Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências Humanas e … MAURICIO versão... · dois...

49
Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Curso de Graduação em Filosofia MAURÍCIO ALVES DE AZEREDO DIFERENTES PERSPECTIVAS DO DUALISMO NÓMOS-PHÝSIS NA FILOSOFIA ANTIGA E SUAS CONSEQUÊNCIAS ÉTICAS NITERÓI 2018

Transcript of Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências Humanas e … MAURICIO versão... · dois...

Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciecircncias Humanas e Filosofia

Curso de Graduaccedilatildeo em Filosofia

MAURIacuteCIO ALVES DE AZEREDO

DIFERENTES PERSPECTIVAS DO DUALISMO NOacuteMOS-PHYacuteSIS NA FILOSOFIA ANTIGA E SUAS CONSEQUEcircNCIAS EacuteTICAS

NITEROacuteI

2018

2

Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciecircncias Humanas e Filosofia

Curso de Graduaccedilatildeo em Filosofia

MAURIacuteCIO ALVES DE AZEREDO

DIFERENTES PERSPECTIVAS DO DUALISMO NOacuteMOS-PHYacuteSIS NA FILOSOFIA ANTIGA E SUAS CONSEQUEcircNCIAS EacuteTICAS

Trabalho de Conclusatildeo de Curso apresentado ao Curso de Filosofia da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Bacharel em Filosofia

Orientador Prof Dr Alexandre Costa

Co-orientador Prof Dr Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro

NITEROacuteI

2018

3

A993 Azeredo Mauricio Alves de

Diferentes perspectivas do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia

antiga e suas consequecircncias eacuteticas Mauricio Alves de Azeredo ndash

2016

49 f

Orientador Alexandre Costa

Trabalho de Conclusatildeo de Curso (Graduaccedilatildeo em Filosofia) ndash

Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciecircncias Humanas e

Filosofia Departamento de Filosofia 2016

Bibliografia f 48-49

1 Natureza 2 Naturalismo 3 Normas sociais 4 Eacutetica

5 Filosofia antiga 6 Sofistas (Filosofia grega) I Costa Alexandre

II Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciecircncias Humanas e

Filosofia III Tiacutetulo

4

Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciecircncias Humanas e Filosofia

Curso de Graduaccedilatildeo em Filosofia

MAURIacuteCIO ALVES DE AZEREDO

DIFERENTES PERSPECTIVAS DO DUALISMO NOacuteMOS-PHYacuteSIS NA FILOSOFIA ANTIGA E SUAS CONSEQUEcircNCIAS EacuteTICAS

BANCA EXAMINADORA

Prof Dr Alexandre Costa (Orientador)

Universidade Federal Fluminense

Prof Fernando Joseacute Fagundes Ribeiro

Universidade Federal Fluminense

Prof Andreacute Constantino Yazbek

Universidade Federal Fluminense

NITEROacuteI

2018

5

DEDICATOacuteRIA

Dedico este trabalho a minhas filhas Brenda e Letiacutecia na esperanccedila de que

tenham pleno desenvolvimento intelectual sempre de forma livre e convicta de seus

valores

6

O costume eacute a forccedila que fala mais forte do que a natureza E nos faz dar provas de fraqueza

Noel Rosa

7

RESUMO

A busca por uma justificativa universal para a conduta eacutetica tem encontrado na observaccedilatildeo da natureza um pretenso ponto de apoio incontestaacutevel A natureza por apresentar geraccedilatildeo (origem) de todos os seus seres de forma independente de accedilatildeo e deliberaccedilatildeo do homem tem sido usada como uma referecircncia para um modelo das accedilotildees humanas Como o estabelecimento deste ideal eacutetico frequentemente eacute embargado pela falta de consenso entre os homens o argumento naturalista ganha autoridade por esse pressuposto de imparcialidade Desta forma o fato de algo ser como tal na natureza tem sido visto como dever ser como tal A passagem de uma abordagem descritiva (como eacute) da natureza para uma abordagem prescritiva ou normativa (como deve ser) foi usada para justificar posturas eacuteticas O dualismo noacutemos-phyacutesis ou seja a distinccedilatildeo entre as normas que tecircm origem na convenccedilatildeo humana e o naturalismo eacute o ponto central de anaacutelise deste trabalho que pretende mostrar como esse dualismo foi abordado na sofiacutestica e na filosofia antiga para propoacutesitos eacuteticos e poliacuteticos Nesta anaacutelise seratildeo confrontadas a eacutetica contratualista (convencionalista) e a eacutetica naturalista na filosofia grega

Palavras-chave natureza naturalismo phyacutesis noacutemos lei convenccedilatildeo

8

ABSTRACT

The search for a universal justification for ethical conduct has found in the observation of nature an unquestionable support point Nature has been used as a guide for a human action model for it presents generation (origin) of all its beings regardless of manacutes deliberation As the settlement of such ethical ideal is often hindered by the lack of consensus among men the naturalistic argument gains authority due to this assumption of impartiality Thus the fact of something being as such in nature has been seen as a must be as such The shift from a descriptive approach (as it is) to a prescriptive approach (as it must be) has been used to justify ethical stances

The noacutemos-phyacutesis dualism that is the distinction between norms originated from human convention and naturalism itself is the main point of this paper which intends to show how such dualism was approached in sophistry and ancient philosophy for ethical and political purposes This analysis shall confront contractualist ethic with naturalist ethic in ancient philosophy

Keywords nature naturalism phyacutesis noacutemos law convention

9

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 10

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSYS 12

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS 34

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE 38

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 45

6 FONTES - REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS E BIBLIOGRAFIA 48

10

1 INTRODUCcedilAtildeO

O termo phyacutesis pode ser entendido como ldquoorigem [] forma ou constituiccedilatildeo natural de uma pessoa ou coisa como resultado de crescimento [ou a proacutepria] naturezardquo1 Noacutemos eacute o costume o uso a lei ou decreto2 O termo ldquonaturezardquo (phyacutesis) quando contrastado com ldquoleirdquo (noacutemos) evoca a ideia de realidade No periacuteodo claacutessico algo dito nomizetai eacute algo em que se acredita algo praticado por ser tido como correto3 Assim a busca de um paracircmetro para definiccedilatildeo do correto para o homem frequentemente esbarra nesses dois pontos O noacutemos visto como lei ou diretriz eacutetica eacute alcanccedilado pelo consenso dos homens requerendo concordacircncia e assentimento As dissensotildees decorrentes do fracasso em se chegar ao noacutemos comumente tendem a eleger como modelo imperativo o que incontestavelmente jaacute estaacute aiacute no mundo jaacute nos eacute dado de saiacuteda na nossa existecircncia o que eacute espontacircneo e livre de nossa opiniatildeo para ser como tal ou seja a natureza

O natural eacute universalmente reconhecido como anterior ao homem Essa anterioridade perante aquelas dissensotildees e baseada em tal reconhecimento universal ganha forccedila para se impor sobre as partes discordantes No entanto essa forccedila eacute transferida sutilmente de uma perspectiva de mera constataccedilatildeo factual (como eacute na natureza) para uma perspectiva de prescriccedilatildeo eacutetica (como deve ser entre os homens) Eacute neste ponto que se encontra a incongruecircncia da falaacutecia naturalista4 Kerferd diz que ldquoo apelo natildeo eacute para a natureza em geral mas para a natureza [] humana e isso deve ter tornado o apelo ainda mais faacutecil visto que a urgecircncia de muitas das demandas que brotam de nossa proacutepria natureza parece dar a elas uma clara forccedila prescritivardquo5 O dualismo noacutemos-phyacutesis foi utilizado para sustentar variadas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas apoiadas em seus diferentes polos Sua abordagem eacute notada no periacuteodo heleniacutestico perpassando a trageacutedia e a filosofia incluindo a sofiacutestica Na religiatildeo os proacuteprios deuses foram discutidos se eram realmente existentes ou se eram somente concebidos por convenccedilatildeo E assim tambeacutem para as divisotildees raciais e poliacuteticas da espeacutecie humana repercutindo desde a igualdade de direitos ateacute a escravidatildeo assim como dos regimes poliacuteticos igualitaacuterios ateacute a tirania

1 LIDELL H G SCOTT R A Greek-English Lexicon Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dfu2Fsisgt Acesso em 17 nov 2014 2 Cf supra Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Dno2Fmosgt Acesso em 17 nov 2014 3 Cf GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993 p 55 4 Termo cunhado por George Edward Moore que expotildee a confusatildeo entre a constataccedilatildeo de um fato natural e atribuiccedilatildeo de um valor eacutetico ldquo[] a mistake of this simple kind has commonly been made about good It may be true that all things which are good are also something else just as it is true that all things which are yellow produce a certain kind of vibration in the light And it is a fact that Ethics aims at discovering what are those other properties belonging to all things which are good But far too many philosophers have thought that when they named those other properties they were actually defining good that these properties in fact were simply not other but absolutely and entirely the same with goodness This view I propose to call the naturalistic fallacy []rdquo MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922 p 10 sect10 5 KERFERD G B O Movimento Sofista Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 p195

11

Sob o ponto de vista religioso a lei absoluta e universal que rege as leis humanas proveacutem de divindades De acordo com Heraacuteclito por exemplo ldquotodas as leis [noacutemoi6] humanas satildeo alimentadas por uma lei una a divina pois exerce seu domiacutenio tatildeo longe quanto se consente e basta e envolve todas as outrasrdquo7 Na trageacutedia a lei divina eacute comumente evocada para sobrepujar a lei humana como em Antiacutegona de Soacutefocles quando a personagem homocircnima recorre agrave lei divina para se eximir da lei do rei Creonte ldquoeu natildeo creio que teus decretos escritos pela matildeo de um mortal possam ser superiores agraves leis [nomima] natildeo escritas e imutaacuteveis dos deusesrdquo8 Agrave medida que as leis divinas passam a ser desacreditadas outras formas de realismo eacutetico-poliacutetico surgem em seu lugar Eacute o caso da natureza como veremos adiante Eacute comum encontrar autores que adotam posiccedilotildees ora proacute-phyacutesis (naturalista) ora proacute-noacutemos (consensualista) Assim a abordagem a seguir faraacute uma separaccedilatildeo em linhas gerais destas posturas permitindo-se poreacutem sempre uma criacutetica comparativa entre elas em todo seu decorrer

6 Nas citaccedilotildees dos textos filosoacuteficos gregos as palavras-chave e as de maior relevacircncia para este trabalho foram retiradas em transliteraccedilatildeo latina de Perseus Digital Library Disponiacutevel em ltwwwperseustuftsedugt 7 HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012 p115 fr 114 8 SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Rio de Janeiro DIFEL 2006 p 46-7 450-5

12

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSIS

Na sofiacutestica vemos uma multiplicidade de posiccedilotildees eacuteticas em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo de modo que natildeo haacute um soacute ldquolugar sofiacutesticordquo Um dos principais registros da sofiacutestica sobre o problema do dualismo entre convenccedilatildeo humana e natureza como criteacuterio eacutetico foi de Antifonte Em seu texto Sobre a Verdade do qual soacute nos chegaram fragmentos ele aborda a diferenccedila entre baacuterbaros e gregos como sendo meramente convencional apontando para a mesma natureza em ambos Antifonte ressalta que as caracteriacutesticas e funccedilotildees corporais satildeo as mesmas entre os dois por natureza e portanto necessaacuterias

agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros enquanto por natureza [phusei] todos em tudo nascemos igualmente dispostos para ser tanto baacuterbaros quanto gregos Eacute o caso de observar as coisas que por natureza [phusei] satildeo necessaacuterias a todos os homens a todos satildeo acessiacuteveis pelas

mesmas capacidades e em todas as coisas nenhum de noacutes eacute determinado nem como baacuterbaro nem como grego Pois todos respiramos o ar pela boca e pelas narinas [] e comemos todos com as matildeos [] e rimos quando nos alegramos [] no espiacuterito ou choramos quando sentimos dor e pela audiccedilatildeo acolhemos os sons e pela luz do sol com a vista vemos e com as matildeos trabalhamos e com os peacutes caminhamos [] segundo a medida do que agrada cada um dos homens e eles em conjunto se reuniram e estabeleceram as leis9

A importacircncia da anaacutelise deste texto reside no fato de para Antifonte as leis humanas serem impostas e as naturais necessaacuterias O sofista mostra que a necessidade imposta aos homens pela natureza (phyacutesei oacutenton anankaicircon pacirc sin antropoacuteis) de que gregos e baacuterbaros sejam iguais se sobrepotildee agraves leis (noacutemous) que agradam a determinadas sociedades ou etnias (ldquohomens em conjuntordquo) Quando agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros sob pretexto de obediecircncia agrave lei (noacutemos) violamos a igualdade natural Ao chamar ambas as partes da contenda de baacuterbaros Antifonte mostra que a diferenccedila eacutetnica (gregos e baacuterbaros) natildeo pode justificar a guerra Quanto agrave violaccedilatildeo das determinaccedilotildees da natureza Antifonte diz

As prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo impostas de fora as da natureza [phuseos] necessaacuterias E as prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo pactuadas e natildeo geradas naturalmente [phunta] enquanto as da natureza [phuseos] satildeo geradas naturalmente [phunta] e natildeo pactuadas [] Transgredindo as prescriccedilotildees das leis [noacutemima] com efeito se encoberto diante dos que compactuam aparta-se da vergonha e castigo [] Se alguma das coisas que nascem com a natureza [phusei] eacute violentada para aleacutem do possiacutevel mesmo que isso ficasse encoberto a todos os homens em nada o mal seria menor e se todos vissem em nada maior pois natildeo eacute prejudicado pela opiniatildeo mas pela verdade10

9 ANTIFONTE Fragmentos B44B DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 77-9 (grifo meu) 10 Ibid B44A DK p 73 (grifos meus)

13

Cassin aponta em relaccedilatildeo agrave diferenccedila social em Antifonte um duplo problema ldquoo racismo dos gregos e a relaccedilatildeo entre racismo e a democraciardquo11 Ao afirmar que gregos tambeacutem ldquobarbarizamrdquo (ldquofalam de modo ininteligiacutevelrdquo) Antifonte faz uma criacutetica ao etnocentrismo grego com base naturalista No entanto essa criacutetica encontra grande dificuldade ao se deparar com as leis atenienses legisladas de modo democraacutetico tendentes a valorizar seu proacuteprio povo

Antifonte coloca a natureza como paracircmetro de verdade (o agir conforme a natureza) de cuja puniccedilatildeo natildeo se pode escapar como das puniccedilotildees das leis humanas A transgressatildeo das leis convencionais humanas eacute passiacutevel de vergonha e puniccedilatildeo baseada em opiniatildeo humana ou quiccedilaacute de nenhuma caso ningueacutem tome conhecimento ao passo que a sanccedilatildeo para a transgressatildeo de lei natural eacute em funccedilatildeo da verdade livre de qualquer valoraccedilatildeo humana e por isso inescapaacutevel e amoral Contudo um conceito de verdade absoluta soacute se sustenta como uma ideia pois do ponto de vista pragmaacutetico para se chegar a ela seraacute sempre necessaacuterio um caminho de interpretaccedilatildeo humana Caminho esse que natildeo eacute uniacutevoco e satildeo nas bifurcaccedilotildees deste caminho interpretativo que os homens chegam paradoxalmente a diferentes ldquoverdades uacutenicas e absolutasrdquo Afinal quantas verdades diferentes a respeito da mesma coisa a civilizaccedilatildeo humana em toda sua histoacuteria jaacute natildeo produziu Neste texto Antifonte mostra a forccedila da natureza como uma necessidade que se impotildee a despeito da lei do homem A lei pode inclusive ser contra a natureza prescrevendo como o homem deve interpretar seus sentidos e como ele deve se portar ainda que de modo antagocircnico ao natural

muitas das coisas justas segundo a lei [noacutemon dikaiacuteon] estatildeo em peacute de guerra com a natureza [phusei] pois estatildeo dispostas por lei aos

olhos as coisas que devem [] ver e as coisas que natildeo devem e aos ouvidos as que eles devem ouvir e as que natildeo devem e agrave liacutengua as que ela deve dizer e as que natildeo deve e agraves matildeos as que ela deve fazer e as que natildeo devem e aos peacutes para onde devem ir e para onde natildeo devem e ao espiacuterito as coisas que deve desejar e as que natildeo deve Com efeito natildeo satildeo para a natureza [phusei] em nada mais afins

nem mais proacuteprias as coisas das quais as leis dissuadem os homens do que aquelas das quais persuadem12

O autor quer aqui mostrar que o noacutemos pode ditar como o homem deve emitir

juiacutezos sobre seus dons naturais como ouvir e falar Ele mostra tambeacutem que o interesse incutido na convenccedilatildeo da lei determina como o homem deve se portar na natureza ou ainda como a lei pretende determinar a eacutetica Mas eacute longe do julgamento dos olhos alheios ou seja em estado natural que o homem encontra sua verdadeira eacutetica A conveniecircncia do homem natildeo necessariamente favorece o curso da natureza Contudo segundo Antifonte esta deveria ser o referencial da sua eacutetica jaacute que como visto a natureza eacute a verdade e a necessidade a despeito de qualquer sentimento que possa afastaacute-lo desse referencial como a vergonha Esse eacute o ponto central desta

11 CASSIN B ldquoBarbarizarrdquo e ldquoCidadanizarrdquo In CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A Cidade e Seus Outros Rio de Janeiro Editora 34 1993 p 107 12 ANTIFONTE Acerca da Verdade B44A DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 73

14

discussatildeo ou seja qual referencial eacutetico deve-se adotar Nesse sentido continua Antifonte

o viver e o morrer satildeo da natureza [phuseos] e para eles [os homens]

o viver eacute uma das coisas convenientes e o morrer uma das natildeo-convenientes As coisas convenientes fixadas pelas leis [noacutemon] por seu turno satildeo grilhotildees da natureza [phuseos] as fixadas pela natureza [phuseos] livres De fato as coisas que produzem sofrimento por uma correta razatildeo natildeo satildeo proveitosas agrave natureza [phusin] mais do que as agradaacuteveis Pois as coisas convenientes

segundo a verdade natildeo devem prejudicar mas beneficiar 13

Ou seja para o curso da natureza pouco importa o que agrada ou desagrada ao homem A conveniecircncia humana sob forma de leis pode impedir o curso livre da natureza Por ver a natureza como fonte de verdade Antifonte preconiza que o homem deve alinhar sua conveniecircncia agrave natureza Contudo alcanccedilar a verdade da natureza tambeacutem natildeo pressupotildee sua interpretaccedilatildeo E essa interpretaccedilatildeo natildeo seria uma convenccedilatildeo ou no miacutenimo um artifiacutecio do homem O problema de se alcanccedilar a verdade da natureza portanto recai na inexorabilidade do artifiacutecio humano da interpretaccedilatildeo Ateacute que ponto essa interpretaccedilatildeo natildeo seria tendenciosa na proposta de Antifonte de se alinhar a conveniecircncia do homem agrave natureza

Guthrie esclarece porque Antifonte ainda em Sobre a Verdade apresenta diferentes conceitos de justiccedila14 para mostrar que as concepccedilotildees vigentes de moralidade satildeo inadequadas e que as formas da natureza eacute que devem ter preferecircncia15

Por fim temos em Antifonte a afirmaccedilatildeo de que a violaccedilatildeo das leis humanas eacute julgada pela opiniatildeo e a das leis naturais pela verdade Antifonte quer com isso mostrar que a natureza deve ser o referencial para a convenccedilatildeo humana ainda que esta ldquoverdade da naturezardquo seja contraacuteria a algumas conveniecircncias do homem Assim o sofista expotildee a dupla via de valoraccedilatildeo que o dualismo permite e que seraacute de modo controverso explorada por sofistas e filoacutesofos A sofiacutestica exploraraacute o dualismo com mais ecircnfase pelo vieacutes oposto qual seja o da justificativa eacutetico-poliacutetica baseada no noacutemos Como expocircs Cassin eacute caracteriacutestica da sofiacutestica a substituiccedilatildeo do fiacutesico pelo poliacutetico assim como o acordo discursivo (homologia) como base de legalidade poliacutetica16 Ainda segundo Cassin ldquoo consenso (homonoacuteia) eacute [] o efeito de uma operaccedilatildeo loacutegica no sentido lato capaz de voltar em seu favor as opiniotildees ou as praacuteticas contraditoacuterias que deveriam interdizecirc-lordquo17

No diaacutelogo Repuacuteblica Platatildeo inicia a justificativa de sua visatildeo poliacutetica do filoacutesofo-rei da cidade ideal (kallipolis) a partir da ideia de funccedilatildeo ou tarefa (eacutergon) especializada de cada coisa O personagem Soacutecrates em diaacutelogo com o personagem Trasiacutemaco sustenta que os objetos sejam manufaturados ou naturais possuem um eacutergon especiacutefico Esta funccedilatildeo eacute ou exclusiva de um determinado objeto ou realizada

13 Ibid p 73-75 B 44A DK 14 A saber (1) Conformidade agraves leis e costumes de seu paiacutes (2) natildeo causar injuacuteria exceto em resposta a uma injuacuteria recebida (3) nem causar nem sofrer injuacuteria 15 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge University Press 1965 III p 112 16 Cf CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Satildeo Paulo Editora 34 2005 p 71 17 CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Satildeo Paulo Siciliano 1990 p79

15

por este com mais perfeiccedilatildeo18 Assim Soacutecrates leva Trasiacutemaco a concordar que o cavalo tem uma funccedilatildeo determinada19 que os oacutergatildeos sensoriais tecircm suas funccedilotildees especiacuteficas (a saber olhos visatildeo e ouvidos audiccedilatildeo20) e tambeacutem que objetos cortantes como a faca satildeo ideais para cortar os sarmentos de uma vinha21

Logo adiante Platatildeo faz Soacutecrates propor que essa funccedilatildeo eacute uma virtude (areteacute) do objeto22 Esta proposiccedilatildeo eacute o ponto onde Platatildeo atribui um valor moral elevado (virtude) a uma caracteriacutestica natural do objeto qual seja a sua funccedilatildeo (ainda que ele tambeacutem tenha incluiacutedo objetos manufaturados na comparaccedilatildeo) Seu proacuteximo passo eacute expor a funccedilatildeo da alma e por consequecircncia a sua virtude Tal funccedilatildeo ou virtude eacute o governo da proacutepria vida23 Desta forma a vida bem governada pela alma (de acordo com a justiccedila) alcanccedilaraacute a felicidade ou eudaimoniacutea24 A mesma estrutura argumentativa aparece no momento da fundaccedilatildeo de uma cidade imaginaacuteria pelos personagens Soacutecrates e Adimanto25 quando eles chegam agrave conclusatildeo de que a especializaccedilatildeo de cada cidadatildeo em diferentes ofiacutecios [erga] de acordo com a sua natureza [phusin]26 eacute a forma mais proveitosa possiacutevel de distribuiccedilatildeo da forccedila de trabalho na cidade Eacute notaacutevel aqui a intenccedilatildeo de fazer a profissatildeo ou a funccedilatildeo de cada um ser vista como atributo natural Para deixar isso patente Soacutecrates declara ldquocada um de noacutes natildeo nasceu igual ao outro mas com naturezas [phusin] diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa [ergou praxei]rdquo27

O mesmo argumento naturalista aparece no diaacutelogo Craacutetilo onde Soacutecrates pretende justificar uma accedilatildeo correta a partir de sua proacutepria natureza ou seja ldquoa natureza da accedilatildeordquo Ele afirma que ldquoelas [as accedilotildees] se realizam segundo sua proacutepria natureza [phusin] natildeo conforme a opiniatildeo que dela fizermosrdquo28 Assim como na Repuacuteblica a natureza de cada coisa dita sua funccedilatildeo ou seja uma coisa deve ser feita

ldquosegundo os imperativos da natureza [phusei]rdquo 29 A natureza eacute o criteacuterio para o que eacute certo ldquono caso de querermos queimar alguma coisa natildeo devemos fazecirc-lo de qualquer modo como nos ditar a fantasia [conforme todas as opiniotildees kata pasan doxan30] mas pelo modo certo que eacute o modo indicado pela natureza [epephukei] para queimarrdquo31 O argumento da accedilatildeo naturalmente correta vai evoluir agrave accedilatildeo de falar e nomear as coisas culminando no ponto central do diaacutelogo (Craacutetilo) que eacute a accedilatildeo de nomear as coisas conforme a natureza 32 Assim a competecircncia de forjar nomes seraacute

18 Cf PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 352e 19 Ibid 352d-e 20 Ibid 352e 21 Ibid 353a 22 Ibid 353b-c 23 Ibid 353d 24 Ibid 353e - 354a 25 Ibid 369c 26 Ibid 370c 27 Ibid 370a-b (grifos meus) 28 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - CraacutetiloBeleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387a 29 Ibid 389c 30 Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101713Atext3DCrat3Asection3D387bgt acesso em 14 mar 2016 (Traduccedilatildeo minha) 31 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387b 32 Cf supra 387b-d

16

do ldquofazedor de nomesrdquo [onomatourgou] ou ldquolegislador [nomothetēs]rdquo33 Uma consequecircncia eacutetica interessante dessa proposta naturalista para os nomes seraacute a prescriccedilatildeo de que todo nome inclusive o de pessoas deveraacute corresponder a sua etimologia agrave sua natureza Como exemplo Soacutecrates diz que o iacutempio natildeo deveraacute se chamar Teoacutefilo (amigo de Deus) nem Mnesteu (lembrado de Deus)34 Outra via naturalista da justificativa dos nomes de acordo com a essecircncia das coisas nomeadas eacute o movimento feito pela boca para a pronuacutencia dos verbos de acordo com o movimento que esse verbo representa35 Apesar de Soacutecrates prescrever a perspectiva naturalista para o nome das coisas ele ao fim do diaacutelogo reconhece o uso corrente da convenccedilatildeo ldquoreceio muito que de fato [] seja bastante precaacuteria a tal forccedila de atraccedilatildeo da semelhanccedila e que nos vejamos forccedilados a recorrer a esse expediente banal a convenccedilatildeo [tē sunthēkē] para a correta imposiccedilatildeo dos nomes [onomatōn

orthotēta]rdquo36 Na Repuacuteblica a naturalizaccedilatildeo da virtude vai ter uma importante repercussatildeo

eacutetica ao se estabelecer quem no diaacutelogo definiraacute o ofiacutecio natural de cada cidadatildeo Soacutecrates diz a Adimanto ldquo[] eacute tarefa nossa segundo parece e se na verdade formos capazes disso proceder agrave escolha daqueles de qualidades e natureza [phuseōs] apropriadas para a custoacutedia da cidade37

Essa distinta capacidade que tais personagens filoacutesofos tecircm de determinar a natureza dos cidadatildeos vai se elevar agrave escolha dos guardiotildees da cidade Soacutecrates inicia uma comparaccedilatildeo da natureza dos animais com a natureza necessaacuteria aos guardiotildees Sugestivamente ele indaga Adimanto ldquohaacute alguma diferenccedila entre a natureza (phusin) de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascidordquo38 A valentia e porte fiacutesico do guardiatildeo deveratildeo ser como os de um catildeo ou cavalo mas ao mesmo tempo ele precisaraacute ser por natureza [phusei] doacutecil com os concidadatildeos como um catildeo de boa raccedila39 Essa capacidade do catildeo de distinguir amigos de inimigos eacute dada pelo seu ldquoinstinto filosoacutefico naturalrdquo [philosophos tēn phusin]40 Neste ponto temos uma passagem sutil mas importantiacutessima a naturalizaccedilatildeo do pendor filosoacutefico Esta seraacute crucial para justificar o filoacutesofo como governante a partir de uma imposiccedilatildeo da natureza com a forccedila do que eacute necessaacuterio e inescapaacutevel tal como disse Antifonte contudo aqui usado para hierarquizar homens ao inveacutes de igualaacute-los Quanto agrave natureza do guardiatildeo reafirma Soacutecrates ldquoquando procuramos um guarda dessa espeacutecie natildeo vamos contra a naturezardquo41 Quanto agrave relaccedilatildeo entre a filosofia e a natureza (do catildeo capaz de tal distinccedilatildeo) Soacutecrates afirma ldquomas sem duacutevida que demonstra a engenhosa conformaccedilatildeo da sua natureza [tēs phuseōs] que eacute

verdadeiramente amiga de saberrdquo42 E ainda sobre esta justificativa naturalista ele declara

33 Ibid 389a 34 Cf supra 394d-e 35 Cf supra 426c-427c 36 Ibid 435c 37 PLATAtildeO A Repuacuteblica 374e (grifo meu) 38 Ibid 375a (grifo meu) 39 Ibid 375e 40 Ibid 41 Ibid 375e 42 Ibid 376a-b (grifo meu)

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

2

Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciecircncias Humanas e Filosofia

Curso de Graduaccedilatildeo em Filosofia

MAURIacuteCIO ALVES DE AZEREDO

DIFERENTES PERSPECTIVAS DO DUALISMO NOacuteMOS-PHYacuteSIS NA FILOSOFIA ANTIGA E SUAS CONSEQUEcircNCIAS EacuteTICAS

Trabalho de Conclusatildeo de Curso apresentado ao Curso de Filosofia da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Bacharel em Filosofia

Orientador Prof Dr Alexandre Costa

Co-orientador Prof Dr Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro

NITEROacuteI

2018

3

A993 Azeredo Mauricio Alves de

Diferentes perspectivas do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia

antiga e suas consequecircncias eacuteticas Mauricio Alves de Azeredo ndash

2016

49 f

Orientador Alexandre Costa

Trabalho de Conclusatildeo de Curso (Graduaccedilatildeo em Filosofia) ndash

Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciecircncias Humanas e

Filosofia Departamento de Filosofia 2016

Bibliografia f 48-49

1 Natureza 2 Naturalismo 3 Normas sociais 4 Eacutetica

5 Filosofia antiga 6 Sofistas (Filosofia grega) I Costa Alexandre

II Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciecircncias Humanas e

Filosofia III Tiacutetulo

4

Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciecircncias Humanas e Filosofia

Curso de Graduaccedilatildeo em Filosofia

MAURIacuteCIO ALVES DE AZEREDO

DIFERENTES PERSPECTIVAS DO DUALISMO NOacuteMOS-PHYacuteSIS NA FILOSOFIA ANTIGA E SUAS CONSEQUEcircNCIAS EacuteTICAS

BANCA EXAMINADORA

Prof Dr Alexandre Costa (Orientador)

Universidade Federal Fluminense

Prof Fernando Joseacute Fagundes Ribeiro

Universidade Federal Fluminense

Prof Andreacute Constantino Yazbek

Universidade Federal Fluminense

NITEROacuteI

2018

5

DEDICATOacuteRIA

Dedico este trabalho a minhas filhas Brenda e Letiacutecia na esperanccedila de que

tenham pleno desenvolvimento intelectual sempre de forma livre e convicta de seus

valores

6

O costume eacute a forccedila que fala mais forte do que a natureza E nos faz dar provas de fraqueza

Noel Rosa

7

RESUMO

A busca por uma justificativa universal para a conduta eacutetica tem encontrado na observaccedilatildeo da natureza um pretenso ponto de apoio incontestaacutevel A natureza por apresentar geraccedilatildeo (origem) de todos os seus seres de forma independente de accedilatildeo e deliberaccedilatildeo do homem tem sido usada como uma referecircncia para um modelo das accedilotildees humanas Como o estabelecimento deste ideal eacutetico frequentemente eacute embargado pela falta de consenso entre os homens o argumento naturalista ganha autoridade por esse pressuposto de imparcialidade Desta forma o fato de algo ser como tal na natureza tem sido visto como dever ser como tal A passagem de uma abordagem descritiva (como eacute) da natureza para uma abordagem prescritiva ou normativa (como deve ser) foi usada para justificar posturas eacuteticas O dualismo noacutemos-phyacutesis ou seja a distinccedilatildeo entre as normas que tecircm origem na convenccedilatildeo humana e o naturalismo eacute o ponto central de anaacutelise deste trabalho que pretende mostrar como esse dualismo foi abordado na sofiacutestica e na filosofia antiga para propoacutesitos eacuteticos e poliacuteticos Nesta anaacutelise seratildeo confrontadas a eacutetica contratualista (convencionalista) e a eacutetica naturalista na filosofia grega

Palavras-chave natureza naturalismo phyacutesis noacutemos lei convenccedilatildeo

8

ABSTRACT

The search for a universal justification for ethical conduct has found in the observation of nature an unquestionable support point Nature has been used as a guide for a human action model for it presents generation (origin) of all its beings regardless of manacutes deliberation As the settlement of such ethical ideal is often hindered by the lack of consensus among men the naturalistic argument gains authority due to this assumption of impartiality Thus the fact of something being as such in nature has been seen as a must be as such The shift from a descriptive approach (as it is) to a prescriptive approach (as it must be) has been used to justify ethical stances

The noacutemos-phyacutesis dualism that is the distinction between norms originated from human convention and naturalism itself is the main point of this paper which intends to show how such dualism was approached in sophistry and ancient philosophy for ethical and political purposes This analysis shall confront contractualist ethic with naturalist ethic in ancient philosophy

Keywords nature naturalism phyacutesis noacutemos law convention

9

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 10

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSYS 12

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS 34

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE 38

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 45

6 FONTES - REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS E BIBLIOGRAFIA 48

10

1 INTRODUCcedilAtildeO

O termo phyacutesis pode ser entendido como ldquoorigem [] forma ou constituiccedilatildeo natural de uma pessoa ou coisa como resultado de crescimento [ou a proacutepria] naturezardquo1 Noacutemos eacute o costume o uso a lei ou decreto2 O termo ldquonaturezardquo (phyacutesis) quando contrastado com ldquoleirdquo (noacutemos) evoca a ideia de realidade No periacuteodo claacutessico algo dito nomizetai eacute algo em que se acredita algo praticado por ser tido como correto3 Assim a busca de um paracircmetro para definiccedilatildeo do correto para o homem frequentemente esbarra nesses dois pontos O noacutemos visto como lei ou diretriz eacutetica eacute alcanccedilado pelo consenso dos homens requerendo concordacircncia e assentimento As dissensotildees decorrentes do fracasso em se chegar ao noacutemos comumente tendem a eleger como modelo imperativo o que incontestavelmente jaacute estaacute aiacute no mundo jaacute nos eacute dado de saiacuteda na nossa existecircncia o que eacute espontacircneo e livre de nossa opiniatildeo para ser como tal ou seja a natureza

O natural eacute universalmente reconhecido como anterior ao homem Essa anterioridade perante aquelas dissensotildees e baseada em tal reconhecimento universal ganha forccedila para se impor sobre as partes discordantes No entanto essa forccedila eacute transferida sutilmente de uma perspectiva de mera constataccedilatildeo factual (como eacute na natureza) para uma perspectiva de prescriccedilatildeo eacutetica (como deve ser entre os homens) Eacute neste ponto que se encontra a incongruecircncia da falaacutecia naturalista4 Kerferd diz que ldquoo apelo natildeo eacute para a natureza em geral mas para a natureza [] humana e isso deve ter tornado o apelo ainda mais faacutecil visto que a urgecircncia de muitas das demandas que brotam de nossa proacutepria natureza parece dar a elas uma clara forccedila prescritivardquo5 O dualismo noacutemos-phyacutesis foi utilizado para sustentar variadas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas apoiadas em seus diferentes polos Sua abordagem eacute notada no periacuteodo heleniacutestico perpassando a trageacutedia e a filosofia incluindo a sofiacutestica Na religiatildeo os proacuteprios deuses foram discutidos se eram realmente existentes ou se eram somente concebidos por convenccedilatildeo E assim tambeacutem para as divisotildees raciais e poliacuteticas da espeacutecie humana repercutindo desde a igualdade de direitos ateacute a escravidatildeo assim como dos regimes poliacuteticos igualitaacuterios ateacute a tirania

1 LIDELL H G SCOTT R A Greek-English Lexicon Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dfu2Fsisgt Acesso em 17 nov 2014 2 Cf supra Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Dno2Fmosgt Acesso em 17 nov 2014 3 Cf GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993 p 55 4 Termo cunhado por George Edward Moore que expotildee a confusatildeo entre a constataccedilatildeo de um fato natural e atribuiccedilatildeo de um valor eacutetico ldquo[] a mistake of this simple kind has commonly been made about good It may be true that all things which are good are also something else just as it is true that all things which are yellow produce a certain kind of vibration in the light And it is a fact that Ethics aims at discovering what are those other properties belonging to all things which are good But far too many philosophers have thought that when they named those other properties they were actually defining good that these properties in fact were simply not other but absolutely and entirely the same with goodness This view I propose to call the naturalistic fallacy []rdquo MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922 p 10 sect10 5 KERFERD G B O Movimento Sofista Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 p195

11

Sob o ponto de vista religioso a lei absoluta e universal que rege as leis humanas proveacutem de divindades De acordo com Heraacuteclito por exemplo ldquotodas as leis [noacutemoi6] humanas satildeo alimentadas por uma lei una a divina pois exerce seu domiacutenio tatildeo longe quanto se consente e basta e envolve todas as outrasrdquo7 Na trageacutedia a lei divina eacute comumente evocada para sobrepujar a lei humana como em Antiacutegona de Soacutefocles quando a personagem homocircnima recorre agrave lei divina para se eximir da lei do rei Creonte ldquoeu natildeo creio que teus decretos escritos pela matildeo de um mortal possam ser superiores agraves leis [nomima] natildeo escritas e imutaacuteveis dos deusesrdquo8 Agrave medida que as leis divinas passam a ser desacreditadas outras formas de realismo eacutetico-poliacutetico surgem em seu lugar Eacute o caso da natureza como veremos adiante Eacute comum encontrar autores que adotam posiccedilotildees ora proacute-phyacutesis (naturalista) ora proacute-noacutemos (consensualista) Assim a abordagem a seguir faraacute uma separaccedilatildeo em linhas gerais destas posturas permitindo-se poreacutem sempre uma criacutetica comparativa entre elas em todo seu decorrer

6 Nas citaccedilotildees dos textos filosoacuteficos gregos as palavras-chave e as de maior relevacircncia para este trabalho foram retiradas em transliteraccedilatildeo latina de Perseus Digital Library Disponiacutevel em ltwwwperseustuftsedugt 7 HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012 p115 fr 114 8 SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Rio de Janeiro DIFEL 2006 p 46-7 450-5

12

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSIS

Na sofiacutestica vemos uma multiplicidade de posiccedilotildees eacuteticas em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo de modo que natildeo haacute um soacute ldquolugar sofiacutesticordquo Um dos principais registros da sofiacutestica sobre o problema do dualismo entre convenccedilatildeo humana e natureza como criteacuterio eacutetico foi de Antifonte Em seu texto Sobre a Verdade do qual soacute nos chegaram fragmentos ele aborda a diferenccedila entre baacuterbaros e gregos como sendo meramente convencional apontando para a mesma natureza em ambos Antifonte ressalta que as caracteriacutesticas e funccedilotildees corporais satildeo as mesmas entre os dois por natureza e portanto necessaacuterias

agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros enquanto por natureza [phusei] todos em tudo nascemos igualmente dispostos para ser tanto baacuterbaros quanto gregos Eacute o caso de observar as coisas que por natureza [phusei] satildeo necessaacuterias a todos os homens a todos satildeo acessiacuteveis pelas

mesmas capacidades e em todas as coisas nenhum de noacutes eacute determinado nem como baacuterbaro nem como grego Pois todos respiramos o ar pela boca e pelas narinas [] e comemos todos com as matildeos [] e rimos quando nos alegramos [] no espiacuterito ou choramos quando sentimos dor e pela audiccedilatildeo acolhemos os sons e pela luz do sol com a vista vemos e com as matildeos trabalhamos e com os peacutes caminhamos [] segundo a medida do que agrada cada um dos homens e eles em conjunto se reuniram e estabeleceram as leis9

A importacircncia da anaacutelise deste texto reside no fato de para Antifonte as leis humanas serem impostas e as naturais necessaacuterias O sofista mostra que a necessidade imposta aos homens pela natureza (phyacutesei oacutenton anankaicircon pacirc sin antropoacuteis) de que gregos e baacuterbaros sejam iguais se sobrepotildee agraves leis (noacutemous) que agradam a determinadas sociedades ou etnias (ldquohomens em conjuntordquo) Quando agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros sob pretexto de obediecircncia agrave lei (noacutemos) violamos a igualdade natural Ao chamar ambas as partes da contenda de baacuterbaros Antifonte mostra que a diferenccedila eacutetnica (gregos e baacuterbaros) natildeo pode justificar a guerra Quanto agrave violaccedilatildeo das determinaccedilotildees da natureza Antifonte diz

As prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo impostas de fora as da natureza [phuseos] necessaacuterias E as prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo pactuadas e natildeo geradas naturalmente [phunta] enquanto as da natureza [phuseos] satildeo geradas naturalmente [phunta] e natildeo pactuadas [] Transgredindo as prescriccedilotildees das leis [noacutemima] com efeito se encoberto diante dos que compactuam aparta-se da vergonha e castigo [] Se alguma das coisas que nascem com a natureza [phusei] eacute violentada para aleacutem do possiacutevel mesmo que isso ficasse encoberto a todos os homens em nada o mal seria menor e se todos vissem em nada maior pois natildeo eacute prejudicado pela opiniatildeo mas pela verdade10

9 ANTIFONTE Fragmentos B44B DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 77-9 (grifo meu) 10 Ibid B44A DK p 73 (grifos meus)

13

Cassin aponta em relaccedilatildeo agrave diferenccedila social em Antifonte um duplo problema ldquoo racismo dos gregos e a relaccedilatildeo entre racismo e a democraciardquo11 Ao afirmar que gregos tambeacutem ldquobarbarizamrdquo (ldquofalam de modo ininteligiacutevelrdquo) Antifonte faz uma criacutetica ao etnocentrismo grego com base naturalista No entanto essa criacutetica encontra grande dificuldade ao se deparar com as leis atenienses legisladas de modo democraacutetico tendentes a valorizar seu proacuteprio povo

Antifonte coloca a natureza como paracircmetro de verdade (o agir conforme a natureza) de cuja puniccedilatildeo natildeo se pode escapar como das puniccedilotildees das leis humanas A transgressatildeo das leis convencionais humanas eacute passiacutevel de vergonha e puniccedilatildeo baseada em opiniatildeo humana ou quiccedilaacute de nenhuma caso ningueacutem tome conhecimento ao passo que a sanccedilatildeo para a transgressatildeo de lei natural eacute em funccedilatildeo da verdade livre de qualquer valoraccedilatildeo humana e por isso inescapaacutevel e amoral Contudo um conceito de verdade absoluta soacute se sustenta como uma ideia pois do ponto de vista pragmaacutetico para se chegar a ela seraacute sempre necessaacuterio um caminho de interpretaccedilatildeo humana Caminho esse que natildeo eacute uniacutevoco e satildeo nas bifurcaccedilotildees deste caminho interpretativo que os homens chegam paradoxalmente a diferentes ldquoverdades uacutenicas e absolutasrdquo Afinal quantas verdades diferentes a respeito da mesma coisa a civilizaccedilatildeo humana em toda sua histoacuteria jaacute natildeo produziu Neste texto Antifonte mostra a forccedila da natureza como uma necessidade que se impotildee a despeito da lei do homem A lei pode inclusive ser contra a natureza prescrevendo como o homem deve interpretar seus sentidos e como ele deve se portar ainda que de modo antagocircnico ao natural

muitas das coisas justas segundo a lei [noacutemon dikaiacuteon] estatildeo em peacute de guerra com a natureza [phusei] pois estatildeo dispostas por lei aos

olhos as coisas que devem [] ver e as coisas que natildeo devem e aos ouvidos as que eles devem ouvir e as que natildeo devem e agrave liacutengua as que ela deve dizer e as que natildeo deve e agraves matildeos as que ela deve fazer e as que natildeo devem e aos peacutes para onde devem ir e para onde natildeo devem e ao espiacuterito as coisas que deve desejar e as que natildeo deve Com efeito natildeo satildeo para a natureza [phusei] em nada mais afins

nem mais proacuteprias as coisas das quais as leis dissuadem os homens do que aquelas das quais persuadem12

O autor quer aqui mostrar que o noacutemos pode ditar como o homem deve emitir

juiacutezos sobre seus dons naturais como ouvir e falar Ele mostra tambeacutem que o interesse incutido na convenccedilatildeo da lei determina como o homem deve se portar na natureza ou ainda como a lei pretende determinar a eacutetica Mas eacute longe do julgamento dos olhos alheios ou seja em estado natural que o homem encontra sua verdadeira eacutetica A conveniecircncia do homem natildeo necessariamente favorece o curso da natureza Contudo segundo Antifonte esta deveria ser o referencial da sua eacutetica jaacute que como visto a natureza eacute a verdade e a necessidade a despeito de qualquer sentimento que possa afastaacute-lo desse referencial como a vergonha Esse eacute o ponto central desta

11 CASSIN B ldquoBarbarizarrdquo e ldquoCidadanizarrdquo In CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A Cidade e Seus Outros Rio de Janeiro Editora 34 1993 p 107 12 ANTIFONTE Acerca da Verdade B44A DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 73

14

discussatildeo ou seja qual referencial eacutetico deve-se adotar Nesse sentido continua Antifonte

o viver e o morrer satildeo da natureza [phuseos] e para eles [os homens]

o viver eacute uma das coisas convenientes e o morrer uma das natildeo-convenientes As coisas convenientes fixadas pelas leis [noacutemon] por seu turno satildeo grilhotildees da natureza [phuseos] as fixadas pela natureza [phuseos] livres De fato as coisas que produzem sofrimento por uma correta razatildeo natildeo satildeo proveitosas agrave natureza [phusin] mais do que as agradaacuteveis Pois as coisas convenientes

segundo a verdade natildeo devem prejudicar mas beneficiar 13

Ou seja para o curso da natureza pouco importa o que agrada ou desagrada ao homem A conveniecircncia humana sob forma de leis pode impedir o curso livre da natureza Por ver a natureza como fonte de verdade Antifonte preconiza que o homem deve alinhar sua conveniecircncia agrave natureza Contudo alcanccedilar a verdade da natureza tambeacutem natildeo pressupotildee sua interpretaccedilatildeo E essa interpretaccedilatildeo natildeo seria uma convenccedilatildeo ou no miacutenimo um artifiacutecio do homem O problema de se alcanccedilar a verdade da natureza portanto recai na inexorabilidade do artifiacutecio humano da interpretaccedilatildeo Ateacute que ponto essa interpretaccedilatildeo natildeo seria tendenciosa na proposta de Antifonte de se alinhar a conveniecircncia do homem agrave natureza

Guthrie esclarece porque Antifonte ainda em Sobre a Verdade apresenta diferentes conceitos de justiccedila14 para mostrar que as concepccedilotildees vigentes de moralidade satildeo inadequadas e que as formas da natureza eacute que devem ter preferecircncia15

Por fim temos em Antifonte a afirmaccedilatildeo de que a violaccedilatildeo das leis humanas eacute julgada pela opiniatildeo e a das leis naturais pela verdade Antifonte quer com isso mostrar que a natureza deve ser o referencial para a convenccedilatildeo humana ainda que esta ldquoverdade da naturezardquo seja contraacuteria a algumas conveniecircncias do homem Assim o sofista expotildee a dupla via de valoraccedilatildeo que o dualismo permite e que seraacute de modo controverso explorada por sofistas e filoacutesofos A sofiacutestica exploraraacute o dualismo com mais ecircnfase pelo vieacutes oposto qual seja o da justificativa eacutetico-poliacutetica baseada no noacutemos Como expocircs Cassin eacute caracteriacutestica da sofiacutestica a substituiccedilatildeo do fiacutesico pelo poliacutetico assim como o acordo discursivo (homologia) como base de legalidade poliacutetica16 Ainda segundo Cassin ldquoo consenso (homonoacuteia) eacute [] o efeito de uma operaccedilatildeo loacutegica no sentido lato capaz de voltar em seu favor as opiniotildees ou as praacuteticas contraditoacuterias que deveriam interdizecirc-lordquo17

No diaacutelogo Repuacuteblica Platatildeo inicia a justificativa de sua visatildeo poliacutetica do filoacutesofo-rei da cidade ideal (kallipolis) a partir da ideia de funccedilatildeo ou tarefa (eacutergon) especializada de cada coisa O personagem Soacutecrates em diaacutelogo com o personagem Trasiacutemaco sustenta que os objetos sejam manufaturados ou naturais possuem um eacutergon especiacutefico Esta funccedilatildeo eacute ou exclusiva de um determinado objeto ou realizada

13 Ibid p 73-75 B 44A DK 14 A saber (1) Conformidade agraves leis e costumes de seu paiacutes (2) natildeo causar injuacuteria exceto em resposta a uma injuacuteria recebida (3) nem causar nem sofrer injuacuteria 15 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge University Press 1965 III p 112 16 Cf CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Satildeo Paulo Editora 34 2005 p 71 17 CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Satildeo Paulo Siciliano 1990 p79

15

por este com mais perfeiccedilatildeo18 Assim Soacutecrates leva Trasiacutemaco a concordar que o cavalo tem uma funccedilatildeo determinada19 que os oacutergatildeos sensoriais tecircm suas funccedilotildees especiacuteficas (a saber olhos visatildeo e ouvidos audiccedilatildeo20) e tambeacutem que objetos cortantes como a faca satildeo ideais para cortar os sarmentos de uma vinha21

Logo adiante Platatildeo faz Soacutecrates propor que essa funccedilatildeo eacute uma virtude (areteacute) do objeto22 Esta proposiccedilatildeo eacute o ponto onde Platatildeo atribui um valor moral elevado (virtude) a uma caracteriacutestica natural do objeto qual seja a sua funccedilatildeo (ainda que ele tambeacutem tenha incluiacutedo objetos manufaturados na comparaccedilatildeo) Seu proacuteximo passo eacute expor a funccedilatildeo da alma e por consequecircncia a sua virtude Tal funccedilatildeo ou virtude eacute o governo da proacutepria vida23 Desta forma a vida bem governada pela alma (de acordo com a justiccedila) alcanccedilaraacute a felicidade ou eudaimoniacutea24 A mesma estrutura argumentativa aparece no momento da fundaccedilatildeo de uma cidade imaginaacuteria pelos personagens Soacutecrates e Adimanto25 quando eles chegam agrave conclusatildeo de que a especializaccedilatildeo de cada cidadatildeo em diferentes ofiacutecios [erga] de acordo com a sua natureza [phusin]26 eacute a forma mais proveitosa possiacutevel de distribuiccedilatildeo da forccedila de trabalho na cidade Eacute notaacutevel aqui a intenccedilatildeo de fazer a profissatildeo ou a funccedilatildeo de cada um ser vista como atributo natural Para deixar isso patente Soacutecrates declara ldquocada um de noacutes natildeo nasceu igual ao outro mas com naturezas [phusin] diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa [ergou praxei]rdquo27

O mesmo argumento naturalista aparece no diaacutelogo Craacutetilo onde Soacutecrates pretende justificar uma accedilatildeo correta a partir de sua proacutepria natureza ou seja ldquoa natureza da accedilatildeordquo Ele afirma que ldquoelas [as accedilotildees] se realizam segundo sua proacutepria natureza [phusin] natildeo conforme a opiniatildeo que dela fizermosrdquo28 Assim como na Repuacuteblica a natureza de cada coisa dita sua funccedilatildeo ou seja uma coisa deve ser feita

ldquosegundo os imperativos da natureza [phusei]rdquo 29 A natureza eacute o criteacuterio para o que eacute certo ldquono caso de querermos queimar alguma coisa natildeo devemos fazecirc-lo de qualquer modo como nos ditar a fantasia [conforme todas as opiniotildees kata pasan doxan30] mas pelo modo certo que eacute o modo indicado pela natureza [epephukei] para queimarrdquo31 O argumento da accedilatildeo naturalmente correta vai evoluir agrave accedilatildeo de falar e nomear as coisas culminando no ponto central do diaacutelogo (Craacutetilo) que eacute a accedilatildeo de nomear as coisas conforme a natureza 32 Assim a competecircncia de forjar nomes seraacute

18 Cf PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 352e 19 Ibid 352d-e 20 Ibid 352e 21 Ibid 353a 22 Ibid 353b-c 23 Ibid 353d 24 Ibid 353e - 354a 25 Ibid 369c 26 Ibid 370c 27 Ibid 370a-b (grifos meus) 28 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - CraacutetiloBeleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387a 29 Ibid 389c 30 Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101713Atext3DCrat3Asection3D387bgt acesso em 14 mar 2016 (Traduccedilatildeo minha) 31 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387b 32 Cf supra 387b-d

16

do ldquofazedor de nomesrdquo [onomatourgou] ou ldquolegislador [nomothetēs]rdquo33 Uma consequecircncia eacutetica interessante dessa proposta naturalista para os nomes seraacute a prescriccedilatildeo de que todo nome inclusive o de pessoas deveraacute corresponder a sua etimologia agrave sua natureza Como exemplo Soacutecrates diz que o iacutempio natildeo deveraacute se chamar Teoacutefilo (amigo de Deus) nem Mnesteu (lembrado de Deus)34 Outra via naturalista da justificativa dos nomes de acordo com a essecircncia das coisas nomeadas eacute o movimento feito pela boca para a pronuacutencia dos verbos de acordo com o movimento que esse verbo representa35 Apesar de Soacutecrates prescrever a perspectiva naturalista para o nome das coisas ele ao fim do diaacutelogo reconhece o uso corrente da convenccedilatildeo ldquoreceio muito que de fato [] seja bastante precaacuteria a tal forccedila de atraccedilatildeo da semelhanccedila e que nos vejamos forccedilados a recorrer a esse expediente banal a convenccedilatildeo [tē sunthēkē] para a correta imposiccedilatildeo dos nomes [onomatōn

orthotēta]rdquo36 Na Repuacuteblica a naturalizaccedilatildeo da virtude vai ter uma importante repercussatildeo

eacutetica ao se estabelecer quem no diaacutelogo definiraacute o ofiacutecio natural de cada cidadatildeo Soacutecrates diz a Adimanto ldquo[] eacute tarefa nossa segundo parece e se na verdade formos capazes disso proceder agrave escolha daqueles de qualidades e natureza [phuseōs] apropriadas para a custoacutedia da cidade37

Essa distinta capacidade que tais personagens filoacutesofos tecircm de determinar a natureza dos cidadatildeos vai se elevar agrave escolha dos guardiotildees da cidade Soacutecrates inicia uma comparaccedilatildeo da natureza dos animais com a natureza necessaacuteria aos guardiotildees Sugestivamente ele indaga Adimanto ldquohaacute alguma diferenccedila entre a natureza (phusin) de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascidordquo38 A valentia e porte fiacutesico do guardiatildeo deveratildeo ser como os de um catildeo ou cavalo mas ao mesmo tempo ele precisaraacute ser por natureza [phusei] doacutecil com os concidadatildeos como um catildeo de boa raccedila39 Essa capacidade do catildeo de distinguir amigos de inimigos eacute dada pelo seu ldquoinstinto filosoacutefico naturalrdquo [philosophos tēn phusin]40 Neste ponto temos uma passagem sutil mas importantiacutessima a naturalizaccedilatildeo do pendor filosoacutefico Esta seraacute crucial para justificar o filoacutesofo como governante a partir de uma imposiccedilatildeo da natureza com a forccedila do que eacute necessaacuterio e inescapaacutevel tal como disse Antifonte contudo aqui usado para hierarquizar homens ao inveacutes de igualaacute-los Quanto agrave natureza do guardiatildeo reafirma Soacutecrates ldquoquando procuramos um guarda dessa espeacutecie natildeo vamos contra a naturezardquo41 Quanto agrave relaccedilatildeo entre a filosofia e a natureza (do catildeo capaz de tal distinccedilatildeo) Soacutecrates afirma ldquomas sem duacutevida que demonstra a engenhosa conformaccedilatildeo da sua natureza [tēs phuseōs] que eacute

verdadeiramente amiga de saberrdquo42 E ainda sobre esta justificativa naturalista ele declara

33 Ibid 389a 34 Cf supra 394d-e 35 Cf supra 426c-427c 36 Ibid 435c 37 PLATAtildeO A Repuacuteblica 374e (grifo meu) 38 Ibid 375a (grifo meu) 39 Ibid 375e 40 Ibid 41 Ibid 375e 42 Ibid 376a-b (grifo meu)

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

3

A993 Azeredo Mauricio Alves de

Diferentes perspectivas do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia

antiga e suas consequecircncias eacuteticas Mauricio Alves de Azeredo ndash

2016

49 f

Orientador Alexandre Costa

Trabalho de Conclusatildeo de Curso (Graduaccedilatildeo em Filosofia) ndash

Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciecircncias Humanas e

Filosofia Departamento de Filosofia 2016

Bibliografia f 48-49

1 Natureza 2 Naturalismo 3 Normas sociais 4 Eacutetica

5 Filosofia antiga 6 Sofistas (Filosofia grega) I Costa Alexandre

II Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciecircncias Humanas e

Filosofia III Tiacutetulo

4

Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciecircncias Humanas e Filosofia

Curso de Graduaccedilatildeo em Filosofia

MAURIacuteCIO ALVES DE AZEREDO

DIFERENTES PERSPECTIVAS DO DUALISMO NOacuteMOS-PHYacuteSIS NA FILOSOFIA ANTIGA E SUAS CONSEQUEcircNCIAS EacuteTICAS

BANCA EXAMINADORA

Prof Dr Alexandre Costa (Orientador)

Universidade Federal Fluminense

Prof Fernando Joseacute Fagundes Ribeiro

Universidade Federal Fluminense

Prof Andreacute Constantino Yazbek

Universidade Federal Fluminense

NITEROacuteI

2018

5

DEDICATOacuteRIA

Dedico este trabalho a minhas filhas Brenda e Letiacutecia na esperanccedila de que

tenham pleno desenvolvimento intelectual sempre de forma livre e convicta de seus

valores

6

O costume eacute a forccedila que fala mais forte do que a natureza E nos faz dar provas de fraqueza

Noel Rosa

7

RESUMO

A busca por uma justificativa universal para a conduta eacutetica tem encontrado na observaccedilatildeo da natureza um pretenso ponto de apoio incontestaacutevel A natureza por apresentar geraccedilatildeo (origem) de todos os seus seres de forma independente de accedilatildeo e deliberaccedilatildeo do homem tem sido usada como uma referecircncia para um modelo das accedilotildees humanas Como o estabelecimento deste ideal eacutetico frequentemente eacute embargado pela falta de consenso entre os homens o argumento naturalista ganha autoridade por esse pressuposto de imparcialidade Desta forma o fato de algo ser como tal na natureza tem sido visto como dever ser como tal A passagem de uma abordagem descritiva (como eacute) da natureza para uma abordagem prescritiva ou normativa (como deve ser) foi usada para justificar posturas eacuteticas O dualismo noacutemos-phyacutesis ou seja a distinccedilatildeo entre as normas que tecircm origem na convenccedilatildeo humana e o naturalismo eacute o ponto central de anaacutelise deste trabalho que pretende mostrar como esse dualismo foi abordado na sofiacutestica e na filosofia antiga para propoacutesitos eacuteticos e poliacuteticos Nesta anaacutelise seratildeo confrontadas a eacutetica contratualista (convencionalista) e a eacutetica naturalista na filosofia grega

Palavras-chave natureza naturalismo phyacutesis noacutemos lei convenccedilatildeo

8

ABSTRACT

The search for a universal justification for ethical conduct has found in the observation of nature an unquestionable support point Nature has been used as a guide for a human action model for it presents generation (origin) of all its beings regardless of manacutes deliberation As the settlement of such ethical ideal is often hindered by the lack of consensus among men the naturalistic argument gains authority due to this assumption of impartiality Thus the fact of something being as such in nature has been seen as a must be as such The shift from a descriptive approach (as it is) to a prescriptive approach (as it must be) has been used to justify ethical stances

The noacutemos-phyacutesis dualism that is the distinction between norms originated from human convention and naturalism itself is the main point of this paper which intends to show how such dualism was approached in sophistry and ancient philosophy for ethical and political purposes This analysis shall confront contractualist ethic with naturalist ethic in ancient philosophy

Keywords nature naturalism phyacutesis noacutemos law convention

9

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 10

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSYS 12

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS 34

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE 38

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 45

6 FONTES - REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS E BIBLIOGRAFIA 48

10

1 INTRODUCcedilAtildeO

O termo phyacutesis pode ser entendido como ldquoorigem [] forma ou constituiccedilatildeo natural de uma pessoa ou coisa como resultado de crescimento [ou a proacutepria] naturezardquo1 Noacutemos eacute o costume o uso a lei ou decreto2 O termo ldquonaturezardquo (phyacutesis) quando contrastado com ldquoleirdquo (noacutemos) evoca a ideia de realidade No periacuteodo claacutessico algo dito nomizetai eacute algo em que se acredita algo praticado por ser tido como correto3 Assim a busca de um paracircmetro para definiccedilatildeo do correto para o homem frequentemente esbarra nesses dois pontos O noacutemos visto como lei ou diretriz eacutetica eacute alcanccedilado pelo consenso dos homens requerendo concordacircncia e assentimento As dissensotildees decorrentes do fracasso em se chegar ao noacutemos comumente tendem a eleger como modelo imperativo o que incontestavelmente jaacute estaacute aiacute no mundo jaacute nos eacute dado de saiacuteda na nossa existecircncia o que eacute espontacircneo e livre de nossa opiniatildeo para ser como tal ou seja a natureza

O natural eacute universalmente reconhecido como anterior ao homem Essa anterioridade perante aquelas dissensotildees e baseada em tal reconhecimento universal ganha forccedila para se impor sobre as partes discordantes No entanto essa forccedila eacute transferida sutilmente de uma perspectiva de mera constataccedilatildeo factual (como eacute na natureza) para uma perspectiva de prescriccedilatildeo eacutetica (como deve ser entre os homens) Eacute neste ponto que se encontra a incongruecircncia da falaacutecia naturalista4 Kerferd diz que ldquoo apelo natildeo eacute para a natureza em geral mas para a natureza [] humana e isso deve ter tornado o apelo ainda mais faacutecil visto que a urgecircncia de muitas das demandas que brotam de nossa proacutepria natureza parece dar a elas uma clara forccedila prescritivardquo5 O dualismo noacutemos-phyacutesis foi utilizado para sustentar variadas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas apoiadas em seus diferentes polos Sua abordagem eacute notada no periacuteodo heleniacutestico perpassando a trageacutedia e a filosofia incluindo a sofiacutestica Na religiatildeo os proacuteprios deuses foram discutidos se eram realmente existentes ou se eram somente concebidos por convenccedilatildeo E assim tambeacutem para as divisotildees raciais e poliacuteticas da espeacutecie humana repercutindo desde a igualdade de direitos ateacute a escravidatildeo assim como dos regimes poliacuteticos igualitaacuterios ateacute a tirania

1 LIDELL H G SCOTT R A Greek-English Lexicon Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dfu2Fsisgt Acesso em 17 nov 2014 2 Cf supra Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Dno2Fmosgt Acesso em 17 nov 2014 3 Cf GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993 p 55 4 Termo cunhado por George Edward Moore que expotildee a confusatildeo entre a constataccedilatildeo de um fato natural e atribuiccedilatildeo de um valor eacutetico ldquo[] a mistake of this simple kind has commonly been made about good It may be true that all things which are good are also something else just as it is true that all things which are yellow produce a certain kind of vibration in the light And it is a fact that Ethics aims at discovering what are those other properties belonging to all things which are good But far too many philosophers have thought that when they named those other properties they were actually defining good that these properties in fact were simply not other but absolutely and entirely the same with goodness This view I propose to call the naturalistic fallacy []rdquo MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922 p 10 sect10 5 KERFERD G B O Movimento Sofista Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 p195

11

Sob o ponto de vista religioso a lei absoluta e universal que rege as leis humanas proveacutem de divindades De acordo com Heraacuteclito por exemplo ldquotodas as leis [noacutemoi6] humanas satildeo alimentadas por uma lei una a divina pois exerce seu domiacutenio tatildeo longe quanto se consente e basta e envolve todas as outrasrdquo7 Na trageacutedia a lei divina eacute comumente evocada para sobrepujar a lei humana como em Antiacutegona de Soacutefocles quando a personagem homocircnima recorre agrave lei divina para se eximir da lei do rei Creonte ldquoeu natildeo creio que teus decretos escritos pela matildeo de um mortal possam ser superiores agraves leis [nomima] natildeo escritas e imutaacuteveis dos deusesrdquo8 Agrave medida que as leis divinas passam a ser desacreditadas outras formas de realismo eacutetico-poliacutetico surgem em seu lugar Eacute o caso da natureza como veremos adiante Eacute comum encontrar autores que adotam posiccedilotildees ora proacute-phyacutesis (naturalista) ora proacute-noacutemos (consensualista) Assim a abordagem a seguir faraacute uma separaccedilatildeo em linhas gerais destas posturas permitindo-se poreacutem sempre uma criacutetica comparativa entre elas em todo seu decorrer

6 Nas citaccedilotildees dos textos filosoacuteficos gregos as palavras-chave e as de maior relevacircncia para este trabalho foram retiradas em transliteraccedilatildeo latina de Perseus Digital Library Disponiacutevel em ltwwwperseustuftsedugt 7 HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012 p115 fr 114 8 SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Rio de Janeiro DIFEL 2006 p 46-7 450-5

12

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSIS

Na sofiacutestica vemos uma multiplicidade de posiccedilotildees eacuteticas em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo de modo que natildeo haacute um soacute ldquolugar sofiacutesticordquo Um dos principais registros da sofiacutestica sobre o problema do dualismo entre convenccedilatildeo humana e natureza como criteacuterio eacutetico foi de Antifonte Em seu texto Sobre a Verdade do qual soacute nos chegaram fragmentos ele aborda a diferenccedila entre baacuterbaros e gregos como sendo meramente convencional apontando para a mesma natureza em ambos Antifonte ressalta que as caracteriacutesticas e funccedilotildees corporais satildeo as mesmas entre os dois por natureza e portanto necessaacuterias

agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros enquanto por natureza [phusei] todos em tudo nascemos igualmente dispostos para ser tanto baacuterbaros quanto gregos Eacute o caso de observar as coisas que por natureza [phusei] satildeo necessaacuterias a todos os homens a todos satildeo acessiacuteveis pelas

mesmas capacidades e em todas as coisas nenhum de noacutes eacute determinado nem como baacuterbaro nem como grego Pois todos respiramos o ar pela boca e pelas narinas [] e comemos todos com as matildeos [] e rimos quando nos alegramos [] no espiacuterito ou choramos quando sentimos dor e pela audiccedilatildeo acolhemos os sons e pela luz do sol com a vista vemos e com as matildeos trabalhamos e com os peacutes caminhamos [] segundo a medida do que agrada cada um dos homens e eles em conjunto se reuniram e estabeleceram as leis9

A importacircncia da anaacutelise deste texto reside no fato de para Antifonte as leis humanas serem impostas e as naturais necessaacuterias O sofista mostra que a necessidade imposta aos homens pela natureza (phyacutesei oacutenton anankaicircon pacirc sin antropoacuteis) de que gregos e baacuterbaros sejam iguais se sobrepotildee agraves leis (noacutemous) que agradam a determinadas sociedades ou etnias (ldquohomens em conjuntordquo) Quando agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros sob pretexto de obediecircncia agrave lei (noacutemos) violamos a igualdade natural Ao chamar ambas as partes da contenda de baacuterbaros Antifonte mostra que a diferenccedila eacutetnica (gregos e baacuterbaros) natildeo pode justificar a guerra Quanto agrave violaccedilatildeo das determinaccedilotildees da natureza Antifonte diz

As prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo impostas de fora as da natureza [phuseos] necessaacuterias E as prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo pactuadas e natildeo geradas naturalmente [phunta] enquanto as da natureza [phuseos] satildeo geradas naturalmente [phunta] e natildeo pactuadas [] Transgredindo as prescriccedilotildees das leis [noacutemima] com efeito se encoberto diante dos que compactuam aparta-se da vergonha e castigo [] Se alguma das coisas que nascem com a natureza [phusei] eacute violentada para aleacutem do possiacutevel mesmo que isso ficasse encoberto a todos os homens em nada o mal seria menor e se todos vissem em nada maior pois natildeo eacute prejudicado pela opiniatildeo mas pela verdade10

9 ANTIFONTE Fragmentos B44B DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 77-9 (grifo meu) 10 Ibid B44A DK p 73 (grifos meus)

13

Cassin aponta em relaccedilatildeo agrave diferenccedila social em Antifonte um duplo problema ldquoo racismo dos gregos e a relaccedilatildeo entre racismo e a democraciardquo11 Ao afirmar que gregos tambeacutem ldquobarbarizamrdquo (ldquofalam de modo ininteligiacutevelrdquo) Antifonte faz uma criacutetica ao etnocentrismo grego com base naturalista No entanto essa criacutetica encontra grande dificuldade ao se deparar com as leis atenienses legisladas de modo democraacutetico tendentes a valorizar seu proacuteprio povo

Antifonte coloca a natureza como paracircmetro de verdade (o agir conforme a natureza) de cuja puniccedilatildeo natildeo se pode escapar como das puniccedilotildees das leis humanas A transgressatildeo das leis convencionais humanas eacute passiacutevel de vergonha e puniccedilatildeo baseada em opiniatildeo humana ou quiccedilaacute de nenhuma caso ningueacutem tome conhecimento ao passo que a sanccedilatildeo para a transgressatildeo de lei natural eacute em funccedilatildeo da verdade livre de qualquer valoraccedilatildeo humana e por isso inescapaacutevel e amoral Contudo um conceito de verdade absoluta soacute se sustenta como uma ideia pois do ponto de vista pragmaacutetico para se chegar a ela seraacute sempre necessaacuterio um caminho de interpretaccedilatildeo humana Caminho esse que natildeo eacute uniacutevoco e satildeo nas bifurcaccedilotildees deste caminho interpretativo que os homens chegam paradoxalmente a diferentes ldquoverdades uacutenicas e absolutasrdquo Afinal quantas verdades diferentes a respeito da mesma coisa a civilizaccedilatildeo humana em toda sua histoacuteria jaacute natildeo produziu Neste texto Antifonte mostra a forccedila da natureza como uma necessidade que se impotildee a despeito da lei do homem A lei pode inclusive ser contra a natureza prescrevendo como o homem deve interpretar seus sentidos e como ele deve se portar ainda que de modo antagocircnico ao natural

muitas das coisas justas segundo a lei [noacutemon dikaiacuteon] estatildeo em peacute de guerra com a natureza [phusei] pois estatildeo dispostas por lei aos

olhos as coisas que devem [] ver e as coisas que natildeo devem e aos ouvidos as que eles devem ouvir e as que natildeo devem e agrave liacutengua as que ela deve dizer e as que natildeo deve e agraves matildeos as que ela deve fazer e as que natildeo devem e aos peacutes para onde devem ir e para onde natildeo devem e ao espiacuterito as coisas que deve desejar e as que natildeo deve Com efeito natildeo satildeo para a natureza [phusei] em nada mais afins

nem mais proacuteprias as coisas das quais as leis dissuadem os homens do que aquelas das quais persuadem12

O autor quer aqui mostrar que o noacutemos pode ditar como o homem deve emitir

juiacutezos sobre seus dons naturais como ouvir e falar Ele mostra tambeacutem que o interesse incutido na convenccedilatildeo da lei determina como o homem deve se portar na natureza ou ainda como a lei pretende determinar a eacutetica Mas eacute longe do julgamento dos olhos alheios ou seja em estado natural que o homem encontra sua verdadeira eacutetica A conveniecircncia do homem natildeo necessariamente favorece o curso da natureza Contudo segundo Antifonte esta deveria ser o referencial da sua eacutetica jaacute que como visto a natureza eacute a verdade e a necessidade a despeito de qualquer sentimento que possa afastaacute-lo desse referencial como a vergonha Esse eacute o ponto central desta

11 CASSIN B ldquoBarbarizarrdquo e ldquoCidadanizarrdquo In CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A Cidade e Seus Outros Rio de Janeiro Editora 34 1993 p 107 12 ANTIFONTE Acerca da Verdade B44A DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 73

14

discussatildeo ou seja qual referencial eacutetico deve-se adotar Nesse sentido continua Antifonte

o viver e o morrer satildeo da natureza [phuseos] e para eles [os homens]

o viver eacute uma das coisas convenientes e o morrer uma das natildeo-convenientes As coisas convenientes fixadas pelas leis [noacutemon] por seu turno satildeo grilhotildees da natureza [phuseos] as fixadas pela natureza [phuseos] livres De fato as coisas que produzem sofrimento por uma correta razatildeo natildeo satildeo proveitosas agrave natureza [phusin] mais do que as agradaacuteveis Pois as coisas convenientes

segundo a verdade natildeo devem prejudicar mas beneficiar 13

Ou seja para o curso da natureza pouco importa o que agrada ou desagrada ao homem A conveniecircncia humana sob forma de leis pode impedir o curso livre da natureza Por ver a natureza como fonte de verdade Antifonte preconiza que o homem deve alinhar sua conveniecircncia agrave natureza Contudo alcanccedilar a verdade da natureza tambeacutem natildeo pressupotildee sua interpretaccedilatildeo E essa interpretaccedilatildeo natildeo seria uma convenccedilatildeo ou no miacutenimo um artifiacutecio do homem O problema de se alcanccedilar a verdade da natureza portanto recai na inexorabilidade do artifiacutecio humano da interpretaccedilatildeo Ateacute que ponto essa interpretaccedilatildeo natildeo seria tendenciosa na proposta de Antifonte de se alinhar a conveniecircncia do homem agrave natureza

Guthrie esclarece porque Antifonte ainda em Sobre a Verdade apresenta diferentes conceitos de justiccedila14 para mostrar que as concepccedilotildees vigentes de moralidade satildeo inadequadas e que as formas da natureza eacute que devem ter preferecircncia15

Por fim temos em Antifonte a afirmaccedilatildeo de que a violaccedilatildeo das leis humanas eacute julgada pela opiniatildeo e a das leis naturais pela verdade Antifonte quer com isso mostrar que a natureza deve ser o referencial para a convenccedilatildeo humana ainda que esta ldquoverdade da naturezardquo seja contraacuteria a algumas conveniecircncias do homem Assim o sofista expotildee a dupla via de valoraccedilatildeo que o dualismo permite e que seraacute de modo controverso explorada por sofistas e filoacutesofos A sofiacutestica exploraraacute o dualismo com mais ecircnfase pelo vieacutes oposto qual seja o da justificativa eacutetico-poliacutetica baseada no noacutemos Como expocircs Cassin eacute caracteriacutestica da sofiacutestica a substituiccedilatildeo do fiacutesico pelo poliacutetico assim como o acordo discursivo (homologia) como base de legalidade poliacutetica16 Ainda segundo Cassin ldquoo consenso (homonoacuteia) eacute [] o efeito de uma operaccedilatildeo loacutegica no sentido lato capaz de voltar em seu favor as opiniotildees ou as praacuteticas contraditoacuterias que deveriam interdizecirc-lordquo17

No diaacutelogo Repuacuteblica Platatildeo inicia a justificativa de sua visatildeo poliacutetica do filoacutesofo-rei da cidade ideal (kallipolis) a partir da ideia de funccedilatildeo ou tarefa (eacutergon) especializada de cada coisa O personagem Soacutecrates em diaacutelogo com o personagem Trasiacutemaco sustenta que os objetos sejam manufaturados ou naturais possuem um eacutergon especiacutefico Esta funccedilatildeo eacute ou exclusiva de um determinado objeto ou realizada

13 Ibid p 73-75 B 44A DK 14 A saber (1) Conformidade agraves leis e costumes de seu paiacutes (2) natildeo causar injuacuteria exceto em resposta a uma injuacuteria recebida (3) nem causar nem sofrer injuacuteria 15 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge University Press 1965 III p 112 16 Cf CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Satildeo Paulo Editora 34 2005 p 71 17 CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Satildeo Paulo Siciliano 1990 p79

15

por este com mais perfeiccedilatildeo18 Assim Soacutecrates leva Trasiacutemaco a concordar que o cavalo tem uma funccedilatildeo determinada19 que os oacutergatildeos sensoriais tecircm suas funccedilotildees especiacuteficas (a saber olhos visatildeo e ouvidos audiccedilatildeo20) e tambeacutem que objetos cortantes como a faca satildeo ideais para cortar os sarmentos de uma vinha21

Logo adiante Platatildeo faz Soacutecrates propor que essa funccedilatildeo eacute uma virtude (areteacute) do objeto22 Esta proposiccedilatildeo eacute o ponto onde Platatildeo atribui um valor moral elevado (virtude) a uma caracteriacutestica natural do objeto qual seja a sua funccedilatildeo (ainda que ele tambeacutem tenha incluiacutedo objetos manufaturados na comparaccedilatildeo) Seu proacuteximo passo eacute expor a funccedilatildeo da alma e por consequecircncia a sua virtude Tal funccedilatildeo ou virtude eacute o governo da proacutepria vida23 Desta forma a vida bem governada pela alma (de acordo com a justiccedila) alcanccedilaraacute a felicidade ou eudaimoniacutea24 A mesma estrutura argumentativa aparece no momento da fundaccedilatildeo de uma cidade imaginaacuteria pelos personagens Soacutecrates e Adimanto25 quando eles chegam agrave conclusatildeo de que a especializaccedilatildeo de cada cidadatildeo em diferentes ofiacutecios [erga] de acordo com a sua natureza [phusin]26 eacute a forma mais proveitosa possiacutevel de distribuiccedilatildeo da forccedila de trabalho na cidade Eacute notaacutevel aqui a intenccedilatildeo de fazer a profissatildeo ou a funccedilatildeo de cada um ser vista como atributo natural Para deixar isso patente Soacutecrates declara ldquocada um de noacutes natildeo nasceu igual ao outro mas com naturezas [phusin] diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa [ergou praxei]rdquo27

O mesmo argumento naturalista aparece no diaacutelogo Craacutetilo onde Soacutecrates pretende justificar uma accedilatildeo correta a partir de sua proacutepria natureza ou seja ldquoa natureza da accedilatildeordquo Ele afirma que ldquoelas [as accedilotildees] se realizam segundo sua proacutepria natureza [phusin] natildeo conforme a opiniatildeo que dela fizermosrdquo28 Assim como na Repuacuteblica a natureza de cada coisa dita sua funccedilatildeo ou seja uma coisa deve ser feita

ldquosegundo os imperativos da natureza [phusei]rdquo 29 A natureza eacute o criteacuterio para o que eacute certo ldquono caso de querermos queimar alguma coisa natildeo devemos fazecirc-lo de qualquer modo como nos ditar a fantasia [conforme todas as opiniotildees kata pasan doxan30] mas pelo modo certo que eacute o modo indicado pela natureza [epephukei] para queimarrdquo31 O argumento da accedilatildeo naturalmente correta vai evoluir agrave accedilatildeo de falar e nomear as coisas culminando no ponto central do diaacutelogo (Craacutetilo) que eacute a accedilatildeo de nomear as coisas conforme a natureza 32 Assim a competecircncia de forjar nomes seraacute

18 Cf PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 352e 19 Ibid 352d-e 20 Ibid 352e 21 Ibid 353a 22 Ibid 353b-c 23 Ibid 353d 24 Ibid 353e - 354a 25 Ibid 369c 26 Ibid 370c 27 Ibid 370a-b (grifos meus) 28 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - CraacutetiloBeleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387a 29 Ibid 389c 30 Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101713Atext3DCrat3Asection3D387bgt acesso em 14 mar 2016 (Traduccedilatildeo minha) 31 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387b 32 Cf supra 387b-d

16

do ldquofazedor de nomesrdquo [onomatourgou] ou ldquolegislador [nomothetēs]rdquo33 Uma consequecircncia eacutetica interessante dessa proposta naturalista para os nomes seraacute a prescriccedilatildeo de que todo nome inclusive o de pessoas deveraacute corresponder a sua etimologia agrave sua natureza Como exemplo Soacutecrates diz que o iacutempio natildeo deveraacute se chamar Teoacutefilo (amigo de Deus) nem Mnesteu (lembrado de Deus)34 Outra via naturalista da justificativa dos nomes de acordo com a essecircncia das coisas nomeadas eacute o movimento feito pela boca para a pronuacutencia dos verbos de acordo com o movimento que esse verbo representa35 Apesar de Soacutecrates prescrever a perspectiva naturalista para o nome das coisas ele ao fim do diaacutelogo reconhece o uso corrente da convenccedilatildeo ldquoreceio muito que de fato [] seja bastante precaacuteria a tal forccedila de atraccedilatildeo da semelhanccedila e que nos vejamos forccedilados a recorrer a esse expediente banal a convenccedilatildeo [tē sunthēkē] para a correta imposiccedilatildeo dos nomes [onomatōn

orthotēta]rdquo36 Na Repuacuteblica a naturalizaccedilatildeo da virtude vai ter uma importante repercussatildeo

eacutetica ao se estabelecer quem no diaacutelogo definiraacute o ofiacutecio natural de cada cidadatildeo Soacutecrates diz a Adimanto ldquo[] eacute tarefa nossa segundo parece e se na verdade formos capazes disso proceder agrave escolha daqueles de qualidades e natureza [phuseōs] apropriadas para a custoacutedia da cidade37

Essa distinta capacidade que tais personagens filoacutesofos tecircm de determinar a natureza dos cidadatildeos vai se elevar agrave escolha dos guardiotildees da cidade Soacutecrates inicia uma comparaccedilatildeo da natureza dos animais com a natureza necessaacuteria aos guardiotildees Sugestivamente ele indaga Adimanto ldquohaacute alguma diferenccedila entre a natureza (phusin) de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascidordquo38 A valentia e porte fiacutesico do guardiatildeo deveratildeo ser como os de um catildeo ou cavalo mas ao mesmo tempo ele precisaraacute ser por natureza [phusei] doacutecil com os concidadatildeos como um catildeo de boa raccedila39 Essa capacidade do catildeo de distinguir amigos de inimigos eacute dada pelo seu ldquoinstinto filosoacutefico naturalrdquo [philosophos tēn phusin]40 Neste ponto temos uma passagem sutil mas importantiacutessima a naturalizaccedilatildeo do pendor filosoacutefico Esta seraacute crucial para justificar o filoacutesofo como governante a partir de uma imposiccedilatildeo da natureza com a forccedila do que eacute necessaacuterio e inescapaacutevel tal como disse Antifonte contudo aqui usado para hierarquizar homens ao inveacutes de igualaacute-los Quanto agrave natureza do guardiatildeo reafirma Soacutecrates ldquoquando procuramos um guarda dessa espeacutecie natildeo vamos contra a naturezardquo41 Quanto agrave relaccedilatildeo entre a filosofia e a natureza (do catildeo capaz de tal distinccedilatildeo) Soacutecrates afirma ldquomas sem duacutevida que demonstra a engenhosa conformaccedilatildeo da sua natureza [tēs phuseōs] que eacute

verdadeiramente amiga de saberrdquo42 E ainda sobre esta justificativa naturalista ele declara

33 Ibid 389a 34 Cf supra 394d-e 35 Cf supra 426c-427c 36 Ibid 435c 37 PLATAtildeO A Repuacuteblica 374e (grifo meu) 38 Ibid 375a (grifo meu) 39 Ibid 375e 40 Ibid 41 Ibid 375e 42 Ibid 376a-b (grifo meu)

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

4

Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciecircncias Humanas e Filosofia

Curso de Graduaccedilatildeo em Filosofia

MAURIacuteCIO ALVES DE AZEREDO

DIFERENTES PERSPECTIVAS DO DUALISMO NOacuteMOS-PHYacuteSIS NA FILOSOFIA ANTIGA E SUAS CONSEQUEcircNCIAS EacuteTICAS

BANCA EXAMINADORA

Prof Dr Alexandre Costa (Orientador)

Universidade Federal Fluminense

Prof Fernando Joseacute Fagundes Ribeiro

Universidade Federal Fluminense

Prof Andreacute Constantino Yazbek

Universidade Federal Fluminense

NITEROacuteI

2018

5

DEDICATOacuteRIA

Dedico este trabalho a minhas filhas Brenda e Letiacutecia na esperanccedila de que

tenham pleno desenvolvimento intelectual sempre de forma livre e convicta de seus

valores

6

O costume eacute a forccedila que fala mais forte do que a natureza E nos faz dar provas de fraqueza

Noel Rosa

7

RESUMO

A busca por uma justificativa universal para a conduta eacutetica tem encontrado na observaccedilatildeo da natureza um pretenso ponto de apoio incontestaacutevel A natureza por apresentar geraccedilatildeo (origem) de todos os seus seres de forma independente de accedilatildeo e deliberaccedilatildeo do homem tem sido usada como uma referecircncia para um modelo das accedilotildees humanas Como o estabelecimento deste ideal eacutetico frequentemente eacute embargado pela falta de consenso entre os homens o argumento naturalista ganha autoridade por esse pressuposto de imparcialidade Desta forma o fato de algo ser como tal na natureza tem sido visto como dever ser como tal A passagem de uma abordagem descritiva (como eacute) da natureza para uma abordagem prescritiva ou normativa (como deve ser) foi usada para justificar posturas eacuteticas O dualismo noacutemos-phyacutesis ou seja a distinccedilatildeo entre as normas que tecircm origem na convenccedilatildeo humana e o naturalismo eacute o ponto central de anaacutelise deste trabalho que pretende mostrar como esse dualismo foi abordado na sofiacutestica e na filosofia antiga para propoacutesitos eacuteticos e poliacuteticos Nesta anaacutelise seratildeo confrontadas a eacutetica contratualista (convencionalista) e a eacutetica naturalista na filosofia grega

Palavras-chave natureza naturalismo phyacutesis noacutemos lei convenccedilatildeo

8

ABSTRACT

The search for a universal justification for ethical conduct has found in the observation of nature an unquestionable support point Nature has been used as a guide for a human action model for it presents generation (origin) of all its beings regardless of manacutes deliberation As the settlement of such ethical ideal is often hindered by the lack of consensus among men the naturalistic argument gains authority due to this assumption of impartiality Thus the fact of something being as such in nature has been seen as a must be as such The shift from a descriptive approach (as it is) to a prescriptive approach (as it must be) has been used to justify ethical stances

The noacutemos-phyacutesis dualism that is the distinction between norms originated from human convention and naturalism itself is the main point of this paper which intends to show how such dualism was approached in sophistry and ancient philosophy for ethical and political purposes This analysis shall confront contractualist ethic with naturalist ethic in ancient philosophy

Keywords nature naturalism phyacutesis noacutemos law convention

9

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 10

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSYS 12

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS 34

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE 38

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 45

6 FONTES - REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS E BIBLIOGRAFIA 48

10

1 INTRODUCcedilAtildeO

O termo phyacutesis pode ser entendido como ldquoorigem [] forma ou constituiccedilatildeo natural de uma pessoa ou coisa como resultado de crescimento [ou a proacutepria] naturezardquo1 Noacutemos eacute o costume o uso a lei ou decreto2 O termo ldquonaturezardquo (phyacutesis) quando contrastado com ldquoleirdquo (noacutemos) evoca a ideia de realidade No periacuteodo claacutessico algo dito nomizetai eacute algo em que se acredita algo praticado por ser tido como correto3 Assim a busca de um paracircmetro para definiccedilatildeo do correto para o homem frequentemente esbarra nesses dois pontos O noacutemos visto como lei ou diretriz eacutetica eacute alcanccedilado pelo consenso dos homens requerendo concordacircncia e assentimento As dissensotildees decorrentes do fracasso em se chegar ao noacutemos comumente tendem a eleger como modelo imperativo o que incontestavelmente jaacute estaacute aiacute no mundo jaacute nos eacute dado de saiacuteda na nossa existecircncia o que eacute espontacircneo e livre de nossa opiniatildeo para ser como tal ou seja a natureza

O natural eacute universalmente reconhecido como anterior ao homem Essa anterioridade perante aquelas dissensotildees e baseada em tal reconhecimento universal ganha forccedila para se impor sobre as partes discordantes No entanto essa forccedila eacute transferida sutilmente de uma perspectiva de mera constataccedilatildeo factual (como eacute na natureza) para uma perspectiva de prescriccedilatildeo eacutetica (como deve ser entre os homens) Eacute neste ponto que se encontra a incongruecircncia da falaacutecia naturalista4 Kerferd diz que ldquoo apelo natildeo eacute para a natureza em geral mas para a natureza [] humana e isso deve ter tornado o apelo ainda mais faacutecil visto que a urgecircncia de muitas das demandas que brotam de nossa proacutepria natureza parece dar a elas uma clara forccedila prescritivardquo5 O dualismo noacutemos-phyacutesis foi utilizado para sustentar variadas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas apoiadas em seus diferentes polos Sua abordagem eacute notada no periacuteodo heleniacutestico perpassando a trageacutedia e a filosofia incluindo a sofiacutestica Na religiatildeo os proacuteprios deuses foram discutidos se eram realmente existentes ou se eram somente concebidos por convenccedilatildeo E assim tambeacutem para as divisotildees raciais e poliacuteticas da espeacutecie humana repercutindo desde a igualdade de direitos ateacute a escravidatildeo assim como dos regimes poliacuteticos igualitaacuterios ateacute a tirania

1 LIDELL H G SCOTT R A Greek-English Lexicon Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dfu2Fsisgt Acesso em 17 nov 2014 2 Cf supra Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Dno2Fmosgt Acesso em 17 nov 2014 3 Cf GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993 p 55 4 Termo cunhado por George Edward Moore que expotildee a confusatildeo entre a constataccedilatildeo de um fato natural e atribuiccedilatildeo de um valor eacutetico ldquo[] a mistake of this simple kind has commonly been made about good It may be true that all things which are good are also something else just as it is true that all things which are yellow produce a certain kind of vibration in the light And it is a fact that Ethics aims at discovering what are those other properties belonging to all things which are good But far too many philosophers have thought that when they named those other properties they were actually defining good that these properties in fact were simply not other but absolutely and entirely the same with goodness This view I propose to call the naturalistic fallacy []rdquo MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922 p 10 sect10 5 KERFERD G B O Movimento Sofista Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 p195

11

Sob o ponto de vista religioso a lei absoluta e universal que rege as leis humanas proveacutem de divindades De acordo com Heraacuteclito por exemplo ldquotodas as leis [noacutemoi6] humanas satildeo alimentadas por uma lei una a divina pois exerce seu domiacutenio tatildeo longe quanto se consente e basta e envolve todas as outrasrdquo7 Na trageacutedia a lei divina eacute comumente evocada para sobrepujar a lei humana como em Antiacutegona de Soacutefocles quando a personagem homocircnima recorre agrave lei divina para se eximir da lei do rei Creonte ldquoeu natildeo creio que teus decretos escritos pela matildeo de um mortal possam ser superiores agraves leis [nomima] natildeo escritas e imutaacuteveis dos deusesrdquo8 Agrave medida que as leis divinas passam a ser desacreditadas outras formas de realismo eacutetico-poliacutetico surgem em seu lugar Eacute o caso da natureza como veremos adiante Eacute comum encontrar autores que adotam posiccedilotildees ora proacute-phyacutesis (naturalista) ora proacute-noacutemos (consensualista) Assim a abordagem a seguir faraacute uma separaccedilatildeo em linhas gerais destas posturas permitindo-se poreacutem sempre uma criacutetica comparativa entre elas em todo seu decorrer

6 Nas citaccedilotildees dos textos filosoacuteficos gregos as palavras-chave e as de maior relevacircncia para este trabalho foram retiradas em transliteraccedilatildeo latina de Perseus Digital Library Disponiacutevel em ltwwwperseustuftsedugt 7 HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012 p115 fr 114 8 SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Rio de Janeiro DIFEL 2006 p 46-7 450-5

12

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSIS

Na sofiacutestica vemos uma multiplicidade de posiccedilotildees eacuteticas em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo de modo que natildeo haacute um soacute ldquolugar sofiacutesticordquo Um dos principais registros da sofiacutestica sobre o problema do dualismo entre convenccedilatildeo humana e natureza como criteacuterio eacutetico foi de Antifonte Em seu texto Sobre a Verdade do qual soacute nos chegaram fragmentos ele aborda a diferenccedila entre baacuterbaros e gregos como sendo meramente convencional apontando para a mesma natureza em ambos Antifonte ressalta que as caracteriacutesticas e funccedilotildees corporais satildeo as mesmas entre os dois por natureza e portanto necessaacuterias

agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros enquanto por natureza [phusei] todos em tudo nascemos igualmente dispostos para ser tanto baacuterbaros quanto gregos Eacute o caso de observar as coisas que por natureza [phusei] satildeo necessaacuterias a todos os homens a todos satildeo acessiacuteveis pelas

mesmas capacidades e em todas as coisas nenhum de noacutes eacute determinado nem como baacuterbaro nem como grego Pois todos respiramos o ar pela boca e pelas narinas [] e comemos todos com as matildeos [] e rimos quando nos alegramos [] no espiacuterito ou choramos quando sentimos dor e pela audiccedilatildeo acolhemos os sons e pela luz do sol com a vista vemos e com as matildeos trabalhamos e com os peacutes caminhamos [] segundo a medida do que agrada cada um dos homens e eles em conjunto se reuniram e estabeleceram as leis9

A importacircncia da anaacutelise deste texto reside no fato de para Antifonte as leis humanas serem impostas e as naturais necessaacuterias O sofista mostra que a necessidade imposta aos homens pela natureza (phyacutesei oacutenton anankaicircon pacirc sin antropoacuteis) de que gregos e baacuterbaros sejam iguais se sobrepotildee agraves leis (noacutemous) que agradam a determinadas sociedades ou etnias (ldquohomens em conjuntordquo) Quando agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros sob pretexto de obediecircncia agrave lei (noacutemos) violamos a igualdade natural Ao chamar ambas as partes da contenda de baacuterbaros Antifonte mostra que a diferenccedila eacutetnica (gregos e baacuterbaros) natildeo pode justificar a guerra Quanto agrave violaccedilatildeo das determinaccedilotildees da natureza Antifonte diz

As prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo impostas de fora as da natureza [phuseos] necessaacuterias E as prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo pactuadas e natildeo geradas naturalmente [phunta] enquanto as da natureza [phuseos] satildeo geradas naturalmente [phunta] e natildeo pactuadas [] Transgredindo as prescriccedilotildees das leis [noacutemima] com efeito se encoberto diante dos que compactuam aparta-se da vergonha e castigo [] Se alguma das coisas que nascem com a natureza [phusei] eacute violentada para aleacutem do possiacutevel mesmo que isso ficasse encoberto a todos os homens em nada o mal seria menor e se todos vissem em nada maior pois natildeo eacute prejudicado pela opiniatildeo mas pela verdade10

9 ANTIFONTE Fragmentos B44B DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 77-9 (grifo meu) 10 Ibid B44A DK p 73 (grifos meus)

13

Cassin aponta em relaccedilatildeo agrave diferenccedila social em Antifonte um duplo problema ldquoo racismo dos gregos e a relaccedilatildeo entre racismo e a democraciardquo11 Ao afirmar que gregos tambeacutem ldquobarbarizamrdquo (ldquofalam de modo ininteligiacutevelrdquo) Antifonte faz uma criacutetica ao etnocentrismo grego com base naturalista No entanto essa criacutetica encontra grande dificuldade ao se deparar com as leis atenienses legisladas de modo democraacutetico tendentes a valorizar seu proacuteprio povo

Antifonte coloca a natureza como paracircmetro de verdade (o agir conforme a natureza) de cuja puniccedilatildeo natildeo se pode escapar como das puniccedilotildees das leis humanas A transgressatildeo das leis convencionais humanas eacute passiacutevel de vergonha e puniccedilatildeo baseada em opiniatildeo humana ou quiccedilaacute de nenhuma caso ningueacutem tome conhecimento ao passo que a sanccedilatildeo para a transgressatildeo de lei natural eacute em funccedilatildeo da verdade livre de qualquer valoraccedilatildeo humana e por isso inescapaacutevel e amoral Contudo um conceito de verdade absoluta soacute se sustenta como uma ideia pois do ponto de vista pragmaacutetico para se chegar a ela seraacute sempre necessaacuterio um caminho de interpretaccedilatildeo humana Caminho esse que natildeo eacute uniacutevoco e satildeo nas bifurcaccedilotildees deste caminho interpretativo que os homens chegam paradoxalmente a diferentes ldquoverdades uacutenicas e absolutasrdquo Afinal quantas verdades diferentes a respeito da mesma coisa a civilizaccedilatildeo humana em toda sua histoacuteria jaacute natildeo produziu Neste texto Antifonte mostra a forccedila da natureza como uma necessidade que se impotildee a despeito da lei do homem A lei pode inclusive ser contra a natureza prescrevendo como o homem deve interpretar seus sentidos e como ele deve se portar ainda que de modo antagocircnico ao natural

muitas das coisas justas segundo a lei [noacutemon dikaiacuteon] estatildeo em peacute de guerra com a natureza [phusei] pois estatildeo dispostas por lei aos

olhos as coisas que devem [] ver e as coisas que natildeo devem e aos ouvidos as que eles devem ouvir e as que natildeo devem e agrave liacutengua as que ela deve dizer e as que natildeo deve e agraves matildeos as que ela deve fazer e as que natildeo devem e aos peacutes para onde devem ir e para onde natildeo devem e ao espiacuterito as coisas que deve desejar e as que natildeo deve Com efeito natildeo satildeo para a natureza [phusei] em nada mais afins

nem mais proacuteprias as coisas das quais as leis dissuadem os homens do que aquelas das quais persuadem12

O autor quer aqui mostrar que o noacutemos pode ditar como o homem deve emitir

juiacutezos sobre seus dons naturais como ouvir e falar Ele mostra tambeacutem que o interesse incutido na convenccedilatildeo da lei determina como o homem deve se portar na natureza ou ainda como a lei pretende determinar a eacutetica Mas eacute longe do julgamento dos olhos alheios ou seja em estado natural que o homem encontra sua verdadeira eacutetica A conveniecircncia do homem natildeo necessariamente favorece o curso da natureza Contudo segundo Antifonte esta deveria ser o referencial da sua eacutetica jaacute que como visto a natureza eacute a verdade e a necessidade a despeito de qualquer sentimento que possa afastaacute-lo desse referencial como a vergonha Esse eacute o ponto central desta

11 CASSIN B ldquoBarbarizarrdquo e ldquoCidadanizarrdquo In CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A Cidade e Seus Outros Rio de Janeiro Editora 34 1993 p 107 12 ANTIFONTE Acerca da Verdade B44A DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 73

14

discussatildeo ou seja qual referencial eacutetico deve-se adotar Nesse sentido continua Antifonte

o viver e o morrer satildeo da natureza [phuseos] e para eles [os homens]

o viver eacute uma das coisas convenientes e o morrer uma das natildeo-convenientes As coisas convenientes fixadas pelas leis [noacutemon] por seu turno satildeo grilhotildees da natureza [phuseos] as fixadas pela natureza [phuseos] livres De fato as coisas que produzem sofrimento por uma correta razatildeo natildeo satildeo proveitosas agrave natureza [phusin] mais do que as agradaacuteveis Pois as coisas convenientes

segundo a verdade natildeo devem prejudicar mas beneficiar 13

Ou seja para o curso da natureza pouco importa o que agrada ou desagrada ao homem A conveniecircncia humana sob forma de leis pode impedir o curso livre da natureza Por ver a natureza como fonte de verdade Antifonte preconiza que o homem deve alinhar sua conveniecircncia agrave natureza Contudo alcanccedilar a verdade da natureza tambeacutem natildeo pressupotildee sua interpretaccedilatildeo E essa interpretaccedilatildeo natildeo seria uma convenccedilatildeo ou no miacutenimo um artifiacutecio do homem O problema de se alcanccedilar a verdade da natureza portanto recai na inexorabilidade do artifiacutecio humano da interpretaccedilatildeo Ateacute que ponto essa interpretaccedilatildeo natildeo seria tendenciosa na proposta de Antifonte de se alinhar a conveniecircncia do homem agrave natureza

Guthrie esclarece porque Antifonte ainda em Sobre a Verdade apresenta diferentes conceitos de justiccedila14 para mostrar que as concepccedilotildees vigentes de moralidade satildeo inadequadas e que as formas da natureza eacute que devem ter preferecircncia15

Por fim temos em Antifonte a afirmaccedilatildeo de que a violaccedilatildeo das leis humanas eacute julgada pela opiniatildeo e a das leis naturais pela verdade Antifonte quer com isso mostrar que a natureza deve ser o referencial para a convenccedilatildeo humana ainda que esta ldquoverdade da naturezardquo seja contraacuteria a algumas conveniecircncias do homem Assim o sofista expotildee a dupla via de valoraccedilatildeo que o dualismo permite e que seraacute de modo controverso explorada por sofistas e filoacutesofos A sofiacutestica exploraraacute o dualismo com mais ecircnfase pelo vieacutes oposto qual seja o da justificativa eacutetico-poliacutetica baseada no noacutemos Como expocircs Cassin eacute caracteriacutestica da sofiacutestica a substituiccedilatildeo do fiacutesico pelo poliacutetico assim como o acordo discursivo (homologia) como base de legalidade poliacutetica16 Ainda segundo Cassin ldquoo consenso (homonoacuteia) eacute [] o efeito de uma operaccedilatildeo loacutegica no sentido lato capaz de voltar em seu favor as opiniotildees ou as praacuteticas contraditoacuterias que deveriam interdizecirc-lordquo17

No diaacutelogo Repuacuteblica Platatildeo inicia a justificativa de sua visatildeo poliacutetica do filoacutesofo-rei da cidade ideal (kallipolis) a partir da ideia de funccedilatildeo ou tarefa (eacutergon) especializada de cada coisa O personagem Soacutecrates em diaacutelogo com o personagem Trasiacutemaco sustenta que os objetos sejam manufaturados ou naturais possuem um eacutergon especiacutefico Esta funccedilatildeo eacute ou exclusiva de um determinado objeto ou realizada

13 Ibid p 73-75 B 44A DK 14 A saber (1) Conformidade agraves leis e costumes de seu paiacutes (2) natildeo causar injuacuteria exceto em resposta a uma injuacuteria recebida (3) nem causar nem sofrer injuacuteria 15 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge University Press 1965 III p 112 16 Cf CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Satildeo Paulo Editora 34 2005 p 71 17 CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Satildeo Paulo Siciliano 1990 p79

15

por este com mais perfeiccedilatildeo18 Assim Soacutecrates leva Trasiacutemaco a concordar que o cavalo tem uma funccedilatildeo determinada19 que os oacutergatildeos sensoriais tecircm suas funccedilotildees especiacuteficas (a saber olhos visatildeo e ouvidos audiccedilatildeo20) e tambeacutem que objetos cortantes como a faca satildeo ideais para cortar os sarmentos de uma vinha21

Logo adiante Platatildeo faz Soacutecrates propor que essa funccedilatildeo eacute uma virtude (areteacute) do objeto22 Esta proposiccedilatildeo eacute o ponto onde Platatildeo atribui um valor moral elevado (virtude) a uma caracteriacutestica natural do objeto qual seja a sua funccedilatildeo (ainda que ele tambeacutem tenha incluiacutedo objetos manufaturados na comparaccedilatildeo) Seu proacuteximo passo eacute expor a funccedilatildeo da alma e por consequecircncia a sua virtude Tal funccedilatildeo ou virtude eacute o governo da proacutepria vida23 Desta forma a vida bem governada pela alma (de acordo com a justiccedila) alcanccedilaraacute a felicidade ou eudaimoniacutea24 A mesma estrutura argumentativa aparece no momento da fundaccedilatildeo de uma cidade imaginaacuteria pelos personagens Soacutecrates e Adimanto25 quando eles chegam agrave conclusatildeo de que a especializaccedilatildeo de cada cidadatildeo em diferentes ofiacutecios [erga] de acordo com a sua natureza [phusin]26 eacute a forma mais proveitosa possiacutevel de distribuiccedilatildeo da forccedila de trabalho na cidade Eacute notaacutevel aqui a intenccedilatildeo de fazer a profissatildeo ou a funccedilatildeo de cada um ser vista como atributo natural Para deixar isso patente Soacutecrates declara ldquocada um de noacutes natildeo nasceu igual ao outro mas com naturezas [phusin] diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa [ergou praxei]rdquo27

O mesmo argumento naturalista aparece no diaacutelogo Craacutetilo onde Soacutecrates pretende justificar uma accedilatildeo correta a partir de sua proacutepria natureza ou seja ldquoa natureza da accedilatildeordquo Ele afirma que ldquoelas [as accedilotildees] se realizam segundo sua proacutepria natureza [phusin] natildeo conforme a opiniatildeo que dela fizermosrdquo28 Assim como na Repuacuteblica a natureza de cada coisa dita sua funccedilatildeo ou seja uma coisa deve ser feita

ldquosegundo os imperativos da natureza [phusei]rdquo 29 A natureza eacute o criteacuterio para o que eacute certo ldquono caso de querermos queimar alguma coisa natildeo devemos fazecirc-lo de qualquer modo como nos ditar a fantasia [conforme todas as opiniotildees kata pasan doxan30] mas pelo modo certo que eacute o modo indicado pela natureza [epephukei] para queimarrdquo31 O argumento da accedilatildeo naturalmente correta vai evoluir agrave accedilatildeo de falar e nomear as coisas culminando no ponto central do diaacutelogo (Craacutetilo) que eacute a accedilatildeo de nomear as coisas conforme a natureza 32 Assim a competecircncia de forjar nomes seraacute

18 Cf PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 352e 19 Ibid 352d-e 20 Ibid 352e 21 Ibid 353a 22 Ibid 353b-c 23 Ibid 353d 24 Ibid 353e - 354a 25 Ibid 369c 26 Ibid 370c 27 Ibid 370a-b (grifos meus) 28 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - CraacutetiloBeleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387a 29 Ibid 389c 30 Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101713Atext3DCrat3Asection3D387bgt acesso em 14 mar 2016 (Traduccedilatildeo minha) 31 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387b 32 Cf supra 387b-d

16

do ldquofazedor de nomesrdquo [onomatourgou] ou ldquolegislador [nomothetēs]rdquo33 Uma consequecircncia eacutetica interessante dessa proposta naturalista para os nomes seraacute a prescriccedilatildeo de que todo nome inclusive o de pessoas deveraacute corresponder a sua etimologia agrave sua natureza Como exemplo Soacutecrates diz que o iacutempio natildeo deveraacute se chamar Teoacutefilo (amigo de Deus) nem Mnesteu (lembrado de Deus)34 Outra via naturalista da justificativa dos nomes de acordo com a essecircncia das coisas nomeadas eacute o movimento feito pela boca para a pronuacutencia dos verbos de acordo com o movimento que esse verbo representa35 Apesar de Soacutecrates prescrever a perspectiva naturalista para o nome das coisas ele ao fim do diaacutelogo reconhece o uso corrente da convenccedilatildeo ldquoreceio muito que de fato [] seja bastante precaacuteria a tal forccedila de atraccedilatildeo da semelhanccedila e que nos vejamos forccedilados a recorrer a esse expediente banal a convenccedilatildeo [tē sunthēkē] para a correta imposiccedilatildeo dos nomes [onomatōn

orthotēta]rdquo36 Na Repuacuteblica a naturalizaccedilatildeo da virtude vai ter uma importante repercussatildeo

eacutetica ao se estabelecer quem no diaacutelogo definiraacute o ofiacutecio natural de cada cidadatildeo Soacutecrates diz a Adimanto ldquo[] eacute tarefa nossa segundo parece e se na verdade formos capazes disso proceder agrave escolha daqueles de qualidades e natureza [phuseōs] apropriadas para a custoacutedia da cidade37

Essa distinta capacidade que tais personagens filoacutesofos tecircm de determinar a natureza dos cidadatildeos vai se elevar agrave escolha dos guardiotildees da cidade Soacutecrates inicia uma comparaccedilatildeo da natureza dos animais com a natureza necessaacuteria aos guardiotildees Sugestivamente ele indaga Adimanto ldquohaacute alguma diferenccedila entre a natureza (phusin) de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascidordquo38 A valentia e porte fiacutesico do guardiatildeo deveratildeo ser como os de um catildeo ou cavalo mas ao mesmo tempo ele precisaraacute ser por natureza [phusei] doacutecil com os concidadatildeos como um catildeo de boa raccedila39 Essa capacidade do catildeo de distinguir amigos de inimigos eacute dada pelo seu ldquoinstinto filosoacutefico naturalrdquo [philosophos tēn phusin]40 Neste ponto temos uma passagem sutil mas importantiacutessima a naturalizaccedilatildeo do pendor filosoacutefico Esta seraacute crucial para justificar o filoacutesofo como governante a partir de uma imposiccedilatildeo da natureza com a forccedila do que eacute necessaacuterio e inescapaacutevel tal como disse Antifonte contudo aqui usado para hierarquizar homens ao inveacutes de igualaacute-los Quanto agrave natureza do guardiatildeo reafirma Soacutecrates ldquoquando procuramos um guarda dessa espeacutecie natildeo vamos contra a naturezardquo41 Quanto agrave relaccedilatildeo entre a filosofia e a natureza (do catildeo capaz de tal distinccedilatildeo) Soacutecrates afirma ldquomas sem duacutevida que demonstra a engenhosa conformaccedilatildeo da sua natureza [tēs phuseōs] que eacute

verdadeiramente amiga de saberrdquo42 E ainda sobre esta justificativa naturalista ele declara

33 Ibid 389a 34 Cf supra 394d-e 35 Cf supra 426c-427c 36 Ibid 435c 37 PLATAtildeO A Repuacuteblica 374e (grifo meu) 38 Ibid 375a (grifo meu) 39 Ibid 375e 40 Ibid 41 Ibid 375e 42 Ibid 376a-b (grifo meu)

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

5

DEDICATOacuteRIA

Dedico este trabalho a minhas filhas Brenda e Letiacutecia na esperanccedila de que

tenham pleno desenvolvimento intelectual sempre de forma livre e convicta de seus

valores

6

O costume eacute a forccedila que fala mais forte do que a natureza E nos faz dar provas de fraqueza

Noel Rosa

7

RESUMO

A busca por uma justificativa universal para a conduta eacutetica tem encontrado na observaccedilatildeo da natureza um pretenso ponto de apoio incontestaacutevel A natureza por apresentar geraccedilatildeo (origem) de todos os seus seres de forma independente de accedilatildeo e deliberaccedilatildeo do homem tem sido usada como uma referecircncia para um modelo das accedilotildees humanas Como o estabelecimento deste ideal eacutetico frequentemente eacute embargado pela falta de consenso entre os homens o argumento naturalista ganha autoridade por esse pressuposto de imparcialidade Desta forma o fato de algo ser como tal na natureza tem sido visto como dever ser como tal A passagem de uma abordagem descritiva (como eacute) da natureza para uma abordagem prescritiva ou normativa (como deve ser) foi usada para justificar posturas eacuteticas O dualismo noacutemos-phyacutesis ou seja a distinccedilatildeo entre as normas que tecircm origem na convenccedilatildeo humana e o naturalismo eacute o ponto central de anaacutelise deste trabalho que pretende mostrar como esse dualismo foi abordado na sofiacutestica e na filosofia antiga para propoacutesitos eacuteticos e poliacuteticos Nesta anaacutelise seratildeo confrontadas a eacutetica contratualista (convencionalista) e a eacutetica naturalista na filosofia grega

Palavras-chave natureza naturalismo phyacutesis noacutemos lei convenccedilatildeo

8

ABSTRACT

The search for a universal justification for ethical conduct has found in the observation of nature an unquestionable support point Nature has been used as a guide for a human action model for it presents generation (origin) of all its beings regardless of manacutes deliberation As the settlement of such ethical ideal is often hindered by the lack of consensus among men the naturalistic argument gains authority due to this assumption of impartiality Thus the fact of something being as such in nature has been seen as a must be as such The shift from a descriptive approach (as it is) to a prescriptive approach (as it must be) has been used to justify ethical stances

The noacutemos-phyacutesis dualism that is the distinction between norms originated from human convention and naturalism itself is the main point of this paper which intends to show how such dualism was approached in sophistry and ancient philosophy for ethical and political purposes This analysis shall confront contractualist ethic with naturalist ethic in ancient philosophy

Keywords nature naturalism phyacutesis noacutemos law convention

9

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 10

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSYS 12

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS 34

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE 38

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 45

6 FONTES - REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS E BIBLIOGRAFIA 48

10

1 INTRODUCcedilAtildeO

O termo phyacutesis pode ser entendido como ldquoorigem [] forma ou constituiccedilatildeo natural de uma pessoa ou coisa como resultado de crescimento [ou a proacutepria] naturezardquo1 Noacutemos eacute o costume o uso a lei ou decreto2 O termo ldquonaturezardquo (phyacutesis) quando contrastado com ldquoleirdquo (noacutemos) evoca a ideia de realidade No periacuteodo claacutessico algo dito nomizetai eacute algo em que se acredita algo praticado por ser tido como correto3 Assim a busca de um paracircmetro para definiccedilatildeo do correto para o homem frequentemente esbarra nesses dois pontos O noacutemos visto como lei ou diretriz eacutetica eacute alcanccedilado pelo consenso dos homens requerendo concordacircncia e assentimento As dissensotildees decorrentes do fracasso em se chegar ao noacutemos comumente tendem a eleger como modelo imperativo o que incontestavelmente jaacute estaacute aiacute no mundo jaacute nos eacute dado de saiacuteda na nossa existecircncia o que eacute espontacircneo e livre de nossa opiniatildeo para ser como tal ou seja a natureza

O natural eacute universalmente reconhecido como anterior ao homem Essa anterioridade perante aquelas dissensotildees e baseada em tal reconhecimento universal ganha forccedila para se impor sobre as partes discordantes No entanto essa forccedila eacute transferida sutilmente de uma perspectiva de mera constataccedilatildeo factual (como eacute na natureza) para uma perspectiva de prescriccedilatildeo eacutetica (como deve ser entre os homens) Eacute neste ponto que se encontra a incongruecircncia da falaacutecia naturalista4 Kerferd diz que ldquoo apelo natildeo eacute para a natureza em geral mas para a natureza [] humana e isso deve ter tornado o apelo ainda mais faacutecil visto que a urgecircncia de muitas das demandas que brotam de nossa proacutepria natureza parece dar a elas uma clara forccedila prescritivardquo5 O dualismo noacutemos-phyacutesis foi utilizado para sustentar variadas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas apoiadas em seus diferentes polos Sua abordagem eacute notada no periacuteodo heleniacutestico perpassando a trageacutedia e a filosofia incluindo a sofiacutestica Na religiatildeo os proacuteprios deuses foram discutidos se eram realmente existentes ou se eram somente concebidos por convenccedilatildeo E assim tambeacutem para as divisotildees raciais e poliacuteticas da espeacutecie humana repercutindo desde a igualdade de direitos ateacute a escravidatildeo assim como dos regimes poliacuteticos igualitaacuterios ateacute a tirania

1 LIDELL H G SCOTT R A Greek-English Lexicon Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dfu2Fsisgt Acesso em 17 nov 2014 2 Cf supra Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Dno2Fmosgt Acesso em 17 nov 2014 3 Cf GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993 p 55 4 Termo cunhado por George Edward Moore que expotildee a confusatildeo entre a constataccedilatildeo de um fato natural e atribuiccedilatildeo de um valor eacutetico ldquo[] a mistake of this simple kind has commonly been made about good It may be true that all things which are good are also something else just as it is true that all things which are yellow produce a certain kind of vibration in the light And it is a fact that Ethics aims at discovering what are those other properties belonging to all things which are good But far too many philosophers have thought that when they named those other properties they were actually defining good that these properties in fact were simply not other but absolutely and entirely the same with goodness This view I propose to call the naturalistic fallacy []rdquo MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922 p 10 sect10 5 KERFERD G B O Movimento Sofista Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 p195

11

Sob o ponto de vista religioso a lei absoluta e universal que rege as leis humanas proveacutem de divindades De acordo com Heraacuteclito por exemplo ldquotodas as leis [noacutemoi6] humanas satildeo alimentadas por uma lei una a divina pois exerce seu domiacutenio tatildeo longe quanto se consente e basta e envolve todas as outrasrdquo7 Na trageacutedia a lei divina eacute comumente evocada para sobrepujar a lei humana como em Antiacutegona de Soacutefocles quando a personagem homocircnima recorre agrave lei divina para se eximir da lei do rei Creonte ldquoeu natildeo creio que teus decretos escritos pela matildeo de um mortal possam ser superiores agraves leis [nomima] natildeo escritas e imutaacuteveis dos deusesrdquo8 Agrave medida que as leis divinas passam a ser desacreditadas outras formas de realismo eacutetico-poliacutetico surgem em seu lugar Eacute o caso da natureza como veremos adiante Eacute comum encontrar autores que adotam posiccedilotildees ora proacute-phyacutesis (naturalista) ora proacute-noacutemos (consensualista) Assim a abordagem a seguir faraacute uma separaccedilatildeo em linhas gerais destas posturas permitindo-se poreacutem sempre uma criacutetica comparativa entre elas em todo seu decorrer

6 Nas citaccedilotildees dos textos filosoacuteficos gregos as palavras-chave e as de maior relevacircncia para este trabalho foram retiradas em transliteraccedilatildeo latina de Perseus Digital Library Disponiacutevel em ltwwwperseustuftsedugt 7 HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012 p115 fr 114 8 SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Rio de Janeiro DIFEL 2006 p 46-7 450-5

12

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSIS

Na sofiacutestica vemos uma multiplicidade de posiccedilotildees eacuteticas em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo de modo que natildeo haacute um soacute ldquolugar sofiacutesticordquo Um dos principais registros da sofiacutestica sobre o problema do dualismo entre convenccedilatildeo humana e natureza como criteacuterio eacutetico foi de Antifonte Em seu texto Sobre a Verdade do qual soacute nos chegaram fragmentos ele aborda a diferenccedila entre baacuterbaros e gregos como sendo meramente convencional apontando para a mesma natureza em ambos Antifonte ressalta que as caracteriacutesticas e funccedilotildees corporais satildeo as mesmas entre os dois por natureza e portanto necessaacuterias

agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros enquanto por natureza [phusei] todos em tudo nascemos igualmente dispostos para ser tanto baacuterbaros quanto gregos Eacute o caso de observar as coisas que por natureza [phusei] satildeo necessaacuterias a todos os homens a todos satildeo acessiacuteveis pelas

mesmas capacidades e em todas as coisas nenhum de noacutes eacute determinado nem como baacuterbaro nem como grego Pois todos respiramos o ar pela boca e pelas narinas [] e comemos todos com as matildeos [] e rimos quando nos alegramos [] no espiacuterito ou choramos quando sentimos dor e pela audiccedilatildeo acolhemos os sons e pela luz do sol com a vista vemos e com as matildeos trabalhamos e com os peacutes caminhamos [] segundo a medida do que agrada cada um dos homens e eles em conjunto se reuniram e estabeleceram as leis9

A importacircncia da anaacutelise deste texto reside no fato de para Antifonte as leis humanas serem impostas e as naturais necessaacuterias O sofista mostra que a necessidade imposta aos homens pela natureza (phyacutesei oacutenton anankaicircon pacirc sin antropoacuteis) de que gregos e baacuterbaros sejam iguais se sobrepotildee agraves leis (noacutemous) que agradam a determinadas sociedades ou etnias (ldquohomens em conjuntordquo) Quando agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros sob pretexto de obediecircncia agrave lei (noacutemos) violamos a igualdade natural Ao chamar ambas as partes da contenda de baacuterbaros Antifonte mostra que a diferenccedila eacutetnica (gregos e baacuterbaros) natildeo pode justificar a guerra Quanto agrave violaccedilatildeo das determinaccedilotildees da natureza Antifonte diz

As prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo impostas de fora as da natureza [phuseos] necessaacuterias E as prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo pactuadas e natildeo geradas naturalmente [phunta] enquanto as da natureza [phuseos] satildeo geradas naturalmente [phunta] e natildeo pactuadas [] Transgredindo as prescriccedilotildees das leis [noacutemima] com efeito se encoberto diante dos que compactuam aparta-se da vergonha e castigo [] Se alguma das coisas que nascem com a natureza [phusei] eacute violentada para aleacutem do possiacutevel mesmo que isso ficasse encoberto a todos os homens em nada o mal seria menor e se todos vissem em nada maior pois natildeo eacute prejudicado pela opiniatildeo mas pela verdade10

9 ANTIFONTE Fragmentos B44B DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 77-9 (grifo meu) 10 Ibid B44A DK p 73 (grifos meus)

13

Cassin aponta em relaccedilatildeo agrave diferenccedila social em Antifonte um duplo problema ldquoo racismo dos gregos e a relaccedilatildeo entre racismo e a democraciardquo11 Ao afirmar que gregos tambeacutem ldquobarbarizamrdquo (ldquofalam de modo ininteligiacutevelrdquo) Antifonte faz uma criacutetica ao etnocentrismo grego com base naturalista No entanto essa criacutetica encontra grande dificuldade ao se deparar com as leis atenienses legisladas de modo democraacutetico tendentes a valorizar seu proacuteprio povo

Antifonte coloca a natureza como paracircmetro de verdade (o agir conforme a natureza) de cuja puniccedilatildeo natildeo se pode escapar como das puniccedilotildees das leis humanas A transgressatildeo das leis convencionais humanas eacute passiacutevel de vergonha e puniccedilatildeo baseada em opiniatildeo humana ou quiccedilaacute de nenhuma caso ningueacutem tome conhecimento ao passo que a sanccedilatildeo para a transgressatildeo de lei natural eacute em funccedilatildeo da verdade livre de qualquer valoraccedilatildeo humana e por isso inescapaacutevel e amoral Contudo um conceito de verdade absoluta soacute se sustenta como uma ideia pois do ponto de vista pragmaacutetico para se chegar a ela seraacute sempre necessaacuterio um caminho de interpretaccedilatildeo humana Caminho esse que natildeo eacute uniacutevoco e satildeo nas bifurcaccedilotildees deste caminho interpretativo que os homens chegam paradoxalmente a diferentes ldquoverdades uacutenicas e absolutasrdquo Afinal quantas verdades diferentes a respeito da mesma coisa a civilizaccedilatildeo humana em toda sua histoacuteria jaacute natildeo produziu Neste texto Antifonte mostra a forccedila da natureza como uma necessidade que se impotildee a despeito da lei do homem A lei pode inclusive ser contra a natureza prescrevendo como o homem deve interpretar seus sentidos e como ele deve se portar ainda que de modo antagocircnico ao natural

muitas das coisas justas segundo a lei [noacutemon dikaiacuteon] estatildeo em peacute de guerra com a natureza [phusei] pois estatildeo dispostas por lei aos

olhos as coisas que devem [] ver e as coisas que natildeo devem e aos ouvidos as que eles devem ouvir e as que natildeo devem e agrave liacutengua as que ela deve dizer e as que natildeo deve e agraves matildeos as que ela deve fazer e as que natildeo devem e aos peacutes para onde devem ir e para onde natildeo devem e ao espiacuterito as coisas que deve desejar e as que natildeo deve Com efeito natildeo satildeo para a natureza [phusei] em nada mais afins

nem mais proacuteprias as coisas das quais as leis dissuadem os homens do que aquelas das quais persuadem12

O autor quer aqui mostrar que o noacutemos pode ditar como o homem deve emitir

juiacutezos sobre seus dons naturais como ouvir e falar Ele mostra tambeacutem que o interesse incutido na convenccedilatildeo da lei determina como o homem deve se portar na natureza ou ainda como a lei pretende determinar a eacutetica Mas eacute longe do julgamento dos olhos alheios ou seja em estado natural que o homem encontra sua verdadeira eacutetica A conveniecircncia do homem natildeo necessariamente favorece o curso da natureza Contudo segundo Antifonte esta deveria ser o referencial da sua eacutetica jaacute que como visto a natureza eacute a verdade e a necessidade a despeito de qualquer sentimento que possa afastaacute-lo desse referencial como a vergonha Esse eacute o ponto central desta

11 CASSIN B ldquoBarbarizarrdquo e ldquoCidadanizarrdquo In CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A Cidade e Seus Outros Rio de Janeiro Editora 34 1993 p 107 12 ANTIFONTE Acerca da Verdade B44A DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 73

14

discussatildeo ou seja qual referencial eacutetico deve-se adotar Nesse sentido continua Antifonte

o viver e o morrer satildeo da natureza [phuseos] e para eles [os homens]

o viver eacute uma das coisas convenientes e o morrer uma das natildeo-convenientes As coisas convenientes fixadas pelas leis [noacutemon] por seu turno satildeo grilhotildees da natureza [phuseos] as fixadas pela natureza [phuseos] livres De fato as coisas que produzem sofrimento por uma correta razatildeo natildeo satildeo proveitosas agrave natureza [phusin] mais do que as agradaacuteveis Pois as coisas convenientes

segundo a verdade natildeo devem prejudicar mas beneficiar 13

Ou seja para o curso da natureza pouco importa o que agrada ou desagrada ao homem A conveniecircncia humana sob forma de leis pode impedir o curso livre da natureza Por ver a natureza como fonte de verdade Antifonte preconiza que o homem deve alinhar sua conveniecircncia agrave natureza Contudo alcanccedilar a verdade da natureza tambeacutem natildeo pressupotildee sua interpretaccedilatildeo E essa interpretaccedilatildeo natildeo seria uma convenccedilatildeo ou no miacutenimo um artifiacutecio do homem O problema de se alcanccedilar a verdade da natureza portanto recai na inexorabilidade do artifiacutecio humano da interpretaccedilatildeo Ateacute que ponto essa interpretaccedilatildeo natildeo seria tendenciosa na proposta de Antifonte de se alinhar a conveniecircncia do homem agrave natureza

Guthrie esclarece porque Antifonte ainda em Sobre a Verdade apresenta diferentes conceitos de justiccedila14 para mostrar que as concepccedilotildees vigentes de moralidade satildeo inadequadas e que as formas da natureza eacute que devem ter preferecircncia15

Por fim temos em Antifonte a afirmaccedilatildeo de que a violaccedilatildeo das leis humanas eacute julgada pela opiniatildeo e a das leis naturais pela verdade Antifonte quer com isso mostrar que a natureza deve ser o referencial para a convenccedilatildeo humana ainda que esta ldquoverdade da naturezardquo seja contraacuteria a algumas conveniecircncias do homem Assim o sofista expotildee a dupla via de valoraccedilatildeo que o dualismo permite e que seraacute de modo controverso explorada por sofistas e filoacutesofos A sofiacutestica exploraraacute o dualismo com mais ecircnfase pelo vieacutes oposto qual seja o da justificativa eacutetico-poliacutetica baseada no noacutemos Como expocircs Cassin eacute caracteriacutestica da sofiacutestica a substituiccedilatildeo do fiacutesico pelo poliacutetico assim como o acordo discursivo (homologia) como base de legalidade poliacutetica16 Ainda segundo Cassin ldquoo consenso (homonoacuteia) eacute [] o efeito de uma operaccedilatildeo loacutegica no sentido lato capaz de voltar em seu favor as opiniotildees ou as praacuteticas contraditoacuterias que deveriam interdizecirc-lordquo17

No diaacutelogo Repuacuteblica Platatildeo inicia a justificativa de sua visatildeo poliacutetica do filoacutesofo-rei da cidade ideal (kallipolis) a partir da ideia de funccedilatildeo ou tarefa (eacutergon) especializada de cada coisa O personagem Soacutecrates em diaacutelogo com o personagem Trasiacutemaco sustenta que os objetos sejam manufaturados ou naturais possuem um eacutergon especiacutefico Esta funccedilatildeo eacute ou exclusiva de um determinado objeto ou realizada

13 Ibid p 73-75 B 44A DK 14 A saber (1) Conformidade agraves leis e costumes de seu paiacutes (2) natildeo causar injuacuteria exceto em resposta a uma injuacuteria recebida (3) nem causar nem sofrer injuacuteria 15 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge University Press 1965 III p 112 16 Cf CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Satildeo Paulo Editora 34 2005 p 71 17 CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Satildeo Paulo Siciliano 1990 p79

15

por este com mais perfeiccedilatildeo18 Assim Soacutecrates leva Trasiacutemaco a concordar que o cavalo tem uma funccedilatildeo determinada19 que os oacutergatildeos sensoriais tecircm suas funccedilotildees especiacuteficas (a saber olhos visatildeo e ouvidos audiccedilatildeo20) e tambeacutem que objetos cortantes como a faca satildeo ideais para cortar os sarmentos de uma vinha21

Logo adiante Platatildeo faz Soacutecrates propor que essa funccedilatildeo eacute uma virtude (areteacute) do objeto22 Esta proposiccedilatildeo eacute o ponto onde Platatildeo atribui um valor moral elevado (virtude) a uma caracteriacutestica natural do objeto qual seja a sua funccedilatildeo (ainda que ele tambeacutem tenha incluiacutedo objetos manufaturados na comparaccedilatildeo) Seu proacuteximo passo eacute expor a funccedilatildeo da alma e por consequecircncia a sua virtude Tal funccedilatildeo ou virtude eacute o governo da proacutepria vida23 Desta forma a vida bem governada pela alma (de acordo com a justiccedila) alcanccedilaraacute a felicidade ou eudaimoniacutea24 A mesma estrutura argumentativa aparece no momento da fundaccedilatildeo de uma cidade imaginaacuteria pelos personagens Soacutecrates e Adimanto25 quando eles chegam agrave conclusatildeo de que a especializaccedilatildeo de cada cidadatildeo em diferentes ofiacutecios [erga] de acordo com a sua natureza [phusin]26 eacute a forma mais proveitosa possiacutevel de distribuiccedilatildeo da forccedila de trabalho na cidade Eacute notaacutevel aqui a intenccedilatildeo de fazer a profissatildeo ou a funccedilatildeo de cada um ser vista como atributo natural Para deixar isso patente Soacutecrates declara ldquocada um de noacutes natildeo nasceu igual ao outro mas com naturezas [phusin] diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa [ergou praxei]rdquo27

O mesmo argumento naturalista aparece no diaacutelogo Craacutetilo onde Soacutecrates pretende justificar uma accedilatildeo correta a partir de sua proacutepria natureza ou seja ldquoa natureza da accedilatildeordquo Ele afirma que ldquoelas [as accedilotildees] se realizam segundo sua proacutepria natureza [phusin] natildeo conforme a opiniatildeo que dela fizermosrdquo28 Assim como na Repuacuteblica a natureza de cada coisa dita sua funccedilatildeo ou seja uma coisa deve ser feita

ldquosegundo os imperativos da natureza [phusei]rdquo 29 A natureza eacute o criteacuterio para o que eacute certo ldquono caso de querermos queimar alguma coisa natildeo devemos fazecirc-lo de qualquer modo como nos ditar a fantasia [conforme todas as opiniotildees kata pasan doxan30] mas pelo modo certo que eacute o modo indicado pela natureza [epephukei] para queimarrdquo31 O argumento da accedilatildeo naturalmente correta vai evoluir agrave accedilatildeo de falar e nomear as coisas culminando no ponto central do diaacutelogo (Craacutetilo) que eacute a accedilatildeo de nomear as coisas conforme a natureza 32 Assim a competecircncia de forjar nomes seraacute

18 Cf PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 352e 19 Ibid 352d-e 20 Ibid 352e 21 Ibid 353a 22 Ibid 353b-c 23 Ibid 353d 24 Ibid 353e - 354a 25 Ibid 369c 26 Ibid 370c 27 Ibid 370a-b (grifos meus) 28 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - CraacutetiloBeleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387a 29 Ibid 389c 30 Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101713Atext3DCrat3Asection3D387bgt acesso em 14 mar 2016 (Traduccedilatildeo minha) 31 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387b 32 Cf supra 387b-d

16

do ldquofazedor de nomesrdquo [onomatourgou] ou ldquolegislador [nomothetēs]rdquo33 Uma consequecircncia eacutetica interessante dessa proposta naturalista para os nomes seraacute a prescriccedilatildeo de que todo nome inclusive o de pessoas deveraacute corresponder a sua etimologia agrave sua natureza Como exemplo Soacutecrates diz que o iacutempio natildeo deveraacute se chamar Teoacutefilo (amigo de Deus) nem Mnesteu (lembrado de Deus)34 Outra via naturalista da justificativa dos nomes de acordo com a essecircncia das coisas nomeadas eacute o movimento feito pela boca para a pronuacutencia dos verbos de acordo com o movimento que esse verbo representa35 Apesar de Soacutecrates prescrever a perspectiva naturalista para o nome das coisas ele ao fim do diaacutelogo reconhece o uso corrente da convenccedilatildeo ldquoreceio muito que de fato [] seja bastante precaacuteria a tal forccedila de atraccedilatildeo da semelhanccedila e que nos vejamos forccedilados a recorrer a esse expediente banal a convenccedilatildeo [tē sunthēkē] para a correta imposiccedilatildeo dos nomes [onomatōn

orthotēta]rdquo36 Na Repuacuteblica a naturalizaccedilatildeo da virtude vai ter uma importante repercussatildeo

eacutetica ao se estabelecer quem no diaacutelogo definiraacute o ofiacutecio natural de cada cidadatildeo Soacutecrates diz a Adimanto ldquo[] eacute tarefa nossa segundo parece e se na verdade formos capazes disso proceder agrave escolha daqueles de qualidades e natureza [phuseōs] apropriadas para a custoacutedia da cidade37

Essa distinta capacidade que tais personagens filoacutesofos tecircm de determinar a natureza dos cidadatildeos vai se elevar agrave escolha dos guardiotildees da cidade Soacutecrates inicia uma comparaccedilatildeo da natureza dos animais com a natureza necessaacuteria aos guardiotildees Sugestivamente ele indaga Adimanto ldquohaacute alguma diferenccedila entre a natureza (phusin) de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascidordquo38 A valentia e porte fiacutesico do guardiatildeo deveratildeo ser como os de um catildeo ou cavalo mas ao mesmo tempo ele precisaraacute ser por natureza [phusei] doacutecil com os concidadatildeos como um catildeo de boa raccedila39 Essa capacidade do catildeo de distinguir amigos de inimigos eacute dada pelo seu ldquoinstinto filosoacutefico naturalrdquo [philosophos tēn phusin]40 Neste ponto temos uma passagem sutil mas importantiacutessima a naturalizaccedilatildeo do pendor filosoacutefico Esta seraacute crucial para justificar o filoacutesofo como governante a partir de uma imposiccedilatildeo da natureza com a forccedila do que eacute necessaacuterio e inescapaacutevel tal como disse Antifonte contudo aqui usado para hierarquizar homens ao inveacutes de igualaacute-los Quanto agrave natureza do guardiatildeo reafirma Soacutecrates ldquoquando procuramos um guarda dessa espeacutecie natildeo vamos contra a naturezardquo41 Quanto agrave relaccedilatildeo entre a filosofia e a natureza (do catildeo capaz de tal distinccedilatildeo) Soacutecrates afirma ldquomas sem duacutevida que demonstra a engenhosa conformaccedilatildeo da sua natureza [tēs phuseōs] que eacute

verdadeiramente amiga de saberrdquo42 E ainda sobre esta justificativa naturalista ele declara

33 Ibid 389a 34 Cf supra 394d-e 35 Cf supra 426c-427c 36 Ibid 435c 37 PLATAtildeO A Repuacuteblica 374e (grifo meu) 38 Ibid 375a (grifo meu) 39 Ibid 375e 40 Ibid 41 Ibid 375e 42 Ibid 376a-b (grifo meu)

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

6

O costume eacute a forccedila que fala mais forte do que a natureza E nos faz dar provas de fraqueza

Noel Rosa

7

RESUMO

A busca por uma justificativa universal para a conduta eacutetica tem encontrado na observaccedilatildeo da natureza um pretenso ponto de apoio incontestaacutevel A natureza por apresentar geraccedilatildeo (origem) de todos os seus seres de forma independente de accedilatildeo e deliberaccedilatildeo do homem tem sido usada como uma referecircncia para um modelo das accedilotildees humanas Como o estabelecimento deste ideal eacutetico frequentemente eacute embargado pela falta de consenso entre os homens o argumento naturalista ganha autoridade por esse pressuposto de imparcialidade Desta forma o fato de algo ser como tal na natureza tem sido visto como dever ser como tal A passagem de uma abordagem descritiva (como eacute) da natureza para uma abordagem prescritiva ou normativa (como deve ser) foi usada para justificar posturas eacuteticas O dualismo noacutemos-phyacutesis ou seja a distinccedilatildeo entre as normas que tecircm origem na convenccedilatildeo humana e o naturalismo eacute o ponto central de anaacutelise deste trabalho que pretende mostrar como esse dualismo foi abordado na sofiacutestica e na filosofia antiga para propoacutesitos eacuteticos e poliacuteticos Nesta anaacutelise seratildeo confrontadas a eacutetica contratualista (convencionalista) e a eacutetica naturalista na filosofia grega

Palavras-chave natureza naturalismo phyacutesis noacutemos lei convenccedilatildeo

8

ABSTRACT

The search for a universal justification for ethical conduct has found in the observation of nature an unquestionable support point Nature has been used as a guide for a human action model for it presents generation (origin) of all its beings regardless of manacutes deliberation As the settlement of such ethical ideal is often hindered by the lack of consensus among men the naturalistic argument gains authority due to this assumption of impartiality Thus the fact of something being as such in nature has been seen as a must be as such The shift from a descriptive approach (as it is) to a prescriptive approach (as it must be) has been used to justify ethical stances

The noacutemos-phyacutesis dualism that is the distinction between norms originated from human convention and naturalism itself is the main point of this paper which intends to show how such dualism was approached in sophistry and ancient philosophy for ethical and political purposes This analysis shall confront contractualist ethic with naturalist ethic in ancient philosophy

Keywords nature naturalism phyacutesis noacutemos law convention

9

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 10

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSYS 12

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS 34

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE 38

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 45

6 FONTES - REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS E BIBLIOGRAFIA 48

10

1 INTRODUCcedilAtildeO

O termo phyacutesis pode ser entendido como ldquoorigem [] forma ou constituiccedilatildeo natural de uma pessoa ou coisa como resultado de crescimento [ou a proacutepria] naturezardquo1 Noacutemos eacute o costume o uso a lei ou decreto2 O termo ldquonaturezardquo (phyacutesis) quando contrastado com ldquoleirdquo (noacutemos) evoca a ideia de realidade No periacuteodo claacutessico algo dito nomizetai eacute algo em que se acredita algo praticado por ser tido como correto3 Assim a busca de um paracircmetro para definiccedilatildeo do correto para o homem frequentemente esbarra nesses dois pontos O noacutemos visto como lei ou diretriz eacutetica eacute alcanccedilado pelo consenso dos homens requerendo concordacircncia e assentimento As dissensotildees decorrentes do fracasso em se chegar ao noacutemos comumente tendem a eleger como modelo imperativo o que incontestavelmente jaacute estaacute aiacute no mundo jaacute nos eacute dado de saiacuteda na nossa existecircncia o que eacute espontacircneo e livre de nossa opiniatildeo para ser como tal ou seja a natureza

O natural eacute universalmente reconhecido como anterior ao homem Essa anterioridade perante aquelas dissensotildees e baseada em tal reconhecimento universal ganha forccedila para se impor sobre as partes discordantes No entanto essa forccedila eacute transferida sutilmente de uma perspectiva de mera constataccedilatildeo factual (como eacute na natureza) para uma perspectiva de prescriccedilatildeo eacutetica (como deve ser entre os homens) Eacute neste ponto que se encontra a incongruecircncia da falaacutecia naturalista4 Kerferd diz que ldquoo apelo natildeo eacute para a natureza em geral mas para a natureza [] humana e isso deve ter tornado o apelo ainda mais faacutecil visto que a urgecircncia de muitas das demandas que brotam de nossa proacutepria natureza parece dar a elas uma clara forccedila prescritivardquo5 O dualismo noacutemos-phyacutesis foi utilizado para sustentar variadas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas apoiadas em seus diferentes polos Sua abordagem eacute notada no periacuteodo heleniacutestico perpassando a trageacutedia e a filosofia incluindo a sofiacutestica Na religiatildeo os proacuteprios deuses foram discutidos se eram realmente existentes ou se eram somente concebidos por convenccedilatildeo E assim tambeacutem para as divisotildees raciais e poliacuteticas da espeacutecie humana repercutindo desde a igualdade de direitos ateacute a escravidatildeo assim como dos regimes poliacuteticos igualitaacuterios ateacute a tirania

1 LIDELL H G SCOTT R A Greek-English Lexicon Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dfu2Fsisgt Acesso em 17 nov 2014 2 Cf supra Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Dno2Fmosgt Acesso em 17 nov 2014 3 Cf GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993 p 55 4 Termo cunhado por George Edward Moore que expotildee a confusatildeo entre a constataccedilatildeo de um fato natural e atribuiccedilatildeo de um valor eacutetico ldquo[] a mistake of this simple kind has commonly been made about good It may be true that all things which are good are also something else just as it is true that all things which are yellow produce a certain kind of vibration in the light And it is a fact that Ethics aims at discovering what are those other properties belonging to all things which are good But far too many philosophers have thought that when they named those other properties they were actually defining good that these properties in fact were simply not other but absolutely and entirely the same with goodness This view I propose to call the naturalistic fallacy []rdquo MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922 p 10 sect10 5 KERFERD G B O Movimento Sofista Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 p195

11

Sob o ponto de vista religioso a lei absoluta e universal que rege as leis humanas proveacutem de divindades De acordo com Heraacuteclito por exemplo ldquotodas as leis [noacutemoi6] humanas satildeo alimentadas por uma lei una a divina pois exerce seu domiacutenio tatildeo longe quanto se consente e basta e envolve todas as outrasrdquo7 Na trageacutedia a lei divina eacute comumente evocada para sobrepujar a lei humana como em Antiacutegona de Soacutefocles quando a personagem homocircnima recorre agrave lei divina para se eximir da lei do rei Creonte ldquoeu natildeo creio que teus decretos escritos pela matildeo de um mortal possam ser superiores agraves leis [nomima] natildeo escritas e imutaacuteveis dos deusesrdquo8 Agrave medida que as leis divinas passam a ser desacreditadas outras formas de realismo eacutetico-poliacutetico surgem em seu lugar Eacute o caso da natureza como veremos adiante Eacute comum encontrar autores que adotam posiccedilotildees ora proacute-phyacutesis (naturalista) ora proacute-noacutemos (consensualista) Assim a abordagem a seguir faraacute uma separaccedilatildeo em linhas gerais destas posturas permitindo-se poreacutem sempre uma criacutetica comparativa entre elas em todo seu decorrer

6 Nas citaccedilotildees dos textos filosoacuteficos gregos as palavras-chave e as de maior relevacircncia para este trabalho foram retiradas em transliteraccedilatildeo latina de Perseus Digital Library Disponiacutevel em ltwwwperseustuftsedugt 7 HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012 p115 fr 114 8 SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Rio de Janeiro DIFEL 2006 p 46-7 450-5

12

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSIS

Na sofiacutestica vemos uma multiplicidade de posiccedilotildees eacuteticas em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo de modo que natildeo haacute um soacute ldquolugar sofiacutesticordquo Um dos principais registros da sofiacutestica sobre o problema do dualismo entre convenccedilatildeo humana e natureza como criteacuterio eacutetico foi de Antifonte Em seu texto Sobre a Verdade do qual soacute nos chegaram fragmentos ele aborda a diferenccedila entre baacuterbaros e gregos como sendo meramente convencional apontando para a mesma natureza em ambos Antifonte ressalta que as caracteriacutesticas e funccedilotildees corporais satildeo as mesmas entre os dois por natureza e portanto necessaacuterias

agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros enquanto por natureza [phusei] todos em tudo nascemos igualmente dispostos para ser tanto baacuterbaros quanto gregos Eacute o caso de observar as coisas que por natureza [phusei] satildeo necessaacuterias a todos os homens a todos satildeo acessiacuteveis pelas

mesmas capacidades e em todas as coisas nenhum de noacutes eacute determinado nem como baacuterbaro nem como grego Pois todos respiramos o ar pela boca e pelas narinas [] e comemos todos com as matildeos [] e rimos quando nos alegramos [] no espiacuterito ou choramos quando sentimos dor e pela audiccedilatildeo acolhemos os sons e pela luz do sol com a vista vemos e com as matildeos trabalhamos e com os peacutes caminhamos [] segundo a medida do que agrada cada um dos homens e eles em conjunto se reuniram e estabeleceram as leis9

A importacircncia da anaacutelise deste texto reside no fato de para Antifonte as leis humanas serem impostas e as naturais necessaacuterias O sofista mostra que a necessidade imposta aos homens pela natureza (phyacutesei oacutenton anankaicircon pacirc sin antropoacuteis) de que gregos e baacuterbaros sejam iguais se sobrepotildee agraves leis (noacutemous) que agradam a determinadas sociedades ou etnias (ldquohomens em conjuntordquo) Quando agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros sob pretexto de obediecircncia agrave lei (noacutemos) violamos a igualdade natural Ao chamar ambas as partes da contenda de baacuterbaros Antifonte mostra que a diferenccedila eacutetnica (gregos e baacuterbaros) natildeo pode justificar a guerra Quanto agrave violaccedilatildeo das determinaccedilotildees da natureza Antifonte diz

As prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo impostas de fora as da natureza [phuseos] necessaacuterias E as prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo pactuadas e natildeo geradas naturalmente [phunta] enquanto as da natureza [phuseos] satildeo geradas naturalmente [phunta] e natildeo pactuadas [] Transgredindo as prescriccedilotildees das leis [noacutemima] com efeito se encoberto diante dos que compactuam aparta-se da vergonha e castigo [] Se alguma das coisas que nascem com a natureza [phusei] eacute violentada para aleacutem do possiacutevel mesmo que isso ficasse encoberto a todos os homens em nada o mal seria menor e se todos vissem em nada maior pois natildeo eacute prejudicado pela opiniatildeo mas pela verdade10

9 ANTIFONTE Fragmentos B44B DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 77-9 (grifo meu) 10 Ibid B44A DK p 73 (grifos meus)

13

Cassin aponta em relaccedilatildeo agrave diferenccedila social em Antifonte um duplo problema ldquoo racismo dos gregos e a relaccedilatildeo entre racismo e a democraciardquo11 Ao afirmar que gregos tambeacutem ldquobarbarizamrdquo (ldquofalam de modo ininteligiacutevelrdquo) Antifonte faz uma criacutetica ao etnocentrismo grego com base naturalista No entanto essa criacutetica encontra grande dificuldade ao se deparar com as leis atenienses legisladas de modo democraacutetico tendentes a valorizar seu proacuteprio povo

Antifonte coloca a natureza como paracircmetro de verdade (o agir conforme a natureza) de cuja puniccedilatildeo natildeo se pode escapar como das puniccedilotildees das leis humanas A transgressatildeo das leis convencionais humanas eacute passiacutevel de vergonha e puniccedilatildeo baseada em opiniatildeo humana ou quiccedilaacute de nenhuma caso ningueacutem tome conhecimento ao passo que a sanccedilatildeo para a transgressatildeo de lei natural eacute em funccedilatildeo da verdade livre de qualquer valoraccedilatildeo humana e por isso inescapaacutevel e amoral Contudo um conceito de verdade absoluta soacute se sustenta como uma ideia pois do ponto de vista pragmaacutetico para se chegar a ela seraacute sempre necessaacuterio um caminho de interpretaccedilatildeo humana Caminho esse que natildeo eacute uniacutevoco e satildeo nas bifurcaccedilotildees deste caminho interpretativo que os homens chegam paradoxalmente a diferentes ldquoverdades uacutenicas e absolutasrdquo Afinal quantas verdades diferentes a respeito da mesma coisa a civilizaccedilatildeo humana em toda sua histoacuteria jaacute natildeo produziu Neste texto Antifonte mostra a forccedila da natureza como uma necessidade que se impotildee a despeito da lei do homem A lei pode inclusive ser contra a natureza prescrevendo como o homem deve interpretar seus sentidos e como ele deve se portar ainda que de modo antagocircnico ao natural

muitas das coisas justas segundo a lei [noacutemon dikaiacuteon] estatildeo em peacute de guerra com a natureza [phusei] pois estatildeo dispostas por lei aos

olhos as coisas que devem [] ver e as coisas que natildeo devem e aos ouvidos as que eles devem ouvir e as que natildeo devem e agrave liacutengua as que ela deve dizer e as que natildeo deve e agraves matildeos as que ela deve fazer e as que natildeo devem e aos peacutes para onde devem ir e para onde natildeo devem e ao espiacuterito as coisas que deve desejar e as que natildeo deve Com efeito natildeo satildeo para a natureza [phusei] em nada mais afins

nem mais proacuteprias as coisas das quais as leis dissuadem os homens do que aquelas das quais persuadem12

O autor quer aqui mostrar que o noacutemos pode ditar como o homem deve emitir

juiacutezos sobre seus dons naturais como ouvir e falar Ele mostra tambeacutem que o interesse incutido na convenccedilatildeo da lei determina como o homem deve se portar na natureza ou ainda como a lei pretende determinar a eacutetica Mas eacute longe do julgamento dos olhos alheios ou seja em estado natural que o homem encontra sua verdadeira eacutetica A conveniecircncia do homem natildeo necessariamente favorece o curso da natureza Contudo segundo Antifonte esta deveria ser o referencial da sua eacutetica jaacute que como visto a natureza eacute a verdade e a necessidade a despeito de qualquer sentimento que possa afastaacute-lo desse referencial como a vergonha Esse eacute o ponto central desta

11 CASSIN B ldquoBarbarizarrdquo e ldquoCidadanizarrdquo In CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A Cidade e Seus Outros Rio de Janeiro Editora 34 1993 p 107 12 ANTIFONTE Acerca da Verdade B44A DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 73

14

discussatildeo ou seja qual referencial eacutetico deve-se adotar Nesse sentido continua Antifonte

o viver e o morrer satildeo da natureza [phuseos] e para eles [os homens]

o viver eacute uma das coisas convenientes e o morrer uma das natildeo-convenientes As coisas convenientes fixadas pelas leis [noacutemon] por seu turno satildeo grilhotildees da natureza [phuseos] as fixadas pela natureza [phuseos] livres De fato as coisas que produzem sofrimento por uma correta razatildeo natildeo satildeo proveitosas agrave natureza [phusin] mais do que as agradaacuteveis Pois as coisas convenientes

segundo a verdade natildeo devem prejudicar mas beneficiar 13

Ou seja para o curso da natureza pouco importa o que agrada ou desagrada ao homem A conveniecircncia humana sob forma de leis pode impedir o curso livre da natureza Por ver a natureza como fonte de verdade Antifonte preconiza que o homem deve alinhar sua conveniecircncia agrave natureza Contudo alcanccedilar a verdade da natureza tambeacutem natildeo pressupotildee sua interpretaccedilatildeo E essa interpretaccedilatildeo natildeo seria uma convenccedilatildeo ou no miacutenimo um artifiacutecio do homem O problema de se alcanccedilar a verdade da natureza portanto recai na inexorabilidade do artifiacutecio humano da interpretaccedilatildeo Ateacute que ponto essa interpretaccedilatildeo natildeo seria tendenciosa na proposta de Antifonte de se alinhar a conveniecircncia do homem agrave natureza

Guthrie esclarece porque Antifonte ainda em Sobre a Verdade apresenta diferentes conceitos de justiccedila14 para mostrar que as concepccedilotildees vigentes de moralidade satildeo inadequadas e que as formas da natureza eacute que devem ter preferecircncia15

Por fim temos em Antifonte a afirmaccedilatildeo de que a violaccedilatildeo das leis humanas eacute julgada pela opiniatildeo e a das leis naturais pela verdade Antifonte quer com isso mostrar que a natureza deve ser o referencial para a convenccedilatildeo humana ainda que esta ldquoverdade da naturezardquo seja contraacuteria a algumas conveniecircncias do homem Assim o sofista expotildee a dupla via de valoraccedilatildeo que o dualismo permite e que seraacute de modo controverso explorada por sofistas e filoacutesofos A sofiacutestica exploraraacute o dualismo com mais ecircnfase pelo vieacutes oposto qual seja o da justificativa eacutetico-poliacutetica baseada no noacutemos Como expocircs Cassin eacute caracteriacutestica da sofiacutestica a substituiccedilatildeo do fiacutesico pelo poliacutetico assim como o acordo discursivo (homologia) como base de legalidade poliacutetica16 Ainda segundo Cassin ldquoo consenso (homonoacuteia) eacute [] o efeito de uma operaccedilatildeo loacutegica no sentido lato capaz de voltar em seu favor as opiniotildees ou as praacuteticas contraditoacuterias que deveriam interdizecirc-lordquo17

No diaacutelogo Repuacuteblica Platatildeo inicia a justificativa de sua visatildeo poliacutetica do filoacutesofo-rei da cidade ideal (kallipolis) a partir da ideia de funccedilatildeo ou tarefa (eacutergon) especializada de cada coisa O personagem Soacutecrates em diaacutelogo com o personagem Trasiacutemaco sustenta que os objetos sejam manufaturados ou naturais possuem um eacutergon especiacutefico Esta funccedilatildeo eacute ou exclusiva de um determinado objeto ou realizada

13 Ibid p 73-75 B 44A DK 14 A saber (1) Conformidade agraves leis e costumes de seu paiacutes (2) natildeo causar injuacuteria exceto em resposta a uma injuacuteria recebida (3) nem causar nem sofrer injuacuteria 15 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge University Press 1965 III p 112 16 Cf CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Satildeo Paulo Editora 34 2005 p 71 17 CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Satildeo Paulo Siciliano 1990 p79

15

por este com mais perfeiccedilatildeo18 Assim Soacutecrates leva Trasiacutemaco a concordar que o cavalo tem uma funccedilatildeo determinada19 que os oacutergatildeos sensoriais tecircm suas funccedilotildees especiacuteficas (a saber olhos visatildeo e ouvidos audiccedilatildeo20) e tambeacutem que objetos cortantes como a faca satildeo ideais para cortar os sarmentos de uma vinha21

Logo adiante Platatildeo faz Soacutecrates propor que essa funccedilatildeo eacute uma virtude (areteacute) do objeto22 Esta proposiccedilatildeo eacute o ponto onde Platatildeo atribui um valor moral elevado (virtude) a uma caracteriacutestica natural do objeto qual seja a sua funccedilatildeo (ainda que ele tambeacutem tenha incluiacutedo objetos manufaturados na comparaccedilatildeo) Seu proacuteximo passo eacute expor a funccedilatildeo da alma e por consequecircncia a sua virtude Tal funccedilatildeo ou virtude eacute o governo da proacutepria vida23 Desta forma a vida bem governada pela alma (de acordo com a justiccedila) alcanccedilaraacute a felicidade ou eudaimoniacutea24 A mesma estrutura argumentativa aparece no momento da fundaccedilatildeo de uma cidade imaginaacuteria pelos personagens Soacutecrates e Adimanto25 quando eles chegam agrave conclusatildeo de que a especializaccedilatildeo de cada cidadatildeo em diferentes ofiacutecios [erga] de acordo com a sua natureza [phusin]26 eacute a forma mais proveitosa possiacutevel de distribuiccedilatildeo da forccedila de trabalho na cidade Eacute notaacutevel aqui a intenccedilatildeo de fazer a profissatildeo ou a funccedilatildeo de cada um ser vista como atributo natural Para deixar isso patente Soacutecrates declara ldquocada um de noacutes natildeo nasceu igual ao outro mas com naturezas [phusin] diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa [ergou praxei]rdquo27

O mesmo argumento naturalista aparece no diaacutelogo Craacutetilo onde Soacutecrates pretende justificar uma accedilatildeo correta a partir de sua proacutepria natureza ou seja ldquoa natureza da accedilatildeordquo Ele afirma que ldquoelas [as accedilotildees] se realizam segundo sua proacutepria natureza [phusin] natildeo conforme a opiniatildeo que dela fizermosrdquo28 Assim como na Repuacuteblica a natureza de cada coisa dita sua funccedilatildeo ou seja uma coisa deve ser feita

ldquosegundo os imperativos da natureza [phusei]rdquo 29 A natureza eacute o criteacuterio para o que eacute certo ldquono caso de querermos queimar alguma coisa natildeo devemos fazecirc-lo de qualquer modo como nos ditar a fantasia [conforme todas as opiniotildees kata pasan doxan30] mas pelo modo certo que eacute o modo indicado pela natureza [epephukei] para queimarrdquo31 O argumento da accedilatildeo naturalmente correta vai evoluir agrave accedilatildeo de falar e nomear as coisas culminando no ponto central do diaacutelogo (Craacutetilo) que eacute a accedilatildeo de nomear as coisas conforme a natureza 32 Assim a competecircncia de forjar nomes seraacute

18 Cf PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 352e 19 Ibid 352d-e 20 Ibid 352e 21 Ibid 353a 22 Ibid 353b-c 23 Ibid 353d 24 Ibid 353e - 354a 25 Ibid 369c 26 Ibid 370c 27 Ibid 370a-b (grifos meus) 28 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - CraacutetiloBeleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387a 29 Ibid 389c 30 Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101713Atext3DCrat3Asection3D387bgt acesso em 14 mar 2016 (Traduccedilatildeo minha) 31 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387b 32 Cf supra 387b-d

16

do ldquofazedor de nomesrdquo [onomatourgou] ou ldquolegislador [nomothetēs]rdquo33 Uma consequecircncia eacutetica interessante dessa proposta naturalista para os nomes seraacute a prescriccedilatildeo de que todo nome inclusive o de pessoas deveraacute corresponder a sua etimologia agrave sua natureza Como exemplo Soacutecrates diz que o iacutempio natildeo deveraacute se chamar Teoacutefilo (amigo de Deus) nem Mnesteu (lembrado de Deus)34 Outra via naturalista da justificativa dos nomes de acordo com a essecircncia das coisas nomeadas eacute o movimento feito pela boca para a pronuacutencia dos verbos de acordo com o movimento que esse verbo representa35 Apesar de Soacutecrates prescrever a perspectiva naturalista para o nome das coisas ele ao fim do diaacutelogo reconhece o uso corrente da convenccedilatildeo ldquoreceio muito que de fato [] seja bastante precaacuteria a tal forccedila de atraccedilatildeo da semelhanccedila e que nos vejamos forccedilados a recorrer a esse expediente banal a convenccedilatildeo [tē sunthēkē] para a correta imposiccedilatildeo dos nomes [onomatōn

orthotēta]rdquo36 Na Repuacuteblica a naturalizaccedilatildeo da virtude vai ter uma importante repercussatildeo

eacutetica ao se estabelecer quem no diaacutelogo definiraacute o ofiacutecio natural de cada cidadatildeo Soacutecrates diz a Adimanto ldquo[] eacute tarefa nossa segundo parece e se na verdade formos capazes disso proceder agrave escolha daqueles de qualidades e natureza [phuseōs] apropriadas para a custoacutedia da cidade37

Essa distinta capacidade que tais personagens filoacutesofos tecircm de determinar a natureza dos cidadatildeos vai se elevar agrave escolha dos guardiotildees da cidade Soacutecrates inicia uma comparaccedilatildeo da natureza dos animais com a natureza necessaacuteria aos guardiotildees Sugestivamente ele indaga Adimanto ldquohaacute alguma diferenccedila entre a natureza (phusin) de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascidordquo38 A valentia e porte fiacutesico do guardiatildeo deveratildeo ser como os de um catildeo ou cavalo mas ao mesmo tempo ele precisaraacute ser por natureza [phusei] doacutecil com os concidadatildeos como um catildeo de boa raccedila39 Essa capacidade do catildeo de distinguir amigos de inimigos eacute dada pelo seu ldquoinstinto filosoacutefico naturalrdquo [philosophos tēn phusin]40 Neste ponto temos uma passagem sutil mas importantiacutessima a naturalizaccedilatildeo do pendor filosoacutefico Esta seraacute crucial para justificar o filoacutesofo como governante a partir de uma imposiccedilatildeo da natureza com a forccedila do que eacute necessaacuterio e inescapaacutevel tal como disse Antifonte contudo aqui usado para hierarquizar homens ao inveacutes de igualaacute-los Quanto agrave natureza do guardiatildeo reafirma Soacutecrates ldquoquando procuramos um guarda dessa espeacutecie natildeo vamos contra a naturezardquo41 Quanto agrave relaccedilatildeo entre a filosofia e a natureza (do catildeo capaz de tal distinccedilatildeo) Soacutecrates afirma ldquomas sem duacutevida que demonstra a engenhosa conformaccedilatildeo da sua natureza [tēs phuseōs] que eacute

verdadeiramente amiga de saberrdquo42 E ainda sobre esta justificativa naturalista ele declara

33 Ibid 389a 34 Cf supra 394d-e 35 Cf supra 426c-427c 36 Ibid 435c 37 PLATAtildeO A Repuacuteblica 374e (grifo meu) 38 Ibid 375a (grifo meu) 39 Ibid 375e 40 Ibid 41 Ibid 375e 42 Ibid 376a-b (grifo meu)

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

7

RESUMO

A busca por uma justificativa universal para a conduta eacutetica tem encontrado na observaccedilatildeo da natureza um pretenso ponto de apoio incontestaacutevel A natureza por apresentar geraccedilatildeo (origem) de todos os seus seres de forma independente de accedilatildeo e deliberaccedilatildeo do homem tem sido usada como uma referecircncia para um modelo das accedilotildees humanas Como o estabelecimento deste ideal eacutetico frequentemente eacute embargado pela falta de consenso entre os homens o argumento naturalista ganha autoridade por esse pressuposto de imparcialidade Desta forma o fato de algo ser como tal na natureza tem sido visto como dever ser como tal A passagem de uma abordagem descritiva (como eacute) da natureza para uma abordagem prescritiva ou normativa (como deve ser) foi usada para justificar posturas eacuteticas O dualismo noacutemos-phyacutesis ou seja a distinccedilatildeo entre as normas que tecircm origem na convenccedilatildeo humana e o naturalismo eacute o ponto central de anaacutelise deste trabalho que pretende mostrar como esse dualismo foi abordado na sofiacutestica e na filosofia antiga para propoacutesitos eacuteticos e poliacuteticos Nesta anaacutelise seratildeo confrontadas a eacutetica contratualista (convencionalista) e a eacutetica naturalista na filosofia grega

Palavras-chave natureza naturalismo phyacutesis noacutemos lei convenccedilatildeo

8

ABSTRACT

The search for a universal justification for ethical conduct has found in the observation of nature an unquestionable support point Nature has been used as a guide for a human action model for it presents generation (origin) of all its beings regardless of manacutes deliberation As the settlement of such ethical ideal is often hindered by the lack of consensus among men the naturalistic argument gains authority due to this assumption of impartiality Thus the fact of something being as such in nature has been seen as a must be as such The shift from a descriptive approach (as it is) to a prescriptive approach (as it must be) has been used to justify ethical stances

The noacutemos-phyacutesis dualism that is the distinction between norms originated from human convention and naturalism itself is the main point of this paper which intends to show how such dualism was approached in sophistry and ancient philosophy for ethical and political purposes This analysis shall confront contractualist ethic with naturalist ethic in ancient philosophy

Keywords nature naturalism phyacutesis noacutemos law convention

9

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 10

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSYS 12

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS 34

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE 38

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 45

6 FONTES - REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS E BIBLIOGRAFIA 48

10

1 INTRODUCcedilAtildeO

O termo phyacutesis pode ser entendido como ldquoorigem [] forma ou constituiccedilatildeo natural de uma pessoa ou coisa como resultado de crescimento [ou a proacutepria] naturezardquo1 Noacutemos eacute o costume o uso a lei ou decreto2 O termo ldquonaturezardquo (phyacutesis) quando contrastado com ldquoleirdquo (noacutemos) evoca a ideia de realidade No periacuteodo claacutessico algo dito nomizetai eacute algo em que se acredita algo praticado por ser tido como correto3 Assim a busca de um paracircmetro para definiccedilatildeo do correto para o homem frequentemente esbarra nesses dois pontos O noacutemos visto como lei ou diretriz eacutetica eacute alcanccedilado pelo consenso dos homens requerendo concordacircncia e assentimento As dissensotildees decorrentes do fracasso em se chegar ao noacutemos comumente tendem a eleger como modelo imperativo o que incontestavelmente jaacute estaacute aiacute no mundo jaacute nos eacute dado de saiacuteda na nossa existecircncia o que eacute espontacircneo e livre de nossa opiniatildeo para ser como tal ou seja a natureza

O natural eacute universalmente reconhecido como anterior ao homem Essa anterioridade perante aquelas dissensotildees e baseada em tal reconhecimento universal ganha forccedila para se impor sobre as partes discordantes No entanto essa forccedila eacute transferida sutilmente de uma perspectiva de mera constataccedilatildeo factual (como eacute na natureza) para uma perspectiva de prescriccedilatildeo eacutetica (como deve ser entre os homens) Eacute neste ponto que se encontra a incongruecircncia da falaacutecia naturalista4 Kerferd diz que ldquoo apelo natildeo eacute para a natureza em geral mas para a natureza [] humana e isso deve ter tornado o apelo ainda mais faacutecil visto que a urgecircncia de muitas das demandas que brotam de nossa proacutepria natureza parece dar a elas uma clara forccedila prescritivardquo5 O dualismo noacutemos-phyacutesis foi utilizado para sustentar variadas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas apoiadas em seus diferentes polos Sua abordagem eacute notada no periacuteodo heleniacutestico perpassando a trageacutedia e a filosofia incluindo a sofiacutestica Na religiatildeo os proacuteprios deuses foram discutidos se eram realmente existentes ou se eram somente concebidos por convenccedilatildeo E assim tambeacutem para as divisotildees raciais e poliacuteticas da espeacutecie humana repercutindo desde a igualdade de direitos ateacute a escravidatildeo assim como dos regimes poliacuteticos igualitaacuterios ateacute a tirania

1 LIDELL H G SCOTT R A Greek-English Lexicon Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dfu2Fsisgt Acesso em 17 nov 2014 2 Cf supra Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Dno2Fmosgt Acesso em 17 nov 2014 3 Cf GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993 p 55 4 Termo cunhado por George Edward Moore que expotildee a confusatildeo entre a constataccedilatildeo de um fato natural e atribuiccedilatildeo de um valor eacutetico ldquo[] a mistake of this simple kind has commonly been made about good It may be true that all things which are good are also something else just as it is true that all things which are yellow produce a certain kind of vibration in the light And it is a fact that Ethics aims at discovering what are those other properties belonging to all things which are good But far too many philosophers have thought that when they named those other properties they were actually defining good that these properties in fact were simply not other but absolutely and entirely the same with goodness This view I propose to call the naturalistic fallacy []rdquo MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922 p 10 sect10 5 KERFERD G B O Movimento Sofista Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 p195

11

Sob o ponto de vista religioso a lei absoluta e universal que rege as leis humanas proveacutem de divindades De acordo com Heraacuteclito por exemplo ldquotodas as leis [noacutemoi6] humanas satildeo alimentadas por uma lei una a divina pois exerce seu domiacutenio tatildeo longe quanto se consente e basta e envolve todas as outrasrdquo7 Na trageacutedia a lei divina eacute comumente evocada para sobrepujar a lei humana como em Antiacutegona de Soacutefocles quando a personagem homocircnima recorre agrave lei divina para se eximir da lei do rei Creonte ldquoeu natildeo creio que teus decretos escritos pela matildeo de um mortal possam ser superiores agraves leis [nomima] natildeo escritas e imutaacuteveis dos deusesrdquo8 Agrave medida que as leis divinas passam a ser desacreditadas outras formas de realismo eacutetico-poliacutetico surgem em seu lugar Eacute o caso da natureza como veremos adiante Eacute comum encontrar autores que adotam posiccedilotildees ora proacute-phyacutesis (naturalista) ora proacute-noacutemos (consensualista) Assim a abordagem a seguir faraacute uma separaccedilatildeo em linhas gerais destas posturas permitindo-se poreacutem sempre uma criacutetica comparativa entre elas em todo seu decorrer

6 Nas citaccedilotildees dos textos filosoacuteficos gregos as palavras-chave e as de maior relevacircncia para este trabalho foram retiradas em transliteraccedilatildeo latina de Perseus Digital Library Disponiacutevel em ltwwwperseustuftsedugt 7 HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012 p115 fr 114 8 SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Rio de Janeiro DIFEL 2006 p 46-7 450-5

12

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSIS

Na sofiacutestica vemos uma multiplicidade de posiccedilotildees eacuteticas em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo de modo que natildeo haacute um soacute ldquolugar sofiacutesticordquo Um dos principais registros da sofiacutestica sobre o problema do dualismo entre convenccedilatildeo humana e natureza como criteacuterio eacutetico foi de Antifonte Em seu texto Sobre a Verdade do qual soacute nos chegaram fragmentos ele aborda a diferenccedila entre baacuterbaros e gregos como sendo meramente convencional apontando para a mesma natureza em ambos Antifonte ressalta que as caracteriacutesticas e funccedilotildees corporais satildeo as mesmas entre os dois por natureza e portanto necessaacuterias

agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros enquanto por natureza [phusei] todos em tudo nascemos igualmente dispostos para ser tanto baacuterbaros quanto gregos Eacute o caso de observar as coisas que por natureza [phusei] satildeo necessaacuterias a todos os homens a todos satildeo acessiacuteveis pelas

mesmas capacidades e em todas as coisas nenhum de noacutes eacute determinado nem como baacuterbaro nem como grego Pois todos respiramos o ar pela boca e pelas narinas [] e comemos todos com as matildeos [] e rimos quando nos alegramos [] no espiacuterito ou choramos quando sentimos dor e pela audiccedilatildeo acolhemos os sons e pela luz do sol com a vista vemos e com as matildeos trabalhamos e com os peacutes caminhamos [] segundo a medida do que agrada cada um dos homens e eles em conjunto se reuniram e estabeleceram as leis9

A importacircncia da anaacutelise deste texto reside no fato de para Antifonte as leis humanas serem impostas e as naturais necessaacuterias O sofista mostra que a necessidade imposta aos homens pela natureza (phyacutesei oacutenton anankaicircon pacirc sin antropoacuteis) de que gregos e baacuterbaros sejam iguais se sobrepotildee agraves leis (noacutemous) que agradam a determinadas sociedades ou etnias (ldquohomens em conjuntordquo) Quando agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros sob pretexto de obediecircncia agrave lei (noacutemos) violamos a igualdade natural Ao chamar ambas as partes da contenda de baacuterbaros Antifonte mostra que a diferenccedila eacutetnica (gregos e baacuterbaros) natildeo pode justificar a guerra Quanto agrave violaccedilatildeo das determinaccedilotildees da natureza Antifonte diz

As prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo impostas de fora as da natureza [phuseos] necessaacuterias E as prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo pactuadas e natildeo geradas naturalmente [phunta] enquanto as da natureza [phuseos] satildeo geradas naturalmente [phunta] e natildeo pactuadas [] Transgredindo as prescriccedilotildees das leis [noacutemima] com efeito se encoberto diante dos que compactuam aparta-se da vergonha e castigo [] Se alguma das coisas que nascem com a natureza [phusei] eacute violentada para aleacutem do possiacutevel mesmo que isso ficasse encoberto a todos os homens em nada o mal seria menor e se todos vissem em nada maior pois natildeo eacute prejudicado pela opiniatildeo mas pela verdade10

9 ANTIFONTE Fragmentos B44B DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 77-9 (grifo meu) 10 Ibid B44A DK p 73 (grifos meus)

13

Cassin aponta em relaccedilatildeo agrave diferenccedila social em Antifonte um duplo problema ldquoo racismo dos gregos e a relaccedilatildeo entre racismo e a democraciardquo11 Ao afirmar que gregos tambeacutem ldquobarbarizamrdquo (ldquofalam de modo ininteligiacutevelrdquo) Antifonte faz uma criacutetica ao etnocentrismo grego com base naturalista No entanto essa criacutetica encontra grande dificuldade ao se deparar com as leis atenienses legisladas de modo democraacutetico tendentes a valorizar seu proacuteprio povo

Antifonte coloca a natureza como paracircmetro de verdade (o agir conforme a natureza) de cuja puniccedilatildeo natildeo se pode escapar como das puniccedilotildees das leis humanas A transgressatildeo das leis convencionais humanas eacute passiacutevel de vergonha e puniccedilatildeo baseada em opiniatildeo humana ou quiccedilaacute de nenhuma caso ningueacutem tome conhecimento ao passo que a sanccedilatildeo para a transgressatildeo de lei natural eacute em funccedilatildeo da verdade livre de qualquer valoraccedilatildeo humana e por isso inescapaacutevel e amoral Contudo um conceito de verdade absoluta soacute se sustenta como uma ideia pois do ponto de vista pragmaacutetico para se chegar a ela seraacute sempre necessaacuterio um caminho de interpretaccedilatildeo humana Caminho esse que natildeo eacute uniacutevoco e satildeo nas bifurcaccedilotildees deste caminho interpretativo que os homens chegam paradoxalmente a diferentes ldquoverdades uacutenicas e absolutasrdquo Afinal quantas verdades diferentes a respeito da mesma coisa a civilizaccedilatildeo humana em toda sua histoacuteria jaacute natildeo produziu Neste texto Antifonte mostra a forccedila da natureza como uma necessidade que se impotildee a despeito da lei do homem A lei pode inclusive ser contra a natureza prescrevendo como o homem deve interpretar seus sentidos e como ele deve se portar ainda que de modo antagocircnico ao natural

muitas das coisas justas segundo a lei [noacutemon dikaiacuteon] estatildeo em peacute de guerra com a natureza [phusei] pois estatildeo dispostas por lei aos

olhos as coisas que devem [] ver e as coisas que natildeo devem e aos ouvidos as que eles devem ouvir e as que natildeo devem e agrave liacutengua as que ela deve dizer e as que natildeo deve e agraves matildeos as que ela deve fazer e as que natildeo devem e aos peacutes para onde devem ir e para onde natildeo devem e ao espiacuterito as coisas que deve desejar e as que natildeo deve Com efeito natildeo satildeo para a natureza [phusei] em nada mais afins

nem mais proacuteprias as coisas das quais as leis dissuadem os homens do que aquelas das quais persuadem12

O autor quer aqui mostrar que o noacutemos pode ditar como o homem deve emitir

juiacutezos sobre seus dons naturais como ouvir e falar Ele mostra tambeacutem que o interesse incutido na convenccedilatildeo da lei determina como o homem deve se portar na natureza ou ainda como a lei pretende determinar a eacutetica Mas eacute longe do julgamento dos olhos alheios ou seja em estado natural que o homem encontra sua verdadeira eacutetica A conveniecircncia do homem natildeo necessariamente favorece o curso da natureza Contudo segundo Antifonte esta deveria ser o referencial da sua eacutetica jaacute que como visto a natureza eacute a verdade e a necessidade a despeito de qualquer sentimento que possa afastaacute-lo desse referencial como a vergonha Esse eacute o ponto central desta

11 CASSIN B ldquoBarbarizarrdquo e ldquoCidadanizarrdquo In CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A Cidade e Seus Outros Rio de Janeiro Editora 34 1993 p 107 12 ANTIFONTE Acerca da Verdade B44A DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 73

14

discussatildeo ou seja qual referencial eacutetico deve-se adotar Nesse sentido continua Antifonte

o viver e o morrer satildeo da natureza [phuseos] e para eles [os homens]

o viver eacute uma das coisas convenientes e o morrer uma das natildeo-convenientes As coisas convenientes fixadas pelas leis [noacutemon] por seu turno satildeo grilhotildees da natureza [phuseos] as fixadas pela natureza [phuseos] livres De fato as coisas que produzem sofrimento por uma correta razatildeo natildeo satildeo proveitosas agrave natureza [phusin] mais do que as agradaacuteveis Pois as coisas convenientes

segundo a verdade natildeo devem prejudicar mas beneficiar 13

Ou seja para o curso da natureza pouco importa o que agrada ou desagrada ao homem A conveniecircncia humana sob forma de leis pode impedir o curso livre da natureza Por ver a natureza como fonte de verdade Antifonte preconiza que o homem deve alinhar sua conveniecircncia agrave natureza Contudo alcanccedilar a verdade da natureza tambeacutem natildeo pressupotildee sua interpretaccedilatildeo E essa interpretaccedilatildeo natildeo seria uma convenccedilatildeo ou no miacutenimo um artifiacutecio do homem O problema de se alcanccedilar a verdade da natureza portanto recai na inexorabilidade do artifiacutecio humano da interpretaccedilatildeo Ateacute que ponto essa interpretaccedilatildeo natildeo seria tendenciosa na proposta de Antifonte de se alinhar a conveniecircncia do homem agrave natureza

Guthrie esclarece porque Antifonte ainda em Sobre a Verdade apresenta diferentes conceitos de justiccedila14 para mostrar que as concepccedilotildees vigentes de moralidade satildeo inadequadas e que as formas da natureza eacute que devem ter preferecircncia15

Por fim temos em Antifonte a afirmaccedilatildeo de que a violaccedilatildeo das leis humanas eacute julgada pela opiniatildeo e a das leis naturais pela verdade Antifonte quer com isso mostrar que a natureza deve ser o referencial para a convenccedilatildeo humana ainda que esta ldquoverdade da naturezardquo seja contraacuteria a algumas conveniecircncias do homem Assim o sofista expotildee a dupla via de valoraccedilatildeo que o dualismo permite e que seraacute de modo controverso explorada por sofistas e filoacutesofos A sofiacutestica exploraraacute o dualismo com mais ecircnfase pelo vieacutes oposto qual seja o da justificativa eacutetico-poliacutetica baseada no noacutemos Como expocircs Cassin eacute caracteriacutestica da sofiacutestica a substituiccedilatildeo do fiacutesico pelo poliacutetico assim como o acordo discursivo (homologia) como base de legalidade poliacutetica16 Ainda segundo Cassin ldquoo consenso (homonoacuteia) eacute [] o efeito de uma operaccedilatildeo loacutegica no sentido lato capaz de voltar em seu favor as opiniotildees ou as praacuteticas contraditoacuterias que deveriam interdizecirc-lordquo17

No diaacutelogo Repuacuteblica Platatildeo inicia a justificativa de sua visatildeo poliacutetica do filoacutesofo-rei da cidade ideal (kallipolis) a partir da ideia de funccedilatildeo ou tarefa (eacutergon) especializada de cada coisa O personagem Soacutecrates em diaacutelogo com o personagem Trasiacutemaco sustenta que os objetos sejam manufaturados ou naturais possuem um eacutergon especiacutefico Esta funccedilatildeo eacute ou exclusiva de um determinado objeto ou realizada

13 Ibid p 73-75 B 44A DK 14 A saber (1) Conformidade agraves leis e costumes de seu paiacutes (2) natildeo causar injuacuteria exceto em resposta a uma injuacuteria recebida (3) nem causar nem sofrer injuacuteria 15 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge University Press 1965 III p 112 16 Cf CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Satildeo Paulo Editora 34 2005 p 71 17 CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Satildeo Paulo Siciliano 1990 p79

15

por este com mais perfeiccedilatildeo18 Assim Soacutecrates leva Trasiacutemaco a concordar que o cavalo tem uma funccedilatildeo determinada19 que os oacutergatildeos sensoriais tecircm suas funccedilotildees especiacuteficas (a saber olhos visatildeo e ouvidos audiccedilatildeo20) e tambeacutem que objetos cortantes como a faca satildeo ideais para cortar os sarmentos de uma vinha21

Logo adiante Platatildeo faz Soacutecrates propor que essa funccedilatildeo eacute uma virtude (areteacute) do objeto22 Esta proposiccedilatildeo eacute o ponto onde Platatildeo atribui um valor moral elevado (virtude) a uma caracteriacutestica natural do objeto qual seja a sua funccedilatildeo (ainda que ele tambeacutem tenha incluiacutedo objetos manufaturados na comparaccedilatildeo) Seu proacuteximo passo eacute expor a funccedilatildeo da alma e por consequecircncia a sua virtude Tal funccedilatildeo ou virtude eacute o governo da proacutepria vida23 Desta forma a vida bem governada pela alma (de acordo com a justiccedila) alcanccedilaraacute a felicidade ou eudaimoniacutea24 A mesma estrutura argumentativa aparece no momento da fundaccedilatildeo de uma cidade imaginaacuteria pelos personagens Soacutecrates e Adimanto25 quando eles chegam agrave conclusatildeo de que a especializaccedilatildeo de cada cidadatildeo em diferentes ofiacutecios [erga] de acordo com a sua natureza [phusin]26 eacute a forma mais proveitosa possiacutevel de distribuiccedilatildeo da forccedila de trabalho na cidade Eacute notaacutevel aqui a intenccedilatildeo de fazer a profissatildeo ou a funccedilatildeo de cada um ser vista como atributo natural Para deixar isso patente Soacutecrates declara ldquocada um de noacutes natildeo nasceu igual ao outro mas com naturezas [phusin] diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa [ergou praxei]rdquo27

O mesmo argumento naturalista aparece no diaacutelogo Craacutetilo onde Soacutecrates pretende justificar uma accedilatildeo correta a partir de sua proacutepria natureza ou seja ldquoa natureza da accedilatildeordquo Ele afirma que ldquoelas [as accedilotildees] se realizam segundo sua proacutepria natureza [phusin] natildeo conforme a opiniatildeo que dela fizermosrdquo28 Assim como na Repuacuteblica a natureza de cada coisa dita sua funccedilatildeo ou seja uma coisa deve ser feita

ldquosegundo os imperativos da natureza [phusei]rdquo 29 A natureza eacute o criteacuterio para o que eacute certo ldquono caso de querermos queimar alguma coisa natildeo devemos fazecirc-lo de qualquer modo como nos ditar a fantasia [conforme todas as opiniotildees kata pasan doxan30] mas pelo modo certo que eacute o modo indicado pela natureza [epephukei] para queimarrdquo31 O argumento da accedilatildeo naturalmente correta vai evoluir agrave accedilatildeo de falar e nomear as coisas culminando no ponto central do diaacutelogo (Craacutetilo) que eacute a accedilatildeo de nomear as coisas conforme a natureza 32 Assim a competecircncia de forjar nomes seraacute

18 Cf PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 352e 19 Ibid 352d-e 20 Ibid 352e 21 Ibid 353a 22 Ibid 353b-c 23 Ibid 353d 24 Ibid 353e - 354a 25 Ibid 369c 26 Ibid 370c 27 Ibid 370a-b (grifos meus) 28 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - CraacutetiloBeleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387a 29 Ibid 389c 30 Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101713Atext3DCrat3Asection3D387bgt acesso em 14 mar 2016 (Traduccedilatildeo minha) 31 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387b 32 Cf supra 387b-d

16

do ldquofazedor de nomesrdquo [onomatourgou] ou ldquolegislador [nomothetēs]rdquo33 Uma consequecircncia eacutetica interessante dessa proposta naturalista para os nomes seraacute a prescriccedilatildeo de que todo nome inclusive o de pessoas deveraacute corresponder a sua etimologia agrave sua natureza Como exemplo Soacutecrates diz que o iacutempio natildeo deveraacute se chamar Teoacutefilo (amigo de Deus) nem Mnesteu (lembrado de Deus)34 Outra via naturalista da justificativa dos nomes de acordo com a essecircncia das coisas nomeadas eacute o movimento feito pela boca para a pronuacutencia dos verbos de acordo com o movimento que esse verbo representa35 Apesar de Soacutecrates prescrever a perspectiva naturalista para o nome das coisas ele ao fim do diaacutelogo reconhece o uso corrente da convenccedilatildeo ldquoreceio muito que de fato [] seja bastante precaacuteria a tal forccedila de atraccedilatildeo da semelhanccedila e que nos vejamos forccedilados a recorrer a esse expediente banal a convenccedilatildeo [tē sunthēkē] para a correta imposiccedilatildeo dos nomes [onomatōn

orthotēta]rdquo36 Na Repuacuteblica a naturalizaccedilatildeo da virtude vai ter uma importante repercussatildeo

eacutetica ao se estabelecer quem no diaacutelogo definiraacute o ofiacutecio natural de cada cidadatildeo Soacutecrates diz a Adimanto ldquo[] eacute tarefa nossa segundo parece e se na verdade formos capazes disso proceder agrave escolha daqueles de qualidades e natureza [phuseōs] apropriadas para a custoacutedia da cidade37

Essa distinta capacidade que tais personagens filoacutesofos tecircm de determinar a natureza dos cidadatildeos vai se elevar agrave escolha dos guardiotildees da cidade Soacutecrates inicia uma comparaccedilatildeo da natureza dos animais com a natureza necessaacuteria aos guardiotildees Sugestivamente ele indaga Adimanto ldquohaacute alguma diferenccedila entre a natureza (phusin) de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascidordquo38 A valentia e porte fiacutesico do guardiatildeo deveratildeo ser como os de um catildeo ou cavalo mas ao mesmo tempo ele precisaraacute ser por natureza [phusei] doacutecil com os concidadatildeos como um catildeo de boa raccedila39 Essa capacidade do catildeo de distinguir amigos de inimigos eacute dada pelo seu ldquoinstinto filosoacutefico naturalrdquo [philosophos tēn phusin]40 Neste ponto temos uma passagem sutil mas importantiacutessima a naturalizaccedilatildeo do pendor filosoacutefico Esta seraacute crucial para justificar o filoacutesofo como governante a partir de uma imposiccedilatildeo da natureza com a forccedila do que eacute necessaacuterio e inescapaacutevel tal como disse Antifonte contudo aqui usado para hierarquizar homens ao inveacutes de igualaacute-los Quanto agrave natureza do guardiatildeo reafirma Soacutecrates ldquoquando procuramos um guarda dessa espeacutecie natildeo vamos contra a naturezardquo41 Quanto agrave relaccedilatildeo entre a filosofia e a natureza (do catildeo capaz de tal distinccedilatildeo) Soacutecrates afirma ldquomas sem duacutevida que demonstra a engenhosa conformaccedilatildeo da sua natureza [tēs phuseōs] que eacute

verdadeiramente amiga de saberrdquo42 E ainda sobre esta justificativa naturalista ele declara

33 Ibid 389a 34 Cf supra 394d-e 35 Cf supra 426c-427c 36 Ibid 435c 37 PLATAtildeO A Repuacuteblica 374e (grifo meu) 38 Ibid 375a (grifo meu) 39 Ibid 375e 40 Ibid 41 Ibid 375e 42 Ibid 376a-b (grifo meu)

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

8

ABSTRACT

The search for a universal justification for ethical conduct has found in the observation of nature an unquestionable support point Nature has been used as a guide for a human action model for it presents generation (origin) of all its beings regardless of manacutes deliberation As the settlement of such ethical ideal is often hindered by the lack of consensus among men the naturalistic argument gains authority due to this assumption of impartiality Thus the fact of something being as such in nature has been seen as a must be as such The shift from a descriptive approach (as it is) to a prescriptive approach (as it must be) has been used to justify ethical stances

The noacutemos-phyacutesis dualism that is the distinction between norms originated from human convention and naturalism itself is the main point of this paper which intends to show how such dualism was approached in sophistry and ancient philosophy for ethical and political purposes This analysis shall confront contractualist ethic with naturalist ethic in ancient philosophy

Keywords nature naturalism phyacutesis noacutemos law convention

9

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 10

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSYS 12

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS 34

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE 38

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 45

6 FONTES - REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS E BIBLIOGRAFIA 48

10

1 INTRODUCcedilAtildeO

O termo phyacutesis pode ser entendido como ldquoorigem [] forma ou constituiccedilatildeo natural de uma pessoa ou coisa como resultado de crescimento [ou a proacutepria] naturezardquo1 Noacutemos eacute o costume o uso a lei ou decreto2 O termo ldquonaturezardquo (phyacutesis) quando contrastado com ldquoleirdquo (noacutemos) evoca a ideia de realidade No periacuteodo claacutessico algo dito nomizetai eacute algo em que se acredita algo praticado por ser tido como correto3 Assim a busca de um paracircmetro para definiccedilatildeo do correto para o homem frequentemente esbarra nesses dois pontos O noacutemos visto como lei ou diretriz eacutetica eacute alcanccedilado pelo consenso dos homens requerendo concordacircncia e assentimento As dissensotildees decorrentes do fracasso em se chegar ao noacutemos comumente tendem a eleger como modelo imperativo o que incontestavelmente jaacute estaacute aiacute no mundo jaacute nos eacute dado de saiacuteda na nossa existecircncia o que eacute espontacircneo e livre de nossa opiniatildeo para ser como tal ou seja a natureza

O natural eacute universalmente reconhecido como anterior ao homem Essa anterioridade perante aquelas dissensotildees e baseada em tal reconhecimento universal ganha forccedila para se impor sobre as partes discordantes No entanto essa forccedila eacute transferida sutilmente de uma perspectiva de mera constataccedilatildeo factual (como eacute na natureza) para uma perspectiva de prescriccedilatildeo eacutetica (como deve ser entre os homens) Eacute neste ponto que se encontra a incongruecircncia da falaacutecia naturalista4 Kerferd diz que ldquoo apelo natildeo eacute para a natureza em geral mas para a natureza [] humana e isso deve ter tornado o apelo ainda mais faacutecil visto que a urgecircncia de muitas das demandas que brotam de nossa proacutepria natureza parece dar a elas uma clara forccedila prescritivardquo5 O dualismo noacutemos-phyacutesis foi utilizado para sustentar variadas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas apoiadas em seus diferentes polos Sua abordagem eacute notada no periacuteodo heleniacutestico perpassando a trageacutedia e a filosofia incluindo a sofiacutestica Na religiatildeo os proacuteprios deuses foram discutidos se eram realmente existentes ou se eram somente concebidos por convenccedilatildeo E assim tambeacutem para as divisotildees raciais e poliacuteticas da espeacutecie humana repercutindo desde a igualdade de direitos ateacute a escravidatildeo assim como dos regimes poliacuteticos igualitaacuterios ateacute a tirania

1 LIDELL H G SCOTT R A Greek-English Lexicon Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dfu2Fsisgt Acesso em 17 nov 2014 2 Cf supra Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Dno2Fmosgt Acesso em 17 nov 2014 3 Cf GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993 p 55 4 Termo cunhado por George Edward Moore que expotildee a confusatildeo entre a constataccedilatildeo de um fato natural e atribuiccedilatildeo de um valor eacutetico ldquo[] a mistake of this simple kind has commonly been made about good It may be true that all things which are good are also something else just as it is true that all things which are yellow produce a certain kind of vibration in the light And it is a fact that Ethics aims at discovering what are those other properties belonging to all things which are good But far too many philosophers have thought that when they named those other properties they were actually defining good that these properties in fact were simply not other but absolutely and entirely the same with goodness This view I propose to call the naturalistic fallacy []rdquo MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922 p 10 sect10 5 KERFERD G B O Movimento Sofista Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 p195

11

Sob o ponto de vista religioso a lei absoluta e universal que rege as leis humanas proveacutem de divindades De acordo com Heraacuteclito por exemplo ldquotodas as leis [noacutemoi6] humanas satildeo alimentadas por uma lei una a divina pois exerce seu domiacutenio tatildeo longe quanto se consente e basta e envolve todas as outrasrdquo7 Na trageacutedia a lei divina eacute comumente evocada para sobrepujar a lei humana como em Antiacutegona de Soacutefocles quando a personagem homocircnima recorre agrave lei divina para se eximir da lei do rei Creonte ldquoeu natildeo creio que teus decretos escritos pela matildeo de um mortal possam ser superiores agraves leis [nomima] natildeo escritas e imutaacuteveis dos deusesrdquo8 Agrave medida que as leis divinas passam a ser desacreditadas outras formas de realismo eacutetico-poliacutetico surgem em seu lugar Eacute o caso da natureza como veremos adiante Eacute comum encontrar autores que adotam posiccedilotildees ora proacute-phyacutesis (naturalista) ora proacute-noacutemos (consensualista) Assim a abordagem a seguir faraacute uma separaccedilatildeo em linhas gerais destas posturas permitindo-se poreacutem sempre uma criacutetica comparativa entre elas em todo seu decorrer

6 Nas citaccedilotildees dos textos filosoacuteficos gregos as palavras-chave e as de maior relevacircncia para este trabalho foram retiradas em transliteraccedilatildeo latina de Perseus Digital Library Disponiacutevel em ltwwwperseustuftsedugt 7 HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012 p115 fr 114 8 SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Rio de Janeiro DIFEL 2006 p 46-7 450-5

12

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSIS

Na sofiacutestica vemos uma multiplicidade de posiccedilotildees eacuteticas em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo de modo que natildeo haacute um soacute ldquolugar sofiacutesticordquo Um dos principais registros da sofiacutestica sobre o problema do dualismo entre convenccedilatildeo humana e natureza como criteacuterio eacutetico foi de Antifonte Em seu texto Sobre a Verdade do qual soacute nos chegaram fragmentos ele aborda a diferenccedila entre baacuterbaros e gregos como sendo meramente convencional apontando para a mesma natureza em ambos Antifonte ressalta que as caracteriacutesticas e funccedilotildees corporais satildeo as mesmas entre os dois por natureza e portanto necessaacuterias

agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros enquanto por natureza [phusei] todos em tudo nascemos igualmente dispostos para ser tanto baacuterbaros quanto gregos Eacute o caso de observar as coisas que por natureza [phusei] satildeo necessaacuterias a todos os homens a todos satildeo acessiacuteveis pelas

mesmas capacidades e em todas as coisas nenhum de noacutes eacute determinado nem como baacuterbaro nem como grego Pois todos respiramos o ar pela boca e pelas narinas [] e comemos todos com as matildeos [] e rimos quando nos alegramos [] no espiacuterito ou choramos quando sentimos dor e pela audiccedilatildeo acolhemos os sons e pela luz do sol com a vista vemos e com as matildeos trabalhamos e com os peacutes caminhamos [] segundo a medida do que agrada cada um dos homens e eles em conjunto se reuniram e estabeleceram as leis9

A importacircncia da anaacutelise deste texto reside no fato de para Antifonte as leis humanas serem impostas e as naturais necessaacuterias O sofista mostra que a necessidade imposta aos homens pela natureza (phyacutesei oacutenton anankaicircon pacirc sin antropoacuteis) de que gregos e baacuterbaros sejam iguais se sobrepotildee agraves leis (noacutemous) que agradam a determinadas sociedades ou etnias (ldquohomens em conjuntordquo) Quando agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros sob pretexto de obediecircncia agrave lei (noacutemos) violamos a igualdade natural Ao chamar ambas as partes da contenda de baacuterbaros Antifonte mostra que a diferenccedila eacutetnica (gregos e baacuterbaros) natildeo pode justificar a guerra Quanto agrave violaccedilatildeo das determinaccedilotildees da natureza Antifonte diz

As prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo impostas de fora as da natureza [phuseos] necessaacuterias E as prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo pactuadas e natildeo geradas naturalmente [phunta] enquanto as da natureza [phuseos] satildeo geradas naturalmente [phunta] e natildeo pactuadas [] Transgredindo as prescriccedilotildees das leis [noacutemima] com efeito se encoberto diante dos que compactuam aparta-se da vergonha e castigo [] Se alguma das coisas que nascem com a natureza [phusei] eacute violentada para aleacutem do possiacutevel mesmo que isso ficasse encoberto a todos os homens em nada o mal seria menor e se todos vissem em nada maior pois natildeo eacute prejudicado pela opiniatildeo mas pela verdade10

9 ANTIFONTE Fragmentos B44B DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 77-9 (grifo meu) 10 Ibid B44A DK p 73 (grifos meus)

13

Cassin aponta em relaccedilatildeo agrave diferenccedila social em Antifonte um duplo problema ldquoo racismo dos gregos e a relaccedilatildeo entre racismo e a democraciardquo11 Ao afirmar que gregos tambeacutem ldquobarbarizamrdquo (ldquofalam de modo ininteligiacutevelrdquo) Antifonte faz uma criacutetica ao etnocentrismo grego com base naturalista No entanto essa criacutetica encontra grande dificuldade ao se deparar com as leis atenienses legisladas de modo democraacutetico tendentes a valorizar seu proacuteprio povo

Antifonte coloca a natureza como paracircmetro de verdade (o agir conforme a natureza) de cuja puniccedilatildeo natildeo se pode escapar como das puniccedilotildees das leis humanas A transgressatildeo das leis convencionais humanas eacute passiacutevel de vergonha e puniccedilatildeo baseada em opiniatildeo humana ou quiccedilaacute de nenhuma caso ningueacutem tome conhecimento ao passo que a sanccedilatildeo para a transgressatildeo de lei natural eacute em funccedilatildeo da verdade livre de qualquer valoraccedilatildeo humana e por isso inescapaacutevel e amoral Contudo um conceito de verdade absoluta soacute se sustenta como uma ideia pois do ponto de vista pragmaacutetico para se chegar a ela seraacute sempre necessaacuterio um caminho de interpretaccedilatildeo humana Caminho esse que natildeo eacute uniacutevoco e satildeo nas bifurcaccedilotildees deste caminho interpretativo que os homens chegam paradoxalmente a diferentes ldquoverdades uacutenicas e absolutasrdquo Afinal quantas verdades diferentes a respeito da mesma coisa a civilizaccedilatildeo humana em toda sua histoacuteria jaacute natildeo produziu Neste texto Antifonte mostra a forccedila da natureza como uma necessidade que se impotildee a despeito da lei do homem A lei pode inclusive ser contra a natureza prescrevendo como o homem deve interpretar seus sentidos e como ele deve se portar ainda que de modo antagocircnico ao natural

muitas das coisas justas segundo a lei [noacutemon dikaiacuteon] estatildeo em peacute de guerra com a natureza [phusei] pois estatildeo dispostas por lei aos

olhos as coisas que devem [] ver e as coisas que natildeo devem e aos ouvidos as que eles devem ouvir e as que natildeo devem e agrave liacutengua as que ela deve dizer e as que natildeo deve e agraves matildeos as que ela deve fazer e as que natildeo devem e aos peacutes para onde devem ir e para onde natildeo devem e ao espiacuterito as coisas que deve desejar e as que natildeo deve Com efeito natildeo satildeo para a natureza [phusei] em nada mais afins

nem mais proacuteprias as coisas das quais as leis dissuadem os homens do que aquelas das quais persuadem12

O autor quer aqui mostrar que o noacutemos pode ditar como o homem deve emitir

juiacutezos sobre seus dons naturais como ouvir e falar Ele mostra tambeacutem que o interesse incutido na convenccedilatildeo da lei determina como o homem deve se portar na natureza ou ainda como a lei pretende determinar a eacutetica Mas eacute longe do julgamento dos olhos alheios ou seja em estado natural que o homem encontra sua verdadeira eacutetica A conveniecircncia do homem natildeo necessariamente favorece o curso da natureza Contudo segundo Antifonte esta deveria ser o referencial da sua eacutetica jaacute que como visto a natureza eacute a verdade e a necessidade a despeito de qualquer sentimento que possa afastaacute-lo desse referencial como a vergonha Esse eacute o ponto central desta

11 CASSIN B ldquoBarbarizarrdquo e ldquoCidadanizarrdquo In CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A Cidade e Seus Outros Rio de Janeiro Editora 34 1993 p 107 12 ANTIFONTE Acerca da Verdade B44A DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 73

14

discussatildeo ou seja qual referencial eacutetico deve-se adotar Nesse sentido continua Antifonte

o viver e o morrer satildeo da natureza [phuseos] e para eles [os homens]

o viver eacute uma das coisas convenientes e o morrer uma das natildeo-convenientes As coisas convenientes fixadas pelas leis [noacutemon] por seu turno satildeo grilhotildees da natureza [phuseos] as fixadas pela natureza [phuseos] livres De fato as coisas que produzem sofrimento por uma correta razatildeo natildeo satildeo proveitosas agrave natureza [phusin] mais do que as agradaacuteveis Pois as coisas convenientes

segundo a verdade natildeo devem prejudicar mas beneficiar 13

Ou seja para o curso da natureza pouco importa o que agrada ou desagrada ao homem A conveniecircncia humana sob forma de leis pode impedir o curso livre da natureza Por ver a natureza como fonte de verdade Antifonte preconiza que o homem deve alinhar sua conveniecircncia agrave natureza Contudo alcanccedilar a verdade da natureza tambeacutem natildeo pressupotildee sua interpretaccedilatildeo E essa interpretaccedilatildeo natildeo seria uma convenccedilatildeo ou no miacutenimo um artifiacutecio do homem O problema de se alcanccedilar a verdade da natureza portanto recai na inexorabilidade do artifiacutecio humano da interpretaccedilatildeo Ateacute que ponto essa interpretaccedilatildeo natildeo seria tendenciosa na proposta de Antifonte de se alinhar a conveniecircncia do homem agrave natureza

Guthrie esclarece porque Antifonte ainda em Sobre a Verdade apresenta diferentes conceitos de justiccedila14 para mostrar que as concepccedilotildees vigentes de moralidade satildeo inadequadas e que as formas da natureza eacute que devem ter preferecircncia15

Por fim temos em Antifonte a afirmaccedilatildeo de que a violaccedilatildeo das leis humanas eacute julgada pela opiniatildeo e a das leis naturais pela verdade Antifonte quer com isso mostrar que a natureza deve ser o referencial para a convenccedilatildeo humana ainda que esta ldquoverdade da naturezardquo seja contraacuteria a algumas conveniecircncias do homem Assim o sofista expotildee a dupla via de valoraccedilatildeo que o dualismo permite e que seraacute de modo controverso explorada por sofistas e filoacutesofos A sofiacutestica exploraraacute o dualismo com mais ecircnfase pelo vieacutes oposto qual seja o da justificativa eacutetico-poliacutetica baseada no noacutemos Como expocircs Cassin eacute caracteriacutestica da sofiacutestica a substituiccedilatildeo do fiacutesico pelo poliacutetico assim como o acordo discursivo (homologia) como base de legalidade poliacutetica16 Ainda segundo Cassin ldquoo consenso (homonoacuteia) eacute [] o efeito de uma operaccedilatildeo loacutegica no sentido lato capaz de voltar em seu favor as opiniotildees ou as praacuteticas contraditoacuterias que deveriam interdizecirc-lordquo17

No diaacutelogo Repuacuteblica Platatildeo inicia a justificativa de sua visatildeo poliacutetica do filoacutesofo-rei da cidade ideal (kallipolis) a partir da ideia de funccedilatildeo ou tarefa (eacutergon) especializada de cada coisa O personagem Soacutecrates em diaacutelogo com o personagem Trasiacutemaco sustenta que os objetos sejam manufaturados ou naturais possuem um eacutergon especiacutefico Esta funccedilatildeo eacute ou exclusiva de um determinado objeto ou realizada

13 Ibid p 73-75 B 44A DK 14 A saber (1) Conformidade agraves leis e costumes de seu paiacutes (2) natildeo causar injuacuteria exceto em resposta a uma injuacuteria recebida (3) nem causar nem sofrer injuacuteria 15 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge University Press 1965 III p 112 16 Cf CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Satildeo Paulo Editora 34 2005 p 71 17 CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Satildeo Paulo Siciliano 1990 p79

15

por este com mais perfeiccedilatildeo18 Assim Soacutecrates leva Trasiacutemaco a concordar que o cavalo tem uma funccedilatildeo determinada19 que os oacutergatildeos sensoriais tecircm suas funccedilotildees especiacuteficas (a saber olhos visatildeo e ouvidos audiccedilatildeo20) e tambeacutem que objetos cortantes como a faca satildeo ideais para cortar os sarmentos de uma vinha21

Logo adiante Platatildeo faz Soacutecrates propor que essa funccedilatildeo eacute uma virtude (areteacute) do objeto22 Esta proposiccedilatildeo eacute o ponto onde Platatildeo atribui um valor moral elevado (virtude) a uma caracteriacutestica natural do objeto qual seja a sua funccedilatildeo (ainda que ele tambeacutem tenha incluiacutedo objetos manufaturados na comparaccedilatildeo) Seu proacuteximo passo eacute expor a funccedilatildeo da alma e por consequecircncia a sua virtude Tal funccedilatildeo ou virtude eacute o governo da proacutepria vida23 Desta forma a vida bem governada pela alma (de acordo com a justiccedila) alcanccedilaraacute a felicidade ou eudaimoniacutea24 A mesma estrutura argumentativa aparece no momento da fundaccedilatildeo de uma cidade imaginaacuteria pelos personagens Soacutecrates e Adimanto25 quando eles chegam agrave conclusatildeo de que a especializaccedilatildeo de cada cidadatildeo em diferentes ofiacutecios [erga] de acordo com a sua natureza [phusin]26 eacute a forma mais proveitosa possiacutevel de distribuiccedilatildeo da forccedila de trabalho na cidade Eacute notaacutevel aqui a intenccedilatildeo de fazer a profissatildeo ou a funccedilatildeo de cada um ser vista como atributo natural Para deixar isso patente Soacutecrates declara ldquocada um de noacutes natildeo nasceu igual ao outro mas com naturezas [phusin] diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa [ergou praxei]rdquo27

O mesmo argumento naturalista aparece no diaacutelogo Craacutetilo onde Soacutecrates pretende justificar uma accedilatildeo correta a partir de sua proacutepria natureza ou seja ldquoa natureza da accedilatildeordquo Ele afirma que ldquoelas [as accedilotildees] se realizam segundo sua proacutepria natureza [phusin] natildeo conforme a opiniatildeo que dela fizermosrdquo28 Assim como na Repuacuteblica a natureza de cada coisa dita sua funccedilatildeo ou seja uma coisa deve ser feita

ldquosegundo os imperativos da natureza [phusei]rdquo 29 A natureza eacute o criteacuterio para o que eacute certo ldquono caso de querermos queimar alguma coisa natildeo devemos fazecirc-lo de qualquer modo como nos ditar a fantasia [conforme todas as opiniotildees kata pasan doxan30] mas pelo modo certo que eacute o modo indicado pela natureza [epephukei] para queimarrdquo31 O argumento da accedilatildeo naturalmente correta vai evoluir agrave accedilatildeo de falar e nomear as coisas culminando no ponto central do diaacutelogo (Craacutetilo) que eacute a accedilatildeo de nomear as coisas conforme a natureza 32 Assim a competecircncia de forjar nomes seraacute

18 Cf PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 352e 19 Ibid 352d-e 20 Ibid 352e 21 Ibid 353a 22 Ibid 353b-c 23 Ibid 353d 24 Ibid 353e - 354a 25 Ibid 369c 26 Ibid 370c 27 Ibid 370a-b (grifos meus) 28 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - CraacutetiloBeleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387a 29 Ibid 389c 30 Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101713Atext3DCrat3Asection3D387bgt acesso em 14 mar 2016 (Traduccedilatildeo minha) 31 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387b 32 Cf supra 387b-d

16

do ldquofazedor de nomesrdquo [onomatourgou] ou ldquolegislador [nomothetēs]rdquo33 Uma consequecircncia eacutetica interessante dessa proposta naturalista para os nomes seraacute a prescriccedilatildeo de que todo nome inclusive o de pessoas deveraacute corresponder a sua etimologia agrave sua natureza Como exemplo Soacutecrates diz que o iacutempio natildeo deveraacute se chamar Teoacutefilo (amigo de Deus) nem Mnesteu (lembrado de Deus)34 Outra via naturalista da justificativa dos nomes de acordo com a essecircncia das coisas nomeadas eacute o movimento feito pela boca para a pronuacutencia dos verbos de acordo com o movimento que esse verbo representa35 Apesar de Soacutecrates prescrever a perspectiva naturalista para o nome das coisas ele ao fim do diaacutelogo reconhece o uso corrente da convenccedilatildeo ldquoreceio muito que de fato [] seja bastante precaacuteria a tal forccedila de atraccedilatildeo da semelhanccedila e que nos vejamos forccedilados a recorrer a esse expediente banal a convenccedilatildeo [tē sunthēkē] para a correta imposiccedilatildeo dos nomes [onomatōn

orthotēta]rdquo36 Na Repuacuteblica a naturalizaccedilatildeo da virtude vai ter uma importante repercussatildeo

eacutetica ao se estabelecer quem no diaacutelogo definiraacute o ofiacutecio natural de cada cidadatildeo Soacutecrates diz a Adimanto ldquo[] eacute tarefa nossa segundo parece e se na verdade formos capazes disso proceder agrave escolha daqueles de qualidades e natureza [phuseōs] apropriadas para a custoacutedia da cidade37

Essa distinta capacidade que tais personagens filoacutesofos tecircm de determinar a natureza dos cidadatildeos vai se elevar agrave escolha dos guardiotildees da cidade Soacutecrates inicia uma comparaccedilatildeo da natureza dos animais com a natureza necessaacuteria aos guardiotildees Sugestivamente ele indaga Adimanto ldquohaacute alguma diferenccedila entre a natureza (phusin) de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascidordquo38 A valentia e porte fiacutesico do guardiatildeo deveratildeo ser como os de um catildeo ou cavalo mas ao mesmo tempo ele precisaraacute ser por natureza [phusei] doacutecil com os concidadatildeos como um catildeo de boa raccedila39 Essa capacidade do catildeo de distinguir amigos de inimigos eacute dada pelo seu ldquoinstinto filosoacutefico naturalrdquo [philosophos tēn phusin]40 Neste ponto temos uma passagem sutil mas importantiacutessima a naturalizaccedilatildeo do pendor filosoacutefico Esta seraacute crucial para justificar o filoacutesofo como governante a partir de uma imposiccedilatildeo da natureza com a forccedila do que eacute necessaacuterio e inescapaacutevel tal como disse Antifonte contudo aqui usado para hierarquizar homens ao inveacutes de igualaacute-los Quanto agrave natureza do guardiatildeo reafirma Soacutecrates ldquoquando procuramos um guarda dessa espeacutecie natildeo vamos contra a naturezardquo41 Quanto agrave relaccedilatildeo entre a filosofia e a natureza (do catildeo capaz de tal distinccedilatildeo) Soacutecrates afirma ldquomas sem duacutevida que demonstra a engenhosa conformaccedilatildeo da sua natureza [tēs phuseōs] que eacute

verdadeiramente amiga de saberrdquo42 E ainda sobre esta justificativa naturalista ele declara

33 Ibid 389a 34 Cf supra 394d-e 35 Cf supra 426c-427c 36 Ibid 435c 37 PLATAtildeO A Repuacuteblica 374e (grifo meu) 38 Ibid 375a (grifo meu) 39 Ibid 375e 40 Ibid 41 Ibid 375e 42 Ibid 376a-b (grifo meu)

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

9

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 10

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSYS 12

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS 34

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE 38

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 45

6 FONTES - REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS E BIBLIOGRAFIA 48

10

1 INTRODUCcedilAtildeO

O termo phyacutesis pode ser entendido como ldquoorigem [] forma ou constituiccedilatildeo natural de uma pessoa ou coisa como resultado de crescimento [ou a proacutepria] naturezardquo1 Noacutemos eacute o costume o uso a lei ou decreto2 O termo ldquonaturezardquo (phyacutesis) quando contrastado com ldquoleirdquo (noacutemos) evoca a ideia de realidade No periacuteodo claacutessico algo dito nomizetai eacute algo em que se acredita algo praticado por ser tido como correto3 Assim a busca de um paracircmetro para definiccedilatildeo do correto para o homem frequentemente esbarra nesses dois pontos O noacutemos visto como lei ou diretriz eacutetica eacute alcanccedilado pelo consenso dos homens requerendo concordacircncia e assentimento As dissensotildees decorrentes do fracasso em se chegar ao noacutemos comumente tendem a eleger como modelo imperativo o que incontestavelmente jaacute estaacute aiacute no mundo jaacute nos eacute dado de saiacuteda na nossa existecircncia o que eacute espontacircneo e livre de nossa opiniatildeo para ser como tal ou seja a natureza

O natural eacute universalmente reconhecido como anterior ao homem Essa anterioridade perante aquelas dissensotildees e baseada em tal reconhecimento universal ganha forccedila para se impor sobre as partes discordantes No entanto essa forccedila eacute transferida sutilmente de uma perspectiva de mera constataccedilatildeo factual (como eacute na natureza) para uma perspectiva de prescriccedilatildeo eacutetica (como deve ser entre os homens) Eacute neste ponto que se encontra a incongruecircncia da falaacutecia naturalista4 Kerferd diz que ldquoo apelo natildeo eacute para a natureza em geral mas para a natureza [] humana e isso deve ter tornado o apelo ainda mais faacutecil visto que a urgecircncia de muitas das demandas que brotam de nossa proacutepria natureza parece dar a elas uma clara forccedila prescritivardquo5 O dualismo noacutemos-phyacutesis foi utilizado para sustentar variadas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas apoiadas em seus diferentes polos Sua abordagem eacute notada no periacuteodo heleniacutestico perpassando a trageacutedia e a filosofia incluindo a sofiacutestica Na religiatildeo os proacuteprios deuses foram discutidos se eram realmente existentes ou se eram somente concebidos por convenccedilatildeo E assim tambeacutem para as divisotildees raciais e poliacuteticas da espeacutecie humana repercutindo desde a igualdade de direitos ateacute a escravidatildeo assim como dos regimes poliacuteticos igualitaacuterios ateacute a tirania

1 LIDELL H G SCOTT R A Greek-English Lexicon Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dfu2Fsisgt Acesso em 17 nov 2014 2 Cf supra Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Dno2Fmosgt Acesso em 17 nov 2014 3 Cf GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993 p 55 4 Termo cunhado por George Edward Moore que expotildee a confusatildeo entre a constataccedilatildeo de um fato natural e atribuiccedilatildeo de um valor eacutetico ldquo[] a mistake of this simple kind has commonly been made about good It may be true that all things which are good are also something else just as it is true that all things which are yellow produce a certain kind of vibration in the light And it is a fact that Ethics aims at discovering what are those other properties belonging to all things which are good But far too many philosophers have thought that when they named those other properties they were actually defining good that these properties in fact were simply not other but absolutely and entirely the same with goodness This view I propose to call the naturalistic fallacy []rdquo MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922 p 10 sect10 5 KERFERD G B O Movimento Sofista Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 p195

11

Sob o ponto de vista religioso a lei absoluta e universal que rege as leis humanas proveacutem de divindades De acordo com Heraacuteclito por exemplo ldquotodas as leis [noacutemoi6] humanas satildeo alimentadas por uma lei una a divina pois exerce seu domiacutenio tatildeo longe quanto se consente e basta e envolve todas as outrasrdquo7 Na trageacutedia a lei divina eacute comumente evocada para sobrepujar a lei humana como em Antiacutegona de Soacutefocles quando a personagem homocircnima recorre agrave lei divina para se eximir da lei do rei Creonte ldquoeu natildeo creio que teus decretos escritos pela matildeo de um mortal possam ser superiores agraves leis [nomima] natildeo escritas e imutaacuteveis dos deusesrdquo8 Agrave medida que as leis divinas passam a ser desacreditadas outras formas de realismo eacutetico-poliacutetico surgem em seu lugar Eacute o caso da natureza como veremos adiante Eacute comum encontrar autores que adotam posiccedilotildees ora proacute-phyacutesis (naturalista) ora proacute-noacutemos (consensualista) Assim a abordagem a seguir faraacute uma separaccedilatildeo em linhas gerais destas posturas permitindo-se poreacutem sempre uma criacutetica comparativa entre elas em todo seu decorrer

6 Nas citaccedilotildees dos textos filosoacuteficos gregos as palavras-chave e as de maior relevacircncia para este trabalho foram retiradas em transliteraccedilatildeo latina de Perseus Digital Library Disponiacutevel em ltwwwperseustuftsedugt 7 HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012 p115 fr 114 8 SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Rio de Janeiro DIFEL 2006 p 46-7 450-5

12

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSIS

Na sofiacutestica vemos uma multiplicidade de posiccedilotildees eacuteticas em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo de modo que natildeo haacute um soacute ldquolugar sofiacutesticordquo Um dos principais registros da sofiacutestica sobre o problema do dualismo entre convenccedilatildeo humana e natureza como criteacuterio eacutetico foi de Antifonte Em seu texto Sobre a Verdade do qual soacute nos chegaram fragmentos ele aborda a diferenccedila entre baacuterbaros e gregos como sendo meramente convencional apontando para a mesma natureza em ambos Antifonte ressalta que as caracteriacutesticas e funccedilotildees corporais satildeo as mesmas entre os dois por natureza e portanto necessaacuterias

agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros enquanto por natureza [phusei] todos em tudo nascemos igualmente dispostos para ser tanto baacuterbaros quanto gregos Eacute o caso de observar as coisas que por natureza [phusei] satildeo necessaacuterias a todos os homens a todos satildeo acessiacuteveis pelas

mesmas capacidades e em todas as coisas nenhum de noacutes eacute determinado nem como baacuterbaro nem como grego Pois todos respiramos o ar pela boca e pelas narinas [] e comemos todos com as matildeos [] e rimos quando nos alegramos [] no espiacuterito ou choramos quando sentimos dor e pela audiccedilatildeo acolhemos os sons e pela luz do sol com a vista vemos e com as matildeos trabalhamos e com os peacutes caminhamos [] segundo a medida do que agrada cada um dos homens e eles em conjunto se reuniram e estabeleceram as leis9

A importacircncia da anaacutelise deste texto reside no fato de para Antifonte as leis humanas serem impostas e as naturais necessaacuterias O sofista mostra que a necessidade imposta aos homens pela natureza (phyacutesei oacutenton anankaicircon pacirc sin antropoacuteis) de que gregos e baacuterbaros sejam iguais se sobrepotildee agraves leis (noacutemous) que agradam a determinadas sociedades ou etnias (ldquohomens em conjuntordquo) Quando agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros sob pretexto de obediecircncia agrave lei (noacutemos) violamos a igualdade natural Ao chamar ambas as partes da contenda de baacuterbaros Antifonte mostra que a diferenccedila eacutetnica (gregos e baacuterbaros) natildeo pode justificar a guerra Quanto agrave violaccedilatildeo das determinaccedilotildees da natureza Antifonte diz

As prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo impostas de fora as da natureza [phuseos] necessaacuterias E as prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo pactuadas e natildeo geradas naturalmente [phunta] enquanto as da natureza [phuseos] satildeo geradas naturalmente [phunta] e natildeo pactuadas [] Transgredindo as prescriccedilotildees das leis [noacutemima] com efeito se encoberto diante dos que compactuam aparta-se da vergonha e castigo [] Se alguma das coisas que nascem com a natureza [phusei] eacute violentada para aleacutem do possiacutevel mesmo que isso ficasse encoberto a todos os homens em nada o mal seria menor e se todos vissem em nada maior pois natildeo eacute prejudicado pela opiniatildeo mas pela verdade10

9 ANTIFONTE Fragmentos B44B DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 77-9 (grifo meu) 10 Ibid B44A DK p 73 (grifos meus)

13

Cassin aponta em relaccedilatildeo agrave diferenccedila social em Antifonte um duplo problema ldquoo racismo dos gregos e a relaccedilatildeo entre racismo e a democraciardquo11 Ao afirmar que gregos tambeacutem ldquobarbarizamrdquo (ldquofalam de modo ininteligiacutevelrdquo) Antifonte faz uma criacutetica ao etnocentrismo grego com base naturalista No entanto essa criacutetica encontra grande dificuldade ao se deparar com as leis atenienses legisladas de modo democraacutetico tendentes a valorizar seu proacuteprio povo

Antifonte coloca a natureza como paracircmetro de verdade (o agir conforme a natureza) de cuja puniccedilatildeo natildeo se pode escapar como das puniccedilotildees das leis humanas A transgressatildeo das leis convencionais humanas eacute passiacutevel de vergonha e puniccedilatildeo baseada em opiniatildeo humana ou quiccedilaacute de nenhuma caso ningueacutem tome conhecimento ao passo que a sanccedilatildeo para a transgressatildeo de lei natural eacute em funccedilatildeo da verdade livre de qualquer valoraccedilatildeo humana e por isso inescapaacutevel e amoral Contudo um conceito de verdade absoluta soacute se sustenta como uma ideia pois do ponto de vista pragmaacutetico para se chegar a ela seraacute sempre necessaacuterio um caminho de interpretaccedilatildeo humana Caminho esse que natildeo eacute uniacutevoco e satildeo nas bifurcaccedilotildees deste caminho interpretativo que os homens chegam paradoxalmente a diferentes ldquoverdades uacutenicas e absolutasrdquo Afinal quantas verdades diferentes a respeito da mesma coisa a civilizaccedilatildeo humana em toda sua histoacuteria jaacute natildeo produziu Neste texto Antifonte mostra a forccedila da natureza como uma necessidade que se impotildee a despeito da lei do homem A lei pode inclusive ser contra a natureza prescrevendo como o homem deve interpretar seus sentidos e como ele deve se portar ainda que de modo antagocircnico ao natural

muitas das coisas justas segundo a lei [noacutemon dikaiacuteon] estatildeo em peacute de guerra com a natureza [phusei] pois estatildeo dispostas por lei aos

olhos as coisas que devem [] ver e as coisas que natildeo devem e aos ouvidos as que eles devem ouvir e as que natildeo devem e agrave liacutengua as que ela deve dizer e as que natildeo deve e agraves matildeos as que ela deve fazer e as que natildeo devem e aos peacutes para onde devem ir e para onde natildeo devem e ao espiacuterito as coisas que deve desejar e as que natildeo deve Com efeito natildeo satildeo para a natureza [phusei] em nada mais afins

nem mais proacuteprias as coisas das quais as leis dissuadem os homens do que aquelas das quais persuadem12

O autor quer aqui mostrar que o noacutemos pode ditar como o homem deve emitir

juiacutezos sobre seus dons naturais como ouvir e falar Ele mostra tambeacutem que o interesse incutido na convenccedilatildeo da lei determina como o homem deve se portar na natureza ou ainda como a lei pretende determinar a eacutetica Mas eacute longe do julgamento dos olhos alheios ou seja em estado natural que o homem encontra sua verdadeira eacutetica A conveniecircncia do homem natildeo necessariamente favorece o curso da natureza Contudo segundo Antifonte esta deveria ser o referencial da sua eacutetica jaacute que como visto a natureza eacute a verdade e a necessidade a despeito de qualquer sentimento que possa afastaacute-lo desse referencial como a vergonha Esse eacute o ponto central desta

11 CASSIN B ldquoBarbarizarrdquo e ldquoCidadanizarrdquo In CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A Cidade e Seus Outros Rio de Janeiro Editora 34 1993 p 107 12 ANTIFONTE Acerca da Verdade B44A DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 73

14

discussatildeo ou seja qual referencial eacutetico deve-se adotar Nesse sentido continua Antifonte

o viver e o morrer satildeo da natureza [phuseos] e para eles [os homens]

o viver eacute uma das coisas convenientes e o morrer uma das natildeo-convenientes As coisas convenientes fixadas pelas leis [noacutemon] por seu turno satildeo grilhotildees da natureza [phuseos] as fixadas pela natureza [phuseos] livres De fato as coisas que produzem sofrimento por uma correta razatildeo natildeo satildeo proveitosas agrave natureza [phusin] mais do que as agradaacuteveis Pois as coisas convenientes

segundo a verdade natildeo devem prejudicar mas beneficiar 13

Ou seja para o curso da natureza pouco importa o que agrada ou desagrada ao homem A conveniecircncia humana sob forma de leis pode impedir o curso livre da natureza Por ver a natureza como fonte de verdade Antifonte preconiza que o homem deve alinhar sua conveniecircncia agrave natureza Contudo alcanccedilar a verdade da natureza tambeacutem natildeo pressupotildee sua interpretaccedilatildeo E essa interpretaccedilatildeo natildeo seria uma convenccedilatildeo ou no miacutenimo um artifiacutecio do homem O problema de se alcanccedilar a verdade da natureza portanto recai na inexorabilidade do artifiacutecio humano da interpretaccedilatildeo Ateacute que ponto essa interpretaccedilatildeo natildeo seria tendenciosa na proposta de Antifonte de se alinhar a conveniecircncia do homem agrave natureza

Guthrie esclarece porque Antifonte ainda em Sobre a Verdade apresenta diferentes conceitos de justiccedila14 para mostrar que as concepccedilotildees vigentes de moralidade satildeo inadequadas e que as formas da natureza eacute que devem ter preferecircncia15

Por fim temos em Antifonte a afirmaccedilatildeo de que a violaccedilatildeo das leis humanas eacute julgada pela opiniatildeo e a das leis naturais pela verdade Antifonte quer com isso mostrar que a natureza deve ser o referencial para a convenccedilatildeo humana ainda que esta ldquoverdade da naturezardquo seja contraacuteria a algumas conveniecircncias do homem Assim o sofista expotildee a dupla via de valoraccedilatildeo que o dualismo permite e que seraacute de modo controverso explorada por sofistas e filoacutesofos A sofiacutestica exploraraacute o dualismo com mais ecircnfase pelo vieacutes oposto qual seja o da justificativa eacutetico-poliacutetica baseada no noacutemos Como expocircs Cassin eacute caracteriacutestica da sofiacutestica a substituiccedilatildeo do fiacutesico pelo poliacutetico assim como o acordo discursivo (homologia) como base de legalidade poliacutetica16 Ainda segundo Cassin ldquoo consenso (homonoacuteia) eacute [] o efeito de uma operaccedilatildeo loacutegica no sentido lato capaz de voltar em seu favor as opiniotildees ou as praacuteticas contraditoacuterias que deveriam interdizecirc-lordquo17

No diaacutelogo Repuacuteblica Platatildeo inicia a justificativa de sua visatildeo poliacutetica do filoacutesofo-rei da cidade ideal (kallipolis) a partir da ideia de funccedilatildeo ou tarefa (eacutergon) especializada de cada coisa O personagem Soacutecrates em diaacutelogo com o personagem Trasiacutemaco sustenta que os objetos sejam manufaturados ou naturais possuem um eacutergon especiacutefico Esta funccedilatildeo eacute ou exclusiva de um determinado objeto ou realizada

13 Ibid p 73-75 B 44A DK 14 A saber (1) Conformidade agraves leis e costumes de seu paiacutes (2) natildeo causar injuacuteria exceto em resposta a uma injuacuteria recebida (3) nem causar nem sofrer injuacuteria 15 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge University Press 1965 III p 112 16 Cf CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Satildeo Paulo Editora 34 2005 p 71 17 CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Satildeo Paulo Siciliano 1990 p79

15

por este com mais perfeiccedilatildeo18 Assim Soacutecrates leva Trasiacutemaco a concordar que o cavalo tem uma funccedilatildeo determinada19 que os oacutergatildeos sensoriais tecircm suas funccedilotildees especiacuteficas (a saber olhos visatildeo e ouvidos audiccedilatildeo20) e tambeacutem que objetos cortantes como a faca satildeo ideais para cortar os sarmentos de uma vinha21

Logo adiante Platatildeo faz Soacutecrates propor que essa funccedilatildeo eacute uma virtude (areteacute) do objeto22 Esta proposiccedilatildeo eacute o ponto onde Platatildeo atribui um valor moral elevado (virtude) a uma caracteriacutestica natural do objeto qual seja a sua funccedilatildeo (ainda que ele tambeacutem tenha incluiacutedo objetos manufaturados na comparaccedilatildeo) Seu proacuteximo passo eacute expor a funccedilatildeo da alma e por consequecircncia a sua virtude Tal funccedilatildeo ou virtude eacute o governo da proacutepria vida23 Desta forma a vida bem governada pela alma (de acordo com a justiccedila) alcanccedilaraacute a felicidade ou eudaimoniacutea24 A mesma estrutura argumentativa aparece no momento da fundaccedilatildeo de uma cidade imaginaacuteria pelos personagens Soacutecrates e Adimanto25 quando eles chegam agrave conclusatildeo de que a especializaccedilatildeo de cada cidadatildeo em diferentes ofiacutecios [erga] de acordo com a sua natureza [phusin]26 eacute a forma mais proveitosa possiacutevel de distribuiccedilatildeo da forccedila de trabalho na cidade Eacute notaacutevel aqui a intenccedilatildeo de fazer a profissatildeo ou a funccedilatildeo de cada um ser vista como atributo natural Para deixar isso patente Soacutecrates declara ldquocada um de noacutes natildeo nasceu igual ao outro mas com naturezas [phusin] diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa [ergou praxei]rdquo27

O mesmo argumento naturalista aparece no diaacutelogo Craacutetilo onde Soacutecrates pretende justificar uma accedilatildeo correta a partir de sua proacutepria natureza ou seja ldquoa natureza da accedilatildeordquo Ele afirma que ldquoelas [as accedilotildees] se realizam segundo sua proacutepria natureza [phusin] natildeo conforme a opiniatildeo que dela fizermosrdquo28 Assim como na Repuacuteblica a natureza de cada coisa dita sua funccedilatildeo ou seja uma coisa deve ser feita

ldquosegundo os imperativos da natureza [phusei]rdquo 29 A natureza eacute o criteacuterio para o que eacute certo ldquono caso de querermos queimar alguma coisa natildeo devemos fazecirc-lo de qualquer modo como nos ditar a fantasia [conforme todas as opiniotildees kata pasan doxan30] mas pelo modo certo que eacute o modo indicado pela natureza [epephukei] para queimarrdquo31 O argumento da accedilatildeo naturalmente correta vai evoluir agrave accedilatildeo de falar e nomear as coisas culminando no ponto central do diaacutelogo (Craacutetilo) que eacute a accedilatildeo de nomear as coisas conforme a natureza 32 Assim a competecircncia de forjar nomes seraacute

18 Cf PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 352e 19 Ibid 352d-e 20 Ibid 352e 21 Ibid 353a 22 Ibid 353b-c 23 Ibid 353d 24 Ibid 353e - 354a 25 Ibid 369c 26 Ibid 370c 27 Ibid 370a-b (grifos meus) 28 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - CraacutetiloBeleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387a 29 Ibid 389c 30 Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101713Atext3DCrat3Asection3D387bgt acesso em 14 mar 2016 (Traduccedilatildeo minha) 31 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387b 32 Cf supra 387b-d

16

do ldquofazedor de nomesrdquo [onomatourgou] ou ldquolegislador [nomothetēs]rdquo33 Uma consequecircncia eacutetica interessante dessa proposta naturalista para os nomes seraacute a prescriccedilatildeo de que todo nome inclusive o de pessoas deveraacute corresponder a sua etimologia agrave sua natureza Como exemplo Soacutecrates diz que o iacutempio natildeo deveraacute se chamar Teoacutefilo (amigo de Deus) nem Mnesteu (lembrado de Deus)34 Outra via naturalista da justificativa dos nomes de acordo com a essecircncia das coisas nomeadas eacute o movimento feito pela boca para a pronuacutencia dos verbos de acordo com o movimento que esse verbo representa35 Apesar de Soacutecrates prescrever a perspectiva naturalista para o nome das coisas ele ao fim do diaacutelogo reconhece o uso corrente da convenccedilatildeo ldquoreceio muito que de fato [] seja bastante precaacuteria a tal forccedila de atraccedilatildeo da semelhanccedila e que nos vejamos forccedilados a recorrer a esse expediente banal a convenccedilatildeo [tē sunthēkē] para a correta imposiccedilatildeo dos nomes [onomatōn

orthotēta]rdquo36 Na Repuacuteblica a naturalizaccedilatildeo da virtude vai ter uma importante repercussatildeo

eacutetica ao se estabelecer quem no diaacutelogo definiraacute o ofiacutecio natural de cada cidadatildeo Soacutecrates diz a Adimanto ldquo[] eacute tarefa nossa segundo parece e se na verdade formos capazes disso proceder agrave escolha daqueles de qualidades e natureza [phuseōs] apropriadas para a custoacutedia da cidade37

Essa distinta capacidade que tais personagens filoacutesofos tecircm de determinar a natureza dos cidadatildeos vai se elevar agrave escolha dos guardiotildees da cidade Soacutecrates inicia uma comparaccedilatildeo da natureza dos animais com a natureza necessaacuteria aos guardiotildees Sugestivamente ele indaga Adimanto ldquohaacute alguma diferenccedila entre a natureza (phusin) de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascidordquo38 A valentia e porte fiacutesico do guardiatildeo deveratildeo ser como os de um catildeo ou cavalo mas ao mesmo tempo ele precisaraacute ser por natureza [phusei] doacutecil com os concidadatildeos como um catildeo de boa raccedila39 Essa capacidade do catildeo de distinguir amigos de inimigos eacute dada pelo seu ldquoinstinto filosoacutefico naturalrdquo [philosophos tēn phusin]40 Neste ponto temos uma passagem sutil mas importantiacutessima a naturalizaccedilatildeo do pendor filosoacutefico Esta seraacute crucial para justificar o filoacutesofo como governante a partir de uma imposiccedilatildeo da natureza com a forccedila do que eacute necessaacuterio e inescapaacutevel tal como disse Antifonte contudo aqui usado para hierarquizar homens ao inveacutes de igualaacute-los Quanto agrave natureza do guardiatildeo reafirma Soacutecrates ldquoquando procuramos um guarda dessa espeacutecie natildeo vamos contra a naturezardquo41 Quanto agrave relaccedilatildeo entre a filosofia e a natureza (do catildeo capaz de tal distinccedilatildeo) Soacutecrates afirma ldquomas sem duacutevida que demonstra a engenhosa conformaccedilatildeo da sua natureza [tēs phuseōs] que eacute

verdadeiramente amiga de saberrdquo42 E ainda sobre esta justificativa naturalista ele declara

33 Ibid 389a 34 Cf supra 394d-e 35 Cf supra 426c-427c 36 Ibid 435c 37 PLATAtildeO A Repuacuteblica 374e (grifo meu) 38 Ibid 375a (grifo meu) 39 Ibid 375e 40 Ibid 41 Ibid 375e 42 Ibid 376a-b (grifo meu)

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

10

1 INTRODUCcedilAtildeO

O termo phyacutesis pode ser entendido como ldquoorigem [] forma ou constituiccedilatildeo natural de uma pessoa ou coisa como resultado de crescimento [ou a proacutepria] naturezardquo1 Noacutemos eacute o costume o uso a lei ou decreto2 O termo ldquonaturezardquo (phyacutesis) quando contrastado com ldquoleirdquo (noacutemos) evoca a ideia de realidade No periacuteodo claacutessico algo dito nomizetai eacute algo em que se acredita algo praticado por ser tido como correto3 Assim a busca de um paracircmetro para definiccedilatildeo do correto para o homem frequentemente esbarra nesses dois pontos O noacutemos visto como lei ou diretriz eacutetica eacute alcanccedilado pelo consenso dos homens requerendo concordacircncia e assentimento As dissensotildees decorrentes do fracasso em se chegar ao noacutemos comumente tendem a eleger como modelo imperativo o que incontestavelmente jaacute estaacute aiacute no mundo jaacute nos eacute dado de saiacuteda na nossa existecircncia o que eacute espontacircneo e livre de nossa opiniatildeo para ser como tal ou seja a natureza

O natural eacute universalmente reconhecido como anterior ao homem Essa anterioridade perante aquelas dissensotildees e baseada em tal reconhecimento universal ganha forccedila para se impor sobre as partes discordantes No entanto essa forccedila eacute transferida sutilmente de uma perspectiva de mera constataccedilatildeo factual (como eacute na natureza) para uma perspectiva de prescriccedilatildeo eacutetica (como deve ser entre os homens) Eacute neste ponto que se encontra a incongruecircncia da falaacutecia naturalista4 Kerferd diz que ldquoo apelo natildeo eacute para a natureza em geral mas para a natureza [] humana e isso deve ter tornado o apelo ainda mais faacutecil visto que a urgecircncia de muitas das demandas que brotam de nossa proacutepria natureza parece dar a elas uma clara forccedila prescritivardquo5 O dualismo noacutemos-phyacutesis foi utilizado para sustentar variadas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas apoiadas em seus diferentes polos Sua abordagem eacute notada no periacuteodo heleniacutestico perpassando a trageacutedia e a filosofia incluindo a sofiacutestica Na religiatildeo os proacuteprios deuses foram discutidos se eram realmente existentes ou se eram somente concebidos por convenccedilatildeo E assim tambeacutem para as divisotildees raciais e poliacuteticas da espeacutecie humana repercutindo desde a igualdade de direitos ateacute a escravidatildeo assim como dos regimes poliacuteticos igualitaacuterios ateacute a tirania

1 LIDELL H G SCOTT R A Greek-English Lexicon Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dfu2Fsisgt Acesso em 17 nov 2014 2 Cf supra Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Dno2Fmosgt Acesso em 17 nov 2014 3 Cf GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993 p 55 4 Termo cunhado por George Edward Moore que expotildee a confusatildeo entre a constataccedilatildeo de um fato natural e atribuiccedilatildeo de um valor eacutetico ldquo[] a mistake of this simple kind has commonly been made about good It may be true that all things which are good are also something else just as it is true that all things which are yellow produce a certain kind of vibration in the light And it is a fact that Ethics aims at discovering what are those other properties belonging to all things which are good But far too many philosophers have thought that when they named those other properties they were actually defining good that these properties in fact were simply not other but absolutely and entirely the same with goodness This view I propose to call the naturalistic fallacy []rdquo MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922 p 10 sect10 5 KERFERD G B O Movimento Sofista Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 p195

11

Sob o ponto de vista religioso a lei absoluta e universal que rege as leis humanas proveacutem de divindades De acordo com Heraacuteclito por exemplo ldquotodas as leis [noacutemoi6] humanas satildeo alimentadas por uma lei una a divina pois exerce seu domiacutenio tatildeo longe quanto se consente e basta e envolve todas as outrasrdquo7 Na trageacutedia a lei divina eacute comumente evocada para sobrepujar a lei humana como em Antiacutegona de Soacutefocles quando a personagem homocircnima recorre agrave lei divina para se eximir da lei do rei Creonte ldquoeu natildeo creio que teus decretos escritos pela matildeo de um mortal possam ser superiores agraves leis [nomima] natildeo escritas e imutaacuteveis dos deusesrdquo8 Agrave medida que as leis divinas passam a ser desacreditadas outras formas de realismo eacutetico-poliacutetico surgem em seu lugar Eacute o caso da natureza como veremos adiante Eacute comum encontrar autores que adotam posiccedilotildees ora proacute-phyacutesis (naturalista) ora proacute-noacutemos (consensualista) Assim a abordagem a seguir faraacute uma separaccedilatildeo em linhas gerais destas posturas permitindo-se poreacutem sempre uma criacutetica comparativa entre elas em todo seu decorrer

6 Nas citaccedilotildees dos textos filosoacuteficos gregos as palavras-chave e as de maior relevacircncia para este trabalho foram retiradas em transliteraccedilatildeo latina de Perseus Digital Library Disponiacutevel em ltwwwperseustuftsedugt 7 HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012 p115 fr 114 8 SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Rio de Janeiro DIFEL 2006 p 46-7 450-5

12

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSIS

Na sofiacutestica vemos uma multiplicidade de posiccedilotildees eacuteticas em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo de modo que natildeo haacute um soacute ldquolugar sofiacutesticordquo Um dos principais registros da sofiacutestica sobre o problema do dualismo entre convenccedilatildeo humana e natureza como criteacuterio eacutetico foi de Antifonte Em seu texto Sobre a Verdade do qual soacute nos chegaram fragmentos ele aborda a diferenccedila entre baacuterbaros e gregos como sendo meramente convencional apontando para a mesma natureza em ambos Antifonte ressalta que as caracteriacutesticas e funccedilotildees corporais satildeo as mesmas entre os dois por natureza e portanto necessaacuterias

agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros enquanto por natureza [phusei] todos em tudo nascemos igualmente dispostos para ser tanto baacuterbaros quanto gregos Eacute o caso de observar as coisas que por natureza [phusei] satildeo necessaacuterias a todos os homens a todos satildeo acessiacuteveis pelas

mesmas capacidades e em todas as coisas nenhum de noacutes eacute determinado nem como baacuterbaro nem como grego Pois todos respiramos o ar pela boca e pelas narinas [] e comemos todos com as matildeos [] e rimos quando nos alegramos [] no espiacuterito ou choramos quando sentimos dor e pela audiccedilatildeo acolhemos os sons e pela luz do sol com a vista vemos e com as matildeos trabalhamos e com os peacutes caminhamos [] segundo a medida do que agrada cada um dos homens e eles em conjunto se reuniram e estabeleceram as leis9

A importacircncia da anaacutelise deste texto reside no fato de para Antifonte as leis humanas serem impostas e as naturais necessaacuterias O sofista mostra que a necessidade imposta aos homens pela natureza (phyacutesei oacutenton anankaicircon pacirc sin antropoacuteis) de que gregos e baacuterbaros sejam iguais se sobrepotildee agraves leis (noacutemous) que agradam a determinadas sociedades ou etnias (ldquohomens em conjuntordquo) Quando agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros sob pretexto de obediecircncia agrave lei (noacutemos) violamos a igualdade natural Ao chamar ambas as partes da contenda de baacuterbaros Antifonte mostra que a diferenccedila eacutetnica (gregos e baacuterbaros) natildeo pode justificar a guerra Quanto agrave violaccedilatildeo das determinaccedilotildees da natureza Antifonte diz

As prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo impostas de fora as da natureza [phuseos] necessaacuterias E as prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo pactuadas e natildeo geradas naturalmente [phunta] enquanto as da natureza [phuseos] satildeo geradas naturalmente [phunta] e natildeo pactuadas [] Transgredindo as prescriccedilotildees das leis [noacutemima] com efeito se encoberto diante dos que compactuam aparta-se da vergonha e castigo [] Se alguma das coisas que nascem com a natureza [phusei] eacute violentada para aleacutem do possiacutevel mesmo que isso ficasse encoberto a todos os homens em nada o mal seria menor e se todos vissem em nada maior pois natildeo eacute prejudicado pela opiniatildeo mas pela verdade10

9 ANTIFONTE Fragmentos B44B DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 77-9 (grifo meu) 10 Ibid B44A DK p 73 (grifos meus)

13

Cassin aponta em relaccedilatildeo agrave diferenccedila social em Antifonte um duplo problema ldquoo racismo dos gregos e a relaccedilatildeo entre racismo e a democraciardquo11 Ao afirmar que gregos tambeacutem ldquobarbarizamrdquo (ldquofalam de modo ininteligiacutevelrdquo) Antifonte faz uma criacutetica ao etnocentrismo grego com base naturalista No entanto essa criacutetica encontra grande dificuldade ao se deparar com as leis atenienses legisladas de modo democraacutetico tendentes a valorizar seu proacuteprio povo

Antifonte coloca a natureza como paracircmetro de verdade (o agir conforme a natureza) de cuja puniccedilatildeo natildeo se pode escapar como das puniccedilotildees das leis humanas A transgressatildeo das leis convencionais humanas eacute passiacutevel de vergonha e puniccedilatildeo baseada em opiniatildeo humana ou quiccedilaacute de nenhuma caso ningueacutem tome conhecimento ao passo que a sanccedilatildeo para a transgressatildeo de lei natural eacute em funccedilatildeo da verdade livre de qualquer valoraccedilatildeo humana e por isso inescapaacutevel e amoral Contudo um conceito de verdade absoluta soacute se sustenta como uma ideia pois do ponto de vista pragmaacutetico para se chegar a ela seraacute sempre necessaacuterio um caminho de interpretaccedilatildeo humana Caminho esse que natildeo eacute uniacutevoco e satildeo nas bifurcaccedilotildees deste caminho interpretativo que os homens chegam paradoxalmente a diferentes ldquoverdades uacutenicas e absolutasrdquo Afinal quantas verdades diferentes a respeito da mesma coisa a civilizaccedilatildeo humana em toda sua histoacuteria jaacute natildeo produziu Neste texto Antifonte mostra a forccedila da natureza como uma necessidade que se impotildee a despeito da lei do homem A lei pode inclusive ser contra a natureza prescrevendo como o homem deve interpretar seus sentidos e como ele deve se portar ainda que de modo antagocircnico ao natural

muitas das coisas justas segundo a lei [noacutemon dikaiacuteon] estatildeo em peacute de guerra com a natureza [phusei] pois estatildeo dispostas por lei aos

olhos as coisas que devem [] ver e as coisas que natildeo devem e aos ouvidos as que eles devem ouvir e as que natildeo devem e agrave liacutengua as que ela deve dizer e as que natildeo deve e agraves matildeos as que ela deve fazer e as que natildeo devem e aos peacutes para onde devem ir e para onde natildeo devem e ao espiacuterito as coisas que deve desejar e as que natildeo deve Com efeito natildeo satildeo para a natureza [phusei] em nada mais afins

nem mais proacuteprias as coisas das quais as leis dissuadem os homens do que aquelas das quais persuadem12

O autor quer aqui mostrar que o noacutemos pode ditar como o homem deve emitir

juiacutezos sobre seus dons naturais como ouvir e falar Ele mostra tambeacutem que o interesse incutido na convenccedilatildeo da lei determina como o homem deve se portar na natureza ou ainda como a lei pretende determinar a eacutetica Mas eacute longe do julgamento dos olhos alheios ou seja em estado natural que o homem encontra sua verdadeira eacutetica A conveniecircncia do homem natildeo necessariamente favorece o curso da natureza Contudo segundo Antifonte esta deveria ser o referencial da sua eacutetica jaacute que como visto a natureza eacute a verdade e a necessidade a despeito de qualquer sentimento que possa afastaacute-lo desse referencial como a vergonha Esse eacute o ponto central desta

11 CASSIN B ldquoBarbarizarrdquo e ldquoCidadanizarrdquo In CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A Cidade e Seus Outros Rio de Janeiro Editora 34 1993 p 107 12 ANTIFONTE Acerca da Verdade B44A DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 73

14

discussatildeo ou seja qual referencial eacutetico deve-se adotar Nesse sentido continua Antifonte

o viver e o morrer satildeo da natureza [phuseos] e para eles [os homens]

o viver eacute uma das coisas convenientes e o morrer uma das natildeo-convenientes As coisas convenientes fixadas pelas leis [noacutemon] por seu turno satildeo grilhotildees da natureza [phuseos] as fixadas pela natureza [phuseos] livres De fato as coisas que produzem sofrimento por uma correta razatildeo natildeo satildeo proveitosas agrave natureza [phusin] mais do que as agradaacuteveis Pois as coisas convenientes

segundo a verdade natildeo devem prejudicar mas beneficiar 13

Ou seja para o curso da natureza pouco importa o que agrada ou desagrada ao homem A conveniecircncia humana sob forma de leis pode impedir o curso livre da natureza Por ver a natureza como fonte de verdade Antifonte preconiza que o homem deve alinhar sua conveniecircncia agrave natureza Contudo alcanccedilar a verdade da natureza tambeacutem natildeo pressupotildee sua interpretaccedilatildeo E essa interpretaccedilatildeo natildeo seria uma convenccedilatildeo ou no miacutenimo um artifiacutecio do homem O problema de se alcanccedilar a verdade da natureza portanto recai na inexorabilidade do artifiacutecio humano da interpretaccedilatildeo Ateacute que ponto essa interpretaccedilatildeo natildeo seria tendenciosa na proposta de Antifonte de se alinhar a conveniecircncia do homem agrave natureza

Guthrie esclarece porque Antifonte ainda em Sobre a Verdade apresenta diferentes conceitos de justiccedila14 para mostrar que as concepccedilotildees vigentes de moralidade satildeo inadequadas e que as formas da natureza eacute que devem ter preferecircncia15

Por fim temos em Antifonte a afirmaccedilatildeo de que a violaccedilatildeo das leis humanas eacute julgada pela opiniatildeo e a das leis naturais pela verdade Antifonte quer com isso mostrar que a natureza deve ser o referencial para a convenccedilatildeo humana ainda que esta ldquoverdade da naturezardquo seja contraacuteria a algumas conveniecircncias do homem Assim o sofista expotildee a dupla via de valoraccedilatildeo que o dualismo permite e que seraacute de modo controverso explorada por sofistas e filoacutesofos A sofiacutestica exploraraacute o dualismo com mais ecircnfase pelo vieacutes oposto qual seja o da justificativa eacutetico-poliacutetica baseada no noacutemos Como expocircs Cassin eacute caracteriacutestica da sofiacutestica a substituiccedilatildeo do fiacutesico pelo poliacutetico assim como o acordo discursivo (homologia) como base de legalidade poliacutetica16 Ainda segundo Cassin ldquoo consenso (homonoacuteia) eacute [] o efeito de uma operaccedilatildeo loacutegica no sentido lato capaz de voltar em seu favor as opiniotildees ou as praacuteticas contraditoacuterias que deveriam interdizecirc-lordquo17

No diaacutelogo Repuacuteblica Platatildeo inicia a justificativa de sua visatildeo poliacutetica do filoacutesofo-rei da cidade ideal (kallipolis) a partir da ideia de funccedilatildeo ou tarefa (eacutergon) especializada de cada coisa O personagem Soacutecrates em diaacutelogo com o personagem Trasiacutemaco sustenta que os objetos sejam manufaturados ou naturais possuem um eacutergon especiacutefico Esta funccedilatildeo eacute ou exclusiva de um determinado objeto ou realizada

13 Ibid p 73-75 B 44A DK 14 A saber (1) Conformidade agraves leis e costumes de seu paiacutes (2) natildeo causar injuacuteria exceto em resposta a uma injuacuteria recebida (3) nem causar nem sofrer injuacuteria 15 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge University Press 1965 III p 112 16 Cf CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Satildeo Paulo Editora 34 2005 p 71 17 CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Satildeo Paulo Siciliano 1990 p79

15

por este com mais perfeiccedilatildeo18 Assim Soacutecrates leva Trasiacutemaco a concordar que o cavalo tem uma funccedilatildeo determinada19 que os oacutergatildeos sensoriais tecircm suas funccedilotildees especiacuteficas (a saber olhos visatildeo e ouvidos audiccedilatildeo20) e tambeacutem que objetos cortantes como a faca satildeo ideais para cortar os sarmentos de uma vinha21

Logo adiante Platatildeo faz Soacutecrates propor que essa funccedilatildeo eacute uma virtude (areteacute) do objeto22 Esta proposiccedilatildeo eacute o ponto onde Platatildeo atribui um valor moral elevado (virtude) a uma caracteriacutestica natural do objeto qual seja a sua funccedilatildeo (ainda que ele tambeacutem tenha incluiacutedo objetos manufaturados na comparaccedilatildeo) Seu proacuteximo passo eacute expor a funccedilatildeo da alma e por consequecircncia a sua virtude Tal funccedilatildeo ou virtude eacute o governo da proacutepria vida23 Desta forma a vida bem governada pela alma (de acordo com a justiccedila) alcanccedilaraacute a felicidade ou eudaimoniacutea24 A mesma estrutura argumentativa aparece no momento da fundaccedilatildeo de uma cidade imaginaacuteria pelos personagens Soacutecrates e Adimanto25 quando eles chegam agrave conclusatildeo de que a especializaccedilatildeo de cada cidadatildeo em diferentes ofiacutecios [erga] de acordo com a sua natureza [phusin]26 eacute a forma mais proveitosa possiacutevel de distribuiccedilatildeo da forccedila de trabalho na cidade Eacute notaacutevel aqui a intenccedilatildeo de fazer a profissatildeo ou a funccedilatildeo de cada um ser vista como atributo natural Para deixar isso patente Soacutecrates declara ldquocada um de noacutes natildeo nasceu igual ao outro mas com naturezas [phusin] diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa [ergou praxei]rdquo27

O mesmo argumento naturalista aparece no diaacutelogo Craacutetilo onde Soacutecrates pretende justificar uma accedilatildeo correta a partir de sua proacutepria natureza ou seja ldquoa natureza da accedilatildeordquo Ele afirma que ldquoelas [as accedilotildees] se realizam segundo sua proacutepria natureza [phusin] natildeo conforme a opiniatildeo que dela fizermosrdquo28 Assim como na Repuacuteblica a natureza de cada coisa dita sua funccedilatildeo ou seja uma coisa deve ser feita

ldquosegundo os imperativos da natureza [phusei]rdquo 29 A natureza eacute o criteacuterio para o que eacute certo ldquono caso de querermos queimar alguma coisa natildeo devemos fazecirc-lo de qualquer modo como nos ditar a fantasia [conforme todas as opiniotildees kata pasan doxan30] mas pelo modo certo que eacute o modo indicado pela natureza [epephukei] para queimarrdquo31 O argumento da accedilatildeo naturalmente correta vai evoluir agrave accedilatildeo de falar e nomear as coisas culminando no ponto central do diaacutelogo (Craacutetilo) que eacute a accedilatildeo de nomear as coisas conforme a natureza 32 Assim a competecircncia de forjar nomes seraacute

18 Cf PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 352e 19 Ibid 352d-e 20 Ibid 352e 21 Ibid 353a 22 Ibid 353b-c 23 Ibid 353d 24 Ibid 353e - 354a 25 Ibid 369c 26 Ibid 370c 27 Ibid 370a-b (grifos meus) 28 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - CraacutetiloBeleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387a 29 Ibid 389c 30 Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101713Atext3DCrat3Asection3D387bgt acesso em 14 mar 2016 (Traduccedilatildeo minha) 31 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387b 32 Cf supra 387b-d

16

do ldquofazedor de nomesrdquo [onomatourgou] ou ldquolegislador [nomothetēs]rdquo33 Uma consequecircncia eacutetica interessante dessa proposta naturalista para os nomes seraacute a prescriccedilatildeo de que todo nome inclusive o de pessoas deveraacute corresponder a sua etimologia agrave sua natureza Como exemplo Soacutecrates diz que o iacutempio natildeo deveraacute se chamar Teoacutefilo (amigo de Deus) nem Mnesteu (lembrado de Deus)34 Outra via naturalista da justificativa dos nomes de acordo com a essecircncia das coisas nomeadas eacute o movimento feito pela boca para a pronuacutencia dos verbos de acordo com o movimento que esse verbo representa35 Apesar de Soacutecrates prescrever a perspectiva naturalista para o nome das coisas ele ao fim do diaacutelogo reconhece o uso corrente da convenccedilatildeo ldquoreceio muito que de fato [] seja bastante precaacuteria a tal forccedila de atraccedilatildeo da semelhanccedila e que nos vejamos forccedilados a recorrer a esse expediente banal a convenccedilatildeo [tē sunthēkē] para a correta imposiccedilatildeo dos nomes [onomatōn

orthotēta]rdquo36 Na Repuacuteblica a naturalizaccedilatildeo da virtude vai ter uma importante repercussatildeo

eacutetica ao se estabelecer quem no diaacutelogo definiraacute o ofiacutecio natural de cada cidadatildeo Soacutecrates diz a Adimanto ldquo[] eacute tarefa nossa segundo parece e se na verdade formos capazes disso proceder agrave escolha daqueles de qualidades e natureza [phuseōs] apropriadas para a custoacutedia da cidade37

Essa distinta capacidade que tais personagens filoacutesofos tecircm de determinar a natureza dos cidadatildeos vai se elevar agrave escolha dos guardiotildees da cidade Soacutecrates inicia uma comparaccedilatildeo da natureza dos animais com a natureza necessaacuteria aos guardiotildees Sugestivamente ele indaga Adimanto ldquohaacute alguma diferenccedila entre a natureza (phusin) de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascidordquo38 A valentia e porte fiacutesico do guardiatildeo deveratildeo ser como os de um catildeo ou cavalo mas ao mesmo tempo ele precisaraacute ser por natureza [phusei] doacutecil com os concidadatildeos como um catildeo de boa raccedila39 Essa capacidade do catildeo de distinguir amigos de inimigos eacute dada pelo seu ldquoinstinto filosoacutefico naturalrdquo [philosophos tēn phusin]40 Neste ponto temos uma passagem sutil mas importantiacutessima a naturalizaccedilatildeo do pendor filosoacutefico Esta seraacute crucial para justificar o filoacutesofo como governante a partir de uma imposiccedilatildeo da natureza com a forccedila do que eacute necessaacuterio e inescapaacutevel tal como disse Antifonte contudo aqui usado para hierarquizar homens ao inveacutes de igualaacute-los Quanto agrave natureza do guardiatildeo reafirma Soacutecrates ldquoquando procuramos um guarda dessa espeacutecie natildeo vamos contra a naturezardquo41 Quanto agrave relaccedilatildeo entre a filosofia e a natureza (do catildeo capaz de tal distinccedilatildeo) Soacutecrates afirma ldquomas sem duacutevida que demonstra a engenhosa conformaccedilatildeo da sua natureza [tēs phuseōs] que eacute

verdadeiramente amiga de saberrdquo42 E ainda sobre esta justificativa naturalista ele declara

33 Ibid 389a 34 Cf supra 394d-e 35 Cf supra 426c-427c 36 Ibid 435c 37 PLATAtildeO A Repuacuteblica 374e (grifo meu) 38 Ibid 375a (grifo meu) 39 Ibid 375e 40 Ibid 41 Ibid 375e 42 Ibid 376a-b (grifo meu)

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

11

Sob o ponto de vista religioso a lei absoluta e universal que rege as leis humanas proveacutem de divindades De acordo com Heraacuteclito por exemplo ldquotodas as leis [noacutemoi6] humanas satildeo alimentadas por uma lei una a divina pois exerce seu domiacutenio tatildeo longe quanto se consente e basta e envolve todas as outrasrdquo7 Na trageacutedia a lei divina eacute comumente evocada para sobrepujar a lei humana como em Antiacutegona de Soacutefocles quando a personagem homocircnima recorre agrave lei divina para se eximir da lei do rei Creonte ldquoeu natildeo creio que teus decretos escritos pela matildeo de um mortal possam ser superiores agraves leis [nomima] natildeo escritas e imutaacuteveis dos deusesrdquo8 Agrave medida que as leis divinas passam a ser desacreditadas outras formas de realismo eacutetico-poliacutetico surgem em seu lugar Eacute o caso da natureza como veremos adiante Eacute comum encontrar autores que adotam posiccedilotildees ora proacute-phyacutesis (naturalista) ora proacute-noacutemos (consensualista) Assim a abordagem a seguir faraacute uma separaccedilatildeo em linhas gerais destas posturas permitindo-se poreacutem sempre uma criacutetica comparativa entre elas em todo seu decorrer

6 Nas citaccedilotildees dos textos filosoacuteficos gregos as palavras-chave e as de maior relevacircncia para este trabalho foram retiradas em transliteraccedilatildeo latina de Perseus Digital Library Disponiacutevel em ltwwwperseustuftsedugt 7 HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012 p115 fr 114 8 SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Rio de Janeiro DIFEL 2006 p 46-7 450-5

12

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSIS

Na sofiacutestica vemos uma multiplicidade de posiccedilotildees eacuteticas em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo de modo que natildeo haacute um soacute ldquolugar sofiacutesticordquo Um dos principais registros da sofiacutestica sobre o problema do dualismo entre convenccedilatildeo humana e natureza como criteacuterio eacutetico foi de Antifonte Em seu texto Sobre a Verdade do qual soacute nos chegaram fragmentos ele aborda a diferenccedila entre baacuterbaros e gregos como sendo meramente convencional apontando para a mesma natureza em ambos Antifonte ressalta que as caracteriacutesticas e funccedilotildees corporais satildeo as mesmas entre os dois por natureza e portanto necessaacuterias

agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros enquanto por natureza [phusei] todos em tudo nascemos igualmente dispostos para ser tanto baacuterbaros quanto gregos Eacute o caso de observar as coisas que por natureza [phusei] satildeo necessaacuterias a todos os homens a todos satildeo acessiacuteveis pelas

mesmas capacidades e em todas as coisas nenhum de noacutes eacute determinado nem como baacuterbaro nem como grego Pois todos respiramos o ar pela boca e pelas narinas [] e comemos todos com as matildeos [] e rimos quando nos alegramos [] no espiacuterito ou choramos quando sentimos dor e pela audiccedilatildeo acolhemos os sons e pela luz do sol com a vista vemos e com as matildeos trabalhamos e com os peacutes caminhamos [] segundo a medida do que agrada cada um dos homens e eles em conjunto se reuniram e estabeleceram as leis9

A importacircncia da anaacutelise deste texto reside no fato de para Antifonte as leis humanas serem impostas e as naturais necessaacuterias O sofista mostra que a necessidade imposta aos homens pela natureza (phyacutesei oacutenton anankaicircon pacirc sin antropoacuteis) de que gregos e baacuterbaros sejam iguais se sobrepotildee agraves leis (noacutemous) que agradam a determinadas sociedades ou etnias (ldquohomens em conjuntordquo) Quando agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros sob pretexto de obediecircncia agrave lei (noacutemos) violamos a igualdade natural Ao chamar ambas as partes da contenda de baacuterbaros Antifonte mostra que a diferenccedila eacutetnica (gregos e baacuterbaros) natildeo pode justificar a guerra Quanto agrave violaccedilatildeo das determinaccedilotildees da natureza Antifonte diz

As prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo impostas de fora as da natureza [phuseos] necessaacuterias E as prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo pactuadas e natildeo geradas naturalmente [phunta] enquanto as da natureza [phuseos] satildeo geradas naturalmente [phunta] e natildeo pactuadas [] Transgredindo as prescriccedilotildees das leis [noacutemima] com efeito se encoberto diante dos que compactuam aparta-se da vergonha e castigo [] Se alguma das coisas que nascem com a natureza [phusei] eacute violentada para aleacutem do possiacutevel mesmo que isso ficasse encoberto a todos os homens em nada o mal seria menor e se todos vissem em nada maior pois natildeo eacute prejudicado pela opiniatildeo mas pela verdade10

9 ANTIFONTE Fragmentos B44B DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 77-9 (grifo meu) 10 Ibid B44A DK p 73 (grifos meus)

13

Cassin aponta em relaccedilatildeo agrave diferenccedila social em Antifonte um duplo problema ldquoo racismo dos gregos e a relaccedilatildeo entre racismo e a democraciardquo11 Ao afirmar que gregos tambeacutem ldquobarbarizamrdquo (ldquofalam de modo ininteligiacutevelrdquo) Antifonte faz uma criacutetica ao etnocentrismo grego com base naturalista No entanto essa criacutetica encontra grande dificuldade ao se deparar com as leis atenienses legisladas de modo democraacutetico tendentes a valorizar seu proacuteprio povo

Antifonte coloca a natureza como paracircmetro de verdade (o agir conforme a natureza) de cuja puniccedilatildeo natildeo se pode escapar como das puniccedilotildees das leis humanas A transgressatildeo das leis convencionais humanas eacute passiacutevel de vergonha e puniccedilatildeo baseada em opiniatildeo humana ou quiccedilaacute de nenhuma caso ningueacutem tome conhecimento ao passo que a sanccedilatildeo para a transgressatildeo de lei natural eacute em funccedilatildeo da verdade livre de qualquer valoraccedilatildeo humana e por isso inescapaacutevel e amoral Contudo um conceito de verdade absoluta soacute se sustenta como uma ideia pois do ponto de vista pragmaacutetico para se chegar a ela seraacute sempre necessaacuterio um caminho de interpretaccedilatildeo humana Caminho esse que natildeo eacute uniacutevoco e satildeo nas bifurcaccedilotildees deste caminho interpretativo que os homens chegam paradoxalmente a diferentes ldquoverdades uacutenicas e absolutasrdquo Afinal quantas verdades diferentes a respeito da mesma coisa a civilizaccedilatildeo humana em toda sua histoacuteria jaacute natildeo produziu Neste texto Antifonte mostra a forccedila da natureza como uma necessidade que se impotildee a despeito da lei do homem A lei pode inclusive ser contra a natureza prescrevendo como o homem deve interpretar seus sentidos e como ele deve se portar ainda que de modo antagocircnico ao natural

muitas das coisas justas segundo a lei [noacutemon dikaiacuteon] estatildeo em peacute de guerra com a natureza [phusei] pois estatildeo dispostas por lei aos

olhos as coisas que devem [] ver e as coisas que natildeo devem e aos ouvidos as que eles devem ouvir e as que natildeo devem e agrave liacutengua as que ela deve dizer e as que natildeo deve e agraves matildeos as que ela deve fazer e as que natildeo devem e aos peacutes para onde devem ir e para onde natildeo devem e ao espiacuterito as coisas que deve desejar e as que natildeo deve Com efeito natildeo satildeo para a natureza [phusei] em nada mais afins

nem mais proacuteprias as coisas das quais as leis dissuadem os homens do que aquelas das quais persuadem12

O autor quer aqui mostrar que o noacutemos pode ditar como o homem deve emitir

juiacutezos sobre seus dons naturais como ouvir e falar Ele mostra tambeacutem que o interesse incutido na convenccedilatildeo da lei determina como o homem deve se portar na natureza ou ainda como a lei pretende determinar a eacutetica Mas eacute longe do julgamento dos olhos alheios ou seja em estado natural que o homem encontra sua verdadeira eacutetica A conveniecircncia do homem natildeo necessariamente favorece o curso da natureza Contudo segundo Antifonte esta deveria ser o referencial da sua eacutetica jaacute que como visto a natureza eacute a verdade e a necessidade a despeito de qualquer sentimento que possa afastaacute-lo desse referencial como a vergonha Esse eacute o ponto central desta

11 CASSIN B ldquoBarbarizarrdquo e ldquoCidadanizarrdquo In CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A Cidade e Seus Outros Rio de Janeiro Editora 34 1993 p 107 12 ANTIFONTE Acerca da Verdade B44A DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 73

14

discussatildeo ou seja qual referencial eacutetico deve-se adotar Nesse sentido continua Antifonte

o viver e o morrer satildeo da natureza [phuseos] e para eles [os homens]

o viver eacute uma das coisas convenientes e o morrer uma das natildeo-convenientes As coisas convenientes fixadas pelas leis [noacutemon] por seu turno satildeo grilhotildees da natureza [phuseos] as fixadas pela natureza [phuseos] livres De fato as coisas que produzem sofrimento por uma correta razatildeo natildeo satildeo proveitosas agrave natureza [phusin] mais do que as agradaacuteveis Pois as coisas convenientes

segundo a verdade natildeo devem prejudicar mas beneficiar 13

Ou seja para o curso da natureza pouco importa o que agrada ou desagrada ao homem A conveniecircncia humana sob forma de leis pode impedir o curso livre da natureza Por ver a natureza como fonte de verdade Antifonte preconiza que o homem deve alinhar sua conveniecircncia agrave natureza Contudo alcanccedilar a verdade da natureza tambeacutem natildeo pressupotildee sua interpretaccedilatildeo E essa interpretaccedilatildeo natildeo seria uma convenccedilatildeo ou no miacutenimo um artifiacutecio do homem O problema de se alcanccedilar a verdade da natureza portanto recai na inexorabilidade do artifiacutecio humano da interpretaccedilatildeo Ateacute que ponto essa interpretaccedilatildeo natildeo seria tendenciosa na proposta de Antifonte de se alinhar a conveniecircncia do homem agrave natureza

Guthrie esclarece porque Antifonte ainda em Sobre a Verdade apresenta diferentes conceitos de justiccedila14 para mostrar que as concepccedilotildees vigentes de moralidade satildeo inadequadas e que as formas da natureza eacute que devem ter preferecircncia15

Por fim temos em Antifonte a afirmaccedilatildeo de que a violaccedilatildeo das leis humanas eacute julgada pela opiniatildeo e a das leis naturais pela verdade Antifonte quer com isso mostrar que a natureza deve ser o referencial para a convenccedilatildeo humana ainda que esta ldquoverdade da naturezardquo seja contraacuteria a algumas conveniecircncias do homem Assim o sofista expotildee a dupla via de valoraccedilatildeo que o dualismo permite e que seraacute de modo controverso explorada por sofistas e filoacutesofos A sofiacutestica exploraraacute o dualismo com mais ecircnfase pelo vieacutes oposto qual seja o da justificativa eacutetico-poliacutetica baseada no noacutemos Como expocircs Cassin eacute caracteriacutestica da sofiacutestica a substituiccedilatildeo do fiacutesico pelo poliacutetico assim como o acordo discursivo (homologia) como base de legalidade poliacutetica16 Ainda segundo Cassin ldquoo consenso (homonoacuteia) eacute [] o efeito de uma operaccedilatildeo loacutegica no sentido lato capaz de voltar em seu favor as opiniotildees ou as praacuteticas contraditoacuterias que deveriam interdizecirc-lordquo17

No diaacutelogo Repuacuteblica Platatildeo inicia a justificativa de sua visatildeo poliacutetica do filoacutesofo-rei da cidade ideal (kallipolis) a partir da ideia de funccedilatildeo ou tarefa (eacutergon) especializada de cada coisa O personagem Soacutecrates em diaacutelogo com o personagem Trasiacutemaco sustenta que os objetos sejam manufaturados ou naturais possuem um eacutergon especiacutefico Esta funccedilatildeo eacute ou exclusiva de um determinado objeto ou realizada

13 Ibid p 73-75 B 44A DK 14 A saber (1) Conformidade agraves leis e costumes de seu paiacutes (2) natildeo causar injuacuteria exceto em resposta a uma injuacuteria recebida (3) nem causar nem sofrer injuacuteria 15 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge University Press 1965 III p 112 16 Cf CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Satildeo Paulo Editora 34 2005 p 71 17 CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Satildeo Paulo Siciliano 1990 p79

15

por este com mais perfeiccedilatildeo18 Assim Soacutecrates leva Trasiacutemaco a concordar que o cavalo tem uma funccedilatildeo determinada19 que os oacutergatildeos sensoriais tecircm suas funccedilotildees especiacuteficas (a saber olhos visatildeo e ouvidos audiccedilatildeo20) e tambeacutem que objetos cortantes como a faca satildeo ideais para cortar os sarmentos de uma vinha21

Logo adiante Platatildeo faz Soacutecrates propor que essa funccedilatildeo eacute uma virtude (areteacute) do objeto22 Esta proposiccedilatildeo eacute o ponto onde Platatildeo atribui um valor moral elevado (virtude) a uma caracteriacutestica natural do objeto qual seja a sua funccedilatildeo (ainda que ele tambeacutem tenha incluiacutedo objetos manufaturados na comparaccedilatildeo) Seu proacuteximo passo eacute expor a funccedilatildeo da alma e por consequecircncia a sua virtude Tal funccedilatildeo ou virtude eacute o governo da proacutepria vida23 Desta forma a vida bem governada pela alma (de acordo com a justiccedila) alcanccedilaraacute a felicidade ou eudaimoniacutea24 A mesma estrutura argumentativa aparece no momento da fundaccedilatildeo de uma cidade imaginaacuteria pelos personagens Soacutecrates e Adimanto25 quando eles chegam agrave conclusatildeo de que a especializaccedilatildeo de cada cidadatildeo em diferentes ofiacutecios [erga] de acordo com a sua natureza [phusin]26 eacute a forma mais proveitosa possiacutevel de distribuiccedilatildeo da forccedila de trabalho na cidade Eacute notaacutevel aqui a intenccedilatildeo de fazer a profissatildeo ou a funccedilatildeo de cada um ser vista como atributo natural Para deixar isso patente Soacutecrates declara ldquocada um de noacutes natildeo nasceu igual ao outro mas com naturezas [phusin] diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa [ergou praxei]rdquo27

O mesmo argumento naturalista aparece no diaacutelogo Craacutetilo onde Soacutecrates pretende justificar uma accedilatildeo correta a partir de sua proacutepria natureza ou seja ldquoa natureza da accedilatildeordquo Ele afirma que ldquoelas [as accedilotildees] se realizam segundo sua proacutepria natureza [phusin] natildeo conforme a opiniatildeo que dela fizermosrdquo28 Assim como na Repuacuteblica a natureza de cada coisa dita sua funccedilatildeo ou seja uma coisa deve ser feita

ldquosegundo os imperativos da natureza [phusei]rdquo 29 A natureza eacute o criteacuterio para o que eacute certo ldquono caso de querermos queimar alguma coisa natildeo devemos fazecirc-lo de qualquer modo como nos ditar a fantasia [conforme todas as opiniotildees kata pasan doxan30] mas pelo modo certo que eacute o modo indicado pela natureza [epephukei] para queimarrdquo31 O argumento da accedilatildeo naturalmente correta vai evoluir agrave accedilatildeo de falar e nomear as coisas culminando no ponto central do diaacutelogo (Craacutetilo) que eacute a accedilatildeo de nomear as coisas conforme a natureza 32 Assim a competecircncia de forjar nomes seraacute

18 Cf PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 352e 19 Ibid 352d-e 20 Ibid 352e 21 Ibid 353a 22 Ibid 353b-c 23 Ibid 353d 24 Ibid 353e - 354a 25 Ibid 369c 26 Ibid 370c 27 Ibid 370a-b (grifos meus) 28 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - CraacutetiloBeleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387a 29 Ibid 389c 30 Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101713Atext3DCrat3Asection3D387bgt acesso em 14 mar 2016 (Traduccedilatildeo minha) 31 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387b 32 Cf supra 387b-d

16

do ldquofazedor de nomesrdquo [onomatourgou] ou ldquolegislador [nomothetēs]rdquo33 Uma consequecircncia eacutetica interessante dessa proposta naturalista para os nomes seraacute a prescriccedilatildeo de que todo nome inclusive o de pessoas deveraacute corresponder a sua etimologia agrave sua natureza Como exemplo Soacutecrates diz que o iacutempio natildeo deveraacute se chamar Teoacutefilo (amigo de Deus) nem Mnesteu (lembrado de Deus)34 Outra via naturalista da justificativa dos nomes de acordo com a essecircncia das coisas nomeadas eacute o movimento feito pela boca para a pronuacutencia dos verbos de acordo com o movimento que esse verbo representa35 Apesar de Soacutecrates prescrever a perspectiva naturalista para o nome das coisas ele ao fim do diaacutelogo reconhece o uso corrente da convenccedilatildeo ldquoreceio muito que de fato [] seja bastante precaacuteria a tal forccedila de atraccedilatildeo da semelhanccedila e que nos vejamos forccedilados a recorrer a esse expediente banal a convenccedilatildeo [tē sunthēkē] para a correta imposiccedilatildeo dos nomes [onomatōn

orthotēta]rdquo36 Na Repuacuteblica a naturalizaccedilatildeo da virtude vai ter uma importante repercussatildeo

eacutetica ao se estabelecer quem no diaacutelogo definiraacute o ofiacutecio natural de cada cidadatildeo Soacutecrates diz a Adimanto ldquo[] eacute tarefa nossa segundo parece e se na verdade formos capazes disso proceder agrave escolha daqueles de qualidades e natureza [phuseōs] apropriadas para a custoacutedia da cidade37

Essa distinta capacidade que tais personagens filoacutesofos tecircm de determinar a natureza dos cidadatildeos vai se elevar agrave escolha dos guardiotildees da cidade Soacutecrates inicia uma comparaccedilatildeo da natureza dos animais com a natureza necessaacuteria aos guardiotildees Sugestivamente ele indaga Adimanto ldquohaacute alguma diferenccedila entre a natureza (phusin) de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascidordquo38 A valentia e porte fiacutesico do guardiatildeo deveratildeo ser como os de um catildeo ou cavalo mas ao mesmo tempo ele precisaraacute ser por natureza [phusei] doacutecil com os concidadatildeos como um catildeo de boa raccedila39 Essa capacidade do catildeo de distinguir amigos de inimigos eacute dada pelo seu ldquoinstinto filosoacutefico naturalrdquo [philosophos tēn phusin]40 Neste ponto temos uma passagem sutil mas importantiacutessima a naturalizaccedilatildeo do pendor filosoacutefico Esta seraacute crucial para justificar o filoacutesofo como governante a partir de uma imposiccedilatildeo da natureza com a forccedila do que eacute necessaacuterio e inescapaacutevel tal como disse Antifonte contudo aqui usado para hierarquizar homens ao inveacutes de igualaacute-los Quanto agrave natureza do guardiatildeo reafirma Soacutecrates ldquoquando procuramos um guarda dessa espeacutecie natildeo vamos contra a naturezardquo41 Quanto agrave relaccedilatildeo entre a filosofia e a natureza (do catildeo capaz de tal distinccedilatildeo) Soacutecrates afirma ldquomas sem duacutevida que demonstra a engenhosa conformaccedilatildeo da sua natureza [tēs phuseōs] que eacute

verdadeiramente amiga de saberrdquo42 E ainda sobre esta justificativa naturalista ele declara

33 Ibid 389a 34 Cf supra 394d-e 35 Cf supra 426c-427c 36 Ibid 435c 37 PLATAtildeO A Repuacuteblica 374e (grifo meu) 38 Ibid 375a (grifo meu) 39 Ibid 375e 40 Ibid 41 Ibid 375e 42 Ibid 376a-b (grifo meu)

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

12

2 POSICcedilOtildeES PROacute-PHYacuteSIS

Na sofiacutestica vemos uma multiplicidade de posiccedilotildees eacuteticas em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo de modo que natildeo haacute um soacute ldquolugar sofiacutesticordquo Um dos principais registros da sofiacutestica sobre o problema do dualismo entre convenccedilatildeo humana e natureza como criteacuterio eacutetico foi de Antifonte Em seu texto Sobre a Verdade do qual soacute nos chegaram fragmentos ele aborda a diferenccedila entre baacuterbaros e gregos como sendo meramente convencional apontando para a mesma natureza em ambos Antifonte ressalta que as caracteriacutesticas e funccedilotildees corporais satildeo as mesmas entre os dois por natureza e portanto necessaacuterias

agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros enquanto por natureza [phusei] todos em tudo nascemos igualmente dispostos para ser tanto baacuterbaros quanto gregos Eacute o caso de observar as coisas que por natureza [phusei] satildeo necessaacuterias a todos os homens a todos satildeo acessiacuteveis pelas

mesmas capacidades e em todas as coisas nenhum de noacutes eacute determinado nem como baacuterbaro nem como grego Pois todos respiramos o ar pela boca e pelas narinas [] e comemos todos com as matildeos [] e rimos quando nos alegramos [] no espiacuterito ou choramos quando sentimos dor e pela audiccedilatildeo acolhemos os sons e pela luz do sol com a vista vemos e com as matildeos trabalhamos e com os peacutes caminhamos [] segundo a medida do que agrada cada um dos homens e eles em conjunto se reuniram e estabeleceram as leis9

A importacircncia da anaacutelise deste texto reside no fato de para Antifonte as leis humanas serem impostas e as naturais necessaacuterias O sofista mostra que a necessidade imposta aos homens pela natureza (phyacutesei oacutenton anankaicircon pacirc sin antropoacuteis) de que gregos e baacuterbaros sejam iguais se sobrepotildee agraves leis (noacutemous) que agradam a determinadas sociedades ou etnias (ldquohomens em conjuntordquo) Quando agimos como baacuterbaros uns em relaccedilatildeo aos outros sob pretexto de obediecircncia agrave lei (noacutemos) violamos a igualdade natural Ao chamar ambas as partes da contenda de baacuterbaros Antifonte mostra que a diferenccedila eacutetnica (gregos e baacuterbaros) natildeo pode justificar a guerra Quanto agrave violaccedilatildeo das determinaccedilotildees da natureza Antifonte diz

As prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo impostas de fora as da natureza [phuseos] necessaacuterias E as prescriccedilotildees das leis [noacutemon] satildeo pactuadas e natildeo geradas naturalmente [phunta] enquanto as da natureza [phuseos] satildeo geradas naturalmente [phunta] e natildeo pactuadas [] Transgredindo as prescriccedilotildees das leis [noacutemima] com efeito se encoberto diante dos que compactuam aparta-se da vergonha e castigo [] Se alguma das coisas que nascem com a natureza [phusei] eacute violentada para aleacutem do possiacutevel mesmo que isso ficasse encoberto a todos os homens em nada o mal seria menor e se todos vissem em nada maior pois natildeo eacute prejudicado pela opiniatildeo mas pela verdade10

9 ANTIFONTE Fragmentos B44B DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 77-9 (grifo meu) 10 Ibid B44A DK p 73 (grifos meus)

13

Cassin aponta em relaccedilatildeo agrave diferenccedila social em Antifonte um duplo problema ldquoo racismo dos gregos e a relaccedilatildeo entre racismo e a democraciardquo11 Ao afirmar que gregos tambeacutem ldquobarbarizamrdquo (ldquofalam de modo ininteligiacutevelrdquo) Antifonte faz uma criacutetica ao etnocentrismo grego com base naturalista No entanto essa criacutetica encontra grande dificuldade ao se deparar com as leis atenienses legisladas de modo democraacutetico tendentes a valorizar seu proacuteprio povo

Antifonte coloca a natureza como paracircmetro de verdade (o agir conforme a natureza) de cuja puniccedilatildeo natildeo se pode escapar como das puniccedilotildees das leis humanas A transgressatildeo das leis convencionais humanas eacute passiacutevel de vergonha e puniccedilatildeo baseada em opiniatildeo humana ou quiccedilaacute de nenhuma caso ningueacutem tome conhecimento ao passo que a sanccedilatildeo para a transgressatildeo de lei natural eacute em funccedilatildeo da verdade livre de qualquer valoraccedilatildeo humana e por isso inescapaacutevel e amoral Contudo um conceito de verdade absoluta soacute se sustenta como uma ideia pois do ponto de vista pragmaacutetico para se chegar a ela seraacute sempre necessaacuterio um caminho de interpretaccedilatildeo humana Caminho esse que natildeo eacute uniacutevoco e satildeo nas bifurcaccedilotildees deste caminho interpretativo que os homens chegam paradoxalmente a diferentes ldquoverdades uacutenicas e absolutasrdquo Afinal quantas verdades diferentes a respeito da mesma coisa a civilizaccedilatildeo humana em toda sua histoacuteria jaacute natildeo produziu Neste texto Antifonte mostra a forccedila da natureza como uma necessidade que se impotildee a despeito da lei do homem A lei pode inclusive ser contra a natureza prescrevendo como o homem deve interpretar seus sentidos e como ele deve se portar ainda que de modo antagocircnico ao natural

muitas das coisas justas segundo a lei [noacutemon dikaiacuteon] estatildeo em peacute de guerra com a natureza [phusei] pois estatildeo dispostas por lei aos

olhos as coisas que devem [] ver e as coisas que natildeo devem e aos ouvidos as que eles devem ouvir e as que natildeo devem e agrave liacutengua as que ela deve dizer e as que natildeo deve e agraves matildeos as que ela deve fazer e as que natildeo devem e aos peacutes para onde devem ir e para onde natildeo devem e ao espiacuterito as coisas que deve desejar e as que natildeo deve Com efeito natildeo satildeo para a natureza [phusei] em nada mais afins

nem mais proacuteprias as coisas das quais as leis dissuadem os homens do que aquelas das quais persuadem12

O autor quer aqui mostrar que o noacutemos pode ditar como o homem deve emitir

juiacutezos sobre seus dons naturais como ouvir e falar Ele mostra tambeacutem que o interesse incutido na convenccedilatildeo da lei determina como o homem deve se portar na natureza ou ainda como a lei pretende determinar a eacutetica Mas eacute longe do julgamento dos olhos alheios ou seja em estado natural que o homem encontra sua verdadeira eacutetica A conveniecircncia do homem natildeo necessariamente favorece o curso da natureza Contudo segundo Antifonte esta deveria ser o referencial da sua eacutetica jaacute que como visto a natureza eacute a verdade e a necessidade a despeito de qualquer sentimento que possa afastaacute-lo desse referencial como a vergonha Esse eacute o ponto central desta

11 CASSIN B ldquoBarbarizarrdquo e ldquoCidadanizarrdquo In CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A Cidade e Seus Outros Rio de Janeiro Editora 34 1993 p 107 12 ANTIFONTE Acerca da Verdade B44A DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 73

14

discussatildeo ou seja qual referencial eacutetico deve-se adotar Nesse sentido continua Antifonte

o viver e o morrer satildeo da natureza [phuseos] e para eles [os homens]

o viver eacute uma das coisas convenientes e o morrer uma das natildeo-convenientes As coisas convenientes fixadas pelas leis [noacutemon] por seu turno satildeo grilhotildees da natureza [phuseos] as fixadas pela natureza [phuseos] livres De fato as coisas que produzem sofrimento por uma correta razatildeo natildeo satildeo proveitosas agrave natureza [phusin] mais do que as agradaacuteveis Pois as coisas convenientes

segundo a verdade natildeo devem prejudicar mas beneficiar 13

Ou seja para o curso da natureza pouco importa o que agrada ou desagrada ao homem A conveniecircncia humana sob forma de leis pode impedir o curso livre da natureza Por ver a natureza como fonte de verdade Antifonte preconiza que o homem deve alinhar sua conveniecircncia agrave natureza Contudo alcanccedilar a verdade da natureza tambeacutem natildeo pressupotildee sua interpretaccedilatildeo E essa interpretaccedilatildeo natildeo seria uma convenccedilatildeo ou no miacutenimo um artifiacutecio do homem O problema de se alcanccedilar a verdade da natureza portanto recai na inexorabilidade do artifiacutecio humano da interpretaccedilatildeo Ateacute que ponto essa interpretaccedilatildeo natildeo seria tendenciosa na proposta de Antifonte de se alinhar a conveniecircncia do homem agrave natureza

Guthrie esclarece porque Antifonte ainda em Sobre a Verdade apresenta diferentes conceitos de justiccedila14 para mostrar que as concepccedilotildees vigentes de moralidade satildeo inadequadas e que as formas da natureza eacute que devem ter preferecircncia15

Por fim temos em Antifonte a afirmaccedilatildeo de que a violaccedilatildeo das leis humanas eacute julgada pela opiniatildeo e a das leis naturais pela verdade Antifonte quer com isso mostrar que a natureza deve ser o referencial para a convenccedilatildeo humana ainda que esta ldquoverdade da naturezardquo seja contraacuteria a algumas conveniecircncias do homem Assim o sofista expotildee a dupla via de valoraccedilatildeo que o dualismo permite e que seraacute de modo controverso explorada por sofistas e filoacutesofos A sofiacutestica exploraraacute o dualismo com mais ecircnfase pelo vieacutes oposto qual seja o da justificativa eacutetico-poliacutetica baseada no noacutemos Como expocircs Cassin eacute caracteriacutestica da sofiacutestica a substituiccedilatildeo do fiacutesico pelo poliacutetico assim como o acordo discursivo (homologia) como base de legalidade poliacutetica16 Ainda segundo Cassin ldquoo consenso (homonoacuteia) eacute [] o efeito de uma operaccedilatildeo loacutegica no sentido lato capaz de voltar em seu favor as opiniotildees ou as praacuteticas contraditoacuterias que deveriam interdizecirc-lordquo17

No diaacutelogo Repuacuteblica Platatildeo inicia a justificativa de sua visatildeo poliacutetica do filoacutesofo-rei da cidade ideal (kallipolis) a partir da ideia de funccedilatildeo ou tarefa (eacutergon) especializada de cada coisa O personagem Soacutecrates em diaacutelogo com o personagem Trasiacutemaco sustenta que os objetos sejam manufaturados ou naturais possuem um eacutergon especiacutefico Esta funccedilatildeo eacute ou exclusiva de um determinado objeto ou realizada

13 Ibid p 73-75 B 44A DK 14 A saber (1) Conformidade agraves leis e costumes de seu paiacutes (2) natildeo causar injuacuteria exceto em resposta a uma injuacuteria recebida (3) nem causar nem sofrer injuacuteria 15 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge University Press 1965 III p 112 16 Cf CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Satildeo Paulo Editora 34 2005 p 71 17 CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Satildeo Paulo Siciliano 1990 p79

15

por este com mais perfeiccedilatildeo18 Assim Soacutecrates leva Trasiacutemaco a concordar que o cavalo tem uma funccedilatildeo determinada19 que os oacutergatildeos sensoriais tecircm suas funccedilotildees especiacuteficas (a saber olhos visatildeo e ouvidos audiccedilatildeo20) e tambeacutem que objetos cortantes como a faca satildeo ideais para cortar os sarmentos de uma vinha21

Logo adiante Platatildeo faz Soacutecrates propor que essa funccedilatildeo eacute uma virtude (areteacute) do objeto22 Esta proposiccedilatildeo eacute o ponto onde Platatildeo atribui um valor moral elevado (virtude) a uma caracteriacutestica natural do objeto qual seja a sua funccedilatildeo (ainda que ele tambeacutem tenha incluiacutedo objetos manufaturados na comparaccedilatildeo) Seu proacuteximo passo eacute expor a funccedilatildeo da alma e por consequecircncia a sua virtude Tal funccedilatildeo ou virtude eacute o governo da proacutepria vida23 Desta forma a vida bem governada pela alma (de acordo com a justiccedila) alcanccedilaraacute a felicidade ou eudaimoniacutea24 A mesma estrutura argumentativa aparece no momento da fundaccedilatildeo de uma cidade imaginaacuteria pelos personagens Soacutecrates e Adimanto25 quando eles chegam agrave conclusatildeo de que a especializaccedilatildeo de cada cidadatildeo em diferentes ofiacutecios [erga] de acordo com a sua natureza [phusin]26 eacute a forma mais proveitosa possiacutevel de distribuiccedilatildeo da forccedila de trabalho na cidade Eacute notaacutevel aqui a intenccedilatildeo de fazer a profissatildeo ou a funccedilatildeo de cada um ser vista como atributo natural Para deixar isso patente Soacutecrates declara ldquocada um de noacutes natildeo nasceu igual ao outro mas com naturezas [phusin] diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa [ergou praxei]rdquo27

O mesmo argumento naturalista aparece no diaacutelogo Craacutetilo onde Soacutecrates pretende justificar uma accedilatildeo correta a partir de sua proacutepria natureza ou seja ldquoa natureza da accedilatildeordquo Ele afirma que ldquoelas [as accedilotildees] se realizam segundo sua proacutepria natureza [phusin] natildeo conforme a opiniatildeo que dela fizermosrdquo28 Assim como na Repuacuteblica a natureza de cada coisa dita sua funccedilatildeo ou seja uma coisa deve ser feita

ldquosegundo os imperativos da natureza [phusei]rdquo 29 A natureza eacute o criteacuterio para o que eacute certo ldquono caso de querermos queimar alguma coisa natildeo devemos fazecirc-lo de qualquer modo como nos ditar a fantasia [conforme todas as opiniotildees kata pasan doxan30] mas pelo modo certo que eacute o modo indicado pela natureza [epephukei] para queimarrdquo31 O argumento da accedilatildeo naturalmente correta vai evoluir agrave accedilatildeo de falar e nomear as coisas culminando no ponto central do diaacutelogo (Craacutetilo) que eacute a accedilatildeo de nomear as coisas conforme a natureza 32 Assim a competecircncia de forjar nomes seraacute

18 Cf PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 352e 19 Ibid 352d-e 20 Ibid 352e 21 Ibid 353a 22 Ibid 353b-c 23 Ibid 353d 24 Ibid 353e - 354a 25 Ibid 369c 26 Ibid 370c 27 Ibid 370a-b (grifos meus) 28 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - CraacutetiloBeleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387a 29 Ibid 389c 30 Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101713Atext3DCrat3Asection3D387bgt acesso em 14 mar 2016 (Traduccedilatildeo minha) 31 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387b 32 Cf supra 387b-d

16

do ldquofazedor de nomesrdquo [onomatourgou] ou ldquolegislador [nomothetēs]rdquo33 Uma consequecircncia eacutetica interessante dessa proposta naturalista para os nomes seraacute a prescriccedilatildeo de que todo nome inclusive o de pessoas deveraacute corresponder a sua etimologia agrave sua natureza Como exemplo Soacutecrates diz que o iacutempio natildeo deveraacute se chamar Teoacutefilo (amigo de Deus) nem Mnesteu (lembrado de Deus)34 Outra via naturalista da justificativa dos nomes de acordo com a essecircncia das coisas nomeadas eacute o movimento feito pela boca para a pronuacutencia dos verbos de acordo com o movimento que esse verbo representa35 Apesar de Soacutecrates prescrever a perspectiva naturalista para o nome das coisas ele ao fim do diaacutelogo reconhece o uso corrente da convenccedilatildeo ldquoreceio muito que de fato [] seja bastante precaacuteria a tal forccedila de atraccedilatildeo da semelhanccedila e que nos vejamos forccedilados a recorrer a esse expediente banal a convenccedilatildeo [tē sunthēkē] para a correta imposiccedilatildeo dos nomes [onomatōn

orthotēta]rdquo36 Na Repuacuteblica a naturalizaccedilatildeo da virtude vai ter uma importante repercussatildeo

eacutetica ao se estabelecer quem no diaacutelogo definiraacute o ofiacutecio natural de cada cidadatildeo Soacutecrates diz a Adimanto ldquo[] eacute tarefa nossa segundo parece e se na verdade formos capazes disso proceder agrave escolha daqueles de qualidades e natureza [phuseōs] apropriadas para a custoacutedia da cidade37

Essa distinta capacidade que tais personagens filoacutesofos tecircm de determinar a natureza dos cidadatildeos vai se elevar agrave escolha dos guardiotildees da cidade Soacutecrates inicia uma comparaccedilatildeo da natureza dos animais com a natureza necessaacuteria aos guardiotildees Sugestivamente ele indaga Adimanto ldquohaacute alguma diferenccedila entre a natureza (phusin) de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascidordquo38 A valentia e porte fiacutesico do guardiatildeo deveratildeo ser como os de um catildeo ou cavalo mas ao mesmo tempo ele precisaraacute ser por natureza [phusei] doacutecil com os concidadatildeos como um catildeo de boa raccedila39 Essa capacidade do catildeo de distinguir amigos de inimigos eacute dada pelo seu ldquoinstinto filosoacutefico naturalrdquo [philosophos tēn phusin]40 Neste ponto temos uma passagem sutil mas importantiacutessima a naturalizaccedilatildeo do pendor filosoacutefico Esta seraacute crucial para justificar o filoacutesofo como governante a partir de uma imposiccedilatildeo da natureza com a forccedila do que eacute necessaacuterio e inescapaacutevel tal como disse Antifonte contudo aqui usado para hierarquizar homens ao inveacutes de igualaacute-los Quanto agrave natureza do guardiatildeo reafirma Soacutecrates ldquoquando procuramos um guarda dessa espeacutecie natildeo vamos contra a naturezardquo41 Quanto agrave relaccedilatildeo entre a filosofia e a natureza (do catildeo capaz de tal distinccedilatildeo) Soacutecrates afirma ldquomas sem duacutevida que demonstra a engenhosa conformaccedilatildeo da sua natureza [tēs phuseōs] que eacute

verdadeiramente amiga de saberrdquo42 E ainda sobre esta justificativa naturalista ele declara

33 Ibid 389a 34 Cf supra 394d-e 35 Cf supra 426c-427c 36 Ibid 435c 37 PLATAtildeO A Repuacuteblica 374e (grifo meu) 38 Ibid 375a (grifo meu) 39 Ibid 375e 40 Ibid 41 Ibid 375e 42 Ibid 376a-b (grifo meu)

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

13

Cassin aponta em relaccedilatildeo agrave diferenccedila social em Antifonte um duplo problema ldquoo racismo dos gregos e a relaccedilatildeo entre racismo e a democraciardquo11 Ao afirmar que gregos tambeacutem ldquobarbarizamrdquo (ldquofalam de modo ininteligiacutevelrdquo) Antifonte faz uma criacutetica ao etnocentrismo grego com base naturalista No entanto essa criacutetica encontra grande dificuldade ao se deparar com as leis atenienses legisladas de modo democraacutetico tendentes a valorizar seu proacuteprio povo

Antifonte coloca a natureza como paracircmetro de verdade (o agir conforme a natureza) de cuja puniccedilatildeo natildeo se pode escapar como das puniccedilotildees das leis humanas A transgressatildeo das leis convencionais humanas eacute passiacutevel de vergonha e puniccedilatildeo baseada em opiniatildeo humana ou quiccedilaacute de nenhuma caso ningueacutem tome conhecimento ao passo que a sanccedilatildeo para a transgressatildeo de lei natural eacute em funccedilatildeo da verdade livre de qualquer valoraccedilatildeo humana e por isso inescapaacutevel e amoral Contudo um conceito de verdade absoluta soacute se sustenta como uma ideia pois do ponto de vista pragmaacutetico para se chegar a ela seraacute sempre necessaacuterio um caminho de interpretaccedilatildeo humana Caminho esse que natildeo eacute uniacutevoco e satildeo nas bifurcaccedilotildees deste caminho interpretativo que os homens chegam paradoxalmente a diferentes ldquoverdades uacutenicas e absolutasrdquo Afinal quantas verdades diferentes a respeito da mesma coisa a civilizaccedilatildeo humana em toda sua histoacuteria jaacute natildeo produziu Neste texto Antifonte mostra a forccedila da natureza como uma necessidade que se impotildee a despeito da lei do homem A lei pode inclusive ser contra a natureza prescrevendo como o homem deve interpretar seus sentidos e como ele deve se portar ainda que de modo antagocircnico ao natural

muitas das coisas justas segundo a lei [noacutemon dikaiacuteon] estatildeo em peacute de guerra com a natureza [phusei] pois estatildeo dispostas por lei aos

olhos as coisas que devem [] ver e as coisas que natildeo devem e aos ouvidos as que eles devem ouvir e as que natildeo devem e agrave liacutengua as que ela deve dizer e as que natildeo deve e agraves matildeos as que ela deve fazer e as que natildeo devem e aos peacutes para onde devem ir e para onde natildeo devem e ao espiacuterito as coisas que deve desejar e as que natildeo deve Com efeito natildeo satildeo para a natureza [phusei] em nada mais afins

nem mais proacuteprias as coisas das quais as leis dissuadem os homens do que aquelas das quais persuadem12

O autor quer aqui mostrar que o noacutemos pode ditar como o homem deve emitir

juiacutezos sobre seus dons naturais como ouvir e falar Ele mostra tambeacutem que o interesse incutido na convenccedilatildeo da lei determina como o homem deve se portar na natureza ou ainda como a lei pretende determinar a eacutetica Mas eacute longe do julgamento dos olhos alheios ou seja em estado natural que o homem encontra sua verdadeira eacutetica A conveniecircncia do homem natildeo necessariamente favorece o curso da natureza Contudo segundo Antifonte esta deveria ser o referencial da sua eacutetica jaacute que como visto a natureza eacute a verdade e a necessidade a despeito de qualquer sentimento que possa afastaacute-lo desse referencial como a vergonha Esse eacute o ponto central desta

11 CASSIN B ldquoBarbarizarrdquo e ldquoCidadanizarrdquo In CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A Cidade e Seus Outros Rio de Janeiro Editora 34 1993 p 107 12 ANTIFONTE Acerca da Verdade B44A DK In Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p 73

14

discussatildeo ou seja qual referencial eacutetico deve-se adotar Nesse sentido continua Antifonte

o viver e o morrer satildeo da natureza [phuseos] e para eles [os homens]

o viver eacute uma das coisas convenientes e o morrer uma das natildeo-convenientes As coisas convenientes fixadas pelas leis [noacutemon] por seu turno satildeo grilhotildees da natureza [phuseos] as fixadas pela natureza [phuseos] livres De fato as coisas que produzem sofrimento por uma correta razatildeo natildeo satildeo proveitosas agrave natureza [phusin] mais do que as agradaacuteveis Pois as coisas convenientes

segundo a verdade natildeo devem prejudicar mas beneficiar 13

Ou seja para o curso da natureza pouco importa o que agrada ou desagrada ao homem A conveniecircncia humana sob forma de leis pode impedir o curso livre da natureza Por ver a natureza como fonte de verdade Antifonte preconiza que o homem deve alinhar sua conveniecircncia agrave natureza Contudo alcanccedilar a verdade da natureza tambeacutem natildeo pressupotildee sua interpretaccedilatildeo E essa interpretaccedilatildeo natildeo seria uma convenccedilatildeo ou no miacutenimo um artifiacutecio do homem O problema de se alcanccedilar a verdade da natureza portanto recai na inexorabilidade do artifiacutecio humano da interpretaccedilatildeo Ateacute que ponto essa interpretaccedilatildeo natildeo seria tendenciosa na proposta de Antifonte de se alinhar a conveniecircncia do homem agrave natureza

Guthrie esclarece porque Antifonte ainda em Sobre a Verdade apresenta diferentes conceitos de justiccedila14 para mostrar que as concepccedilotildees vigentes de moralidade satildeo inadequadas e que as formas da natureza eacute que devem ter preferecircncia15

Por fim temos em Antifonte a afirmaccedilatildeo de que a violaccedilatildeo das leis humanas eacute julgada pela opiniatildeo e a das leis naturais pela verdade Antifonte quer com isso mostrar que a natureza deve ser o referencial para a convenccedilatildeo humana ainda que esta ldquoverdade da naturezardquo seja contraacuteria a algumas conveniecircncias do homem Assim o sofista expotildee a dupla via de valoraccedilatildeo que o dualismo permite e que seraacute de modo controverso explorada por sofistas e filoacutesofos A sofiacutestica exploraraacute o dualismo com mais ecircnfase pelo vieacutes oposto qual seja o da justificativa eacutetico-poliacutetica baseada no noacutemos Como expocircs Cassin eacute caracteriacutestica da sofiacutestica a substituiccedilatildeo do fiacutesico pelo poliacutetico assim como o acordo discursivo (homologia) como base de legalidade poliacutetica16 Ainda segundo Cassin ldquoo consenso (homonoacuteia) eacute [] o efeito de uma operaccedilatildeo loacutegica no sentido lato capaz de voltar em seu favor as opiniotildees ou as praacuteticas contraditoacuterias que deveriam interdizecirc-lordquo17

No diaacutelogo Repuacuteblica Platatildeo inicia a justificativa de sua visatildeo poliacutetica do filoacutesofo-rei da cidade ideal (kallipolis) a partir da ideia de funccedilatildeo ou tarefa (eacutergon) especializada de cada coisa O personagem Soacutecrates em diaacutelogo com o personagem Trasiacutemaco sustenta que os objetos sejam manufaturados ou naturais possuem um eacutergon especiacutefico Esta funccedilatildeo eacute ou exclusiva de um determinado objeto ou realizada

13 Ibid p 73-75 B 44A DK 14 A saber (1) Conformidade agraves leis e costumes de seu paiacutes (2) natildeo causar injuacuteria exceto em resposta a uma injuacuteria recebida (3) nem causar nem sofrer injuacuteria 15 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge University Press 1965 III p 112 16 Cf CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Satildeo Paulo Editora 34 2005 p 71 17 CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Satildeo Paulo Siciliano 1990 p79

15

por este com mais perfeiccedilatildeo18 Assim Soacutecrates leva Trasiacutemaco a concordar que o cavalo tem uma funccedilatildeo determinada19 que os oacutergatildeos sensoriais tecircm suas funccedilotildees especiacuteficas (a saber olhos visatildeo e ouvidos audiccedilatildeo20) e tambeacutem que objetos cortantes como a faca satildeo ideais para cortar os sarmentos de uma vinha21

Logo adiante Platatildeo faz Soacutecrates propor que essa funccedilatildeo eacute uma virtude (areteacute) do objeto22 Esta proposiccedilatildeo eacute o ponto onde Platatildeo atribui um valor moral elevado (virtude) a uma caracteriacutestica natural do objeto qual seja a sua funccedilatildeo (ainda que ele tambeacutem tenha incluiacutedo objetos manufaturados na comparaccedilatildeo) Seu proacuteximo passo eacute expor a funccedilatildeo da alma e por consequecircncia a sua virtude Tal funccedilatildeo ou virtude eacute o governo da proacutepria vida23 Desta forma a vida bem governada pela alma (de acordo com a justiccedila) alcanccedilaraacute a felicidade ou eudaimoniacutea24 A mesma estrutura argumentativa aparece no momento da fundaccedilatildeo de uma cidade imaginaacuteria pelos personagens Soacutecrates e Adimanto25 quando eles chegam agrave conclusatildeo de que a especializaccedilatildeo de cada cidadatildeo em diferentes ofiacutecios [erga] de acordo com a sua natureza [phusin]26 eacute a forma mais proveitosa possiacutevel de distribuiccedilatildeo da forccedila de trabalho na cidade Eacute notaacutevel aqui a intenccedilatildeo de fazer a profissatildeo ou a funccedilatildeo de cada um ser vista como atributo natural Para deixar isso patente Soacutecrates declara ldquocada um de noacutes natildeo nasceu igual ao outro mas com naturezas [phusin] diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa [ergou praxei]rdquo27

O mesmo argumento naturalista aparece no diaacutelogo Craacutetilo onde Soacutecrates pretende justificar uma accedilatildeo correta a partir de sua proacutepria natureza ou seja ldquoa natureza da accedilatildeordquo Ele afirma que ldquoelas [as accedilotildees] se realizam segundo sua proacutepria natureza [phusin] natildeo conforme a opiniatildeo que dela fizermosrdquo28 Assim como na Repuacuteblica a natureza de cada coisa dita sua funccedilatildeo ou seja uma coisa deve ser feita

ldquosegundo os imperativos da natureza [phusei]rdquo 29 A natureza eacute o criteacuterio para o que eacute certo ldquono caso de querermos queimar alguma coisa natildeo devemos fazecirc-lo de qualquer modo como nos ditar a fantasia [conforme todas as opiniotildees kata pasan doxan30] mas pelo modo certo que eacute o modo indicado pela natureza [epephukei] para queimarrdquo31 O argumento da accedilatildeo naturalmente correta vai evoluir agrave accedilatildeo de falar e nomear as coisas culminando no ponto central do diaacutelogo (Craacutetilo) que eacute a accedilatildeo de nomear as coisas conforme a natureza 32 Assim a competecircncia de forjar nomes seraacute

18 Cf PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 352e 19 Ibid 352d-e 20 Ibid 352e 21 Ibid 353a 22 Ibid 353b-c 23 Ibid 353d 24 Ibid 353e - 354a 25 Ibid 369c 26 Ibid 370c 27 Ibid 370a-b (grifos meus) 28 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - CraacutetiloBeleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387a 29 Ibid 389c 30 Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101713Atext3DCrat3Asection3D387bgt acesso em 14 mar 2016 (Traduccedilatildeo minha) 31 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387b 32 Cf supra 387b-d

16

do ldquofazedor de nomesrdquo [onomatourgou] ou ldquolegislador [nomothetēs]rdquo33 Uma consequecircncia eacutetica interessante dessa proposta naturalista para os nomes seraacute a prescriccedilatildeo de que todo nome inclusive o de pessoas deveraacute corresponder a sua etimologia agrave sua natureza Como exemplo Soacutecrates diz que o iacutempio natildeo deveraacute se chamar Teoacutefilo (amigo de Deus) nem Mnesteu (lembrado de Deus)34 Outra via naturalista da justificativa dos nomes de acordo com a essecircncia das coisas nomeadas eacute o movimento feito pela boca para a pronuacutencia dos verbos de acordo com o movimento que esse verbo representa35 Apesar de Soacutecrates prescrever a perspectiva naturalista para o nome das coisas ele ao fim do diaacutelogo reconhece o uso corrente da convenccedilatildeo ldquoreceio muito que de fato [] seja bastante precaacuteria a tal forccedila de atraccedilatildeo da semelhanccedila e que nos vejamos forccedilados a recorrer a esse expediente banal a convenccedilatildeo [tē sunthēkē] para a correta imposiccedilatildeo dos nomes [onomatōn

orthotēta]rdquo36 Na Repuacuteblica a naturalizaccedilatildeo da virtude vai ter uma importante repercussatildeo

eacutetica ao se estabelecer quem no diaacutelogo definiraacute o ofiacutecio natural de cada cidadatildeo Soacutecrates diz a Adimanto ldquo[] eacute tarefa nossa segundo parece e se na verdade formos capazes disso proceder agrave escolha daqueles de qualidades e natureza [phuseōs] apropriadas para a custoacutedia da cidade37

Essa distinta capacidade que tais personagens filoacutesofos tecircm de determinar a natureza dos cidadatildeos vai se elevar agrave escolha dos guardiotildees da cidade Soacutecrates inicia uma comparaccedilatildeo da natureza dos animais com a natureza necessaacuteria aos guardiotildees Sugestivamente ele indaga Adimanto ldquohaacute alguma diferenccedila entre a natureza (phusin) de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascidordquo38 A valentia e porte fiacutesico do guardiatildeo deveratildeo ser como os de um catildeo ou cavalo mas ao mesmo tempo ele precisaraacute ser por natureza [phusei] doacutecil com os concidadatildeos como um catildeo de boa raccedila39 Essa capacidade do catildeo de distinguir amigos de inimigos eacute dada pelo seu ldquoinstinto filosoacutefico naturalrdquo [philosophos tēn phusin]40 Neste ponto temos uma passagem sutil mas importantiacutessima a naturalizaccedilatildeo do pendor filosoacutefico Esta seraacute crucial para justificar o filoacutesofo como governante a partir de uma imposiccedilatildeo da natureza com a forccedila do que eacute necessaacuterio e inescapaacutevel tal como disse Antifonte contudo aqui usado para hierarquizar homens ao inveacutes de igualaacute-los Quanto agrave natureza do guardiatildeo reafirma Soacutecrates ldquoquando procuramos um guarda dessa espeacutecie natildeo vamos contra a naturezardquo41 Quanto agrave relaccedilatildeo entre a filosofia e a natureza (do catildeo capaz de tal distinccedilatildeo) Soacutecrates afirma ldquomas sem duacutevida que demonstra a engenhosa conformaccedilatildeo da sua natureza [tēs phuseōs] que eacute

verdadeiramente amiga de saberrdquo42 E ainda sobre esta justificativa naturalista ele declara

33 Ibid 389a 34 Cf supra 394d-e 35 Cf supra 426c-427c 36 Ibid 435c 37 PLATAtildeO A Repuacuteblica 374e (grifo meu) 38 Ibid 375a (grifo meu) 39 Ibid 375e 40 Ibid 41 Ibid 375e 42 Ibid 376a-b (grifo meu)

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

14

discussatildeo ou seja qual referencial eacutetico deve-se adotar Nesse sentido continua Antifonte

o viver e o morrer satildeo da natureza [phuseos] e para eles [os homens]

o viver eacute uma das coisas convenientes e o morrer uma das natildeo-convenientes As coisas convenientes fixadas pelas leis [noacutemon] por seu turno satildeo grilhotildees da natureza [phuseos] as fixadas pela natureza [phuseos] livres De fato as coisas que produzem sofrimento por uma correta razatildeo natildeo satildeo proveitosas agrave natureza [phusin] mais do que as agradaacuteveis Pois as coisas convenientes

segundo a verdade natildeo devem prejudicar mas beneficiar 13

Ou seja para o curso da natureza pouco importa o que agrada ou desagrada ao homem A conveniecircncia humana sob forma de leis pode impedir o curso livre da natureza Por ver a natureza como fonte de verdade Antifonte preconiza que o homem deve alinhar sua conveniecircncia agrave natureza Contudo alcanccedilar a verdade da natureza tambeacutem natildeo pressupotildee sua interpretaccedilatildeo E essa interpretaccedilatildeo natildeo seria uma convenccedilatildeo ou no miacutenimo um artifiacutecio do homem O problema de se alcanccedilar a verdade da natureza portanto recai na inexorabilidade do artifiacutecio humano da interpretaccedilatildeo Ateacute que ponto essa interpretaccedilatildeo natildeo seria tendenciosa na proposta de Antifonte de se alinhar a conveniecircncia do homem agrave natureza

Guthrie esclarece porque Antifonte ainda em Sobre a Verdade apresenta diferentes conceitos de justiccedila14 para mostrar que as concepccedilotildees vigentes de moralidade satildeo inadequadas e que as formas da natureza eacute que devem ter preferecircncia15

Por fim temos em Antifonte a afirmaccedilatildeo de que a violaccedilatildeo das leis humanas eacute julgada pela opiniatildeo e a das leis naturais pela verdade Antifonte quer com isso mostrar que a natureza deve ser o referencial para a convenccedilatildeo humana ainda que esta ldquoverdade da naturezardquo seja contraacuteria a algumas conveniecircncias do homem Assim o sofista expotildee a dupla via de valoraccedilatildeo que o dualismo permite e que seraacute de modo controverso explorada por sofistas e filoacutesofos A sofiacutestica exploraraacute o dualismo com mais ecircnfase pelo vieacutes oposto qual seja o da justificativa eacutetico-poliacutetica baseada no noacutemos Como expocircs Cassin eacute caracteriacutestica da sofiacutestica a substituiccedilatildeo do fiacutesico pelo poliacutetico assim como o acordo discursivo (homologia) como base de legalidade poliacutetica16 Ainda segundo Cassin ldquoo consenso (homonoacuteia) eacute [] o efeito de uma operaccedilatildeo loacutegica no sentido lato capaz de voltar em seu favor as opiniotildees ou as praacuteticas contraditoacuterias que deveriam interdizecirc-lordquo17

No diaacutelogo Repuacuteblica Platatildeo inicia a justificativa de sua visatildeo poliacutetica do filoacutesofo-rei da cidade ideal (kallipolis) a partir da ideia de funccedilatildeo ou tarefa (eacutergon) especializada de cada coisa O personagem Soacutecrates em diaacutelogo com o personagem Trasiacutemaco sustenta que os objetos sejam manufaturados ou naturais possuem um eacutergon especiacutefico Esta funccedilatildeo eacute ou exclusiva de um determinado objeto ou realizada

13 Ibid p 73-75 B 44A DK 14 A saber (1) Conformidade agraves leis e costumes de seu paiacutes (2) natildeo causar injuacuteria exceto em resposta a uma injuacuteria recebida (3) nem causar nem sofrer injuacuteria 15 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge University Press 1965 III p 112 16 Cf CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Satildeo Paulo Editora 34 2005 p 71 17 CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Satildeo Paulo Siciliano 1990 p79

15

por este com mais perfeiccedilatildeo18 Assim Soacutecrates leva Trasiacutemaco a concordar que o cavalo tem uma funccedilatildeo determinada19 que os oacutergatildeos sensoriais tecircm suas funccedilotildees especiacuteficas (a saber olhos visatildeo e ouvidos audiccedilatildeo20) e tambeacutem que objetos cortantes como a faca satildeo ideais para cortar os sarmentos de uma vinha21

Logo adiante Platatildeo faz Soacutecrates propor que essa funccedilatildeo eacute uma virtude (areteacute) do objeto22 Esta proposiccedilatildeo eacute o ponto onde Platatildeo atribui um valor moral elevado (virtude) a uma caracteriacutestica natural do objeto qual seja a sua funccedilatildeo (ainda que ele tambeacutem tenha incluiacutedo objetos manufaturados na comparaccedilatildeo) Seu proacuteximo passo eacute expor a funccedilatildeo da alma e por consequecircncia a sua virtude Tal funccedilatildeo ou virtude eacute o governo da proacutepria vida23 Desta forma a vida bem governada pela alma (de acordo com a justiccedila) alcanccedilaraacute a felicidade ou eudaimoniacutea24 A mesma estrutura argumentativa aparece no momento da fundaccedilatildeo de uma cidade imaginaacuteria pelos personagens Soacutecrates e Adimanto25 quando eles chegam agrave conclusatildeo de que a especializaccedilatildeo de cada cidadatildeo em diferentes ofiacutecios [erga] de acordo com a sua natureza [phusin]26 eacute a forma mais proveitosa possiacutevel de distribuiccedilatildeo da forccedila de trabalho na cidade Eacute notaacutevel aqui a intenccedilatildeo de fazer a profissatildeo ou a funccedilatildeo de cada um ser vista como atributo natural Para deixar isso patente Soacutecrates declara ldquocada um de noacutes natildeo nasceu igual ao outro mas com naturezas [phusin] diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa [ergou praxei]rdquo27

O mesmo argumento naturalista aparece no diaacutelogo Craacutetilo onde Soacutecrates pretende justificar uma accedilatildeo correta a partir de sua proacutepria natureza ou seja ldquoa natureza da accedilatildeordquo Ele afirma que ldquoelas [as accedilotildees] se realizam segundo sua proacutepria natureza [phusin] natildeo conforme a opiniatildeo que dela fizermosrdquo28 Assim como na Repuacuteblica a natureza de cada coisa dita sua funccedilatildeo ou seja uma coisa deve ser feita

ldquosegundo os imperativos da natureza [phusei]rdquo 29 A natureza eacute o criteacuterio para o que eacute certo ldquono caso de querermos queimar alguma coisa natildeo devemos fazecirc-lo de qualquer modo como nos ditar a fantasia [conforme todas as opiniotildees kata pasan doxan30] mas pelo modo certo que eacute o modo indicado pela natureza [epephukei] para queimarrdquo31 O argumento da accedilatildeo naturalmente correta vai evoluir agrave accedilatildeo de falar e nomear as coisas culminando no ponto central do diaacutelogo (Craacutetilo) que eacute a accedilatildeo de nomear as coisas conforme a natureza 32 Assim a competecircncia de forjar nomes seraacute

18 Cf PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 352e 19 Ibid 352d-e 20 Ibid 352e 21 Ibid 353a 22 Ibid 353b-c 23 Ibid 353d 24 Ibid 353e - 354a 25 Ibid 369c 26 Ibid 370c 27 Ibid 370a-b (grifos meus) 28 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - CraacutetiloBeleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387a 29 Ibid 389c 30 Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101713Atext3DCrat3Asection3D387bgt acesso em 14 mar 2016 (Traduccedilatildeo minha) 31 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387b 32 Cf supra 387b-d

16

do ldquofazedor de nomesrdquo [onomatourgou] ou ldquolegislador [nomothetēs]rdquo33 Uma consequecircncia eacutetica interessante dessa proposta naturalista para os nomes seraacute a prescriccedilatildeo de que todo nome inclusive o de pessoas deveraacute corresponder a sua etimologia agrave sua natureza Como exemplo Soacutecrates diz que o iacutempio natildeo deveraacute se chamar Teoacutefilo (amigo de Deus) nem Mnesteu (lembrado de Deus)34 Outra via naturalista da justificativa dos nomes de acordo com a essecircncia das coisas nomeadas eacute o movimento feito pela boca para a pronuacutencia dos verbos de acordo com o movimento que esse verbo representa35 Apesar de Soacutecrates prescrever a perspectiva naturalista para o nome das coisas ele ao fim do diaacutelogo reconhece o uso corrente da convenccedilatildeo ldquoreceio muito que de fato [] seja bastante precaacuteria a tal forccedila de atraccedilatildeo da semelhanccedila e que nos vejamos forccedilados a recorrer a esse expediente banal a convenccedilatildeo [tē sunthēkē] para a correta imposiccedilatildeo dos nomes [onomatōn

orthotēta]rdquo36 Na Repuacuteblica a naturalizaccedilatildeo da virtude vai ter uma importante repercussatildeo

eacutetica ao se estabelecer quem no diaacutelogo definiraacute o ofiacutecio natural de cada cidadatildeo Soacutecrates diz a Adimanto ldquo[] eacute tarefa nossa segundo parece e se na verdade formos capazes disso proceder agrave escolha daqueles de qualidades e natureza [phuseōs] apropriadas para a custoacutedia da cidade37

Essa distinta capacidade que tais personagens filoacutesofos tecircm de determinar a natureza dos cidadatildeos vai se elevar agrave escolha dos guardiotildees da cidade Soacutecrates inicia uma comparaccedilatildeo da natureza dos animais com a natureza necessaacuteria aos guardiotildees Sugestivamente ele indaga Adimanto ldquohaacute alguma diferenccedila entre a natureza (phusin) de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascidordquo38 A valentia e porte fiacutesico do guardiatildeo deveratildeo ser como os de um catildeo ou cavalo mas ao mesmo tempo ele precisaraacute ser por natureza [phusei] doacutecil com os concidadatildeos como um catildeo de boa raccedila39 Essa capacidade do catildeo de distinguir amigos de inimigos eacute dada pelo seu ldquoinstinto filosoacutefico naturalrdquo [philosophos tēn phusin]40 Neste ponto temos uma passagem sutil mas importantiacutessima a naturalizaccedilatildeo do pendor filosoacutefico Esta seraacute crucial para justificar o filoacutesofo como governante a partir de uma imposiccedilatildeo da natureza com a forccedila do que eacute necessaacuterio e inescapaacutevel tal como disse Antifonte contudo aqui usado para hierarquizar homens ao inveacutes de igualaacute-los Quanto agrave natureza do guardiatildeo reafirma Soacutecrates ldquoquando procuramos um guarda dessa espeacutecie natildeo vamos contra a naturezardquo41 Quanto agrave relaccedilatildeo entre a filosofia e a natureza (do catildeo capaz de tal distinccedilatildeo) Soacutecrates afirma ldquomas sem duacutevida que demonstra a engenhosa conformaccedilatildeo da sua natureza [tēs phuseōs] que eacute

verdadeiramente amiga de saberrdquo42 E ainda sobre esta justificativa naturalista ele declara

33 Ibid 389a 34 Cf supra 394d-e 35 Cf supra 426c-427c 36 Ibid 435c 37 PLATAtildeO A Repuacuteblica 374e (grifo meu) 38 Ibid 375a (grifo meu) 39 Ibid 375e 40 Ibid 41 Ibid 375e 42 Ibid 376a-b (grifo meu)

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

15

por este com mais perfeiccedilatildeo18 Assim Soacutecrates leva Trasiacutemaco a concordar que o cavalo tem uma funccedilatildeo determinada19 que os oacutergatildeos sensoriais tecircm suas funccedilotildees especiacuteficas (a saber olhos visatildeo e ouvidos audiccedilatildeo20) e tambeacutem que objetos cortantes como a faca satildeo ideais para cortar os sarmentos de uma vinha21

Logo adiante Platatildeo faz Soacutecrates propor que essa funccedilatildeo eacute uma virtude (areteacute) do objeto22 Esta proposiccedilatildeo eacute o ponto onde Platatildeo atribui um valor moral elevado (virtude) a uma caracteriacutestica natural do objeto qual seja a sua funccedilatildeo (ainda que ele tambeacutem tenha incluiacutedo objetos manufaturados na comparaccedilatildeo) Seu proacuteximo passo eacute expor a funccedilatildeo da alma e por consequecircncia a sua virtude Tal funccedilatildeo ou virtude eacute o governo da proacutepria vida23 Desta forma a vida bem governada pela alma (de acordo com a justiccedila) alcanccedilaraacute a felicidade ou eudaimoniacutea24 A mesma estrutura argumentativa aparece no momento da fundaccedilatildeo de uma cidade imaginaacuteria pelos personagens Soacutecrates e Adimanto25 quando eles chegam agrave conclusatildeo de que a especializaccedilatildeo de cada cidadatildeo em diferentes ofiacutecios [erga] de acordo com a sua natureza [phusin]26 eacute a forma mais proveitosa possiacutevel de distribuiccedilatildeo da forccedila de trabalho na cidade Eacute notaacutevel aqui a intenccedilatildeo de fazer a profissatildeo ou a funccedilatildeo de cada um ser vista como atributo natural Para deixar isso patente Soacutecrates declara ldquocada um de noacutes natildeo nasceu igual ao outro mas com naturezas [phusin] diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa [ergou praxei]rdquo27

O mesmo argumento naturalista aparece no diaacutelogo Craacutetilo onde Soacutecrates pretende justificar uma accedilatildeo correta a partir de sua proacutepria natureza ou seja ldquoa natureza da accedilatildeordquo Ele afirma que ldquoelas [as accedilotildees] se realizam segundo sua proacutepria natureza [phusin] natildeo conforme a opiniatildeo que dela fizermosrdquo28 Assim como na Repuacuteblica a natureza de cada coisa dita sua funccedilatildeo ou seja uma coisa deve ser feita

ldquosegundo os imperativos da natureza [phusei]rdquo 29 A natureza eacute o criteacuterio para o que eacute certo ldquono caso de querermos queimar alguma coisa natildeo devemos fazecirc-lo de qualquer modo como nos ditar a fantasia [conforme todas as opiniotildees kata pasan doxan30] mas pelo modo certo que eacute o modo indicado pela natureza [epephukei] para queimarrdquo31 O argumento da accedilatildeo naturalmente correta vai evoluir agrave accedilatildeo de falar e nomear as coisas culminando no ponto central do diaacutelogo (Craacutetilo) que eacute a accedilatildeo de nomear as coisas conforme a natureza 32 Assim a competecircncia de forjar nomes seraacute

18 Cf PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 352e 19 Ibid 352d-e 20 Ibid 352e 21 Ibid 353a 22 Ibid 353b-c 23 Ibid 353d 24 Ibid 353e - 354a 25 Ibid 369c 26 Ibid 370c 27 Ibid 370a-b (grifos meus) 28 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - CraacutetiloBeleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387a 29 Ibid 389c 30 Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101713Atext3DCrat3Asection3D387bgt acesso em 14 mar 2016 (Traduccedilatildeo minha) 31 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 106-7 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 387b 32 Cf supra 387b-d

16

do ldquofazedor de nomesrdquo [onomatourgou] ou ldquolegislador [nomothetēs]rdquo33 Uma consequecircncia eacutetica interessante dessa proposta naturalista para os nomes seraacute a prescriccedilatildeo de que todo nome inclusive o de pessoas deveraacute corresponder a sua etimologia agrave sua natureza Como exemplo Soacutecrates diz que o iacutempio natildeo deveraacute se chamar Teoacutefilo (amigo de Deus) nem Mnesteu (lembrado de Deus)34 Outra via naturalista da justificativa dos nomes de acordo com a essecircncia das coisas nomeadas eacute o movimento feito pela boca para a pronuacutencia dos verbos de acordo com o movimento que esse verbo representa35 Apesar de Soacutecrates prescrever a perspectiva naturalista para o nome das coisas ele ao fim do diaacutelogo reconhece o uso corrente da convenccedilatildeo ldquoreceio muito que de fato [] seja bastante precaacuteria a tal forccedila de atraccedilatildeo da semelhanccedila e que nos vejamos forccedilados a recorrer a esse expediente banal a convenccedilatildeo [tē sunthēkē] para a correta imposiccedilatildeo dos nomes [onomatōn

orthotēta]rdquo36 Na Repuacuteblica a naturalizaccedilatildeo da virtude vai ter uma importante repercussatildeo

eacutetica ao se estabelecer quem no diaacutelogo definiraacute o ofiacutecio natural de cada cidadatildeo Soacutecrates diz a Adimanto ldquo[] eacute tarefa nossa segundo parece e se na verdade formos capazes disso proceder agrave escolha daqueles de qualidades e natureza [phuseōs] apropriadas para a custoacutedia da cidade37

Essa distinta capacidade que tais personagens filoacutesofos tecircm de determinar a natureza dos cidadatildeos vai se elevar agrave escolha dos guardiotildees da cidade Soacutecrates inicia uma comparaccedilatildeo da natureza dos animais com a natureza necessaacuteria aos guardiotildees Sugestivamente ele indaga Adimanto ldquohaacute alguma diferenccedila entre a natureza (phusin) de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascidordquo38 A valentia e porte fiacutesico do guardiatildeo deveratildeo ser como os de um catildeo ou cavalo mas ao mesmo tempo ele precisaraacute ser por natureza [phusei] doacutecil com os concidadatildeos como um catildeo de boa raccedila39 Essa capacidade do catildeo de distinguir amigos de inimigos eacute dada pelo seu ldquoinstinto filosoacutefico naturalrdquo [philosophos tēn phusin]40 Neste ponto temos uma passagem sutil mas importantiacutessima a naturalizaccedilatildeo do pendor filosoacutefico Esta seraacute crucial para justificar o filoacutesofo como governante a partir de uma imposiccedilatildeo da natureza com a forccedila do que eacute necessaacuterio e inescapaacutevel tal como disse Antifonte contudo aqui usado para hierarquizar homens ao inveacutes de igualaacute-los Quanto agrave natureza do guardiatildeo reafirma Soacutecrates ldquoquando procuramos um guarda dessa espeacutecie natildeo vamos contra a naturezardquo41 Quanto agrave relaccedilatildeo entre a filosofia e a natureza (do catildeo capaz de tal distinccedilatildeo) Soacutecrates afirma ldquomas sem duacutevida que demonstra a engenhosa conformaccedilatildeo da sua natureza [tēs phuseōs] que eacute

verdadeiramente amiga de saberrdquo42 E ainda sobre esta justificativa naturalista ele declara

33 Ibid 389a 34 Cf supra 394d-e 35 Cf supra 426c-427c 36 Ibid 435c 37 PLATAtildeO A Repuacuteblica 374e (grifo meu) 38 Ibid 375a (grifo meu) 39 Ibid 375e 40 Ibid 41 Ibid 375e 42 Ibid 376a-b (grifo meu)

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

16

do ldquofazedor de nomesrdquo [onomatourgou] ou ldquolegislador [nomothetēs]rdquo33 Uma consequecircncia eacutetica interessante dessa proposta naturalista para os nomes seraacute a prescriccedilatildeo de que todo nome inclusive o de pessoas deveraacute corresponder a sua etimologia agrave sua natureza Como exemplo Soacutecrates diz que o iacutempio natildeo deveraacute se chamar Teoacutefilo (amigo de Deus) nem Mnesteu (lembrado de Deus)34 Outra via naturalista da justificativa dos nomes de acordo com a essecircncia das coisas nomeadas eacute o movimento feito pela boca para a pronuacutencia dos verbos de acordo com o movimento que esse verbo representa35 Apesar de Soacutecrates prescrever a perspectiva naturalista para o nome das coisas ele ao fim do diaacutelogo reconhece o uso corrente da convenccedilatildeo ldquoreceio muito que de fato [] seja bastante precaacuteria a tal forccedila de atraccedilatildeo da semelhanccedila e que nos vejamos forccedilados a recorrer a esse expediente banal a convenccedilatildeo [tē sunthēkē] para a correta imposiccedilatildeo dos nomes [onomatōn

orthotēta]rdquo36 Na Repuacuteblica a naturalizaccedilatildeo da virtude vai ter uma importante repercussatildeo

eacutetica ao se estabelecer quem no diaacutelogo definiraacute o ofiacutecio natural de cada cidadatildeo Soacutecrates diz a Adimanto ldquo[] eacute tarefa nossa segundo parece e se na verdade formos capazes disso proceder agrave escolha daqueles de qualidades e natureza [phuseōs] apropriadas para a custoacutedia da cidade37

Essa distinta capacidade que tais personagens filoacutesofos tecircm de determinar a natureza dos cidadatildeos vai se elevar agrave escolha dos guardiotildees da cidade Soacutecrates inicia uma comparaccedilatildeo da natureza dos animais com a natureza necessaacuteria aos guardiotildees Sugestivamente ele indaga Adimanto ldquohaacute alguma diferenccedila entre a natureza (phusin) de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascidordquo38 A valentia e porte fiacutesico do guardiatildeo deveratildeo ser como os de um catildeo ou cavalo mas ao mesmo tempo ele precisaraacute ser por natureza [phusei] doacutecil com os concidadatildeos como um catildeo de boa raccedila39 Essa capacidade do catildeo de distinguir amigos de inimigos eacute dada pelo seu ldquoinstinto filosoacutefico naturalrdquo [philosophos tēn phusin]40 Neste ponto temos uma passagem sutil mas importantiacutessima a naturalizaccedilatildeo do pendor filosoacutefico Esta seraacute crucial para justificar o filoacutesofo como governante a partir de uma imposiccedilatildeo da natureza com a forccedila do que eacute necessaacuterio e inescapaacutevel tal como disse Antifonte contudo aqui usado para hierarquizar homens ao inveacutes de igualaacute-los Quanto agrave natureza do guardiatildeo reafirma Soacutecrates ldquoquando procuramos um guarda dessa espeacutecie natildeo vamos contra a naturezardquo41 Quanto agrave relaccedilatildeo entre a filosofia e a natureza (do catildeo capaz de tal distinccedilatildeo) Soacutecrates afirma ldquomas sem duacutevida que demonstra a engenhosa conformaccedilatildeo da sua natureza [tēs phuseōs] que eacute

verdadeiramente amiga de saberrdquo42 E ainda sobre esta justificativa naturalista ele declara

33 Ibid 389a 34 Cf supra 394d-e 35 Cf supra 426c-427c 36 Ibid 435c 37 PLATAtildeO A Repuacuteblica 374e (grifo meu) 38 Ibid 375a (grifo meu) 39 Ibid 375e 40 Ibid 41 Ibid 375e 42 Ibid 376a-b (grifo meu)

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

17

eacute graccedilas agrave mais diminuta classe e sector [dos filoacutesofos] e agrave ciecircncia [epistēmē] que encerra ao que ocupa a sua presidecircncia e chefia que uma cidade fundada de acordo com a natureza [phusin] pode ser toda ela saacutebia [sophē] E eacute ao que parece por natureza [phusei]

extremamente reduzida esta raccedila a quem compete participar desta ciecircncia [epistēmēs] a uacutenica dentre todas as ciecircncias [epistēmōn] que deve chamar-se sabedoria [sophian]43

Desta forma segundo Platatildeo neste diaacutelogo a classe dos filoacutesofos eacute saacutebia por natureza e por isso capaz de realizar o melhor governo incluindo a fundaccedilatildeo da cidade de acordo com a natureza

Diz Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave estrateacutegia para convencer os increacutedulos de sua teoria

parece-me necessaacuterio [] determinar perante eles [os increacutedulos] quais satildeo os filoacutesofos a que nos referimos quando ousamos afirmar que satildeo eles que devem governar a fim de que uma vez esclarecidos possamos defender-nos demonstrando que a uns compete por natureza [phusei] dedicar-se agrave filosofia e governar a cidade e aos

outros natildeo cabe tal escudo mas sim obedecer a quem governa44

Finalmente Soacutecrates justifica a associaccedilatildeo entre o poder poliacutetico e a filosofia

enquanto natildeo forem ou os filoacutesofos reis nas cidades ou os que agora se chamam reis e soberanos filoacutesofos genuiacutenos e capazes e se decirc esta coalescecircncia do poder poliacutetico com a filosofia [] natildeo haveraacute

treacuteguas dos males [] para as cidades nem sequer julgo eu para o gecircnero humano nem antes disso jamais seraacute possiacutevel e veraacute a luz do sol a cidade que haacute pouco descrevemos45

Entretanto no diaacutelogo Poliacutetico Platatildeo recorre agrave semelhanccedila natural (por

nascimento) para igualar ou ao menos mitigar a diferenccedila entre os poliacuteticos e seus suacuteditos desta vez se assemelhando agrave proposta naturalista e igualitaacuteria de Antifonte O personagem Estrangeiro apoacutes se arrepender de propor que o poliacutetico seja um ldquopastor divinordquo de rebanho humano46 propotildee ldquomas a meu ver Soacutecrates esta figura do pastor divino eacute muito elevada para um rei os poliacuteticos de hoje sendo por nascimento [homoious tas phuseis] muito semelhantes aos seus suacuteditos aproximam-se deles ainda mais pela educaccedilatildeo e instruccedilatildeo que recebemrdquo47 Curiosamente a ideia de noacutemos (a convenccedilatildeo da educaccedilatildeo e instruccedilatildeo) pode ser vista aqui como um fator coadjuvante desta proposta igualitaacuteria

No diaacutelogo Leis o personagem Ateniense justifica a prerrogativa de comandar como naturalmente inerente a quem possui conhecimento Ele diz ldquoSempre que ela [alma] se opotildee ao que por natureza foi feito para mandar [tois phusei arkhikois] o conhecimento a opiniatildeo ou o raciociacutenio eacute o que eu denomino ignoracircncia com

43 Ibid 428e-429a (grifos meus) 44 Ibid 474b-c (grifo meu) 45 Ibid 473c-d (grifo meu) 46 PLATAtildeO Poliacutetico 274b-5a In_____ Diaacutelogos O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 p 221 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 47 Ibid 275b

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

18

referecircncia agraves cidadesrdquo48 Em outra passagem49 o mesmo personagem enumera uma seacuterie de tiacutetulos que justificam essa determinaccedilatildeo eacutetica de grande importacircncia poliacutetica quem deve comandar a cidade Ele o faz com uma comparaccedilatildeo com a hierarquia nas relaccedilotildees familiares Esses tiacutetulos ou ldquoprinciacutepiosrdquo pretendem justificar a hierarquia atraveacutes de uma relaccedilatildeo natural Ele aponta tais princiacutepios a relaccedilatildeo natural entre pai e filho como uma ldquoreivindicaccedilatildeo universalmente justardquo [axiōma orthon pantakhou]50 a relaccedilatildeo entre nobres e plebeus a relaccedilatildeo entre mais velhos e mais novos (esses dois uacuteltimos ldquovecircm no rastro do primeirordquo51) a relaccedilatildeo entre escravos e senhores entre o mais forte e o mais fraco sendo esta relaccedilatildeo ldquoo poder que se exerce em quase todos os seres vivos segundo a natureza [kata phusin]rdquo52 e o mais importante princiacutepio de todos o ldquoque manda o ignorante obedecer e o saacutebio comandarrdquo53 E este princiacutepio estaacute corroborado pela natureza ldquomuito de acordo com ela [phusin] obedecer voluntariamente agrave lei sem nenhum constrangimentordquo54

O Ateniense aponta que a definiccedilatildeo do que eacute certo e errado e do que eacute bom e mau eacute dada pelas leis e consequentemente pelo legislador55 Este define inclusive o que deve ser vergonhoso e o que deve ser louvaacutevel56 Contudo essas leis satildeo outorgadas pelo legislador incluindo suas opiniotildees pessoais e natildeo homologadas por um consenso geral Nesse sentido o Ateniense diz

A tarefa do legislador [nomothetē] natildeo haacute de limitar-se agrave redaccedilatildeo de leis [nomous] aleacutem destas algo existe que por natureza [pephukos] se encontra a meio caminho da advertecircncia e da lei [nomōn] [] O

verdadeiro legislador natildeo deve limitar-se a redigir leis precisaraacute entremeaacute-las com opiniotildees pessoais acerca do que lhe parece honesto ou desonesto57

O interlocutor do Ateniense Cliacutenias refuta a opiniatildeo daqueles que dizem que a poliacutetica as leis a justiccedila e ateacute a existecircncia dos deuses natildeo tecircm origem na natureza mas sim na arte [einai prōton phasin houtoi tekhnē ou phusei alla tisin nomois] e na convenccedilatildeo dos legisladores [tēn nomothesian]58 Para ele tudo isso incluindo as leis e a arte tem origem na natureza visto serem provenientes da inteligecircncia E como se vecirc na proposta cosmoloacutegica do Ateniense (com qual Cliacutenias concorda) a inteligecircncia eacute causa da ordem do universo59 Ora o argumento se reduz no fim ao naturalismo uma vez que a causa de todas essas coisas a inteligecircncia eacute naturalizada

Ainda em Leis o argumento naturalista eacute usado pelo Ateniense para explicar a inferioridade natural da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a dificuldade deste em

48 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Beleacutem UFPA 1980 p 95 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 689b 49 Ibid 690a-c 50 Ibid 690b e disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101653Abook3D33Apage3D690gt Acesso em 14 mar 2016 51 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis 690b 52 Ibid (grifos meus) 53 Ibid 690c (grifos meus) 54 Ibid 55 Cf supra 627d 632b 644d 56 Cf supra 728a 57 Ibid 822d-823a 58 Cf supra 889d-e 59 Cf supra 966e

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

19

controlaacute-la ldquoo sexo feminino eacute naturalmente mais dissimulado e artificial [lathraioteron mallon kai epiklopōteron ephu] como tambeacutem difiacutecil de dirigir [] Quanto a mulher em relaccedilatildeo agrave virtude eacute naturalmente [hē thēleia phusis] inferior ao homem tanto a diferenccedila nesse ponto atingem mais do dobrordquo60 O personagem critica a legislaccedilatildeo Cretense e Espartana por natildeo ter separado as atividades de homens e mulheres (ldquoerro imperdoaacutevelrdquo61) e essa negligecircncia do legislador em regulamentar a vida das mulheres permitiu ldquoabusosrdquo que perduraram por geraccedilotildees62 E essa negligecircncia natildeo foi um descuido pequeno (ldquoum descuido apenas pela metaderdquo63) haja vista a virtude da mulher ser inferior agrave do homem em mais que o dobro

Nas relaccedilotildees amorosas o Ateniense preconiza que o legislador proiacuteba a geraccedilatildeo de filhos bastardos as relaccedilotildees antes da consagraccedilatildeo religiosa e relaccedilotildees homossexuais sendo estas ldquocontra a natureza [para phusin]rdquo64 Tal lei deve em primeiro lugar obrigar os cidadatildeos a ldquoseguirem a natureza [kata phusin] na uniatildeo destinada agrave procriaccedilatildeordquo65 Aleacutem disso tal lei ldquoconcorre para que os homens se livrem da raiva eroacutetica e da loucura de tantos adulteacuterios comezainas e excesso de bebidas deixando-os mais amigos e dignos da confianccedila das mulheresrdquo66 Aqui o argumento faz sua justificativa na natureza e propotildee uma determinaccedilatildeo moral para o homem que apesar de extremamente mais virtuoso que a mulher precisa provar-se digno da sua confianccedila Ainda que a lei tenha uma justificativa naturalista o Ateniense preconiza que a ela seja conferido um caraacuteter sagrado pois assim ela ldquodominaraacute todos os coraccedilotildees e enchendo-os de temor os deixaraacute submissos a suas diretrizesrdquo67

Na Repuacuteblica o personagem Soacutecrates considera justificado o poder poliacutetico nas matildeos do filoacutesofo pela proacutepria natureza do filoacutesofo Contudo natildeo o faz sem conseguir evitar completamente o noacutemos Ele reconhece a necessidade de um acordo entre homens justamente a respeito desta natureza do filoacutesofo Ao fim da investigaccedilatildeo em busca do governante mais apropriado ele confirma

como afirmaacutevamos ao comeccedilar esta discussatildeo temos primeiro de examinar com cuidado qual a natureza [phusin] deles [os guardiotildees] E creio eu se chegarmos a um perfeito acordo [homologēsōmen] sobre ela concordaremos [homologēseinem] que as mesmas

pessoas seratildeo capazes de possuir esses atributos e que ningueacutem mais senatildeo elas deve ser o guardiatildeo da cidade [] Concordemos relativamente agrave natureza dos filoacutesofos [philosophōn phuseōn peri hōmologēsthō] em que estatildeo sempre apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essecircncia que existe sempre e que natildeo se desvirtua por accedilatildeo da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo68

Os valores morais do filoacutesofo-governante satildeo assim reconhecidos na proacutepria natureza do filoacutesofo mas natildeo sem um acordo preacutevio a respeito disto Antes de afirmar

60 Ibid 781a-b 61 Ibid 780e 62 Cf supra 781a-b 63 Ibid 64 Ibid 841d-e 836c-d 65 Ibid 838e 66 Ibid 839a 67 Ibid 839c 68 PLATAtildeO A Repuacuteblica 485a-b (grifos meus)

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

20

que o filoacutesofo deve ldquopregar a verdaderdquo e ldquoter aversatildeo agrave mentirardquo69 apesar de poder se valer da ldquomentira uacutetilrdquo Soacutecrates pede a Adimanto que homologue que confirme se essas qualidades satildeo por natureza Ele diz ldquorepara se eacute necessaacuterio que [] haja outra [qualidade] na sua natureza [phusei] se quiserem ser [os filoacutesofos] tais como os descrevemosrdquo70 Gomperz afirma que para Platatildeo ldquoa eacutetica se apoia em fundamentos coacutesmicosrdquo71 e tambeacutem nesta linha Conrford em comentaacuterio ao Timeu afirma que o objetivo do diaacutelogo eacute ldquoligar a moralidade exteriorizada na sociedade ideal ao conjunto de organizaccedilatildeo do mundordquo72 Ora Platatildeo buscava valores morais objetivos independentes do noacutemos do homem que refutassem o relativismo na discussatildeo desses valores que levava ao ceticismo moral dos sofistas como Trasiacutemaco73 No Poliacutetico ele diz

Eacute que a lei [nomos] jamais seria capaz de estabelecer ao mesmo tempo o melhor e o mais justo para todos de modo a ordenar as prescriccedilotildees mais convenientes A diversidade que haacute entre os homens e as accedilotildees e por assim dizer a permanente instabilidade das coisas humanas natildeo admite em nenhuma arte e em assunto algum um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [] em suma eacute precisamente esse absoluto que a lei [nomon] procura

semelhante a um homem obstinado e ignorante que natildeo permite que ningueacutem faccedila alguma coisa contra sua ordem e natildeo admite pergunta alguma mesmo em presenccedila de uma situaccedilatildeo nova que as suas proacuteprias prescriccedilotildees natildeo haviam previsto e para qual este ou aquele caso seria melhor74

Platatildeo pretende mostrar com isso que a lei escrita natildeo pode ser absoluta devido

ao devir das situaccedilotildees individuais que natildeo se enquadrariam na rigidez de uma ldquolei absoluta escritardquo ou seja o noacutemos Ele compara essa hipoacutetese agrave de um homem intransigente que natildeo daacute conformidade de justiccedila aos casos particulares Tudo isso para justificar o que o Estrangeiro dissera pouco antes ldquoo mais importante natildeo eacute dar forccedila agraves leis mas ao homem real dotado de prudecircnciardquo75 Esta eacute a hipoacutetese a ser defendida pelos protagonistas do diaacutelogo um legiacutetimo governo sem leis exercido pelo ldquohomem realrdquo76 O homem do conhecimento e prudecircncia eacute que seraacute capaz de conformar os casos individuais variaacuteveis ao seu conhecimento de justiccedila

A rejeiccedilatildeo de Platatildeo na Repuacuteblica ao noacutemos como paracircmetro de ordenamento de uma sociedade eacute clara Os costumes (nomizetai) de uma sociedade foram

69 Ibid 485c 70 Ibid 485b-c 71 GOMPERZ apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 72 CORNFORD apud BITAR H In Diaacutelogos Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiades ndash Hipias Menor Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 73 Cf ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University Press 1981 p 8-9 74 PLATAtildeO Poliacutetico 294a-c 75 Ibid 294a 76 Ibid

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

21

considerados por seu personagem Soacutecrates como origem da ldquocidade de luxordquo77 ou ldquocidade inchada de humoresrdquo78 Este eacute o desenvolvimento do argumento naturalista de Platatildeo para justificar o filoacutesofo como governante Primeiro eacute necessaacuteria a homologia entre os dialogantes quanto agrave natureza do filoacutesofo Ora a homologia eacute um acordo uma concordacircncia entre homens que estaacute intimamente associada agrave ideia do noacutemos A ideia de phyacutesis eacute justamente oposta pois propotildee uma justificativa livre de deliberaccedilatildeo do homem para uma postura eacutetica O argumento da phyacutesis como justificativa eacutetica natildeo deve pressupor um acordo ou concordacircncia Como vimos ela eacute ldquonecessaacuteria e inescapaacutevelrdquo o que no argumento dispensa o loacutegos do homem e por consequecircncia o acordo ou a homologia Na estrutura do seu argumento seguindo a homologia entre os dialogantes Platatildeo apresenta a natureza do filoacutesofo como possuidora de virtudes (aretai) que satildeo a ciecircncia (epistēmē)79 a sabedoria (sophia) e a verdade (alētheias)80 Estas satildeo para ele as qualidades naturais de um homem perfeito81 De posse dessas virtudes a alma do filoacutesofo eacute naturalmente destinada agrave funccedilatildeo (eacutergon) de governar cabendo aos demais cidadatildeos obedecer Contudo para chegarmos a essa verdade sobre a natureza do filoacutesofo natildeo seraacute necessaacuterio um acordo sobre ela Uma interpretaccedilatildeo comum e consensual E sendo a interpretaccedilatildeo um artifiacutecio do homem para nos querermos como naturais natildeo teremos de ser ldquonaturais por artifiacuteciordquo Contudo Platatildeo natildeo era alheio agrave ideia de um antagonismo inconciliaacutevel entre noacutemos e phyacutesis Isto eacute patente no diaacutelogo Goacutergias onde ele faz o personagem Caacutelicles contestar Soacutecrates quanto a seu relativismo no antagonismo entre noacutemos e phyacutesis Caacutelicles acusa Soacutecrates de contradiccedilatildeo por pender seus argumentos ora em favor da lei ora da natureza82 Ele afirma que ldquona maioria das vezes acham-se em oposiccedilatildeo a natureza [phusis] e a lei [nomos]rdquo83 Para Caacutelicles a convenccedilatildeo da lei eacute um artifiacutecio da maioria composta por indiviacuteduos fracos para compensar sua inferioridade em relaccedilatildeo aos fortes que satildeo minoria Sendo a superioridade dos mais fortes dada naturalmente a justiccedila (da natureza) seria portanto exercer esta superioridade Assim do ponto de vista de Caacutelicles o mais forte deve naturalmente dominar o mais fraco e este naturalmente deve obedecer A justiccedila da lei (dos mais fracos) seria uma tentativa de subverter esta relaccedilatildeo natural em nome de uma igualdade que natildeo eacute respaldada pela natureza Nesta o homem deseja ter mais que o outro Desta forma a justiccedila como igualdade seria aos olhos do detrator de Soacutecrates uma afronta agrave natureza uma inversatildeo do valor do conceito naturalista que Caacutelicles entende como justiccedila Ou seja ao exercer sua superioridade natural sobre o mais fraco o mais forte age conforme a justiccedila natural mas comete uma injusticcedila de acordo com as leis convencionadas pelos fracos84 Nesse sentido diz Caacutelicles associando o nobre ao mais forte

77 PLATAtildeO A Repuacuteblica 372d-e 78 Ibid 372e 79 Cf supra 428e 80 Cf supra 485c 81 Cf supra 490a 82 Cf PLATAtildeO Goacutergias 483a In Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 58-9 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 83 Ibid 84 Cf supra 483a-d

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

22

a proacutepria natureza [phusis] segundo creio se incumbe de provar que

eacute justo ter mais o indiviacuteduo de maior nobreza do que o vilatildeo o mais forte do que o mais fraco [] tanto entre os animais como entre os homens nas cidades e em todas as raccedilas manda a justiccedila que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles De fato com que direito invadiu Xerxes a Heacutelade ou o pai dele a Ciacutetia [] A meu ver toda gente assim procede segundo a natureza [kata phusin] poreacutem natildeo decerto segundo as leis [kata nomon] que noacutes mesmos

arbitrariamente instituiacutemos e impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos como fazemos com o leatildeo para domesticaacute-lo com encantamentos ou foacutermulas maacutegicas e convencecirc-los de que devem contentar-se com a igualdade pois nisso precisamente consiste o belo e o justo85

Caacutelicles desafia o convencionalismo das leis igualitaacuterias a justificar as invasotildees militares (ldquocom que direitordquo) Ele considera que obedecer a essas leis equivale a uma negaccedilatildeo da natureza do mais forte uma espeacutecie de domesticaccedilatildeo a ateacute escravidatildeo (ver em seguida) em prol de uma igualdade incutida nos mais fortes desde sua educaccedilatildeo que natildeo passa de uma ldquodomesticaccedilatildeo por meio de encantamentosrdquo No auge deste argumento Caacutelicles considera esse tratamento igualitaacuterio um aprisionamento do mais forte do qual ele deve se libertar e exercer seu direito por natureza do dominar Ele profere

Na minha opiniatildeo poreacutem quando surge um indiviacuteduo de natureza [phusin] bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos

e alcanccedilar a liberdade pisa em nossas foacutermulas regras encantamentos e todas as leis contraacuterias agrave natureza [nomous tous para phusin] e revoltando-se vemos transformar-se em dono de

todos noacutes o que antes era nosso escravo eacute quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza [phuseōs dikaion]86

Nem Caacutelicles nem Platatildeo (assumindo que sua postura seja a do personagem

Soacutecrates) satildeo convencionalistas Ambos procuram uma referecircncia universal e absoluta Contudo eles a buscam de formas diferentes Quanto a isto explica Kerferd

Platatildeo de fato concorda com Caacutelicles no desejo de escapar da justiccedila convencional a fim de passar para algo mais alto [hellip] Mas para Platatildeo a realizaccedilatildeo [da areteacute] envolve um padratildeo de controle da satisfaccedilatildeo

dos desejos um padratildeo baseado na razatildeo ao passo que para Caacutelicles nem razatildeo nem controle tecircm qualquer coisa a ver com o assunto87

Quanto a Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmacos o filoacutesofo recorre ao argumento

naturalista para propor que a melhor forma de vida para o homem a mais feliz eacute seguir o que lhe eacute natural Portanto o melhor para o homem eacute seguir a vida intelectual pois o intelecto eacute a nossa parte mais caracteriacutestica e nobre Aristoacuteteles diz ldquoaquilo que eacute peculiar a cada criatura lhe eacute naturalmente [tē phusei] melhor e mais agradaacutevel jaacute

que o intelecto mais que qualquer outra parte do homem eacute o homem Esta vida

85 Ibid 483d-e 86 Ibid 484a-b (grifos meus) 87 KERFERD G B O Movimento Sofista p 203

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

23

portanto eacute tambeacutem a mais felizrdquo88 Vemos aqui como a naturalizaccedilatildeo do intelecto eacute um artifiacutecio que traz forccedila para o argumento A observaccedilatildeo positiva o fato de o intelecto ser natural e exclusivo ao homem torna o argumento ldquoimparcialrdquo supostamente alheio agrave subjetividade do autor Algo como ldquonatildeo sou eu que estou dizendo mas a naturezardquo Esta eacute uma intenccedilatildeo tiacutepica que subjaz no argumento naturalista Contudo Wolf natildeo interpreta desta maneira A autora natildeo reconhece o argumento de Aristoacuteteles como falaacutecia naturaliacutestica Ela descreve a acusaccedilatildeo de falaacutecia

do fato de o homem distinguir-se factualmente dos animais pela

capacidade de razatildeo a qual como todas as demais capacidades pode ser exercida bem ou mal nada se pode deduzir sobre o que seja melhor para o homem ou de como eacute bom que o homem viva89

Ela discorda da acusaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica por ver que natildeo haacute uma transiccedilatildeo de um conceito descritivo para um normativo mas sim entre dois conceitos normativos do de arete para o de eudaimoniacutea90 Ela afirma que haacute uma ldquoconfusatildeo de dois tipos de teleologia uma teleologia interna agrave definiccedilatildeo ou funcional (proacutepria das ciecircncias da natureza) e uma teleologia eacuteticardquo91 O problema para ela reside em se reconhecer essa teleologia interna como normativa e natildeo descritiva A autora vecirc que Aristoacuteteles prescreve ao inveacutes de descrever que as partes do homem estejam subordinadas agrave realizaccedilatildeo do eacutergon (atividade conforme a razatildeo) ou do telos Para constataccedilatildeo da falaacutecia Aristoacuteteles deveria demonstrar ou descrever como as partes funcionam deste modo92 Sendo assim a rejeiccedilatildeo de Wolf agrave denominaccedilatildeo de falaacutecia naturaliacutestica reside nesta formalidade de natildeo se reconhecer o caraacuteter descritivo do eacutergon humano E ela conclui

O fato de que esse [atividade conforme a razatildeo] eacute o telos o fim que

guia a ordem dos elementos definitoacuterios natildeo prova que tambeacutem para a pessoa que leva sua vida a racionalidade represente o conteuacutedo do fim uacuteltimo para seu agir A pessoa que age poderia considerar a razatildeo tambeacutem como meio para realizar os conteuacutedos proacuteprios de seus fins que provecircm de outras fontes93

Contudo a proacutepria autora jaacute fizera assim como Aristoacuteteles (conferir adiante)

uma passagem sutil de uma constataccedilatildeo de um ergon natural (do olho) para um artificial (da faca e do flautista) ldquoo ergon do olho eacute o ver o ergon da faca eacute o cortar o ergon do flautista eacute o tocar flautardquo94 Ora se o problema da falaacutecia naturaliacutestica era o ergon natildeo ser descritivo mas prescritivo entatildeo haacute uma prescriccedilatildeo e natildeo uma constataccedilatildeo de que o olho deva ver Se eacute uma prescriccedilatildeo resultante da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o olho deva ver haacute de se concordar que uma outra interpretaccedilatildeo

88 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Brasiacutelia Edunb 1992 X7 1178a (grifo meu) 89 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 41 90 Cf supra 91 Ibid 92 Cf supra 93 Ibid 94 Ibid p 36

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

24

poderia resultar em uma prescriccedilatildeo diferente Sendo assim o olho poderia entatildeo ter uma outra funccedilatildeo

Aristoacuteteles neste ponto tambeacutem mostra esta passagem da funccedilatildeo natural para a artificial em sua argumentaccedilatildeo

Talvez possamos chegar a isto [o que eacute a felicidade] se determinarmos primeiro qual eacute a funccedilatildeo proacutepria do homem [to ergon tou anthrōpou] Com efeito da mesma forma que para um flautista um escultor ou qualquer outro artista e de um modo geral para tudo que tem uma funccedilatildeo [ergon] ou atividade consideramos que o bem e a perfeiccedilatildeo residem na funccedilatildeo um criteacuterio idecircntico parece aplicaacutevel ao homem

se ele tem uma funccedilatildeo Teriam entatildeo o carpinteiro e o curtidor de couros certas funccedilotildees e atividades e o homem como tal por ter nascido incapaz natildeo teria uma funccedilatildeo que lhe fosse proacutepria [suposiccedilatildeo natildeo naturalista] Ou deveriacuteamos presumir que da mesma forma que o olho o peacute e em geral cada parte do corpo tecircm uma funccedilatildeo o homem tem tambeacutem uma funccedilatildeo independente de todas estas [suposiccedilatildeo naturalista se as partes tecircm funccedilatildeo logo o todo

tambeacutem a teraacute] Qual seria ela entatildeo Ateacute as plantas participam da vida mas estamos procurando algo peculiar ao homem [Aristoacuteteles escolhe o naturalismo] [] Resta entatildeo a atividade vital do elemento racional do homem [] Entatildeo se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma por via da razatildeo e conforme a ela e se dizemos que ldquouma pessoardquo e ldquouma pessoa boardquo tecircm uma funccedilatildeo do mesmo gecircnero ndash por exemplo um citarista e um bom citarista [] a funccedilatildeo proacutepria do homem [ergon anthrōpou] eacute de um certo modo a vida e este eacute

constituiacutedo de uma atividade ou de accedilotildees da alma que pressupotildeem o uso da razatildeo e a funccedilatildeo proacutepria de um homem bom eacute o bom e

nobilitante exerciacutecio desta atividade ou a praacutetica dessas accedilotildees [] [passagem para um juiacutezo valorativo]95

Assim nota-se que Aristoacuteteles natildeo sem antes supor uma via natildeo naturalista

adota a funccedilatildeo natural das partes do corpo como ponto de partida passa pela conclusatildeo de que o homem como um todo tambeacutem tem uma ldquofunccedilatildeo proacutepriardquo e chega ao juiacutezo valorativo (bom e nobre)

No livro Poliacutetica Aristoacuteteles perfaz o mesmo caminho argumentativo de maneira ainda mais expliacutecita Ele afirma que ldquona ordem natural [de tē phusei] [] o todo deve necessariamente ter precedecircncia sobre as partesrdquo96 para prescrever logo em seguida que ldquoa cidade tem precedecircncia sobre o indiviacuteduordquo97 De novo uma constataccedilatildeo naturaliacutestica seguida de uma prescriccedilatildeo poliacutetica Ele afirma novamente que ldquotodas as coisas satildeo definidas [naquela mesma ordem natural] por sua funccedilatildeo [ergō] e atividades de tal forma que quando elas jaacute natildeo forem capazes de perfazer sua funccedilatildeo natildeo se poderaacute dizer que satildeo as mesmas coisas elas teratildeo apenas o mesmo nomerdquo98

Ele ainda explica que a natureza [tēn phusin] de cada coisa (do homem inclusive) eacute o seu estaacutegio final tanto quanto ao processo de seu desenvolvimento

95 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos p 24 I7 1097b-8a 96 ARISTOacuteTELES Poliacutetica Brasiacutelia Edunb 1985 1253a 97 Ibid 98 Ibid (grifo meu)

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

25

quanto agrave sua finalidade (teleologia natural) E esta finalidade eacute o que haacute de melhor para ela99 ldquo A natureza [phusis] nada faz sem um propoacutesitordquo 100 Eis a teleologia natural explicitamente mencionada pelo filoacutesofo Aqui nota-se novamente a passagem de uma descriccedilatildeo de fato natural (baseada na interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles) para a prescriccedilatildeo de um juiacutezo valorativo (ldquomelhor parardquo) O juiacutezo valorativo parte da pretensatildeo de se compreender os ldquodesiacutegnios ou a intenccedilatildeo da naturezardquo ou seja da compreensatildeo da teleologia natural Assim ldquoo que a natureza quis ao criar tal coisa eacute o melhor para elardquo Mas novamente natildeo caiacutemos no problema de ldquoquem interpreta a intenccedilatildeo da naturezardquo

Como consequecircncia desta postura naturalista Aristoacuteteles constata Estas consideraccedilotildees deixam claro que a cidade eacute uma criaccedilatildeo natural [tōn phusei] e que o homem eacute por natureza [phusei] um animal social e um homem que por natureza [dia phusin] e natildeo por mero acidente

natildeo fizesse parte de cidade alguma seria despreziacutevel ou estaria acima da humanidade101

Semelhante argumento teleoloacutegico-naturalista aparece em De Anima a respeito da finalidade da alma ldquopara os que vivem [] o mais natural dos atos eacute produzir outro ser igual a si mesmo [] a fim de participarem do eterno e do divino como podem pois todas desejam isto e em vista disso fazem tudo o que fazem por natureza [kata phusin102] [] uma vez que eacute impossiacutevel partilhar do eterno e do divino de maneira contiacutenuardquo103 E ainda ldquouma vez que eacute justo designar todas as coisas a partir de seu fim [tou telous] ― e uma vez que o fim [telos] consiste em gerar outro como si mesmo ― a primeira alma seria a capacidade de gerar outro como si mesmordquo104 Aristoacuteteles aqui apresenta sua constataccedilatildeo de que na natureza os seres vivos se reproduzem e decreta que essa reproduccedilatildeo eacute ldquoparardquo participar ldquodo eterno e do divinordquo

No livro Retoacuterica Aristoacuteteles aproxima o que eacute agradaacutevel que inclui fazer o bem ao que eacute natural A saber

o aprender e o admirar satildeo geralmente agradaacuteveis pois no admiraacutevel estaacute contido o desejo de aprender de sorte que o admiraacutevel eacute desejaacutevel e no aprender se alcanccedila o que eacute segundo a natureza [kata phusin] Contam-se ainda entre as coisas agradaacuteveis fazer o bem e recebecirc-lo pois receber um benefiacutecio eacute alcanccedilar o que se deseja e fazer o bem eacute possuir e ser superior dois fins a que todos aspiram [] Visto que eacute agradaacutevel tudo quanto eacute conforme agrave natureza [kata phusin] e que as coisas do mesmo gecircnero satildeo entre si conformes agrave natureza [kata phusin] todos os seres congecircneres e semelhantes se

agradam a maior parte do tempo []105

A sequecircncia argumentativa inicia-se com o aprender sendo admiraacutevel e

99 Cf supra (grifo meu) 100 Ibid 101 Ibid 102 No caso de De Anima termos gregos foram obtidos em ltwwwmikrosapoplousgraristotlepsyxhscontentshtmlgt Acesso em 16 fev 2016 103 ARISTOacuteTELES De Anima Satildeo Paulo Editora 34 2006 p 79 415a22 104 Ibid 416b23 105 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 60-1 1371a-b

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

26

desejaacutevel em seguida o aprender ganha o respaldo naturalista (ldquoalcanccedila o que eacute segundo a naturezardquo) que por sua vez torna-se admiraacutevel tambeacutem jaacute que o desejo de aprender estaacute contido no admiraacutevel No admiraacutevel tudo isso encontraraacute o bem que confere superioridade Logo em seguida novamente a conformidade com a natureza volta a respaldar o agradaacutevel o que desencadearaacute uma seacuterie de afinidades entre seres da mesma natureza106 Ora mais uma vez observamos o recurso agrave natureza para se validar conclusotildees prescritivas ldquoSe tal coisa eacute conforme a natureza logo eacute bom admiraacutevel etcrdquo O problema aqui eacute que esse silogismo apresenta a premissa maior ldquotudo que eacute conforme a natureza eacute bomrdquo e para validade desse silogismo eacute necessaacuterio que essa premissa seja universal ou seja que todos com ela concordem Ainda na Retoacuterica ele propotildee a diferenccedila entre ldquoleis particularesrdquo e ldquoleis comunsrdquo As particulares correspondem agraves leis humanas e as gerais agraves ldquoleis segundo a naturezardquo A lei segundo a natureza eacute aquela que ele considera acima da deliberaccedilatildeo humana pois ela jaacute conteacutem um princiacutepio natural de justiccedila Logo a seguir Aristoacuteteles cita um trecho de Antiacutegona (455-7) que imediatamente sucede o da citaccedilatildeo 8 acima Diz o Estagirita

Chamo lei [nomon] tanto agrave que eacute particular como agrave que eacute comum Eacute lei

particular a que foi definida por cada povo em relaccedilatildeo a si mesmo quer seja escrita ou natildeo escrita e comum a que eacute segundo a natureza [kata phusin] Pois haacute na natureza [phusei] um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo [sunthēkē] como por exemplo mostra Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer

que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural [phusei] Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu107

Esse princiacutepio natural curiosamente eacute adivinhado pelos homens ldquomesmo que natildeo haja acordordquo Ora para que um princiacutepio seja universal ele deve ser reconhecido igualmente por todos de forma que o acordo eacute necessaacuterio E aleacutem disso esse princiacutepio natildeo poderia ser o mesmo citado por Antiacutegona pois como vimos acima ela recorre agrave forccedila impositiva das leis dos deuses e natildeo de leis naturais O que parece acontecer aqui eacute que Aristoacuteteles aproxima ldquolei divinardquo de ldquolei naturalrdquo pelo fato de ambas se pretenderem agrave universalidade e por isso se ldquoimporem por si mesmasrdquo Contudo o reconhecimento de universalidade o que seria um ldquoacordo obrigatoacuteriordquo passaria necessariamente pela interpretaccedilatildeo com a obrigaccedilatildeo de ou um teiacutesmo comum ou a aceitaccedilatildeo do referido princiacutepio natural de justiccedila que natildeo parece estar bem sustentado Inclusive no diaacutelogo Poliacutetico o personagem platocircnico Estrangeiro refere-se ao ateiacutesmo assim como a imoderaccedilatildeo e a injusticcedila como um ldquoiacutempeto de natureza [phuseōs] maacuterdquo passiacuteveis de pena de morte ou exiacutelio108 Ou seja os de opiniatildeo dissidente devem ser eliminados e provavelmente natildeo faratildeo parte do ldquoconsensordquo facilitando o reconhecimento da universalidade teoloacutegica No diaacutelogo o consenso certamente seraacute feito pelo laccedilo poliacutetico entre pessoas especiacuteficas da seguinte forma ldquoeacute somente entre caracteres em que a nobreza eacute inata [ex arkhēs

106 Cf supra 1371b 107 Ibid 1373b (grifos meus) 108 PLATAtildeO Poliacutetico 309a

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

27

ēthesi threphtheisi te kata phusin] e mantida pela educaccedilatildeo que as leis poderatildeo criar este laccedilo [] o laccedilo verdadeiramente divino que une entre si as partes da virtuderdquo109 Aristoacuteteles na Retoacuterica retorna agrave dicotomia das leis e afirma que o juiz deveraacute recorrer agrave proacutepria consciecircncia nos casos em que as leis escritas natildeo forem suficientes O assunto eacute proposto como uma obviedade

Pois eacute oacutebvio que se a lei escrita [gegrammenos] eacute contraacuteria aos fatos seraacute necessaacuterio recorrer agrave lei comum [epieikesterois] e a argumentos de maior equidade [epieikesterois] e justiccedila E eacute evidente que a foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo significa natildeo seguir exclusivamente as leis escritas e que a equidade [epieikes] eacute

permanentemente vaacutelida e nunca muda como a lei comum (por ser conforme agrave natureza [kata phusin]) ao passo que as leis escritas estatildeo frequentemente mudando [] Eacute necessaacuterio dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita [gegrammenos] natildeo eacute propriamente uma lei [nomos] pois natildeo cumpre a funccedilatildeo da lei [nomou] dizer tambeacutem que o juiz eacute por assim dizer um verificador de

moedas nomeado para distinguir a justiccedila falsa da verdadeira e que eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se conformar mais do que agraves leis escritas 110

Vale lembrar que neste trecho acima Aristoacuteteles novamente recorreu agrave citaccedilatildeo Antiacutegona (aqui omitida) com a mesma problemaacutetica jaacute comentada Neste trecho Aristoacuteteles se vale do seu conceito de equidade (cf citaccedilatildeo 193) para resolver o problema da lei escrita A lei escrita ldquonatildeo eacute propriamente uma leirdquo natildeo eacute a justiccedila verdadeira eacute mutaacutevel A justiccedila do princiacutepio natural deve ser identificada pelo ldquohomem honestordquo que atraveacutes da sua equidade conformaraacute agravequela justiccedila o caso individual em julgamento O mesmo problema anterior de identificaccedilatildeo universal do princiacutepio natural de justiccedila recai agora sobre a identificaccedilatildeo do homem honesto O problema do criteacuterio parece sempre retornar quando se pretende buscar princiacutepios eacuteticos universais ou homens que se proponham alcanccedilaacute-lo111 Como este seraacute eleito No caso de Antiacutegona era ela a pessoa honesta que conhecia a verdade Ou seraacute o direito que ela conclama (o de se enterrar um familiar) um costume uma convenccedilatildeo ou noacutemos Na Poliacutetica Aristoacuteteles recorre ao argumento naturalista reiteradas vezes para justificar sua postura proacute-escravista aleacutem da superioridade masculina em relaccedilatildeo agrave mulher ldquoo macho eacute naturalmente [phusei] mais apto ao comando do que a fecircmeardquo112 ldquohaacute por natureza [phusei] vaacuterias classes de comandantes e comandados pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo o macho comanda a fecircmea e o homem comanda a crianccedilardquo113 A respeito da relaccedilatildeo entre pessoas em especial homem-mulher e senhor-escravo ele escreve

109 Ibid 310a 110 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1375a-b (grifos meus) 111 Assim como um princiacutepio universal requer seu imediato consentimento o criteacuterio de eleiccedilatildeo deste princiacutepio tambeacutem o requer E da mesma forma a escolha deste criteacuterio resultando em um regresso ad infinitum 112 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1259b 113 Ibid 1260a

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

28

a uniatildeo de um comandante e de um comandado naturais [phusei] para

a sua preservaccedilatildeo reciacuteproca (quem pode usar o seu espiacuterito para prever eacute naturalmente [phusei] um senhor e quem pode usar seu corpo para prover eacute comandado e naturalmente [phusei] escravo) o

senhor e o escravo tecircm portanto os mesmos interesses114

Interessantemente Aristoacuteteles afirma que por ser uma relaccedilatildeo hieraacuterquica

natural ela eacute do interesse de ambas as partes apesar de que o interesse do senhor eacute principal e o escravo acidental115 Assim para ele eacute do interesse do comandado (mulher e escravo) servir ao senhor comandante pois foi este o propoacutesito da natureza ao criaacute-los (teleologia natural) E novamente o filoacutesofo refaz a sutil passagem de uma teleologia artificial (cutelaria e o corte preciso) para uma natural (a diferenccedila natural do escravo e da mulher e a servidatildeo) A este respeito ele escreve

Assim a mulher e o escravo satildeo diferentes por natureza [phusei] (a natureza [phusis] nada faz mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria cada coisa com um uacutenico propoacutesito desta forma cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

se ele serve natildeo para muitos usos mas apenas para um)116

Aleacutem disso ele estende este argumento naturalista agrave superioridade dos

helenos sobre os baacuterbaros Os baacuterbaros satildeo inferiores aos helenos porque tratam com igualdade homens e mulheres e este eacute segundo Aristoacuteteles um grande erro Assim os helenos satildeo superiores porque tratam a mulher conforme dita a natureza e os homens baacuterbaros natildeo se tornam senhores mas escravos Ora mas quem interpreta o que diz a natureza Isso natildeo recai novamente no noacutemos da interpretaccedilatildeo humana A esse respeito diz Aristoacuteteles citando Hesiacuteodo em Trabalhos e Dias

Entre os baacuterbaros [] a mulher e o escravo ocupam a mesma posiccedilatildeo a causa disto eacute que eles natildeo tecircm uma classe de chefes naturais [phusei arkhon] e em suas naccedilotildees a uniatildeo conjugal eacute entre escrava e escravo Por esta razatildeo os poetas dizem ldquoHelenos satildeo senhores naturais dos baacuterbarosrdquo como se por natureza [phusei] baacuterbaro e

escravo fossem a mesma coisa117

A respeito do direito de dominaccedilatildeo entre povos Aristoacuteteles alega que ele estaacute

baseado em uma distinccedilatildeo natural entre os povos haacute aqueles destinados a ser dominados e aqueles destinados a natildeo secirc-lo A prescriccedilatildeo que o autor faz decorrente dessa observaccedilatildeo eacute de que natildeo se deve tentar dominar despoticamente todos os povos mas somente aqueles destinados a isto118 E como definiriacuteamos os povos naturalmente destinados a ser dominados Os militarmente mais fracos A postura escravista de Aristoacuteteles eacute patente De fato para ele ldquoo escravo eacute um bem vivordquo119 do senhor e ldquolhe pertence inteiramenterdquo120 O escravo eacute um bem e a

114 Ibid 1252b 115 Cf supra 1279a 116 Ibid (grifo meu) 117 Ibid 118 Ibid 1325a 119 Ibid 1254a 120 Ibid

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

29

posse do senhor sobre ele eacute justificada por natildeo menos que a natureza do escravo e sua funccedilatildeo121 O escravo tem a funccedilatildeo natural de obedecer ele eacute uma parte de um todo que cumpre tal funccedilatildeo E este todo seraacute harmonioso se possuir todas as suas partes cumprindo a sua funccedilatildeo (ergon) natural de acordo com a excelecircncia (arete) tal como visto na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o trecho da Poliacutetica em que ele corrobora isso

Alguns seres com efeito desde a hora do seu nascimento [ek tōn ginomenōn] satildeo marcados para ser mandados ou para mandar e haacute

muitas espeacutecies mandantes e mandados (a autoridade eacute melhor quando eacute exercida sobre suacuteditos melhores por exemplo mandar num ser humano eacute melhor que mandar num animal selvagem a obra eacute melhor quando executada por auxiliares melhores e onde um homem manda e outro obedece pode-se dizer que houve uma obra) pois em todas as coisas compostas onde uma pluralidade de partes [] eacute combinada para constituir um todo uacutenico sempre se veraacute algueacutem que manda e algueacutem que obedece e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma decorrecircncia da natureza [phuseōs] em seu todo pois mesmo onde natildeo haacute vida existe um princiacutepio dominante como no caso da harmonia musical122

A argumentaccedilatildeo aqui estaacute totalmente voltada para uma pretensa inevitabilidade da escravidatildeo A escravidatildeo estaacute ldquodecidida previamente pela naturezardquo no nascimento O escravo faz parte de um sistema no qual eacute uma engrenagem projetada pela natureza para funcionar de determinada maneira a saber obedecer e servir E eacute cumprindo esta funccedilatildeo natural que ele deve viver e que o sistema como um todo seraacute harmonioso como a muacutesica Inclusive cumprir esta funccedilatildeo a que ele foi predestinado eacute do interesse do escravo Assim para o filoacutesofo a correta conduta eacutetica do escravo estaacute determinada (prescrita) pela natureza jaacute no seu nascimento

Esse argumento aparta completamente qualquer deliberaccedilatildeo humana sobre a escravidatildeo ldquoQuem decide quem eacute escravo eacute a natureza natildeo o homemrdquo Mas quem diz que eacute isso mesmo o que a natureza decide Ningueacutem aleacutem do proacuteprio homem O homem escravo diria o mesmo E ademais a natureza sequer decide alguma coisa Nesta mesma linha Chacirctelet ao comentar sobre esta postura de Aristoacuteteles na Poliacutetica questiona ldquona espeacutecie humana haacute indiviacuteduos nascidos para mandar e outros para obedecer Como reconhecer uns e outros (os mandantes e os mandados)rdquo123 O mesmo valeria para Platatildeo que aleacutem de deixar expliacutecita na Repuacuteblica a seleccedilatildeo do melhor (o filoacutesofo) para o cargo de governante tambeacutem o faz no Poliacutetico ldquotodos aqueles que desempenham papel nessas constituiccedilotildees exceto aqueles que possuem conhecimentos devem ser rejeitados como falsos poliacuteticos partidaacuterios e criadores das piores ilusotildees124

Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles deixa esta postura naturalista ainda mais clara ldquoA intenccedilatildeo da natureza eacute fazer tambeacutem os corpos dos homens livres e dos escravos diferentes ndash os uacuteltimos fortes para as atividades servis os primeiros erectos incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadatildeosrdquo125

121 Cf supra 122 Ibid 1254a-b (grifos meus) 123 CHAcircTELET F In CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993 p 55 124 PLATAtildeO Poliacutetico 303c 125 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1254b (grifo meu)

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

30

Para justificar ainda mais essa hierarquia natural Aristoacuteteles se lanccedila em uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo corpo-alma no homem para depois com isso justificar as relaccedilotildees homem-mulher e senhor-escravo Para ele a ldquoalma domina o corpo com a prepotecircncia de um senhor e a inteligecircncia domina os desejos com a autoridade de um estadista ou rei estes exemplos evidenciam que para o corpo eacute natural [kata phusin] e conveniente ser governado pela almardquo126 Mas o que explica esse interesse do governado De qualquer forma Aristoacuteteles faz a passagem deste argumento para a justificativa daquelas relaccedilotildees

As mesmas consideraccedilotildees se aplicam aos animais em relaccedilatildeo ao homem a natureza [tēn phusin] dos animais domeacutesticos eacute superior agrave dos animais selvagens e portanto para todos os primeiros eacute melhor ser dominados pelo homem pois esta condiccedilatildeo lhes daacute seguranccedila Entre os sexos tambeacutem o macho eacute por natureza [phusei] superior e a fecircmea inferior aquele domina e esta eacute dominada o mesmo princiacutepio se aplica necessariamente a todo gecircnero humano portanto todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal inferior (e esta eacute a condiccedilatildeo daqueles cuja funccedilatildeo eacute usar o corpo e que nada melhor podem fazer) satildeo naturalmente [phusei] escravos e para eles eacute melhor ser sujeitos agrave autoridade de um senhor [] Eacute um escravo por natureza [phusei] quem eacute suscetiacutevel de pertencer a outrem (e por

isso eacute de outrem) e participa da razatildeo somente ateacute o ponto de apreender esta participaccedilatildeo mas natildeo a usa aleacutem deste ponto [] Na verdade a utilidade dos escravos pouco difere da dos animais serviccedilos corporais para atender agraves necessidades da vida satildeo prestados por ambos tanto pelos escravos quanto pelos animais domeacutesticos 127

Aqui aparece uma explicaccedilatildeo para a conveniecircncia em ser dominado pelo superior a seguranccedila Aristoacuteteles propotildee que daacute seguranccedila ao inferior ser dominado pelo superior Partindo da dominaccedilatildeo dos animais isso vai se estender aos escravos e agraves mulheres Note-se que para o escravo ele prescreve (ldquoeacute melhorrdquo) a autoridade do senhor pois em sua interpretaccedilatildeo da condiccedilatildeo natural do escravo aleacutem de sua funccedilatildeo ser usar o corpo como um animal domeacutestico ele eacute ldquosuscetiacutevel por naturezardquo a pertencer a outrem Aleacutem disso a razatildeo do escravo soacute lhe serve para entender que ele naturalmente pertence a outro um mero bem material fora isso ele eacute tal qual um animal Portanto Aristoacuteteles ldquoconstatardquo essa natureza do escravo e prescreve a relaccedilatildeo hieraacuterquica ou seja a escravidatildeo propriamente dita E da mesma forma a submissatildeo da mulher ao homem Contudo Aristoacuteteles natildeo desconsidera a posiccedilatildeo convencionalista da escravidatildeo Ele inclusive cogita esta opiniatildeo

Outros afirmam que a autoridade do senhor sobre os escravos eacute contraacuteria agrave natureza [para phusin] e que a distinccedilatildeo entre escravo e pessoa livre eacute feita somente pelas leis [nomō] e natildeo pela natureza [phusei] e que por ser baseada na forccedila tal distinccedilatildeo eacute injusta128

126 Ibid 127 Ibid (grifos meus) 128 Ibid 1253b

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

31

Nota-se que o Estagirita considera que o valor moral de justiccedila eacute o que ele interpreta como natural Ele certamente considera que eacute por ser baseada nos desiacutegnios da natureza que a escravidatildeo eacute justa Aristoacuteteles ateacute considera que haja de fato escravidatildeo por convenccedilatildeo ldquohaacute escravos e escravidatildeo ateacute por forccedila da lei [kata] de fato a lei [nomos] de que falo eacute uma espeacutecie de convenccedilatildeo [acordo ― homologia] segundo a qual tudo que eacute conquistado na guerra pertence aos conquistadoresrdquo129 Contudo as pessoas que condenam a escravidatildeo natural e aprovam a convencional (prisioneiros de guerra) segundo o filoacutesofo acabam por retornar agrave escravidatildeo natural pois natildeo aceitariam que os proacuteprios helenos fossem escravizados por convenccedilatildeo mas somente os baacuterbaros E isso segundo ele redundaria na busca por princiacutepios de uma escravidatildeo natural130 Dessa forma Aristoacuteteles reconhece a possibilidade da forma convencional de escravidatildeo mas aponta a distinccedilatildeo crucial desta para a forma natural a escravidatildeo natural eacute conveniente para ambas as partes ldquoO que eacute conveniente para uma parte tambeacutem eacute conveniente para o todo pois o que eacute conveniente para o corpo eacute igualmente conveniente para a alma e o escravo eacute parte de seu senhorrdquo131 E por ser uma relaccedilatildeo natural o comando natildeo deve ser exercido com abuso de autoridade sob pena de perda da muacutetua conveniecircncia

haacute uma certa comunidade de interesses e amizade entre o escravo e o senhor quando eles satildeo qualificados pela natureza [phusei] para as

respectivas posiccedilotildees embora quando eles natildeo as ocupam nestas condiccedilotildees mas em obediecircncia agrave lei [kata nomon] ou por compulsatildeo aconteccedila o contraacuterio132

Ora como determinar que por natureza algueacutem nasce inferior suscetiacutevel agrave submissatildeo Natildeo de outra forma aleacutem da nossa proacutepria interpretaccedilatildeo De volta a Antifonte vimos que por natureza temos mais semelhanccedilas que nos aproximem do que diferenccedilas que nos determinem hierarquias eacuteticas E isso tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo Outro ponto de argumentaccedilatildeo naturalista na Poliacutetica eacute notado na discussatildeo de relaccedilotildees comerciais Aristoacuteteles considera que a permuta eacute uma forma natural pois visa apenas a autossuficiecircncia atraveacutes do equiliacutebrio entre os bens que faltam e os bens que sobram dentre as partes negociantes Ele considera essa relaccedilatildeo natural por visar apenas satisfazer as necessidades proacuteprias do homem (ldquoarte natural de enriquecerrdquo limitadas pelas necessidades naturais) Por outro lado ele considera que o comeacutercio envolvendo dinheiro (ldquoarte de enriquecerrdquo comercial sem limites para as riquezas e aquisiccedilotildees) eacute contra a natureza por se trocar um item que foi criado para satisfazer uma necessidade natural (sapato por exemplo) por dinheiro que em si natildeo satisfaz nenhuma necessidade natural133 De fato Aristoacuteteles afirma que os bens exteriores necessaacuterios para se alcanccedilar a eudaimoniacutea tecircm limites e seu excesso eacute

129 Ibid 1255a 130 Cf supra 131 Ibid 1255b 132 Ibid 133 Cf supra 1257a-b

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

32

nocivo ao passo que em relaccedilatildeo aos bens da alma quanto mais abundantes mais uacuteteis seratildeo134 Assim

eacute funccedilatildeo da natureza [phuseōs gar estin ergon] assegurar o alimento

agraves suas criaturas jaacute que todas as criaturas recebem o alimento de quem as cria Consequentemente a arte de obter riqueza atraveacutes de frutos da terra e dos animais pode ser praticada naturalmente [kata phusin] por todos135

Aristoacuteteles afirma que a forma natural pertence agrave economia domeacutestica que eacute ldquonecessaacuteria e louvaacutevel enquanto o ramo ligado agrave permuta eacute justamente censurado (ele natildeo eacute conforme agrave natureza [ou gar kata phusin] e nele alguns homens ganham agrave custa de outros)rdquo136 E em relaccedilatildeo a juros Aristoacuteteles lembra que ldquoo objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta [] e os juros satildeo dinheiro nascido de dinheiro [] logo essa forma de ganhar dinheiro eacute de todas a mais contra agrave natureza [para phusin]rdquo137 Novamente prescriccedilotildees alinhadas com ldquoconstataccedilotildeesrdquo do que eacute a favor ou contraacuterio agrave natureza Ainda na Poliacutetica Aristoacuteteles faz uma interessante anaacutelise do papel da lei (nomos) Fazendo uma anaacutelise da forma de governo monaacuterquica ele se opotildee ao argumento da igualdade natural

Algumas pessoas pensam que eacute absolutamente contraacuterio agrave natureza [kata phusin] o fato de algueacutem exercer o poder soberano sobre todos os cidadatildeos numa cidade onde todos os cidadatildeos satildeo iguais pois pessoas iguais por natureza [homoiois phusei] tecircm necessariamente

o mesmo conceito de justiccedila e o mesmo valor138

Ele argumenta que natildeo se pode tratar todos como iguais pois se a postura naturalista fosse a correta seria ldquoprejudicial aos corpos de pessoas desiguais receberem quantidades iguais de alimento ou roupas iguaisrdquo139 e por associaccedilatildeo o mesmo acontece com as honrarias no caso a concessatildeo do cargo de governante ldquoLogo todos devem governar e ser governados alternadamenterdquo140 Aqui natildeo haacute uma diferenccedila natural uma caracteriacutestica ou funccedilatildeo inata que indique algueacutem para governar E ainda que mesmo parecendo injusto (face agravequela igualdade natural) algum homem individualmente tenha que governar ele deveraacute ser o guardiatildeo das leis [nomois] e subordinado a ela Os casos individuais que a lei natildeo seria capaz de resolver diz Aristoacuteteles esse homem individualmente tambeacutem natildeo o seria Assim a lei deve segundo ele educar os magistrados para que legislem de acordo com a divindade e a razatildeo141 ldquoMas quem prefere que o homem governe [] tambeacutem quer por uma fera no governo pois as paixotildees satildeo como feras e transtornam os homens

134 Cf supra 1323b 135 Ibid 1258b 136 Ibid (grifos meus) 137 Ibid 138 Ibid 1287a 139 Ibid 140 Ibid 141 Cf supra 1287a-b

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

33

mesmo quando eles satildeo os melhores homens Portanto a lei [nomos] eacute a inteligecircncia sem paixotildeesrdquo142

Ainda que fugindo da posiccedilatildeo naturalista Aristoacuteteles busca aqui uma lei absoluta e natildeo consensualista dentre os homens uma lei que possa ldquorecomendar o impeacuterio exclusivo da divindade e da razatildeordquo143 (cf conceito de equidade citaccedilatildeo 193) Seja essa razatildeo alcanccedilada fora do ser humano ou dentro dele ela se pretende ser infaliacutevel e absoluta ndash por isso natildeo consensualista Mais uma vez recaiacutemos no problema do criteacuterio para se decidir que lei seria essa Seraacute entatildeo possiacutevel fugir do consenso em um meio social

Conciliando suas posiccedilotildees anteriores acerca do homem como senhor natural e esta uacuteltima (governante sujeito agrave lei) Aristoacuteteles diz

De fato haacute por natureza [gar ti phusei] uma justiccedila e uma vantagem

apropriadas ao mando de um senhor [em relaccedilatildeo a escravos mulheres e crianccedilas] outras adequadas ao governo de um monarca [guardiatildeo da lei e submetido a ela] e outros a outros mas nenhuma eacute adequada agrave tirania ou qualquer outra forma corrompida de governo pois estas existem contra a natureza [para phusin]144

142 Ibid 1287b 143 Ibid 144 Ibid 1288a

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

34

3 POSICcedilOtildeES PROacute-NOacuteMOS

De volta agrave sofiacutestica Protaacutegoras natildeo acreditava que as leis fossem obras da natureza ou dos deuses145 Kerferd interpreta a doutrina de Protaacutegoras da seguinte forma ldquotodos os homens atraveacutes do processo educacional de viver em famiacutelia e em sociedades adquirem algum grau de educaccedilatildeo moral e poliacuteticardquo146 Assim vemos o pensamento de Protaacutegoras se afastar do naturalismo apesar de o proacuteprio Kerferd afirmar que natildeo temos elementos para afirmar que Protaacutegoras era um contratualista como afirmou Guthrie147

No diaacutelogo Protaacutegoras o personagem homocircnimo diz que eacute por aprendizagem e praacutetica que a participaccedilatildeo dos cidadatildeos atenienses na poliacutetica se daacute ldquo[os atenienses] natildeo a consideram [a justiccedila] um dom natural ou efeito do acaso poreacutem algo que pode ser adquirido pelo estudo e aplicaccedilatildeordquo148 De forma semelhante a virtude natildeo eacute dada de modo natural por heranccedila mas sim ensinada pelos homens

muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser flautista mediacuteocre e vice-versa [] todo mundo eacute professor de virtude na medida de suas forccedilas por isso imaginas que natildeo haacute professores Do mesmo modo se perguntasses onde estatildeo os professores de liacutengua grega natildeo encontrarias um soacute149

Vecirc-se que Protaacutegoras natildeo tinha o traccedilo naturalista como um marco de virtude Ele parece desvinculaacute-la da necessidade por natureza e atribuiacute-la mais propriamente agrave praacutetica A virtude eacute ensinada praticada e natildeo herdada naturalmente No proacuteprio conviacutevio social a virtude eacute passada aos cidadatildeos Nele todos satildeo alunos e professores Segundo Guthrie150 eacute opiniatildeo acadecircmica majoritaacuteria que neste ponto o diaacutelogo retrate a opiniatildeo do proacuteprio Protaacutegoras

No mito de Protaacutegoras ele descreve como os homens viviam antes da formaccedilatildeo da poacutelis dispersos e dizimados por animais selvagens por serem mais fracos por natureza Ao receberem o pudor e a justiccedila de Zeus estabeleceram cidades e se organizaram politicamente em defesa de fins comuns como a sobrevivecircncia A postura poliacutetica (na poacutelis) do homem deve ser condizente com o pudor e justiccedila dados pelo deus ainda que somente de modo aparente151 Essa eacute a justificativa de Protaacutegoras para a necessidade do aprendizado da virtude A poliacutetica (e a eacutetica) deve estar voltada para o pudor e a justiccedila ainda que de modo aparente para manter o que haacute de mais baacutesico para o homem a proacutepria vida Para ele as leis tecircm efeito regulador de conduta ldquoquando [os alunos] saem da escola a cidade por sua vez os obriga a aprender leis [nomous] e a tomaacute-las como paradigma de conduta para que natildeo se deixem levar pela fantasia e praticar qualquer malfeitoriardquo152 Contudo mais agrave

145 Cf KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 146 Ibid p 246 147 Cf GUTHRIE apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 251 148 PLATAtildeO Protaacutegoras 323b In ______ Diaacutelogos Protaacutegoras ndash Goacuterigas ndash O Banquete ndash Fedatildeo Beleacutem UFPA 1980 p 59 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 149 Ibid p 64 150 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 64 151 Cf PLATAtildeO Protaacutegoras 322a-323b 152 Ibid 326c-d (grifos meus)

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

35

frente no diaacutelogo Platatildeo faz outro sofista Hiacutepias se valer da forccedila do argumento naturalista (do mesmo modo que Antifonte sobre gregos e baacuterbaros) para apaziguar a tensatildeo entre Soacutecrates e Protaacutegoras

todos noacutes somos parentes amigos e concidadatildeos natildeo por forccedila da lei [nomō] mas pela natureza [phusei] porque o semelhante eacute por natureza [phusei] igual ao semelhante ao passo que a lei [nomos] como tirania que eacute dos homens violenta muitas vezes a natureza [phusin]153

Logo em seguida o diaacutelogo passa agrave conveniecircncia da convenccedilatildeo para decidir

quem atuaraacute como aacuterbitro para o impasse entre os dois contendores Assim Soacutecrates convenciona que por natildeo haver ningueacutem presente melhor do que ele mesmo e Protaacutegoras todos seratildeo aacuterbitros154 Assim a soluccedilatildeo de Soacutecrates para o impasse foi nada mais que uma convenccedilatildeo um criteacuterio um noacutemos para ordenar o diaacutelogo

No diaacutelogo Teeteto o personagem Soacutecrates argumenta contra a posiccedilatildeo convencionalista de Protaacutegoras155 (histoacuterico) de que conceitos eacuteticos e morais (belo e feio justo e injusto pio e iacutempio) satildeo verdadeiros para cada cidade de acordo com suas convenccedilotildees Segundo Soacutecrates Protaacutegoras natildeo poderia afirmar que o que uma cidade legisla (convenciona) poderia ser infalivelmente proveitoso uma vez que ele nega a verdade como absoluta Apesar da criacutetica Soacutecrates reconhece a dificuldade se sua posiccedilatildeo Ele reconhece que natildeo dispotildee de um criteacuterio absoluto para a verdade ldquonatildeo dispomos de nenhum criteacuterio absoluto para dizer que encontramos o caminho certordquo156 Ainda assim Soacutecrates critica a ideia convencionalista de verdade como um consenso de opiniotildees provisoacuterio perene e natildeo universal Ele diz

acerca do que me referi haacute pouco o justo e o injusto o pio e o iacutempio os homens se comprazem em proclamar que nada disso eacute assim mesmo por natureza [phusei] nem tem existecircncia agrave parte mas que a opiniatildeo aceita por todos torna-se verdadeira nesse proacuteprio instante e todo o tempo em que lhe derem assentimento157

Ainda a respeito da perenidade e natildeo universalidade da visatildeo relativista do homem-medida de Protaacutegoras (e desta vez associada agrave do movimento de Heraacuteclito) e sua consequecircncia eacutetica (relativizar o conceito de justiccedila) ele diz

os adeptos da doutrina de ser o movimento a essecircncia uacuteltima das coisas e de que a realidade para cada indiviacuteduo eacute exatamente como lhe parece ser satildeo obrigados a aceitar no resto principalmente no que concerne agrave justiccedila que tudo quanto uma determinada cidade institui como lei eacute perfeitamente justo para essa cidade enquanto a lei natildeo for derrogada158

153 Ibid 337c-d (grifos meus) 154 Ibid 338b-e 155 Cf PLATAtildeO Teeteto In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 43-4 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 172a-b 156 Ibid 171c 157 Ibid 172b 158 Ibid 177c-d

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

36

Este argumento pretende consubstanciar a falibilidade no noacutemos como pedra de toque pois natildeo eacute universal nem eterno Soacutecrates questiona ldquoe seraacute que as cidades sempre acertam Natildeo se daraacute o caso de errarem e errarem muitordquo159 Ele claramente espera universalidade dos conceitos (no caso do conceito de ldquouacutetilrdquo) e como consequecircncia a perenidade das leis deles derivadas (a cidade legisla em vista do que eacute uacutetil) Neste sentido Soacutecrates afirma ldquoora este [o uacutetil universal] se estende tambeacutem para o futuro Sempre que legislamos eacute com a ideia de que essas leis possam ser vantajosas no tempo por vir sendo futuro precisamente a denominaccedilatildeo certa desse tempordquo160

Rejeitando o homem-medida de Protaacutegoras mas ao mesmo tempo reconhecendo natildeo ter um criteacuterio absoluto Soacutecrates apresenta o conhecimento especializando (techneacute) como melhor criteacuterio ou menos faliacutevel Assim o criteacuterio para indicaccedilatildeo do legislador seraacute ldquohaacute homens mais saacutebios do que outros e soacute estes servem de medidardquo161 Contudo o problema do criteacuterio permanece Como o homem do conhecimento seria eleito Quem ou o que seria o criteacuterio para eleger o homem-criteacuterio

No diaacutelogo Craacutetilo tambeacutem se vecirc a indicaccedilatildeo do homem saacutebio (que sabe olhar para a natureza [phusei] das coisas) para o papel de ldquoformador de nomesrdquo [dēmiourgon onomatōn]162 assim como a indicaccedilatildeo para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo deste ldquohomem de conhecimento especializadordquo que seria o usuaacuterio do produto deste conhecimento especializado163 Deste modo por analogia o criteacuterio para julgar a competecircncia do legislador seria o usuaacuterio das leis o que curiosamente retornaria a qualquer cidadatildeo recaindo no relativismo do homem-medida

Nesta mesma linha proacute-noacutemos Demoacutestenes tambeacutem considerava que a justiccedila estaacute nas leis Para ele a natureza carece de ordem o que eacute provido pela lei As leis formam um todo ordenado e universal sendo sempre as mesmas para todos e garantindo seguranccedila e um bom governo para a cidade de acordo com a conveniecircncia de todos Fossem elas abolidas seriacuteamos como animais selvagens164

Aristoacuteteles em alguns momentos na Poliacutetica se mostra proacute-noacutemos A respeito da escolha da melhor forma de governo Aristoacuteteles propotildee que antes eacute necessaacuterio que cheguemos a um acordo [homologeisthai] quanto agrave vida mais desejaacutevel para a comunidade E que para chegarmos agrave felicidade ele diz eacute faacutecil chegarmos a um consenso [convicccedilatildeo ndash pistin] de que os homens adquirem bens exteriores graccedilas agraves qualidades morais e natildeo o inverso165 E conclui ldquofique entatildeo acordado [sunōmologēmenon] entre noacutes que a felicidade de cada um deve ser proporcional agraves suas qualidades morais [] tomemos por testemunha a proacutepria divindade que eacute feliz [] por si mesma e por ser como eacute devido agrave sua proacutepria natureza [phusin]rdquo166 Natildeo haacute nestes trechos uma prescriccedilatildeo eacutetica baseada em fatos naturais positivos mas a posiccedilatildeo a favor do consenso natildeo eacute plena Aristoacuteteles ainda aqui recorre a uma medida absoluta de comparaccedilatildeo com o consenso a saber a divindade

159 Ibid 178a 160 Ibid 161 Ibid 179b 162 PLATAtildeO Craacutetilo In Diaacutelogos Teeteto - Craacutetilo Beleacutem UFPA 1988 p 111-2 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) 390e 163 Ibid 390b-c 164 DEMOacuteSTENES apud KERFERD G B O Movimento Sofista p 217 165 Cf ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1323a 166 Ibid 1323b

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

37

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assevera ldquoPara a seguranccedila do Estado eacute necessaacuterio [] ser entendido em legislaccedilatildeo [nomothesias] pois eacute nas leis [nomois] que estaacute a salvaccedilatildeo da cidaderdquo167 E em relaccedilatildeo a realizaccedilatildeo de contratos ele reconhece que este tem validade de lei

ldquoo contrato eacute uma lei [sunthēkē nomos estin] particular e parcial e natildeo satildeo os contratos [sunthēkai] que conferem autoridade agraves leis [ton nomon] mas satildeo as leis que tornam legais os contratos Em geral a proacutepria lei eacute uma espeacutecie de contrato [kata nomous sunthēkas] de

sorte que quem desobedece a um contrato ou o anula anula as leisrdquo168

Aqui natildeo haacute um paradigma absoluto que dite o certo o justo ou o bom Tambeacutem natildeo parece haver referecircncia a diferenccedilas entre leis escritas ou naturais (ou divinas) Com efeito os contratos satildeo obrigatoriamente consensuais natildeo podendo ser ldquoprinciacutepios naturais regentes da justiccedilardquo Desta forma Aristoacuteteles reconhece a importacircncia do consenso como lei sem qualquer recurso a universalidades

167 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1360a 168 Ibid 1376b (grifos meus)

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

38

4 POSICcedilOtildeES DE SIacuteNTESE

Alguns autores apresentam uma visatildeo conciliatoacuteria entre noacutemos e phyacutesis poreacutem chegando a conclusotildees bem diferentes

O texto sofiacutestico Anocircnimo de Jacircmblico (seacutec V aC) ― um texto anocircnimo encontrado no Protrepticus de Jacircmblico ― traz a discussatildeo da ldquoboa leirdquo (eunomia) Ribeiro esclarece a apresentaccedilatildeo da natureza neste texto ldquolsquonascerrsquo ou lsquoter o dom naturalrsquo como aquilo que eacute do domiacutenio do acaso do que natildeo depende de esforccedilo pessoal sendo precisamente o que depende de esforccedilo pessoal o que eacute digno de ser objeto de preocupaccedilatildeordquo169 Da mesma forma que Antifonte a natureza eacute vista nessa perspectiva como uma necessidade impositiva e fortuita dada ao acaso e sobre a qual o homem natildeo delibera Por isso ela tambeacutem eacute tida como fonte de verdade Contudo ao inveacutes de um antagonismo esse texto propotildee uma consonacircncia entre phyacutesis e noacutemos A lei eacute um recurso do homem um artifiacutecio que se segue agrave natureza O conviacutevio social do homem eacute visto como um aspecto natural e as leis satildeo necessaacuterias para tal

os homens nascem incapazes de viver cada um por si se cedendo agrave

necessidade vatildeo ao encontro uns dos outros [] Natildeo eacute possiacutevel que eles estejam uns com os outros e levem a vida na ilegalidade (pois lhes seria um castigo maior acontecer isso do que aquele regime de cada um por si) Por causa dessas necessidades com efeito a lei e a justiccedila reinam entre os homens [] Por natureza [phusei] pois elas estatildeo fortemente ligadas170

Guthrie comparou Anocircnimo de Jacircmblico Platatildeo e Protaacutegoras Ele ressalta que

o Anocircnimo considera os dons naturais determinantes para o sucesso do homem contudo satildeo meros frutos do acaso O homem deve se empenhar naquilo que pode deliberar para mostrar que ele deseja o bem Esse esforccedilo deve ser uma atividade de longa duraccedilatildeo para que se torne uma areteacute Essa era a mesma visatildeo de Platatildeo a respeito da virtude como moral o uso de dons naturais em prol da lei e justiccedila para o benefiacutecio do maior nuacutemero possiacutevel de pessoas Contudo segundo Guthrie Platatildeo fazia uma conciliaccedilatildeo entre noacutemos e phyacutesis pressupondo uma mente superior conformadora (a supreme designing mind171) da natureza e natildeo uma sucessatildeo de acidentes Protaacutegoras tambeacutem vecirc tanto a parte natural quanto praacutetica como importantes mas a praacutetica seria apenas uma techneacute em especial a retoacuterica sem um valor moral como na areteacute O mito de Protaacutegoras mostra como ele compreendia a forma bestial e desmedida em que o homem vivia no estado primitivo de natureza e como ele considerava a lei um ordenamento da natureza pelo homem uma capacidade do homem de superar seu estado de natureza172

169 RIBEIRO L F B Prefaacutecio In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Rio de Janeiro Hexis Editora 2012 p 7 170 ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO In ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmblico ― Anocircnimos Sofiacutesticos p 59 DK 61 (grifos meus) 171 Cf GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy III p 73 172 Ibid p 71-3

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

39

O Anocircnimo citado por Jacircmblico exalta o estado nato do homem ou melhor sua necessidade de nascenccedila (natural) de viver em conjunto como base soacutelida para justificar a lei A ilegalidade corrompe o bom conviacutevio social hipoacutetese que ele utiliza para justificar a obediecircncia agrave lei Assim o sofista anocircnimo ldquonaturalizardquo a lei por esta ser decorrente de uma necessidade natural humana

Para levar sua argumentaccedilatildeo ao extremo ele supotildee uma espeacutecie de super-homem ldquoinvulneraacutevel imune a doenccedilas impassiacutevel superdotado e forte como accedilordquo173 Ainda que sua ambiccedilatildeo o fizesse agir como se natildeo se submetesse agrave lei a uniatildeo dos demais homens que a obedecem o sobrepujaria Assim vecirc-se que a natureza por ser necessaacuteria e fortuita (livre da deliberaccedilatildeo humana) eacute a fonte de verdade da qual o noacutemos do homem social deve partir A vida em sociedade eacute vista pelo sofista citado por Jacircmblico como um fato natural logo as leis decorrentes do conviacutevio social adquirem a mesma forccedila de uma necessidade natural Desta forma o noacutemos entra em consonacircncia com a phyacutesis torna-se inviolaacutevel ateacute mesmo em casos de dissidecircncia extrema

Vale lembrar que Caacutelicles como vimos com este mesmo exemplo do Anocircnimo argumentaria que a superioridade natural de tal indiviacuteduo eacute justificativa para que ele exerccedila o ldquodomiacutenio naturalrdquo sobre os mais fracos Ou seja para Caacutelicles a justiccedila eacute da natureza Por sua vez o Anocircnimo de Jacircmblico aplica a naturalizaccedilatildeo sobre a necessidade de socializaccedilatildeo do homem e por consequecircncia a naturalizaccedilatildeo do noacutemos Ou seja eacute por uma necessidade natural de ordem social que o homem produz as leis daiacute a postura mediatriz entre noacutemos e phyacutesis Assim aquele indiviacuteduo superior seria naturalmente contido pela ordem dos mais fracos Curiosamente vemos o argumento naturalista sendo usado com resultados opostos Um para justificar a dominaccedilatildeo do mais forte e outro para justificar a uniatildeo pactuada e ordenada pelo noacutemos dos mais fracos Esta visatildeo do Anocircnimo mostra como o homem pode ser ldquoartificial por naturezardquo ou melhor como o artifiacutecio do noacutemos eacute uma condiccedilatildeo natural do homem

Aristoacuteteles natildeo apresenta uma postura uniforme em relaccedilatildeo ao dualismo em questatildeo Na Eacutetica a Nicocircmacos ele diz que as ldquoaccedilotildees boas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga parecem muito variadas e vagas a ponto de se poder considerar sua existecircncia apenas convencional [nomō] e natildeo natural [phusei]rdquo174 Essa eacute uma postura antagocircnica agrave visatildeo platocircnica de bem De fato Aristoacuteteles recusa expressamente a teoria das Formas de Platatildeo Neste caso em particular ele recusa a ideia de um bem universal pelo fato de o ldquobemrdquo incidir tanto na categoria da substacircncia quanto na do acidente Sendo a substacircncia a categoria ontologicamente autocircnoma a forma de bem natildeo deveria incidir em ambas Ele afirma ldquoo termo lsquobemrsquo eacute usado igualmente nas categorias de substacircncia de qualidade e de relaccedilatildeo e o que existe por si ou seja a substacircncia eacute anterior por natureza ao relativo [] natildeo poderia entatildeo haver uma Forma comum a ambos estes bensrdquo175 E ainda ldquolsquobem em sirsquo e determinados bens natildeo diferiratildeo enquanto eles forem bonsrdquo176 A teoria das Formas eacute uma forma de

173 ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS DISCURSOS DUPLOS E ANOcircNIMO DE JAcircMBLICO ― ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOSp 61 DK 62 174 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos I3 1094b 175 Ibid I6 1096a 176 Ibid I6 1096b Talvez a melhor traduccedilatildeo fosse ldquo[] enquanto eles forem bensrdquo Cf Rackman H ldquono more will there be any difference between lsquothe Ideal Goodrsquo and lsquoGoodrsquo in so far as both are goodrdquo Disponiacutevel em

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

40

universalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo da dificuldade de se estabelecer consenso ou ainda de se promulgar um noacutemos Dessa forma Aristoacuteteles reforccedila a sua postura eacutetica de que o bom e o justo satildeo convencionais

Contudo Aristoacuteteles assume uma postura convergente entre os polos do dualismo ainda na Eacutetica a Nicocircmacos ao analisar as maneiras de se alcanccedilar a eudaimoniacutea Ele conclui que dentre obtecirc-la graccedilas agrave sorte como um presente dos deuses177 ou por aprendizado e esforccedilo eacute melhor que seja desta forma pois este eacute o modo natural de se alcanccedilaacute-la O filoacutesofo diz

quem quer natildeo seja deficiente quanto agrave sua potencialidade para a excelecircncia tem aspiraccedilotildees a atingi-la mediante certo tipo de aprendizado e esforccedilo Mas se eacute melhor ser feliz assim do que por sorte eacute razoaacutevel supor que eacute assim que se atinge a felicidade pois tudo que ocorre segundo a natureza [kata phusin] eacute naturalmente tatildeo bom quanto pode ser o mesmo acontece com tudo que depende da arte ou de qualquer coisa racional 178

Aqui vemos entatildeo mais um caso da tiacutepica postura de mediania do filoacutesofo a

saber a naturalizaccedilatildeo da potecircncia (a aspiraccedilatildeo a se alcanccedilar a excelecircncia) seguida do haacutebito ou seja a praacutetica da arte e da razatildeo humana Aprendizado e esforccedilo satildeo meios (e por que natildeo artifiacutecios) que o homem deve empreender para seguir sua natureza sua potencialidade natural Quanto a isso Aristoacuteteles tambeacutem diz nesta obra

natildeo somos bons ou maus nem louvados ou censurados pela simples faculdade de sentir as emoccedilotildees ademais temos as faculdades por natureza [phusei] mas natildeo eacute por natureza que somos bons ou maus [agathoi de ē kakoi ou ginometha phusei] [] Entatildeo se as vaacuterias

espeacutecies de excelecircncia moral natildeo satildeo emoccedilotildees nem faculdades soacute lhes resta serem disposiccedilotildees179

E ainda ldquonem por natureza nem contrariamente agrave natureza [out ara phusei oute

para phusin] a excelecircncia moral eacute engendrada em noacutes mas a natureza nos daacute [pephukosi] a capacidade de recebecirc-la e esta capacidade se aperfeiccediloa com o haacutebitordquo180 Para o autor a nossa potencialidade que eacute natural mas a praacutetica de seus atos nas relaccedilotildees com outras pessoas eacute que leva o homem agrave excelecircncia moral eacute o que o tornaraacute justo ou injusto181 Contudo a praacutetica deveraacute ter sua medida sob pena de se perder a excelecircncia moral natural minus ldquo a excelecircncia moral eacute constituiacuteda por natureza [toiauta pephuken] de modo a ser destruiacuteda pela deficiecircncia ou pelo excessordquo182 Aristoacuteteles deixa esta dicotomia entre o natural e o habitual no homem bem claro neste trecho da Poliacutetica

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker+page3D1096b3Abekker+line3D1gt Acesso em 18 mar 2016 177 Cf supra I9 1099b 178 Ibid 179 Ibid II5 1106a (grifo meu) 180 Ibid II1 1103a 181 Cf supra II1 1103b 182 Ibid II2 1104a

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

41

e as trecircs satildeo a natureza [phusis] o haacutebito e a razatildeo Primeiro a natureza [phunai] deve fazer nascer um homem e natildeo outro animal

qualquer depois o homem deve nascer com certas qualidades de corpo e alma [mas183] natildeo haacute utilidade alguma nascer com certas qualidades pois nossos haacutebitos podem levar-nos a alteraacute-las (algumas qualidades satildeo naturalmente [phuseōs] sujeitas a ser

modificas pelos haacutebitos para pior ou para melhor)184

Com isso mais uma vez retornamos agrave questatildeo da inexorabilidade da

interpretaccedilatildeo humana para se compreender o que eacute natural Afinal a deduccedilatildeo de Aristoacuteteles de que a nossa potecircncia para a excelecircncia moral eacute natural e que devermos alinhar com ela o nosso haacutebito natildeo foi uma interpretaccedilatildeo

A consequecircncia eacutetica e moral da postura de Aristoacuteteles seraacute a de que o homem eacute responsaacutevel por sua disposiccedilatildeo moral (cf citaccedilatildeo 179) Natildeo deveraacute o homem escapar agrave responsabilidade por seus atos baseados em juiacutezos de bem ou mal alegando natildeo ser responsaacutevel pelo modo como o bem se lhe apresenta185 Afinal ldquoas disposiccedilotildees do nosso caraacuteter satildeo resultado de uma determinada maneira de agir Entatildeo eacute irracional supor que um homem que age injustamente natildeo deseja ser injustordquo186 Em defesa dessa posiccedilatildeo mediatriz Aristoacuteteles elabora uma intrincada proposiccedilatildeo associando como visto a potencialidade natural do homem (uma espeacutecie de visatildeo moral) sobre qual natildeo delibera e seu juiacutezo moral (voluntaacuterio) Seu propoacutesito eacute refutar o argumento que diz que o homem natildeo pode ser responsaacutevel pelo modo como o bem aparece para ele e que o os fins [to telos] se lhe apresentam meramente de forma correspondente ao seu caraacuteter independentemente de sua deliberaccedilatildeo Contudo segundo ele o homem deve ser responsaacutevel por aceitar apenas a aparecircncia do bem187 Assim se o homem estaacute ciente de que estaacute sujeito apenas agrave aparecircncia natildeo poderaacute se eximir da responsabilidade de seus atos alegando um bem absoluto o qual dispensaria sua deliberaccedilatildeo

Desta forma Aristoacuteteles propotildee duas situaccedilotildees opostas para concluir que de uma forma ou de outra o homem eacute responsaacutevel tanto por sua excelecircncia quanto por sua deficiecircncia moral Essas situaccedilotildees opostas satildeo de um lado a hipoacutetese naturalista de que a visatildeo moral do homem lhe eacute conferida ao nascer (a potecircncia natural) e por outro lado a hipoacutetese de uma condiccedilatildeo interpretativa em que tudo seraacute interpretaccedilatildeo do homem Sendo que em ambos os casos no final o homem ainda delibera sobre seus atos sendo portanto responsaacutevel por eles A respeito da primeira situaccedilatildeo diz ele

O fim [tou telous] a que se visa natildeo eacute escolhido automaticamente mas cada pessoa deve ter nascido [phunai] com uma espeacutecie de visatildeo moral graccedilas agrave qual a pessoa forma um juiacutezo correto e escolhe o que eacute realmente bom e seraacute naturalmente bem dotado [euphuēs] quem for

183 A traduccedilatildeo de H Rackham introduz esse ldquomasrdquo (but) que parece fazer mais sentido ao contexto Disponiacutevel em lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100583Abook3D73Asection3D1332agt Acesso em 02 mar 2016 184 ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1332a 185 Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III5 1114b 186 Ibid III5 1114a 187 Cf supra III5 1114b

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

42

bem dotado [kalōs pephuken] sob esse aspecto De fato esta visatildeo

moral eacute a daacutediva maior e mais nobre da natureza e eacute algo que natildeo podemos obter ou aprender de outras pessoas mas devemos ter tal como nos foi dado ao nascermos [hoion ephu toiouton hexei] ser bem

e superiormente dotado sob este aspecto constituiraacute a excelecircncia perfeita e verdadeira em termos de dons naturais [euphuia]188

Ateacute poder-se-ia pensar que se a visatildeo moral eacute natural (inata) o homem poderia estar isento da responsabilidade moral de seus atos Contudo logo em seguida o filoacutesofo estagirita embarga a diferenccedila entre excelecircncia e deficiecircncia moral quanto agrave questatildeo da voluntariedade Ambos satildeo igualmente voluntaacuterios Os fins dados pela natureza devem ser relacionados com os fins com que as pessoas decidem praticar suas accedilotildees Nesta relaccedilatildeo a deliberaccedilatildeo humana deve estar presente igualmente tanto na excelecircncia quanto na deficiecircncia moral Logo ainda sob esta visatildeo naturalista o homem deve ser responsaacutevel pelo bem e pelo mal que pratica Eis sua conclusatildeo acerca desta primeira situaccedilatildeo

Se esta teoria corresponde agrave verdade entatildeo como poderia a excelecircncia moral ser mais voluntaacuteria que a deficiecircncia moral Em ambos os casos igualmente ndash para a pessoa boa e para a maacute ndash os fins [to telos] aparecem e satildeo fixados pela natureza [phusei] ou seja pelo que for e eacute relacionando tudo mais com os fins que as pessoas praticam todas e quaisquer accedilotildees189

Na segunda situaccedilatildeo Aristoacuteteles propotildee uma condiccedilatildeo interpretativa quanto agrave moralidade dos atos humanos oposta ao quesito naturalista visto na primeira O importante a ser notado eacute que em qualquer uma das situaccedilotildees o homem eacute responsaacutevel pelo bem (excelecircncia moral) e pelo mal (deficiecircncia moral) de seus atos o que refuta qualquer proposta de isenccedilatildeo (Cf citaccedilatildeo 186) Quanto a isto diz ele

Se natildeo eacute por natureza [phusei] entatildeo que os fins aparecem a cada pessoa tais como satildeo de tal forma que algo tambeacutem depende da pessoa [condiccedilatildeo interpretativa] ou se os fins satildeo naturais [telos phusikon] mas pelo fato de o homem bom adotar voluntariamente os meios a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria [condiccedilatildeo naturalista] a deficiecircncia moral tambeacutem natildeo seraacute menos voluntaacuteria com efeito no homem mau tambeacutem estaacute presente aquilo que depende dele mesmo em suas accedilotildees [] Se [] a excelecircncia moral eacute voluntaacuteria (e de

fato noacutes mesmos somos de certo modo ao menos em parte a causa de nossas disposiccedilotildees morais e eacute por termos um certo caraacuteter que determinamos que os fins devem ser de certa espeacutecie) a deficiecircncia moral tambeacutem deve ser voluntaacuteria pois as mesmas consideraccedilotildees se lhe aplicamrdquo190

A respeito de justiccedila poliacutetica Aristoacuteteles considera que ela seja em parte natural [phusikon] e em parte legal [nomikon] ou convencional A justiccedila natural eacute universal (igual em todos os lugares) e independente da nossa vontade como a justiccedila dos

188 Ibid III5 1114b (grifos meus) 189 Ibid (grifos meus) 190 Ibid (grifos meus)

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

43

deuses por exemplo A justiccedila dos homens eacute mutaacutevel embora exista algo verdadeiro por natureza191 Aqui notamos que a justiccedila humana natildeo segue a verdade da natureza portanto natildeo eacute universal mas sim mutaacutevel Apesar de a justiccedila natural ser universal Aristoacuteteles considera que em alguns casos ela seja mutaacutevel no sentido de que o homem pode escolher outra alternativa

a matildeo direita eacute mais forte por natureza [phusei] mas eacute possiacutevel que

qualquer pessoa se torne ambidestra As coisas que satildeo justas apenas por convenccedilatildeo [kata sunthēkēn] e conveniecircncia satildeo como se fossem instrumentos para mediccedilatildeo de fato as medidas para vinho e trigo natildeo satildeo iguais em toda parte sendo maiores nos mercados atacadistas e menores nos varejistas De maneira idecircntica as coisas que satildeo justas natildeo por natureza [phusika] mas por decisotildees humanas natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares jaacute que as constituiccedilotildees natildeo satildeo tambeacutem as mesmas embora haja apenas uma [mia monon] que em todos os lugares eacute a melhor por natureza [kata phusin hē aristē]192

Em relaccedilatildeo a este trecho da Eacutetica a Nicocircmacos em que Aristoacuteteles concilia o que eacute justo por lei com o que eacute justo por natureza Wolf interpreta com clareza

o que eacute fixo e imutaacutevel natildeo eacute um criteacuterio adequado para o que eacute conforme agrave natureza pois este regula as relaccedilotildees humanas vitais que satildeo mutaacuteveis modificando-as assim junto com essas relaccedilotildees Em relaccedilatildeo agrave melhor das poacutelis eacute possiacutevel determinar de maneira abstrata como justo aquele direito vigente na melhor constituiccedilatildeo poliacutetica possiacutevel que melhor corresponde agrave natureza humana Todavia como veremos no contexto da equidade em V 14193 a melhor das constituiccedilotildees representa o que eacute justo apenas de maneira geral o que precisa adaptar-se agraves circunstacircncias mutaacuteveis para ser empregado194

Nota-se entatildeo um reconhecimento da relevacircncia em ambos os polos do dualismo De um lado o reconhecimento de que haacute um universal ― ldquoa melhor de todas as constituiccedilotildeesrdquo ― por outro o reconhecimento de que eacute a convenccedilatildeo variaacutevel ― a constituiccedilatildeo de cada lugar ― que de fato vigora e que eacute de fato justa

A mesma proposiccedilatildeo (a existecircncia de um universal poreacutem com reconhecimento de que o efetivo eacute o convencional) pode ser vista no Poliacutetico

Ora no momento em que buscamos a constituiccedilatildeo verdadeira essa divisatildeo [conformidade ou desacordo com as leis] natildeo era necessaacuteria como demonstramos Entretanto afastada essa constituiccedilatildeo perfeita e aceitas como inevitaacuteveis as demais a legalidade e a ilegalidade

constituem em cada uma delas um princiacutepio de dicotomia [] A

191 Cf supra V7 1134b 192 Ibid V5 1134b-5a (grifo meu) 193 Para Aristoacuteteles equidade eacute ldquouma correccedilatildeo da lei onde esta eacute omissa devido agrave sua generalidaderdquo ou seja nos casos particulares Essa generalidade pode ter sido intencional ou natildeo por parte do legislador cabendo ao ldquoaacuterbitrordquo ajustar a lei ao caso particular Cf ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos V10 1137b 1374a-b 194 WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles p 100

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

44

monarquia unida a boas regras escritas a que chamamos leis [nomous] eacute a melhor das seis constituiccedilotildees195

Apesar de buscar o ideal absoluto (a constituiccedilatildeo verdadeira) que dispensaria ateacute mesmo o juiacutezo de ilegalidade Aristoacuteteles reconhece a inevitabilidade do noacutemos a saber as demais constituiccedilotildees imperfeitas e as leis

Na Retoacuterica Aristoacuteteles assume novamente uma posiccedilatildeo mediatriz ldquoOra a lei [nomos] ou eacute particular ou comum Chamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todos [para pasin homologeisthai dokei]rdquo196

195 PLATAtildeO Poliacutetico 302e (grifo meu) 196 ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1368b

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

45

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

No dualismo noacutemos-phyacutesis repousa o paradoxo em que o homem eacute tanto lsquoartificial por naturezarsquo quanto lsquonatural por artifiacuteciorsquo Artificial por natureza pois o artifiacutecio que inclui a capacidade de interpretar (aleacutem de suas technai) eacute uma capacidade natural do homem E natural por artifiacutecio pois eacute pelo artifiacutecio da interpretaccedilatildeo que ele constata ou ldquodecreta o que eacute naturalrdquo como na falaacutecia naturalista Assim o noacutemos humano eacute tanto uma condiccedilatildeo da cultura humana para que faccedila sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica quanto um produto dessa mesma interpretaccedilatildeo haja vista toda lei convenccedilatildeo regra acordo etc serem produtos de interpretaccedilatildeo Interpretaccedilatildeo esta que por sua vez depende desde o iniacutecio destas mesmas regras ou normas que ela proacutepria produz fazendo portanto girar um ciacuterculo paradoxal

A respeito deste relativismo da interpretaccedilatildeo humana que desbanca a pretensatildeo agrave universalidade do argumento naturalista conveacutem lembrar dois fragmentos de Xenoacutefanes

Mas se matildeos tivessem os bois os cavalos e os leotildees e pudessem com as matildeos desenhar e criar obras como os homens os cavalos semelhantes aos cavalos os bois semelhantes aos bois desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles proacuteprios tecircm197 Os egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivos198

Vimos que a postura naturalista foi usada na filosofia antiga (incluindo a sofiacutestica) assim como na trageacutedia grega para defender posiccedilotildees eacuteticas muito diferenciadas desde poliacuteticas de equidade a poliacuteticas de hierarquia

Antifonte propocircs equidade poliacutetica e social entre os homens baseada em igualdade natural desbancando justificativas para guerra (entre baacuterbaros e gregos) por exemplo Tambeacutem propocircs um modo de viver em consonacircncia com a natureza (ldquoa verdaderdquo) o que fatalmente dependeria de interpretaccedilatildeo para reconhecer seus desiacutegnios

O naturalismo de Platatildeo eacute patente em diversas aacutereas eacutetico-poliacuteticas A raiz principal da estrutura de seu argumento naturalista assim como de Aristoacuteteles estaacute na ldquofunccedilatildeo por naturezardquo Aqui conveacutem destacar a diferenccedila entre teleologia natural e artificial o que os autores parecem natildeo se preocupar em fazer Ora podemos mesmo a partir de objetos manufaturados que indubitavelmente tiveram uma ldquofunccedilatildeo a que se destinamrdquo preconcebida pelo criador concluir que o mesmo se aplica a objetos naturais Podemos mesmo inferir que o filoacutesofo (ou qualquer outra versatildeo de ldquohomem do conhecimentordquo em Platatildeo e Aristoacuteteles) tem a funccedilatildeo natural de governar a partir da observaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da faca eacute cortar Nesta seara separatista entre noacutemos

197 XENOacuteFANES Fr 15 DK In Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 70 (Coleccedilatildeo Os Pensadores) 198 Ibid Fr 16 DK

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

46

e phyacutesis natildeo podemos igualar as teleologias Se um produto do artifiacutecio humano teve sua funccedilatildeo elaborada no seu processo de produccedilatildeo natildeo podemos dizer que o mesmo se a aplica um produto natural haja vista a visatildeo cosmoloacutegica natildeo ser universal Cabe destacar aqui a rivalidade entre a cosmologia da ciecircncia e a da teologia por exemplo Com exceccedilatildeo da arte um objeto manufaturado desconhecido recebe a pergunta ldquopara que serverdquo sem quaisquer problemas formais O mesmo natildeo acontece para objetos naturais

Platatildeo aplica seu conceito de Ideia agrave justiccedila ao bem e a outros juiacutezos morais para alcanccedilar uma universalidade imutaacutevel e sobrepujar as dissensotildees inerentes ao noacutemos Essa proposta visa a dispensar as interpretaccedilotildees individuais para se obter o assentimento comum destas ideias Contudo natildeo eacute possiacutevel eleger sem o noacutemos o homem capaz de acessar aquelas ideias A rejeiccedilatildeo ao consenso como fonte de determinaccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas eacute evidente nos diaacutelogos Poliacutetico Protaacutegoras Repuacuteblica e Leis como vimos Em Teeteto Platatildeo aponta o problema da perenidade do noacutemos e a necessidade de algo eterno e universal Poreacutem ainda que se concorde com essa necessidade seraacute possiacutevel escapar ao noacutemos Em vaacuterios momentos como ficou demonstrado os personagens precisam entrar em acordo acerca das determinaccedilotildees universais ou de criteacuterios para determinaacute-las Aristoacuteteles tambeacutem precisa recorrer ao noacutemos para eleiccedilatildeo da melhor forma de governo como vimos na Poliacutetica e para a validaccedilatildeo de contratos como leis (ldquoa salvaccedilatildeo da cidaderdquo) na Retoacuterica

O naturalismo de Aristoacuteteles tambeacutem pressupotildee a funccedilatildeo natural Com ela o filoacutesofo pretendeu justificar a escravidatildeo a superioridade masculina (Platatildeo tambeacutem a defende em Leis) superioridade natural entre povos (justificando a guerra) dentre outros Como vimos Aristoacuteteles diz que a escravidatildeo natural eacute mutuamente vantajosa para o senhor e para o escravo Poreacutem sua uacutenica explicaccedilatildeo para a vantagem do escravo em seguir sua ldquoaptidatildeo natural de servirrdquo eacute obter ldquoseguranccedilardquo Segundo Aristoacuteteles a escravidatildeo por via do haacutebito ou costume (como a dos prisioneiros de guerra) perde essa ldquovantagem naturalrdquo do muacutetuo interesse O problema do criteacuterio para a determinaccedilatildeo do escravo natural se impotildee Quem ou como se determina quais homens satildeo naturalmente escravos Teriacuteamos de ter um criteacuterio natural ou um juiz natural tambeacutem e o mesmo problema para se determinar este juiz ou criteacuterio redundando ao infinito

Aristoacuteteles tambeacutem parece se descuidar ao deixar as teleologias natural artificial e teoloacutegica se entremearem Ao citar Antiacutegona na Retoacuterica por exemplo ele deixa o argumento expressamente teoloacutegico da personagem se imiscuir sutilmente agrave sua proposta naturalista de ldquoprinciacutepio da naturezardquo ou de ldquoordem naturalrdquo mencionada na Poliacutetica que define o direcionamento eacutetico O mesmo ocorre com a funccedilatildeo das partes do corpo na Eacutetica a Nicocircmacos Vimos que ele conclui a partir da observaccedilatildeo da atividade das partes do corpo a funccedilatildeo do homem como um todo ou da alma E baseado nisso prescreve uma seacuterie de determinaccedilotildees eacuteticas

O maior defensor do noacutemos como referecircncia eacutetico-poliacutetica parece ter sido Protaacutegoras O sofista argumenta que as leis e os costumes de cada cultura constituem a verdade para aquele povo ou seja a verdade eacute relativa ao homem em seu meio social com seus costumes Protaacutegoras natildeo mostra uma preocupaccedilatildeo com um paradigma eterno e imutaacutevel mas sim com o relativismo do seu homem-medida

Dos autores que conciliaram noacutemos e phyacutesis o texto do Anocircnimo de Jacircmblico parece ser o uacutenico com uma posiccedilatildeo uniacutevoca Ele propotildee a necessidade natural de se criar leis para o bom conviacutevio social Aristoacuteteles por outro lado teve momentos de

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

47

posicionamento em mediatriz permeando seu evidente caraacuteter naturalista Ele o faz principalmente na Eacutetica a Nicocircmacos para evitar que o homem use o argumento naturalista a pretexto de se furtar agrave responsabilidade por seus atos alegando estar tudo previamente dado (e ldquodecididordquo) pela natureza

Por fim este trabalho mostrou as formas de apresentaccedilatildeo do dualismo noacutemos-phyacutesis na filosofia antiga pretendendo expor claramente onde subjazem as justificativas de seus autores para as suas prescriccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas Por vezes essas justificativas satildeo apresentadas com sutileza requerendo grande atenccedilatildeo do leitor

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

48

6 FONTES

Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

ARISTOacuteTELES De Anima Trad Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34 2006

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos 2ordf ed Trad Maacuterio Gama Kury Brasiacutelia Edunb

1992

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Trad Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Edunb 1985 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo F Alberto Abel N

Pena Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2012 (Coleccedilatildeo Obras Completas de Aristoacuteteles)

ANNAS J An Introduction to PLATOacuteS REPUBLIC Nova York Oxford University

Press 1981

ANOcircNIMOS SOFIacuteSTICOS Discursos Duplos e Anocircnimo de Jacircmbico ― Anocircnimos Sofiacutesticos Trad Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro Adiel Mittmann Dante Carvalho Targa Rio de Janeiro Hexis Editora 2012

ANTIFONTE Antifonte Testemunhos Fragmentos Discursos Trad Luiacutes Felipe

Bellintani Ribeiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008

CASSIN B Ensaios Sofiacutesticos Trad Ana Luacutecia de Oliveira e Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Satildeo Paulo Siciliano 1990

CASSIN B LORAUX N PESCHANSKI C Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A

Cidade e Seus Outros Trad Ana Luacutecia de Oliveira Luacutecia Claacuteudia Leatildeo Rio de Janeiro Editora 34 1993

CASSIN B O Efeito Sofiacutestico Trad Ana Luacutecia de Oliveira Maria Cristina Franco

Ferraz Paulo Pinheiro Satildeo Paulo Editora 34 2005 CHAcircTELET F DUHAMEL O PISIER E Dicionaacuterio das Obras Poliacuteticas Trad

Gloacuteria Lins e Manoel Ferreira Paulino Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1993

GUTHRIE WKC A History of Greek Philosophy 6 v Cambridge Cambridge

University Press 1965 III

GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University 1993

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia

49

HERAacuteCLITO Heraacuteclito fragmentos contextualizados Trad Alexandre Costa Satildeo Paulo Ed Odysseus 2012

KERFERD G B O Movimento Sofista Trad Margarida Oliva Satildeo Paulo Ediccedilotildees

Loyola 2003

MOORE G E Principia Ethica Cambridge Cambridge University Press 1922

NUSSBAUM M C A Fragilidade da Bondade Fortuna e eacutetica na trageacutedia e na filosofia grega Trad Ana Aguiar Cotrim Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

Os Preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

PLATAtildeO A Repuacuteblica 9ordf ed Trad Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001 PLATAtildeO Leis e Epiacutenomis Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo

Diaacutelogos) PLATAtildeO O Banquete Feacutedon Sofista Poliacutetico Trad Joseacute Cavalcante de Souza

Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Nova Cultural 1987 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Protaacutegoras ndash Goacutergias ndash O Banquete ndash Fedatildeo Trad Carlos Alberto Nunes

Beleacutem UFPA 1980 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Teeteto - Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Beleacutem UFPA 1988 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos)

PLATAtildeO Timeu ndash Criacutetias ndash O 2ordm Alcibiacuteades ndash Hiacutepias Menor Trad Carlos Alberto

Nunes Beleacutem UFPA 1986 (Coleccedilatildeo Diaacutelogos) RIBEIRO L F B Filosofia e Doxografia O Artefato Antifonte Rio de Janeiro Hexis

Editora 2012 (Estudos Claacutessicos) SOacuteFOCLES Antiacutegona 2ordf ed Trad Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro

DIFEL 2006

WOLF U A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Gianchini 2ordf ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 posiccedilotildees proacute-phyacutesis
  • 3 posiccedilotildees proacute-noacutemos
  • 4 posiccedilotildees de siacutentese
  • 5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
  • 6 FONTES
    • Referecircncias Bibliograacuteficas e Bibliografia