recorre a um caso

de crime “monstruoso” ocorrido na primeira metade do século XIX, na França: o assassinato

de uma menininha por sua vizinha42, Henriette Cornier, sem que fosse possível identificar

qualquer motivação inteligível por trás do ato. A assassina mal conhecia a menina; não

possuía relação com ela ou sua família, não possuía nenhuma razão para lhes causar mal.

Entretanto, premedita minuciosamente o assassinato da criança; oferece-se para tomar conta

da menina na ausência da mãe, e sem mais nem menos, simplesmente a degola. A fim de

esconder seu crime, ocorre à assassina livrar-se da cabeça da menina, enrolando-a em um

lençol e jogando-a pela janela. Indagada sobre a razão deste gesto, Henriette Cornier limita-se

a dizer que “foi uma idéia”. E então, se cala, apesar de manter sua lucidez íntegra – inclusive,

cônscia da gravidade de seu gesto, chega afirmar ser merecedora da pena de morte. Os

inúmeros laudos psiquiátricos requeridos pela justiça à junta psiquiátrica não atestam

nenhuma loucura detectável em Cornier. A lei poderia até ter uma resposta normativa ao

crime de assassinato, mas sua atribuição punitiva encontra dificuldades. A ré não pode ser

considerada louca: entretanto, seu ato não pode ser entendido pela via da racionalidade. Para

crimes como o de Henriette Cornier, devem ser erigidos novos paradigmas.

42O caso Henriette Cornier. Para mais detalhes, conferir a coletânea de transcrições de aulas de Foucault intitulada Os Anormais, onde o caso é tratado em profundidade.

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A solução encontrada pela psiquiatria legal diante deste dilema, em que não é possível

encontrar sinais evidentes de loucura, foi a atribuição de crimes como estes a “instintos

excessivos”. Não que fossem “instintos”, a rigor, patológicos em si mesmos. O caráter de

anormalidade se define então pela força irresistível do instinto, pelo seu excesso, pela sua

incapacidade de ser controlado pelas “instâncias psíquicas superiores”. Em outras palavras, o

criminoso seria aquele que, por definição, possuiria uma força instintiva excessiva – logo,

uma “tendência excessiva”, que deveria ser devidamente controlada a fim de não corromper a

sociedade:

O instinto será, é claro, o grande vetor do problema da anomalia, ou ainda, o operador pelo qual a monstruosidade criminal e a simples loucura patológica vão encontrar seu princípio de coordenação. É a partir do instinto que toda a psiquiatria do século XIX vai poder trazer às paragens da doença e da medicina mental todos os distúrbios, todas as irregularidades, todos os grandes distúrbios e todas as pequenas irregularidades de conduta que não pertencem à loucura propriamente dita. (FOUCAULT, 2002a, p. 165).

É neste contexto que se consolida então a junção da psiquiatria com as teses

evolucionistas. A partir do século XIX, a psiquiatra encontra-se mesclada a uma tecnologia

eugênica, de correção dos instintos e purificação da “raça”. De todo modo, está explícito na

discussão de Foucault (2002a) que neste momento o que se opõe à “raça superior” é o instinto

excessivo. A tecnologia da eugenia, entendida como purificação da raça, deve se precaver

daqueles portadores deste instinto desviado. E uma vez que a própria noção de “instinto”

comporta elementos de intrinsecabilidade em relação a um indivíduo, a conclusão que se

chega é óbvia: os criminosos são criminosos por natureza, por instinto. Não que estes

excessos precisassem se manifestar de forma contínua. A descontinuidade é uma marca

própria desta “psiquiatria dos processos patológicos”, como Foucault (2002a) a define. O

excesso é intrínseco ao indivíduo, mas se manifesta apenas de maneira fragmentada.

Entretanto, eis que surge então um novo paradigma acerca dos objetos de

psiquiatrização (apesar de não anular o anterior). No lugar dos instintos excessivos que

irrompem de forma mais ou menos pontual, objeto de uma psiquiatria que opera por

descontinuidades, surge uma “psiquiatria de estado permanente, um estado permanente que

garante um estatuto definitivo aberrante” (FOUCAULT, 2002a, p. 380), que opera

continuamente. É a atribuição definitiva, irrefutável, de que um indivíduo seria predisposto ao

crime, em função de uma condição inalienável. A noção de exagero instintivo não dá mais

conta dos domínios sobre os quais a psiquiatria pretende então argüir. Neste sentido, “não há

doença intrínseca aos instintos, há antes uma espécie de desequilíbrio funcional do conjunto”

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(FOUCAULT, 2002a, p. 381). O que caracteriza então o novo campo da psiquiatria é a noção

de falta, de interrupção do desenvolvimento dito normal - ausência de controle, de inibição,

falha no desenvolvimento das instâncias psíquicas superiores para controlar as inferiores. Um

problema, portanto, estrutural, e não conjuntural.

O objeto privilegiado da psiquiatria neste momento é menos a doença que a conduta,

que os desvios em relação às referências normativas. É tendo em vista esta configuração de

coisas que Foucault sinaliza para uma notável inflexão no saber psiquiátrico, a partir do

surgimento da noção de “estado”:

O estado é uma espécie de fundo causal permanente, a partir do qual podem se desenvolver certo número de processos, certo número de episódios que, estes sim, serão precisamente a doença. Em outras palavras, o estado é a base anormal a partir da qual as diferenças se tornam possíveis. O estado (...) tem a seguinte particularidade: é que, precisamente, ele não se encontra nos indivíduos normais; não é um caráter mais ou menos acentuado [como a tese dos “instintos excessivos”]. O estado é um verdadeiro discriminante radical. Quem é sujeito a um estado, quem é portador de um estado, não é um indivíduo normal. Por outro lado, esse estado que caracteriza um indivíduo dito anormal tem a seguinte particularidade: sua fecundidade é total, é absoluta. (...) Em suma, tudo o que pode ser patológico ou desviante, no comportamento ou no corpo, pode ser efetivamente produzido a partir deste estado. (FOUCAULT, 2002a, p. 397).

A questão que se coloca então é: o que engendra um estado, o que configura este

estado de onde se torna possível para a psiquiatria abstrair as condutas desviantes? A resposta

imediata é: hereditariedade. É a tese da hereditariedade que vai permear então esta tecnologia

psiquiátrica. De acordo com a tese da hereditariedade descrita por Foucault (2002a), uma

condição tida como patológica ou desviante referente a um indivíduo pode servir como uma

espécie de matriz de outras condições “adversas” para seus descendentes. Esta matriz é

transmitida, portanto, de forma hereditária, e poder-se-ia colocar que ela carrega em si “todos

os males possíveis”. Por este prisma, a tuberculose de um indivíduo poderia estar relacionada

com a loucura de seus pais ou tios; a delinquência de um jovem poderia ser remetida ao

alcoolismo do avô; a libertinagem de uma jovem senhora poderia ter sua origem em um tio

mais ou menos “abobalhado” ou débil mental. Desta maneira, trata-se da atribuição, pela

psiquiatria, de uma relação de causalidade entre hereditariedade e desvio (anomalia), na

medida em que o “estado” que predispõe o indivíduo a uma determinada conduta ou patologia

é entendido como resultante de uma determinada configuração hereditária – quiçá, biológica.

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Contemporânea à tese da hereditariedade e complementando-a, Foucault (2002a)

sinaliza também para a “tese da degeneração”. Em um sentido lato, esta tese sustenta o

princípio de que uma vez que um indivíduo seja portador de algum traço anormal, este irá

desenvolver-se em um processo de deterioração inevitável. Somada à tese da hereditariedade,

a psiquiatria pode então se desincubir de qualquer pretensão de cura, já que a própria noção de

degeneração comporta sua inevitabilidade e progressão. É neste momento que a psiquiatria

“pode propor (...) funcionar simplesmente como proteção da sociedade contra os perigos

definitivos de que ela pode ser vítima de parte das pessoas que estão no estado anormal (...) a

psiquiatria pode se dar efetivamente uma função que será simplesmente uma função de

proteção e de ordem” (FOUCAULT, 2002, p. 402).

Finalmente, a incorporação das teses eugênicas, evolucionistas, das teorias sobre o

“estado” e da degeneração vão consolidar a vinculação da psiquiatria com o racismo – não

conforme sinaliza Foucault (2002), um racismo do tipo étnico, tradicional, ainda que estes

elementos estejam presentes – mas um racismo mais geral, um racismo contra aquilo que se

desvia da norma, e, portanto, daqueles que são portadores do perigo. É um racismo:

contra o anormal, é o racismo contra os indivíduos, que, sendo portadores seja de um estado, seja de um estigma, seja de um defeito qualquer, podem transmitir a seus herdeiros, de maneira mais aleatória, as conseqüências imprevisíveis do mal que trazem em si, ou antes, do não-normal que trazem em si. (...) Racismo interno, racismo que possibilita filtrar todos os indivíduos no interior de uma sociedade dada. (FOUCAULT, 2002a, p. 403).

A problemática do anormal articula-se, em tempos de biopoder, a um outro elemento:

a população. De acordo com Foucault (2005), a população é então convocada como um foco

privilegiado de incidência do poder – população como problema biológico e como problema

político. O poder dirige-se então para problemas pertinentes no nível da massa, problemas

estes que incidem globalmente e de forma aleatória, incluindo a questão da anormalidade, das

condutas atreladas ao status de anormal, que abarcam tanto a doença como o crime, o desvio

– de todo modo, desvio, crime, “estado” (seja físico, seja material) estão amplamente

correlacionados para as tecnologias de poder da época. O poder volta-se para fenômenos em

série que não se podem prever, a fim de conferir-lhes algum ordenamento. Assim,

Trata-se sobretudo de estabelecer mecanismos reguladores que, nessa população global com seu campo aleatório, vão poder fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer uma espécie de homeostase, assegurar compensações; em suma, de instalar mecanismos de previdência em torno deste aleatório. (FOUCAULT, 2005, p. 293-294).

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Estes mecanismos remetem, portanto, à regulamentação da população, a sua gerência,

que é uma gerência da vida. É esta gerência que é capaz de regular os direitos sobre e a vida e

os direitos sobre a morte – que é um ponto fundamental deste “mecanismo de equilíbrio”.

O direito de vida e de morte sofreu profundas alterações em sua estrutura no decorrer

do século XIX (FOUCAULT, 2005). Se antes era uma questão de “fazer morrer e deixar

viver” (um direito essencialmente “de espada”, como nos lembra Foucault), esta passa por

uma espécie de subversão: fazer viver e deixar morrer. Trata-se de uma biorregulamentação:

se antes a vida não era um objeto privilegiado do alvo do poder, que se ocupava dela apenas

para usurpá-la, agora representa um foco fundamental e estratégico, a tal ponto que o

investimento e a atenção sobre a vida se constituírem como sustentáculos deste biopoder.

Emergem então os saberes sobre o “sujeito”, sobre o corpo, instrumentalizados em práticas de

intervenção sobre a população. Investimento, portanto, na medida em que se apodera da vida,

em que se ergue em função de torná-la mais “divertida”, mais “saudável”, mais “segura”,

mais “bonita”, e mais prazerosa. Investimento da vida pelo poder porque este sempre tem algo

a dizer sobre aquela, sempre tem uma resposta a dar ou uma novidade a oferecer.

Investimento conforme se consolidam saberes com vistas justamente a darem conta destes

objetivos específicos.

Em um contexto onde o poder se volta para a vida desta maneira, como preservar

também o direito de morte? Como inseri-lo sem recair em contradição com a lógica de

investimento da vida? Como tornar isto aceitável?

A estas questões, Foucault (2005) responde: com o racismo. É o racismo que pode,

dentro desta lógica, balizar o direito de matar, pois ele se justifica em favor “daqueles que

devem viver” – mata-se, portanto, em nome da vida. O racismo é o que torna possível “para

um poder político, matar, pedir a morte, mandar matar, dar a ordem de matar, expor à morte

não só seus inimigos, mas mesmo os seus próprios cidadãos” (FOUCAULT, 2005, p. 304).

No plano de gerência da vida e da regulamentação da população, ou

biorregulamentação, é o racismo que estabelece o corte entre quem deve viver e quem se

deixa (ou faz) morrer. Este racismo, de acordo com Foucault (2005), cumpriria duas funções.

A primeira delas seria criar defasagens entre os grupos que compõem a população, mediante a

sobrecodificação de uns como “superiores” e outros como “inferiores”. A segunda seria o

estabelecimento de uma “relação guerreira” - “se você quer viver, é preciso que você faça

morrer, é preciso que você possa matar” (FOUCAULT, 2005, p. 305), que no contexto do

biopoder é reformulada em:

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(...) uma relação do tipo biológico: “quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu – não enquanto indivíduo, mas enquanto espécie – viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar”. A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal) é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura. (FOUCAULT, 2005, p. 305).

Sob este prisma biológico, fica cada vez mais clara a articulação entre as teses

evolucionistas e as tecnologias de poder. O evolucionismo quando aplicado à espécie humana

converte-se em racismo. Os inferiores, os degenerados, devem perecer. É assim que o

evolucionismo, conforme nos lembra Foucault (2005, p. 307) não apenas colocou em termos

biológicos (e também científicos) o discurso político (biopolítico), mas também se constituiu

como “uma maneira de pensar as relações de colonização, a necessidade de guerras, a

criminalidade, os fenômenos da loucura e da doença mental, a história da sociedade com suas

diferentes classes, etc.” (FOUCAULT, 2005, p. 307).

Interessa-nos neste estudo, sobretudo, a questão da criminalidade, tomando como

recorte o problema do tráfico de drogas e a produção da subjetividade do traficante, enquanto

mecanismo de ‘inclusão por exclusão’. Evolucionismo, racismo, dever morrer em nome de

outros que devem viver são elementos que se cruzam nesta problemática. A criminalização da

pobreza, a militarização da “segurança pública” torna o Estado Racista uma metáfora do deus

Cronos, que devora seus filhos para não abdicar de seu poder.

1.2 A repressão no “varejo”: um recorte do Racismo de Estado em Sociedades como a nossa

Quem são os traficantes? Como deveria responder (ou como efetivamente responde) o

Estado diante do problema em torno do tráfico? Estas não questões simples de serem

respondidas, e por isso não devem admitir respostas rápidas e levianas. Entretanto, ao se falar

em traficante, a imagem imediatamente evocada é bastante banal e cotidiana para todos

aqueles que assistem à televisão e lêem os jornais: negro, pobre, vestido com camiseta,

bermuda e boné, olhar desafiador, ostentando armamentos pesados, residente em áreas

periféricas. Cruéis, desumanos, capazes de infligir as piores torturas, pequenos demônios que

promovem o vício, a morte; representantes do crime “organizado”, fortes o bastante para

engendrar um “estado paralelo” e um estado de “guerra civil”. Em seus territórios, ou suas

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bases de apoio logístico, (“tá tudo dominado”) o que vale são suas leis arbitrárias – as

prerrogativas do Estado de Direito não tem vez. Alguns ainda podem evocar um traço

assistencialista no tráfico, que teria se apropriado das lacunas deixadas pelo Estado com o fim

de alcançar legitimidade e apoio por parte da população local – uma espécie de Robin Hood

urbano pós-moderno. O traficante é um mito, uma figura mítica, que passa cotidianamente ao

nosso lado pelas ruas. É também um inimigo – uma afronta ao Estado e aos seus cidadãos. E a

partir do consenso de que o traficante é o inimigo, começa a ser delineada a resposta que eles

merecem, inclusive por parte do Estado: a anulação, o extermínio, a neutralização, a

“tolerância zero”, os “choques de ordem”. Matá-los para não sermos mortos; neutralizar suas

ações para que a sociedade não mergulhe em vícios imorais. Exterminar suas redes para que o

Estado retome seu próprio território. Nas palavras de Batista (2003):

O estereótipo do bandido vai-se consumando na figura de um jovem negro, funkeiro, morador de favela, próximo ao tráfico de drogas, vestido com tênis, boné, cordões, portador de algum sinal de orgulho ou de poder e de nenhum sinal de resignação ao desolador cenário de miséria e fome que o circunda. A mídia, a opinião pública destacam seu cinismo, a sua afronta. São camelôs, flanelinhas, pivetes e estão por toda parte, até em supostos arrastões na praia. Não merecem respeito ou trégua, são os sinais vivos, os instrumentos do medo e da vulnerabilidade, podem ser espancados, linchados, exterminados ou torturados. (BATISTA, 2003, p. 36).

Seria assim tão simples? Seriam estas figuras dotadas de tão grande poder? Qual o

papel do traficante “varejista” no interior da hierarquia que estrutura a rede do tráfico de

drogas? Por que mitificar sua figura por intermédio de estereótipos? Por que cada rapaz negro,

pobre, vestido de bermuda e boné desperta tantas suspeitas?

Coimbra e Nascimento, em um artigo de 2003, discutem as condições que tornaram

possível a emergência do que as autoras denominam como “mito da periculosidade”. Trata-se

de um mito que articula periculosidade, falta de humanidade (o inimigo é sempre um outro...)

e criminalidade à pobreza. Criminalização da pobreza, suspeição automática daquele que é

pobre.

O “mito da periculosidade” representa uma instrumentalização clara do racismo de

estado: por serem pobres, são perigosos; se ainda não fizeram algo efetivamente suspeito, a

condição de pobreza indica que há uma predisposição latente para tal, esperando apenas o

momento propício para se manifestar. Há de se suspeitar sempre dos pobres, e por isso, há de

se exercer o controle sobre suas virtualidades. Retomando os apontamentos de Foucault

apresentados no item anterior, trata-se de uma questão de estado, e a condição de pobreza

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converte-se em uma “espécie de fundo causal permanente”, que concorre para a produção do

anormal, do delinqüente, daquele a quem falta humanidade e por isso não pode ser

considerado (e tratado) como humano.

De fato, se considerarmos junto com Coimbra e Nascimento (2003, p. 20) que “em

nosso país, que sofre uma herança de mais de trezentos anos de escravidão, o controle das

virtualidades exercerá um papel fundamental na constituição de nossas subjetividades sobre a

pobreza”, os ditos “traficantes” (considerando o estereótipo do ‘traficante negro’,

afrodescendente), herdeiros genealógicos de seus antepassados escravos, não seriam

“humanos”. Herdaram quase que geneticamente (sic) o traço de não-humanidade: escravos,

não eram “seres humanos”, e sim meros objetos, mercadorias, e por isso eram tratados

distintamente em relação aos “humanos”. Finda a escravidão, emerge uma população que, sob

o desenvolvimento da sociedade industrial, deveria converter-se de mercadoria em mão de

obra. E, caso fracassasse, “vadiando” por aí, deveria ser devidamente controlada, para não

contaminar com suas mazelas “naturais” o restante da sociedade. De onde viria essa

“capacidade contaminadora” desta massa de ex-escravos?

Já no início do século XIX, conforme apontam as autoras - em consonância com os

estudos de Foucault - a antropometria, a medição dos ossos, crânios e cérebros tornaram-se

populares entre os cientistas, que comparando os dados obtidos, buscavam indícios capazes de

comprovar a inferioridade de determinados segmentos sociais (bem como de determinadas

“raças”). Contextualizando este período, é preciso lembrar que:

Para tanto, muito contribuíram algumas teorias – racistas e eugênicas -, que emergiram no século XIX na Europa, condenando as misturas raciais e as caracterizando como indesejáveis, produtoras de enfermidades, de doenças físicas e morais (imbecilidades, idiotias, deficiências em geral, indolência, entre outras). É interessante notarmos que, neste mesmo período, ocorrem, também na Europa, movimentos que propugnam e influenciam as propostas de abolição da escravatura negra nas Américas. Ou seja: ao mesmo tempo em que desponta a figura do trabalhador livre (...) produz-se uma essência para este mesmo trabalhador. (COIMBRA, NASCIMENTO, 2003, p. 20-21).

A “essência” que é então atribuída a estes novos trabalhadores, ex-escravos, é a da

periculosidade. A miséria “passa a ser naturalmente percebida como advinda da ociosidade,

da indolência e dos vícios inerentes aos pobres” (COIMBRA, NASCIMENTO, 2003, p.21).

Neste contexto é que em 1890 aparecem as primeiras referências à aplicação do sistema penal

aos “vadios”, aos “vagabundos”. O ócio e a vadiagem relacionam-se com a atitude suspeita, à

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insubordinação, à depravação, enquanto que o trabalho comparece vinculado à dignidade e à

honestidade (BATISTA, 2003). Criminaliza-se a vadiagem, a capoeiragem: criminaliza-se a

pobreza e, virtualmente, a massa afrodescendente. Surgem então as ditas “classes perigosas”,

sobre as quais recai a atenção do sistema criminal. O cientificismo da época apregoava ser

necessário “limpar” a sociedade destes degenerados natos:

Essas teorias racistas e eugênicas foram realimentadas pela obra de Charles Darwin A Origem das Espécies. Conceitos como ‘prole malsã´, ‘herança degenerativa´, ‘degenerescência da espécie´, ‘taras hereditárias´, ‘inferiorização da prole´, ‘procriação defeituosa’, ‘raça pura´, ‘embranquecimento´, ‘aperfeiçoamento da espécie humana´, ‘purificação´ são comuns em tratados de Medicina, Psiquiatria, Antropologia e Direito no final do século XIX e no início do século XX que apregoam, seguindo o modelo da eugenia, a esterilização dos chamados degenerados como profilaxia para os males sociais” (COIMBRA, NASCIMENTO, 2003, p. 22-23).

Conforme apontam as autoras, estas teorias repercutem no Brasil expressando-se

especialmente através do movimento higienista, comprometido com a “higienização da

sociedade”. Schwarcz (1993), tratando do higienismo no Brasil, levanta que ao abandonar o

indivíduo e se voltar para a sociedade, os médicos higienistas passavam a explicar o fracasso

do Brasil pela doença – era preciso, então, entender a causa da doença para tratá-la. É nesse

contexto que a eugenia e a questão da raça e da eugenia se revelam no higienismo brasileiro:

as doenças teriam vindo da África (com os escravos) ou da Ásia e da Europa (com os

imigrantes). A ‘mistura de raças’ seria responsável pelo enfraquecimento biológico da nação.

Quanto à eugenia, ela é assim definida em um texto publicado no Brazil Medico em 1918,

escrito por um médico:

Nova ciência a eugenia consiste no conhecer as causas explicativas da decadência ou levantamento das raças, visando a perfectibilidade da espécie humana, não só no que respeita o phisico como o intelectual. Os métodos tem por objetivo o cruzamento dos sãos, procurando educar o instinto sexual. Impedir a reprodução dos defeituosos que transmitem taras aos seus descendentes Fazer exames preventivos pelos quais se determina a siphilis, a tuberculose e o alcoolismo, trindade provocadora da degeneração. Nesses termos a eugenia não é outra cousa sinão o esforço para obter uma raça pura e forte...Os males provieram do povoamento, para tanto basta sanear o que não nos pertence” (SHWARCZ, 1993, p 231)

O higienismo não foi um movimento restrito à esfera médica – pulverizou-se por toda

a sociedade brasileira, abarcando especialistas das áreas da Pedagogia, da Arquitetura, do

Urbanismo, do Direito etc. Assim, tal movimento, embasado em teorias racistas, no

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darwinismo social e na eugenia, visando o aperfeiçoamento da raça, colocava-se “abertamente

contra negros e mestiços, a maior parte da população pobre brasileira” (COIMBRA,

NASCIMENTO, 2003, p. 23). A degradação era associada à pobreza, e os higienistas

afirmavam que toda a sociedade deveria se engajar na luta contra o mal que se perpetuava

dentro desta. Em última instância, livrar-se deste mal implicava em livrar-se dos pobres. O

conceito de “periculosidade”, “controle de virtualidades” adapta-se perfeitamente a este

contexto: a pobreza emerge, efetivamente, como um sinal de perigo, e logo os pobres são,

naturalmente, perigosos, e automaticamente, suspeitos.

Com a pobreza atrelada à periculosidade, surgem mecanismos específicos de controle

direcionado para a população pobre. Aos ditos “pobres dignos”, os que trabalhavam e

encontravam-se inseridos na lógica capitalista, era necessário reforçar os “valores morais”, a

fim de que os vícios inerentes à pobreza (sempre latentes, ainda que não manifestos) não

emergissem e corrompessem a “saúde social”. Os pobres que não trabalhavam e que viviam

no ócio representavam um perigo social a ser erradicado, uma vez que seriam “portadores de

delinqüência, libertinos, maus pais e vadios” (COIMBRA, NASCIMENTO, 2003, p. 24).

Em estudo dedicado à criminalização do jovem pobre no Rio de Janeiro, Batista

(2003) demonstra que a ação do sistema penal desta época recaia especialmente sobre aqueles

“dados à insubordinação” e que “não teriam paciência para aturar patrão”. Daí que os menores

abordados em “atitude suspeita43”, que se identificavam como engraxates, entregadores de

jornal, vendedores de bilhetes de loteria, ou biscateiros, fossem “suspeitos” - tais ocupações

seriam sintomas de insubordinação. Situação de abandono, ou ainda, “situação irregular”, ou a

ausência de uma “família estruturada” concorriam para a consolidação da suspeição, que na

maior parte das vezes terminava na internação destes jovens em instituições correcionais, sob

a tutela do Estado. Chama a atenção o questionário padrão desenvolvido pelo Juizado de

Menores em 1923 para recolher informações e dados referentes aos menores detidos. Note-se

a perspectiva eugênica e moralizadora deste questionário:

43A “atitude suspeita”, segundo Batista (2003) não se refere a um ato efetivamente suspeito, e sim a sinais de estigmatização. Os casos estudados pela autora mostram jovens que foram abordados por estarem simplesmente andando na rua, ou sentados em parques, mas que foram considerados suspeitos por suas características, roupas etc. Um deles, um menino negro de 14 anos, residente da Zona Norte, fora detido por estar vagando com roupas grandes demais para seu tamanho na Zona Sul do Rio de Janeiro. O fato de as roupas serem grandes demais levou a suspeita de que estas haviam sido furtadas – apesar de não ter havido nenhuma denúncia de roubo que corroborasse a suspeita dos policiais. O fato de estar perambulando pela Zona Sul enquanto morava na Zona Norte também foi considerado suspeito, e o jovem foi internado no Serviço de Assistência ao Menor (SAM) por quase três anos - embora não houvesse evidências de que havia cometido um crime.

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- Algum ascendente ou colateral é, ou foi, alienado, deficiente mental, epiléptico, vicioso ou

delinqüente?

- Há concórdia doméstica, respeito conjugal, sentimentos filiais?

- Com que gente costuma ajuntar-se? Seus camaradas são mais idosos, vadios, mendigos,

libertinos ou delinqüentes?

- Qual seu caráter e moralidade, seus hábitos e inclinações? É cruel, violento, hipócrita,

tímido, generoso ou egoísta, viril ou afeminado, mentiroso, desobediente, preguiçoso,

taciturno ou loquaz, rixoso, desonesto ou vicioso, dado ao roubo ou furto?

- Sua linguagem é correta ou usa de calão, de expressões baixas e indecorosas?44

Além da estigmatização atrelada à atitude suspeita, Batista (2003) demonstra em seu

estudo a desigualdade de tratamento direcionada aos jovens infratores em função de sua etnia

e origem social. Dois dos muitos exemplos citados pela autora chamam atenção: um jovem

negro, órfão, vendedor de jornais e engraxate roubara dois queijos, sendo sentenciado a três

anos de internação (um e meio por cada queijo). Outro rapaz, branco, possuidor de uma

“família legítima e unida” e de um “lar organizado” consegue liberdade vigiada, tendo furtado

um carro. Através da análise de outros processos, a autora também aponta a lentidão que

geralmente caracterizava o processo de julgamento aos quais eram submetidos os jovens

pobres. Exames demoravam a ser feitos, audiências demoravam a serem marcadas, de modo

que o período de internação antes do parecer final do juiz alongava-se desnecessariamente.

Em contrapartida, chama a atenção da autora a rapidez com que estes processos eram julgados

em casos envolvendo jovens de classe média e alta, bem como o fato de na maior parte das

vezes estes jovens terem seus movimentos restritos, no máximo, à liberdade vigiada. De fato,

nos processos analisados pela autora, nenhum destes outros jovens foi submetido à internação.

O mesmo ocorre com as infrações relacionadas ao uso/tráfico de drogas ocorridas

entre 1968 e 1988, na amostragem aleatória analisada por Batista (2003). Enquanto aos jovens

de classe média e alta aplica-se o estereótipo médico, aos jovens pobres aplica-se o

estereótipo criminal. A classe média e alta resolve os problemas de seus filhos na esfera

privada – nos processos estudados pela autora, o desdobramento mais comum era o

comprometimento da família com o tratamento médico dos filhos, solucionando o problema.

Já aos jovens pobres reserva-se a entrada direta ao sistema criminal, fosse por traficar, fosse

por consumir drogas. Nos processos analisados neste período de 1968 a 1988, apenas jovens

44 Fonte: Batista, 2003, p. 69.

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não-brancos e pobres foram indiciados por portar pequena quantidade de droga para uso

próprio, enquanto jovens de classe média aparecem em apenas 11% dos processos – apesar do

decreto-lei 385/68 baixado pelo então Presidente Costa e Silva em 1968 modificar o Código

Penal de 1940, igualando frente à lei traficantes e usuários.

Nos dias de hoje, a situação ainda persiste. Jovens pobres abordados portando pequena

quantidade de droga para consumo próprio são mais facilmente identificados como

traficantes, em função do processo de estigmatização que enquadra sua figura, enquanto os

usuários de classe média e alta são identificados com os usuários – ainda que a mídia venha

noticiando alguns casos de tráfico envolvendo classe média e média-alta. É possível verificar

(inclusive em inúmeros meios de comunicação em massa) a presença da discussão acerca da

descriminalização do uso de drogas (especialmente a maconha) e mesmo alguns avanços

legislativos no tratamento para com o usuário, mas não se fala em mudanças legislativas no

sentido de atenuar a repressão direcionada aos acusados de tráfico. Ao contrário, as leis vêm

se tornando cada vez mais duras, a repressão, mais intensiva e o controle mais incisivo. Se no

período ditatorial o tráfico fora enquadrado como crime contra a Segurança Nacional, a

Constituição de 1988 o equipara ao crime hediondo, inafiançável, sem direito à graça ou

anistia. A edição da Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) de 1990 inviabiliza aos

condenados o direito de liberdade provisória, indulto e progressão de regime, além de ampliar

os prazos para prisão temporária e livramento condicional, enquanto a Lei do Crime

Organizado45 (Lei 9.034/95) inspirada no modelo normativo italiano de repressão às

organizações mafiosas, “trata-se nitidamente de uma legislação de emergência baseada na

legislação italiana de exceção” (CARVALHO, 2006, p. 58, grifo nosso). Trata-se de uma lei

com nítidas nuances inquisitoriais, que cria amplas possibilidades de acesso a dados fiscais,

bancários, financeiros, eleitorais, além da interceptação de sinais magnéticos, óticos ou

acústicos; determina identificação criminal compulsória; premia a delação; proíbe a liberdade

provisória com ou sem fiança e nega a possibilidade de apelo em liberdade (CARVALHO,

2006). A seletividade da punição em relação aos crimes vinculados à questão das drogas

continua firme, e a maior parcela da repressão recai ainda sobre jovens pobres –

especialmente se considerarmos que o tráfico vem recrutando sua mão-de-obra entre uma

população cada vez mais jovem, conforme assinalam Batista (2003) e Misse (2003).

45 Carvalho (2006) assinala o fato de que o discurso vinculado a esta lei atrelou-se especialmente às questões relativas ao tráfico de drogas e de armas.

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Mesmo se tratando da repressão ao tráfico de drogas, é possível vislumbrar a

desigualdade com que incide a repressão sobre os traficantes varejistas (com bases de apoio

logístico nas favelas) em comparação aos traficantes do atacado e os demais facilitadores do

tráfico. Do mesmo modo, classificar o tráfico varejista como “crime organizado” precipita

alguns problemas.

Magalhães (2000) e Souza (2005) sinalizam para o fato de que apesar do que é

alardeado pela mídia, a articulação entre o “movimento” nas favelas é mais limitada do que

parece. Ao contrário: o tráfico varejista é fragmentado e há uma constante disputa territorial

envolvendo os pontos de venda de drogas entre os variados grupos:

Organizações como o CV (Comando Vermelho), CVJ (Comando Vermelho Jovem), Terceiro Comando e Amigos dos Amigos (ADA) não tem um vínculo que permita ações amplas e coordenadas. As quadrilhas se unem para tarefas pontuais. No dia-a-dia, é cada uma por si: o “movimento” de um local compete com o vizinho, cobiçando o controle pela boca alheia. (MAGALHAES, 2000, p. 18-19).

Magalhães (2000) aponta ainda que os traficantes “badalados” pela mídia não são,

conforme muitos poderiam imaginar, os maiores traficantes do país ou da cidade. Alcunhas

míticas, como Fernandinho Beira-Mar, Uê, Marcinho VP não se referem senão a “gerentões

do varejo”. O próprio Comando Vermelho, segundo Souza (2005) seria mais uma espécie de

cooperativa criminosa que uma estrutura hierárquica rígida nos moldes da máfia.

Para Souza (2005), a razão pela qual o poder e a organização do tráfico varejista são

exagerados reside no interesse em desviar a atenção da opinião pública daqueles que seriam

os verdadeiros empresários da droga: aqueles que lidam com importação, exportação, o

atacado e a lavagem de dinheiro. Neste sentido, verifica-se que o alarde em torno do tráfico é

bastante seletivo, incidindo especialmente sobre sua parcela mais pobre, que inclusive detém

as menores partes do lucro – aqui, o racismo de estado combina-se com uma conveniente

gestão de ilegalismos.

O autor esquematiza o tráfico em dois subsistemas distintos, que se interconectam. O

primeiro seria o subsistema I-E-A (importação-exportação-atacado) e o segundo seria o

subsistema varejo. O subsistema I-E-A responde pelos grandes traficantes e facilitadores do

tráfico. Nas palavras do autor:

Os verdadeiros grandes traficantes (importadores, atacadistas), assim como seus “sócios” ou “parceiros” (agentes envolvidos com a lavagem de

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dinheiro, com o financiamento de negócios escusos, com o transporte da droga, etc), secundados pelos principais “facilitadores” do negócio em grande escala (funcionários de portos e aeroportos, policiais corruptos etc), vinculam-se ao subsistema I-E-A. O subsistema I-E-A é o principal responsável pela importação de drogas (contatos com “cartéis” colombianos), assim como pela realização de contatos visando a reexportação (conexão com organizações criminosas operando na Europa e nos EUA – inclusive com origem no “Terceiro Mundo”, como as redes nigerianas). Além disso, o subsistema I-E-A é em grande parte responsável pelo abastecimento dos traficantes que operam no varejo (não só com drogas, mas também com armas). (SOUZA, 2005, p. 430).

O subsistema varejo corresponde àquele que tem destaque garantido na imprensa,

cujas bases de apoio logístico funcionam em favelas e outros espaços segregados, englobando

também a venda de drogas em boates, restaurantes, e mesmo nas ruas. O autor chama a

atenção para o fato de que mesmo sendo menos importante em termos estratégicos que o

subsistema I-E-A, é justamente sobre este segmento que se dirige a maior parcela de repressão

e de punição – são estes os traficantes que geralmente morrem ou são presos.

O subsistema varejo seria ainda relativamente autônomo em relação ao I-E-A, não

compartilhando de sua “organização”. Como indícios para esta afirmação, o autor menciona a

fragmentação territorial (cada quadrilha teria uma territorialidade) ou “territorialidade

descontínua”, a violência crônica e os constantes conflitos entre grupos rivais.

Tomando como referência uma escala internacional, e não local, o subsistema varejo

aparece apenas como a ponta mais frágil da rede do tráfico, que se estende até os grandes

empresários da droga, que se aproveitaria das condições miseráveis as quais está exposta a

maior parte da população favelada para recrutar nesta mão-de-obra barata e facilmente

substituível.

(...) a partir da consideração da escala da cidade como um todo, do país e do mundo, abarcando os financiadores e todos aqueles que, sem morarem em favelas e sem se exporem diretamente, são os principais beneficiários do tráfico, é que se observa melhor, entretanto, o quanto a pobreza é funcional para o tráfico de drogas, o qual devora a juventude das favelas como mão-de-obra barata e descartável. (SOUZA, 2005, p. 439).

Souza (2005) aponta ainda que a falta de engajamento por parte do Estado em setores

de interesse social (como saúde e educação) vem constituindo um estímulo para que muitos

pobres urbanos percebam o tráfico como estratégia de sobrevivência. Coimbra e Nascimento

(2003) complementam a questão lembrando que a implantação de medidas neoliberais que

começaram a surgir em nosso país na década de oitenta acarretaram sentimentos de

insegurança, medo e pânico, articulados ao aumento da miséria e da exclusão. Neste contexto,

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os jovens pobres comparecem, como os “excluídos por excelência”. A dificuldade de inserção

no mercado de trabalho, as baixas perspectivas que a sociedade lhes oferece de um modo

geral faz com que o mundo do crime seja uma opção para esses jovens – além de mais

rentável que a maioria das outras ocupações disponíveis, também confere poder e status

perante os demais.

Quanto às políticas de enfrentamento e incremento da repressão ao crime e ao tráfico

varejista em particular que Souza (2005) caracteriza como militarização (cuja expressão

máxima reside nas incursões policiais e até mesmo militares em áreas de atuação do tráfico

varejista, como foi a Operação Rio46, em 1994) o autor adverte que o emprego exclusivo desta

“solução” agrava ainda mais o problema, “por gerar mais tensões e ressentimentos (atritos

entre as forças policiais e militares e a população favelada) e retroalimentar a violência, ao

invés de combater as suas causas mais profundas e enfrentar o subsistema I-E-A” (SOUZA,

2005, p. 450).

Chegando ao final deste item, analisemos a fala de um ex-capitão do Batalhão de

Operações Policiais Especiais (BOPE), Rodrigo Pimentel, que ilustra bem o paradigma do

Racismo de Estado e a militarização do enfrentamento institucional relativo ao tráfico:

Você aperta esse morro aqui, eles espirram pelo lado... tu aperta do lado, eles espirram do

outro... então é uma guerra sem fim... Por mais que toda noite você vá lá... Durante duas

semanas, quase toda noite o BOPE matava um traficante ali.... Apreendia uma pistola,

matava um traficante, apreendia um fuzil, matava um traficante... .resolvia alguma coisa?

Não resolvia nada...Para ele, o jovem lá... .tem dezenas de jovens que não tão

no”movimento”, que estão esperando a vez de entrar no movimento.. .e talvez esse outro que

assuma, por ser mais novo.. Nós vemos agora uma facção surgindo, o Comando Vermelho

Jovem, o CVJ, né... Por ser mais novo, ele até tenha um ímpeto mais violento.47

46A Operação Rio tratou-se de um convênio firmando em 1994 entre o Governo do Estado do Rio de Janeiro, o Governo Federal e as Forças Armadas com o fim de eliminar o tráfico dos morros cariocas. Carvalho (2006) a destaca como estereótipo da militarização do controle ao crime. Importante notar ainda que esta operação foi incentivada por órgãos conveniados, legitimada pela mídia e por instituições de “formação do consenso”, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), conseguindo o aval da opinião pública. Como chegou a confessar o próprio comandante da Operação, o General Câmara Senna, alguns direitos institucionais foram prejudicados (detenções ilegais, busca e apreensão sem autorização judicial etc). Como dissera o general, “nós não somos um batalhão de assistentes sociais”. Os resultados da Operação Rio foram pífios, pois não conseguiu cumprir seus objetivos. Cf: Carvalho, 2006.

47 Este trecho é uma transcrição de um trecho do documentário Notícias de uma Guerra Particular, dirigido por João Moreira Salles e Kátia Lund em 1999.

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Analisando esta fala, alguns elementos causam estranheza. Primeira coisa que salta ao

leitor é a naturalidade com que se diz “toda noite o BOPE matava um traficante”, uma

verdadeira aberração constitucional, uma versão grotesca da pena de morte institucionalizada.

E mais: ao se matar os traficantes, esperava-se resolver o problema, que não se resolve porque

eles “espirram por todo lado”. Não há nenhum questionamento acerca das condições que

fazem com que os traficantes “espirrem por todo lado”, muito menos do por quê existirem

jovens que estão “esperando a vez de entrar no movimento”. Não há críticas. A única solução

proposta, explícita ou implicitamente neste discurso é o extermínio dos traficantes do varejo,

corroborando a afirmação de Souza (2005) para quem a repressão pouco faz em relação ao

subsistema I-E-A, que aloca os verdadeiros patrocinadores e chefes do tráfico. O final traz

ainda um outro alerta, quando salienta o perigo atribuído ao jovem pobre, que talvez tenha um

ímpeto “mais violento”48. Em última análise, nada mais é que a atribuição de uma essência a

este jovem em particular49 que é justamente a da periculosidade, em moldes bastante

semelhantes ao higienismo com características eugênicas (limpar a sociedade de seus

“degenerados”). Sem dúvida, trata-se de uma base argumentativa que pode muito bem

subsidiar campanhas para a redução da maioridade penal ou legitimar o desrespeito às

prerrogativas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), afetando especialmente a

população pobre. A fala deste policial nada mais é que uma expressão discursiva do Racismo

de Estado, com potenciais (e graves) efeitos pragmáticos.

48Alguns estudos, como o de Misse (2003), apontam o fato de que a violência relacionada ao tráfico vem aumentando conforme a idade dos traficantes vem diminuindo: estes seriam mais cruéis em suas retaliações e teriam menos respeito pela população local, abdicando da política assistencialista que se tornou notória com Fernandinho Beira-Mar, especialmente se forem originários de outra comunidade. Esse incremento da violência vem sendo atribuído também à necessidade cada vez maior de demonstrar poder perante os “inimigos” – notadamente, a polícia e grupos rivais. 49Coimbra e Nascimento (2003) assinalam a diferença que marca a caracterização da juventude pobre em particular. Neste sentido, existiria uma “essência” de jovialidade,e rebeldia, entusiasmo, que seria atribuída à juventude em um sentido lato. Já os jovens pobres estariam excluídos deste quadro. A “essência” destes remeteria à periculosidade, à afronta etc.

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CAPÍTULO II

MENS SANA IN CORPORE SANO: A PROMOÇÃO DA ‘SAÚDE’ COMO

DISPOSITIVO DO BIOPODER

Uma das linhas que compõem notoriamente o ‘problema da droga’ é aquela que

remete a questões sanitárias e suas práticas de efetivação da saúde pública. De fato, falar em

‘drogas’ implica considerar os eventuais riscos e prejuízos que seu uso pode lançar sobre a

saúde de um indivíduo. Nesse cenário é que se enquadram as diversas modalidades de

tratamento e acompanhamento dirigidas aos usuários de drogas, sejam de caráter compulsório,

sejam referidas a uma “demanda espontânea”. Se existe, em nossa sociedade, uma pressão

para que usuários “problemáticos” ou não de drogas busquem tratamento, esta em muito se

deve a um ideal aparentemente inquestionável, universal: a saúde. Se o tratamento em alguns

desses casos é compulsório, sua obrigatoriedade e conseqüente cerceamento da liberdade se

justificam sempre em nome de um bem maior: a saúde. Não apenas a saúde do indivíduo que

faz uso de drogas, mas também a saúde da sociedade, este grande plano que deve ser

devidamente50 protegido das condutas desviantes e daqueles que ousam se insurgir contra sua

ordem. Considerando tal cenário, situamos a questão: a saúde é um direito ou é um dever?

Como o biopoder opera sobre aqueles que, de alguma maneira, frustram os efeitos de

subjetivação instados por uma ‘gorda saúde dominante’?

São estas as questões que nortearão nosso estudo acerca dos mecanismos pelos quais o

biopoder sobrecodifica o usuário formatando-o em estigmas e através da reprodução de uma

subjetividade ‘drogada’, dependente, viciada. Consideramos aqui que tais movimentos são

facilitados por um determinado ‘ideal’ de saúde, um tipo de modo de subjetivação ‘saudável’

que nos é contemporâneo e que não existiu desde sempre: não se confunde com a produção de

saúde, e sim com uma determinada inflação das práticas e discursos acerca da vida que foi

sendo produzida historicamente. Se é possível situar não uma origem, mas um ponto de

inflexão (engendrado por múltiplas contingências) definitivo para pensar essa objetividade

50Devidamente, e não “completamente”. Mesmo a “proteção da sociedade” também deve ter sua medida. O movimento do biopoder não se efetua em direção ao bem-estar social, e sim em função dos seus próprios mecanismos de expansão e controle, operando sobre crises, conflitos e desajustes. A “defesa da sociedade” é apenas um dos alicerces que permitem justificá-lo; daí uma certa necessidade de “condutas desviantes”. Esta idéia será explorada no próximo capítulo quando tratarmos do paradigma do Império.

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histórica ou acontecimento, este se dá através do nascimento da medicina social, na qual a

saúde é convocada como objeto de saber e poder.

2.1 A constituição da saúde como dispositivo do biopoder

A medicina social e sua produção histórica devem ser entendidas, em um sentido lato,

como a mobilização de saberes e práticas com vistas à normatização da saúde da população.

Nesse sentido, a medicina social é aplicada sobre uma população com o fim de aproximar

tanto quanto possível sua saúde ou seu bem estar físico e psíquico de um determinado padrão

(estabelecido historicamente) de normalidade, com base na categorização de critérios mais ou

menos específicos definidos por linhas de força entre saberes e práticas no plano do biopoder.

De fato, conforme se apreende a partir de Foucault, o nascimento da medicina social coincide

com o momento em que o poder toma por objeto o corpo (e posteriormente, a vida em seu

aspecto mais amplo) configurando-se como um biopoder. A medicina emerge então como

uma estratégia biopolítica. Quando isso acontece?

Foucault (2004a) afirma que a medicina se torna social quando o desenvolvimento do

capitalismo socializa um primeiro objeto – o corpo enquanto força de produção. Este foi o

resultado de um processo no qual o autor identifica três etapas: a insurgência de uma medicina

de Estado em terras alemãs, no início do século XVIII; de uma medicina urbana, na França,

em fins do mesmo século; e finalmente, o aparecimento de uma medicina da força de

trabalho no segundo terço do século XIX, na Inglaterra. Estas etapas indicam as diferentes

fases através das quais a Medicina vai constituindo como objetos de medicalização o Estado,

as cidades e os pobres. Deste modo, “a medicina dos pobres, da força de trabalho, do operário

não foi o primeiro alvo da medicina social, mas o último. Em primeiro lugar o Estado, em

seguida a cidade e finalmente os pobres e trabalhadores foram objetos de medicalização”

(FOUCAULT, 2004a, p. 93).

A medicina de Estado surge em uma Alemanha ainda fragmentada, e justamente em

função desta condição. Isso porque sua fragmentação em estados ou pseudo-estados, com seus

conflitos, afrontamentos, os obrigaram a medirem-se uns com os outros, imitar seus métodos,

para redimensionar suas relações de força. Outra razão foi a estagnação econômica vivenciada

pela Alemanha neste período. Havia então uma burguesia desocupada, disposta a oferecer

seus préstimos ao fortalecimento e organização dos estados (FOUCAULT, 2004a). Tal mão-

de-obra servira então para constituir uma burocracia alemã.

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Até então, grandes nações ocupavam-se de suas populações na medida em que era de

seu interesse o cálculo de sua população ativa: é assim que França e Inglaterra passam a se

interessar pelas suas estatísticas de mortalidade e natalidade51. Enquanto nestes casos o

interesse pela saúde reduzia-se a tais números, na Alemanha tem início uma prática médica

cuja finalidade era a melhoria do nível de saúde de sua população. A noção de

medizinichepolizei, ou ‘polícia médica’, surge em 176452, e consistira na organização de um

saber médico estatal, na normalização da profissão médica, na subordinação dos médicos a

uma administração central e em sua integração em uma organização médica estatal. Nesse

sentido é que Foucault (2004a) afirma esta ser uma medicina de Estado, e que o primeiro

indivíduo a ser normalizado na Alemanha foi o médico. Não é uma medicina preocupada

especificamente com a força de trabalho, e sim com o aperfeiçoamento de uma força estatal.

Já a medicina urbana que aparece na França no final do século XIX tem como

fundamento não a força do Estado, mas a urbanização. O crescimento urbano e seu

estabelecimento não apenas como um lugar de mercado, mas também de produção, cria

tensões urbanas que demandam então uma organização de poder. Daí uma série de ‘pequenos

pânicos’ urbanos que atravessam as grandes cidades, não apenas em relação às revoltas

urbanas, mas também com as condições de insalubridade que aparecem com uma ocupação

urbana desordenada (por exemplo, com o acúmulo de corpos nos cemitérios, com os miasmas,

com tudo aquilo que pode se acumular e amontoar no meio urbano provocando doenças ou

difundindo epidemias e endemias) gerando uma inquietude política-sanitária (FOUCAULT,

2004a). Em tal cenário, destaca-se como dispositivo da medicina o esquema da quarentena,

que se desenvolvera já na Idade Média instado pelas pestes ou epidemias. Engloba a prática

do internamento, da vigilância, da análise minuciosa da cidade tal qual uma revista militar.

Nesse momento,

O poder político da medicina consiste em distribuir os indivíduos uns ao lado dos outros, isolá-los, individualizá-los, vigiá-los um a um, constatar o estado de saúde de cada um, ver se está vivo ou morto e fixar, assim, a sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente e controlado por um registro, tanto quanto possível completo, de todos os fenômenos. (FOUCAULT, 2004a, p. 89).

51Trata-se de um interesse afim ao mercantilismo, prática política e econômica que consiste na majoração da força de trabalho ativa para maior rendimento de riquezas. É nesse sentido que tais nações, no contexto da ‘história moderna’, se interessam pelos seus índices populacionais (FOUCAULT, 2004a). 52Foucault (2004a) assinala que até fins do Antigo Regime o termo ‘polícia’ não designava apenas a instituição policial, mas o conjunto dos mecanismos que visam assegurar a ordem, o crescimento canalizado das riquezas e da saúde.

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Os métodos de vigilância, de operação e de hospitalização da medicina urbana nada

mais são que um aperfeiçoamento do método da quarentena; mesmo a higiene pública remete

a uma sofisticação da quarentena. É daqui que decorre sua preocupação especialmente com o

estado das coisas (salubridade), e não com a saúde especificamente. A medicina urbana,

conforme lembra Foucault (2004a), não toma por objetos os homens, os corpos ou os

organismos, e sim as condições de vida: água, ar, decomposições, fermentos etc. São sobre as

condições de vida que ela incide. Uma medicina do meio, das coisas, focada na salubridade.

Finalmente, a medicina toma por objeto o corpo dos pobres e do proletariado, na

Inglaterra em plena Revolução Industrial. Mas por que os pobres não tinham sido até então

convocados como objeto do saber e práticas médicas?

De acordo com Foucault, os pobres não representavam, até então, um perigo médico

para as cidades. Ao contrário, os pobres cumpriam várias funções sem as quais o

funcionamento das cidades estaria bastante comprometido, como por exemplo, o despejo de

lixo, a entrega de cartas, o transporte de água etc. Mas finalmente os pobres deixam de ser

úteis conforme passam a representar um risco político, capazes de se rebelar e se organizar

politicamente (em função das agitações sociais que aparecem no século XIX). O

estabelecimento de sistemas postais e de sistemas de carregadores dispensa os serviços antes

prestados pelos pobres. Some-se a tais fatores a epidemia de cólera de 1832, que fez com que

todo um pavor sanitário se estabelecesse em torno da população proletária culminando em um

efeito de segregação no tecido urbano entre os pobres e os ricos. A coabitação com o pobre no

mesmo espaço urbano passa a sinalizar o perigo. A Lei dos Pobres é então criada na Inglaterra

para minimizar os efeitos indesejáveis que poderiam advir da má-saúde (ou da doença) do

pobre, através de seu controle médico. Assegurando-se a saúde do pobre através uma prática

assistencialista, assegura-se a proteção dos mais ricos. Assim, “um cordão sanitário autoritário

é estendido no interior das cidades entre ricos e pobres: os pobres encontrando a possibilidade

de se tratarem gratuitamente ou sem grande despesa e os ricos garantindo não serem vítimas

de fenômenos epidêmicos originários da classe pobre” (FOUCAULT, 2004a, p. 95). É assim

que vai se fortalecendo no século XIX uma medicina atrelada à organização de uma política

de saúde e de uma consideração das doenças como questão política e econômica, em direção a

uma noso-política que não se restringe à interferência do Estado, mas também de grupos

religiosos, associações de socorro e beneficência, sociedades científicas etc. A saúde e o bem-

estar físico da população são aqui convocados como um objetivo político que demanda um

encargo coletivo. Consolida-se assim “o imperativo da saúde: dever de cada um e objetivo

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geral” que preza pela “disposição da sociedade como meio de bem-estar físico, saúde perfeita

e longevidade” (FOUCAULT, 2004a, p. 197),

Fala-se assim de uma saúde que se impõe não apenas em nome da preservação de uma

força de trabalho apta a continuar suas jornadas, mas também do gerenciamento dos homens

em um momento de crescimento demográfico no Ocidente – o que ocasiona, conforme já foi

colocado, inúmeras tensões que demandam então o estreitamento do controle dos corpos que

comporta essa efervescente massa humana. É nesse contexto que surge a medicalização da

família – onde se estabelecem novas regras de relações entre pais e filhos a fim de garantir os

investimentos necessários para que as crianças tenham um desenvolvimento saudável, onde as

famílias aprendem as ‘regras de higiene’ – a consolidação da medicina como instância de

controle social – são os médicos que cumprem a função de orientar a família em direção a

uma boa saúde e uma boa higiene - a constituição de uma rede hospitalar etc (FOUCAULT,

2004a).

A saúde ocupa assim um lugar privilegiado entre os objetos de incidência do biopoder.

Os saberes, os discursos sobre a saúde facilitam a tomada da vida como alvo privilegiado do

biopoder, na medida em que se torna possível explorá-la, investi-la, controlá-la. O biopoder

alimenta assim a saúde da qual se supre ele mesmo para ser cada vez mais invocado,

(re)produzido, às custas do potencial de variação do qual se compraz a vida.

Assim é que a saúde passa a se apresentar como um “direito” do cidadão e um dever

do Estado, na medida em que ele a toma sob sua tutela – cuja expressão máxima seria o

Estado do bem-estar social. Todavia, se assim se deu em vários países do Ocidente,

especialmente na Europa e na América do Norte, cabe lembrar que no Brasil a tomada da

saúde pelo Estado esteve praticamente restrita aos dispositivos higienistas e sanitários com

objetivo básico de organização urbana a partir do controle e da normalização da população

(MACHADO; LOUREIRO; LUZ; MURICY, 1978) sob moldes marcadamente disciplinares e

tendo como principal suporte de apoio a organização familiar, como enfatiza Costa (1979).

Esse movimento começa a se desenhar com a chegada da família real portuguesa ao Brasil em

1808, motivada pelo controle da Europa por Napoleão Bonaparte.

Costa (1979) e Lobo (2008) indicam vários fatores que convergiram para a

desconfiança e o descontentamento da sociedade diante da nova administração joanina. A

vinda da Corte de Dom João ao Rio de Janeiro afrontara o estado de coisas no qual a

sociedade encontrava-se então, fortemente marcada pela herança colonial e pela organização

latifundiária. A Lei das Aposentadorias (pela qual era permitido aos membros da

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administração real requisitar casas particulares para sua estadia) que serviu de suporte para

beneficiar aristocratas e serviçais da Corte, tendo como efeito seu uso inescrupuloso e a

tomada de inúmeras residências sem direito à indenização é bastante ilustrativa desse

momento, atingindo especialmente a camada mais abastada da população local. Somem-se

ainda a centralização do patrulhamento com o estabelecimento de uma “polícia da cidade”

cujas atribuições ultrapassavam a simples vigilância repressiva indo “desde o calçamento das

ruas, a construção de pontes e o estabelecimento de água até a organização de festas

populares” (LOBO, 2008, p. 305). O caráter profundamente intrusivo da administração real

estendia-se à imposição de “bom-gosto” e à necessidade de “modernização”, como no caso da

proibição das rótulas e gelosias de madeira53 nas residências e sua substituição por vidraças -

ainda que a motivação implícita para este feito tenha sido a necessidade de segurança do Rei,

uma vez que tais figurações arquitetônicas permitiam aos moradores das residências que

vissem o movimento exterior sem serem vistos, como lembra Costa (1979). Em suma, o

conjunto de medidas coercitivas que a chegada da Corte impôs à sociedade criou um clima de

hostilidade que tornava frágil o poder imperial diante de uma elite inconformada e raivosa.

Em um momento no qual o controle sobre a sociedade tornava-se uma questão

delicada para a administração estatal, medidas de intervenção inscritas sob a higiene pública e

a medicalização da família foram de importância fundamental para a aproximação e

minimização das desconfianças nutridas pela sociedade ao Estado. Era necessário que o

Estado fosse percebido não como um inimigo, mas um aliado dessas famílias – daí a

necessidade de instrumentos de controle mais sutis, para a qual os dispositivos medicina

social respondiam perfeitamente. Sob tais circunstâncias é que “os indivíduos deveriam

adquirir a convicção da importância que o Estado tinha na preservação da saúde, bem-estar e

progresso da população. Surge então a necessidade premente de se organizarem formas de

coerção capazes de redefini-lo aos olhos das famílias” (COSTA, pp. 56-57).

Se por um lado atribui-se ao Estado, ancorado e legitimado pelo saber médico, a

atribuição de cuidar da saúde, por outro esta mesma atribuição passa a se deslocar para o

próprio campo de atuação da família. À família também cabe o papel ativo de preservar e

fomentar a saúde, ainda que através da operacionalização dos mesmos saberes que inflamam

os dispositivos de intervenção do Estado. Nesse sentido, “a própria família deveria animar a

53 Elementos arquitetônicos herdados da cultura árabe, bastante presentes em residências coloniais abastadas de então. Eram então entendidos como de ‘mau-gosto’ e ‘atraso cultural’, conforme assinalam Lobo (2008) e Costa (1979).

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produção de seus fiscais. A operação deveria ser ágil, contínua e pouco onerosa” (COSTA, p.

63).

Assim é que se desenvolve uma relação paradoxal e ao mesmo tempo recíproca entre

Estado, família e saúde, que ganha especial enlevo quando se trata de um país onde o modelo

de Estado do bem-estar social nunca se firmou, como é o caso do Brasil. O Estado higienista

informa sobre a saúde, normaliza a saúde, promove a própria demanda por saúde – a

população depende, em algum grau, da atuação do Estado. O Estado, por sua vez, precisa de

dispositivos que otimizem e sejam menos custosos à sua administração: o Estado também

depende da família. Em tais operações de reciprocidade, “a família projetada pelos

higienistas deixar-se-ia manipular acreditando-se respeitada; abandonaria antigos hábitos em

troca de novos benefícios, auto-regular-se-ia, tornando cada um dos seus membros, um agente

da saúde individual e estatal” (COSTA, p. 63). Assim é que o Estado mediado pela medicina

deveria fazer vir à tona as virtudes higiênicas de cada membro da família, ao mesmo tempo

abolindo condutas que o saber médico julgasse perniciosas à saúde, e educando-os para que

cada um atuasse no sentido de prover saúde. As normas da higiene deveriam ser

internalizadas, e não meramente ‘cumpridas’. Fato bastante ilustrativo dessa ‘manipulação’

da família em favor dos interesses do Estado foi a disseminação da crença médica de que

patriotismo e servilismo para com a pátria indicavam uma ‘boa saúde mental’, contribuindo

para o encorpamento das instituições militares através do recrutamento, como apontam Costa

(1979) e Lobo (2008).

De fato, no Brasil a saúde só se efetiva como dever do Estado e direito do cidadão já

em fins do século XX, com a Constituição de 1988, em um momento em que os avanços do

neoliberalismo desmontam o modelo de bem-estar social. Até então, a medicina social no

Brasil foi desempenhada predominantemente por dispositivos disciplinares, expressos em

estratégicas sanitárias de controle a epidemias e de vacinação da população – bem como pelo

controle das “classes perigosas”, como foi analisado no capítulo anterior. O cuidado com

saúde da população pobre era exercido especialmente - e não por acaso - por instituições

religiosas ou filantrópicas. O Estado Brasileiro não tomou a saúde para si, como fizeram os

‘estados do bem-estar social’. O encontro entre a medicina social, a população pobre, as

instituições disciplinares e filantropia assim se expressa:

Pobres e principalmente escravos e indigentes teriam ação indireta nessa modernização das almas de elite: fonte de todos os malefícios (epidemias, vícios e degenerações), eles funcionavam como admoestação à obediência dos preceitos higiênicos, por isso deveriam ser afastados do convívio urbano,

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internados em espaços próprios, como os depósitos de mendigos, prisões, asilos e hospícios, ou, no caso dos escravos, enviados para o trabalho rural. Com o tempo, a medicina social tomou a caridade das mãos dos leigos, estendendo discursos e práticas normalizadoras ao resto da população. Articulou-se à filantropia, transformando o hospital em estabelecimento propriamente médico, e deixou sua marca nos demais: escolas, asilos, fábricas e prisões. (LOBO, 2008, p. 303).

De todo modo, seja como dever, seja a partir de qualquer plano de regulação ou

espectro de atuação, a saúde é de interesse do Estado. Daí que tenha sido possível ao biopoder

desvelar-se da saúde tutelada para assumi-la de outra forma bem mais sutil, onde a própria

noção de dever (e por que não de responsabilidade, diante do desmonte do bem-estar social e

da privatização da saúde?) atrelada à saúde é direcionada diretamente ao cidadão – o que já

vinha, de alguma maneira, se desenhando desde que a medicina começou a educar as famílias

para fiscalizar a saúde de seus membros. Na medida em que o biopoder desenvolve ou

aperfeiçoa outros mecanismos de controle da saúde da população, pode perfeitamente se

destituir (ainda que essa destituição não seja regra geral) de medidas mais ‘agressivas’ (e

também mais onerosas) em favor de outras mais sutis e nem por isso menos invasivas ou

efetivas. Trata-se da construção de um ideal de saúde que se impõe como um dever - ou

ainda, como um assujeitamento, na proporção que se expressa na sujeição a um discurso ou

modo de vida que tolhe a construção de si (incluindo as próprias possibilidades de produção

de saúde) como analisamos a seguir.

2.2 Mente sã, corpo são: saúde como dever.

De acordo com Schramm (2006), as forças da biopolítica vêm transformando o antigo

paradigma segundo o qual a saúde seria um direito do cidadão e um dever do Estado. Em

relação ao cidadão, a saúde passa a se inscrever como dever; em relação ao Estado,

especialmente após a crise do bem-estar social, como um dispositivo capaz de sancionar

regras e otimizar o controle sobre o corpo e o comportamento dos indivíduos. Sobre tal

transformação de paradigmas, o autor assinala que:

Isso consiste na concepção de uma suposta necessidade, e a conseqüente legitimidade, de pensarmos as políticas atuais de saúde não mais como fruto de um “pacto sanitário”, sobre o direito do cidadão aos cuidados em saúde e um dever correspondente do Estado em garanti-las. Ao contrário, esse consenso pode ser entendido como um dever do cidadão de ser saudável e

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um direito do Estado de incentivar, controlar e, eventualmente, sancionar o comportamento do cidadão que, por ventura, tenha práticas denominadas “não saudáveis”. (SCHRAMM, 2006, p. 188).

A saúde como dever opera, assim, uma produção reificada de subjetividade maquinada

pelo biopoder, havendo o dimensionamento da saúde a um certo estilo de vida, ao controle

das formas de vida e das maneiras de viver, no qual “o biopoder passa por um mecanismo de

docilizar e controlar corpos para que se adaptem aos padrões e respectivos produtos de saúde

vendidos no atacado e no varejo.” (COELHO; FONSECA, 2007, p. 65). Quem não desejaria

aparentar ser mais jovem, dotado de um belo corpo, ter uma alimentação saudável, um bom

sono (mesmo que por intermédio de um ótimo calmante)?

Nesse contexto onde a saúde se torna um objeto de consumo, a busca por uma saúde

idealizada, modulada e padronizada acaba por constranger o funcionamento e a construção do

corpo singular. Trata-se do culto à saúde exercido “a partir de uma saúde que não é sua, mas

de um ‘outro’, montado e construído como uma miragem a ser seguida” (COELHO;

FONSECA, 2007, p. 66), a partir de uma saúde “que se demanda e acontece como

investimento de desejo de um tipo de vida separada de suas capacidades de criar as próprias

condições de existir” (FUGANTI, 2007)54 no qual a verdade sobre a saúde, o dizer sobre

quem tem ou não saúde torna-se prerrogativa dos exames médicos, dos discursos e práticas

cientificistas que são convocados como universais e incontestáveis. Para Coelho e Fonseca

(2007, p. 67) “essa avaliação denuncia que existe a afirmação de um ‘tipo’ de qualidade de

vida que não suporta os meios tons, os meios equilíbrios, os meios acertos, transformando

suas advertências em dogmas incondicionais”.

Não havendo meio-tons, trata-se de uma perspectiva de saúde que despreza as

diferenças, e que só opera a partir de dois pólos – saudável e não-saudável – ignorando que

entre estes dois extremos podem existir múltiplas maneiras de produzir saúde. As

conseqüências biopolíticas desta incitação de busca por uma saúde idealizada constrangem

aqueles que por alguma razão não se enquadram em tal ideal, reduzindo as possibilidades de

atuação legítimas dos cidadãos que assim são incitados a escolher entre comportamentos ditos

saudáveis ou não-saudáveis, conforme coloca Schramm (2006).

Diante desta perspectiva, o conceito de saúde encontra-se restrito à adesão dos

comportamentos “saudáveis”, ignorando que possa haver arranjos funcionais para um

54Discurso de Luiz Fuganti proferido no CRP - RJ em 29.03.2007. Disponível em: http://escolanomade.org/escolanomade/index.php?option=com_content&view=article&id=100:biopoder-nas-politicas-de-saude-e-desmedicalizacao-da-vida-por-luiz-fuganti-&catid=25:artigos&Itemid=55. Não-paginado.

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indivíduo que comportassem comportamentos “não-saudáveis”, os quais não necessariamente

constituem um obstáculo à produção de saúde de um indivíduo. A própria dicotomia entre

saudável e não-saudável despreza a possibilidade de que existem inúmeros modos de se

produzir saúde. Entretanto, se o processo de construção e criação de si passa tanto pelo prazer

como pelo sofrimento, como lembram Fonseca e Coelho (2007) por que demonizar condutas

atípicas diante da busca por uma saúde ideal? Trata-se aqui dos:

(...) riscos, referentes a indivíduos e grupos que têm determinados hábitos considerados incorretos, tais como fumar, beber demais, não fazer exercícios físicos ou praticar esportes radicais, não fazer dieta ou fazer dieta demais, dentre outros, como se taishábitos tivessem inequivocadamente uma dimensão moral (...) Nesses casos a biopolítica pode tornar-se liberticida em nome de uma suposta garantia da saúde e do bem-estar do corpo social. (SCHRAMM, 2006, p. 195-196).

Moralização das condutas, produção reificada de subjetividade, linhas hegemônicas

que apelam a um valor (tanto quanto a um direito) que é convocado como universal e

inquestionável: a saúde. Valor e direito que são maquinados no contemporâneo por

dispositivos do biopoder. Deleuze nos traz uma expressão bastante interessante que nos ajuda

a conceituar tal saúde ideal e imaculada e seus efeitos de subjetivação: ‘gorda saúde

dominante’55. Gorda por não caber em si mesma, não cedendo espaço ou passagem para

novos modos de produção de si; dominante por corresponder a modelos-padrão – que nos

chegam pelas campanhas publicitárias, pelos discursos e práticas vinculadas ao saber médico,

à higiene pública etc. - de traçado hegemônico que se impõem tragando as possibilidades de

singularização do corpo (e conseqüente despotencialização da vida).

Fuganti (2007) aponta alguns fatores que concorrem para encorpar esta gorda saúde

dominante contemporânea. Trata-se do ideal de conservação funcional do corpo orgânico –

medido pela eficácia do seu mecanismo sensório-motor – vinculado ao ideal de domínio da

intencionalidade do desejo “ou do bom senso na vontade como determinação da consciência

normal ou civil” (FUGANTI, 2007). Mens sana in corpore sano, mente sã em um corpo são.

É diante deste cenário que as práticas e discursos que incitam a constituição de uma

saúde perfeita são afrontados por aqueles que escapam de tais padrões, onde se incluem os

usuários (problemáticos ou não) de drogas. O usuário de drogas põe diretamente em xeque os

55Esta expressão encontra-se no texto “A literatura e a Vida”. Nele, o autor a utiliza em oposição à saúde “frágil” dos escritores, onde a própria noção de fragilidade comporta um sentido de abertura, de lugar de passagem entre devires e novos modos de subjetivação. Cf: DELEUZE, A literatura e a vida In: Crítica e Clínica. Rio de Janeiro, Ed. 34, 2006.

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alicerces desta gorda saúde dominante: se o uso de drogas pode ser atribuído a certo

movimento de des-razão donde decorre alguma medida de descontrole psíquico superposto à

‘vontade como determinação da consciência normal’, poder-se-ia alegar que o usuário

buscaria, em certo sentido, a insanidade – ainda que temporária56. Mas a ‘afronta’ aos ideais

de saúde não se encerra sobre as especulações acerca das motivações daquele que

experimenta drogas, nem tampouco aos riscos físicos que sabemos existir relativos ao seu uso.

Os estereótipos frequentemente atribuídos aos “drogados” como sujeitos sem força de

vontade, que anseiam pela negação da realidade e não possuem nenhum controle sobre seu

corpo “dependente” e sua mente “perturbada” e de “caráter fraco” povoam o imaginário

social. De fato, a construção de tais estereótipos é devida ao próprio processo de

sobrecodificação que as forças do biopoder inflam sobre tudo aquilo que escapa aos seus

esquemas prévios e movimentos de modulações-padrão; é a partir dessa sobrecodificação que

o biopoder consegue então operar sobre tais elementos, seja por meio da classificação, da

catalogação, da produção de saberes que os tomem por “objeto” ou de dispositivos para

contorná-los. Daí as modalidades de diagnóstico, tratamento e acompanhamento voltadas para

a “cura” – ‘cura’ pois o uso de drogas é instado como doença; cura pois o objetivo desses

tratamentos é quase sempre a abstinência - dos que usam drogas (comunidades terapêuticas,

Alcoólicos e Narcóticos Anônimos, inclusão da “dependência química” no DSM-IV57,

modalidades psicoterápicas específicas etc) e de seu enquadramento por dispositivos mais ou

menos sutis de controle (prisão, Justiça Terapêutica, etc.)58.

Novamente a dicotomia entre o saudável e o não-saudável: ou se é abstinente, ou se é

“drogado”, doente, no mínimo suspeito. Aquele usuário que busca a abstinência ainda

encontraria aqui algum respaldo, uma vez que ele está em um movimento de busca por uma

“saúde maior”. Mas o que dizer sobre aqueles que optam, por qualquer que seja a razão, por

uma “saúde menor”, por dar continuidade ao uso de drogas (seja este uso problemático ou

não) e que se põem assim em oposição aos paradigmas do biopoder e de uma “gorda saúde

dominante”? Até que ponto cada um é, efetivamente, dono de seu corpo? Podem alegar que o

uso de drogas não é apenas uma questão de saúde física, mas também psíquica, podendo

56 Não se afirma aqui que uma espécie de “desejo de devir esquizo” seja a motivação ou o motivo do uso de drogas, apenas se tenta aproximar da “afronta” que tal uso opera contra o ideal de saúde de mente “sã”, à medida que alterações no estado de consciência normal são efeitos imediatos do uso de drogas. 57O DSM-IV Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders traduz-se por Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais, e é publicado pela Associação Psiquiátrica Americana. A “dependência química” foi incluída no DSM-III, lançado em 1980. O manual em vigor é o DSM-IV, publicado em 1994. 58Um panorama geral destas modalidades que se pautam no dito ‘princípio da abstinência’ será dado adiante.

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trazer conseqüências nefastas não apenas aos usuários, mas também àqueles que estão ao seu

redor, e que, portanto, trata-se de um problema relativo não apenas à saúde do usuário, mas

também da sociedade no qual ele se insere. Em relação a este tipo de discurso, faz-se mister:

(...) apontar os perigos paternalistas e autoritários das atitudes protetoras, visto que estas poderiam tornar-se instrumentos não legítimos de limitação do exercício da autonomia pessoal e, mais em geral, de cerceamento dos assim chamados “direitos fundamentais”, cuja garantia é condição necessária da responsabilização moral do agente pelos seus atos. (SCHRAMM, 2006, p. 194).

Tal perigo é verificado constantemente em relação ao ‘problema da droga’ onde

prevalece uma espécie de imperativo sanitário pautado na abstinência que considera que

qualquer tipo de uso de drogas traz necessariamente danos à saúde. Mas de que saúde

propriamente se fala? Haveria realmente uma relação necessária entre uso e dano, ou ainda,

entre uso e risco de dano? Não se trata de negar o potencial de dano que as drogas

apresentam, mas de avaliar sua proporção, os limites e os perigos, considerar quais saúdes

existem entre uma saúde ideal e a aniquilação da saúde. Ao contrário de se tratar de uma

apologia à falta de saúde, afirma-se aqui uma produção de saúde em favor da vida.

2.3 Abstinência como Imperativo Sanitário (e Legal): abordagens repressiva e punitiva

em nome da Saúde

A maior parte das alternativas de acompanhamento aos usuários de drogas é pautada

no princípio da abstinência – ou seja, o ideal de nunca mais fazer qualquer uso de drogas.

Diante do paradigma de uma saúde ideal, a abstinência se coloca como o único modo legítimo

de produção de saúde, em detrimento a outros mais ou menos distantes deste mesmo ideal.

Segundo Tedesco e Mattos (2005), o princípio da abstinência deve ser compreendido

em dois sentidos: como condição essencial para que o tratamento seja iniciado e como o

próprio foco do tratamento – o que de saída já aponta uma relação problemática na qual a

abstinência é tanto o objetivo final quanto a pré-condição do tratamento. Os autores apontam

como um grande problema da abordagem a premissa de que a abstinência seria a única

motivação válida para que o usuário buscasse tratamento, se constituindo na única condição

de estabelecimento de vínculo com o usuário. Diante de tal exigência, outras demandas de

acompanhamento estariam excluídas.

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Bigg (2003) assinala o fato de que, no sentido em que a maior parte das ofertas de

tratamento voltadas para o usuário de drogas busca apenas a abstinência, são desvalorizados

outros progressos significativos no tocante à redução dos danos que o uso de substâncias

psicoativas pode ocasionar. O autor assinala que tais tratamentos não se satisfazem com o

resultado comum de moderação e progresso. Para ele,

É tão estabelecido na crença popular que a abstinência é o único resultado de sucesso do sistema de ajuda às drogas que ficar limpo/sem beber/sobriedade são parte e parcela de qualquer entendimento comum de tratamento. Na verdade, as pessoas poderiam se beneficiar do sistema de tratamento pela simples moderação em seu uso de droga ou, por outro lado, aliviando os problemas relacionados às drogas (...) É como se estivéssemos dizendo: ‘ Um progresso significativo não é suficiente, você deve ser perfeito em sua abstinência, ou nós iremos privá-lo da medicação que tem melhorado grandemente sua vida’. Esta abordagem punitiva é lugar-comum dentro do sistema de ajuda às pessoas que enfrentam problemas com drogas. (BIGG, 2003, p. 205).

É em função de razões que obtém na economia do biopoder o status de “verdade” que

se explica a demanda de adaptação aos paradigmas ideais de saúde que instam aos usuários

abstinência de drogas sob risco de se sofrer alguma sanção – exclusão do acesso ao

tratamento, falta de acolhimento ou inclusão em grupos considerados “de risco”, muitas vezes

estigmatizados e quiçá, punidos.

È diante desses efeitos que Tedesco e Mattos (2005) afirmam que um dos riscos dessa

abordagem se refere à passividade diante de todo o processo nos quais os danos associados ao

uso de drogas se desenvolvem, indicando ser muitas vezes preciso que o usuário chegue “ao

fundo do poço” antes de conseguir um acompanhamento. Em outros termos, corre-se o risco

de só se fazer alguma coisa após grande comprometimento do indivíduo usuário já que “uma

vez deixado o paciente entregue a própria sorte, as decorrências são evidentes: por um lado, a

ação do tempo no agravamento dos sintomas e, por outro, a exigência de um tipo muito

específico de paciente” (TEDESCO; MATTOS, 2005, p. 139).

Ainda para os autores, o princípio da abstinência se estabelece sobre um modelo

fundamentalmente repressivo, na proporção que a intervenção baseada nesse modelo busca

fortalecer atitudes de esquiva consciente ao uso de drogas. Sob esse prisma, tal controle

precisa ser sempre trabalhado com um constante estado de vigilância sob pena de recaída, e

consequentemente, de fracasso. Daí que seja um modelo baseado no estabelecimento de um

movimento de repressão em direção ao apelo do uso:

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Entende-se repressão como uma força exercida em oposição a uma outra. Temos a força da atração pela droga vencida pela força de evitação. O objetivo do processo terapêutico é criar ou manter certa intensidade da força de repressão dirigida à tendência ao uso. Tal força repressiva estabelece-se como um estado de alerta, estado de tensão, barreira à força, ainda insistente, em direção à droga. Uma vez estabelecida a atitude ininterrupta de evitação, o sujeito ficaria “livre” das drogas, porém refém eterno deste estado de alerta, da foca opositiva circunscrita ás drogas, criada ou intensificada pelo tratamento (TEDESCO; MATTOS, 2005, p. 138).

Sob o modelo repressivo, a recaída é demonizada, encarada como um sinal de

fracasso, reveladora da “marca negativa e indelével deixada pela doença, a ser vivida

recursivamente e eternamente por todo dependente” (TEDESCO; MATTOS, 2005 p. 139), e

não como uma etapa do acompanhamento, onde as recaídas deveriam ser consideradas como

parte de um processo maior - ainda que o objetivo final fosse a abstinência e não a redução de

danos ou o manejo do uso de drogas. A abordagem repressiva sustenta assim que “o paciente,

descrito como dependente em recuperação, mantém-se refém eterno do treinamento constante

e das recaídas freqüentes, naturalizados ambos como ciclos inexoráveis da doença”

(TEDESCO, MATTOS, 2005).

Tal pressão engendrada pelo pavor da recaída (do fracasso e mesmo da vergonha)

pode mesmo gerar um efeito contrário e levar o usuário à busca pela droga a fim de reduzir as

tensões exercidas sobre si, abrindo caminho para um ciclo vicioso no qual o usuário se

vivencia como um dependente incurável, culpabilizando-se pela dependência (TEDESCO;

MATTOS, 2005), e buscando redenção em outra dependência – a terapêutica, essa sim muito

mais aceitável na medida em que trabalha ainda com o fortalecimento do modelo repressivo e,

em tese, funcionaria como um entrave ao risco de recaída. Nesse sentido, seria preferível a

dependência do terapeuta que o risco de promover a autonomia do indivíduo, esse pequeno

doente incurável e sem força de vontade, refém e reprodutor de uma subjetividade

‘adoentada’, ‘viciada’.

Verifica-se aqui que a exigência de abstinência pautada na repressão (fortalecimento

do comportamento de esquiva), bem como a atribuição dos rótulos de ‘doente’, ‘fracassado’

aos usuários de drogas reproduzem uma lógica dicotômica na qual ou se está ‘limpo’,

‘abstinente’, ‘saudável’, ou se está ‘doente’, ‘sujo’, ‘viciado’. Uma lógica, portanto, sem

meio-termos, onde ou se é saudável ou definitivamente não se é. A sobrecodificação do uso de

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drogas em ‘doença’ expressa a dimensão pejorativa dada a priori não apenas sobre o uso de

drogas ou o simples ato de se usar a droga, mas também sobre aquele que a usa.

Mas o uso de drogas não ensejou apenas um modo de sobrecodificação ou de

produção de subjetividade; não foram os discursos e práticas médicas os únicos movimentos

impulsionadores desse processo. O problema também mobilizara de forma especial (conforme

se vem colocando ao longo deste estudo) discursos, saberes e práticas vinculados ao Direito.

Desta rede, emerge então uma aliança entre a Saúde e o Direito. O que se conhece atualmente

por Justiça Terapêutica ilumina tal aliança no tocante ao problema dos usuários de drogas. O

conceito de ‘justiça’ contempla os aspectos legais do Direito, enquanto o termo ‘terapêutica”

é “relativo à ciência médica, define atenção e/ou tratamento e reabilitação de uma situação

patológica” (OLIVEIRA SILVA et al, 2002, p. 218).

A Justiça Terapêutica é um programa especial para usuários de drogas baseado na

Drug Courts norte-americana59, que propõe como alternativa ao encarceramento um sistema

de tratamento. Aparece no Brasil com a emergência do “Projeto RS Sem Drogas” no Estado

do Rio Grande do Sul em 1999, em parceria com trabalhadores da área da saúde e do direito.

A partir desse projeto nasce então o “Projeto Justiça Terapêutica”, que:

(...) pode ser compreendido como um conjunto de medidas que visam oferecer atenção terapêutica aos infratores usuários e/ou infratores dependentes de drogas e, com isso, a possibilidade de modificar seus anteriores comportamentos delituosos para comportamentos legais e socialmente aceitos. (OLIVEIRA SILVA et al, 2002, p. 215).

Justificando-se em princípios humanistas pragmáticos e entendendo o usuário

primordialmente como doente e não como criminoso, seus defensores alegam que seu

objetivo é despenalizar o usuário de drogas, eliminando o estigma de infrator ao liberá-lo de

um processo ou condenação legal através de seu compromisso com o tratamento terapêutico

compulsório e a abstinência. A aliança firmada entre as esferas médicas e jurídicas se

apresenta de forma evidente na teoria e na prática da Justiça Terapêutica:

A Justiça Terapêutica pode ser compreendida como um conjunto de medidas que visa a um novo entendimento pelos operadores do direito e da sociedade em geral, dos infratores usuários ou dependentes de drogas. Estes passam a ser reconhecidos como pessoas portadoras de um transtorno emocional,

59As Drug Courts americanas foram criadas para dar solução a grande quantidade de prisões efetuadas em função de crimes relacionados às drogas no país. A iniciativa teve início em Miami, onde promotores e juízes passaram a propor tratamento aos envolvidos com drogas, em detrimento aos processos criminais. (OLIVEIRA SILVA et al 2002)

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como descrito no Código Informacional de Doenças, CID-10, e no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, DSM-IV, com direito a tratamento, não se transformando unicamente em apenados. (OLIVEIRA SILVA et al, 2002, p. 217).

O público-alvo dessa modalidade de intervenção são os que infringem a Lei de

Tóxicos (uso ou porte de drogas, não incluindo a venda) ou os que operam delitos que tenham

sido desencadeados pelo uso de drogas (roubo/furto sob efeito de drogas, ou ainda, para que

se possa obter drogas) (TEDESCO, MATTOS, 2005). O tratamento terapêutico é monitorado

pela Justiça sob a forma de testes compulsórios e relatórios, sob pena de condenação e

possível encarceramento do usuário do Programa que não se adaptar às suas normas.

Note-se que apenas os casos remetidos a delitos de pequeno potencial ofensivo são

enquadrados na esfera de atuação da Justiça Terapêutica. Apenas nesses casos a clínica é

convocada como dispositivo. Tedesco e Mattos perguntam: por que a justiça abre espaço para

a clínica, mas delimita seu campo de atuação aos crimes menos graves, como se nos de maior

gravidade deixassem de existir comprometimentos psíquicos relacionados ao uso de drogas?

Ora, torna-se evidente que a terapêutica aqui está fortemente subordinada ao judicativo. Os

mecanismos envolvidos nessa judicalização que se superpõe à clínica terminam por

comprometer a eficácia do processo terapêutico. Tedesco e Mattos (2005) trazem alguns

efeitos que emergem nesse comprometimento:

Ao conferir prioridade à ação da justiça sobre a problemática psicopatológica permite à lógica penal determinar a função terapêutica, pervertendo a natureza desta atividade. A denominação [de ‘Justiça terapêutica’], portanto, destitui a justiça de sua função original em nome de uma ação dita terapêutica que por sua vez também não se realiza, representando uma contradicitio in terminis. (TEDESCO; MATTOS, 2005, 140).

O caráter compulsório - ainda que se inscreva como uma alternativa à submissão de

um processo legal, acaba operando como compulsório - do atendimento clínico exclui o

indivíduo de seu próprio processo terapêutico, na medida em que a demanda por tratamento

parte da sociedade (representada pelo jurídico) e não do próprio indivíduo. Diante dessa

constatação, Tedesco e Mattos (2005) problematizam o tipo de vínculo que se cria entre

paciente e clínico, na medida em que se entende que o processo terapêutico insta uma certa

aliança entre as partes que depende da demanda do indivíduo a ser atendido. Os autores

lembram também que a quebra de sigilo em caráter padrão (e não de exceção), referido à

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necessidade de relatórios constantes emitidos pela equipe da Justiça Terapêutica acerca do

estado do usuário fere os princípios éticos da clínica.

Mediante tal cenário, verifica-se que as abordagens repressiva e legal relativas aos

usuários de drogas inscrevem a saúde como dever, impondo àqueles que se utilizam de seus

programas a exigência não apenas da abstinência, mas também um monitoramento mais ou

menos constante que se confunde com o invasivo, com o compulsório, podendo mesmo

comprometer a eficácia e aquela que deveria ser finalidade dos próprios tratamentos – a

promoção da saúde. O paradigma da saúde ideal como dever circunscreve assim os processos

de sobrecodificação, enquadramento e assujeitamento dos usuários de drogas, instados por

relações de força povoadas de saberes, discursos e práticas médicas, jurídicas, cientificistas.

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CAPÍTULO III

ENTRELAÇANDO TODAS AS LINHAS: O IMPÉRIO

A virada dos anos dourados para a década de sessenta foi um momento de intensa

efervescência política, econômica, social e cultural. Surgem inúmeros focos de resistência: a

luta dos estudantes e dos operários, das mulheres, dos negros, contestando a desigualdade de

direitos e reivindicando condições mais justas atravessaram o mundo. Aprofundam-se as

críticas não apenas ao sistema capitalista, mas também à estrutura familiar, ao

tradicionalismo. A Revolução Cubana e a Revolução chinesa instauram regimes socialistas,

pondo em xeque a primazia do modo capitalista de produção. Nos ditos países do ‘terceiro

mundo’, ocorre uma onda de ditaduras militares (especialmente na África e na América

Latina). No Brasil, o Golpe de 64 assinala-se ao alinhamento da política brasileira com a

política externa norte-americana em tempos de Guerra Fria: um golpe promovido, em grande

parte, pelo próprio governo norte-americano, desejoso de garantir a supremacia do

capitalismo e da democracia (sic) nas Américas. E que mobilizou o apoio, inclusive, de boa

parte da sociedade civil - especialmente entre os cristãos e os conservadores, para quem o

Comunismo representava o próprio mal. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade é

ilustrativa desse fenômeno.

É nesse cenário que a passagem da questão das drogas como um problema de cunho

predominantemente sanitário e mobilizador de pouca atenção pública60 foi sendo

gradativamente convertida em uma verdadeira questão de guerra, incorrendo na deflagração

de inúmeras campanhas de pânico moral e uma extraordinária produção legislativa. Carvalho

(2006) localiza na Convenção Única sobre Entorpecentes, aprovada em Nova Iorque em 1961

– e promulgada no Brasil em 1964 durante o governo Castello Branco - um desdobramento

imediato desta nova fase, caracterizada pela transnacionalização do controle das drogas

como dispositivo de um projeto mais amplo de transnacionalização do controle social, cujo

objetivo seria diluir as fronteiras nacionais para o combate à criminalidade – e também,

convém colocar, para a regulamentação de condutas.

No preâmbulo desta convenção, sustentou-se a necessidade de manter a saúde física e

moral da população, afirmando a toxicomania como um grande perigo social e econômico da

60Conforme discutido na primeira parte deste trabalho

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sociedade e também como um mal a ser combatido de forma conjunta por meio de um

compromisso internacional e em nome de interesses pretensamente universais:

As Partes, Preocupadas com a saúde física e moral da humanidade (...) reconhecendo que a toxicomania é um grave mal para o indivíduo e constitui um perigo social e econômico para a humanidade; conscientes de seu dever de prevenir e combater esse mal; considerando que as medidas contra o uso indébito de entorpecentes, para serem eficazes, exigem uma ação conjunta e universal; julgando que essa atuação universal exige uma cooperação internacional, orientada por princípios idênticos e objetivos comuns; reconhecendo a competência das Nações Unidas em matéria de controle de entorpecentes e desejosas de que os órgãos internacionais a ele afetos estejam enquadrados nessa Organização; desejando concluir uma convenção internacional que tenha aceitação geral e venha substituir os trabalhos existentes sobre entorpecentes, limitando-se nela o uso dessas substâncias a fins médicos e científicos estabelecendo uma cooperação a uma fiscalização internacionais permanentes para a consecução de tais finalidades e objetivos (...) (NAÇÕES UNIDAS, p. 1-2, 1961)

É possível perceber claramente no texto um teor salvacionista e beligerante (expresso,

por exemplo, no uso do termo “combater”) bem como um apelo à comunidade internacional

para que esta acate a responsabilidade de combate às drogas a partir de parâmetros

previamente definidos – responsabilidade esta sujeita à fiscalização internacional. Nesse

sentido, o combate contra as drogas encontra-se justificado em prol de princípios

“superiores”, com a finalidade de salvaguardar a humanidade contra um potente mal que

poderia desorganizá-la, uma vez que as drogas seriam “um perigo social e econômico”. Em

outras palavras, ao considerarmos o cenário em que ocorre a Convenção de Nova Iorque e a

maneira através da qual suas deliberações se impõem junto ao plano internacional e

reivindicam a união de forças em termos globais, verifica-se que o combate contra as drogas

encontra-se justificado em nome do direito (e da ordem), e, em última instância, em nome da

paz.

De fato, de acordo com Hardt e Negri (2001) aquilo que confere consistência ao

Império e garante a afirmação de seu poder não é diretamente a força que ele demonstra, e

sim sua capacidade de utilizar toda a sua força a serviço da paz. A força e a potência do

Império aumentam substancialmente quando este se mostra forte e suficiente para defender os

interesses da humanidade. O Império precisa de demandas de paz pra se sustentar e

desenvolver: ele precisa de conflitos aos quais deve ser convocado a intervir. No limite da

questão, o Império funciona como uma resposta às crises e aos conflitos. Poder-se-ia afirmar,

neste sentido, que a paz não é o verdadeiro objetivo do Império – ao contrário, seu objetivo

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seria a maquinação de demandas de paz, que o convocassem todo o tempo, compondo assim

um permanente cenário de guerra. O Império precisa provar ao mundo que este precisa de

paz, que existem inimigos a serem combatidos - de modo que “a primeira obrigação do

Império, portanto, é ampliar o domínio dos consensos que dão apoio a seu próprio poder”

(NEGRI, HARDT, 2001, p. 33).

Neste sentido é que podemos inserir a transnacionalização do controle sobre as

drogas, a qual de acordo com Carvalho (2006, p. 11) faz “uso político dos entorpecentes pelas

agências repressivas através da nominação dos novos ‘inimigos internos’”. Esta nova figura

de “inimigo interno” que vem desde então povoando o imaginário social, seria a figura do

traficante, encarnada “coincidentemente” em estereótipos tipicamente “desviantes”, como os

imigrantes nos Estados Unidos e os favelados no Brasil61.

Entretanto, o inimigo não é apenas interno; é também externo. É através dessa noção

de “inimigo externo” que a transnacionalização do controle do tráfico vai ganhando

consistência e aumentando seu poder de intervenção. Trata-se aqui da projeção de um inimigo

interno (traficante) para um inimigo exterior (países produtores, geralmente pertencentes à

periferia do capitalismo), inflexão esta que Carvalho (2006) localiza no mandato do

presidente norte-americano Richard Nixon (1969-1974), quando países periféricos são

responsabilizados pelo consumo de drogas nos Estados Unidos, formando uma dicotomia

entre países “maus” (Tailândia, Colômbia etc.) e “bons” na qual “a criminalização do

estrangeiro aplaca a vitimização doméstica” (CARVALHO, 2006, p. 14).

Observa-se aqui um ponto interessante. Nota-se a existência de “inimigos”

estrangeiros que são identificados com os países produtores e que demandam sob a lógica do

combate às drogas iniciativas intervencionistas – sejam sanções econômicas, sejam

intervenções militares – que vem sendo durante todo este tempo capitaneadas principalmente

pelos EUA. De todo modo, a “criminalização dos estrangeiros” pode ser entendida como um

dispositivo de inclusão por exclusão no interior dos limites ditos “imperiais”, que vai pouco a

pouco diluindo as fronteiras entre “exterior” e “interior”. Isso porque dentro da lógica

imperial tal qual formulada por Hardt e Negri (2001) especialmente a partir de suas

observações acerca da expansão do “império americano”62, os inimigos jamais são exteriores

61 Neste sentido, caberia perguntar qual é a imagem que vem à cabeça da maioria dos cidadãos quando se indaga sobre quem são os traficantes. 62Cabe lembrar que o conceito de Império não se restringe aos efeitos da soberania americana. Se é possível hoje falarmos em um império capitaneado pelos Estados Unidos, é em função de sua atual posição de destaque nas relações internacionais e pelo peso de seus discursos e práticas em relação à organização desta “nova ordem

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ao Império – ainda que, quando se trata de Estados Nacionais, se fale em inimigo interno e

externo - estando sempre dentro, incluídos de alguma maneira, ainda que como criminosos ou

“maus”. Tratemos então de precisar este mecanismo imperial de “inclusão exclusiva”, ou o

princípio da expansão soberana do Império.

Hardt e Negri (2001) identificam uma característica essencial à lógica imperial: a

abertura das fronteiras, sempre em expansão, uma “tendência a um projeto aberto e

expansivo, que opera em um terreno ilimitado” (HARDT, NEGRI, 2001, p. 184), que já se

delineava desde a constituição americana, e que se tornou bastante visível com a ocupação do

oeste, no século XIX.

Se em alguns momentos o expansionismo americano tomou emprestadas algumas

características bem próprias ao colonialismo e imperialismo europeus – como “boas intenções

civilizatórias” com fins de retirar “pobres povos selvagens” da barbárie, levando os EUA à

experiência colonialista nas Filipinas no governo de Roosevelt (1933-1945) – o projeto

expansionista americano termina se revelando bastante singular, especialmente na medida em

que é inclusivo, e não exclusivo – não se trata de um projeto voltado para a conquista, a

pilhagem, a escravidão ou ao genocídio, que caracterizaram o imperialismo. O Império em

expansão não está preocupado minar os poderes com os quais esbarra. Pelo contrário: seu

objetivo é incluí-los, alargando seus limites, tendo mais propriamente como método o

estabelecimento de uma base consensual que a imposição direta, o que faz este movimento se

apresente como legítimo. O Império funciona como uma rede que se desenvolve na medida

em que estabelece conexões com novos elementos e avança em suas fronteiras, ao mesmo

tempo em que este processo de expansão implica sempre um grau de reconfiguração. Ou

ainda, “quando se expande, essa nova soberania [imperial] não anexa ou destrói os outros

poderes que encontra, mas, pelo contrário, volta-se para eles, incluindo-os na rede. O que se

abre é a base do consenso, e assim, todo corpo soberano é continuamente reformado”

(HARDT, NEGRI, 2001, p. 185).

Ao considerarmos o preâmbulo do texto da Convenção Única sobre Entorpecentes

realizada em Nova Iorque em 1961 à luz destas características imperiais, é possível inferir que

mundial”, não porque a dinâmica imperial esteja limitada ao poderio norte-americano. Hardt e Negri, logo no prefácio de seu livro se apressam em esclarecer esta questão, afirmando que se os Estados Unidos possuem hoje uma posição privilegiada no Império esta se dá em função dos próprios fundamentos que alicerçaram a constituição deste país. Estes fundamentos já teriam em si os germes de um “império” - especialmente na medida em que supõem a expansão das fronteiras - de maneira que “essa concepção imperial sobreviveu e amadureceu ao longo da história da constituição dos Estados Unidos, e surgiu agora em escala global, na sua forma plenamente desenvolvida” (HARDT, NEGRI, 2001, p. 14).

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o combate às drogas que neste momento vai assumindo uma postura efetivamente beligerante

é um desdobramento da expansão imperial, na medida em que apela a consensos e demandas

estabelecidas universalmente, como a necessidade de “segurança” ou “saúde”(“julgando que

essa atuação universal exige uma cooperação internacional, orientada por princípios idênticos

e objetivos comuns”). Também revela claramente dispositivos de expansão, como a

necessidade de cooperação internacional – aumentando suas conexões – dirigida a um bem

comum, a uma população universal (“reconhecendo que a toxicomania é um grave mal para o

indivíduo e constitui um perigo social e econômico para a humanidade”). A “inclusão

exclusiva” aparece nitidamente com a projeção de um inimigo interior para o exterior – a

responsabilização dirigida especialmente aos países produtores abre espaço para que novas

relações e conexões sejam estabelecidas entre estes e o Império, como por exemplo, relações

de “intervenção moral”, econômica, ou mesmo militar.

O direito de intervenção consiste num dos vetores básicos da organização imperial,

garantindo a homogeneização de valores, práticas e discursos que engendram as ditas

“demandas pela paz”. O direito imperial de intervenção:

(...) é geralmente concebido como o direito ou o dever que têm os senhores dominantes da ordem mundial de intervir em territórios de outros senhores no interesse de prevenir ou resolver problemas humanitários, garantindo acordos e impondo a paz (...) as autoridades supranacionais que estão legitimadas não por direito, mas por consenso intervêm em nome de qualquer trivial emergência e princípios éticos superiores. O que está por trás dessa intervenção não é um permanente estado de guerra e exceção, mas um permanente estado de emergência e exceção justificado pelo apelo a valores essenciais de justiça. Em outras palavras, o direito de polícia é legitimado por valores universais. (HARDT, NEGRI, 2001, p. 35-36).

Hardt e Negri argumentam que os dispositivos de intervenção imperial abarcam desde

as intervenções financeiras e monetárias até a intervenção jurídica, moral e militar, frisando

que “os poderes imperiais de intervenção podem ser mais entendidos como algo que começa

não-diretamente com armas de força letal, mas com instrumentos morais” (HARDT, NEGRI,

2001, p.54). A intervenção moral seria aquela exercida de forma mais sutil pelos mass media,

pelas entidades religiosas, pelas ONGs, dentre outros atores variados, surgindo primeiro a fim

de abrir espaço para a legitimação dos demais tipos de intervenção. Esta espécie de

intervenção, na medida em que é sustentada a partir de critérios valorativos, é a responsável

pelo estabelecimento do consenso que irá definir quem são os inimigos a partir de valores e

necessidades apregoadas como universais. Já a intervenção jurídica, em termos gerais, é

aquela que visa o alinhamento jurídico de um Estado com as decisões acatadas em âmbito

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internacional. Considerando-se as convenções e deliberações em relação às drogas –

especialmente aquelas encorpadas pela ONU a partir de incitações estadunienses – e a

exigência de compromisso da comunidade internacional perante as mesmas, demandando

sempre que necessário reformulação legislativa no interior dos Estados Nacionais para que se

sustente um alinhamento consensual em torno destas políticas, observa-se o mecanismo pelo

qual “o processo imperial de constituição tende direta ou indiretamente a penetrar e

reconfigurar a lei interna dos Estados Nação, e dessa forma a lei supranacional poderosamente

superdetermina a lei nacional” (HARDT, NEGRI, 2001, p. 35).

No caso do “problema das drogas”, este mecanismo é explícito, bastando atentar para

a produção midiática voltada para esta problemática – quase sempre sensacionalista, valendo-

se de utopias salvacionistas e de discursos notavelmente moralistas – para a grande

quantidade de ONGs e movimentos civis comprometidos com o combate e erradicação das

drogas e para o comprometimento de os países se alinharem com a política anti-drogas

regulamentada no nível global. Estas seriam, segundo os autores, as formas de intervenção

que precedem o dito “estado de exceção”63, ou ainda, uma política de estado de exceção

permanente, que a esta altura encontrar-se-á devidamente legitimada e sancionada e até

mesmo solicitada. Nos primeiros momentos trata-se, portanto, de um tipo de intervenção mais

sutil, mais fluida e sem fronteiras, “armada com alguns dos mais eficazes meios de

comunicação e orientada para a produção simbólica do inimigo” (HARDT, NEGRI, 2001,

p.55). Em relação às drogas, o inimigo ou o mal a ser combatido seriam não apenas as drogas

em si, mas também o traficante, figura esta devidamente espetacularizada e portadora de uma

carga social simbólica profundamente negativa.

É neste sentido que os discursos que sustentam a lógica de responsabilização dos

países produtores remetem em última análise a uma intervenção moral, e quando pulverizados

para a periferia – como nos lembra Carvalho (2006) - negligenciam a relação das drogas

dentro da cultura dos grupos sociais envolvidos - como os andinos, que há séculos possuem o

hábito de mascar gomas de coca. Ignora-se a alteridade, indicando um esforço de

sobrecodificação64 e neutralização das diferenças, no qual os elementos abarcados pela ordem

imperial tem sua significação referida ao ribombar dos discursos imperiais.

63Sobre este estado de exceção permanente, falaremos mais adiante. 64Sobrecodificação ou, como nos colocam Guattari e Rolnik (1986), uma codificação secundária, ou ainda, uma atribuição secundária de sentido a um objeto que parte de uma instância exterior ao mesmo.

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No Brasil, estas intervenções também se fizeram presentes, sendo assinalada por

Carvalho Rangel65 a “necessidade” de se adotar as mesmas medidas referentes às drogas que

o governo americano, destacando-se a ação conjunta entre o judiciário e outras instâncias

governamentais para combater o tráfico, única forma pela qual se poderia eliminar o “mal”

das drogas (CARVALHO RANGEL, apud BATISTA, 1998). Neste momento, a lógica da

guerra fria predispunha e legitimava a ação militar contra as drogas. De acordo com Batista:

A generalização do contato de jovens com as drogas devia ser compreendida, no quadro da guerra fria, como uma estratégia do bloco comunista para solapar as bases morais da civilização judaico-cristã ocidental, e que o enfrentamento da questão devia valer-se de métodos e dispositivos militares. A reunião do elemento bélico e do elemento religioso resulta na metáfora da guerra santa, da cruzada, que tem a vantagem – extremamente funcional para as agências policiais – de exprimir uma guerra sem restrições, sem padrões regulativos, na qual os fins justificam todos os meios. No plano internacional, o novo front das drogas reforçava as fantásticas verbas orçamentárias do capitalismo industrial de guerra. (BATISTA, 1998, p. 87).

A guerra fria produzira nos EUA uma aliança entre os setores militares e industriais

para o qual a iminência da guerra era condição de desenvolvimento, incorrendo em uma

intensa militarização das relações internacionais. No Brasil, ganha força a idéia de “inimigo

interno”, dando espaço para a construção da imagem do traficante - atrelada a do “comunista”

– e incorrendo no enquadramento do crime de tráfico na Lei de Segurança Nacional

(BATISTA, 1998).

Com a importância da guerra para a economia e o desenvolvimento do capitalismo e a

militarização das relações internacionais – e com a justificação moral e ética para se ir à

guerra – tem-se um outro conceito que Hardt e Negri (2001) vinculam ao funcionamento do

Império. Trata-se do conceito de bellum justum, ou “guerra justa”. É um conceito fundado em

fortes bases morais, que remonta às antigas ordens imperiais e às tradições bíblicas,

fundamentando o direito de ir à guerra desde que um Estado sinta-se ameaçado. Segundo os

autores, o conceito tradicional de guerra justa remete à banalização da guerra e a celebração

da luta como instrumento ético, bem como a banalização dos próprios inimigos, “reduzido[s]

a objeto de rotineira repressão policial e tornado[s] absoluto[s] (...) uma ameaça à ordem

ética” (NEGRI, HARDT, 2001, p. 31) Ganhando forças a partir do cenário da guerra-fria

com o deflagramento da produção de um novo inimigo cristalizado na figura do traficante, a

guerra contra as drogas vai assumindo os contornos de uma verdadeira “guerra justa”, ou

65Carvalho Rangel é juiz de Direito do Estado do Rio de Janeiro.

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ainda, de uma “guerra santa”, de uma cruzada disposta a exorcizar o planeta do mal dos

entorpecentes. Neste quadro, o poder que ancora esta guerra apóia-se cada vez mais no apelo

a princípios cristãos e morais, na preservação da civilização ocidental e na sua busca pela paz:

[a guerra justa] tornou-se justificável em si mesma. Dois elementos distintos combinam-se neste conceito de luta justa: primeiro, a legitimidade do aparelho militar desde que eticamente fundamentado, e segundo, a eficácia da ação militar na conquista da ordem e da paz desejadas. (HARDT, NEGRI, 2001, p. 30).

Como foi possível a guerra contra as drogas delinear-se como uma “guerra justa”?

Mais especificamente no Brasil, a temática do consumo e tráfico de drogas ganha

espaço público a partir dos anos sessenta, vinculado especialmente à contracultura e a

movimentos de contestação da época, ganhando grande visibilidade e causando grande pânico

moral. De acordo com Carvalho (2006, p. 8), surgem então “campanhas idealizadas por

movimentos sociais repressivistas aliadas aos meios de comunicação [que] justificarão os

primeiros passos para a transnacionalização do controle sobre os entorpecentes” incitadas

pelos ditos Movimentos de Defesa Social (MDS), cujos substratos ideológicos repousam em

concepções abstratas e a-históricas de bem X mal X culpabilidade, que naturalizam e reificam

condutas como “naturalmente” desviantes – a Ideologia da Defesa Social (IDS), um dos

vetores de “intervenção moral” que perpassa os discursos hegemônicos em torno das drogas.

A IDS, cuja instrumentalização se reflete nos MDS, comporta a noção de que exista

uma necessidade de estabelecimento de mecanismos racionais de controle para conter a

criminalidade. Segundo o criminólogo Salo de Carvalho (2006,p. 25), “a IDS dissemina o

modelo ideal de resposta ao delito no qual se sustentará a idéia de intervenção punitiva

racional e científica. O caráter universalista (totalizante) e a-histórico do programa repressivo

auferirá a legitimidade do projeto”. Baratta (apud Carvalho, 2006) nos apresenta alguns

princípios da IDS afins à lógica imperial:

a) Princípio de Legitimidade: O Estado, como expressão da sociedade, está legitimado para reprimir a criminalidade, da qual são responsáveis determinados indivíduos, por meio das instâncias oficiais de controle social (legislação, polícia, magistratura, instituições penitenciárias). Estas instâncias interpretam a legítima reação da sociedade, de sua grande maioria, dirigida à reprovação e condenação do comportamento desviante individual, e à reafirmação dos valores e das normas sociais.

b) Princípio do Bem e do Mal: O delito é um dano para a sociedade. O delinqüente é um elemento negativo e disfuncional do sistema social. O desvio criminal é, portanto, o mal; a sociedade constituída, o bem.

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c) Princípio de Culpabilidade: O delito é expressão de uma atitude interior reprovável, pois é contrário aos valores e às normas presentes na sociedade antes de sancionadas pelo legislador. (BARATTA apud CARVALHO, 2006, p. 25-26).66

Conforme se verifica, a IDS é pautada diretamente na concepção de crime como mal,

um mal que se opõe aos valores estabelecidos socialmente, e que deve ser combatido de

forma efetiva pelo Estado, cujo dever seria a preservação da sociedade – ou ainda, a

preservação dos que estão devidamente socializados, enquadrados, aqueles que “podem

viver”. O criminoso seria alguém de “atitude interior reprovável”, indicando uma concepção

intimista e uma postura aparentemente desimplicada das condições materiais e das práticas

sociais na fabricação da delinqüência. O próprio caráter a-histórico desta concepção vai de

encontro à concepção do crime como objetivação histórica, portador de um status que se

define como desviante apenas quando em relação a um conjunto específico de critérios

valorativos, localizados em um dado contexto histórico67. Sendo assim, não é possível falar, a

rigor, de uma conduta criminosa por excelência. Ao naturalizar o crime como o “mal”

negligencia-se o fato de que a própria definição acerca de quais seriam as condutas criminosas

não são dadas a priori, e sim construídas em função de múltiplas determinações, de maneira

que nenhuma conduta pode ser categorizada natural e essencialmente, em qualquer tempo e

espaço, como desviante ou criminosa68.

Outro vetor conjugado aos MDS e a IDS e alinhado ao tom beligerante que as políticas

anti-drogas imperiais já começam então a consolidar seriam os Movimentos de Lei e Ordem

(MLO). Os MLOs tiveram suas origens nos EUA como resistência à contracultura

reivindicando o resgate dos princípios éticos, cristãos e morais do Ocidente.

Tradicionalmente, aproximam-se com a direita punitiva e a tendência do Direito Penal

Máximo, identificando o crime como uma patologia da sociedade, explorando o medo e

criando climas de alarde (CARVALHO, 2006). Trata-se de movimentos amplamente calcado

na dicotomia delinqüentes x cidadãos de bem, devendo os primeiros ser neutralizados ou 66A citação feita por Salo de Carvalho está em espanhol, e foi aqui traduzida pela autora deste estudo. 67Gomes e Molina (1997, p. 58) pontuam que noções como “delito natural” ou “conduta desviante” “não expressam uma noção apriorística de delito, valorativamente neutra e objetiva (...) Pelo contrário, tem, também, uma inquestionável carga ‘valorativa´, com as inerentes doses de relativismo, circunstancialidade, subjetivismo e incerteza. Pois condutas desviadas in se (por suas qualidades objetivas) não existem (...) O conceito de ‘desviação’, ao apelar para as ‘expectativas sociais’ mutantes, circunstanciais, reconhece sua própria incapacidade para formular um conceito de delito ‘ontológico’ (...). 68A IDS já foi amplamente criticada e deslegitimada por várias vertentes teóricas, incluindo as teorias sociológicas interacionistas, a dita “criminologia da reação social” - que entende que sem criminalização não há crime. Entretanto, ela continua fomentando o senso comum do cidadão acerca de quais são as respostas adequadas ao crime. Para maiores detalhes sobre as críticas feitas à IDS, ver Carvalho, 2006, p. 26-28.

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eliminados, enquanto os últimos, protegidos dos primeiros. Seu principal canal para a

reificação desta concepção (ou estabelecimento de consenso via intervenção moral) é a mídia,

mediante a distribuição de estereótipos da delinqüência.

A capacidade dos meios de comunicação de reprodução da violência é inominável. A publicidade nos casos de violência, sobretudo em casos de expressivo dano ao ofendido (crimes contra a vida e contra a liberdade sexual, por ex.) produz estereótipos que (re)significam a criminalidade, apontando as baterias do sistema punitivo aos grupos vulneráveis, ou seja, aqueles que por correspondência são identificados e que através de atos pessoais são identificáveis com o estereótipo. (CARVALHO, 2006, p. 35-36).

Esta produção de estereótipos serve à “catalogação dos delinqüentes”, a sua

sobrecodificação como tentativa de significá-los e enquadrá-los a partir de categorias

específicas que se identificam com o mal, com o indesejável, com o que não é bem-vindo -

ignorando tudo que possa escapar a estes códigos previamente estabelecidos. Sendo assim, é

uma importante ferramenta para a generalização, que é a própria condição para determinação

do estereótipo – muito adequado à lógica do racismo de estado, ou ainda, à lógica do

“racismo imperial”, e a definição de quem é (ou são) o(s) inimigo(s). No momento em que a

massa consome o estereótipo, passando então a reforçá-lo em suas práticas e discursos, este

racismo é retro-alimentado, reproduzindo-se exaustivamente, e renovando-se a partir da

sobrecodificação de novos “indesejáveis” – comunistas, traficantes, árabes, favelados,

nordestinos, mexicanos, negros etc. – que por serem temidos, devem ser neutralizados,

anulados, e no limite, exterminados.

Entretanto, nem mesmo todas estas forças poderiam garantir a eficiência de todo este

programa. Não é apenas necessário que a massa concorde com o mesmo ou ainda que o

aceite: é preciso que ela se implique efetivamente neste programa, por livre e espontânea

vontade ou não. No caso do Brasil da virada dos anos sessenta para os setenta, a ditadura

militar que então vigorava predispunha condições para que a sujeição à política anti-drogas

abrangesse toda a população, buscando sufocar quaisquer movimentos de oposição ou mesmo

de omissão em relação ao problema, tornando-os ilegítimos já em sua gênese. É o que se

verifica na lei número 5.726 de 29 de outubro de 1971.

Seu artigo 1º, inspirado na Lei de Segurança Nacional, declara ser “dever de toda

pessoa física ou jurídica colaborar no combate ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes”

(BATISTA, 1998, p. 86, grifo nosso). Além do compromisso bélico implícito no termo

“combate”, e explícito no enquadramento do tráfico ao lado dos crimes contra a segurança

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nacional69, a lei impõe o dever jurídico de colaboração, de maneira que qualquer opinião ou

conduta contrária poderia ser interpretada como anuência ao uso ou ao tráfico de drogas.

Tratam-se dos “ilícitos omissivos”, cuja finalidade seria “converter qualquer opinião

dissidente da política repressiva numa espécie de cumplicidade moral com as drogas”

(BATISTA, 1998, p.86).

A guerra contra as drogas aparece então com uma nova roupagem. O controle e a

repressão sobre o uso e tráfico de drogas ultrapassam as fronteiras institucionais, deixando de

ser apenas da competência do aparato estatal, pulverizando-se para a esfera civil. A repressão,

neste sentido, não opera apenas sobre a deslegitimação de qualquer oposição frente à política

oficial do Estado, mas também se capilariza, impregnando-se cada vez mais o plano do

socius, na medida em que torna dever de todo cidadão colaborar contra o tráfico e uso de

drogas – os dispositivos de controle normativo e institucionais estendem-se para além dos

próprios muros das instituições policiais e jurídicas, colocados à disposição direta de qualquer

cidadão. As redes de controle fecham cada vez mais o cerco, sobrepondo-se mais diretamente

sobre o plano do socius, responsabilizando diretamente a população na medida em que a mera

omissão é passível de punição e entendida como cumplicidade, ao mesmo tempo em que

aumentam as possibilidades de prisões e detenções.

Finalmente, é com a Lei 6.368 de 21 de outubro de 1976 que se dá no Brasil o

aperfeiçoamento da repressão, e como nos lembra Carvalho (2006), o incremento da

punitividade e da reprodução dos estereótipos traficante-delinquente e consumidor-usuário.

Ganha força o processo chamado por Vera Malagutti Batista de demonização do traficante,

no qual a este “será agregado o papel (político) de inimigo interno” (CARVALHO, 2006, p.

15). A Ideologia da Segurança Nacional consolida esta figura no imaginário público,

acrescentando ao inimigo interno político (subversivo) o inimigo interno político criminal

(traficante). Neste contexto é que as ações governamentais e a grande mídia trabalham o

estereótipo político-criminal (BATISTA, 2003), e como inimigo a figura do traficante passa a

evocar as concepções de “defesa social”. Note-se ainda que se trata de um alarido construído

69Batista (2003) sinaliza para a junção entre “subversão” e o “problema das drogas”, apontando para a legitimação deste problema no âmbito da Lei de Segurança Nacional. No levantamento documental realizado pela criminóloga nos arquivos do DOPS, uma das fichas referentes ao verbete “tóxicos” denominava-se “Tóxicos e Subversão”. Trata-se de um documento oficial, que citando Lênin, Mão Tse-Tung e Ho Chi Min, associava a toxicomania a “uma estratégia comunista para a destruição do mundo ocidental”. Deste modo, o aparato repressivo ditatorial justificara que os crimes vinculados ao uso ou tráfico de drogas tivessem tratamento bastante similar aos crimes contra a segurança do Estado, devendo ser punidos com máximo rigor. A construção do “pacote de estereótipos” faz com que as características já atribuídas aos subversivos (imorais, desordeiros, assassinos cruéis etc) fossem deslocadas para os grupos vinculados ao uso ou tráfico de drogas, pulverizando o clima de pânico e alarde social.

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de modo propositalmente exagerado, sensacionalista, descompromissado com a dimensão real

dos efeitos decorrentes do consumo de drogas, uma vez que, de acordo com Carvalho (2006)

o uso de drogas ilícitas no Brasil da década de setenta não justifica tal alarde.

A lei 6.368/76 também buscou fortificar a hegemonia dos discursos “dominantes”,

ampliando ainda mais a rede de consensos que já vinha sido imposta desde a lei 5.726/71, e

reprimindo com cada vez mais rigor as vozes dissonantes. Assim é que ela versava estarem

sujeitos à reclusão entre três e quinze anos aqueles que fizessem “apologia às drogas”, ou seja,

quem contribuísse “de qualquer maneira ou forma para incentivar ou difundir o uso intensivo

do tráfico” (LEI 6368, art.12, §2º, inc. III, apud BATISTA, 1998, p. 87). A indeterminação do

conteúdo torna legítimos atos arbitrários e garante a neutralização de um discurso de

oposição, visando garantir o monopólio dos discursos sobre as drogas por parte das agências

estatais de regulamentação, repressão e censura:

A regulamentação desta lei (...) proibia qualquer texto, cartaz, representação, curso, seminário ou conferência sobre o tema sem prévia autorização (art. 8º) bem como recomendava a fiscalização rigorosa pelas ‘autoridades de censura´, sobre espetáculos públicos, para ‘evitar representações, cenas ou situações que possam, veladamente, suscitar interesse´ pelo tema (art.9º). (BATISTA, 1998, p. 87)

A lei 6.368/76 também reforça a associação dependência-delito, determinando o

tratamento obrigatório aos usuários de drogas, uma vez que a dependência seria um “fator

criminógeno e revelador de intenso perigo social” (CARVALHO, 2006, p. 19). Importante

notar também que a perspectiva sanitarista presente na Lei também produz forte associação

entre dependência e uso de drogas, sem que se faça qualquer distinção, ampliando a

possibilidade de identificação de qualquer usuário com um dependente. Em outros termos, a

vinculação dependência-delito incorre na “criminalização da adicção”, fazendo com que o

Estado tome como dever intervir no “dependente” com a finalidade de impedir condutas

criminosas futuras, ao mesmo tempo em que a vinculação usuário-dependente impõe

tratamentos a não-dependentes. O elemento “periculosidade” ganha assim grande enlevo para

a determinação da guerra contra as drogas. O aumento da repressão manifesta-se também no

endurecimento das penas: os traficantes varejistas (pequeno traficante) passam a estar sujeitos

às mesmas sanções previstas para os grandes traficantes.

Com a lei 6.368/76, consolida-se no Brasil o modelo de enfrentamento imperial à

problemática do uso de drogas, e que persiste ainda na atualidade. Malgrado alguns avanços

legislativos na área desde então, especialmente no tocante ao tratamento legal dirigido aos

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usuários70, as demandas de militarização da segurança pública ainda se apóiam sobre as

mesmas bases morais, valorativas e jurídicas, e continuam a subsidiar um “estado de exceção”

configurado a partir da Ditadura Militar, onde predomina a lógica de repressão ao uso e

tráfico de drogas. Diariamente, a mídia veicula informações acerca da violência atrelada ao

tráfico de drogas, ora sobre conflitos entre os próprios traficantes, ora com a polícia. Detalhes

sangrentos são minunciosamente divulgados e explorados, e a espetacularização destas

notícias torna-se notória. A população sente-se cada vez mais insegura, e não é incomum

ouvirmos que “estamos em guerra”. De fato, a produção do sentimento massivo de

insegurança aliada à intensificação da militarização do problema das drogas nos conduz

finalmente ao último ponto que gostaríamos de abordar em relação à lógica imperial: a

manutenção de um estado de exceção permanente a partir do qual o Império ganha forças

para alargar cada vez mais os seus limites, na medida em que a demanda por ordem convoca

sua atuação (ou intervenção). Em outros termos, conforme colocam Hardt e Negri (2001), a

legitimidade do Império é definida pela necessidade do exercício contínuo do poder policial.

Carvalho (2006) entende que o Estado de Exceção constitui a instrumentalização dos

discursos defensistas que encorpam o dito Direito Penal do Inimigo, colocando que grande

parte do seu desdobramento em nível planetário (poderíamos dizer imperial) se deve em

função de sua aplicabilidade no tocante aos problemas contra as drogas. Deste modo, é

possível afirmar, em um sentido lato, que a guerra contra as drogas se trata de uma produção

dirigida à manutenção deste mesmo Estado de Exceção, que se define mais pela sua

permanência que pela sua excepcionalidade. Examinemos então como se dá este processo de

legitimização do Estado de Exceção, a partir de sua base.

O Direito Penal do Inimigo sustenta que haveria duas espécies de criminosos. A

primeira abarcaria aqueles que cometem crimes eventualmente, de forma pontual, de modo

70Estes avanços legislativos podem ser considerados apenas relativos. A atual lei em vigor referente ao enfrentamento do problema das drogas (lei 11.343 de 23 de agosto de 2006) descriminaliza, em tese, o uso de drogas, porém adverte em seu artigo 28 que aquele “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” está sujeito às seguintes medidas: I) advertência sobre os efeitos das drogas II) prestação de serviços à comunidade III) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Desta maneira, o uso de drogas continua sendo, senão criminalizado, ao menos penalizado, uma vez que as circunstâncias básicas para que um indivíduo faça uso de drogas (guardar, adquirir etc) continua dentro da alçada legal. No capítulo II da mesma lei, artigo 33, admite-se que é crime “importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, com pena de cinco a quinze anos de prisão; também é crime “oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem” (o que não constitui tráfico) com pena de detenção entre seis meses e um ano.

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que em última análise, seriam cidadãos que não constituiriam uma ameaça à sociedade. A

segunda contempla aqueles que tenderiam a delinqüir continuamente. Ao primeiro tipo de

criminoso, deveriam ser salvaguardados suas garantias e direitos; ao segundo tipo, opera-se

um processo de “despersonalização do criminoso” que divide os criminosos entre “pessoas” e

“não-pessoas”, de maneira que, de acordo com Carvalho (2006) o Direito Penal de Garantias

estaria restrito àqueles integrantes do “pacto social”, não contemplando os “efetivamente”

desviantes. Teríamos então dois tipos de Direito Penal: o Direito Penal do Cidadão e o

Direito Penal do Inimigo, para o qual seria “incabível o status de pessoa” (CARVALHO,

2006, p. 67). Dicotomia bem X mal, cidadãos de bem detentores de direitos X inimigos que

devem ser neutralizados, que se expressa especialmente nas discussões acerca da pena de

morte e na fala “direitos humanos para humanos”, que nos acostumamos a ouvir com

freqüência nos debates públicos sobre violência e segurança pública.

Nesta última categoria, portanto, o delinqüente não é mais considerado como um

cidadão detentor de direitos. De acordo com um dos principais teóricos do Direito Penal do

Inimigo, o alemão Gunther Jakobs, “quem por princípio se conduz de modo desviante não

oferece garantia de um comportamento pessoal; por isso, não pode ser tratado como cidadão,

e sim deve ser combatido como inimigo. Esta guerra tem lugar em um legítimo direito dos

cidadãos, que reside em seu direito à segurança” (JAKOBS, s/d, p. 55-56 apud CARVALHO,

2006, p. 67, grifo nosso)71.

Ainda de acordo com a tese72 de Jakobs e o tratamento que deve ser dirigido aos

“inimigos”:

O indivíduo que não admite ingressar no estado de cidadania, não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa. O inimigo, por conseguinte, não é um sujeito processual, logo, não pode contar com direitos processuais, como por exemplo o de se comunicar com seu advogado constituído. Cabe ao Estado não reconhecer seus direitos (...) contra ele não se justifica um procedimento penal (legal), sim, um procedimento de guerra. Quem não oferece segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não deve esperar ser tratado como pessoa, senão que o Estado não deve tratá-lo como pessoa (pois do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas). (GOMES, 2005, p.1).

71A citação feita por Salo de Carvalho está em Espanhol, de modo que o trecho foi aqui traduzido pela autora desta dissertação. 72 É interessante mencionar também os pressupostos filosóficos que norteiam esta tese. Segundo Gomes (2005, p. 1-2) :”a) o inimigo, ao infringir o contrato social, deixa de ser membro do Estado, está em guerra contra ele; logo, deve morrer como tal (Rousseau); (b) quem abandona o contrato do cidadão perde todos os seus direitos (Fichte); (c) em casos de alta traição contra o Estado, o criminoso não deve ser castigado como súdito, senão como inimigo (Hobbes); (d) quem ameaça constantemente a sociedade e o Estado, quem não aceita o “estado comunitário-legal”, deve ser tratado como inimigo (Kant)”.

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Os inimigos são definidos de acordo com a habitualidade e a profissionalização dos

seus crimes, englobando não apenas terroristas como também todos aqueles que, mediante

incorporação (ou não) em organização criminosa, demonstrassem possibilidade de reiteração

delitiva (periculosidade), conforme nos lembra Carvalho (2006).

Assim, o inimigo seria basicamente aquele que tende a delinqüir – define-se, portanto,

mais pela sua periculosidade que pelos seus crimes. Trata-se, conforme coloca Carvalho

(2006) de uma política criminal que enfatiza a noção de perigo em detrimento da noção de

dano; risco, e não atentado concretizado a um bem jurídico. A amplitude do conceito de

inimigo vai abrindo caminhos para a legitimação de um Estado de Exceção, na medida em

que este é atravessado pela supressão dos direitos individuais (desdobramento da cisão entre

“pessoas” e “não-pessoas”), abrindo caminho para o que Carvalho denomina como

Terrorismo de Estado.

Em suma, as características básicas do Direito Penal do Inimigo seriam:

(a) o inimigo não pode ser punido com pena, e sim, com medida de segurança; (b) não deve ser punido de acordo com sua culpabilidade, senão consoante sua periculosidade; (c) as medidas contra o inimigo não olham prioritariamente o passado (o que ele fez), sim, o futuro (o que ele representa de perigo futuro); (d) não é um Direito Penal retrospectivo, sim, prospectivo; (e) o inimigo não é um sujeito de direito, sim, objeto de coação; (f) o cidadão, mesmo depois de delinqüir, continua com o status de pessoa; já o inimigo perde esse status (importante só sua periculosidade); (g) o Direito Penal do cidadão mantém a vigência da norma; o Direito Penal do inimigo combate preponderantemente perigos; (h) o Direito Penal do inimigo deve adiantar o âmbito de proteção da norma (antecipação da tutela penal), para alcançar os atos preparatórios; (i) mesmo que a pena seja intensa (e desproporcional), ainda assim, justifica-se a antecipação da proteção penal; (j) quanto ao cidadão (autor de um homicídio ocasional), espera-se que ele exteriorize um fato para que incida a reação (que vem confirmar a vigência da norma); em relação ao inimigo (terrorista, por exemplo), deve ser interceptado prontamente, no estágio prévio, em razão de sua periculosidade. (GOMES, 2005, p.2)

Por estas características, observa-se como o Direito Penal do Inimigo vem se

consolidando, na forma de discurso, como legitimador do Estado de Exceção. Note-se que

estes discursos não estão restritos ao âmbito da discussão entre juristas, tendo tomado grandes

proporções na mídia (cujos maiores efeitos surgem na mídia sensacionalista) e construindo

uma parte importante do que vem a ser o senso comum acerca das formas de lidar com a

violência – especialmente na medida em que demoniza o inimigo e legitima a violência e a

supressão de direitos fundamentais (ainda que a princípio estes sejam universais e garantidos

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constitucionalmente, indo de encontro ao Estado de Direito). É um discurso que no Brasil

contemporâneo percorre a massa e sustenta boa parte acerca da demanda de punição e

repressão relacionadas ao crime de tráfico de drogas. Um discurso que combate o inimigo, ao

mesmo tempo em que precisa de sua presença para se colocar – nos mesmos moldes da lógica

Imperial que se desenvolve como a capacidade de mostrar sua força a serviço da paz, e que

precisa para isso produzir demandas determinadas de conflito. É o discurso de um sistema

penal que ecoa fortemente, e que para que funcione está sempre procurando (ou produzindo)

inimigos. Nestes termos, “o poder político é o poder de defesa contra os inimigos” (GOMES,

2004, p. 4).

É em função deste mecanismo que não basta um mero estado de exceção: o estado de

exceção perde seu caráter de transitoriedade para se consolidar como norma, tornando-se

permanente, e fazendo larga utilização de medidas que deveriam ser usadas apenas de forma

excepcional. A necessidade de segurança desqualifica a necessidade de controle dos excessos

punitivos.

Quando se considera a Constituição Brasileira de 1988, verifica-se que o Estado de

Exceção pode ser declarado a partir das possibilidades previstas nos artigos 136 e 137: o

Estado de Defesa e o Estado de Sítio.

Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

§ 1º - O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem (...)

Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:

I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;

II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. (BRASIL, 1988)

A excepcionalidade se legitima, portanto, pela preservação ou restabelecimento da

ordem pública e da paz social, quando estas se encontram ameaçadas. Em princípio, deveria

ser regulamentada por uma restrição temporal (ou seja, a durabilidade do Estado de Exceção)

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e pela definição dos direitos suscetíveis de serem suspensos. Tais critérios podem ser

ampliados apenas na possibilidade de uma guerra declarada e permanente. Entretanto, apesar

de todos estes protocolos e critérios regulamentadores, “nota-se a constante tendência dos

estados contemporâneos em criar eventos excepcionais de modo a garantir permanente

situação de emergência” (CARVALHO, 2006, p. 70).

Os mecanismos deste Direito do Inimigo remetem justamente à noção de uma espécie

de “direito imperial do mundo globalizado”73. De acordo com Hardt e Negri (2001), trata-se

de um Direito que visa funcionar como um todo sistêmico, e que para tal necessita de dois

pré-requisitos: a pressuposição de um estado de exceção tanto mais paradoxal quanto

permanente, uma vez que se revela na crise, e uma tecnologia plástica para encorpar,

constituir, fazer valer este estado de exceção (direito de polícia):

A “guerra justa” é efetivamente apoiada pela “polícia moral”, assim como a validade do direito imperial e seu funcionamento legítimo são apoiados pela necessidade e pelo exercício contínuo do poder policial (...) Essa espécie de intervenção contínua, portanto, ao mesmo tempo moral e militar, é realmente a forma lógica do exercício da força, que deriva de um paradigma de legitimação baseado num Estado de exceção permanente e de ação policial. As intervenções são sempre excepcionais, apesar de ocorrerem continuamente; elas tomam a forma de ações policiais, porque são voltadas para a manutenção de uma ordem interna. Dessa forma, a intervenção é um mecanismo eficaz que mediante ações policiais contribui diretamente para a construção da ordem moral, normativa e institucional do Império. (HARDT, NEGRI, 2001, p. 57).

Chegando ao fim deste capítulo, é possível pensar algumas hipóteses que estariam

alimentando a “guerra contra as drogas”.

A primeira delas é que mais que para reprimir a criminalidade e resolver problemas de

saúde pública, a guerra contra as drogas serve à produção de criminosos e criminalização de

condutas, e consequentemente, como justificativa para o exercício contínuo do controle

policial – especialmente em direção àqueles que, por uma variedade de razões, não se

encontram devidamente enquadrados e que foram incluídos mediante “inclusão-exclusiva”. A

guerra contra as drogas produz um grande saldo de vítimas (maior que as próprias drogas em

si), especialmente em países periféricos, servindo como justificativa para intervenção militar 73 Vale ressaltar também os efeitos destes mecanismos atrelam-se às certas necessidades do Capital, coadunados com a política econômica neoliberal. Neste sentido, Gomes (2005) nos lembra que desde meados da década de 1980 vem se difundindo um fenômeno de privatização dos presídios, especialmente nos EUA, que incide diretamente sobre a necessidade de se aumentar o número de presos, a fim de garantir remuneração aos investimentos feitos. Como resultado, o sistema penal recaiu especialmente sobre os excluídos. “O Direito Penal da era da globalização caracteriza-se (sobretudo) pela prisionização em massa dos marginalizados”. (GOMES, 2005, p. 4).

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(como na Colômbia e no Panamá) e de intensificação do aparato repressivo, resultando em

saldo nada negligenciável de mortos74.

A segunda delas é a de que esta guerra não se propõe, efetivamente, a erradicar as

drogas. A necessidade de erradicação se limita ao campo do discurso e às justificativas de

intervenção como forma de justificar perante a sociedade seus efeitos. Podemos apontar duas

evidências que sustentam essa hipótese:

a) A maior parcela de repressão recai especialmente sobre traficantes varejistas e usuários, e

não sobre os “traficantes de atacado” e demais facilitadores do tráfico de drogas;

b) A necessidade imperial de um estado de exceção permanente. Nesse sentido, é necessário

que o Império seja sempre convocado a agir; ele se sustenta na crise e no conflito, e por isso,

precisa criar demandas contínuas de intervenção. A “guerra contra as drogas”, muito mais que

uma questão a ser resolvida, se apresenta como desculpa para balizar uma intervenção

contínua e também alimentar o capital bélico, sustentando a lógica Imperial.

Por essas razões, é improvável que a guerra contra as drogas obtenha “êxito” ou esteja

em vias de terminar. E o mais grave: ainda que esse problema fosse resolvido, seria preciso

um novo campo de atuação que sustentasse a lógica imperial de “convocação” e

“intervenção”, que detivesse tanto apelo emocional e capacidade de mobilização quanto a

questão do uso e comércio de drogas. Não se pode esquecer, porém, que o Império é plástico:

sua capacidade de criação de demandas (ainda que a princípio soem artificiais) é ilimitada. O

inimigo de ontem era o Comunista; os de hoje, traficantes e terroristas (fala-se também em

“narcoterrorismo”, especialmente na Colômbia, associando “terroristas” e “traficantes”)75. O

Império é produtivo, não devendo ser encarado apenas em sua faceta negativa. E quantos

inimigos mais é capaz de produzir...?

74Segundo informações da organização Stop the Drug War (http://stopthedrugwar.org), no México, mais de 4.150 pessoas (das quais cerca de 450 policiais e soldados) morrerem no decurso da política mexicana de combate às drogas desde 2007, quando o presidente Felipe Calderón mobilizou o Exército contra os traficantes. Ainda segundo esta organização, em 2003, em um espaço de apenas três meses, na Tailândia, a guerra contra as drogas matou cerca de 2.500 pessoas. Comissões que investigam este número informam que dentre estas vítimas, cerca de 1.400 nada teriam a ver com o comércio ou consumo de drogas. Em relação ao Brasil (apesar da indisponibilidade de dados estatísticos fidedignos), “o mal que se finge combater – a dependência química – passa ao largo do número chocante de mortes geradas na Guerra ao tráfico; a maioria delas atingindo o mesmo extrato social: jovens pobres” (MORAIS, 2006, p. 133). 75 Os termos narcotráfico, narcoterroristas, narcodólares etc. são frequentemente utilizados para designar o tráfico internacional de drogas. Entretanto, tais termos não são apropriados para este fim, uma vez que ‘narcótico’ não abarca todos os tipos de drogas comercializadas - que podem ainda ser do tipo depressor, estimulante etc. A cocaína, por exemplo, é um estimulante, a heroína é um narcótico e o álcool é um depressor.

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PARTE III

ENTRE O MOLAR E O MOLECULAR

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CAPITULO I

REDUÇÃO DE DANOS: UMA ZONA FRONTEIRIÇA DE PRODUÇÃO DE SAÚDE

Antes de apresentar a Redução de Danos, estabelecemos aqui um pequeno parênteses

acerca da saúde não como dever, mas como direito universal. Se esta pequena discussão está

incluída no início deste capítulo, isso se deve pela diferença de viés pelo qual o tema da saúde

é abordado em diferentes partes deste trabalho. Se antes convocamos a ‘saúde’ como linha

dura e hegemônica que se inscreve como dever, aqui tratamos da saúde como uma linha

minoritária, referida mais a saúde como direito que pode se realizar através de múltiplas

possibilidades, de múltiplas saúdes. Estas duas dimensões da saúde, entretanto, não devem ser

entendidas em uma relação dicotômica de absoluta oposição, de modo a nos permitir apostar

em um tipo de produção de saúde que opera nos interstícios, nas fronteiras entre estas linhas.

Saúde que opera como direito, e não como assujeitamento; saúde que se afirma pelo cuidado,

e não pelo dever. É exatamente partindo do pressuposto de que a saúde se constitui como um

direito universal que pretendemos introduzir a proposta da Redução de Danos.

A saúde pública é um direito universal, garantido pela Constituição Brasileira, sendo

assim independente de status social, raça ou etnia, religião, opção sexual ou hábitos de

qualquer espécie. Nesse sentido, conforme lembra Bastos (2003, p. 16),

Não existem critérios, sob quaisquer pretextos ou alegações, que permitam excluir determinado segmento social de possíveis benefícios ou que relegue quaisquer grupos ou indivíduos a intervenções preventivas ou assistenciais de qualidade inferior ou de menor abrangência do que aquelas oferecidas aos seus concidadãos. Sendo a saúde um direito universal, portanto, excluir os usuários de drogas que optam por continuar seu uso da fruição desse direito consiste, em última análise, em negar sua cidadania e em desobedecer a própria Constituição. É o que acontece, por exemplo, nas diversas modalidades de acompanhamento voltadas para os usuários de drogas que impõem a abstinência como condição de tratamento, e não como um fim a ser alcançado. (BASTOS, 2003, p. 16)

Bastos (1995) chama atenção para o fato de que diversas propostas terapêuticas

relativas ao uso de drogas estão longe de ter êxito absoluto, especialmente as que se pautam

na exigência de abstinência. Menciona também a necessidade de se admitir, em uma política

que seja direcionada ao tratamento de usuários de drogas, que sempre existirão usuários

problemáticos e não-problemáticos, independente de quais sejam os meios de intervenção.

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Nesse contexto é que se coloca a questão: se sempre existirão usuários, como promover a

saúde para esta população? Para Bastos (1995, p. 183), “o equívoco básico, e perigoso do

ponto de vista da saúde pública, é confundir a incapacidade ou a falta de motivação, num

dado momento, para a abstinência, com a impossibilidade de reduzir os danos advindos desse

consumo que persiste”.

O sistema acompanhamento aos usuários pautado no princípio da abstinência atende

apenas uma pequena fração do grupo, não alcançado a maior parte daqueles que se encontram

em situação mais crítica em relação aos danos diretos ou indiretos oriundos do uso de

substâncias psicoativas (BASTOS, 1995). Nesse sentido, verifica-se que na medida em que

muitos desses tratamentos têm como público alvo uma população bastante restrita dentro da

gama de usuários de drogas que poderiam se beneficiar de algum acompanhamento, aliena-se

o preceito da saúde como direito universal. Diante desse cenário, Bastos (1995, p. 186)

afirma que “o descarte sucessivo de usuários não aderentes a protocolos orientados pelo

estreito caminho da abstinência a qualquer preço e curto prazo, apenas os reenvia de volta à

‘cena’ de uso, descrentes da perspectiva de auxílio e sujeitos aos danos advindos do consumo

e dos riscos de contágio”. A exigência da abstinência, portanto, compromete a universalidade

do direito à saúde, chegando mesmo a se constituir como um entrave e produtora de doença

na medida em que facilita a repercussão de danos nos usuários de drogas que não

interrompem seu uso.

1.1 Redução de Danos: o que é, para o quê serve?

1.1.1 Caracterização geral da Redução de Danos

É considerando o direito à saúde dos ‘usuários de carne e osso’, somado à perspectiva

de que o uso de drogas sempre se fez presente ao longo da história da humanidade e que sua

total erradicação seria uma utopia que se consolidam as intervenções baseadas em Redução de

Danos. Partindo da concepção de que nenhuma substância é ruim em si mesma, isolada em

seus efeitos, não podendo ser considerada independentemente das condições de uso do

indivíduo e de suas condições psíquicas (BASTOS, 1995), a Redução de Danos se propõe a

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minimizar as consequências adversas passíveis de decorrerem de um uso nocivo de drogas por

meio de intervenções junto aos seus usuários.

Para pensar os danos, Bastos (1995) alerta para a necessidade de se quebrar o

imediatismo da associação entre o uso de substâncias psicoativas e a produção necessária de

dano, associação esta que alimenta o estereótipo do ‘drogado’:

O usuário preso à dependência, desinserido socialmente, é o símbolo de que se nutre a “Guerra às Drogas’, enquanto testemunha das conseqüências adversas do uso, e combustível para as iniciativas ‘vitoriosas’ do futuro. Mas, enquanto se agigantou a relevância simbólica desse usuário prototípico, objeto de aversão social e da sanção penal, se amesquinhou a atenção aos usuários de carne e osso, confrontados com o dilema – a abstinência (e, portanto, a condição de ex-usuário) – ou a indiferença da saúde pública e a força da lei (BASTOS, 1995, p. 183).

A Redução de Danos expressa um conjunto de práticas e intervenções direcionadas

para a população usuária de drogas que por qualquer razão não opta pela busca da abstinência,

e sim pela continuação deste uso. É importante assinalar que não se trata de estímulo ao uso

ou apologia às drogas – como argumentam setores contrários a tais intervenções - mas sim do

oferecimento de possibilidades de, a partir desse uso, produzir alguma saúde. É em atenção

aos ‘usuários de carne e osso’, em detrimento de práticas de retroalimentação do ‘sujeito

drogado’ que a Redução de Danos busca investir.

Dentre suas possibilidades de intervenção, mais que um programa de trocas de

seringas ou distribuição de preservativos (que a caracterizara em seus movimentos iniciais),

envolve o estabelecimento de leis e regulamentos apropriados ao consumo de drogas (por ex,

sobre o uso de álcool e outras drogas no trânsito, separação entre trabalho e uso de drogas);

controle de qualidade das substâncias a fim de buscar um uso mais seguro; encorajamento do

uso de produtos menos perigosos; propiciar ambientes de uso menos perigosos;

aconselhamento sobre redução de riscos76 (STIMSON, FITCH, 2003). A tais intervenções,

somam-se em muitos programas de Redução de Danos ações voltadas para inserção social dos

usuários, inclusive relativas ao mercado de trabalho e ao estabelecimento de vínculos

comunitários.

76Stimson e Fitch preferem a expressão ‘redução de riscos’ a ‘redução de danos’. Os autores argumentam que o uso do termo ‘danos’ não dá conta da amplitude dessas intervenções, que em realidade teriam por objetivo minimizar os riscos (o que é bastante diferente de dano, no sentido de romper com a associação imediata entre uso de drogas e ‘dano’). No presente estudo, não tencionamos problematizar a diferença entre ‘redução de danos’ e ‘redução de riscos’. Para mais detalhes sobre essa discussão, ver Stimson e Fitch, 2003, p. 189-198.

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Um dos maiores objetivos da Redução de Danos é construir, juntamente com a pessoa que usa drogas, estratégias de cuidado de si que possibilitem a manutenção da integridade física, mental e social, permitindo a realização de todas as práticas sociais às quais de deseje, incluindo aí o uso de álcool ou outras drogas. (ABORDA, s/d)77

Por não se constituir numa apologia ao uso de drogas e nem fazer oposição entre sua

aplicação e tal uso, a Redução de Danos vem ocupando uma posição peculiar dentre as

abordagens direcionadas aos usuários. É ainda nesse sentido que a entendemos aqui entre o

molar o molecular, entre uma política de Estado e um movimento underground, alocada em

uma posição fronteiriça inserida no ‘problema da droga’ (onde no interior do próprio Estado

convergem forças com potencial de bloqueio da efetivação de suas ações). Apresentemos

então um panorama dos movimentos da Redução de Danos fundamentado especialmente em

seus efeitos no Brasil, onde sua posição salutar ‘entre’ e ‘contra’ o Estado evidencia seus

efeitos biopolíticos.

1.1.2 Redução de Danos: entre o micro e o macro

Em 1926 surge na Inglaterra a primeira medida de intervenção direcionada para a

minimização dos danos secundários das drogas, ‘encabeçada’ por Humprey Rolleston, então

ministro da Saúde da Inglaterra: a prescrição de opiácios para pacientes dependentes de

heroína, quando seus benefícios fossem maiores que os riscos da abstinência. (MARTINS,

2003).

De fato, as primeiras ações comunitárias com a finalidade de minimização dos danos

causados pelo uso de drogas se deram na Holanda, em 1984, por iniciativa dos próprios

usuários de drogas – no caso, usuários de heroína preocupados com a expansão do vírus da

hepatite entre os usuários da droga em função do compartilhamento de seringas contaminadas.

Os ‘Junkiebonden’ implantaram os primeiros programas de troca de seringas (MARTINS,

2003).

A Redução de Danos vai ganhando visibilidade com a epidemia de AIDS deflagrada

nos anos 80, quando ocorre a constatação de que a população usuária de drogas injetáveis

seria um dos grupos mais vulneráveis à doença. Em 1993, os usuários de drogas injetáveis

(UDI´s) já eram o segundo grupo mais afetado pelo HIV no Ocidente. (MARTINS, 2003).

77Extraído do sítio da Associação Brasileira de Redução de Danos (ABORDA) http://www.abordabrasil.org

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Diante desse cenário, a troca de seringas se revela como uma estratégia eficaz e de baixo

custo para a prevenção da transmissão do vírus do HIV entre os usuários de drogas,

minimizando os efeitos da epidemia emergente. É com base nesses resultados que a Redução

de Danos começa a se afirmar como prática de saúde, alargando gradativamente suas

estratégias de intervenção para além da troca ou da distribuição de seringas descartáveis.

No Brasil, a Redução de Danos também emerge associada a um alto índice de

transmissão do vírus HIV entre os usuários de drogas injetáveis, na cidade de Santos, São

Paulo. Surgem então organizações mobilizadas para a solução deste problema no sentido de

minimizar o aumento desses índices, como o GAPA (Grupo de Apoio à Prevenção à AIDS), a

Associação Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e o Instituto de Estudos e Pesquisa em AIDS de

Santos (IEPAS). Essas organizações convocaram então as intervenções em Redução de danos

para o debate em torno de estratégias de saúde pública (DIAS, 2008).

Passos e Souza (2009) assinalam três pontos de inflexão referentes ao histórico da

Redução de Danos no Brasil associados a três marcos institucionais. O primeiro se refere ao

ano de 1989, quando na cidade de Santos é implantado o primeiro programa de distribuição e

troca de seringas no país. O segundo, através do PN - DST/AIDS, em 1994, e o terceiro, com

a Redução de Danos insurgindo como paradigma da política do Ministério da Saúde de

atenção integral para usuários de álcool e outras drogas, em 2003.

Em 1989, Santos, cidade portuária, havia se transformado em rota de tráfico e

escoamento de drogas para a Europa e para a América do Norte. A elevação da oferta de

cocaína nessa cidade mostrou-se com o aumento de casos de AIDS, conferindo a esta a

alcunha nada lisonjeadora de “capital da AIDS”. O uso de drogas injetáveis se revelou um

poderoso motor de difusão do vírus HIV, de modo que mais de 50% dos casos de AIDS em

Santos estavam relacionados a essa prática (DIAS, 2008).

A fim de conter a evolução da epidemia, a nova gestão de saúde de Santos, em

parceria com o governo municipal crou o primeiro Programa de Redução de Danos (PRD) no

Brasil, baseando especialmente na troca e distribuição de seringas – projeto este precocemente

interrompido por uma ação judicial em um contexto em que “o paradigma beligerante da

‘guerra às drogas’ se impunha como força contrária às experimentações em política públicas

que se iniciavam em Santos” (PASSOS; SOUZA, 2009, p. 99). Sob argumentos de que tal

ação constituía uma apologia ao uso de drogas, invocava-se o enquadramento da Lei.

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Entretanto, isso não significou o fim de intervenções baseadas em Redução de Danos.

Como a propósito lembram Passos e Souza (2009), alguns profissionais que então haviam

composto a equipe de DST/AIDS em Santos criaram uma outra via de ação, baseada na

distribuição de hipoclorito de sódio para desinfecção de agulhas e seringas. Institui-se assim

uma via underground para efetivação das ações em Redução de Danos78, na qual apesar de

tantos bloqueios, continua traçando seu caminho por uma linha minoritária, marginal, fora do

aparelho de Estado, mas em profundo contato com minorias historicamente marginalizadas,

convocando-as para participar de suas ações, protagonizando-as:

Nesse momento, iniciaram-se os primeiros trabalhos dos redutores de danos (agentes de saúde que conheciam e tinham acesso aos territórios existenciais dos usuários de drogas): prostitutas, travestis, usuários de drogas, moradores de rua: todos aqueles considerados marginais tornaram-se atores que se mobilizavam, fazendo do ‘submundo’ um plano de trocas afetivas e de construção de vínculos cooperativos. (PASSOS; SOUZA, 2009, p. 101).

É importante sublinhar que o protagonismo desses atores na Redução de Danos se

afirma para além de uma mera relação unilinear entre ‘redutor de danos’ e ‘paciente’. Ao

contrário, procura-se superar a dimensão ‘paciente’ ao deslocar os usuários de uma posição

simplesmente passiva em relação ao seu acompanhamento para implicá-los de forma ativa nas

práticas de cuidado (PASSOS; SOUZA, 2009).

Malgrado tantos nós nas redes que se criam com a Redução de Danos, sua discussão

vai ganhando visibilidade no debate público. Após a interrupção do projeto de troca de

seringas em Santos, foram realizadas pesquisas com usuários de drogas injetáveis debatendo a

importância das ações de Redução de Danos e do contato direto com os usuários de drogas.

Em 1993, o Projeto Brasil, financiado pelo Programa Nacional de DST/AIDS (PN-

DST/AIDS) e pelo Banco Mundial, realizou estudos multicêntricos em cidades onde se havia

detectado epidemia de AIDS entre os usuários de drogas injetáveis, contribuindo para

demonstrar a importância da Redução de Danos, e assim, para sua legitimação como viés de

atuação (DIAS, 2008).

Com os resultados das pesquisas, as ações de Redução de Danos passam a receber

financiamento da Coordenação nacional de DST/AIDS em convênio com o Banco Mundial

por meio do “Projeto de Drogas”, direcionado apenas para usuários de drogas injetáveis. Esse

projeto, a partir de 1994, precipitou a emergência de intervenções de Redução de Danos em 78Apenas em 1995 a ONG IEPAS conseguiu encontrar possibilidades de fazer da troca de seringas um dispositivo legal de intervenção.

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dez estados brasileiros que apresentavam alto número de notificações de casos de AIDS em

função do uso de drogas injetáveis: Bahia, Ceará, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa

Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal (DIAS,

2008).

Em âmbito nacional, é a partir de 1997 que o movimento social da Redução de Danos

começa a avançar a passos mais largos, com o surgimento e fortalecimento de associações

estaduais e nacionais de redutores de danos, como a Associação Brasileira de Redutores de

Danos (ABORDA) fundada em 1997; a Associação Carioca de Redução de Danos (ACRD),

criada em 1999 com a participação de técnicos do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção

ao Uso de Drogas (NEPAD); a Associação Baiana de Redução de Danos (ABAREDA) em

2001, etc (DIAS, 2008).

É dentro desse movimento que a Redução de Danos vai deixando de ser apenas uma

ferramenta de prevenção à AIDS para se tornar um novo dispositivo “de prevenção,

promoção, tratamento e produção de saúde, assim como um paradigma clínico-político que

ressignificava o problema das drogas no contemporâneo” (PASSOS, SOUZA, 2009, p. 104).

É quando o PN DST/AIDS permite o redimensionamento do plano de sustentação da Redução

de Danos, que emerge do ‘subterrâneo’ para o interior do aparelho de Estado:

A RD, que se afirmava desde sempre como política pública, tornou-se uma política de governo com pretensão de vir a ser política de Estado, encontrando forte tensionamento com outros setores da máquina posicionados a favor de uma política antidrogas. A RD intensificava, assim, sua relação paradoxal com a máquina do Estado: com ela e contra ela, experimentando os limites do Estado, ali onde ele se defronta com o seu fora. (PASSOS, SOUZA, 2009, p. 104).

Se as ações de Redução de Danos são embargadas em algum momento em função

dessa relação paradoxal com o Estado (especialmente nas esferas municipais), a composição

de sua rede vai gradativamente construindo um plano que não se restringe ao underground ou

local, tampouco ao estatal e federal. A Redução de Danos se desloca de um foco específico de

prevenção (através do dispositivo de troca de seringas) acionando outros mais amplos de

atenção (PASSOS, SOUZA, 2009).

O último ponto de inflexão relacionado às intervenções em Redução de Danos se

segue com a Política do Ministério da Saúde para Usuários de Álcool e outras drogas, criada

em 2003. Trata-se de um desdobramento das resoluções tomadas na III Conferência Nacional

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de Saúde Mental em 2001, cujo relatório final estabeleceu a atenção aos usuários de álcool e

outras drogas como um dos princípios e diretrizes de reorientação dos modelos assistenciais

em saúde mental. Diante desse cenário, os programas de Redução de Danos se deslocam do

campo exclusivo das DST/AIDS para a assistência em saúde mental (PASSOS, SOUZA,

2009).

Em 2003, o Ministério da Saúde institui através da Portaria GM 457 de 16 de abril, o

Grupo de Trabalho intraministerial – Grupo de Álcool e outras Drogas (GAOD), incluindo

representantes do Gabinete da Secretaria Executiva, da ANVISA, da Coordenação Nacional

DST/AIDs e da Secretaria de Atenção à Saúde nas seguintes áreas: Saúde Mental, Saúde do

Adolescente e do Jovem, Prevenção da Violência e Causas Externas, Saúde do Trabalhador e

Atenção Básica. O objetivo deste grupo era o de intervir nas políticas públicas voltadas aos

usuários de drogas, no sentido de afirmá-las mais como políticas de saúde que como políticas

de segurança pública. Tratava-se de:

(...) uma decisão de tratar o problema comprometendo-se com a atenção integral e com a amplitude das drogas no contemporâneo, escapando da oposição entre lícito e ilícito, permitido e proibido. Com isso quis-se afirmar a inseparabilidade entre prevenção, promoção, tratamento, reabilitação e produção de saúde. (PASSOS, SOUZA, 2009, p. 97).

É com esse direcionamento que o GAOD aposta na Redução de Danos como

abordagem ao problema de uso abusivo de álcool e outras drogas: universalidade no

atendimento e transformação nos modos de compreender os fenômenos do uso e abuso de

drogas para além da oposição entre lícito/ilícito, permitido/proibido - inclusive no que diz

respeito ao cuidado da saúde, admitindo-se a possibilidade de outras formas de se produzir

saúde. Nesse sentido, a Redução de Danos problematiza como o ‘problema da droga’ vem

sendo tratado de forma hegemônica sob o paradigma da guerra contra as drogas e do ideal da

abstinência (ou de uma ‘saúde ideal’, de uma ‘gorda saúde dominante’). Daí a possibilidade

de afirmação da Redução de Danos como um foco de resistência política e ética, conforme

coloca a Associação Brasileira de Redução de Danos (ABORDA):

A Redução de Danos, enquanto estratégia de cuidado, engendra um discurso político que entende saúde como sinônimo de autonomia. Isto significa colocar-se, no campo da saúde, a partir de uma compreensão da história das práticas ocidentais de cuidado como sendo a história do desenvolvimento de

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dispositivos de controle, situando, neste contexto, à Redução de Danos como possibilidade de resistência a este processo. (ABORDA, s/d) 79

É preciso ainda frisar que mesmo se tratando de uma política oficial de saúde pública

com incentivo e apoio do Estado, a Redução de Danos vem encontrando ao longo de seu

histórico muitos entraves gerados pelas práticas e discursos vinculados ao paradigma de

“guerra às drogas” no qual predomina o considerar da questão sob o prisma da segurança

pública e da militarização do enfrentamento ao tráfico, juntamente ao ideal de abstinência e

repressão ao uso de drogas. Curioso lugar da Redução de Danos nas políticas de saúde

pública: se por um lado recebe o incentivo do Estado, por outro é constrangida pelo próprio

Estado – conforme nos lembram Passos e Souza (2009). O fato é que enquanto o ‘problema

da droga’ for tomado de forma hegemônica pelo prisma da guerra às drogas com vistas a sua

total erradicação, as ações de Redução de Danos continuarão operando como focos de

resistência – ao menos quando forem dotadas de potência, invocadas em favor da vida, da

produção e da promoção de saúde.

79Extraído do sítio da Associação Brasileira de Redução de Danos (ABORDA) http://www.abordabrasil.org

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CAPÍTULO II

POR UMA INTERVENÇÃO ÉTICA NO CUIDADO AO USUÁRIO DE

DROGAS

Para discutir a possibilidade de uma intervenção ética no tocante ao usuário de drogas

com vistas à produção de saúde, trazemos à discussão o conceito de Corpo sem Órgãos

(CsO), tal qual elaborado por Deleuze e Guattari. De fato, este conceito nos permite

vislumbrar as possibilidades de construção de saúde (e de si) que operam para além das linhas

demarcadas pelas forças do assujeitamento, fornecendo subsídios para pensar uma ética

clínica relativa ao usuário de drogas. Partimos aqui do pressuposto que é possível construir

modos diferenciados de saúde sem que isso se confunda com a corrida atrás de uma ‘gorda

saúde dominante’, por intermédio de um agenciamento prudente de outros modos de

subjetivação.

2.1 O Corpo sem Órgãos: Saúde(s) Possíveis

Corpo sem órgãos, em um sentido lato, é um conceito utilizado por Deleuze e Guattari

para designar os processos de devir dos modos de subjetivação. Não se confunde, de forma

alguma, com a coagulação subjetiva em um sujeito ou com a formação de um ‘eu’ separado

de sua paisagem: ao contrário, o CsO é o que procura desfazer o eu, e se define menos por

‘ser alguma coisa’ que pelo movimento de tornar-se alguma coisa que opera sempre no limite

de sê-lo, sem jamais o ser de fato porque não estaciona em um ‘ser’. Operando sempre na

fronteira, no limite, o CsO se constrói no intempestivo, naquilo que não se pode antecipar,

investido pelo desejo. Se em um sentido o CsO é vazio de órgãos, é porque ele nunca ‘é’, não

se deixa capturar, não tem por objetivo chegar a algum lugar; se por outro lado, ele é

preenchido pelo desejo, é porque ele devém sem nunca se fechar em um “eu”, porque

caminha em um movimento nômade que transborda de alegria na medida em que percorre seu

caminho e vai traçando novas linhas, novos pontos de desterritorialização e reterritorialização.

O CsO não quer chegar, quer caminhar, correr, rastejar, dependendo das velocidades que o

percorrerem, das intensidades potentes que o cruzam. Poderíamos dizer, a respeito do CsO

investido de desejo, que o desejo é aquilo que se efetua nesse caminhar, e não aquilo que

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deseja chegar a alguma coisa que falta. Nesse sentido é que, para Deleuze e Guattari, para o

desejo nada falta – não é questão de desejar aquilo que não se tem. O desejo, em sua

positividade e potência, é pleno de si mesmo. Chegar àquilo que supostamente falta

equivaleria a bloquear o desejo, enquanto manter a caminhada, construir seu caminho,

construir um CsO, significaria prolongá-lo. O desejo preenche-se de si mesmo sem que nada

lhe falte:

Acontece que existe uma alegria imanente ao desejo, como se ele se preenchesse de si mesmo e de suas contemplações, fato que não implica falta alguma, impossibilidade alguma, que não se equipara e também não se mede pelo prazer, posto que é esta alegria que distribuirá as intensidades de prazer e impedirá que sejam penetradas de angústia, de vergonha, de culpa” (DELEUZE, GUATTARI, 2004, p. 16).

Assim é que se diz que o CsO resiste ao organismo. Não que resista aos órgãos, mas

ele não se quer preso aos órgãos que formam um organismo que limitaria suas possibilidades

e impede novos modos de subjetivação e experimentação. O CsO percorre verdadeiras linhas

de fuga intensificadas por fluxos desejantes, procurando driblar as coagulações que se lhe

apresentam como obstáculos a sua criação:

O CsO não se opõe aos órgãos (...) ele se opõe ao organismo, à organização orgânica dos órgãos (...) O organismo não é o corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, quer dizer um fenômeno de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas.(DELEUZE, GUATTARI, 2004, p. 21).

Os corpos sem órgãos, esses improdutivos acoplados como cortes aos fluxos desejosos, operam entre a funcionalidade do corpo orgânico e a intempestiva conectividade desejosa, mas sem se confundirem com a intencionalidade do corpo próprio ou com o corpo investido de saberes e poderes; os corpos sem órgãos aparecem como coesões momentâneas de linhas de fuga, operando ali como variáveis consistências dessas linhas.” (ORLANDI, s/d, p.11)

De todo modo, o CsO também se prende ao orgânico, depende dele e de sua

integridade mínima para que continue sua caminhada, para que possa continuar

experimentando sem se destruir e traçar novas conexões com a paisagem ao seu redor. É

preciso guardar um pouco de organismo, como colocam Deleuze e Guattari (2004), para que o

corpo possa sempre se recompor. É preciso cuidado para se evitar uma overdose, ou ainda,

uma dose grande demais para que o corpo sem órgãos possa suportar sem se desestratificar

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completamente. É preciso evitar que o CsO se destrua na ânsia de experimentação, de

efetuação da sua potência:

Liberem-no [o CsO] com um gesto demasiado violento, façam saltar os estratos sem prudência e vocês mesmos se matarão, encravados num buraco negro, ou mesmo envolvidos numa catástrofe (...) O pior não é permanecer estratificado –organizado, significado, sujeitado – mas precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós, mais pesados do que nunca. (DELEUZE, GUATTARI, 2004, p. 22-23).

De fato, Deleuze e Guattari (2004) lembram que a construção de um corpo sem órgãos

tem seus perigos. Construir um CsO é uma tarefa árdua, cujos resultados são sempre

imprevisíveis. Daí que seja sempre necessária uma dose de prudência. Prudência não como

um impedimento à experimentação, mas sim como garantia de que será possível experimentar

para além do momento em que se está. A falta de prudência esvazia o CsO, o despotencializa.

Às vezes, trata-se de um ponto de bloqueio que impede a circulação da potência, que fica

retida em um único território sem conseguir daí migrar; ou pode se tratar de uma caminhada

por uma linha que culmina em uma espécie de buraco-negro, fazendo brotar uma fissura no

CsO que se aprofunda de forma irremediável até destroçá-lo por completo. Daí a necessidade

da prudência como mediadora de toda experimentação – não no sentido de limitá-la, de

esvaziá-la de suas intensidades, mas sim de impedir que tais intensidades extrapolem o que o

CsO pode suportar.

2.1.1 Entre o CsO e a organização plena da Gorda Saúde Dominante: uma

questão de prudência

Orlandi (s/d), sob inspiração dos escritos de Foucault, nos lembra que mais que se

preocupar com o que o corpo, é preciso pensar de que corpo uma determinada configuração

espaço-temporal de saberes e poderes necessita. Nesse sentido é que devemos entender o

investimento no corpo operado pelas tecnologias do biopoder a fim de geri-lo, formatá-lo e

enquadrá-lo. Se na predominância das técnicas disciplinares havia uma demanda de tornar o

corpo dócil, apto para o trabalho e inserido nos meios de produção, no contemporâneo se

configura um outro tipo de controle mais sutil e que se confunde com a própria promoção do

bem-estar do corpo: a primazia do corpo saudável, limpo, inócuo e imaculado. Se por um lado

podemos afirmar que cada um quer para si um corpo saudável, por outro devemos nos

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perguntar os efeitos de subjetivação que se desdobram desse desejo aparentemente ‘natural’ e

óbvio. Até que ponto um corpo ideal conjugado a uma saúde ideal se conjuga com as

possibilidades remetidas à saúde? Até que ponto pode o Estado, ou as demandas da sociedade,

ditar as regras para manter a saúde do corpo? Fazer exercícios físicos, manter uma

alimentação saudável, não fazer uso de drogas, dormir oito horas por dia: esses são consensos

que estabelecem uma saúde ideal, e quebrá-los implica em desvio em relação a esta. Afinal,

conforme se perguntam Fonseca e Coelho (2007), a saúde é um direito ou um dever? Haveria

apenas uma saúde hierarquizada, vertical, ideal, ou haveria antes mil saúdes dadas as

possibilidades de singularização do corpo e dos modos de subjetivação?

A princípio, essas parecem ser questões ingênuas, ‘falsas questões’, tamanho o

consenso em torno do desejo por um corpo e uma vida saudáveis. Entretanto, não se trata,

conforme já foi discutido neste mesmo estudo, de se opor à saúde ou em fazer apologia da

doença: trata-se do processo de construção do corpo, de sua criação. E criação implica não

apenas prazer, mas também sofrimento; construir para si um corpo também traz a dor, a

possibilidade de desmoronar e cair em um abismo. É esse o preço da singularização, do

processo de criação que se opõe àquilo que é ‘naturalmente’ (sic) dado, que se impõe de

maneira reificada. Como construir para si um corpo sem órgãos sem forjá-lo a partir de ideais

reificados, sem cair em linhas de abolição, sem prendê-lo ou condicioná-lo a um organismo?

Esta é uma questão pertinente, se considemos que a construção de um corpo sem

órgãos pode se dar, inclusive, pelo traçamento de linhas de abolição. Orlandi (s/d) lembra que

o corpo sem órgãos não é uma extensão do organismo, podendo até mesmo voltar-se contra

ele (apesar de estar sempre submetido à forma-organismo, que, como lembra Deleuze, não

convém desmanchar de todo). Se os corpos sem órgãos constituem conjunções de fluxos com

potencial traçamento de linhas de fuga, é preciso lembrar que “cada um desses corpos

submete partes de si e do estado de coisas ao conjunto de relações que os estruturam, com o

que cada órgão de cada um desses corpos funciona numa integração orgânica, funciona

submetido a uma forma de organismo” (ORLANDI, s/d, p. 13). Deste modo, se o corpo

deseja experimentar, esbarra com a necessidade de proteção do próprio organismo. É assim

que, partindo das colocações de Deleuze e Guattari sobre o CsO, Orlandi (s/d, p. 14) lembra

que, ao esbarrar com esse limite, ‘a formação de um tecido canceroso’, é necessário “restaurar

o domínio da ‘regra’ que visa a sobrevivência do próprio organismo no melhor de sua forma,

mesmo porque a morte também acaba com os corpos sem órgãos que se quer experimentar”.

Daí que o limite da experimentação prudente seja a proteção da possibilidade de criação de

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um corpo sem órgãos, que deve transitar entre dois planos: “de um lado, as superfícies de

estratificação sobre as quais ele é rebaixado e submetido ao juízo, e, por outro, o plano de

consistência no qual ele se desenrola e se abre à experimentação’ (DELEUZE, GUATTARI,

2004, p. 21).

A prudência relativa ao corpo sem órgãos é algo bastante diverso da busca por uma

‘gorda saúde dominante’ que rechaça as experimentações e aprisiona o CsO na estrutura de

um organismo. Nesse sentido, um fluxo intensivo produtor de um corpo sem órgãos que se

afasta da ‘gorda saúde dominante’ (como é o caso da experimentação de drogas) ou de uma

saúde ideal e perfeita (que comprometeria as possibilidades de construção desses corpos) deve

comportar certo domínio de regra, alocando-se sob determinadas condições que impeçam o

mero estraçalhamento do corpo, guiado menos pela experimentação anárquica que pela

prudência:

Prudência como arte das “linhas de experimentações” a serem feitas com “precaução”, a serem construídas “fluxo por fluxo e segmento por segmento”, dosando-se pressas e esperas, alianças e desenlaces. Essa prudência pede que seja ela própria ritmada e redesenhada a cada problema vindo à pauta, a cada problema que se imponha tanto às fluências do corpo sem órgãos quanto ao funcionamento dos órgãos. (ORLANDI, s/d, p. 15)

Em relação à saúde, a prudência atua na escolha dos cuidados destinados a tornar a

vida saudável, por intermédio de relações de confiança e desconfiança relativas a tais

cuidados. A experiência de cuidar de si traz graus de alerta que se expressam em movimentos

de confiança e desconfiança condicionados aos modos pelos quais somos afetados pelas

coisas, pelos diferentes dispositivos, pelos acontecimentos que se conjugam conosco

(ORLANDI, 2009). Como lembra Orlandi (2009), tendemos a preferir procedimentos que

reforcem a confiança a fim de gerir a angústia em relação à saúde e aos cuidados com o corpo,

ainda que eventualmente possamos nos descuidar. É nas relações de desconfiança e confiança

que produzimos saúde, que construímos nosso CsO. A prudência seria o fio que atravessa esse

movimento de confiar e desconfiar:

(...) a prudência opera tanto na escolha de cuidados destinados á vida mais saudável, a um bem-viver, quanto na sobreposição da confiança sobre a desconfiança relativa a esses cuidados. Em conseqüência, intervalando-se entre a confiança e a desconfiança no sentido de uma durável preponderância daquela em relação a esta, a prudência ajuda a reduzir o tempo do nosso estar à deriva dos curtos-circuitos desse jogo (...). (ORLANDI, 2009, p. 11).

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Para Orlandi (2009), quando as relações de confiança são preponderantes se ganha

tempo; em direção a um tipo “melhor” de saúde, garantimos nossa longevidade. Mas a custo

de quê se ganha mais tempo de vida? Eis a questão crucial que redefine toda a questão. Claro

que é perfeitamente possível que se passe esse tempo com verdadeiros encontros e novas

formas de se estar no mundo, e que estas sejam investidas de potência. Mas há também o risco

de se despotencializar a existência, sob o preço de aumentar sua duração. Será o tempo da

potência de vida o mesmo tempo do corpo orgânico, o mesmo tempo da organização

primordial do organismo? Do que vale a pena abdicar, que cruzamentos se deve evitar, apenas

para que se aumente esse tempo? Daí o questionamento de Orlandi:

Que fazer desse tempo que se acaba ganhando graças a uma prudência que muitas vezes é capaz de mediocrizar a existência, de reduzir nossas forças vitais a uma medíocre contenção do nosso desejo ou de promover nossa adequação a uma esfera de prazeres duvidosos do ponto de vista de uma vida envolvida com a complexidade de sua própria potência? (...) Essa objeção não se arma precisamente contra o exercício da prudência, mas contra a mediocridade insuflada no tempo que foi ganho graças a escolhas prudentes tornadas possíveis. (ORLANDI, 2009).

Em seu Abecedário80, Deleuze nos fornece alguns indícios sobre as fronteiras da

prudência (por sinal, os mesmos que justificariam um afrouxamento das relações de

confiança): o trabalho, a criação, atualização da potência. Justifica-se o auto-sacrifício em

nome de algo ‘grande demais’ ao alcance do labor da produção de si, ao mesmo tempo em

que se estanca tal sacrifício pelas mesmas razões. Nas palavras do filósofo:

Tudo bem beber, se drogar, pode-se fazer tudo o que se quer, desde que isso não o impeça de trabalhar, se for um excitante é normal oferecer algo de seu corpo em sacrifício. Beber, se drogar são atitudes bem sacrificais. Oferece-se o corpo em sacrifício. Por quê? Porque há algo forte demais, que não se poderia suportar sem o álcool. A questão não é suportar o álcool, é, talvez, o que se acredita ver, sentir, pensar, e isso faz com que, para poder suportar, para poder controlar o que se acredita ver, sentir, pensar, se precise de uma ajuda: álcool, droga, etc. A fronteira é muito simples. Beber, se drogar, tudo isso parece tornar quase possível algo forte demais, mesmo se se deve pagar depois, sabe-se, mas em todo caso, está ligado a isto, trabalhar, trabalhar. E é evidente que quando tudo se inverte, e que beber impede de trabalhar, e a droga se torna uma maneira de não trabalhar, é o perigo absoluto, não tem mais interesse (...) (DELEUZE)81

80 O Abecedário consiste em uma série de entrevistas feita por Claire Parnet a Gilles Deleuze, sendo filmado entre 1988 e 1989. A princípio, o acordo era de que o filme só seria apresentado após sua morte. O filme acabou sendo divulgado com a anuência de Deleuze entre novembro de 1994 e maio de 1995, no canal (franco-alemão) de TV Arte. No Brasil, foi divulgado pela TV Escola, Ministério da Educação. 81Fala de Deleuze transcrita do vídeo do Abecedário

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É preciso sempre garantir que haja linhas de fuga de um território com um poder de

conexão forte demais, ao mesmo tempo em que se precisa sempre se garantir certa conexão

com um território, garantindo futuras expedições e a continuidade do trabalho da criação.

Quando beber, se drogar, constrange esse trabalho canalizando toda a potência em detrimento

de outras conexões, é sinal de perigo. E quando soa este alerta, a prudência deve então ser

convocada para mediação desse agenciamento.

Orlandi (2009) conclui que:

Portanto, o critério de seleção daquilo a que convém abrir meu corpo orgânico vem a ser sua participação favorável no movimento pelo qual minha força de trabalho de compõe com esse algo forte demais que sinto ser capaz de aliciar maximamente minha potência de vida. É esse movimento em prol do meu envolvimento com algo forte demais que me lança para além do princípio dos prazeres imediatos da minha vida, da minha saúde em sua cotidiana atualidade. (ORLANDI, 2009, p. 14).

Não cabe aqui pensar se o uso de drogas é bom ou ruim, ou se é um meio legítimo de

se alcançar algo ‘grande demais’. Conforme já foi discutido na primeira parte deste estudo, o

uso de drogas não é, necessariamente bom ou ruim, dependendo da rede em que se estabelece

como agenciamento e das linhas que vão se conjugando junto à produção do CsO. Como

lembra Foucault (1995, p. 256), “nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso”. Ou como diriam

Deleuze e Guattari (2004, p. 16) acerca do agenciamento masoquista, “que existam outros

meios, outros procedimentos diferentes do masoquismo e certamente melhores é outra

questão; o fato é que este procedimento convém a alguns”.

Assim, se por um lado uma ‘gorda saúde dominante’ se relaciona com forças que

impõem à vida monstruosos aniquilamentos comprometendo o exercício da potência de vida,

a experimentação imprudente “não deixa de fazer com a vida o também perigoso jogo criativo

de um desejo consumindo a si próprio, o jogo de uma intensidade que grita ou chora na

intempestiva explosão de limites além dos quais o que havia de vida já não se reencontra”

(ORLANDI, s/d , p. 15). É, portanto, numa acomodação entre esses dois pólos que situaremos

adiante a proposta da Redução de Danos, remetendo-a a possibilidade de um uso prudente de

drogas.

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2.2 Redução de Danos como intervenção ética

Para pensarmos a Redução de Danos como uma intervenção ética, optamos por

considerá-la um vetor de construção de um corpo sem órgãos pautado na prudência. Tendo

em vista o discurso hegemônico acerca das drogas que as associam diretamente com a falta de

saúde, com a fraqueza de caráter ou de vontade, defender o ponto de vista de que é possível

fazer uso de drogas minimizando os riscos desse uso constitui uma afronta contra os

paradigmas atrelados a uma gorda saúde dominante. De fato, o uso de drogas pode se

constituir em um risco e fazer transbordar um agenciamento para além da potência do

indivíduo, mas tal constatação não implica uma relação necessária entre uso e dependência

(ou entre ‘uso’ e hiperterritorialização e centralização no território ‘droga’).

Segundo Bastos (2003), o primeiro contato com as drogas não pode ser definido como

um ‘definidor de hábitos de consumo’. Um experimentador não se confunde com um

dependente. “A questão não é experimentar determinada substância, mas sim esta tornar-se

um elemento central à vida de um determinado indivíduo ou grupo” (BASTOS, 2003, p. 36).

Ou seja, trata-se, novamente, da questão da prudência relativa à “construção de um corpo sem

órgãos”, do perigo de criar pontos de bloqueio, fixação ou coagulação – o “corpo drogado”

preso à droga, incapaz de passar sem ela, e que retém neste ponto toda sua potência até que

esta, sem outros caminhos para preencher, corre o risco de se precipitar em um buraco-negro

para além do limite da experimentação prudente (e, portanto, para além do limite e da

fronteira no qual o CsO se constitui transbordando para a sua destruição). Além da dose,

overdose.

Retomando a discussão acerca da confiança e da desconfiança nos procedimentos

relativos à produção de saúde, entendemos que a Redução de Danos como um importante

catalisador de práticas mais confiáveis na medida em que trabalha para a promoção da saúde e

minimiza os riscos do uso de drogas, conferindo ao usuário um maior controle das condições

de uso:

Até mesmo algumas pessoas fortemente ligadas a bebidas ou drogas, quando alcançam, por si ou graças à ajuda de outrem, decisivo poder sobre si mesmas, talvez consigam cuidar do seu melhor entrosamento possível com dosagens virtuosas, isto é, confiáveis, ou seja, propícias (pelo menos temporariamente) à retomada não-catastrófica da variabilidade dos efeitos alucinógenos. (ORLANDI, 2009).

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Não seria esse, portanto, o direcionamento de uma prática de redução de danos

investida de potência em favor da vida: construção de um CsO com injeções de prudência?

Não a formação de um organismo, mas a possibilidade de outros modos de produção e

arranjos mais confiáveis dos elementos que o encontram - por exemplo, pela substituição de

uma droga ou de uma determinada via de administração por outra que acarrete menos danos?

Como dotar o encontro entre a Redução de Danos e os usuários de potência, convidando-os à

produção de um CsO prudente?

Para pensar como poderia ser um encontro potente entre as ações de Redução de

Danos e os usuários de drogas, tratamos aqui do conceito de acolhimento como catalisador da

produção de saúde na medida em que preza o acolher nas diferenças, donde se infere a

possibilidade de produção de uma saúde singular. Trata-se de uma postura clínica que, de

acordo com Neves e Rollo (2006) remete a um “estar com”, estar em relação com algo ou

alguém, que difere da postura fleumática que encontramos tantas vezes nos serviços voltados

para os cuidados com a saúde. Temos aqui uma “ética no que se refere ao compromisso com o

reconhecimento do outro, na atitude de acolhê-lo em suas diferenças, dor, alegrias, modos de

viver, sentir e estar na vida” (NEVES; ROLLO, 2006, p.6), especialmente no tocante ao

trabalho com aqueles usuários que por uma ou outra razão, optam por fazer uso de drogas. Ao

afirmar a diferença, o acolhimento conjugado à Redução de Danos permite ao usuário que

este preserve (ou construa) sua autonomia, especialmente na medida em que não se confunde

com a tutela ou com o paternalismo – e que estão ainda bastante presente em modalidades de

acompanhamento aos usuários de drogas.

A tutela, conforme lembra Fuganti (2007), naturaliza formas de viver separando-as de

sua potência e de sua capacidade criativa. Nos termos do autor, “a tutela, a oferta sedutora de

direitos e de créditos implica o mesmo pressuposto do poder que também separa, endivida,

oprime, reprime, explora e adoece” (FUGANTI, 2007)82. É preciso assinalar que a tutela

emerge como um dispositivo de poder e assujeitamento conforme implica uma relação

verticalizada e unilinear entre o “tutelado” e aquele quem tutela, constrangendo as

possibilidades de um trabalho conjunto e a construção de uma co-responsabilidade entre os

usuários de um determinado serviço e aqueles que o prestam - bastante diferente de “estar

com”. O próprio conceito de acolhimento comporta a noção de protagonismo dos sujeitos

envolvidos no processo de produção de saúde (NEVES; ROLLO, 2006). Daí que seja preciso 82Discurso de Luiz Fuganti proferido no CRP - RJ em 29.03.2007. Disponível em: http://escolanomade.org/escolanomade/index.php?option=com_content&view=article&id=100:biopoder-nas-politicas-de-saude-e-desmedicalizacao-da-vida-por-luiz-fuganti-&catid=25:artigos&Itemid=55. Não-paginado.

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evitar os perigos decorrentes de o redutor de danos “tomar a frente” do acompanhamento sem

que suas possibilidades sejam exploradas em conjunto do principal interessado – o usuário.

Os processos de produção de saúde dizem respeito, necessariamente, a um trabalho coletivo e cooperativo, entre sujeitos, e se fazem numa rede de relações que exigem interação e diálogo permanentes. Cuidar dessa rede de relações, permeadas como são por assimetrias de saber e de poder, é uma exigência maior (imperativo) no trabalho em saúde. Pois é em meio a elas, em seus questionamentos, e através delas que construímos nossas práticas de co-responsabilidade nos processos de produção de saúde e de autonomia das pessoas implicadas, afirmando, assim, a indissociabilidade entre a produção de saúde e a produção de subjetividades. (NEVES; ROLLO, 2006, p. 11).

Conforme foi apresentado no capítulo anterior, o processo de estabelecimento da

Redução de Danos como política pública vem comportando uma notável participação dos

usuários de drogas – desde os primeiros momentos com a formação das Junkiebonden na

Holanda, até sua inserção na gestão da Redução de Danos no Brasil, construindo uma rede

desverticalizada onde usuários do programa e redutores de danos realizam um trabalho

cooperativo. Mais que receber ordens, seringas ou preservativos, os usuários do programa

participam das decisões em conjunto e afirmam assim sua potência e autonomia em decidir e

agir por si – o que é bastante diferente da ‘tutela’. Sua participação que não se limita ao lugar

de ‘paciente’ permite que várias vias de produção de saúde e cuidado sejam produzidas e

flexibilizadas.

Segundo Bastos (2003), as ações de Redução de Danos com melhores resultados são

justamente aquelas que se mostram mais flexíveis, oferecendo aos usuários de drogas um

leque de alternativas amplo, os quais, para o autor, dissolvem os limites entre prevenção,

tratamento e promoção da saúde. Uma intervenção potente e acolhedora de Redução de Danos

seria aquela apta a oferecer novas possibilidades para o usuário, tanto em relação ao uso de

drogas quanto em função de seus outros modos de estar na vida – ou seja, novas

possibilidades de produção da existência.

De acordo com Neves (2004), a produção social da existência é tecida mediante o

agenciamento de forças atuantes no homem e forças vindas do fora. Trata-se de forças do

“entre”, que não possuem relações necessárias com códigos específicos, circulando entre

movimentos de territorialização e desterritorialização. Tais possibilidades de movimentos são

ilimitadas, ainda que os elementos maquinados sejam limitados, uma vez que comportam

sempre conjuntos finitos oriundos do fora. Ou seja, tais combinações remetem sempre aos

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fluxos que partem de um plano coextensivo ao homem, de modo que sua subjetividade

depende de quais fluxos (e como) terão um “encontro” com ele – daí que estes fluxos

participem da produção de modos de subjetivação, e que as forças do fora remetam a “linhas

de diferença em ação em meio as quais o próprio humano encontra as condições de sua

variável constituição” (NEVES, 2004, p.137). Se por um lado, como coloca Neves, cada

configuração histórica tende a promover formas hegemônicas de saber, poder e subjetivação a

partir das combinações destas forças do fora, por outro, estas forças são também linhas

intempestivas, que sinalizam sempre a abertura para um porvir de onde, mediante a leitura

deleuzeana de Foucault, “as forças do fora são as do finito ilimitado, ou seja, as da

manipulação de conjuntos finitos de elementos para combinações em número ilimitado”

(NEVES, 2004, p. 137).

Ocorre que – conforme já foi discutido - em uma sociedade de normalização, estas

forças do fora, inscritas em linhas molares de saber e poder, trabalham no sentido de formatar

processos de subjetivação, reproduzindo modos de subjetivação reificados que correspondem

às formas hegemônicas que circunscrevem o indivíduo em um espaço limitado de

experimentação (ou de desterritorialização). Em outras palavras, o uso de drogas sob o

diagrama do biopoder se configura para além das formas hegemônicas que prescrevem o

espaço de experimentação do indivíduo. Assim, intervenções potentes de Redução de Danos

são aquelas que abrem caminho para que as ditas linhas do fora operem um encontro com o

usuário denotando outros movimentos de subjetivação para além do território “droga”. Trata-

se daquelas linhas que convidam à construção (sempre ininterrupta) de um CsO por

intermédio da desestabilização das antigas linhas sedimentares da ‘dependência’, instando o

CsO a se desterritorializar deste antigo território infértil, driblando as linhas de abolição.

Encaixam-se aqui ações de Redução de Danos que promovem ao usuário novas maneiras de

se estar no mundo (seja no mercado de trabalho, seja em sua comunidade, seja por meio de

oficinas de arte, seja pela promoção de outros encontros em favor da vida), para além da

relação direta “usuário�droga”. Explorando caminhos que possam existir entre os dois pólos

dessa relação – e também os extrapolando - não reduzindo as ações de Redução de Danos aos

danos físicos ou psíquicos conseqüentes do uso de drogas, é possível bifurcar a existência do

indivíduo que até então era convocado apenas como um coagulado de um ‘sujeito viciado’.

Nesse sentido, romper com esse sujeito no lugar de reforçá-lo colocando-o no lugar de um

doente ou um incapaz que tem sua subjetividade centralizada e sempre remetida a esse

território da droga, é uma tarefa imprescindível no trabalho de Redução de Danos voltado

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para a bifurcação existencial, para a construção de outros modos de subjetivação,

caracterizando o que entendemos aqui como prática ética e também humanizada.

Assim, conforme a Redução de Danos se propõe combater não o uso de drogas, mas

seu uso hiperterritorializado – e, portanto, territorializador da existência na proporção em que

passa a nortear de forma unívoca o seu agenciamento– tal estratégia também comparece como

um poderoso vetor de desterritorialização e, portanto, de bifurcação da existência. Neste

contexto, entende-se que tal é a finalidade da clínica – produzir desvio criando novos

territórios existenciais, possibilitando a abertura para outros horizontes e modos de

subjetivação que não aqueles unicamente propiciados pelo uso da droga. De fato, o sentido da

prática clínica, de acordo com Passos e Benevides (2001) é justamente a produção de desvio.

É assim que os autores pensam a clínica como utópica e intempestiva: conforme ela não se

compromete com moldes pré-determinados cerceadores do desejo e da potência, sem atrelá-

los a modos de subjetivação reificados patrocinados por práticas ortopédicas.

Desta maneira, a prática da Redução de Danos vincula-se a uma dimensão de atuação

micropolítica, que trabalha no sentido de promover em seus demandantes a reinvenção de si, à

produção de um CsO em oposição às práticas oriundas de discursos hegemônicos localizadas

em um nível macropolítico, que prezam pela homogeneização das subjetividades. Ao incitar a

produção de diferença, ao se opor a “heterofobia”, a Redução de Danos emerge como uma

política de saúde humanizada, na medida em que se considera, com Passos e Benevides

(2005), a saúde como experiência de invenção de si e de diferentes modos de viver, i.e,

promove menos a obediência cega a normas pré-definidas que sua criação.

2.3 Redução de Danos e Linhas Molares de captura

Apesar de apostarmos aqui na Redução de Danos como um dispositivo potente de

produção da saúde (e da vida), cabe sempre lembrar que nada é ‘essencialmente’ bom ou

ruim, e que toda intervenção e discurso transita entre linhas de poderes e saberes podendo ser

capturada ou operada de múltiplas maneiras. Vimos também que o poder de captura das linhas

molares e hegemônicas é infinito, dotado de tal plasticidade que permite, sobre contingências

favoráveis, apropriar-se de tudo que encontra em seu caminho. Na fronteira destas redes de

captura, operam focos de resistência que insistem em apostar na vida, inscrevendo-se na rede

de modo molecular, menor. Mas existe sempre o risco da luta biopolítica sucumbir sob as

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forças majoritárias, serem por elas tomadas e reinventadas, perdendo sua potência e seu locus

como resistência. Daí que a Redução de Danos não esteja, obviamente, isenta destes riscos.

Ao transitar entre o molar e o molecular, o percurso da Redução de Danos no Brasil

vem traçando um trajeto bastante singular. Quando a Redução de Danos é convocada como

política pública oficializada pelo próprio Ministério da Saúde, não podemos descuidar de

avaliar não só as vantagens, mas os riscos desse acontecimento.

Dias (2008), ao analisar a inserção da Redução de Danos como política oficial, atenta

para o risco da estatização de suas intervenções, no sentido de o Estado assumir uma postura

burocrática e verticalizada para efetuação de suas intervenções. De fato, um dos pilares da

Redução de Danos é justamente promover o protagonismo daqueles que são os principais

interessados em suas ações – os próprios usuários de drogas, na medida em que estes não são

apenas ‘pacientes’ recebendo ‘ordens sanitárias’ daqueles que detém o saber hegemônico,

como médicos, psicólogos, assistentes sociais ou psiquiatras. Como protagonistas, os usuários

se confundem com os próprios redutores, culminando em uma co-gestão amplamente

participativa, humanizada e democrática. É a emergência dos ‘saberes sujeitados’ como diria

Foucault, em nome da resistência biopolítica e produção da vida.

Quando a Redução de Danos se desloca do campo de ações das organizações e de um

campo marginal das políticas públicas de saúde para então consistir numa de suas principais

propostas, emerge o risco de supressão desses saberes sujeitados em nome dos saberes

hegemônicos dos profissionais ligados à saúde e a sua administração - caso estes últimos

entendam ser dotados do ‘verdadeiro saber sobre as drogas’, dos ‘verdadeiros métodos de

redução de danos’. Nenhuma intervenção de Redução de Danos está isenta deste risco, seja

em organizações não-governamentais seja como política oficial do Estado. Neste último caso,

pode ser que a Redução de Danos se encontre particularmente vulnerável a práticas e

intervenções efetuadas como assujeitamento, como imposição de ‘redutor’ para ‘paciente’,

que então deixam de se mesclar para ocupar posições bastante distintas. É preciso cuidar que

sob este aspecto a Redução de Danos não trabalhe a partir da 'lógica molar' de moralização ou

assujeitamento (ou da tutela), e que seja garantida ampla participação comunitária no tocante

às suas intervenções. Para não negligenciar o que os próprios usuários tem a dizer ou a atuar

em prol apenas do discurso de 'sujeitos supostos saber', é preciso uma contínua

problematização das nossas práticas e mantê-las sempre abertas a conexões e

redimensionamentos impulsionados por esses 'saberes sujeitados', esquivando-se do

estabelecimento de uma relação unilinear entre ambos.

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Quando mencionamos a importância de se evitar uma relação unilinear, é preciso frisar

a validade dessa afirmação em qualquer uma das direções que ela implica, seja de redutor

para usuário, ou mesmo de usuário para redutor. O redutor precisa sempre estar atento ao fato

de que uma redução de danos implica, em algum grau, a regra – o corpo sem órgãos não pode

abdicar da totalidade de seu organismo sem se estraçalhar, como discutido anteriormente.

Com isso não se quer dizer que a atuação do redutor implique no estabelecimento de regras

por conta unicamente de seu próprio 'saber', mas que de alguma maneira caminhe em direção

à maquinação de 'algumas doses de prudência' – não devendo coincidir com a mera imposição

de regras. Sabemos que, no caso do uso de drogas, existe uma singular possibilidade de

hiperterritorilização (assim como em outros agenciamentos, como o jogo etc) que deve ser

levada em conta quando da definição dos cuidados para com a saúde. Em suma, reduzir os

danos não quer dizer subestimar os efeitos do uso de drogas, e o redutor deve estar atento a

isso sem que tal signifique o assujeitamento do usuário ao seu saber (ou as suas 'regras').

Dias (2008) ao traçar o percurso de algumas intervenções e programas de Redução de

Danos no Brasil, verificou que não foram poucas as vezes que as ações de Redução de Danos

foram entendidas como incentivo ao uso de drogas não apenas pelos profissionais da saúde,

mas pelos próprios usuários. Ou seja, os próprios usuários resistem à Redução de Danos,

considerando a abstinência a única via legítima de solução para o uso de drogas. Eis um

problema interessante: como essa população pode ser incluída nos ações de Redução de

Danos sem que isso implique uma certa 'sujeição' aos redutores de danos? Vale lembrar, nesse

ponto, que se a Redução de Danos oferece um leque de possibilidades ao usuário, é válido que

a própria abstinência esteja presente nesse leque. É preciso assim avaliar aqueles que podem

se beneficiar das ações de Redução de Danos e acolher também aqueles que desejam a

abstinência. Não se pode desconsiderar a alteridade, homogeneizando o público-alvo a partir

apenas daqueles que não pretendem ou não desejam abandonar o uso de drogas. É preciso

deixar claro para o público-alvo o que é Redução de Danos, suas estratégias de intervenção,

suas possibilidades e seus objetivos a fim de não ser entendida como incentivo ao uso de

drogas ou restrita apenas aos que não se enquadram no 'ideal' da abstinência.

Por fim, aqueles implicados na Redução de Danos também devem atentar para quem a

Redução de Danos serve ou que atores podem vir a utilizá-la em prol da majoração do poder e

também de que forma suas intervenções e suas referências ético-políticas podem ser

encorpadas ou sobrecodificadas pelo Capital. Que o comércio ilícito de drogas esteja

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plenamente inserido na lógica do Capital83 e que o tráfico de drogas siga os mesmos arranjos

básicos do Capitalismo, desde o modo de produção até sua venda no atacado e no varejo,

maquinadas pelos grandes 'empresários da droga' pode não ser uma novidade. Mas será que a

Redução de Danos não pode ser molarizada em função de outros interesses capazes de se

apoiar (supostamente) nos mesmos princípios que os seus – como, por exemplo, o

reconhecimento de que um mundo sem drogas é uma utopia, que o homem possui direito à

liberdade, à vida privada, à escolha, à autonomia? Esta é uma questão que merece um estudo

de maior profundidade no futuro, considerando que qualquer conclusão nesse sentido seria

por demais leviana em um momento em que ainda predomina o paradigma de 'guerra às

drogas'. Trataremos aqui de alguns pequenos indícios que podem (ou não) sinalizar para um

mundo em que a resistência contra a guerra às drogas pode ser aproveitada em prol das

mesmas práticas de assujeitamento e interesses do Capital aos quais a Redução de Danos, a

princípio, busca resistir.

Na Holanda, país que consolida a prática de Redução de Danos, a legalização do uso

de maconha precipitou uma grande oferta de variedade da erva pelos produtores e donos de

coffee shops locais, no melhor estilo contemporâneo da produção flexível (toyotismo).

Mediante a seleção e o cruzamento de diversas sementes de origens variadas como Tailândia

ou Jamaica, os produtores obtém uma variedade mais ou menos fraca da droga, com um ou

outro sabor, comercializada nas mais variadas formas – desde o famoso cigarro de maconha

até a confecção de cookies, bolos, e outras receitas culinárias. A competição pelo cliente e a

variabilidade de ofertas apontam para a captura dos discursos e práticas pró ou 'anti-anti-

drogas' pelo capitalismo 'legal'84.

No jornal O Globo, recentemente foi publicada uma reportagem (de capa!) no caderno

Revista85 (publicado aos domingos) sobre o comércio de ‘drogas legais’ (legal highs)

83 Machado (2005) demonstra como o comércio ilícito de drogas vem realizando uma simbiose com o mercado de capitais, facilitada pelos atuais dispositivos de regulamentação e desregulamentação operados pelos sistemas bancários e financeiros internacionais que atuam em escala global. Castells (1999) também lembra que a ‘economia do crime’ e a ‘economia formal’ encontram-se hoje profundamente interligadas na economia global faciltadas ainda pela dinâmica sociopolítica da ‘Era da Informação’. O autor afirma que esse fenômeno é fundamental nesse esquema globalizado. 84 Uma reportagem interessante sobre a variedade dos ‘cardápios’ de maconha e haxixe à venda legalmente na Holanda e também sobre a competição por determinada clientela pelos estabelecimentos que comercializam tais produtos pode ser encontrada no sítio do jornal Folha de São Paulo, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u62282.shtml. A reportagem aponta, inclusive, para a tendência de ao lado de cada coffee shop se encontrado uma pizzaria ou restaurante, de olho nos lucros que podem decorrer da ‘larica’, uma fome intensa que afeta o usuário após o uso da droga. 85 A reportagem foi publicada em 12 de julho de 2009. Utilizou-se aqui uma reprodução literal, disponibilizada no sítio do Ministério do Orçamento, Planejamento e Gestão:

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sintéticas que são produzidas a partir de substâncias não proibidas por lei, não possuindo os

mesmos princípios ativos das drogas ilícitas, ainda que sejam capazes de reproduzir seus

efeitos. A comercialização desses produtos está sendo discutida, no sentido de alguns

mostrarem-se favoráveis e outros contrários ao uso destas novas substâncias, e não haver

nenhuma judicalização definida acerca desses tipos de substâncias. Se por um lado tais drogas

não possuem os princípios ativos das drogas ilegais (o que faz supor que não produz os

mesmos danos) por outro ainda pouco se sabe sobre as consequências do seu uso à saúde. O

fato é que não é impossível que o uso dessas novas substâncias seja adotado como estratégia

de substituição em Redução de Danos (nos mesmos moldes de substituição do uso de heroína

por metadona, por exemplo) e que nesse sentido também é possível que a Redução de Danos

seja convocada como um dispositivo de crescimento desse novo mercado de drogas legais, em

um processo de molarização, de absorção pela expansão capitalista. A aproximação entre os

pressupostos da Redução de Danos e essa indústria verifica-se na fala, que aparece nesta

mesma reportagem, daquele que é considerado criador das ‘legal highs’: o neozelandês Matt

Bowden, dono do laboratório Stargate International:

Precisamos deixar a hipocrisia de lado e criar um mercado para essas pessoas, com substâncias controladas e menos danosas para a saúde, que venham com instruções de uso. Sou chamado de pai das legal highs por criar na Nova Zelândia uma indústria que passou a trabalhar junto com o governo para minimizar riscos. Regular, em vez de proibir.

Apesar de ser ainda bastante cedo para caracterizar o encontro da Redução de Danos

com essa indústria, não se pode negligenciar suas possibilidades de perdas e ganhos relativos

à produção de saúde (e de vida). Se as ações de Redução de Danos podem ser potentes,

também podem ser despotencializadas, capturadas, sobrecodificadas em função dos arranjos

demandados por determinadas configurações de poder. Não nos cabe apontar nenhuma

conclusão, ou mesmo uma pesquisa genealógica nesse sentido, pois seu caminho continua a se

desenhar e se entrelaçar intempestivamente. Afinal, a história devém.

http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2009/7/12/brasil-ja-comercializa-e-consome-drogas-legais. Acessado em: 15 de agosto de 2009

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer deste estudo, procurou-se traçar uma pesquisa de inspiração genealógica

acerca da produção do ‘problema da droga’. Na primeira parte, discutimos as condições que

incorrem na precipitação de um problema, na formulação de uma questão, de um novo

‘objeto’ que se configura como ponto de incidência das relações de saber e de poder: a

‘droga’. Buscamos compreender a composição desse novo ‘problema’ a partir da conjugação

entre três vetores segmentares: o cenário político e diplomático no início do século XX, a

disciplinarização de condutas vinculada à reorganização do trabalho e da necessidade de

produção de ‘ilegalismos populares’ em determinadas relações de poder.

Em seguida, buscamos pensar quais as linhas molares que perpassam (e alimentam) o

‘problema da droga’ de maneira mais profunda e incisiva: o Racismo de Estado, o ideal de

uma Gorda Saúde Dominante e por fim, costurando todas essas linhas, o paradigma imperial

de expansão de fronteiras e infinito poder de captura e sobrecodificação em favor da

majoração das relações de força do Capital.

Percorrendo o traçado de tantas linhas hegemônicas, chegamos finalmente às suas

fronteiras. Examinamos como o problema da droga é convocado por linhas moleculares a

partir de outros paradigmas que se apresentam como focos de resistência biopolítica,

utilizando a Redução de Danos como analisador. A partir de suas práticas e dispositivos de

atuação, verificamos alguns elementos que sinalizam para o cuidado, o acolhimento e a

produção de saúde dos usuários de drogas, sinalizando alguns indícios capazes de contribuir

para uma intervenção ética no tocante a essa população.

Por fim, apontamos algumas possibilidades de apreensão destas linhas moleculares

pelas forças hegemônicas, frisando que nenhuma intervenção é ‘boa’ ou ‘má’ em si mesma

(da mesma forma que as drogas), dependendo do tipo de agenciamento ao qual é convocada a

encorpar e das relações de poder que pode vir a alimentar. Assim, buscamos atentar para

alguns perigos à espreita das lutas biopolíticas, dos discursos e práticas que hoje ainda se

configuram como focos de resistência e potência relativos ao ‘problema da droga’.

Não é possível tirar nenhuma conclusão sobre o ‘problema da droga’, que ainda se

impõe e caminha em direção a infinitas perspectivas. A todo momento, somos bombardeados

por notícias, campanhas, programas de TV, e mesmo trabalhos acadêmicos sobre o tema, que

a todo momento é redimensionado. Se alguns opinam que caminhamos para a

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‘descriminalização das drogas’ e outros mesmo para a sua legalização, outros setores

continuam firmes na promoção da ‘guerra às drogas’. Se a Redução de Danos já é oficializada

como uma política pública de saúde, continua a enfrentar muitos obstáculos e riscos. Se o

problema das drogas alimenta o racismo de estado, mais se perpetuará a lógica de extermínio,

suspensão dos direitos e demonização daqueles cujo processo de sobrecodificação (e

estereotipação) associa ao comércio ilícito de drogas, sejam camponeses colombianos

produtores de coca, chicanos nos Estados Unidos, camponeses afegãos produtores de papoula,

ou a população favelada brasileira.

Da mesma maneira que não podemos oferecer ao leitor um ponto final, tampouco

podemos sugerir uma solução para o ‘problema da droga’. Qualquer pretensão nesse sentido

esgota as possibilidades deste estudo, e não é, de forma alguma, nosso objetivo. Se em alguns

momentos um certo pessimismo aparece nessas páginas – especialmente no tocante à

constatação da infinita plasticidade e capacidade do Império em produzir inimigos, levando-

nos a concluir que mesmo uma total abstração do problema da droga não implicaria um freio

à continuidade de práticas de assujeitamento, racismo e mesmo extermínio – preferimos

ressaltar as possibilidades de construção e produção de vida que podem brotar no ‘problema

da droga’. Daí que tenhamos destacado as intervenções pautadas na Redução de Danos como

vieses catalisadores de vida em meio aos perigos e riscos despotencializadores da vida

atrelados ao uso de drogas. Apostamos aqui na possibilidade de não apenas uma clínica, mas

um posicionamento ético no tocante aos usuários de drogas que preze pela sua cidadania,

pelos seus direitos, pelas suas escolhas e principalmente, pela sua afirmação de vida.

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