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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA As porteiras foram abertas: Cidadania e sufrágio feminino no Rio Grande do Norte JULIANA MAIA MENDES Natal 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

As porteiras foram abertas:

Cidadania e sufrágio feminino no Rio Grande do Norte

JULIANA MAIA MENDES

Natal

2016

JULIANA MAIA MENDES

As porteiras foram abertas:

Cidadania e sufrágio feminino no Rio Grande do Norte

Monografia apresentada ao Curso de História da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como

requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel

em História.

Orientador: Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque

Júnior.

Natal

2016

JULIANA MAIA MENDES

As porteiras foram abertas:

Cidadania e sufrágio feminino no Rio Grande do Norte

Monografia apresentada ao Curso de História da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como

requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel

em História.

Natal, ____ de ___________ de _______.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior (Orientador)

Prof. Dr. Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior (Examinador)

Profª. Drª. Vanessa Spinosa (Examinadora)

Àquelas que acreditaram, com amor.

Agradecimentos

À minha mãe, por ter sido o meu primeiro e grande exemplo de luta e superação

feminina. Por ter me apoiado durante todas as escolhas da minha vida, obrigada.

Aos meus avós e pai, pelo amor, compreensão e carinho. Minha trajetória acadêmica

não teria sido possível sem as suas presenças.

Aos meus amigos, bichos e a todos que passaram pela minha vida. Quem eu fui, sou e

me tornarei é graças a vocês.

Aos professores que tive ao longo da vida e, especialmente, àqueles que conheci, aprendi

e cresci ao longo do curso, pelo desenvolvimento enquanto profissional e ser humano.

Ao meu orientador, Durval, por ter estado presente do meu primeiro ao último semestre

de curso. Exemplo de pesquisador, professor e pessoa, essa monografia não existiria sem o seu

suporte.

E a todas as mulheres que lutam e sofrem diariamente, que não desistamos.

Resumo

O presente trabalho aborda a trajetória da conquista do sufrágio feminino no Rio Grande

do Norte. Para isso, é abordado o desenvolvimento dos movimentos sufragistas ao redor do

mundo e a adaptação de seus argumentos e ideais pela campanha feminista brasileira. Assim,

analisaremos o papel do parlamentar e presidente do Estado Juvenal Lamartine, na defesa e

implantação pioneira do voto feminino no Rio Grande do Norte, entendendo a razão e de que

maneira os ideais feministas foram apropriados à realidade potiguar, tornando este o primeiro

território a institucionalizar o voto feminino.

Palavras-chave: Feminismo; Sufrágio Feminino; Juvenal Lamartine; Cidadania política.

Sumário

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................................8

1. A primeira onda feminista .....................................................................................................11

1.1 O sufrágio nasce como ideia: emancipação feminina em palavras ..........................12

1.2 Das ideias a ações: luta feminista ao redor do mundo ..............................................16

1.3 O feminismo bem-comportado brasileiro: Bertha Lutz e a Federação Brasileira pelo

Progresso Feminino ..................................................................................................................20

2. À procura das chaves da porteira: o sufrágio chega ao Rio Grande do Norte .........................24

2.1 Juvenal Lamartine, o feminista ................................................................................25

2.2 Feminismo em letras de imprensa: o movimento nas páginas de jornal ...................31

2.3 O outro lado da moeda: Escola Doméstica e ideal feminino ....................................34

3. Abrem-se as porteiras: o sufrágio feminino acontece em terras potiguares ...........................39

3.1 Lei nº 660, 25 de outubro de 1927 ............................................................................39

3.2 Do Rio Grande do Norte, com amor: a notícia e o voto tomam o mundo .................44

3.3 Chegamos ao judiciário: a consolidação do sufrágio feminino no Rio Grande do

Norte .........................................................................................................................................48

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................54

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....................................................................................56

8

Introdução

As mulheres brasileiras conquistaram o direito de votar e serem votadas em âmbito

nacional em fevereiro de 1932, depois que Getúlio Vargas assina o decreto nº 21.076. Só dois

anos depois ele é confirmado pela Constituição de 1934. O Rio Grande do Norte, porém, foi

pioneiro neste aspecto, se adiantando cerca de cinco anos, com a Lei nº 660 de 25 de outubro

de 1927. Mas, por que foi o Rio Grande do Norte pioneiro na implantação do voto feminino no

país? Por que esse fato ocorreu ainda no ano de 1927? Como justificar tal mudança na condição

de cidadã da mulher num pequeno Estado brasileiro, nesse momento? Não basta apenas a

inserção na lei estadual eleitoral, como reafirmou mais de um juiz responsável por despachar

favoravelmente os requerimentos eleitorais das primeiras potiguares a votar. Não o poderiam

fazer sem antes "examinar (...) a capacidade ou incapacidade da mulher ao direito do voto"1.

E, afinal, o que isso significou? Segundo estatísticas do TSE, nas eleições de 2012, cerca

de 20% dos eleitos no Rio Grande do Norte eram mulheres. No Brasil, apenas 31,5% dos

candidatos a eleição eram do sexo feminino, enquanto estas somam mais da metade do

eleitorado nacional. A pouca participação política feminina é explicada por diversos fatores,

segundo estudiosos diferentes, mas é fato. Criou-se, diante de tal realidade, a lei 9.504/7,

conhecida como a cota eleitoral de gênero, que afirma a necessidade de todo partido ou

coligação preencher o mínimo de 30% das vagas de concorrentes as eleições com candidatas

mulheres.

Na campanha eleitoral para o cargo de presidência do Brasil de 2010, na qual tivemos a

primeira mulher eleita presidenta em toda a história brasileira, fica evidente as diferentes

maneiras que, ainda hoje, a discriminação sexual atua na área política. É necessário às

candidatas a adequação a um perfil construído de feminilidade que se coadune à sua introdução

no espaço político, ainda considerado masculino. Durante sua campanha, a presidenta eleita

Dilma Roussef, adotou como uma de suas estratégias ressaltar o seu papel de “mãe”, mãe do

Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que se tornaria, caso eleita, a mãe dos pobres

do Brasil: afetuosa, protetora e compreensiva. Características, estas, consideradas femininas.

Existiria, assim, uma atuação diferenciada, baseada na “lógica do cuidado”. Para as candidatas

desviantes desse estereótipo, a campanha e a eleição tornam-se muito mais difícil.

1 OS DIREITOS políticos da mulher. Natal: Imprensa Oficial, 1928.

9

Percebe-se, portanto, como a política brasileira ainda é considerada um espaço

masculino, e as mulheres que desejam adentrá-lo devem fazê-lo sob determinadas regras

invisíveis. O discurso modificou-se com o tempo, mas ainda tenta polarizar os sexos e seus

papeis. Cabe a nós, cientistas sociais e historiadores, desmascarar esse discurso. Este foi meu

primeiro questionamento durante a pesquisa, o porquê das propagandas eleitorais serem tão

diferentes quando tratam de candidatos e candidatas? Os discursos, a indumentária, a postura

de cada candidato varia conforme o seu gênero. Na mesma época, quando comecei a ler e

pesquisar mais sobre o feminismo e as mulheres que atuam na vida política, soube do

pioneirismo potiguar na área. Comecei a pesquisa, então, para entender esse pioneirismo, e

talvez descobrir como as mulheres potiguares o conquistaram. Em um espaço tão masculino

quanto a política, urge a necessidade de feminizá-lo. Compreender sua história, portanto, é

indispensável.

Nas últimas décadas, os estudos sobre as relações de gênero e o papel das mulheres na

sociedade brasileira se multiplicaram, mas pouco foi estudado sobre a história do voto feminino,

e praticamente nada em âmbito potiguar. No Brasil, algumas autoras de referência fizeram

importantes e completos estudos, não podendo deixar de citar Branca Moreira Alves, Rachel

Soihet, June E. Hahner e Susan K. Besse. No Rio Grande do Norte, é obra de referência A

mulher brasileira, de João Batista Cascudo Rodrigues, e a monografia O voto de saias –

posteriormente publicada pela coleção Mossoroense – da historiadora Jane Cortez Firmino.

Nenhum deles, porém, se deteve na elaboração discursiva acerca do papel feminino e sua

inserção na política, meu maior questionamento. Pouco, também, foi escrito acerca do

envolvimento de Juvenal Lamartine na campanha sufragista potiguar, nome que sempre era

citado na historiografia referida, mas nunca analisado detidamente.

Desta forma, nesta monografia traçaremos a trajetória do movimento feminista

brasileiro e potiguar e sua influência na conquista do direito ao voto. O período estudado irá de

1927 a 1929, desde a campanha de Juvenal Lamartine para Presidente do Estado até sua saída

do cargo quando da “Revolução de 1930. Nos propomos, também, a analisar as circunstâncias

pelas quais aconteceu o pioneirismo potiguar na obtenção do sufrágio feminino, visto que se

estabeleceu dentro de uma agenda, e se efetivou a partir de dados discursos. E, por fim, mas

não menos importante, tentaremos expor como se deu a defesa da ampliação dos direitos

políticos das mulheres por parte daqueles que, finalmente, os reconheceram juridicamente: os

juízes responsáveis por incluir no alistamento eleitoral aquelas que o requereram.

O primeiro capítulo é reservado à primeira onda feminista no mundo, que se estendeu

10

durante o século XIX e culminou na conquista do direito ao voto feminino. Para isso,

analisaremos dois dos principais textos de feministas da época e veremos, por fim, como estes

foram reapropriados pelas sufragistas brasileiras e utilizados de maneira bem-sucedida na

campanha a favor do voto das mulheres. No segundo capítulo, entraremos nas páginas de três

jornais potiguares da época para percebermos de que maneira Juvenal Lamartine utilizou-se da

campanha sufragista para a construção de sua própria imagem política. Outrossim,

perceberemos como, ao mesmo tempo, durante a campanha se é construída uma imagem

feminina que se coadunasse com esse novo papel e função das mulheres ao adentrarem no

espaço da política. Por fim, no terceiro capítulo, perceberemos a repercussão da conquista do

sufrágio em terras potiguares, além de examinar nos despachos dos juízes, de que maneira o

discurso feminista e sufragista foi absorvido e posto em prática.

Durante toda a história ocidental pode-se perceber as mulheres se organizando,

de uma forma ou de outra, por motivos e com objetivos diferentes. Elas foram amazonas,

mártires religiosas e promoveram revoltas. Lutaram nas guerras e foram responsáveis por

assumir as tarefas cotidianas quando elas estouravam. Silenciadas, porém, foram essas lutas e

sua contribuição no devir histórico. Desta forma, este trabalho parte da ideia de que as mulheres

são sujeitos históricos, participantes e influentes na comunidade e sociedade em que estão

inseridas. Nunca foram passivas. Mas são plurais. E, assim, foram e são os seus femininos, os

feminismos, seus movimentos, suas lutas e suas conquistas. Definido isto, podemos estudar

algo mais específico: a conquista da cidadania política das mulheres potiguares.

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1. A primeira onda feminista

A Lei nº 660 tinha como objetivo regular o serviço eleitoral do Rio Grande do Norte, e

foi sancionada em 25 de Outubro de 1927. Ao determinar que no estado “[...] poderão votar e

ser votados, sem distincção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por

esta lei”, aqueles que estiveram envolvidos em sua elaboração estavam escrevendo na História

seus nomes. Foi assim que, no território potiguar, pela primeira vez na América Latina uma

mulher pôde votar, ser votada e ser eleita2.

O caminho para essa conquista, porém, foi longo, e o percurso muitas vezes sinuoso.

Durante mais de um século muitas vozes femininas, e simpatizantes masculinos, ousaram se

levantar para questionar o papel de seu sexo, algumas mais corajosas chegando a exigir sua

mudança. Como, então, ocorreu de ser um pequeno estado do Nordeste brasileiro um dos

pioneiros na conquista dos direitos políticos da mulher? A luta feminista tomou inúmeros vieses

ao longo do seu primeiro século de existência – como movimento organizado e autoconsciente

-, e diversos discursos foram produzidos, remodelados e descartados nesse período. Alguns

chegaram às terras brasileiras e foram adaptados ao nosso contexto, outros nasceram e se

formaram em nosso território a partir de demandas próprias, e ainda há aqueles, que de tão

universais em sua essência – não é à toa ser o sistema patriarcal quase unânime nas sociedades

Ocidentais -, foram replicados por aqui.

Neste primeiro capítulo iremos percorrer algumas dessas vozes, para entender como elas

chegaram e foram reapropriadas pelo movimento feminista brasileiro, tornando possível a

promulgação de uma lei na qual, explicitamente, se relaciona gênero e política, quebrando assim

uma das barreiras de um sistema de opressão há tanto dominante em nossa sociedade. “Sem

distinção de sexos”, uma sentença que carrega, até hoje, a história de inúmeras mulheres que

lutaram para serem vistas e possuírem direitos. Cabe a nós contá-la.

2 A mossoroense Celina Guimarães Vianna foi a primeira eleitora da América do Sul, e a primeira mulher a votar. Alzira Soriano foi a primeira mulher a ser eleita para um cargo executivo na América Latina, nas eleições de 1928 para prefeitura de Lajes.

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1.1 O sufrágio nasce como ideia: emancipação feminina em palavras

“Mulher, desperta-te!”, assim clama Olympe Gouges em sua Declaração dos Direitos

da Mulher e da Cidadã, em 1792. Publicada logo após a sua referência masculina – dita

universal -, a dos Homens e dos Cidadãos, esta veio, revolucionariamente, lembrar que a

Humanidade e a Nação, a que tanto clama a Revolução (Francesa), esqueceu metade de si. Bem

lembra Gouges, as mulheres que participaram da destituição dos poderes monárquicos e lutaram

pela igualdade e liberdade tão repetidamente aclamadas, desaparecem após sua conquista.

O potente império da natureza não está mais rodeado de preconceitos, de fanatismos,

de superstições e mentiras. A luz da verdade dissipou todas as nuvens da estupidez e

da usurpação. O homem escravo multiplicou suas forças, recorrendo às tuas, para

romper as cadeias. Uma vez livre, tornou-se injusto para com a sua companheira. Ó

mulheres! Mulheres, quando deixareis de ser cegas? Quais vantagens tirastes da

Revolução? Um desprezo mais evidente, um desdém maior.3

A autora, em sua versão, traz a maior parte dos artigos da versão masculina do texto,

muitas vezes só os copiando e adicionando a palavra “mulher”. Foi a única modificação, como

exemplo, no artigo II: “O objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos

naturais e imprescritíveis [da mulher e] do homem”4. Isso nos mostra que às mulheres também

importava o estatuto da cidadania e as garantias a que estão vinculadas, o importante era que

fossem reconhecidas como tal. Gouges, portanto, defende o acesso de todo e qualquer cidadão

e cidadã aos direitos básicos constantes da declaração “universal”, já que “a mulher nasce livre”

e, portanto, “as distinções sociais só podem ser baseadas no interesse comum”5.

Enquanto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão apontava o direito à

associação política, à propriedade e à justiça da lei, Gouges também reclama questões próprias

ao seu sexo. O artigo XI é um dos exemplos, ao exigir que “toda cidadã pode então dizer

3 GOUGES, Olympe. Declaração dos direitos da mulher e da cidadã. In: O dilema da cidadania: direitos e deveres das mulheres. São Paulo: UNESP, 1995. p. 306-307. 4 GOUGES, Olympe. Declaração dos direitos da mulher e da cidadã. In: O dilema da cidadania: direitos e deveres das mulheres. São Paulo: UNESP, 1995. p. 302. 5 GOUGES, Olympe. Declaração dos direitos da mulher e da cidadã. In: O dilema da cidadania: direitos e deveres das mulheres. São Paulo: UNESP, 1995. p. 302

13

livremente: eu sou a mãe de um filho seu”6, ou seja, reclamar aos pais de seus filhos que

assumam sua paternidade. O seu “contrato social do homem e da mulher”, proposto ao fim da

declaração para regular as relações de casamento e os direitos dos noivos e de seus filhos,

demonstra a preocupação da autora acerca da autonomia das mulheres perante seus maridos.

Nós, N e N, movidos pela nossa própria vontade, unimo-nos para o resto de nossas

vidas e pelo tempo de nossas inclinações recíprocas, nas seguintes condições:

pretendemos e queremos pôr em comum os nossos patrimônios, reservando-nos

todavia o direito de separá-los em favor dos nossos filhos e daqueles que poderemos

ter de uma paixão particular [...].7

Ao apontar as inúmeras injustiças que considera haver na sua sociedade, comparando o

papel feminino ao de uma prostituta ou escrava, Gouges argumenta que é necessário o contrato

formal – com a defesa do Estado -, para ao menos tentar tornar esta uma relação menos desigual.

E ainda, o que provavelmente foi o mais chocante para seus contemporâneos, reclamando o

direito ao divórcio e as garantias legais a partir deste, como percebemos acima.

Além disso, afirma categoricamente que “o único limite ao exercício dos direitos

naturais da mulher, isto é, a perpétua tirania dos homens, deve ser reformado pelas leis da

natureza e da razão.”8. Desta forma, Gouges deixa claro que a exclusão das mulheres do poder

é causada somente pela opressão que sofrem por parte dos homens. Em contraposição, a autora

vai defender a ideia da complementariedade dos sexos, muito revisitada décadas depois pelas

feministas brasileiras. O seu texto termina com a defesa de uma reconciliação entre os poderes

Executivo e Legislativo, comparando à relação entre o homem e a mulher, pois que enquanto

um “representar tudo e o outro nada”, tal qual entre os sexos, o império francês estaria fadado

a ruir. Eles deveriam, portanto, estar unidos, “em força e virtude, para formar um bom núcleo

familiar”9. A Nação como uma grande família, que tem, desta forma, como pilares

complementares, as mulheres e os homens.

6 GOUGES, Olympe. Declaração dos direitos da mulher e da cidadã. In: O dilema da cidadania: direitos e deveres das mulheres. São Paulo: UNESP, 1995. p. 305 7 GOUGES, Olympe. Declaração dos direitos da mulher e da cidadã. In: O dilema da cidadania: direitos e deveres das mulheres. São Paulo: UNESP, 1995. p. 309 8 GOUGES, Olympe. Declaração dos direitos da mulher e da cidadã. In: O dilema da cidadania: direitos e deveres das mulheres. São Paulo: UNESP, 1995. p. 303. 9 GOUGES, Olympe. Declaração dos direitos da mulher e da cidadã. In: O dilema da cidadania: direitos e deveres das mulheres. São Paulo: UNESP, 1995. p. 312.

14

Podemos perceber, já nesse documento, alguns argumentos que serão utilizados mais

tarde durante as campanhas sufragistas. Ao mesmo tempo em que defende um acesso igualitário

aos centros de decisão e poder da República recém instaurada, Gouge reafirma alguns dos

estereótipos incorrentes sobre o gênero feminino, especialmente àqueles acerca da maternidade

e da moralidade inerente ao seu sexo. É novo, no entanto, e revolucionário em si, o valor

atribuído a esse papel, utilizando-se dessa importância para justificar a participação das

mulheres na política.

Considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos da mulher

são as únicas causas das desventuras públicas e da corrosão dos governos, elas

resolveram expor numa solene declaração os direitos naturais inalienáveis e sagrados

da mulher [...] a fim de que os reclamos das cidadãs, baseados doravante em princípios

simples e incontestáveis, sejam sempre voltados para a manutenção da Constituição,

dos bons costumes e da felicidade de todos.

Por conseguinte, o sexo superior em beleza e em coragem, nos sofrimentos da

maternidade, reconhece e declara em presença e com os auspícios do Ser Supremo, os

Direitos seguintes da Mulher e da Cidadã.10

Quase que simultaneamente, do outro lado do Canal da Mancha, Mary Woollstonecraft

escreve Vindications of the Rights of Woman (1792). A autora traz em seu livro outro ponto que

vai ser repetidamente levantado mais de cem anos depois pelas feministas ao redor do mundo,

inclusive pelas sufragistas brasileiras: o direito das mulheres à educação e instrução. A novidade

em seu texto, e por isso este se torna tão importante para o movimento, é a percepção de que a

opressão da mulher, sua degradação e falta de importância, advém da sua (falta de) educação –

não curiosamente elaborada por homens, seus “algozes”. Ao trazer como metáfora para a

condição feminina flores que não têm como desabrochar quando plantadas em ambientes hostis,

Woolstonecraft conclui:

Uma causa desse florescer estéril. Eu atribuo à um falso sistema de educação, feito a

partir dos livros escritos sobre esse assunto por homens que, considerando fêmeas

como mulheres ao invés de criaturas humanas, têm sido bem mais ansiosos para fazer

delas amantes atraentes do que esposas afetuosas e mães racionais. [tradução nossa]11

10 GOUGES, Olympe. Declaração dos direitos da mulher e da cidadã. In: O dilema da cidadania: direitos e deveres das mulheres. São Paulo: UNESP, 1995. p. 302. 11 “One cause of this barren blooming I attribute to a false system of education, gathered from the books written on this subject by men who, considering females rather as women than human creatures, have been more anxious to make them alluring mistresses than affectionate wives and rational mothers”. WOOLSTONECRAFT,

15

Podemos perceber a atribuição dos papeis de esposa e mãe como centro e motivação da

educação das mulheres; porém, da mesma forma que Gouge o utiliza como argumento para

defender a superioridade feminina, a autora inglesa parte deste lugar pré-determinado e

expande-o, servindo de trampolim para voos maiores. Antes da revolução política advinda da

conquista do sufrágio e da inserção das mulheres nos espaços institucionais de poder, foi

necessária uma revolução dos costumes, tornando possível às mulheres figurinos outros que

aqueles de tola, infantil ou naturalmente burra. Não é à toa que Woolstonecraft literalmente o

escreve, com todas as letras e destacado:

Que mulheres do presente são por ignorância levadas à insensatez ou maldade, é, Eu

acho, não para ser contestado; e que os efeitos mais salutares tendem à melhorar a

humanidade poderiam ser esperados de uma REVOLUÇÃO nas maneiras femininas,

parecem, no mínimo, com uma face de probabilidade, para sair da observação.12

As mulheres deveriam ser, portanto, tão bem-educada quanto os homens, para poder,

assim, tornar-se uma boa esposa e mãe, papeis essenciais para a construção de uma nação forte,

uma família saudável e o crescimento de bons indivíduos. Ao mesmo tempo que reforça os

limites do espaço das mulheres – privado, “dentro”, familiar -, semeia possibilidades para o

futuro. O primeiro passo, portanto, foi dado, e percebeu-se finalmente que as mulheres eram

seres humanos, tais quais os homens. Inicia-se uma jornada que ainda não estava perto de

acabar.

Mary. A vindication of the rights of woman, with strictures on political and moral subjects. p. 14. Disponível em: http://www.gutenberg.org/ebooks/3420. Acesso em: 25 mar. 2016. 12 “That women at present are by ignorance rendered foolish or vicious, is, I think, not to be disputed; and, that the most salutary effects tending to improve mankind might be expected from a REVOLUTION in female manners, appears, at least, with a face of probability, to rise out of the observation”. WOOLSTONECRAFT, Mary. A vindication of the rights of woman, with strictures on political and moral subjects. p. 137. Disponível em: http://www.gutenberg.org/ebooks/3420. Acesso em: 25 mar. 2016.

16

1.2 Das ideias a ações: luta feminista ao redor do mundo

Os ideais de cidadania e igualdade de direitos como os conhecemos nascem com a

Revolução Francesa. Apesar das mulheres terem participado ativamente durante todas as suas

fases, especialmente enquanto agitadoras das multidões, aquelas que inflamavam os homens a

irem às ruas e que gritavam palavras de ordem e reivindicações, é a partir desta que se sela sua

exclusão, pois que a elas foi negado o acesso à sociedade política.

Segundo Perrot, a “cidadania é uma noção complexa, polêmica, plural. No sentido

amplo, ela significa participação na vida da Cidade (ela própria definida como o conjunto dos

cidadãos), gozo dos direitos que são ligados a ela, exercício dos deveres que lhe são

atribuídos”13. Desta forma, as mulheres se tornam cidadãs passivas, como eram as crianças e os

estrangeiros. Isto significa que elas eram consideradas detentoras de direitos, mas não poderiam

exercê-los todos, como no caso do voto. Ao mesmo tempo que garantiu-se o direito à herança

e ao divórcio, por algum tempo, seus direitos políticos deveriam ser deixados a cargo de um

representante masculino, seja o pai, irmão ou marido.

“[A Revolução] reconheceu-lhes uma personalidade civil que o Antigo Regime negava,

e elas tornaram-se seres humanos completos, capazes de fruírem e de exercerem seus direitos.

Como? Tornando-se indivíduos”14. Essa foi a principal contradição que resultou nas inúmeras

organizações de mulheres em todo o mundo com o objetivo de lutar para serem reconhecidas

como cidadãs plenas, iguais perante a lei e capaz de elaborá-las, com direito de subir tanto à

tribuna quanto ao cadafalso. As feministas do início do século XX se focam, portanto, na luta

por direitos políticos.

Na França, considerada o berço do cidadão - homem -, essa conquista foi mais árdua.

Apesar de ter um movimento feminista bastante ativo, presente desde meados da Revolução de

1789 e especialmente influente já no século XIX, o abismo entre cidadania social, civil e

cidadania política15 e o exercício destas pelos homens e mulheres foi-se estendendo até a

13 PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005. p. 327. 14 DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das mulheres no Ocidente. Porto: Afrontamento, 1990. v. 4. p. 44. 15 “Estarei fazendo o papel de um sociólogo típico se começar dizendo que pretendo dividir o conceito de cidadania em três partes [...]. O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual [...]. Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício de poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo. [...] O elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança,

17

Terceira República16. O feminismo francês será um feminismo burguês, afastado dos

movimentos operários que tenderam a reforçar os papeis de gênero baseados na dicotomia

masculino/feminino, público/privado, política/lar.

A ideia dominante, em todas as classes, era a da complementaridade dos sexos, logo por

muito tempo sequer imaginou-se – excetuando, é claro, algumas poucas pessoas “à frente de

seu tempo” – as mulheres ocupando um espaço na tribuna. A política enquanto domínio

masculino se estabelece, baseando-se na teoria das esferas, definida por Perrot enquanto

[...] tentativa europeia de racionalização da sociedade em que os papeis, as tarefas e

os espaços são equivalentes dos sexos. O público, cujo coração é ocupado pela

política, pertence aos homens. O privado, cujo centro é ocupado pela casa, é delegado

às mulheres (sob o controle dos homens. A família opera a junção entre os dois.

O ano de1848, com a conquista do sufrágio universal (maculino), foi um marco dessa

exclusão – depois da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789 -, quando

confirmou a ausência feminina na política do novo regime instaurado, que agora não mais

poderia ser justificada por uma suposta falta de preparo político, educacional ou insuficiência

de renda. Apesar das movimentações feministas e inúmeras batalhas pela conquista do voto, só

depois de 1944 as francesas obtiveram integralmente o acesso aos direitos políticos, enquanto

que em muitos outros países essa conquista ocorreu até vinte ou trinta anos antes.

Na Inglaterra e nos Estados Unidos, por exemplo. Nestes países, a luta tomou viéses

mais radicais. Alguns estudiosos creditam o seu pioneirismo à doutrina protestante

predominante nesses dois países. Ao defenderem a “igualdade cristã”, abriu-se um precedente

para se enxergar uma igualdade civil e política. Não é à toa que muitas das primeiras sufragistas

tiveram contato com as próprias vozes dentro das suas paróquias, nos estudos da Bíblia e nos

trabalhos filantrópicos necessários a todos os bons cristãos. Por outro lado, também relaciona-

se às lutas liberais travadas nesses países, em especial às campanhas abolicionistas. O primeiro

encontro organizado de mulheres por seus direitos que se tem notícia – a Convenção pelos

Direitos da Mulher, no ano de 1848 em Seneca Falls (EUA) – foi instigado quando suas

organizadoras tiveram sua participação ativa vetada, ao serem proibidas de falar, em uma

ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade”. MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. p. 63-64. 16 PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005.

18

convenção abolicionista que ocorreu na Inglaterra alguns anos antes17.

Ao se organizarem, seja em organizações filantrópicas ou nas campanhas pelos direitos

de outras minorias, as mulheres perceberam três pontos que, inevitavelmente, as levaram à luta

feminista: 1º elas eram tão ou mais capazes, muitas vezes, de mobilização política; 2º, que por

mais que isso fosse verdade, elas não eram ouvidas; e 3º, suas vozes, quando ecoadas,

incomodavam, assustavam e eram o mais rápido possível abafadas. Ou seja, elas se perceberam

enquanto um grupo, oprimido, tais quais aqueles por quem lutavam.

Duas frentes de trabalho se definiram durante as décadas de campanha sufragista nesses

dois países, desde meados do século XIX até a segunda década do século XX, quando foi

conquistada a cidadania política para as americanas em 1920 e para as inglesas em 192818. A

primeira frente pode ser chamada de constitucionalista, mais conservadora, pois buscava o

sufrágio a partir das vias legais. As militantes se empenhavam na organização de conferências,

abaixo-assinados e referendos, buscando o apoio de políticos e partidos simpáticos à causa. Seu

objetivo era a mudança da lei, a nível federal e local. Essa estratégia tendeu ao conservadorismo

por necessitar de um forte apoio da opinião pública e das grandes instituições, como a Igreja e

os parlamentos. Essa vertente do movimento sufragista acaba por focar apenas na conquista do

direito ao voto, não problematizando outras questões da opressão feminina e dos problemas que

a atravessam. É também, portanto, um feminismo branco e burguês, tendo em sua cabeça

mulheres abastadas, das classes médias e altas, que tiveram acesso à educação e muitas vezes

já eram profissionais liberais.

A segunda frente, considerada radical, desenvolveu-se principalmente na Inglaterra,

onde suas militantes ficaram conhecidas como sufragetes. Elas afirmavam que nada seria feito

se dependesse da boa vontade dos políticos, argumentando que todas as campanhas legalistas

até então empreendidas em nada tinha dado. “AÇÕES, NÃO PALAVRAS”19 era o lema da

Women’s Social And Political Union, organização fundada por Emmeline Pankhurt, uma das

militantes mais conhecidas e procuradas na Inglaterra durante a década de 1910.

17 ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980. 18 A conquista do voto pelas mulheres inglesas foi por etapas. Em 1918 foi promulgada a lei que concedia o direito de voto para mulheres acima de 30 anos, só dez anos depois foi estendido para todas as mulheres maiores de idade (como o era para os homens). 19 No original: DEEDS NOT WORDS.

19

A obstinação do Governo e do Parlamento em não dar ouvidos às sufragetes levou-as

a adoptarem tácticas cada vez mais agressivas e violentas, sobretudo a partir de 1908,

como vandalizar ou destruir edifícios públicos e privados, igrejas, museus, campos de

golfe, etc., vários dos quais incendiaram ou destruíram com explosivos; partir

vidraças, como as das janelas da própria residência do Primeiro Ministro, em 10

Downing Street, que as sufragetes Mary Leigh e Edith New estilhaçaram. Os prejuízos

atingiram centenas de milhar de libras.20

Em resposta, elas eram fortemente atacadas. A repressão policial era extremamente

violenta, houve centenas de prisões e, como revide às greves de fome organizadas pelas

militantes em forma de protesto, elas eram alimentadas à força com canos introduzidos até o

estômago. Além disso, a propaganda antissufragista era impiedosa. Pintavam-nas - inclusive

literalmente, em folhetos publicitários e charges de jornal - como mulheres mal amadas, feias,

frustradas, solitárias e invejosas. Construindo um estereótipo das feministas que ecoa até os

nossos dias.

Cartão postal antissufragista (Inglaterra, 1910)21

20 ABREU, Zina. Luta das mulheres pelo direito de voto: movimentos sufragistas na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Arquipélago-História, Porto Alegre, v. 6, p. 443-469, 2002. p. 464. 21 Fonte: Mary Evans Picture Library. Disponível em: http://www.maryevans.com/. Acesso em: 6 abr. 2016.

20

Os antissufragistas argumentavam que, com a inclusão das mulheres na política, os lares

e as famílias ficariam abandonados. Por isso era comum que se retratassem maridos cuidando

das crianças e da casa, desolados, enquanto suas esposas saíam para “conquistar o mundo”. Ou,

então, homens de aparência esquálida, frágil, segurando cartazes em defesa do sufrágio

feminino, ridicularizando aqueles que ousaram apoiar a luta sufragista e, com isso, romperam

as barreiras dos gêneros ao renunciar ao seu privilégio (um deles, pelo menos). Os espaços

deveriam ser muito bem definidos, e era apenas ao homem que se destinava o público. Este é

um argumento que se repete nas diferentes campanhas ao redor do mundo, basilar na opressão

e exclusão feminina.

1.3 O feminismo bem-comportado brasileiro: Bertha Lutz e a Federação Brasileira pelo

Progresso Feminino

As reivindicações das mulheres brasileiras nascem em torno do direito à educação, já na

primeira metade do século XIX. Não por acaso, a potiguar Nísia Floresta, considerada a

primeira feminista do Brasil, fez uma “tradução livre” do Vindication of the Rights of Woman,

anteriormente citado, que em sua versão tem como título "Direito das Mulheres e Injustiça dos

Homens". Neste, a autora não apenas traduz a obra de Wollstonecraft, mas a reescreve em face

do contexto brasileiro e a partir de sua própria experiência enquanto mulher, brasileira,

educadora e letrada. Apesar de não trazer em sua discussão a emancipação política feminina,

nem estampar a palavra “revolução” destacada em sua tradução, este ainda é um documento

importante para o estudo da emergência de um pensamento feminista brasileiro, pois que aponta

a submissão da mulher ao homem, condenando-a e defendendo uma suposta superioridade

feminina – tanto moral quanto intelectual.

Floresta foi um nome proeminente no protesto pela emancipação a partir da educação

das mulheres, além de defensora da abolição da escravatura e instauração da República. Durante

seus 74 anos de vida (1810-1885), escreveu inúmeros outros textos e livros acerca da condição

de seu sexo, entre os quais Opúsculo Humanitário, de 1853, notável pela articulação de

argumentos, dados e proposições acerca da educação feminina da época. O livro, composto por

dezenas de artigos publicados em jornais, foi enriquecido pelos anos de docência acumulados

pela autora à época, além do seu contato com inúmeros pensadores proeminentes de seu tempo,

sendo o mais famoso deles Augusto Comte, com quem travou discussões intelectuais e trocou

21

cartas durante alguns meses – até a morte dele.

Neste mesmo período se criou uma imprensa feminina, editada por e voltada para as

mulheres, disseminando ideias sobre o potencial feminino e sendo utilizada largamente por

grupos feministas. Essas senhoras pregavam o “Progresso” – da Nação, das famílias e do

indivíduo -, visando um aperfeiçoamento moral e material do Brasil. Nesta missão, a mulheres

teriam papel essencial, vistas como meio de “purificação” da sociedade. Para isso, porém,

alertavam: era necessário a sua emancipação moral. Vemos, portanto, a mesma estratégia que

Nísia Floresta utiliza nos seus textos. Alertando para a posição vital na qual se encontrava as

mulheres brasileiras, pilares da família e formadoras dos futuros cidadãos do país, lembravam

aos homens que era desejável a instrução e formação adequada desta parcela tão importante da

população.

Alerta-se, no entanto, que apesar da crescente entrada das mulheres na vida pública, a

partir de uma maior educação e ampliação dos espaços destinados a elas, tais mudanças não

significariam a transformação do status feminino. As mulheres poderiam estudar, trabalhar e

publicar, mas este não era considerado seu papel. O estudo ainda era voltado à formação da

mãe dona-de-casa – a chamada “educação de agulha” - e sua principal função era o de criação

dos filhos e manutenção do lar. Mesmo os grupos feministas, em sua maioria, não saíram dessa

lógica, preferindo apenas utilizá-la em favor de seus propósitos, exaltando o papel feminino e

partido daí as suas reivindicações.

A luta pelo sufrágio feminino no Brasil existiu desde antes da proclamação da

República, quando José Bonifácio defendeu o sufrágio para as mulheres diplomadas por uma

escola superior na Câmara dos Deputados Gerais do Império. Esta, porém, se recrudesceu na

Constituinte Republicana de 1890, em meio a reivindicações radicais de alguns dos chamados

“republicanos históricos”. Já em 1910 foi fundado um Partido Feminino Republicano, pela

professora Deolinda Dalho, e em 1917 ela consegue reunir quase cem mulheres reclamando

cidadania política em passeata pelo Rio de Janeiro. Em 1920 é fundada a Liga para a

Emancipação Internacional da Mulher, pela professora Maria Lacerda de Moura em conjunto

com a bióloga Bertha Lutz. Lutz se tornará o grande nome da luta em defesa do voto feminino,

organizando em 1922 a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, principal organização

sufragista brasileira.

Bertha Lutz tem seu interesse despertado em participar de organizações e campanhas

feministas ainda na Inglaterra, onde foi criada. Ao retornar ao Brasil, no ano de 1918, pôde se

22

iniciar na militância, tornando-se uma das chamadas “feministas históricas”. Funcionária

pública, trabalhando no Museu Nacional, travou contato com militantes francesas e americanas

já planejando sua investida em favor da situação das mulheres brasileiras. O programa da

federação que organizou refletia as influências de entidades congêneres norte-americanas,

como afirmou Maria Amélia de Almeida Teles22. Seu objetivo era:

Promover a educação da mulher e elevar o nível de instrução feminina; proteger as

mães e a infância; obter garantias legislativas e práticas para o trabalho feminino;

auxiliar as boas iniciativas da mulher e orientá-la na escolha de uma profissão;

estimular o espírito de sociabilidade e cooperação entre mulheres e interessá-las pelas

questões sociais e de alcance público; assegurar à mulher direitos políticos e

preparação para o exercício inteligente desses direitos; estreitar os laços de amizade

com os demais países americanos.23

A campanha feminista no Brasil durante essas primeiras décadas de regime republicano

se voltou quase que inteiramente para a conquista da cidadania política, buscando o direito de

votar e ser votada. Tendo na sua vanguarda mulheres de classe média alta, educadas

formalmente e que, muitas vezes, eram independentes financeiramente e relacionadas a nomes

masculinos já influentes na política, o movimento criou um perfil específico. Logo, não foi uma

reivindicação das massas, mas uma mobilização de caráter liberal, “considerando o sufrágio o

instrumento básico de legitimação do poder político e concentrando a luta no nível jurídico-

institucional da sociedade”24.

E é nesse ambiente que Bertha Lutz e um pequeno grupo de companheiras farão a sua

campanha que assume caráter hegemônico naquele momento. Organizam-se em

associações, fazem pronunciamentos públicos, utilizando-se fartamente da imprensa,

buscam o apoio de lideranças nos diversos campos, constituindo grupos de pressão

visando garantir apoio de parlamentares e de outras autoridades, da imprensa, da

opinião pública. Apesar disso, em sua maioria, buscam revestir o seu discurso de um

tom moderado. Não apenas porque talvez considerassem que esta seria a forma

adequada de expressão feminina, mas, especialmente, por razões táticas.25

Elas tomaram como estratégia a não confrontação direta com o sistema. Era um

22 TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1999. 23 BESSE, Susan K. Modernizando a desigualdade: Reestruturação da Ideologia de Gênero no Brasil (1914-1940). São Paulo: EDUSP, 1999. 24 ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980. p. 14. 25 SOIHET, Rachel. A pedagogia da conquista do espaço público pelas mulheres e a militância feminista de Bertha Lutz. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 15, set./dez. 2000. p. 100.

23

movimento, portanto, de viés constitucionalista, tal qual a ala mais forte das organizações

americanas. Não é à toa que estes se tornaram tão próximos, como aparece no último ponto do

programa ao apontar como um dos principais objetivos o diálogo entre os países americanos,

bem característico das estratégias estadunidenses de influência nas nações do resto do

continente.

Percebe-se, assim, que não foram colocadas em xeque as ideias sobre o determinismo

biológico, o papel das mulheres e a opressão sistemática de gênero, apesar de estas já serem

discutidas nos meios feministas mais radicais, inclusive pela própria Maria Lacerda de Moura,

com quem Lutz fundou sua primeira organização sufragista. Pelo contrário, se buscou utilizar

a imagem da mulher/mãe, do seu papel essencial na família e na criação dos filhos, como

argumentos para a sua inclusão na política. O movimento sufragista reafirmou a maternidade

como a mais importante função feminina, necessária à pátria, pois que esta tinha como sua base

a família. Sendo uma parcela tão importante para a nação, e tendo anseios e demandas

específicas para si, as mulheres não deveriam ser excluídas do lugar onde se construía o novo

regime.

Estes são argumentos que, como vimos, datavam de meados do século anterior. A

diferença é que agora as sufragistas já eram toleradas pela opinião pública e começaram a

arrebanhar simpatizantes para sua causa. O fato do voto feminino já ser realidade em outros

países do mundo, especialmente dentre aqueles considerados civilizados e modelos de

progresso, facilitou a receptividade desse ideário no Brasil. O voto não deveria ser visto como

fim em si mesmo, mas como meio de ação para a expansão dos horizontes femininos.

Mais importante para essa nova conjuntura, porém, foram aquelas mulheres

oitocentistas que começaram o alargamento de suas fronteiras e sonharam com novos papéis.

Junta-se a isso o acesso à educação, que se expandiu consideravelmente durante o período

imperial, especialmente a partir de 1879 ao abrir as portas do ensino superior às mulheres,

habilitando-as ao exercício de profissões. O século XX nasceu pronto para ser tomado por elas.

Coube, então, reivindicar seu lugar.

24

2. À procura das chaves da porteira: o sufrágio chega ao Rio Grande do

Norte

O Senador Lauro Muller lembrou àqueles que estavam presentes em seu discurso de

abertura do I Congresso Feminista Brasileiro, em 1922, que a Constituição não proibia

expressamente o voto feminino. Afirmou, também, que os homens são como carneiros, ou seja,

era só um estado interpretar a Constituição do "modo certo" que outros logo iriam atrás,

alastrando o voto feminino pelo Brasil antes mesmo deste ser aprovado na Câmara Federal. Foi,

assim, que no Rio Grande do Norte que as "porteiras foram abertas".

Seguindo o conselho do Senador Muller, a Federação Brasileira pelo Progresso

Feminino buscou apoio em políticos que se mostravam abertos à ideia do sufrágio, iniciando

campanhas em nível estadual e, inclusive, abrindo "filiais" da federação nos diversos estados

brasileiros. Em 1926, Bertha Lutz e outras feministas procuraram o apoio de Juvenal Lamartine,

então deputado federal e membro da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal.

Durante seu mandato como deputado, Lamartine distribuiu pareceres favoráveis ao voto

feminino e o defendeu arduamente no Congresso. Desta forma, quando Lamartine, em 1927,

teve o nome indicado à presidência do estado do Rio Grande do Norte, elaborou-se uma

plataforma de campanha em que os direitos políticos das mulheres eram pleiteados.

A propaganda feminista no Rio Grande do Norte teria, então, se iniciado com o

programa administrativo que Juvenal Lamartine divulgou em 9 de abril de 1927. Seu nome

ficaria relacionado a partir daí a esta campanha, sendo considerado um vanguardista, um

político que encarnou durante toda a sua vida pública os ideais liberais e de modernidade.

"Juvenal Lamartine foi um homem movido por grandes ambições sociais, algumas das quais se

constituíram como divisores de época. Por exemplo, sua luta vitoriosa pelo reconhecimento do

voto feminino [...]"26.

Não foi à toa, portanto, a sua adesão à campanha sufragista. Durante toda a sua vida

política Juvenal Lamartine construiu uma ideia de si, investindo em ações e projetos que

reforçavam sua imagem de moderno e vanguardista. Ele garantiu, seja durante os anos de

mandato, seja após seu afastamento da vida pública quando da “revolução” de 1930 de Getúlio

26 CARDOSO, R. (Org.) Quatrocentos nomes de Natal. Natal: Prefeitura Municipal de Natal, 2000. p. 455.

25

Vargas, que seu nome estivesse gravado ao lado de ideais considerados modernos ou

inovadores. Sua propaganda política esteve centrada nisto, tanto quanto suas memórias.

Nesse capítulo, analisaremos a campanha de Juvenal Lamartine para o governo de 1927

e a repercussão de suas ações durante seu mandato a partir, principalmente, dos jornais A

República e O Mossoroense, buscando perceber de que forma o voto feminino se coadunava

com sua estratégia política. Além disso, serão abordados alguns dos ecos de memória do

“deputado feminista”, como ficou conhecido, objetivando confirmar o sucesso dessa ideia a

partir da imagem que ficou na história acerca de sua figura política. Perceberemos, por fim, de

que maneira o feminismo e o status feminino foram construídos nas páginas dos jornais, a partir

não só das matérias e notícias relacionadas ao sufrágio, mas também a partir de artigos sobre a

Escola Doméstica, uma outra instituição que implicava a adoção de uma perspectiva de gênero.

Pois que tudo, no fim, resumiu-se ao que era ser mulher, para então descobrir seus direitos e

determinar seus deveres.

2.1 Juvenal Lamartine, o feminista

Juvenal Lamartine de Faria é o primeiro dos nove filhos do casal Clementino Monteiro

de Faria e Paulina Umbelina dos Passos Monteiro27. Nascido em 9 de agosto de 1874, na

Fazenda Rolinha em Serra Negra do Norte, o futuro Presidente do Estado esteve imerso em

política desde o útero, pois ambos seus progenitores faziam parte das elites políticas de sua

região. Por um lado, sua mãe, descendente de um dos primeiros povoadores de Acari, o

fazendeiro Tomaz de Araújo Pereira. De outro, seu pai, ele próprio chefe político de Serra Negra

do Norte, sendo inclusive intendente municipal e deputado estadual de 1907 a 1909, pertencente

à família fundadora da localidade, que tinha como patriarca Manoel Pereira Monteiro.

Dando continuidade à sua inserção nas elites políticas locais, mais tarde se casa com

27 Essa e as demais informações utilizadas para montar a biografia de Juvenal Lamartine de Faria foram coletadas, especialmente, no artigo O educador e intelectual norte-rio-grandense: Juvenal Lamartine de Faria (1874-1956) e no verbete LAMARTINE, Juvenal disponível no site do CPDOC. Ver ARAUJO, M. M.; MEDEIROS, C. M. L. O educador e intelectual norte-rio-grandense: Juvenal Lamartine de Faria (1874-1956). In: Congresso Brasileiro de História da Educação, 2, 2002, Natal. Anais. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2002. e PEIXOTO, R. A. LAMARTINE, Faria. In: CPDOC. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/LAMARTINE,%20Juvenal.pdf. Acesso em: 25 maio 2016.

26

Silvina Bezerra de Araújo Galvão, também pertencente a uma família influente na própria

região, neste caso Acari, na região do Seridó. Silvina era filha de Silvino Bezerra, líder político,

avô de José Augusto Bezerra de Medeiros, que também viria a se tornar líder político e com

quem Juvenal Lamartine posteriormente constituiu a oligarquia do Seridó, facção política

potiguar dominante durante boa parte da República Velha. A presença da oligarquia seridoense

na vida política do Rio Grande do Norte estende-se até os dias atuais, tendo dentre seus

descendentes, por exemplo, Wilma de Faria, curiosamente a primeira mulher a governar o

Estado do Rio Grande do Norte, durante o período de 2003 a 2010. Márcia Maia, filha de Wilma

de Faria, é atualmente deputada estadual norte-riograndense pelo PSDB (Partido da Social

Democracia Brasileira) e foi a primeira mulher a ocupar a presidência da Assembleia

Legislativa do Rio Grande do Norte.

Juvenal Lamartine também teve uma trajetória de vida tradicional para os moldes dos

filhos das elites políticas de sua época. Quando criança foi educado por um mestre-escola,

professores primários contratados por fazendeiros para irem às suas casas ensinar seus filhos as

primeiras letras. Em 1890, ao passar para o ensino secundário, Lamartine começa a estudar em

Caicó, na Escola de Gramática Latina, uma conceituada instituição de ensino seridoense por

onde passou muitos dos políticos e figuras potiguares influentes de sua geração. Já em 1891,

ele se muda para Natal, onde continua seus estudos no Atheneu Rio-Grandense, àquela época

a principal escola secundária do Rio Grande do Norte.

É no Atheneu que Lamartine estreia na vida política. Lá, funda o Grêmio Literário

Natalense em 1893, do qual será presidente, além de participar da construção do Jornal Athleta

e da Revista Potyguar. Segundo Araujo e Medeiros, ele teria sido um dos motivadores de uma

“revolta estudantil”, que chegou a motivar o fechamento do colégio Atheneu no mesmo ano da

fundação do grêmio. As autoras apontam como causa

o convite do então Presidente do estado, Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, ao

Desembargador e Professor José Clímaco do Espírito Santo, para assumir o cargo de

vice-diretor desse estabelecimento, mesmo sem a concordância das lideranças

estudantis, a exemplo de Lamartine28.

28 ARAUJO, M. M.; MEDEIROS, C. M. L. O educador e intelectual norte-rio-grandense: Juvenal Lamartine de Faria (1874-1956). In: Congresso Brasileiro de História da Educação, 2, 2002, Natal. Anais. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2002. p. 3.

27

O conflito teria sido de tal gravidade que o Colégio Atheneu chegou a ser cercado por

forças policiais, motivando a elaboração de uma Carta Aberta nominada “O Nosso Protesto” e

assinada por inúmeros estudantes secundarista, dentre eles Juvenal Lamartine. Essa carta foi

publicada na imprensa local, sendo seguida pelo fechamento por tempo indeterminado da

instituição, usando como pretexto a suposta necessidade de se reformar o local. Assim,

Lamartine acaba por concluir seus estudos na cidade da Parahyba do Norte (atual João Pessoa).

Em 1894 muda-se para o Pernambuco e matricula-se no Curso de Ciências Sociais e Jurídicas

da Faculdade de Direito do Recife, um dos centros de referência na formação dos intelectuais

e políticos da época. Durante sua formação, Lamartine continua a escrever, em revistas locais

e jornais potiguares, principalmente sobre economia e política.

Ao graduar-se, em 1897, Juvenal Lamartine retorna a Natal com o cargo de professor

de geografia do Colégio Atheneu. Logo foi designado para a vice-diretoria, em 1898, na mesma

época em que se torna redator do jornal A República, o órgão de imprensa oficial do Estado,

sobre o qual falaremos mais à frente. No mesmo ano, porém, é criada a Comarca de Acari,

sendo a ela designado como Juiz de Direito pelo Governador Ferreira Chaves.

Em 1903, Pedro Velho, líder da ligarquia Maranhão que até então conduzia a política

norte-riograndense, indica Juvenal Lamartine para o cargo de Vice-Governador do Rio Grande

do Norte ao lado de Augusto Tavares de Lyra, que liderava a chapa pelo Partido Republicado

Federal. Vencidas as eleições, Lamartine toma posse de seu primeiro cargo executivo em março

de 1904, aos 29 anos de idade. Desde então, até o seu exílio forçado em 1930 pela “Revolução”

Outubrista, o jovem político ocupará inúmeros cargos, desde Deputado à Presidente de

Estado29. Durante sua trajetória política, Lamartine tecerá alguns discursos acerca de si e de

seus objetivos enquanto representante potiguar, dos quais fará parte sua luta pelo sufrágio

feminino e as consequentes referências a ele mesmo como exemplo de político feminista.

Liberal, a palavra que definia Lamartine enquanto político era “moderno”. Durante sua

trajetória pública esta vai ser repetidamente evocada para descrever seus mandatos, suas ideias

e seu governo. Para isso, Juvenal Lamartine adotou como suas, pautas consideradas inovadoras

para a época, como a criação da aviação comercial e o sufrágio feminino. Além disso, ele

29“Lamartine ocupou todas as funções eletivas no Rio Grande do Norte. Executivo, chegou a governador. Legislativo, deputado e senador federal, e judiciário, como juiz de direito do Acari. Em qualquer desses ramos de atividade da vida pública, ele foi uniforme, isto é, só tinha uma diretriz – o cumprimento do dever”. MEDEIROS, José Augusto Bezerra de. Lamartine, palmo a palmo. In: Juvenal Lamartine de Faria: 1874/1956. Natal: [s.n.], 1994. p. 9.

28

buscava nos exemplos dos ditos “países civilizados” o espelho para o que deveria ser o novo

Brasil que estava se formando a partir desse início de século XX. O novo, relacionado à

República recém implementada e reclamada pelas elites políticas norte-riograndeses como sua,

é o mote. Esta é uma imagem que perdura até os dias de hoje, muitas vezes replicadas tanto em

suas biografias, quanto na historiografia potiguar.

Nesta cidade que começava já a transformar-se, nós, estudantes, seríamos talvez as

melhores testemunhas dos últimos momentos da chamada República Velha. O tempo

nos daria a visão objetiva dos acontecimentos. E aquele homem austero, [...], o

pioneiro de tanta coisa, o governante que, como já tive ocasião de dizer, adiantou-se

trinta anos nas iniciativas e nas realizações a que ligou para sempre o seu nome.

Sociologicamente, em 1930, estavamos [sic] em 1960: o Dr. Lamartine avançava no

tempo, abria caminhos que permitiram a Natal ser, no segundo conflito mundial,

cidade do mundo, estrategicamente dotada de privilégios que ele, o estadista, soube

vislumbrar.30

Esse discurso, como afirmamos, foi construído durante seus mandatos, repetido

exaustivamente em suas plataformas de campanha, em sua propaganda política nos jornais e

revistas locais, e reiterado por muitos de seus contemporâneos ilustres, como Câmara Cascudo.

No trecho a seguir, retirado de um texto escrito por Cascudo e publicado no jornal A República

em 7 de junho de 1928, destacam-se algumas das pautas reclamadas por Lamartine como

basilares durante o período em que foi Presidente do Estado. Uma, em especial, é a sua ligação

com a “mocidade”, da qual não há muito tempo fazia parte, e da qual esperava-se que saíssem

os próximos líderes dessa Nação ainda engatinhante, como era visto o Brasil – tanto pelas outras

nações do mundo, quanto por seus próprios cidadãos.

Eu não temo a mocidade. A mocidade é para temer-se? [...] O Presidente não a teme.

Não a teme porque se identificou com ela. A solidariedade deste governo aos novos

não é meramente retórica, fala bonita de mensagem e fala de sobremesa. Um

presidente que guia automóvel, viaja de avião, discute literatura, dirige politicamente

a campanha do Feminismo Brasileiro é pouco parecido com as figuras hirtas que

quadrienalmente recebem ditirambos nos Estados. [...] Tudo isso é campanha de

novos. É quebra de rotinas, de usos, de tradições existentes nas memórias e nos

relatórios mais ilógicos nos dias presentes.31

30 PEÇANHA, Nilo. Juvenal Lamartine, um pioneiro. In: Juvenal Lamartine de Faria: 1874/1956. Natal: [s.n.], 1994. p. 33. 31 CASCUDO, Luís da Câmara. Eu não temo a mocidade. In: Juvenal Lamartine de Faria: 1874/1956. Natal: [s.n.], 1994. p. 20.

29

É nessa lógica que se insere a campanha pelo sufrágio feminino na plataforma de

governo de Juvenal Lamartine. Apesar de muito criticado, ainda, o feminismo vinha se

popularizando nas primeiras décadas de 1900, e o voto das mulheres já era realidade em muitas

dos países nos quais os políticos brasileiros se inspiravam, como os Estados Unidos. Lamartine,

utilizou-se dos argumentos da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino durante suas

defesas da constitucionalidade do voto das mulheres brasileiras, especialmente àqueles

embasados na não-exclusão destas na Constituição Federal. Assim, interpretavam que elas

estariam incluídas no “cidadãos brasileiros” a que a lei se referia. Em 7 de setembro de 1925,

Lamartine discursou na Liga da Federação Feminina. Esta fala é um resumo dos argumentos

apresentados por ele, como podemos ver32:

Sou, como é sabido, francamente favorável ao suffragio feminino, com a mesma

amplitude que tem entre nós o masculino.

Convencido, como estou, de que a Constituição Federal não veda á mulher o gozo dos

direitos politicos, antes lhos concede, pois é principio immutavel de interpretação

jurídico que um direito não se restringe por inducção, não vejo motivo para lhe negar,

deante de nossa legislação eleitoral, o direito de se alistar eleitora e votar.33

Argumenta-se, também, na relação do feminismo com o progresso dos países

civilizados, sua ligação com o liberalismo e a democracia, além do importante papel das

mulheres para a sociedade ao serem reforçadas suas atribuições de mães e esposas,

moralizadoras do lar e, por conseguinte, da nação:

Num regimen democrático como é o nosso, é absurdo que se prive metade da

população brasileira de exercer os seus direitos politicos, quando a experiencia tem

demonstrado que a actuação da mulher está sendo mais eficiente que a do homem na

solução das questões sociaes, como a da educação, do trabalho das mulheres e crianças

nas fabricas, no combate ao alcoolismo e, sobretudo, na aproximação internacional

dos povos, afim de evitar ás guerras. Acho, portanto, que a mulher não so deve

colaborar na escolha dos representantes do povo, como na elaboração e votação das

leis á que ella tanto quanto os homens deve obediência.34

32 Neste trabalho, optamos por manter a grafia ortografia original dos documentos analisados. 33 Discurso transcrito no jornal A República. PLATAFORMA do senador Juvenal Lamartine e o voto feminino, A República, p. 1, 22 maio 1927. 34 Discurso transcrito no jornal A República. PLATAFORMA do senador Juvenal Lamartine e o voto feminino, A República, p. 1, 22 maio 1927.

30

Foi inovador, não se pode negar, a inclusão do sufrágio em sua plataforma de campanha.

O jornal O Mossoroense publicou em 22 de maio de 1927 um texto resumindo-a, do qual

tiramos o trecho seguinte:

XVIII O SUFFRAGIO DA MULHER – Convencido de que a constituição concede

ao bello sexo o direito de votar, S. Excia., encampa esta magnifica ideia, a mais

significativa do governo de tolerancia e de paz que pretende fazer. Dando á mulher

amplo acesso ao serviço eleitoral, S. Excia, brindou a tambem com o direito de

representação na Assembléa Legislativa, tendo assim S. Excia., ultimado a sua

Plataforma, com uma verdadeira apotheose ‘a mão que embala o berço riograndense’,

o que bem expressa a nobresa de sentimentos, que se aninham no coração daquele que

vae ser o sacerdos magnus, da politica do Rio Grande do Norte e cujos altruísticos são

entre-advinhados por todos. E assim com este trabalho de alta cultura, estylo castiço

e firmesa de convicções, ventilou S. Excia., a ninharia de desoito themas sob o ponto

de vista econômico, politico, social e moral, que representam manancial adamantino

de ideas que, em breve serão condensadas em realidade.35

Não faltaram críticas, porém, à sua campanha, a seu governo e suas pautas. Café Filho,

que o acusou de mandar queimar as atas das eleições municipais de 1928 para compor a Câmara

com seus aliados, o apelidou de “Ditador Feminista”, em referência às ações violentas de

combate à oposição. Um colunista do jornal O Imparcial (RJ), inclusive, pede explicações a

Bertha Lutz acerca de sua posição a favor desse político ante uma acusação de que Juvenal

Lamartine teria mandado espancar mulheres no Rio Grande do Norte. Não faltou, também, é

claro, aqueles que o criticassem a partir da chacota, normalmente pintando a imagem de um

homem mulherengo e galã, com um harém que o admirava por defender o sufrágio feminino.

35 GURJÃO, J. Fernandes. APRECIAÇÃO em torno da Plataforma do Senador Juvenal Lamartine: futuro Presidente do Rio G. do Norte. O Mossoroense, Mossoró, p. 2, 22 maio 1927.

31

Charge publicada em O Malho (RJ)36

2.2 Feminismo em letras de imprensa: o movimento nas páginas de jornal

Tivemos acesso a três jornais potiguares que circularam no período estudado, que abarca

a trajetória política de Juvenal Lamartine durante seus mandatos de Senador e Presidente do

Estado. São estes: A República, de Natal, e O Mossoroense e O Nordeste, ambos de Mossoró.

Do periódico natalense conseguiu-se os anos de 1927, 1928 e 1929. O primeiro, cerca de vinte

exemplares por mês, com exceção do mês de dezembro de 1927que não consta. Os números de

1928 e 1929, por outro lado, foram mais escassos, tendo apenas alguns números dos meses de

maio a agosto de 1928 e de maio a outubro de 1929. Já O Mossoroense estava disponível, no

Museu Histórico de Mossoró Lauro da Escóssia, praticamente toda a década de 1920. Lá,

também, tivemos acesso a alguns exemplares aleatórios de O Nordeste, dos anos 1927, 1928 e

1929.

O jornal A República foi fundado em 1 de julho de 1889, sendo o órgão oficial do recém-

nascido Partido Republicano do Rio Grande do Norte, dirigido pela oligarquia Maranhão.

Tornou-se, quando esta se estabeleceu no poder do Estado no início do novo regime

republicano, Órgão dos Poderes do Estado, imprensa oficial, sendo publicado diariamente.

Dentre seus articulistas, diretores e redatores estiveram muitos políticos da época, como o

próprio Juvenal Lamartine.

36 Fonte: JUVENAL Lamartine de Faria: 1874/1956. Natal: [s.n.], 1994.

32

O Mossoroense foi um dos principais jornais veiculados no início do século XX no Rio

Grande do Norte. Fundado em 1873, fechou em 1876 e só retornou à atividade em 1901, na

chamada segunda fase do jornal, que se encerrou em 1934. Extremamente eclético em suas

publicações, O Mossoroense se afirmou como veículo de divulgação e promoção das letras,

artes, ciência, política e desenvolvimento humano, se tornando um grande formador e

divulgador de ideias dentro do Estado. O Nordeste, por outro lado, era um veículo de imprensa

“menor”, seu fundador, que também tomava as vezes de redator, diretor e articulista, foi José

Martins de Vasconcellos, intelectual mossoroense adotado (nasceu em Apodi, mas passou toda

a sua vida em Mossoró), conseguiu mantê-lo por dezenove anos, entre 1915 e 1934. Não tinha

a força e a influência política dos proprietários d’O Mossoroense, líderes políticos da região.

É importante destacar a formação dos jornais que aqui estão sendo utilizados como fonte

histórica, pois que a imprensa não é uma instituição descolada da sociedade em que está

inserida, e não só é constituída por atores históricos e financiada por instituições, partidos ou

organizações que têm interesses privados, como faz parte da construção da opinião pública,

pois que torna-se intermediária entre os “fatos” e as “pessoas”. Opinião pública, esta, cada vez

mais valorizada nesse novo sistema político que instaurava-se no Brasil da época, um sistema

que reivindicava-se democrático e que, cada vez mais, vinha se abrindo para a participação

direta de novos agentes políticos com a expansão dos direitos de cidadania. Como bem

destacam Cruz e Peixoto,

Convém lembrar que não adianta simplesmente apontar que a imprensa e as mídias

“têm uma opinião”, mas que em sua atuação delimitam espaços, demarcam temas,

mobilizam opiniões, constituem adesões e consensos. Mais ainda, trata-se também de

entender que em diferentes conjunturas a imprensa não só assimila interesses e

projetos de diferentes forças sociais, mas muito frequentemente é, ela mesma, espaço

privilegiado da articulação desses projetos. E que, como força social que atua na

produção de hegemonia, a todo o tempo, articula uma compreensão da temporalidade,

propõe diagnósticos do presente e afirma memórias de sujeitos, de eventos e de

projetos, com as quais pretende articular as relações presente/passado e perspectivas

de futuro.37

A primeira referência ao feminismo38 que encontramos nos jornais citados foi em 1925,

n’O Mossoroense. Sob o título de “Revista feminina”, há a indicação de uma revista paulista

37 CRUZ, H. F.; PEIXOTO, M. R. C. Na oficina do historiador: conversas sobre História e Imprensa. Projeto História, São Paulo, n. 35, p. 253-270, dez 2007. p. 258-259. 38 Utilizaremos, para efeitos de pesquisa, feminismo enquanto movimento auto-consciente de mulheres, com agenda e pautas próprias. No caso das entradas nos jornais, já o são, em sua maioria, mencionados enquanto tal, com o termo “feminismo” ou identificando pessoas como “feministas”.

33

de circulação nacional, com o mesmo nome, que é referida como “o expoente da causa do

feminismo no paiz” e no qual D. Elisa Rocha Gurgel, mossoroense, colaborou com um texto.

O jornal destaca, especialmente, que a revista – e o feminismo no geral – “ha angariado a

sympathia de todos nòs, indistinctamente do sexo forte ou do bello sexo”39.

Esta, porém, é uma ocorrência excepcional. O feminismo só vem ganhar destaque nos

periódicos estudados a partir do ano 1927, após o lançamento da plataforma de governo de

Juvenal Lamartine. As matérias se relacionavam, principalmente, à relação do sufrágio

feminino e do feminismo, começando uma campanha em prol da conquista de direitos políticos

para as mulheres. A primeira ocorrência direta no jornal A República, porém, não foi favorável.

Em 5 de julho de 1927, pouco mais de um mês depois de publicarem um extenso artigo onde

destacavam os argumentos de Lamartine para apoiar o sufrágio, é transcrito em primeira página

um texto de Agenor de Roure, que saiu originalmente no Jornal do Commercio do Rio de

Janeiro.

Neste, intitulado simplesmente “Feminismo”, o articulista inicia apontando a

emergência da luta sufragista pelo mundo, destacando os lugares em que às mulheres já era

permitido votar. No decorrer dos parágrafos, porém, o texto dá uma guinada e os argumentos

voltam-se para a suposta relação entre sufrágio e alistamento militar obrigatório. Roure afirma

não crer “que a mulher acceite o ‘direito’ de votar com o corollario logico do dever de vestir

farda de soldado e de ‘obedecer sem discutir’”. Roure continua dando destaque as

características “femininas” que não se coadunariam com o serviço militar por seres “o sexo

fraco”. O feminismo estaria masculinizando as mulheres, ao permiti-las ocuparem cargos

considerados masculinos. O medo de inverterem-se os papeis, como vimos anteriormente nos

cartões-postais anti-feministas ingleses, aparece aqui também. O autor alerta: “se não

resistirmos [os homens] um pouco, ellas acabarão por deixar-nos em casa preparando o mingáo

das crianças...”.

Roure chega a encaminhar diretamente ao “sr. presidente do Rio Grande do Norte” e

aos “senhores legisladores” tais avisos. Porém, o interessante, além de percebermos nele alguns

dos argumentos antissufragistas da época e que, ainda hoje, são utilizados para criticar os

movimentos feministas, é o levantamento que o autor faz sobre a presença das mulheres no

trabalho. Segundo ele,

39 REVISTA Feminina. O Mossoroense, Mossoró, p. 2, 18 jul. 1925.

34

No Brasil ha 607.781 mulheres empregadas no cultivo da terra; 84 na extracção de

mineraes; 429.600 nas profissões liberaes e 13.406 capitalistas, para apenas 293.544

no serviço domestico. Nos quadros do recenseamento de 1920, publicados pela

Directoria de Estatistica e referentes ás profissões dos habitantes no Brasil, só na

“força publica” o contingente feminino está em branco ou marcado por “um zero”

bem redondo...40

Podemos perceber a relação direta entre as mulheres ocupando postos de trabalho fora

do lar, com a luta e o futuro reconhecimento de sua cidadania política. As portas do mundo

público não foram abertas para elas, pelo contrário, elas as forçaram e foram entrando,

inicialmente aos poucos, depois tanto que não mais puderam segurá-las fora. Note-se, também,

que o único cargo que o autor identificou como livre de contingente feminino foi “a força

publica”, que se mostrou, realmente, a mais difícil de se conquistar. Nas outras profissões,

porém, percebe-se que as mulheres trabalharam, e muito, desde muito tempo. Foi a constatação

disso e sua valorização que demorou a chegar.

Em contraposição, um ano mais tarde, Quintella Junior publicava, simultaneamente n’A

República e n’O Mossoroense, um longo artigo, dividido em duas partes, intitulado “O

feminismo na aviação”. Neste, ele vai exaltar a entrada das mulheres em áreas que antes não as

aceitava. “A filha de Eva, em qualquer ramo da actividade humana, em que porventura ingresse,

mesmo na politica e na diplomacia, revela-se competidora das aptidões e dos recursos que eram

dantes apanágio exclusivo do homem”. Ele vai dar como exemplo da participação e

competência feminina feitos extraordinários de mulheres na aviação e ignorados pela maioria

da população, como o de Katerine Stinson, americana que não só dirigia ambulâncias durante

a Primeira Grande Guerra, como também foi a inventora do “sky writer, a escripta no céo”41.

2.3 O outro lado da moeda: Escola Doméstica e ideal feminino

Ao mesmo tempo em que A República estava publicando matérias sobre feminismo e

sufrágio feminino, estava acontecendo uma intensa propaganda da Escola Doméstica e seus

ideais em suas páginas. Muitas vezes, esses textos apareciam lado a lado, como duas faces de

40 ROURE, Agenor do. Feminismo. A República, Natal, p. 1, 7 jul. 1927. 41 JUNIOR, Quintella. O feminismo na aviação. O Mossoroense, Mossoró, pp. 1-2, 17 jun. 1928.

35

uma mesma moeda. A mulher independente, cidadã, profissional; também esposa, mãe, dona

do lar e responsável pela família. Como, então, esses dois discursos conseguiam coexistir?

A Escola Doméstica foi criada em 1914 por Henrique Castriciano, intelectual e político

potiguar. Instituição de ensino para as moças das elites norte-riograndenses, a escola nasceu

com o objetivo de ser modelo de ensino de mulheres para todo o Brasil. Tinha como mote e

filosofia a formação de mães e esposas exemplares, contando em seu currículo, além das

disciplinas comuns, matérias como puericultura e “medicina pratica e de urgencia”. O foco,

portanto, era o que eles chamaram de “sciencia domestica”. Seu idealizador, em conjunto com

a equipe do colégio, fez inúmeras viagens para a Europa – em especial, Suíça -, em busca do

melhor para a educação das meninas nesses padrões. É o que exalta um artigo n’O Jornal, do

Rio de Janeiro, transcrito para A República de 20 de março de 1927:

A educação feminina, no Brasil, muito embora tratada com carinho, ha muito annos,

força é confessar que ainda não attingiu as fórmas definitivas que enobrecem em

determinados paises europeus.

Temo-nos preoccupado mais com o preparo propriamente literario da mulher que com

a sua especialização feminina, no sentindo da formação da mãe de familia, da dona de

casa, integralmente senhora do seu doce mister.42

O valor das mulheres – se não integralmente, mas grande parcela dele -, estava na sua

função de mãe, aquela que cria os futuros cidadãos brasileiros. Cidadãos, estes, responsáveis

pela construção dessa Nação recém-nascida. “A Escola Domestica de Natal educa o espirito

feminino de modo a tornar a mulher a mais perfeita obreira da nacionalidade”.43É por isso,

portanto, que torna-se inaceitável manter-se apenas a chamada “educação de agulha”, aquela

em que às meninas só é ensinado o corte e costura, as letras e as operações primárias, além de,

óbvio, um pouco de canto ou francês para entreter seus convidados. A mulher supérflua e burra

não seria mais tolerada nessa nova sociedade burguesa e liberal, agora a todos torna-se mister

o trabalho. Para as mulheres, porém, estes ainda estariam ligados aos tradicionais papeis de

cuidar e zelar de outros, relacionados ao seu principal dever com a natureza, a religião e a

sociedade: a maternidade.

O lar era considerado sob jurisdição feminina, seu império, e a família, dentro dele, é o

cerne da nação. Não é de se espantar, então, que muitos tenham chegado a conclusão de que

42 UMA LINDA obra de encanto e poesia, A República, Natal, p. 1, 20 mar. 1927. 43 EDUCAÇÃO Domestica, A República, Natal, p. 1, 9 jul. 1927.

36

“um dos problemas de maior alcance para o nosso paiz é, indiscutivelmente, o do preparo

domestico das mulheres”44. A Escola Domestica se propunha a modernizar a função de esposa,

renovando assim as práticas e ações das mulheres em seus domicílios. Mais audacioso ainda

era a ambição de tornar o Brasil um país mais forte, com crianças sadias e hábitos saudáveis. A

medicina e a ciência uniam-se, assim, para higienizar os lares, agora de responsabilidade

pública. As mães deveriam ser educadas de acordo com estas premissas, aprendendo a criar

seus filhos e manter sua família.

O lar não póde mais ser encarado, nem nós o encaramos, como out’ora era

considerado; carcere dissimulado em que ás esposas eram apenas escravas adornadas,

obrigadas a todos os serviços internos sem liberdade siquer de pensamento.

O lar moderno deve ser officina sagrada onde se forjem os caracteres, a primeira

escola onde os filhos eduquem-se para enfrentar as crescentes dificuldades da vida.

Mas nem só isso é o lar de hoje. Elle é tambem o sanitorio onde as mães devidamente

preparadas premunem as crianças contra as insidiosas molestias que as sacrificam

impiedosamente.45

Além disso, a educação feminina era de extrema importância para a “renovação moral”

da nação brasileira. Um novo regime político exigia uma nova população, não mais gente

simples, e sim cidadãos capazes de influir de maneira responsável nos destinos de seus lugares.

A mulher, portanto, tem papel de destaque, pois que é vista como símbolo de pureza,

moralidade e bondade. Ela deveria, assim, criar a partir de suas famílias um Brasil melhor, mais

evoluído, tais quais os países civilizados utilizados como modelo.

Muitos daqueles que vão opor-se ao voto feminino utilizam como argumento o fato de

que as mulheres, supostamente, já teriam influência o suficiente dentro de suas casas, com os

seus maridos e filhos, não sendo necessária a garantia do voto para garantir sua cidadania e

participação política. “Lembramo-nos do conceito de que a família é o dominio da mulher, o

reino onde ella exerce a sua autoridade sem limites, tendo sobre os pequenos vassalos que

governa um poder absoluto”.46

O interessante da campanha sufragista foi a ressignificação de todos esses estereótipos

femininos. O feminismo bem-comportado não os recusou, pelo contrário, utilizou-os como

44 ESCOLAS Domesticas, A República, Natal, p. 1, 13 ago. 1927. 45 ESCOLAS Domesticas, A República, Natal, p. 1, 13 ago. 1927. 46 EDUCAÇÃO Domestica, A República, Natal, p. 1, 9 jul. 1927.

37

motivos para a inclusão das mulheres no corpo de cidadãos políticos. Ela, como elemento chave

e moralizante, não deveria ser deixada de fora do jogo político. As mulheres não seriam

facilmente corrompidas, além de seu espírito “naturalmente” empático e doador ser perfeito

para um sistema considerado corrupto e sujo em seus alicerces. Elas seriam mães e esposas da

pátria, cuidando-a e mantendo-a sã e limpa, como deveriam ser seus próprios filhos.

Da bôa e sã educação da mulher depende, certamente, muito a futura grandeza da

nossa Patria. Preservando a vida da nossa infancia pela pratica dos conhecimentos

hygienicos e revigorando-lhe o caracter pela educação na juventude, a mulher não só

concorre para o crescimento numerico da população, como lhe augmenta pelo vigor

physico e moral, a sua efficiencia de factor insubstituivel da grandeza economica e

social.47

Assim, n’A República veremos o casamento desses dois ideais, que desta forma não se

mostraram paradoxais, mas complementares. Ao mesmo tempo em que se fazia uma campanha

feminista em prol do voto feminino, elevava-se suas responsabilidades e seu valor para a

comunidade a partir da atenção dada à educação das mulheres na Escola Doméstica. O Rio

Grande do Norte foi pioneiro na colocação em práticas desses dois modelos de inclusão social

e política das mulheres, sendo a Escola Doméstica também modelo para outras a ser criadas no

país, e seu exemplo de pioneirismo cidadão um empurrão para os debates acerca do voto

feminino.

Não é de se admirar, portanto, que Juvenal Lamartine tenha sido o paraninfo da turma

de formandas da Escola Domestica em 1927, apenas um mês depois da institucionalização do

voto feminino no Estado. Em seu discurso, ele destaca as mudanças ocorridas nas vidas de

muitas mulheres nas últimas décadas, defendendo que “a vida moderna, que attrae a mulher

para as carreiras scientificas, para a indústria, para o commercio e para a politica, não lhe

diminue o encanto nem a destrona de rainha do lar”.48

O seu discurso condensa o que viemos falando até então, por isso retiramos um trecho

um tanto longo para demonstrá-lo:

47 ESCOLA Domestica, A República, Natal, p. 1, 23 nov. 1927. 48 ESCOLA Domestica, A República, Natal, p. 1, 23 nov. 1927.

38

Proporcionar á mulher, pela educação, opportunidade de desenvolver suas admiraveis

qualidades de intelligencia, e conceder-lhe o goso dos direitos politicos para que ella

possa ter actuação na vida do paiz, não é, como pensa muita gente, querer tornal-a

igual a esse animal feio e egoista que é o homem. A differenciação que existe na vida

phisiologica dos dois sexos se dará forçosamente na sua actuação politica. Enquanto

o homem, pelo seu caracter agressivo, promove as guerras e se deixa empolgar pela

carnificina, a mulher corre para os hospitaes de sangue, arrisca a vida, num heroismo

mais sublime que o dos grandes generaes, guiando ambulancias da Cruz Vermelha

atravez da fuzilaria, indifferente á morte, para ir buscar o soldado que tombou ferido,

afim de alliviar os seus sofrimentos, sem se preoccupar se esse soldado ferido é um

irmão, ou um inimigo de sua Patria. Na solução dos problemas que se relacionam com

a instrucção, com a protecção da mulher e das creanças operarias nas fabricas, as

mulheres teem tido uma actuação mais efficiente que a do homem. Essa é a lição que

nos vem dos paizes que já concederam direitos politicos ao sexo feminino,

preocupados sempre com leis de assistencia e de hygiene.49

Lar, família, educação, assistência e moral. Foram as palavras definidoras do sexo

feminino nas páginas dos jornais analisados. De uma maneira ou de outra, seja a favor ou contra

o feminismo, estas foram as questões norteadoras. Tudo envolto no ideal de Nação a ser

construída. Esta foi, basicamente, uma luta de representações, nos mostrando como ideia e

discurso podem se materializar para além das letras. Aprofundaremos a questão no próximo

capítulo.

49 ESCOLA Domestica, A República, Natal, p. 1, 23 nov. 1927.

39

3. Abrem-se as porteiras: o sufrágio feminino acontece em terras potiguares

A propaganda sufragista nos jornais analisados teve seu ápice durante o final de 1927.

Ela se deu, principalmente, quando do lançamento da plataforma de governo de Juvenal

Lamartine, mas intensificou-se, curiosamente, após a promulgação da lei que permitiu o voto

feminino no Rio Grande do Norte. Acreditamos que isso ocorreu porque a legalização do voto

feminino se estabeleceu de maneira nada usual, como veremos adiante. Por isso então, era

necessário provar sua validade e, principalmente, o seu valor.

Neste capítulo discorreremos acerca da lei nº 660, para perceber de que maneira foi

criada uma narrativa ao seu redor que justificaria a sua elaboração. Nos detendo nisso,

perceberemos a construção de uma identidade potiguar e, mais especificamente, mossoroense,

que se relaciona ao sufrágio feminino e o seu significado: a modernidade. Os jornais foram

bombardeados com sua repercussão, sua visibilidade fora do Estado e a possibilidade do Rio

Grande do Norte escrever seu nome na História, assim como os nomes daqueles que estivessem

por trás de sua caminhada para o futuro.

Por fim, então, será abordada a transformação da Lei em realidade, a partir dos

despachos dos juízes que alistaram as primeiras mulheres eleitoras da América do Sul. Em seus

textos, nos quais eles discorrem acerca da constitucionalidade do sufrágio feminino e dos

motivos pelos quais eles o consideraram legal, é possível entender de que maneira o discurso

feminista que viemos analisando ao longo dessa monografia foi assimilado e posto em prática.

3.1 Lei nº 660, 25 de outubro de 1927

É importante destacar de que forma foi aprovada a Lei nº 660, de 25 de outubro de 1927,

em que se estabelecia que no "Rio Grande do Norte poderão votar e ser votados, sem distinção

de sexo50, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei". João Batista

Cascudo Rodrigues51 narra como o projeto de elaboração da lei eleitoral do Estado estava sendo

50 Grifo nosso. 51 RODRIGUES, João Batista Cascudo. A mulher brasileira: direitos políticos e civis. Editora Renes: Rio de Janeiro, 1982.

40

discutido na Assembleia Legislativa, e neste não havia a intenção de adicionar o artigo

relacionado ao voto feminino. Depois da redação ter sido aprovada, porém, chega um telegrama

de Juvenal Lamartine a fim de incluí-lo. Apesar dos meios nada formais, o então Presidente do

Estado, José Augusto Bezerra de Medeiros, resolve apoiar Lamartine e manda adicionar a tal

emenda, a "grande conquista". O depoimento transcrito por Rodrigues do deputado Adauto da

Câmara, que participou da elaboração da lei eleitoral, narrado em “História de Nísia Floresta”,

explica:

Éramos o leader da Assembléia Legislativa. O projeto correu todos os trâmites, até a

redação final. Aprovada esta, chega do Rio um telegrama de Juvenal Lamartine, a fim

de que fizesse incluir uma disposição consagrando a igualdade de direitos dos

cidadãos de ambos os sexos. José Augusto, que era então Presidente do Estado,

relutou, e replicou a Lamartine, usando, entre outros, o argumento de que a redação

final estava aprovada. Lamartine não se deu por vencido e voltou à carga. José

Augusto, deixando de lado os seus escrúpulos de exegeta do texto constitucional,

arranjou as coisas, para satisfazer a Lamartine, certo como estava de que tudo aquilo

era um fogo de artifício... Éramos também redator do órgão oficial, “A República”, e,

nesta qualidade, fazíamos a resenha dos trabalhos parlamentares. José Augusto, que

vivia mais na “A República do que em Palácio, sugeriu-nos incluir na resenha uma

emenda apresentada por nós, instituindo o voto feminino. Assim se fez. Quando a lei

foi publicada, lá estava a grande “conquista”, concretizada no art. 77 das Disposições

Gerais.52

Tendo, enfim, entrado em vigor a tão sonhada lei, Juvenal Lamartine se esforça para

que a notícia de sua grande conquista seja espalhada. Ela foi divulgada em todo o Brasil e

também fora do país, na Europa e Estados Unidos. Inúmeros discursos de agradecimento e

felicitações são dedicados a "um dos mais esclarecidos propagandistas dos direitos políticos da

mulher brasileira", como afirmou a Dra. Cacilda Martins, feminista que fazia parte da

Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. O Jus Suffragi, órgão oficial da Aliança

Internacional, que representava agremiações feministas de quarenta e três nações, publicou e

enviou felicitações ao Estado e a Juvenal Lamartine, apontando-o como um nome precursor na

América Latina, aquele que lutava para equiparar o Brasil aos “países cultos”. Lamartine foi

felicitado diretamente, segundo ele em um telegrama para Adauto da Câmara53, pelo próprio

embaixador dos Estados Unidos. Em publicação no jornal A República, exclama-se:

52 RODRIGUES, João Batista Cascudo. A mulher brasileira: direitos políticos e civis. Editora Renes: Rio de Janeiro, 1982. p. 64. 53 Transcrito n’A República. O RIO Grande do Norte e o suffragio feminino, A República, Natal, 8 nov. 1927.

41

Entre os propagnadores mais esclarecidos e sinceros de seus direitos [das mulheres]

se conta do sr. senador Juvenal Lamartine, cuja mentalidade não é extranha ao

movimento das mais graves questões sociaes do nosso tempo.

Quando se escrever a historia dessa memoravel reforma dos nossos costumes, que se

annuncia com a admissão da mulher nos pleitos eleitoraes, nas assembléas

deliberantes, nos encargos do governo, o nome de S. Ex. será saudado como do grande

pioneiro, cuja educação liberal semeou o caminho do triumpho.54

E todos esses esforços renderam frutos. A imagem de Lamartine, até os dias de hoje,

está relacionada à ideia de progresso, como um antecipador de novos tempos, aquele que

projetou o nome da terra potiguar além das fronteiras do país. E, principalmente, como um dos

grandes nomes da campanha sufragista brasileira. No livro publicado em comemoração ao seu

centenário, composto de quatorze textos escritos por diferentes pessoas, em diferentes épocas,

e que abordam cada um uma faceta do indivíduo Lamartine, a sua relação com o feminismo e

a luta sufragista é citada em oito deles. Um especificamente, escrito por Edgar Barbosa, é

exclusivo sobre o tema. Ele aclama que “antes de qualquer homem de Estado brasileiro, Juvenal

Lamartine foi o precursor da mudança no ‘status’ feminino, alforriando a mulher da servidão

secular, sem que ela perdesse ou renunciasse aos deveres que lhe corriam no dualismo

doméstico”55.

Logo que a lei eleitoral entra em vigor, mulheres em todo o Estado comparecem ao

alistamento eleitoral. Segundo Rodrigues56, são elas, até fevereiro de 1928: Sras. Beatriz Leite

Morais e Elisa da Rocha Gurgel (29-11 e 16-12, em Mossoró); srta. Marta de Medeiros (10-12,

em Acari); sra. Maria Salomé Diógenes Pinto e senhorita Hilda Lopes de Oliveira (14-12, em

Apodi); Concita Câmara, Belém Câmara, Áurea Magalhães, Maria José, Luísa de Oliveira,

Maria Leopoldina, Carolina Wanderley e Ermelinda Teixeira de Mello (inscritas no mês de

dezembro, em Natal); senhoritas Joana Cacilda Bessa e Francisca Dantas, senhoras Clotilde

Correia Ramalho e Carolina Fernandes de Negreiros (31-12, em Pau dos Ferros) e a senhorita

Maria de Lurdes Lamartine, filha do próprio Juvenal Lamartine de Faria.

A partir de novembro de 1927, os jornais passam a fazer campanha em suas páginas

para o alistamento eleitoral feminino. Tanto n’A República quanto n’O Mossoroense aparecem

anúncios convocando-as a se alistarem, da mesma forma que o faziam quando da divulgação

54 O RIO Grande do Norte e o voto feminino, A República, Natal, 17 nov. 1927. 55 BARBOSA, Edgar. Juvenal Lamartine e o voto feminino. In: Juvenal Lamartine de Faria: 1874/1956. Natal: [s.n.], 1994. p. 32. 56 RODRIGUES, João Batista Cascudo. A mulher brasileira: direitos políticos e civis. Editora Renes: Rio de Janeiro, 1982. p. 75-76.

42

de chapas políticas em épocas eleitorais. Em 2 de setembro de 1928, ao se realizarem as eleições

para prefeitos, intendentes e vagas existentes na Assembleia Legislativa do Estado, foram

circulados boletins nas quatro seções eleitorais de Mossoró conclamando: “Alistae-vos

mulheres mossoroenses!”. Foi esta eleição, inclusive, que consagrou a primeira mulher eleita

para um cargo executivo no Brasil e na América Latina, Alzira Soriano, eleita prefeita do

município de Lajes.

Anúncio em O Mossoroense57

Além disso, publicaram reportagens e entrevistas com algumas das novas eleitoras,

especialmente Celina Vianna, considerada a primeira mulher na América Latina a ter

conquistado o direito de votar. No boletim a que nos referimos anteriormente, ela invoca as

mulheres mossoroenses a formar “uma legião nobre e aguerrida ao lado do Ex. Sr. Dr. Juvenal

Lamartine – o maior dos brasileiros na defeza dos direitos politicos da mulher em nosso Paiz”58.

Em entrevista dada ao jornal O Nordeste em 22 de setembro de 1928, Celina Vianna defende a

urgência de um “combate efficiente de propaganda e esclarecimento sobre o feminismo, o bom

57 Fonte: O Mossoroense, Mossoró, 12 ago. 1928. 58 AS ELEIÇÕES Estaduaes de 2 do andante, O Nordeste, Mossoró, p. 1, 9 set. 1928.

43

feminismo, o verdadeiro feminismo”, aquele que o movimento sufragista brasileiro adota e do

qual viemos falando desde então, o feminismo bem-comportado. Como ela destaca, naquele

momento o voto feminino era “ordem do dia”, e cabia aos seus defensores potiguares colocarem

as cartas na mesa da maneira que os aprouvessem. As mulheres deveriam ser colaboradoras dos

homens, não estarem em guerra com eles e, dessa forma, colaborar com a comunidade e

moralizar a política, sempre em busca do progresso feminino.

Em entrevista ao jornal O Mossoroense, quando questionada “qual a idéa que faz do

feminismo”, Celina resume seu – e o da Associação de Eleitoras Norte-Riograndense da qual

era Secretária Geral e que tinha fortes ligações com a Federação Brasileira pelo Progresso

Feminino - posicionamento dessa forma:

Não ouso confundir o feminismo com o suffragismo. Quero o primeiro,

proporcionando á mulher uma educação necessaria ao desenvolvimento de sua

intelligencia, uma cultura profissional que a torne apta para se manter, sabendo ser

forte e digna na lucta pela vida, sem desnaturar-lhe a belleza do sexo, a suavidade e a

graça que a ella pertencem. Não vejo no suffragio, senão a consequencia dessa

aspiração para o completivo da acção da mulher como membro consciente do

apparelhamento administractivo de sua Patria. Esse sem aquelle é mesmo que pôr nas

mãos do operario instrumentos desconhecidos...59

O perfil dessas novas eleitoras é bastante homogêneo, principalmente se considerarmos

as restrições ao voto que já existiam antes, como a comprovação de renda e alfabetização.

Muitas eram professoras, como Celina Guimarães Vianna, que se tornou a cara do movimento

no Estado, e Maria Sylvia de Vasconcellos, ambas ocupando os cargos de professoras na Escola

Normal Primária de Mossoró. Outras eram pessoas públicas ligadas à literatura, como a

intelectual (e também professora) Maria Carolina Wanderley, fundadora da revista Via-Láctea;

poetisa, ela é autora de Alma em Versos (1919) e Rimário infantil (1926).

Ou, ainda, várias dessas mulheres estavam relacionadas a grandes nomes da terra norte-

riograndense, como era o óbvio caso da filha de Lamartine, Maria de Lurdes Lamartine, e da

Dona Beatriz Leite de Moraes, professora da cadeira elementar masculina, também anexa à

Escola Normal mossoroense, esposa do Tenente Laurentino Teixeira de Moraes, delegado de

polícia de Mossoró. O caso de D. Alzira Soriano de Souza, sobre quem falamos anteriormente,

é o mais emblemático. Viúva do Dr. Thomaz Sorianno Filho, líder político da localidade de

59 O VOTO feminino, O Mossoroense, Mossoró, p. 1, 2 set. 1928.

44

Lajes que falecera, toma então seu lugar no comando político da região ao ser eleita prefeita da

sua cidade. Refletindo o movimento sufragista nacional, as eleitoras do Rio Grande do Norte

faziam parte da elite potiguar, conservadora, apesar de se dizer progressista.

O sufrágio feminino no Rio Grande do Norte, portanto, se deu a partir de uma manobra

política, a fim de se tornar peça de campanhas e ter apelo propagandístico. Não se deve, porém,

eliminar sua importância. Ele foi possível a partir da articulação de grupos feministas, de

vanguardas femininas, seguindo uma estratégia de luta específica. Além de acontecer, é claro,

dentro de um contexto propício, no qual já não era incomum verem-se mulheres ocupando

profissões liberais, em áreas consideradas masculinas e pioneiras em diversos âmbitos. Foi um

movimento conservador, sim. Elitista, sim. Esteve reservado, por muito tempo, a uma parcela

pequena de todo um universo feminino que povoava o Brasil do início do século XX. Isto não

torna o objetivo mais fácil, só muda os meios através dos quais as militantes brasileiras

conseguiram conquistá-lo. Não foi um feminismo radical, ligado a setores progressistas da

sociedade; nem, muito menos, tentou revolucionar a relação de poder entre os sexos. Apesar

disso tudo, a conquista da cidadania política, mesmo que naquele momento restrita a poucas

mulheres, foi um passo essencial para a reclamação das demais demandas femininas. Provou,

principalmente, que as mulheres poderiam atuar na vida pública, espaço privilegiado de luta em

um regime democrático.

3.2 Do Rio Grande do Norte, com amor: a notícia e o voto tomam o mundo

Em 4 de dezembro de 1927, pouco mais de um mês após a promulgação da lei nº 660,

O Mossoroense publica em sua capa: “A Primeira Eleitora Brasileira”. No subtítulo, lemos:

“Mossorò sempre á vanguarda dos grandes e nobres commettimentos”. Mossoró, além de ser

um dos polos de influência estadual, é uma cidade que se esforça para construir e manter uma

identidade específica – a de pioneira, de vanguarda potiguar. Ou, como afirma a matéria, “erigiu

Mossoró mais um padrão memoravel na sua vida de municipio paladino de altas e avançadas

iniciativas”60. Dentro dessa lógica, quando se estabeleceu ter sido Celina Guimarães a primeira

mulher a ter título de eleitora no Estado, País e América do Sul, houve uma intensa manobra de

60 A PRIMEIRA Eleitora Brasileira, O Mossoroense, p. 1, 4 dez. 1927.

45

publicação e publicização do feito para alimentar essa identidade.

Em todas as entrevistas da professora a que tivemos acesso nos jornais e período

estudados, ela vai ressaltar esse ponto. Na entrevista de 2 de setembro, uma das perguntas foi

exatamente “E Mossorò?”. Eis a resposta, bastante otimista:

Não sabe que foi de Mossoró que partiu o primeiro grito feminino participando aos

brasileiros que no Rio G. do Norte já havia mulheres eleitoras?

Foi, portanto, a Cidade leader ainda desse movimento.61

Em breve, garanto-lhe Mossoró disputará o primeiro lugar no alistamento feminino,

como ja o gosa pelo numero de eleitores homens.

Ha aqui uma elite poderosa de candidatas ao eleitorado ja se arregimentando perante

o Dr. Eufrasio de Oliveira, o nosso juiz, mais feminista do que parece.

Os chefeses locaes são adeptos da causa das mulheres e não têm negado o seu esforço

e applauso ao movimento.62

Celina Vianna viajou junto de Bertha Lutz por todo o Estado para divulgar a novidade,

tornando-se porta-voz do feminismo potiguar. Fez, inclusive, incursões pelo Brasil e foi

entrevistada por jornais do país afora. Não parou por aí, porém, a propaganda norte-

riograndense que também se dirigiu a outros países. Muitos foram os telegramas despachados,

os jornais notificados e as pessoas influentes informadas da novidade ocorrida no pequeno

estado brasileiro. Não é à toa, portanto, que tão grande - e na sua maioria favorável, segundo a

cobertura dos jornais analisados - tenha sido o feed back., ou seja, a reação e resposta dos outros

Estados brasileiros e de outros países à notícia vista como positiva.

61 Grifo nosso. 62 O VOTO feminino, O Mossoroense, Mossoró, p. 1, 2 set. 1928.

46

Página do jornal O Paiz (RJ)63

Uma das consequências mais significativas da promulgação da Lei Eleitoral potiguar, e

da campanha sufragista que tinha como uma de suas estratégias a conquista do voto feminino

estado por estado, foi o ressuscitamento do projeto nº 102, de 1919, apresentado pelo então

senador Justo Chermont, concedendo às mulheres os direitos políticos. Em 10 de novembro de

1927, poucos dias após, A República informa que a Comissão de Justiça do Senado foi

convocada para votá-lo, tendo como redator da matéria o senador Aristides Rocha, adepto do

voto feminino. Segundo a mesma notícia, o Presidente Washington Luís estaria apoiando a

iniciativa.

O caso potiguar inflama a discussão no Brasil. Dentro do Estado também não é diferente

e os meses seguintes mostram páginas recheadas de notícias, telegramas, notas e anúncios

feministas e sobre o feminismo, especialmente sobre os trâmites do projeto de lei nº 102. Os

ânimos estavam exaltados e o clima era de muito otimismo, a impressão era de que a qualquer

momento a Câmara Federal sancionaria para todo o país o avanço que começou no Rio Grande

do Norte.

63 Fonte: Biblioteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/. Acesso em: 29 maio 2016.

47

No dia 18 de novembro de 1927 a primeira capa d’A República foi quase que exclusiva

para o tema do sufrágio feminino. Do lado esquerdo, uma matéria sobre o andamento da votação

da lei federal, que estava sendo julgada na Comissão de Justiça do Senado. Poucos dias antes,

fora assinado o parecer favorável à aprovação do projeto de 1919, com apenas um membro da

Comissão, o senador Cunha Machado, votando contra. Ao mesmo tempo, o deputado norte-

riograndense Dioclecio Duarte (também redator desse jornal) fazia um discurso acalorado na

Câmara dos Deputados congratulando o país e o Estado “pela grande conquista liberal, de que

a nossa terra teve a primazia”. Duarte também “concitou os homens publicos a meditarem sobre

a situação da crescente inffluencia que a mulher vae conquistando, dia a dia, sobre os destinos

sociaes e politicos de nosso tempo”64

À direita, nessa mesma página, vemos a transcrição de uma entrevista dada pelo

Presidente eleito do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine, para o jornal carioca O Paiz. Ela

toma duas colunas, de cima abaixo, demonstrando a importância do tema entre a editoria, já

que reserva espaço privilegiado para a sua veiculação. Em seu subtítulo demonstrando o

otimismo da época para aqueles apoiadores do voto feminino, destaca-se: “A campanha està

ganha”. Ao ser perguntado se ele acreditava que os outros estados demorariam a seguir o

exemplo potiguar, Lamartine responde: “Não. Creio que dentro de dois anos o voto feminino

será adoptado não só nos demais Estados brasileiros como na União. Quero crer mesmo que

antes do Congresso votar um dos projectos que dormem nos seus archivos a mulher será eleitora

federal”. Por fim, o político destaca a importância das mulheres que fazem parte da Federação

Brasileira pelo Progresso Feminino, as “generaes da vitória” 65.

É importante abordar, porém, o caso dos votos para José Augusto Bezerra, candidato a

Senador da República em 1928. Esta teria sido a primeira eleição, ocorrida em 5 de abril, na

qual foi posta em prática a lei nº 660, quando eleitoras potiguares votaram no antigo Presidente

de Estado para o Senado, vindo a ocupar a vaga deixada, justamente, pelo novo Presidente de

Estado, Juvenal Lamartine. Não foram mais de vinte votos dados por mulheres, mas a

reverberação desse fato foi grande. Iniciou-se um processo para saber se esses votos seriam

válidos ou não, já que muitos consideravam o sufrágio feminino inconstitucional. O jornal A

Noite, do Rio de Janeiro, chegou a transcrever trechos do despacho judicial que alistou a

senhorita Maria de Lurdes Lamartine, justificando seu posicionamento a favor da ratificação

64 PELO suffragio feminino, A República, p. 1, 18 nov. 1927. 65 O RIO Grande do Norte concede direitos politicos á mulher, A República, p. 1, 18 nov. 1927.

48

dos votos. No fim, porém, eles foram invalidados.

Como sabemos, hoje, a caminhada até a conquista do direito ao voto ainda não estava

tão perto assim de acabar, como pareciam acreditar as militantes e seus apoiadores. Na verdade,

o projeto de lei nº 102 não passou no Senado, e o outro – ao qual Juvenal Lamartine menciona

na entrevista -, continuou engavetado. A campanha da Federação Brasileira pelo Progresso

Feminino, porém, não arrefeceu. Inúmeras Associações e Federações sufragistas foram

fundadas nos Estados, muita pressão foi feita junto aos políticos e das instituições de influência,

elas conseguiram apoio da Ordem dos Advogados Brasileiros, de grandes juristas de nomes

proeminentes do Direito e de boa parte da opinião pública. Quando se deu a “Revolução de

1930”, porém, alguns reajustes precisaram ser feitos. Conquistando o apoio de Getúlio Vargas,

o sufrágio foi garantido através do decreto 21.076 do Código Provisório, em 1932. Bertha Lutz,

depois disso, participa do comitê elaborador da Constituição de 1934, quando enfim o voto

feminino é regulamentado.

3.3. Chegamos ao judiciário: A consolidação do sufrágio feminino no Rio Grande do Norte

O primeiro artigo da lei nº 660 define que “serão eleitores do Estado os cidadãos que se

houverem alistado para as eleições federaes na forma da Lei Federal em vigor (Constituição

Estadual, art. 64)”. Para se tornar eleito, portanto, dever-se-ia ser cidadão brasileiro, maior de

21 anos, excetuando-se:

1º Os mendigos 2º Os analphabetos; 3º As praças de pret, exceptuando os alumnos

das escolas militares de ensino superior; 4º Os religiosos de ordens monasticas.

companhias, congregações, ou communidades de qualquer denominação, sujeitas a

voto de obediencia, regra, ou estatuto, que importe a renuncia da liberdade

individual.66

Como podemos ver, não há a exclusão direta das mulheres da condição de cidadãs

66 CONSTITUIÇÃO Brasileira de 1891. DISPONÍVEL em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1824-1899/constituicao-35081-24-fevereiro-1891-532699-publicacaooriginal-15017-pl.html

49

brasileiras. Nunca o houve, na verdade, mesmo na Constituição Imperial. Até o século XX,

porém, esta “falha” não era questionada, pois era de entendimento geral que a palavra “cidadão”

estava se referindo às pessoas do sexo masculino. Da mesma forma, os escravos não eram

citados na antiga Constituição, apesar de ambos – escravos e mulheres -, serem lembrados nos

Códigos Criminais. O adendo feito à Lei Eleitoral do Rio Grande do Norte foi mencionar,

explicitamente, que não havia distinção de sexos entre os cidadãos, bastava que reunissem as

condições exigidas pela lei.

Entendemos, então, que existiam três degraus a galgar até a urna. Primeiro: ser cidadão

ou cidadã brasileira; segundo: estar apto, segundo a lei, para tornar-se eleitor e elegível; terceiro:

provar isso a um juiz, que julgará o caso e inscreverá – ou não – o seu nome no alistamento

eleitoral. Os despachos dos juízes eram, portanto, imprescindível para o exercício do voto, da

mesma forma que hoje é necessário o Título de Eleitor. No caso estudado, tive acesso a cerca

de dez requerimentos e seus despachos. As informações fornecidas eram o nome e filiação da

candidata, estado civil, idade, domicílio eleitoral e comprovação de renda (normalmente os

vencimentos, se tiver profissão, ou os do marido se não).

Quando os requerimentos para a inclusão no alistamento eleitoral dessas mulheres

chegaram, a postura dos juízes variou. Alguns não tardaram a deferir os pedidos, como foi o

caso do juíz interino Israel Ferreira Nunes, de Mossoró, responsável pela inclusão do nome da

primeira eleitora da América do Sul à lista geral de eleitores, a Professora Celina Guimarães

Vianna. Ele também despachou diretamente o requerimento de pelo menos mais duas outras

cidadãs, a que tivemos acesso. O texto era basicamente o mesmo em todos os casos, no qual ele

declarava os dados e constatava o atendimento de todas as formalidades legais, mandando assim

que se incluísse seus nomes na lista dos eleitores do município de Mossoró.

Outros, porém, se detiveram, ponderando a constitucionalidade deste recém adquirido

direito feminino. Aqui, irei analisar três desses processos, buscando entender a construção do

discurso que possibilitou, enfim, a mudança do caráter da cidadania da mulher. Como se deu a

absorção desses ideais de campanha e agenda política ao discurso jurídico?

Esses três processos foram reunidos em um opúsculo lançado pela Imprensa Oficial de

Natal já em 1928, intitulado "Os Direitos Políticos da Mulher". Ele traz, além dos despachos

expedidos pelos juízes Xavier Montenegro, Silverio Soares de Souza e João Dantas Salles, uma

pequena introdução acerca do lugar das mulheres na sociedade e a pertinência de sua

participação política. Destaca-se a importância do movimento feminista na quebra dos

50

preconceitos em torno da mulher, retirando-a do "plano de acção subalterna". “As theses em

torno do feminismo” teriam sido comprovadas pelas ações das mulheres na sociedade da época,

provando que elas estão “em identidade de aptidões para emparelhar com o homem na

concorrencia vital”67.

O editor do volume destacou três pontos principais como argumentos basilares para a

validade e valorização do sufrágio feminino. O primeiro, a capacidade da mulher, como dito

anteriormente. O segundo, a constitucionalidade do fato, pois que apesar das disputas acerca do

sufrágio durante a elaboração da Constituição de 1891, quando não foi citada nas exceções o

sexo feminino como fator excludente. Por fim, o terceiro, é a relação entre feminismo, cidadania

política das mulheres e liberalismo. Esta seria uma questão abarcada pelas “tradições do nosso

liberalismo”, “revelantissima no systema democrático que adoptámos”68

Essa introdução termina, por fim, verbalizando a campanha de Lamartine – àquela época

já era Presidente do Estado - e o caráter que o movimento sufragista toma durante as primeiras

décadas do século XX. Já nesse momento não era mais possível falar sobre voto feminino sem

citá-lo e homenageá-lo:

A edição destas páginas representa, por isto, uma homenagem ao sadio espirito liberal

que neste momento se ambienta em nossa terra, incarnado no chefe do Estado, com o

seu descortino de visão e superior discernimento; na magistratura, que com o melhor

fervor de sua intelligencia procura ministrar a verdadeira justiça, e enfim em todos os

que ansêam por encaminhar o Brasil na rota dos seus maiores e mais esplendidos

destinos69.

O primeiro caso é o do alistamento da senhorita Julia Alves Barbosa, requerido em 22

de novembro de 1927, menos de um mês depois da promulgação da lei nº 660. Com então 21

anos, ela era professora de matemática da Escola Normal de Natal. Neste, o juiz M. Xavier C.

Montenegro aponta a necessidade de se analisar a “capacidade ou incapacidade da mulher em

relação ao direito do voto”70. Ele levanta inúmeros argumentos no decorrer do texto, mas

destaco o referente à participação feminina na vida pública, que foi basilar na sua decisão:

67 OS DIREITOS Políticos da Mulher (Despachos). Natal: Imprensa Official, 1928. p. 3. 68 OS DIREITOS Políticos da Mulher (Despachos). Natal: Imprensa Official, 1928. p. 5. 69 OS DIREITOS Políticos da Mulher (Despachos). Natal: Imprensa Official, 1928. p. 6. 70 OS DIREITOS Políticos da Mulher (Despachos). Natal: Imprensa Official, 1928. p. 7.

51

É bem sabido que, em hermeneutica, não se deve atribuir ao legislador antinomias na

lei; e nenhuma incongruência seria maior do que negar ás mulheres o direito de voto,

de sua natureza politico, emquanto, por outro lado, se lhes concede outros direitos,

tambem politicos, de maior relevancia, como seja o accesso ás funcções publicas.

O que de tudo se evidencia é que as mulheres no paiz, como no extrangueiro, se acham

absolutamente integradas, (e por vezes com grandes vantagens sobre os homens) nas

diversas funcções reclamadas pelo serviço publico, nos diversos departamentos

administrativos, academias, fóro, institutos de ensino e outros.71

O segundo despacho presente no livro foi o da própria filha de Juvenal Lamartine, a

senhorinha Maria de Lourdes Lamartine, professora auxiliar de Puericultura da Escola

Doméstica. Consideravelmente mais curto, neste documento escrito pelo juiz da 1ª vara de

Natal, Silverio Soares de Souza, que se admite contrário ao sufrágio feminino. O foco será dado

ao estudo da Constituição Brasileira, já que o Rio Grande do Norte adota o alistamento eleitoral

federal para as eleições estaduais. A lei não proíbe, em termos expressos, o alistamento de

mulheres eleitoras, a pergunta era se havia proibição tácita, segundo Souza. A sua conclusão é

que não, pois que “não se pode dess’arte, afirmar que estava na intenção do legislador

constituinte affastar a mulher do direito do voto”72. A invisibilidade feminina, dessa vez,

favoreceu-a.

Por fim, a última resolução foi a do juiz da comarca de Acari, dr. João Francisco Dantas

Salles, para o requerimento da senhorita Martha de Medeiros, de 24 anos, professora particular

naquele município. Salles faz um resumido histórico da submissão feminina e de sua luta

sufragista pelo mundo. Segundo ele, para os antigos, a mulher “era um animal inferior e

despresivel, tendo apenas deveres, os mais rudimentares, os mais dolorosos, os mais

humilhantes”73. Este quadro, porém, teria mudado, e as mulheres já estariam desempenhando

muitas das funções do homem. A sua conclusão é objetiva,

As mulheres são cidadãos brasileiros? [...] Se não o fossem, seriam extrangeiros [...].

A Constituição é clara e explicita: São considerados cidadãos brasileiros: a) os

nascidos no Brasil.

As mulheres nascidas no Brasil são, pois, cidadãos brasileiros; e, desde que não

estejam incluidas em nenhuma das excepções que privam os cidadãos brasileiros do

exercício do voto, não se pode deixar de reconhecer-lhes o direito de alistar-se

eleitor.74

71 OS DIREITOS Políticos da Mulher (Despachos). Natal: Imprensa Official, 1928. p. 10. 72 OS DIREITOS Políticos da Mulher (Despachos). Natal: Imprensa Official, 1928. p. 20. 73 OS DIREITOS Políticos da Mulher (Despachos). Natal: Imprensa Official, 1928. p. 24 74 OS DIREITOS Políticos da Mulher (Despachos). Natal: Imprensa Official, 1928. p. 25

52

Mas, apesar de toda a retórica, por que estas tão óbvias questões - se considerarmos seus

argumentos - só nesse momento foram colocadas em primeiro plano? As mulheres poderiam

ter há muito, então, conquistado sua cidadania política, e em plano nacional. É necessário

entender, portanto, que foi-se construído um discurso legitimador do voto feminino, da mesma

forma que inúmeros outros o recusavam, com argumentos muitas vezes tão bem ou até melhor

construídos que os trazidos à mesa pelos três juízes potiguares. A campanha feminista muito

arduamente abriu caminhos e meios pelos quais as mulheres puderam conquistar espaços na

sociedade, colocando holofotes em atividades que - apesar de sempre ocorrerem - eram

propositadamente esquecidas, como o trabalho feminino. Não se poderia, desta forma,

invisibilizá-las por muito mais tempo. As mulheres estavam, cada dia mais, reclamando seu

lugar. E as ovelhas furaram a cerca em território potiguar.

Os três juízes vão afirmar que não basta a nova lei, ou que as requerentes se encaixassem

nas condições eleitorais, é preciso provar que o voto feminino é legal. Era ou não era

inconstitucional? Para responder a essa questão, eles vão retornar à Constituição, e lá se percebe

que o texto não alude à distinção de sexos, apenas se aponta a necessidade de ser cidadão para

poder usufruir da cidadania política. Até então, porém, julgava-se que o silêncio sobre as

mulheres na Constituição significava a sua exclusão da cidadania. O problema está, portanto,

na pergunta: São as mulheres cidadã(o)s? Essa foi a mudança radical que veio ocorrendo ao

longo do século XIX e se consolida na primeira metade de XX. As mulheres passam a ser

consideradas cidadãs “plenas” (ou, pelo menos, o ideal que se tinha disso).

Podemos entender cidadania como o “direito de ter direitos”75. Não é um conceito

descolado do contexto em que está inserido, ou seja, tem historicidade. Até então, estamos

discutindo a história da luta das mulheres brasileiras pela cidadania política. Essa é uma face

dessa luta. Quando falamos em cidadania política, estamos discutindo direitos tais quais o de

votar; também falamos sobre o direito de ser elegível, e ter direitos políticos. Ser cidadão é,

também, ter direito à liberdade e propriedade, à vida e à igualdade perante a lei. Uma cidadania

civil, portanto, que tem destaque em regimes liberais e vai se estabelecer durante as Revoluções

Francesa e Norte-Americana. Ainda existe um terceiro ponto identificado à cidadania: a

cidadania social. Esta está relacionada ao direito à educação, à saúde e ao trabalho digno. À

75 PINSKY, J.; PINSKY, C. B. (Orgs.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2013.

53

qualidade de vida e condições de se inserir na sociedade de forma justa.

No primeiro capítulo, vimos que as mulheres participaram das Revoluções, lutaram em

movimentos sociais e de libertação, clamaram pelo estabelecimento da democracia. Foram,

porém, sumariamente ignoradas quando esta foi instaurada. Elas conquistaram alguns direitos,

como à educação e à igualdade perante a lei – com algumas restrições, ainda. Outros, como o

direito de eleger e ser elegível não foram alcançados.

Percebe-se, assim, que cidadania é algo pelo que lutaram e lutam pessoas ao longo da

História. Explica, também, porque a palavra “cidadão” da Constituição, que antes só era lido e

interpretado como indicando indivíduos do sexo masculino, pôde passar a ser questionada e

relacionada a pessoas do sexo feminino. Esses despachos, e seus argumentos, são prova de

como a batalha política e a mudança de práticas e áreas de alcance das mulheres brasileiras

modificaram a sociedade e os costumes. Primeiro utopicamente, depois em discurso, enfim

materialmente.

54

Considerações finais

Por muito tempo, o campo da política tem sido considerado um espaço masculino. A

História também o foi. Quando pensamos, discutimos e escrevemos sobre as mulheres na

política, seja no campo tradicional desta, seja nas micropolíticas diárias, empreendemos um

caminho poucas vezes trilhado. Aos poucos, porém, ele está sendo construído. A historiadora

Margareth Rago exclamou: feminizar é preciso76. E esta monografia foi, a todo momento, uma

tentativa de o fazê-lo.

Aqui, percorremos o trajeto das ideias até a materialização delas. Começamos a partir

do nascimento de um movimento autoconsciente de mulheres, suas primeiras reivindicações e

tentativas de afirmação como sujeito público. A partir de suas práticas e reflexões, criou-se um

arcabouço teórico, de experiências e, principalmente, uma rede de solidariedade envolvendo

milhares de mulheres em todo o mundo. Elas, apesar de serem muitas e múltiplas, com

vivências, objetivos e programas próprios – até divergentes -, compartilharam e compartilham

em comum o sonho de uma sociedade mais igualitária. Não igual, pois que não o somos (quem

o é?), mas justa.

Durante o primeiro capítulo analisamos a formação do pensamento sufragista pelos

países que, mais tarde, servirão de exemplo e espelho para as feministas brasileiras: Estados

Unidos, Inglaterra e França. A partir do desenvolvimento de argumentos e estratégias políticas,

tornou-se possível a sua “importação” para o Brasil, sendo incorporado ao nosso contexto sócio-

político e, muitas vezes, dialogando entre si. A Federação Brasileira pelo Progresso Feminino

participou de inúmeros eventos internacionais e colocou dentre seus objetivos a manutenção de

uma relação amigável e diplomática entre os países americanos. É a Federação, inclusive, que

primeiro irá aflorar em Juvenal Lamartine seu interesse pela campanha sufragista.

Juvenal Lamartine é considerado o precursor do voto feminino no Rio Grande do Norte,

sendo lembrado até hoje por sua “militância feminista”. Ao manter relações estreitas com

Bertha Lutz e outras feministas históricas, instigando assim a inclusão do sufrágio feminino em

sua campanha para Presidência do Estado em 1927, Lamartine deu o último empurrão nas

porteiras potiguares, e as abriu abrindo espaço para um grande passo nas lutas feministas: a

76 RAGO, Margareth. Feminizar é preciso: por uma cultura filógina. São Paulo Perspec., vol. 15, n. 3, São Paulo, 2001.

55

conquista da cidadania política da mulher. No segundo capítulo, portanto, traçamos o caminho

percorrido da sua campanha, a partir principalmente dos jornais O Mossoroense e A República,

analisando seus discursos e estratégias, até ter preparado o campo para a institucionalização do

voto.

Por fim, no terceiro e último capítulo, chegamos à colocação em prática da lei eleitoral

nº 660, na qual se estabelece que poderão votar e ser votados – sem distinção de sexos – todos

os eleitores que estivessem dentro dos requisitos determinados pela Constituição Federal. Nós

acompanhamos a absorção dessa conquista em solos potiguares, ainda pelas folhas de jornais,

além de percebermos sua repercussão pelo Brasil e pelo mundo. Concluímos, ainda, com os

despachos dos juízes responsáveis pela inscrição das primeiras eleitoras nos registros eleitorais

potiguares, pois que de nada adiantaria a lei se as mulheres não a reivindicassem e a utilizassem.

Assim, a decisão do judiciário veio confirmar a conquista no legislativo.

No Brasil, portanto, muito do que foi escrito e defendido antes e em lugares distantes

foi reapropriado. Mas, como brasileiras, tornou-se algo novo, com formas e vieses que só no

Brasil poderiam emergir, visto sua história e desenvolvimento enquanto colônia, depois império

e uma recente criada República no início do século XX. As sufragistas brasileiras também

foram diversas, e aqui nos demoramos em uma de suas facetas, a Federação Brasileira pelo

Progresso Feminino. Foi esta face dos feminismos brasileiros, que conquistando o apoio do

político Juvenal Lamartine, abriu as porteiras do país para o voto feminino a partir do Rio

Grande do Norte.

Sua estratégia de campanha e os discursos construídos a partir e por esta funcionaram,

trazendo-nos a lei nº 660 de outubro de 1927. Tivemos assim, a primeira eleitora e primeira

elegida do país, e mais tarde continuaríamos a eleger inúmeras mulheres para cargos executivos.

Mulheres, estas, ligadas às oligarquias que ainda comandam a política potiguar, como há quase

cem anos. Gênero, política e História se imbricam, e o nosso Estado é campo fértil para estudar

sua relação. Pretendemos, então, dar mais um passo, porque compreendemos que para as

mulheres o caminho ainda é longo, necessário e possível.

56

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e nos Estados Unidos. Arquipélago-História, Porto Alegre, v. 6, 2002, p. 443-469.

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