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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS MIKARLA GOMES DA SILVA LEI MARIA DA PENHA: UMA ANÁLISE DA EFETIVIDADE DO EIXO SOCIOEDUCATIVO NO RIO GRANDE DO NORTE NATAL/RN 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

MIKARLA GOMES DA SILVA

LEI MARIA DA PENHA: UMA ANÁLISE DA EFETIVIDADE DO EIXO

SOCIOEDUCATIVO NO RIO GRANDE DO NORTE

NATAL/RN

2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

MIKARLA GOMES DA SILVA

LEI MARIA DA PENHA: UMA ANÁLISE DA EFETIVIDADE DO EIXO

SOCIOEDUCATIVO NO RIO GRANDE DO NORTE

Dissertação apresentada como parte das

exigências do Programa de Pós-

graduação em Ciências Sociais, da

Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, para a obtenção do grau de Mestre,

sob orientação da Profª Dra. Berenice

Bento.

NATAL/RN

2018

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -

CCHLA

Silva, Mikarla Gomes da.

Lei Maria da Penha: uma análise da efetividade do eixo socioeducativo no Rio Grande do Norte / Mikarla Gomes da

Silva. - 2018.

176f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande

do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.

Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Berenice Alves de Melo Bento.

1. Lei Maria da Penha - Monografia. 2. Gênero -

Monografia. 3. Violência - Monografia. 4. Eixo socioeducativo

- Monografia. I. Bento, Berenice Alves de Melo. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 343.62-055.2(813.2)

Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-CRB-15/748

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MIKARLA GOMES DA SILVA

LEI MARIA DA PENHA: UMA ANÁLISE DA EFETIVIDADE DO EIXO

SOCIOEDUCATIVO NO RIO GRANDE DO NORTE

Dissertação apresentada como parte das

exigências do Programa de Pós-

graduação em Ciências Sociais, da

Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, para a obtenção do grau de Mestre,

sob orientação da Profª Dra. Berenice

Bento.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Berenice Alves de Melo Bento (orientadora)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN

_______________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Rozeli Porto

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Jussara Carneiro Costa

Universidade Estadual da Paraíba - UEPB

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Dedico este trabalho às mulheres da minha

vida: Dona Porcina, vó querida, Elinalva (mãe),

Mikelly e Mikaely (irmãs), Magnólia e Cecília

(primas) e ao homem que junto a elas me

ensinou o valor da vida, Sr. Pedro Adelino.

Família, te amo!

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Agradecimentos

Esperança que inspira, a luta contra o opressor

Amarelou oi, janela abriu e o sol entrou

Trazendo vida, inspiração, luz que foi jah jah quem mandou

Ingratidão, desenvolve a missão

Dá de cara com o sistema que te julga e não te dá opção

Não tem progresso sem acesso

Pense no gueto e é isso que eu te peço

A quebrada produz, e é de qualidade

Em agradecimento faz a arte da realidade

(Só agradece, Marina Peralta)

Só agradece [...] se tem uma palavra que realmente devo começar esse

agradecimento, mesmo sendo redundante é agradecimento. Início agradecendo aos que

sempre estiveram por perto, família e amigos, aqueles que realmente [...] sabem o quanto

eu caminhei para chegar até aqui [...] Confesso que o agradecimento não deveria ser a

última parte da minha escrita, pois nesse momento estou cansada, na verdade exausta e,

talvez não escreva o que realmente gostaria de dizer para quem acompanhou esses dois

anos de mestrado. Mas, me contento em saber que tenho todo tempo para externar meu

carinho pessoalmente aos meus.

Muitas vezes ouvi falar que devemos começar agradecendo a instituição por nos

proporcionar e financiar nossos estudos enquanto bolsista. Porém, não é a mesma que nos

acompanha no dia a dia, que sabe as angústias e alegrias ao longo de dois anos de

pesquisa. Quem esteve sempre por perto foram a família (mamis, vó, vô, tia, irmãs, prima,

cunhado) e amigos. A esses toda gratidão e amor por acreditarem sempre em mim, sou

grata por ter pessoas que confiaram e estenderam a mão quando mais precisei.

São dois anos de mestrado, o primeiro passa correndo, o segundo lentamente, não

fosse a fase final da escrita que voa. Esses dois anos foram de altos e baixos, mudança de

orientação após qualificação, mas tem males que vem para o bem. Sou grata por ter sido

escolhida duas vezes, sim grata! Grata por Berenice ter dito um não a três anos atrás

(acabou comigo, acabou, mas não desisti) e muito mais grata por ela ter dito um sim a

quase um ano quando estava desorientada (risos). Obrigada prof., por mais uma vez

aceitar me ORIENTAR de verdade e compartilhar sempre o que você sabe com os seus.

No mais, eu poderia muito bem usar esse espaço aqui para desabafo e como

disserto sobre violência apresentar aqui as múltiplas violências que sofri enquanto

mulher, negra, periférica e estudante, porque afinal, quem disse que o espaço acadêmico

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não é o espaço de violência? Principalmente, quando você estudante diz não. Não

concordar com a opinião de outrem que julga-se superior pelo posição que ocupa, mas a

opinião é minha, será que posso tê-la sem sofrer violência? Parece que não! Sabe quando

falam de interseccionalidades e cruzam todas as possíveis para lhe inferiorizar, mas de

forma sorrateira, velada e silenciosa? Pois é, o que uma opinião contrária pode

fazer/causar. Violências!! E essa deixa de ser simbólica rapidamente, se é que passou por

essa etapa, até lhe atingir psicologicamente. Disse que não ia desabafar e estou aqui eu

fazendo isso (risos). Porém faço, justamente para agradecer a quem me estendeu a mão

quando precisei recomeçar, sim, recomeçar. Momento desabafo rápido e entre as

entrelinhas para mais uma vez dizer que sou grata pelos amigos, família e orientadora que

me estenderam a mão. Sim, me desculpe se estou sendo repetitiva, mas esse momento é

meu, não preciso ficar usando autores, pensar sociologicamente isso ou aquilo, então o

sentimento que aparecerá aqui é gratidão.

Continuemos então, por Bernardo. Ele tem praticamente a idade da minha

dissertação, uns meses a mais. Mas foi justamente esse pequenino que deixou o meu

tempo mais leve nesse processo. Se na monografia o café foi o meu energético, na

dissertação Bernardo foi o meu melhor subterfúgio. Se a coisa estava boa corre lá para dá

um beijo nele e voltar a dissertar, se estava ruim aí sim que o abraço e o beijo,

principalmente, o bola blincar Karla, acalmava e me colocava no eixo. Se tinha alguém

que estava ansioso para que eu acabasse a dissertação esses alguém era ele, porque pense

em uma tia babona que faz tudo que ele quer. Bernardo, obrigado por trazer alegria aos

meus dias cinzentos!

Falei que Be, era o mais ansioso pelo termino da escrita, mas lembrei agora que

minha tia Noia competia com ele pelo mesmo, já que ela adora que eu fique com ele para

descansar e, aí se eu dizia que passaria a semana indo para UFRN ou para casa de Mikelly,

afs, era um drama só. Áudios todos os dias para saber se eu estava perto, dizendo que Bê

estava com saudades, desde que era ela que não conseguia ficar mais longe de mim. Noia,

obrigada por dividir conosco essa criaturinha linda e amada e por me perturbar e

incentivar para que eu terminasse a dissertação o quanto antes. Minha “maga” número

01, Cecília, obrigada por dividir seus segredos e abraços comigo, para ti as minhas

expectativas são as melhores sempre, porque sei se você quiser serás grande.

Gratidão ao meu cunhado, Marcos Mariano e minha irmã Mikelly Gomes, por me

hospedarem em sua recente casa para que eu pudesse ter o silêncio que não tinha em casa

para finalizar a dissertação, além de serem as pessoas que mais aturam o meu mau humor

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e são vítimas dele diretamente ou indiretamente. Saibam que amo vocês do meu jeito,

mas amo! Kelly, muitíssimo obrigada por ser aquela pessoa que posso contar quando mais

preciso, você sabe que você é meu equilíbrio e minha melhor saudade.

Minha irmã Mikaely Gomes, obrigada por mais uma vez acreditar e me apoiar

nesse processo. Muitíssimo obrigada por compartilhar comigo os melhores momentos e

por estarmos enfrentando juntas essa vida acadêmica, você se especializando e eu

concluindo um mestrado, quero dizer que você me inspira. Você é aquela que não cansa,

que está sempre procurando algo para fazer, trabalhar e estudar (mesmo dizendo que não

gosta da vida acadêmica, mas como assim se você está na sua segunda Especialização?).

Amo você, meu abuso diário! Além disso, ainda nos “dá” uma sister linda, inteligente e

destemida que nos enche de orgulho, Renata, para ti todo sucesso e gratidão por ser quem

és.

Gostaria de agradecer aos amig@s, Carol e Tarcísio por partilharem comigo essa

experiência de pós graduação e mais que isso, dividir suas vidas comigo. Obrigado,

miguxos! Carol está naquela escala de quem atura mais o meu mau humor, competição

difícil. Além do mais, é a pessoa que dividiu comigo, literalmente, o estresse do mestrado.

Se tem alguém que entende esses altos e baixos esse alguém é você amiga, juro que prefiro

dividir nossos carnavais.

Gratidão imensa a minha mamis, Elinalva, se eu desejar o melhor para ela ainda é

pouco. Mãe, obrigada por me fazer querer ser a cada dia uma pessoa melhor e por não

duvidar de mim nunca. Te amo!! Meu pai que tem um orgulho imenso das três filhas e

que mesmo longe está sempre perto, obrigado! Vô e vó, só amor por eles, só tenho que

agradecer por ter duas pessoa especiais e que me apoiam mesmo não sabendo direito o

que faço. Seu Pedro e Dona Porcina, OBRIGADO!!!!.

Agradeço também aos professores que dividiram o que sabem comigo ao longo

desses dois anos, como disse é um processo rápido e de poucos disciplinas, logo poucos

professores. Mas eu faço questão de agradecer aos que me provocaram. Obrigado,

Linconl Moraes, Carla Cabral, Berenice Bento e Rozeli Porto, vocês me fazem querer

sempre mais. Sim, não posso esquecer de agradecer ao Programa de Pós Graduação de

Ciências Sociais, na figura do Otânio e do Jefferson que além de responder nossas

dúvidas, têm conversas despretensiosas e sorrisos largos, obrigado meninos. Agradeço a

Jussara Carneiro por ter aceitado o convite de Berenice, desde já sou grata por você ter

estado comigo nessa etapa.

Obrigado, família e amigos. Gratidão!

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Mulher

Do latim

"Não devo ser obrigada a nada

Trabalho

Fora

Em casa

E a toda hora

Necessária

Carrego comigo

O "BASTA!

NÃO QUERO

SER ASSEDIADA!"

Assobio

Buzinadas

E só olhar

MATA!

Mulher

Trans

Cis

Pobre

Negra

Morre

Morre

Morre

Nesse sistema

Cheio de faceta

Não quero parabéns

Nem dedicatórias

Quero o direito

Sobre meu corpo

Minha vida!

Não quero romantismo

Cavalheirismo

E sim! O fim do machismo!

Quero não morrer

Quando a máquina apita

Acelera

E meu braço fica

E sangra

Amputa

E me dilacera

Quero não sangrar

Não ser esquartejada

Mutilada

E queimada

Só por ser uma mulher

Livre dos padrões

Da tua escala

Não quero o tiro

Na volta de casa

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A faca apontada

E ser obrigada

A abrir as pernas

Minha roupa rasgada

E ser estuprada

Não quero luz no útero

Quero poder escolher

O que coloco no mundo

E se quero

E se posso

E se não

Poder dizer não

Sem morrer no escuro

8 de março

Não é só poético

É fogo

É mão esquerda pro alto

É longe do abraço

E perto do suspiro

Daquele minuto

60 segundos

De olhar nos olhos

De cada mulher

E o que for dito

Ser compreendido

Por nós que somos oprimidas

E que pulsamos

Resistimos

Lutamos

E Gritamos

A todos os pulmões

Vem quente

Estamos fervendo!

Não vou só chamar o Rex

Vou organizar

As Minas

Monas e

Manos

Pra detonar o seu privilégio

Que o Vaticano

Os tio de branco

Os bolsonada

Seguram a todo custo

Não tem revolução

Presta atenção

Não tem revolução

Se as mulheres

Que resistem

Não estiverem a frente

Lutando para serem

Quem são!

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O ato meu caro

É muito além de um desabafo!

(É só o percurso do estrago)

(Bárbara Victoria)

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RESUMO:

A dissertação tem como objetivo analisar e refletir a Lei Maria da Penha e os aparelhos

socioeducativos dispostos no Rio Grande do Norte. Para isso, metodologicamente, o

trabalho constitui-se como uma pesquisa qualitativa fundamentada pela realização da

análise do texto da Lei, bem como dos documentos e programas produzidos pelo Estado

potiguar no eixo socioeducativo. Buscamos refletir não só o que está posto literalmente

no texto da Lei Maria da Penha, mas também as suas implicações e interpretações através

das aplicações efetivas ou não das atribuições e medidas previstas no documento. A partir

da Lei avaliamos como os programas sob perspectiva do eixo socioeducativo promovem

suas ações na tentativa de pensar e identificar sua efetividade no Rio Grande do Norte.

Palavras-chave: Lei Maria da Penha; Gênero; Violência; Eixo socioeducativo.

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ABSTRACT

The dissertation aims to analyze and reflect the Maria da Penha Law and the socio-

educational devices arranged in Rio Grande do Norte. For this, methodologically, the

work constitutes a qualitative research based on the analysis of the text of the Law, as

well as of the documents and programs produced by the state of Potiguar in the socio-

educational axis. We seek to reflect not only what is written literally in the text of the

Law of Penha, but also its implications and interpretations through the effective

application or not of the attributions and measures foreseen in the document. From the

Law we evaluate how the programs under the perspective of the socio-educational axis

promote their actions in an attempt to think and identify their effectiveness in Rio Grande

do Norte

Keywords: Maria Penha Law, Gender, Violence, Socio-educational axis

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Lista de figuras

Figura 01- Panfletos e cartilha distribuída na escola 156

Figura 02- Cartilha Maria da Penha vai à escola

156

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Lista de Tabelas

TABELA 01- Equipamentos de Atendimento à mulher no Rio Grande do

Norte

140

TABELA 02- Equipamentos –Natal 141

TABELA 03- Equipamentos – Parnamirim 142

TABELA 04- Equipamentos – Mossoró 142

TABELA 05- Equipamentos - Apodi, Caicó, Passa e Fica, Portalegre 142

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Lista de Gráficos

GRÁFICO 01- Tipos de violência 90

GRÁFICO 02-Relação vítima-agressor 91

GRÁFICO 03- Duração das violências 91

GRÁFICO 04- Taxa de homicídio por 100 mil habitantes 135

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Lista de Siglas

CEDAW - Committee on the Elimination of Discrimination against Women-

(Convenção para Eliminação de todas as Formas de Discriminação

contra as Mulheres)

CEJIL - Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional

CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos

CLADEM - Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher

CODIMM - Coordenadoria da Defesa da Mulher e das Minorias

CRAS - Centros de Referência da Assistência Social

CREAS - Centros de Referência Especializado de Assistência Social

DEAMs - Delegacias Especializadas em Atendimento as Mulheres

JECRIM - Juizados Especiais Criminais

LPM Lei Maria da Penha

NAMVID - Núcleo de Apoio à Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar

NUDEM - Núcleo Especializado na Defesa da Mulher Vítima de Violência

Doméstica e Familiar

OEA - Organização dos Estados Americanos

ONU - Organização das Nações Unidas

PAISM - Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher

PGJ - Procuradoria Geral da Justiça

PNPM - Plano Nacional de Políticas para as Mulheres

RN Rio Grande do Norte

SEEC - Secretaria de Estado da Educação

SPM - Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres

SESED-RN Secretaria da Segurança Pública e da Defesa Social

STJ - Supremo Tribunal de Justiça

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 19

1. GÊNERO E A CONSTRUÇÃO DO CORPO VIOLENTADO 27

1.1.UM CONCEITO EM MOVIMENTO: PROBLEMATIZANDO GÊNERO 27

1.2. PROBLEMATIZANDO GÊNERO: O UNIVERSAL, O RELACIONAL

E O PLURAL

31

1.3. DO DOMÉSTICO AO PÚBLICO: OS ESPAÇOS E A

TERRITORIALIZAÇÃO DOS LIMITES POSSÍVEIS

36

1.4. (DES)FAZER GÊNERO NO NORDESTE 40

1.5. CONSTRUÇÃO DO CORPO VIOLENTADO 49

2. MOVIMENTO FEMINISTA E O COMBATE À VIOLÊNCIA 55

2.1. AGENDA DE GÊNERO 57

2.2.AGENDA DE GÊNERO NO BRASIL 60

2.3. DAS DEAMS À LEI MARIA DA PENHA: POR UMA VIDA SEM

VIOLÊNCIA

65

2.4. POR QUE MARIA? 69

2.5.MARIA DA PENHA: LEI COM NOME DE MULHER 71

3. POSSIBILIDADES E LIMITES DA LEI 11.340/06 76

3.1. POR DENTRO DA LEI 11.340/06 76

3.2. A LEI 11.340/06: PARA QUEM? 80

3.2.1.Violência sem sangue 85

3.2.2. Violência com sangue 88

3.3. PERSPECTIVA SOCIOEDUCATIVA DA LMP 96

3.4. PERSPECTIVA PUNITIVA DA LMP 102

4. (DES) CONSTRUINDO VIOLÊNCIA NO RN: ANÁLISE DA

EFETIVIDADE DO EIXO SOCIOEDUCATIVO

130

4.1. DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA AO FEMINICÍDIO 130

4.1.1. Feminicídio 133

4.1.2. As Marias do RN: quando as violências sem sangue e com sangue

tornam-se violência com morte

136

4.2. REDE DE ATENDIMENTO AS MULHERES EM SITUAÇÃO DE

VIOLÊNCIA NO RIO GRANDE DO NORTE

140

4.2.1. LPM: Serviço para homens 148

4.2.2. Maria da Penha vai à Escola 155

4.3. IDEOLOGIA DE GÊNERO: GÊNERO COMO UM PÂNICO MORAL 160

CONSIDERAÇOES FINAIS 164

REFERÊNCIAS 169

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19

INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem por finalidade refletir e analisar a Lei 11.340/06, Lei Maria

da Penha como uma política pública de gênero de enfrentamento à violência doméstica.

Ao problematizar a lei evidenciamos o caráter socioeducativo descrito no texto, pois

compreendemos que é a partir da educação que as práticas discursivas podem ser

ressignificadas.

Segundo Lana Lage Lima (2010), após a criação das Delegacias Especializadas

de Atendimento à Mulher em 1985, a outra política pública de gênero que provocou maior

impacto social foi a Lei Maria da Penha, uma Lei específica no combate à violência

doméstica e familiar que retira dos Juizados Especiais Criminais1 a autoridade de julgar os

crimes de violência contra a mulher. Esta Lei é entendida como a concretização de um

instrumento legal de combate à violência contra as mulheres e cria mecanismos para

coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Logo, a violência doméstica e

familiar é entendida como “qualquer ação baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,

sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (BRASIL, 2006).

A Lei Maria da Penha surge no cenário brasileiro como uma resposta do poder

público às reivindicações do movimento de mulheres e movimentos feministas como um

dispositivo de combate à violência contra a mulher. A Lei é uma conquista histórica de

mulheres que lutam desde as últimas décadas por direitos e cidadania por igualdade nas

relações de gênero. Deste modo, pode-se caracterizar por uma luta pelo direito de ser

mulher e desconstruir as práticas de dominação masculina marcadas pelas violências:

física, psicológica, moral, sexual e patrimonial no “corpo/alma” da mulher (MACHADO,

GROSSI, 2015).

A Lei Maria da Penha é uma política pública, sendo assim, se configura como

campo que busca colocar o “Estado em ação” (JOBERT, MULLER apud BANDEIRA,

ALMEIDA, 2013), como afirma Eloísa Hofling (2001) e Celina Souza (2006) para

analisar essas ações e propor mudanças, caso seja necessário e possível. Dessa maneira,

podemos problematizar os diferentes interesses na formulação, implementação,

monitoramento e avaliação dessas políticas públicas. É importante que essas diversas

1 Na Lei 9.099/95 a violência contra as mulheres era vista como crime banal, ou seja, de menor importância.

A Lei era predisposta a partir do processamento e julgamento das infrações de menor potencial ofensivo

com penas que resultavam em pagamentos de cestas básicas, serviço comunitário, entre outros.

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20

esferas de ações dialoguem entre si, para que possamos compreender para quem as

políticas públicas são pensadas e quem terá acesso a elas.

Como afirmamos, anteriormente, compreendemos Políticas Públicas como o

“Estado em ação” (JOBERT, MULLER apud BANDEIRA, ALMEIDA, 2013), sendo

um dos caminhos de diálogo entre a sociedade civil e o Estado através da alteração de

diretrizes e princípios que conduzem ações e procedimentos que podem vir a

desenvolver e (re) estruturar a realidade da nação (BANDEIRA, ALMEIDA, 2013). De

acordo com Lourdes Bandeira e Tânia Almeida (2013, p. 36), “trata-se de mapear as

categorias que fundamentam o “estado em ação”” que nomeia e legitima escolhas

políticas e essenciais que resultam em situações reais. Já, Muller em seus escritos com

Surel (2002) afirma que a política pública “é formada, inicialmente, por um conjunto

de medidas concretas que constituem a substância “visível” da política” (MULLER,

SUREL, 2002, p. 13) e que esta é um construto social e um construto de pesquisa, uma

vez que uma política pública constrói um quadro normativo de ação. Portanto, as

Políticas Públicas são decisões que abarcam questões de ordem pública com abrangência

vasta e que apontam à satisfação do interesse de uma coletividade, no entanto, podem

também ser entendidas como táticas de atuação pública, estruturadas por meio de um

processo decisório composto de variáveis complexas que impactam na realidade (RUA,

ROMANINI, 2013). Assim, as Políticas Públicas são a materialização da ação

governamental.

Neste contexto, pensar Políticas Públicas a partir do recorte de gênero e/ou

perspectiva de gênero é algo novo, tendo em vista que historicamente o Estado não

qualificava as mulheres como sujeitos de direito e reconhecimento, estas eram

invisíveis, uma vez que não estavam inseridas na tomada de decisões nem tampouco

como beneficiárias de políticas públicas, posto que esse espaço cabia a elite política

brasileira que era formada por homens brancos, heterossexuais, de classe média alta e

com escolaridade. No mais, quando se destinavam políticas públicas para as mulheres

não se tinha um recorte de gênero e as mulheres eram pensadas universalmente.

As políticas públicas brasileiras, em geral, quando dirigidas às mulheres

não contemplam necessariamente a perspectiva de gênero, haja vista

que a disseminação de uma linguagem masculina exclusivista está

introjetada nas estruturas sócio institucionais e jurídicas. Tais situações

de poder, em relação ao referente masculino, se fazem presentes no

planejamento das ações públicas mesmo em governos que se

comprometem com a redução das desigualdades de gênero

(BANDEIRA e ALMEIDA, 2013, p. 38)

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Em concordância com as autoras citadas acima, Anna Paula Portella (2009)

pondera que a violência contra as mulheres esteve distante das preocupações públicas e

políticas “quanto estiveram às mulheres efetivamente afastadas dessas esferas e sendo

tratadas como seres humanos de “segunda categoria”” (PORTELLA, 2009, p. 31). Com

isso, ressaltamos que a Lei Maria da Penha surge como forma de coibir a violência

doméstica e familiar, mostrando ao longo de seus dez anos de implementação como um

marco na efetivação de políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher.

Ao problematizar a inserção da Lei Maria da Penha na plataforma pública do

Estado brasileiro evidenciamos o sistema hegemônico de práticas machistas, um sistema

de estrutura de dominação masculina (BOURDIEU, 2005), onde o homem é visto de

maneira hegemônica e hierárquica (ALBURQUEQUE JÚNIOR, 2003), pautado em uma

masculinidade que tem como característica fundante a honra, visto que os crimes de

violência contra a mulher foram justificados jurídicos e socialmente até meados dos anos

1980 sob o ideal hegemônico de masculinidade, ou seja, na construção desses homens

perante a ideia de um poder absoluto.

Mariza Corrêa (1981) aponta que por anos se legitimou no Brasil os crimes de

honra, visto que os crimes passionais eram absolvidos com a justificativa de lavar a honra.

E, é nesse período, década de 1980, que surgem no Brasil as primeiras políticas públicas

de violência contra a mulher a partir da luta feminista e de movimentos de mulheres com

slogans “Quem ama, não mata!” e “O silêncio é cúmplice da violência”, com a finalidade

de combater e enfrentar a violência contra as mulheres.

Em 1983 surge em São Paulo o Conselho Estadual da Condição Feminina e em

1985, ainda no estado paulista, são inauguradas as primeiras Delegacias Especiais de

Atendimento às Mulheres. Nesse ano cria-se o Conselho Nacional dos Direitos das

Mulheres, essas ações aparecem como as primeiras políticas públicas de enfrentamento à

violência de gênero. Como resultante da luta feminista contra a violência contra a mulher

foi criado nos últimos anos a Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres (SPM), o

Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), o Pacto Nacional de

Enfrentamento a Violência contra a Mulher, a Lei 11.340/2006 e a Lei 13.104/2015.

Ademais, podemos entender que essas são políticas que respondem as reivindicações dos

movimentos feministas brasileiros frente ao Estado.

Mesmo diante da implementação da Lei 11.340/06 e demais programas de

enfrentamento à violência, o Brasil continua sendo o país que mais agride mulheres em

números alarmantes. Segundo o Relógio da Violência (2018), instrumento de “contagem”

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e visibilidade da violência contra mulheres produzido pelo Instituto Maria da Penha, a

cada 2 segundos mulheres são violentadas física ou moralmente, a cada 7.2 segundos uma

mulher é vítima de violência física, a cada 16.6 segundos mulheres são ameaçadas com

armas de fogo, a cada 22.5 segundos uma mulher é vítima de espancamento ou tentativa

de estrangulamento. Esses dados nos permitem problematizar a efetividade da Lei, o

alcance de seus programas e como se constrói o lugar do agressor e da mulher em

condição de violência.

Nesse sentido, a pesquisa dissertativa tem como objetivo analisar e refletir sobre

a compreensão de gênero no texto da Lei Maria da Penha, bem como apresentar a

funcionalidade do eixo socioeducativo no Rio Grande do Norte, uma vez que esse é o

estado que ocupa o 5º lugar no Mapa da Violência (WAISELFIZ, 2015). Para tanto,

questionamos: Quais são os instrumentos e dispositivos que o Rio Grande do Norte dispõe

para o enfrentamento à violência? Como funciona os programas socioeducativos de

combate à violência contra mulheres no RN? E quais os sujeitos atendidos por estes

programas?

Metodologicamente, o trabalho se deu a partir da análise detalhada e reflexão dos

documentos da Lei e da avaliação do material socioeducativo produzido pelo Estado do

Rio Grande do Norte a fim de examinar a efetividade da Lei Maria da Penha. Para pensar

não só o que está posto literalmente no texto da Lei Maria da Penha, mas também, as suas

implicações e interpretações através das aplicações efetivas ou não das atribuições e

medidas previstas no documento.

Sendo assim, o trabalho trata-se de uma pesquisa qualitativa, uma vez que visou

avaliar a efetividade da Lei Maria da Penha no Rio Grande do Norte a partir da perspectiva

socioeducativa da Lei. Para isso, propomos como primeiro passo da pesquisa, uma

incursão teórica da literatura sobre gênero, violência doméstica, Lei 11.340/06 e políticas

públicas para a construção do quadro teórico.

O segundo passo da pesquisa se debruçou sobre o uso do método da análise

documental e da análise de conteúdo como aponta Richardson (2012). De acordo com o

autor:

O método mais conhecido de análise documental é o método histórico

que consiste em estudar os documentos visando investigar os fatos

sociais e suas relações com o tempo sócio-cultural-cronológico. [...] a

análise documental é essencialmente temática (RICHARDSON, 2012,

p. 230).

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Com isso, realizamos uma apropriação da análise documental para avaliar como

as mudanças de paradigmas, que ocorreram ao longo da história no contexto brasileiro

sobre a posição da mulher na sociedade, influenciaram a proposição e implementação da

Lei Maria da Penha. A análise documental é a fase inicial da pesquisa e subsidiou sócio

historicamente a segunda etapa do trabalho, marcada pela análise de conteúdo. Ainda

segundo Richardson (2012), a análise de conteúdo trabalha sobre as mensagens. Esta

técnica foi usada para identificar unidades de análise no texto da Lei Maria da Penha e

nos documentos e escritos que mantêm referências ou foram produzidas a partir da Lei

Nº 11.340/06 com o intuito de avaliar sua efetividade. Para realização dessa tarefa,

seguimos as orientações descritas por Richardson (2012) que divide a análise de conteúdo

em três etapas distintas, porém complementares, são elas: a pré-análise; a análise do

material e o tratamento dos resultados.

A pré-análise é o primeiro contato com os documentos centrais da pesquisa, que

“visa operacionalizar e sistematizar as ideias, elaborando um esquema preciso de

desenvolvimento do trabalho” (RICHARDSON, 2012, p: 231), ou seja, foi a organização

inicial para a realização do projeto de pesquisa. Esse primeiro momento foi baseado em

duas sub-etapas, a leitura do material, que consiste na leitura integral dos textos da Lei

11.340/06; dos Mapas da Violência organizados pelo Governo Federal; dos dados do

disque-denúncia 180 do Governo Federal. A segunda sub-etapa é a escolha dos

documentos. Nessa fase serão identificados – a partir da leitura do material – quais os

documentos ou trechos de documentos que contribuem, de fato, para a análise da

efetividade da Lei Maria da Penha.

A segunda etapa é a análise do material, que é constituída pela codificação,

categorização e quantificação das informações em unidades de registro e em unidades de

contexto, tendo em vista, apresentar quais as categorias temático-analíticas que podem

colaborar para avaliar a efetividade da Lei Nº 11.340/06. Já, as análises de contexto têm

a intenção de desvelar as referências de contexto nas quais as unidades de registro

aparecem. Nesse sentido, pretendemos, a partir da exploração das informações em

unidades de contexto proporcionar a relação dos dados com temas e conceitos, tais como:

violência de gênero; feminicídio e sistema hegemônico e machista. A terceira e última

etapa é o tratamento dos resultados, composta pela problematização teórico-analítica das

informações colhidas nas etapas antecedentes. Esta etapa objetivou refletir se a Lei Maria

da Penha como está instituída e sendo apropriada pode ser categorizada como uma

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política pública eficaz para a colaboração no enfrentamento da violência contra o gênero

feminino.

No mais, procuramos evidenciar e problematizar não só aquilo que está dito ou

escrito, mas trazer à tona também aquilo que não está dito ou escrito no texto da Lei,

assim como analisar as justificativas dadas pelos órgãos competentes a não aplicação

efetiva da Lei Maria da Penha. Isto é, os fatos documentados, as relações de poder, as

demandas de políticas públicas, registros, dados e intenções que contextualizaram e

deram condições para que outras leis que tinham a finalidade de defesa ao corpo e a vida

das mulheres surgissem no Brasil e possibilitassem a abertura de um longo processo de

reformulações e transformações textuais até se chegar ao texto final da Lei 11. 340/06,

popularmente conhecida como Lei Maria da Penha.

A proposta da estrutura de dissertação consiste em quatro capítulos e considerações

finais. No capítulo I intitulado “Gênero e a construção do corpo violentado”, procurou-

se discorrer sobre como a violência tem marcado o corpo feminino. Para tal, apresentamos

duas categorias analíticas que compõem a pesquisa: gênero e violência. A proposta do

capítulo é historicizar e apontar os embricamentos que protagonizam o feminino como

sujeito da violência (violentado). Nesse sentido, são necessárias algumas distinções para

a compreensão dos conceitos apresentados no momento. Primeiro, o que é gênero? Ao

longo do texto trazemos três concepções que permitem compreender gênero e suas

multifaces: universal, relacional e plural (BENTO, 2006). A partir das concepções

apresentadas compreendemos gênero como um construto social e retiramos os

marcadores biologizantes, visto que estamos em concordância com a proposta analítica

de Judith Butler (2003) de pensar a performatividade.

No capítulo II, “Movimento feminista e o combate à violência”, discorremos sobre a

história das lutas feministas e da resposta do Estado frente à demanda dos movimentos

feministas, sobretudo, enfatizando a etapa de construção da agenda de gênero nas

políticas públicas. Com isso, é feito uma incursão na construção de políticas de gênero

para mulheres que nos possibilite a visibilização de uma maneira mais ampla para as

políticas públicas de gênero no que diz respeito ao combate à violência.

No capítulo III, “Possibilidades e limites da Lei 11.340/06”, analisamos o desenho

institucional da Lei 11.340/06, a fim de apresentar as diretrizes que viabilizam o

questionamento da efetividade proposta em seu texto. No mais, a partir da formulação da

Lei e sua possível efetividade procuramos entender como as classificações da violência

doméstica é tipificada e quais os âmbitos que ela atinge na sociedade. Ao problematizar

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a violência e suas dimensões, traçamos diálogo direto com as formulações propostas na

Lei 11.340/06, Lei Maria da Penha e a dividimos em três fases que chamamos de

“violência sem sangue” (BANDEIRA, 2013), violência com sangue e violência com

morte2. Dessa maneira, compomos o percurso do ciclo da violência a fim de identificar,

no primeiro momento, quais são as lacunas que a Lei tem apresentado em mais de 10 anos

de implementação, bem como é possível visualizar a partir de uma análise do seu texto e

relatórios a efetividade e a importância de refletir sobre gênero, suas práticas discursivas

e violência como espaço e destino socioeducativo.

Após percorrer o contexto histórico e conceitual de gênero, violência e da demanda

reivindicada por mulheres para o enfrentamento da violência doméstica, procuramos no

capítulo IV, “(Des) construindo violência no RN: análise da efetividade do eixo

socioeducativo”, analisar e apresentar os instrumentos socioeducativos oferecidos pelo

Estado potiguar, com o propósito de identificar quais os recursos e como age o Estado no

enfrentamento da violência doméstica. Diante disso, traçar uma análise sob o eixo

socioeducativo parece ser necessário, visto que embora a análise punitiva ganhe uma

maior notoriedade, a socioeducativa é o eixo elaborado no texto da Lei que produz de fato

maior inferência sobre as mudanças de tipos hegemônicos e produz um espaço de

prevenção ao ato da violência, uma vez que nos permite desestabilizar a estrutura de

relações de poder entre os gêneros, sobretudo, tendo em vista que é na educação a maneira

apresentada para a sociedade os perigos de uma socialização voltada aos domínios

universais dos corpos.

Por fim, concluímos que a Lei Maria da Penha surge como uma política pública de

urgência social que ao ser nomeada no feminino, resgata a história de violência

essencializada neste gênero. Uma Lei que permite compreendermos como a construção

social infere sobre a vida dos indivíduos. Outro ponto que vale ressaltar, embora a Lei

elenque uma série de medidas de caráter protetivo, social, preventivo e repressivo ela

ainda não dá conta das interseccionalidades3 que compõem o gênero e a violência. No

2 Embora a violência com morte seja sinalizada no capítulo III, somente no capítulo IV iremos investir

provocações e análise acerca da violência com morte, tendo em vista o diálogo que apresentamos com os

dados produzidos pelo Ligue 180 e vítimas de morte provocadas pela violência doméstica no Rio Grande

do Norte. 3 Conforme Piscitelli (2008) a discussão acerca as interseccionalidades possibilita perceber a coexistência

de diversas abordagens. Distintas perspectivas utilizam os mesmos termos para referir-se à articulação entre

diferenciações, no entanto elas variam em função de como são pensados diferença e poder. Dessa maneira,

compreendemos em concordância com a autora que interseccionalidades faz referência as reflexões e

teorizações sobre a “multiplicidade de diferenciações, que articulando-se a gênero, permeiam o social”

(PISCITELLI, 2008, p. 263). É importante, destacar ao leitor que apesar de apresentar a categoria , a

discussão não abarcar esta como categoria analítica.

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caso potiguar, destacamos que mesmo que haja investimento do governo em ações

socioeducativas, a aplicação da Lei é parcial e polarizada em cidades polos, deixando

cidades que talvez apresentem dados mais elevados de fora, logo não contabilizados nas

estatísticas produzidas pelo governo. No mais, procuramos apresentar nas conclusões os

efeitos dos discursos temerosos que invadem o processo educativo, por exemplo,

“Ideologia de gênero”, “Escola Sem Partido”, contribuindo para a produção de uma

sociedade sem reflexão; estruturas hierárquicas; modelos hegemônicos; e violência.

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CAPÍTULO I

1. GÊNERO E A CONSTRUÇÃO DO CORPO VIOLENTADO

Para compreendermos como o gênero é categoria importante na Lei Maria da

Penha, na nomeação da Lei, no enfrentamento à violência doméstica e categoria inserida

nas políticas públicas, seguimos os passos de Berenice Bento (2006) e apresentaremos

neste capítulo as formulações desenvolvidas pela autora para explicar as mudanças,

acréscimos e debates sobre o conceito de gênero. Bento (2006) sugere três tendências

explicativas para entendermos os processos que constituem as identidades de gênero, são

elas: universal, relacional e plural.

Após apresentar e refletir com Bento em sua incursão histórico-teórica sobre como

se constituem as identidades de gênero, problematizaremos como o gênero marca

socialmente o lugar de reconhecimento dos sujeitos no mundo. Nesse sentido, o

reconhecimento sugere demarcar o lugar de existência, visto que nele se insere os

símbolos que darão sentido e pertencimento aos sujeitos. Pensar os limites do que marca

a existência de uma mulher e do homem nos faz questionar as normas e regras sociais que

instituem uma maneira “adequada”, “certa” de existir como mulher/homem. Esses

símbolos marcados nas cores, nos brinquedos, na profissão, comportamentos,

público/privado nos possibilita tencionar a ordem compulsória que em seus elementos

também constroem o agressor e a agredida.

Ademais, nessa linha entre normas e padrões na qual a construção dos gêneros

está inserida, traremos as marcas simbólicas de construção do homem nordestino escrito

sobre uma polifonia e imagem estereotipada de Nordeste, possibilitando-nos

problematizar nos capítulos posteriores os altos índices de violência doméstica na região,

sobretudo, no Rio Grande do Norte. Outrossim, os números desta violência permite-nos

questionar e refletir o alcance efetivo da Lei Maria da Penha e seus mecanismos de

enfrentamento à violência doméstica.

1.1.UM CONCEITO EM MOVIMENTO: PROBLEMATIZANDO GÊNERO

A categoria gênero tem restringido o comportamento social e sexual dos indivíduos

durante séculos, uma vez que sua história é escrita sob a ótica da normalidade. A noção de

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que é normal nascer homem ou mulher e conferir a este corpo práticas masculinas e

femininas condicionado pelas genitálias é reforçada pelo discurso religioso e biológico.

Assim, o corpo é tido como produtor do discurso de um verdadeiro sexo como se falasse da

verdade última da pessoa. Normal é nascer, crescer e morrer homem oferecendo aos olhares

da sociedade as performances que lhe garantam a masculinidade. Na mulher a lógica é

semelhante, as performances que legitimam são as que denotam feminilidade.

O conceito de gênero ganhou notoriedade a partir da década de 1980, “ele oferece

um novo olhar para a realidade, situando as distinções entre características

consideradas femininas e masculinas no cerne das hierarquias presentes no social”

(PISCITELLI, 2002, p, 07). De acordo com Piscitelli (2002), o conceito de gênero

perpassa por várias formulações, mostrando a partir das teorias feministas, como foi

pautada a discussão iniciada no século XIX.

No século XIX, nas décadas de 1920 e 1930 na Europa e América do Norte, o viés

do pensamento feminista estava pautado na ideia de direitos iguais à cidadania, ou seja,

o direito ao voto, à propriedade e ao acesso à educação. Na década de 1960 as feministas

ajustam seus pensamentos para a discussão da subordinação feminina, uma vez que

acreditam que as mulheres ocupam os espaços sociais subordinados em relação ao

masculino.

As diversas correntes do pensamento feminista afirmam a existência da

subordinação feminina, mas questionam o suposto caráter natural dessa

subordinação. Elas sustentam, ao contrário, que essa subordinação é

decorrente das maneira como a mulher é construída socialmente.

(PISCITELLI, 2002, p. 8)

Para Piscitelli (2002), refletir a construção social da mulher é fundamental, pois o

que é construído pode ser modificado, dessa forma, “alterando as maneiras como as

mulheres são percebidas seria possível modificar o espaço social por elas ocupado”

(PISCITELLII, 2002, p. 08). O pensamento feminista, além de evidenciar as questões que

diz respeito ao direito/acesso à cidadania, construiu um sujeito político coletivo, criando

ferramentas para tentar acabar com a subordinação feminina e, ao mesmo tempo explicá-

la por meio do engajamento com a luta política e o evidenciamento do protagonismo das

mulheres na sociedade. Sendo assim, de acordo com a autora, “o reconhecimento político

das mulheres como coletividade ancora-se na ideia do que une as mulheres ultrapassa

em muito as diferenças entre elas” (PISCITELLI, 2002, p.10).

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Dessa forma, entendemos gênero como um processo construído socialmente,

atribuído de valorização cultural, assim como Miriam Grossi (2004) aponta, é uma categoria

analítica que ultrapassa homens e mulheres, ou seja, o gênero é construído socialmente e

embutido de valoração cultural e histórica. Logo, a relação entre os gêneros implica uma

construção social evidenciada cotidianamente por meio de práticas discursivas das pessoas.

A filósofa estadunidense Judith Butler na obra “Problemas de gênero: feminismo e

subversão das identidades”, publicado no Brasil em 2003, provoca com sua obra uma nova

interpretação para compreensão de gênero, uma vez que desconstrói o par sexo/gênero como

contínuo biológico e cultural, visto que para autora o “sexo é ele próprio, uma categoria tomada

em seu gênero, não faz sentido definir o gênero como a interpretação cultural do sexo”

(BUTLER, 2015, p.25). Com isso, podemos compreender que o gênero não se define sob a

inscrição cultural do concepção de um sexo predeterminado, pois para Butler ele designa os

signos, significados e discursos produzidos no qual os próprios sexos são concebidos.

Dessa maneira, Butler entende que dessa relação:

Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para natureza;

ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual a “a natureza sexuada” ou

um “sexo natural” é produzido e estabelecido como “pré-discursivo”, anterior

à cultura, uma superfície política neutra sobre a qual age a cultura. (BUTLER,

2015, p. 27)

Logo, para Butler (2015) o sexo visto sob a ótica de uma produção pré-discursiva deve

ser entendido como resultado dos desígnios culturais que chamamos de gênero, ou seja,

instrumentalizamos sócio culturalmente o significado do sexo no gênero e vice-versa. Pensar

sobre gênero e a dimensão que ele instaura nos sujeitos é trazer para o diálogo o processo

histórico de constituição dos sujeitos a partir do reconhecimento do “Outro” (BUTLER, 2006),

visto que gênero no seu marco simbólico e social nomeia existência. A típica pergunta a uma

mulher grávida se a criança gerada é menino ou menina impõe no feto um lugar no mundo.

Lugar marcado por cores, brinquedos, experiências profissionais e esportes “permitidos”,

marcado e reiterado repetidamente por uma estrutura social que dicotomiza o que é possível

para homens e mulheres. Com isso, podemos afirmar que o gênero se expressa dentro do caráter

normativo e de padrões sociais apresentados na binaridade homem-mulher, interpretado por

muito tempo no discurso da naturalização do sexo e na construção do gênero. E, esse caráter de

naturalizar e essencializar o comportamento dos sujeitos moldou e determinou as características

assumidas socialmente para caracterização do que é ser homem e do que é ser mulher.

Judith Butler (2006) afirma que:

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Comprender el género como una categoría histórica es aceptar que el

género, entendido como una forma cultural de configurar el cuerpo, está

abierto a su continua reforma, y que la «anatomía» y el «sexo» no

existen sin un marco cultural (como el movimiento intersex ha

demostrado claramente). La atribución misma de la feminidad a los

cuerpos femeninos como si fuera una propiedad natural o necesaria

tiene lugar dentro de un marco normativo en el cual la asignación de la

feminidad a lo femenil es un mecanismo para la producción misma del

género. Términos tales como «masculino» y «femenino» son

notoriamente intercambiables; cada término tiene su historia social; sus

significados varían de forma radical dependiendo de limites

geopolíticos y de restricciones culturales sobre quién imagina a quién,

y con qué propósito. (BUTLER,2006, p.25).

Nesse sentido, convergimos com Butler (2006) e compreendemos que o gênero

não é algo dado naturalmente, mas que está em disputa e em transformação diante à

realidade social, pois entender as atribuições impostas ao papel masculino e feminino em

nossa sociedade passa pela problematização e contextualização do marcador cultural.

Assim, para explicitar melhor as várias formas tomadas, debatidas e ressignificadas da

noção de gênero, vale ressaltar, brevemente, o percurso histórico do conceito.

O conceito de gênero foi introduzido, primeiramente, por Robert Stoller em 1963

(BENTO, 2006; PISCITELLI, 2002). É importante destacar que apesar do termo gênero

ter surgido como categoria em 1963, as mulheres já viam reivindicando os seus direitos

e espaços, ou seja, já vinham lutando para serem reconhecidas (BENTO, 2006). Como

dito, anteriormente, é na década de 1980 que o conceito de gênero e os estudos na área de

gênero ganhou maior dimensão, visto que o mesmo possibilitou um novo olhar sobre a

realidade social. Neste sentido, a noção de gênero como categoria analítica foi construída

nos anos 80 à luz do pensamento feminista com a intenção de situar as distinções entre o

que é considerado características do feminino e características do masculino, além de

desestabilizar o pensamento tradicional ( PISCTELLI, 2002).

A priori, o conceito foi articulado a partir das teorias sociais em relação à diferença

sexual. Por muito tempo, gênero foi considerado sinônimo de “mulher” e a utilização do

gênero como substituto de “mulher” indicava que toda informação em relação às

mulheres era necessariamente informação sobre os homens. Destarte, sublinha-se a

universalização/essencialização dos gêneros, dessa forma, os estudos destacavam o

patriarcado e o processo reprodutivo como origem da subordinação feminina,

apresentando deste modo, o homem como sujeito absoluto e de poder (BENTO, 2006).

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Nesse caminho conceitual de pensar as perspectivas de gênero, apresentamos a

partir da contribuição de Berenice Bento (2006), os caminhos possíveis para compreender

o debate sobre a noção de gênero, são eles: universal, relacional e plural.

1.2.PROBLEMATIZANDO GÊNERO: O UNIVERSAL, O RELACIONAL E O

PLURAL

Os estudos sobre gênero foram, primeiramente, desenvolvidos sob a proposição

da subordinação da mulher e, ao afirmar lugar de subordinação ao feminino

oposicionalmente determinava-se poder ao homem. Nesse sentido, mulheres e homens

eram interpretados de maneira essencializada e universais. Como aponta Bento (2006, p.

71), “Dois corpos diferentes. Dois gêneros e subjetividades diferentes.”. E para explicar

o pensamento, inicialmente, produzido sobre os estudos de gênero Bento (2006), nomeou

essa tendência explicativa de universal.

O gênero pensado universalmente é permeado por características que “cristalizam

as identidades em posições fixas” (BENTO, 2006, p. 70), uma vez que ao universalizar o

gênero há um reforço e essencialização do mesmo. Nessa perspectiva é evidenciado a

lógica apontada por Bento em diálogo com Butler onde as características de gênero

articuladas no processo binário de um corpo dimórfico compartilhadas como elementos

hegemônicos são produzidos sob o carimbo da cultura. Portanto, construídos como

“corpo-sexo uma matéria fixa, sobre a qual o gênero viria a dar significado, dependendo

da cultura ou do momento histórico, gerando um movimento de essencialização das

identidades” (BENTO, 2006, p. 71).

Diante das características postas como intrínsecas e universais às mulheres, a

subordinação marca o seu lugar dentro das relações de gênero e como ordem hierárquica,

visto que a mulher era compreendida como o outro absoluto (BENTO, 2006). Teóricas

feministas tais como Chodorow, Ortener e Rosaldo, (1979 apud BENTO, 2006) trazem

elementos em suas obras que reiteram características que fomentam sob mulheres e

homens elementos constitutivos construídos como estáticos, parecendo ser impossível

que homens pudessem ser reconhecidos a partir de qualidades apresentadas no feminino

e vice-versa. Há então, na perspectiva universal a ideia de uma natureza feminina e uma

cultura masculina, polo este que vai ser descrito em outras produções dicotômicas, tais

como: público-doméstico, objetividade-subjetividade, racional-emocional. Dessa

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maneira, o processo que atravessa a produção dicotômica dos sujeitos, tendo em vista que

para ser reconhecido como sujeito do seu gênero, determina a ausência de características

do gênero oposto não só aprisionou os sujeitos em características predeterminadas por

um momento histórico específico, mas também tem determinado, socialmente, ainda hoje

as possibilidades de (re)existir e reconhecer o “Outro” para além de características

atribuídas como inatas aos sujeitos.

A perspectiva universal atribui à mulher sinônimo de família e reprodução, a esta

cabe o âmbito do lar, assim sendo, inferior por sua condição biológica e em virtude de sua

estrutura fisiológica. Por muito tempo a essencialização dos gêneros acabou por conferir

ao feminino a subordinação do homem, criando uma mulher vítima e o homem como

sujeito de opressão e dominação. Ao essencializar o feminino criavam-se pressupostos de

um masculino universal também. Eram os homens naturalmente viris e competitivos,

características que impelem a condição masculina.

Bento (2006) aponta que na perspectiva universal:

A mulher é tomada como sinônimo de família, sendo que, nesse ponto,

não existe qualquer menção ao pai. Ao se tentar visibilizar os processos

culturais mediante os quais o feminino está sempre no polo subordinado,

invisibilizou-se o masculino, naturalizando-o. Nesse primeiro momento,

a visibilização da mulher como uma categoria universal correspondia a

uma necessidade política de construção de uma identidade coletiva que

se traduziria em conquistas nos espaços públicos. (BENTO, 2006, p.73).

A autora nos mostra que pensar o gênero a luz da concepção universal essencializa

as identidades, bem como pode também conferir a mulher papel de vítima. Por certo, no

exercício de pensar o desmonte de gênero, principalmente, o feminino, de essencialização

e subordinação, que o pensamento feminista articulou “exigências” voltadas para a

igualdade nos exercícios dos direitos, discutindo as raízes culturais das desigualdades

(PISCITELLI, 2002). A perspectiva universal de pensar o gênero alude para a construção

de uma mulher essencializada, unificada, porém é importante destacar que essa unidade

concebe um sujeito político, de direito e que reivindica reconhecimento4.

A perspectiva denominada por Bento (2006) como relacional problematiza os

princípios essencializados e universal de homens e mulheres, ou seja, ao apresentar os

gêneros a ideia de uma unidade é desfeita e se passa a refletir nas dimensões interseccionais

4 O século XIX é marcado pela inclusão da mulher como “sujeito político”, reivindica-se por direitos

democráticos (voto, divórcio, educação). Em 1960 a bandeira de luta é pela liberação sexual (contraceptivos),

já nos anos 1970 a luta ganha caráter sindical.

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que contribuem para a construção de identidades de gênero. Nesse sentido, sexualidade,

raça, geração, classe social, dentre outros, são elementos que contribuem para

dessencializar e desnaturalizar o gênero (BENTO, 2006), sobretudo, o lugar de submissão

das mulheres.

Qual a importância de outros elementos na construção dos gêneros? Entende-se que

um dos desdobramentos da perspectiva relacional é mostrar as diversas formas de existir

enquanto mulher e homem. Tomemos, por exemplo, a luta e reivindicação das mulheres

negras periféricas, certamente, diferem das reivindicações de mulheres brancas e de classe

média alta. Sendo assim, pensar em ambas como uma só unidade produz um abismo e

formas de subordinações diferentes. Outro desdobramento importante é apontado por

Bento (2006), a construção de um campo de estudo que descontrói o modelo universal do

masculino, forte, viril, violento e competitivo por natureza, o campo dos estudos das

masculinidades.

Um dos fios condutores que orientarão as diversas pesquisas e reflexões

desse novo campo de estudo é a premissa de que o masculino e feminino

se constroem relacionalmente e, de forma simultânea, apontam que este

“relacional” não deveria ser interpretado como “o homem se constrói

numa relação de oposição a mulher, em uma alteridade radical, ou

absoluta, conforme Beauvoir, mas em u movimento complexificador do

relacional (BENTO, 2006, p. 74-75).

Com isso, ao mesmo passo que os estudos sobre as mulheres iniciam suas pesquisas

a partir de outros conceitos sociológicos, a autora pontua que o campo das masculinidades

também passa:

[...] a trabalhar o gênero inter-relacionalmente: o homem negro em

relação ao homem branco, o homem de classe média em relação ao

favelado e ao grande empresário, o homem nordestino e do sul e, muitas

outras possibilidades de composição que surgem nas narrativas dos

sujeitos (BENTO, 2006, p. 75).

Como vimos, pensar o gênero a partir da perspectiva relacional é anular o caráter

universal, hegemônico e absoluto de compreender homens e mulheres, ou seja,

essencializada e naturalizada. Nessa perspectiva mulheres e homens são apresentados a

partir de modelos antagônicos entre si conferindo um caráter inter-relacional. Portanto,

gênero na leitura relacional é apresentado como uma categoria analítica (SCOTT, 1995),

ferramenta metodológica para a compreensão da construção, reprodução e mudanças das

identidades de gênero (BENTO, 2006), ou seja, uma produção dos gêneros através das

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relações de poder existentes dentro de um mesmo gênero e fora dele. Nesse sentido,

“gênero é visto como constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças entre os

sexos ... o gênero é uma forma primária de dar significados às relações de poder”

(SCOTT, 1995, p. 86).

Ainda que o gênero na perspectiva relacional seja atravessado por outros elementos

que o constitui, as diferenças sexuais continuam sendo pensadas reforçando a proposta

binária e o processo cultural de reconhecimento do “Outro”, o que leva Bento (2006)

produzir uma análise crítica dessa perspectiva.

Talvez o problema resida no fato de que, ao estudar os gêneros a partir

das diferenças sexuais, está se sugerindo explicitamente que todo

discurso necessita do pressuposto da diferença sexual, sendo que este

nível funcionaria como estágio pré-discursivo. Aqui parece que as

concepções relacionais e universais tendem a encontrar-se. A cultura

entraria em cena para organizar esse nível pré-discursivo para distribuir

as atribuições de gênero, tomando como referência as diferenças

inerentes aos corpos-sexuado. (BENTO, 2006, p. 76).

Tal formulação nos faz questionar junto com Bento (2006), o lugar reservado à

sexualidade, bem como aos sujeitos que são dissidentes da ordem binária do gênero, uma

vez que tanto no universal quanto no relacional, o gênero, a sexualidade e a subjetividade

não foram refletidas fora de uma relação oposicional. Segundo a socióloga brasileira, são

“os estudos queer que apontarão o heterossexismo das teorias feministas e possibilitarão,

por um lado, a despatologização de experiências identitárias e sexuais até então

interpretadas como “problemas individuais”” (BENTO, 2006, p.78).

A perspectiva nomeada como plural por Bento (2006) traz um novo movimento

para problematizar os sujeitos, primeiro, porque desestabiliza a relação intrínseca entre

sexo-gênero-sexualidade sob a formação das diferenças sexuais/corpo-sexuado, segundo,

porque entende estas categorias como independentes. Assim sendo, dedica atenção aos

sujeitos que performatizam fora do alcance das normas de gênero, corpos estes que

nomeiam outras identidades perante aquelas universalizadas ao longo da história.

De acordo com Bento (2006), a perspectiva plural tem como percussora os

trabalhos de Judith Butler, seus pensamentos são pautados na análise de gênero e

sexualidade como categorias independentes, onde o objetivo é tornar visível e reconhecido

os sujeitos que vivem às margens das normas de gênero e sexual. É nesta perspectiva que

há uma junção das performances de gênero e sexuais através da percepção que ambos são

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produções sociais e culturais, mas que são diferentes, pois o desempenho de um destes

domínios não implica na necessidade ou anulação do outro.

Como afirma Bento (2015):

Quando nascemos, já encontramos a sociedade na qual estamos inseridos

com as classificações do que seja pertencente ao gênero masculino e ao

gênero feminino. O gênero, neste caso, deve ser entendido como uma

categoria classificatória construída socialmente. O primeiro “carimbo

social” que recebemos é aquele que identifica a qual gênero pertencemos.

O gênero é uma das primeiras matrizes geradoras de sentido para os

atores sociais (BENTO, 2015, p. 53).

Logo, somos inseridos em um binarismo imperativo que ordena e determina que

façamos uma escolha única/definitiva. Um sexo: masculino ou feminino; homossexual ou

heterossexual; homem ou mulher.

Conforme Judith Butler (2003):

Se alguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo que alguém é, o

termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de

gênero da “pessoa” transcendam a parafernália específica de seu gênero,

mas porque o gênero nem sempre se constitui de maneira coerente ou

consistente nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero

estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas,

sexuais e regionais de identidades discursivamente construídas. Resulta

que se tornou impossível separar a noção de “gênero” das interseções

políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida.

(BUTLER, 2003, p.20).

Portanto, as questões que marcam o terceiro momento sobre os estudos de gênero

dizem respeito aos estudos queer, baseados na instabilidade das identidades, aqui o gênero

é performático e o corpo é moldado. O corpo é um texto de significantes em constante

processo de transformações e construções com significados múltiplos. Segundo esta

perspectiva compreende-se o corpo como um conjunto de fronteiras sociais e individuais

politicamente significadas e mantidas. O sexo não é mais uma predisposição interior e da

identidade, mas uma significação performática organizada, liberando o sujeito da

naturalização (BENTO, 2006). Deste modo, a perspectiva plural pauta suas análises a

partir da diferença entre sexualidade e gênero como categorias independentes, onde o

escopo é tornar visível e reconhecível os sujeitos que vivem às margens das normas de

gênero e sexual, desta forma, não há uma única matriz de gênero (BUTLER, 2003). Nesse

sentido, a perspectiva plural e os estudos queer irão, segundo Bento (2006), compreender

“a sexualidade como dispositivo; o caráter performativo das identidades de gênero; o

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alcance subversivo das performances e das sexualidades fora das normas de gênero; o

corpo como um biopoder, fabricado por tecnologias precisas” (BENTO, 2006, p. 81).

Apresentar as tendências explicativas sugeridas por Bento (2006) faz com que

possamos compreender como o enfretamento à violência aparece como urgência na agenda

pública, visto que romper com características fixas possibilita novos rearranjos sociais para

pensarmos os gêneros. Dessa forma, compreendemos que a Lei Maria da Penha ao trazer

no artigo 5° a violência doméstica e familiar contra a mulher como qualquer ação ou

omissão baseada no gênero retira do texto a possibilidade de pensar a Lei nas perspectivas

universal e relacional, sinalizando a incorporação da perspectiva plural. Isto é, o gênero é

pensado a partir da identidade, logo nas múltiplas formas de tornar-se mulher. Diante disto,

não é necessário nascer mulher para ser amparada pela Lei, mas sim constituir sua

identidade de gênero enquanto mulher.

No entanto, são os efeitos das características do gênero essencializado e

universalizado que contribuem para a condição da naturalização da violência. Vale destacar

que entendemos o gênero a partir da perspectiva plural, entretanto, a violência contra o

gênero feminino é apreendida relacionalmente, uma violência de dois, conforme a Lei: (ex)

companheiro x (ex) companheira; (ex) companheira x (ex) companheira; pai x filha; filho

x mãe, entre outros que tenham vínculo afetivo. Embora, apreendemos gênero a partir da

perspectiva plural na Lei possibilitando ampliar as mulheres que são amparadas pela

mesma, ou seja, mulheres não trans e mulheres trans, ao longo do texto podemos verificar

como a perspectivas de universalização e características fixas permeiam a problemática da

violência doméstica.

1.3. DO DOMÉSTICO AO PÚBLICO: OS ESPAÇOS E A

TERRITORIALIZAÇÃO DOS LIMITES POSSÍVEIS

Diante da historicização sobre o percurso teórico social que foi construído o

gênero visto no tópico anterior, passaremos a compreender os efeitos dos discursos fixos

e características “determinadas” a homens e mulheres que contribuem para entender

como a violência doméstica se revela entre homens (agressores) e mulheres (em condição

de violência).

A violência doméstica revela-se nas relações íntimas/conjugais, um lugar que é

predominantemente o espaço privado, assim ocorre na privacidade do casal, ou seja, no

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lar/casa podendo atingir familiares e pessoas que lá convivem (BANDEIRA, 2013).

Contudo, se desmonta a ideia romantizada do espaço doméstico/privado como lugar do

afeto, amor, proteção e segurança, visto que a violência doméstica escolhe este ambiente

como lugar de suas múltiplas violências, como se este fosse o lugar seguro, invisível e

silenciado de cometê-la, na ideia de que o que ocorre em casa fica em casa, ou ainda em

briga de marido e mulher não se mete a colher. É no privado que a violência contra a

mulher, doméstica e conjugal, atinge índices alarmantes, constituindo o espaço doméstico

como espaço favorável de violência contra o feminino.

A violência contra as mulheres, sobretudo, a doméstica é um mecanismo que

fundamenta subordinação frente ao masculino, visto que há um sistema simbólico que

hierarquiza e legitima uma ordem geral de controle sobre os corpos femininos

(FEMENÍAS, ROSSI, 2009). Essa função ou ainda norma social aparece como uma

“arma” cultural que condiciona os sujeitos a sistemas estruturados que cria espaços de

significação e de reconhecimento. O binômio homem-mulher localiza também o polo

superior-inferior e esta condição articula os espaços e territórios possíveis dos papéis

sociais e sexuais.

De acordo com Maria Luisa Feminías e Paula Souza Rossi (2009) há um contraste

histórico, tradicional sobre a esfera pública e a esfera privada, ressaltando que o destino

dado ao público e privado reflete ao binômio homem-mulher e o polo superioridade-

inferioridade, dado que o público foi construído como espaço de reconhecimento e

individuação do homem, enquanto para as mulheres o privado localizava-as dentro do

espaço doméstico de subordinação e sujeição ao tradicional. Com isso, o protagonismo

do sujeito era evidenciado no homem equivalente ao espaço público.

Sobre a divisão do espaço público e privado Maria Berenice Dias e Thiele Lopes

Reinheimer (2011) apontam que:

Ao homem sempre coube o espaço público. A mulher foi confinada ao

limite do lar, com o dever de cuidado do marido e dos filhos. Isso

ensejou a formação de dois mundos: um de dominação, externo,

produtor; outro de submissão, interno e reprodutor. A essa distinção

estão associados os papéis ideais dos homens e das mulheres. Ele

provendo a família e ela cuidando do lar, cada um desempenhando a

sua função. Os distintos padrões de comportamento instituídos para

homens e mulheres levam à geração de um verdadeiro código de honra.

A sociedade outorga ao macho um papel paternalista, exigindo uma

postura de submissão da fêmea. As mulheres acabam recebendo uma

educação diferenciada, pois necessitam ser mais controladas, mais

limitadas em suas aspirações e em seus desejos. Por isso, o tabu da

virgindade, a restrição ao exercício da sexualidade e a sacralização da

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maternidade. Ambos os universos, ativo e passivo, distanciados, mas

dependentes entre si, buscam manter a bipolaridade bem definida,

sendo que ao autoritarismo corresponde o modelo de submissão.

(DIAS, REINHEIMER, p.2011 195).

Dias e Reinheimer (2011) assinalam que a territorialização do doméstico/privado

e público é marcada por uma divisão sexual destinada a comportamentos socialmente

normatizados que destinam características que colocam a mulher na posição de

passividade, em contrapartida, o homem confere estatuto de ativo pertencendo ao

ambiente público.

Com Luana Passos de Souza e Dyeggo Rocha Guedes (2016) podemos

acrescentar as formulações de Dias e Reinheimer (2011) que na dicotomia entre o espaço

público e o espaço privado se consubstanciou a divisão social do trabalho, homens

provedores e mulheres cuidadoras. Igualmente consideramos que as atribuições sociais

ao mesmo ponto que limitavam a mulher no âmbito privado davam de forma “natural” o

consentimento do espaço privado aos homens. Dessa maneira, pensar a divisão sexual do

trabalho é pôr em evidencia os desígnios comportamentais para o que se espera de homens

e de mulheres e para tanto é normatizar o lugar desses sujeitos5.

À mulher coube as características que a coloca no campo da passividade, emoção

e maternal, visto que ao homem a virilidade, aventura, objetividade se alastrava como

campo de força e hierarquização. Ao territorializar a mulher no campo da passividade,

socialmente era imposta a ela a subalternidade e a casa como ambiente habitável. O lugar

de reprodutora e de mãe também “empurra” cada vez mais esse lugar de domínio e de

dominação do lar. Já, ao homem estruturalmente são associados os benefícios do espaço

público que ratificam sua hierarquia, tendo em vista que ao “aventurar-se” entre os

espaços, de certa maneira, compôs uma relação de poder dos homens sobre as mulheres,

sobretudo, porque havia uma dependência econômica atrelada.

Desse modo, podemos considerar que a divisão sexual do trabalho historicamente

colocou, prioritariamente, os homens em uma esfera produtiva e as mulheres em uma

esfera reprodutiva nas quais os homens agregavam funções sociais de valor e status.

Como aponta Danielè Kergoat (2003), a divisão sexual incide sobre a divisão social do

trabalho em dois planos: o de separação e o de hierarquização. Separação no que diz

5 Pontuamos que os autores citados não levam em consideração as interseccionalidades. Logo, a entrada de

mulheres e homens negros devem ser analisados de maneira distintas no que concerne à divisão sexual do

trabalho.

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respeito a que existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres e, hierarquização,

visto que o trabalho de homem “vale mais” que um trabalho de mulher. Ademais, essa

estrutura de divisão social, hierárquica e sexual separava o lugar da mulher e seu papel

social em nossa sociedade ao mesmo tempo em que ela entrava no campo do trabalho e

era mais uma vez posta dentro de normas de papéis de gênero, pois quando não estava

em trabalhos domésticos era “oferecido” o lugar do cuidado, por exemplo, responsável

pela educação das crianças e/ou do cuidado “básico” médico (enfermeira), lugares que

localizam mais uma vez a ideia de “natureza” feminina. Quando as mulheres transpõem

essa realidade se deparam com a desvalorização do trabalho e desigualdades que incidem

sobre o seu gênero.

Para Souza e Guedes (2016), as transformações socioeconômicas e a força do

movimento feminista no século XX fragilizaram de modo conjunto a dicotomia entre o

privado e o público, tendo em vista que o modelo do homem provedor e mulher cuidadora

é ressignificado, assim:

O relaxamento das fronteiras entre o mundo produtivo (homens) e

reprodutivo (mulheres) tem contribuído com a possibilidade das

mulheres participarem do mundo produtivo, mas não reveste o

afastamento dos homens do mundo doméstico (SOUZA, GUEDES,

2016, p. 139).

No mais, acreditamos que embora haja um ressignificação do papel da mulher e

sua entrada no espaço público e mercado de trabalho, as atribuições socialmente

destinadas são estruturadas em nossa sociedade de maneira que permanecem nas

concepções culturais, tendo em vista que ainda é transferido e exigido das mulheres a

responsabilidade de reprodução social.

Para Dias e Reinheimer (2011) são os métodos contraceptivos e as lutas

emancipatórias que constituíram uma nova mulher, a que se integra ao mercado de

trabalho e que passa a cobrar uma nova postura do homem dentro de casa. No entanto,

essa mudança parece ratificar conforme as autoras o deslocamento do modelo/norma

“preestabelecido criando um contexto potencializador para situações de violência, que

tem como justificativa a cobrança de possíveis falhas no cumprimento ideal dos papéis

de gênero” (DIAS & REINHEIMER, 2011, p. 196).

O espaço doméstico/privado como lócus de violência se caracteriza mais uma vez

como o lugar de submissão e subalternidade da mulher, visto que na maioria das vezes, o

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homem exerce sobre a casa o status de provedor e sobre a mulher uma relação de poder,

caracterizando-o por vezes como sujeito de violências.

Segundo Dias e Reinheimer (2011):

A relação de desigualdade entre o homem e a mulher, realidade milenar

que sempre colocou a mulher em situação de inferioridade lhe impondo

a obediência e a submissão, é terreno fértil à afronta ao direito à

liberdade. O medo, a dependência econômica, o sentimento de

inferioridade, a baixa autoestima decorrente da ausência de pontos de

realização pessoais sempre impuseram à mulher a lei do silêncio. A

ideia sacralizada da família e a inviolabilidade do domicílio serviam de

justificativa para impedir qualquer tentativa de coibir o que acontecia

dentro do lar. A família vista como “entidade inviolável” não se

sujeitava a qualquer interferência, tampouco a da Justiça, o que tornava

a violência invisível. Acostumada a realizar-se exclusivamente com o

sucesso do par e o saudável desenvolvimento dos filhos, algumas

esposas e mães acabavam por desenvolver um profundo sentimento de

culpa, o que a impedia de usar a queixa como forma de fazer cessar a

agressão de que era vítima. Em seu íntimo, talvez se achasse

merecedora da punição, por ter desatendido as tarefas que

historicamente eram-lhe afetas. (DIAS, REINHEIMER, 2011, p.196).

Portanto, o espaço doméstico/privado pode ser compreendido historicamente

como lugar do silêncio e da disciplina, paradoxalmente, como o lugar que protege a

violência. Sendo assim, parece-nos que as violências contra as mulheres aumentam

quando as relações de gêneros estão sendo questionados, desta maneira, a violência

doméstica se inscreve como fator determinante de uma visibilidade e espaço até então

“negado”, logo rompe-se com os padrões vigentes de gênero.

1.4. (DES)FAZER GÊNERO NO NORDESTE

Somos construídos socialmente e historicamente embutidos de mecanismos de

controle, apreendendo tradições e estilos de vida, ou seja, construídos na repetição de

condutas impostas, socialmente adquiridas. Desta forma, a cultura, tem o poder de

legitimar condutas, ou seja, práticas sociais. Nesse sentido, analisar o alcance da violência

doméstica e familiar no Brasil, Rio Grande do Norte, a partir da Lei Maria da Penha nos

faz refletir os aspectos culturais do fenômeno da violência doméstica no Rio Grande do

Norte, nordeste brasileiro, logo, como são construídos masculinidades e feminilidades.

Diante disto, questionamos e procuraremos entender: Como se constitui o ser homem e

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ser mulher no Rio Grande do Norte? Qual o papel social que lhe são atribuídos? Sendo

assim, temos como proposta identificar os aspectos culturais que corroboram na prática

da violência doméstica, as interpelações (BUTLER, 2001) que constituem os sujeitos

norte-rio-grandenses como agressores e agredidas e, sobretudo, refletir como

características de gêneros são universalizadas e essencializadas em construções

imagéticas no território nordestino, constituindo mais uma vez relações de poder.

Entendemos que gênero está imbricado culturalmente no conjunto de normas

moduladoras no processo de construção do ser homem e ser mulher, dessa maneira, se

expressa nas relações destas duas categorias como elemento basilar da construção do ser,

existir. Segundo Althusser (1980), as formas como a sociedade se reproduz para nos (re)

produzir como sujeitos - sujeito da fala divina, sujeito do discurso policial, moral,

religioso, familiar é a partir da ideologia, sobretudo, de seus aparelhos ideológicos. A

priori, a igreja tem o papel de disseminação mais eficaz da ideologia dominante, no

entanto o autor afirma que o aparelho escolar “toma” esse papel da Igreja, a Escola é

entendida como um “Aparelho Ideológico de Estado que desempenha incontestavelmente

o papel dominante, embora nem sempre se preste muita atenção à sua música: ela é de

tal maneira silenciosa!” (ALTHUSSER, 1980, p. 64). Para o autor, a ideologia é o

princípio das ideias e das representações que dominam o íntimo de um indivíduo ou grupo

social.

Destarte, o sujeito desconhece que é interpelado, construído silenciosamente, uma

vez que não percebe os discursos ideológicos que lhe são introjetados pelas normas,

regras, leis e padrões culturais. A teoria de interpelação, segundo Butler (2001), dá a

entender uma doutrina anterior, não amadurecida da consciência, um retorno sobre si

mesmo, logo o desejo de aceitar a culpa para se ter uma adesão identitária está atrelado a

um cenário no qual Butler (2001) compreende como altamente religioso. Assim sendo, a

autora indaga:

¿Hasta qué puento la representación religioso de la interpelación

limita de antemano toda posibilidad de interverción crítica en el

funcionamento de la ley, toda anulación del sujetos in la cual ésta no

puede desarrolarse? (BUTLER, 2001, p. 123).

A interpelação dá conta da construção ideológica do sujeito, está estrutura-se no

poder divino de nomear, a autora exemplifica bem ao referir o batismo como um dos

meios linguísticos no qual o sujeito é “obrigado” a ser social. Contudo, podemos aferir

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que o gênero discursivamente, principalmente, em sua construção tem também esse papel

linguístico de conferir ao sujeito existência, ou seja, torná-lo ser social. Ao refletir sobre

como os sujeitos são interpelados, entendemos que o sujeito, todos os dias, imerge no

mundo simbólico, no mundo dos discursos: familiar, escolar, religioso, etc. para manter-

se como sujeito, desse modo, existir.

Butler (2001) afirma que:

El sujeto sólo se mantiene como sujeto mediante una reiteración o

rearticulación de sí mismo como tal, y que su incoherencia, su carácter

incompleto, puede residir en el hecho de depender de la repetición para

alcanzar a coherencia. La repetición o, mejor dicho, la iterabilidad, se

convierte por tanto en el no-lugar de la subversión, en la posibilidad de

una reencarnación de la norma subjetivadora que redirija su

normatividad (BUTLER, 2001, p. 112-113).

De acordo com a autora a repetição viabiliza ao sujeito seu caráter múltiplo,

contraditório e mutável. Desse modo, a resistência aos mecanismos de poder é uma

atividade psíquica do consciente, uma potência a sujeição e normalização, portanto, vai

operar também na repetição e não em um fato isolado. Butler (2014) pondera que o

“gênero é o mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas e

naturalizadas” (BUTLER,2014, p 253), no entanto, pode ser também o dispositivo

mediante o qual pode-se descontruir e desnaturalizar tais noções.

Butler (2014) diz que:

Se gênero é uma norma, isso não equivale a um modelo ao qual os

indivíduos tentam se aproximar. Ao contrário, é uma forma de poder

social que produz o campo inteligível de sujeitos, e um aparato pelo

qual o binarismo de gênero é instituído. Como uma norma que aparece

como independente das práticas que governa, sua idealidade é o efeito

reinstituído dessas mesmas práticas. Isso sugere não apenas que a

relação entre práticas e a idealização a partir das quais ela funciona é

contingente, mas também que a própria idealização pode ser

questionada e problematizada, potencialmente desidealizada e

desinvestida. (BUTLER, 2014, p. 261/262).

Segundo a autora, a norma é (re)produzida na sua corporificação, através dos atos

que se estimulam para estabelecer relação com ela, a partir de idealizações reproduzidas

nos e por esses atos (BUTLER, 2014), desse modo, o gênero é construído na repetição,

nos discursos. Em diálogo com Michel Foucault, Butler (2014) assinala que o pensador

francês afirma que a norma refere-se à arte de julgar e que está visivelmente atrelado ao

poder. Desta forma, compreendemos que de acordo com a autora, em Foucault a

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constituição do ser humano como sujeito se dá a partir do campo das relações de poder,

do âmbito de ações de poder ou poderes diversos, dispositivos, tecnologias, mecanismos,

ideologia ou discurso ideológico.

Portanto, as diversas formas de discriminação, violências e ausência de

reconhecimento são formas de sujeição e dominação, no qual podem ser sustentadas

através do/pelo controle social, na/pela moral, nas/pelas tradições, no/pelos valores e

cultura. Assim sendo, a norma é uma forma de (re) produzir padrão. Butler (2014) assinala

que “tornar-se um exemplo da norma não é esgotar a norma, mas é tornar-se sujeito a

uma abstração do senso comum” (BUTLER, 2014, p. 264). As normas são formas de

ação que aferem realidade intensamente pelo benefício de seu poder repetido de atribuir

realidade.

Contudo, ponderar a construção dos gêneros a partir das normas, padrões culturais

do nordeste brasileiro, Rio Grande do Norte, é conferir essa como produto de um conjunto

de intervenções de construção de um sujeito histórico regional, ator fundamental para a

história política e cultural do Brasil (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003), em outros

termos, é refletir a partir da construção de masculinidades e feminilidades que designa

normas sociais que devem não apenas ser desempenhados, mas “atingidas” pelos gêneros

masculino e feminino e que são permeados de relações de poder. Albuquerque Júnior

(2003) assevera que estes dois polos não devem ser universalizados, dado que devem ser

pensados em suas multiplicidades, nas diversas formas de existir homem e mulher, ou

seja, para além do estereótipo do cabra macho e de sua companheira submissa.

Não há um modelo característico e exclusivo de masculinidade e feminilidade, o

que há são modelos de masculinidades e feminilidades. Várias culturas, em diferentes

períodos históricos, constituíram diversas manifestações e expressões de “ser homem” e

de “ser mulher”. Ademais, a estrutura social, política, econômica e cultural, apesar disso,

aponta um arquétipo de “masculinidade hegemônica”, que funda uma cadeia de

características, valores e condutas particulares. Essas que reiteram e essencializam a

imagem do homem nordestino como um sujeito rude, violento, grosseiro, como se estas

fossem características fundantes do homem nordestino, ou ainda, de sua identidade

masculina (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003). Como se a violência fosse primária

nesses sujeitos, visto que tais características constituem um homem da violência, um

homem agressivo.

Conforme Albuquerque Júnior (2003), a violência institui-se como elemento

intenso da sua subjetividade, tecida perante de uma conjuntura sociopolítica específica,

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fundamentada e vinculada pelos preceitos do patriarcado. A violência atribuída ao

masculino no Nordeste institui virilidade como se esta fosse sinônimo de sobrevivência

ou existência, logo, o se fazer ser social. Desta forma, a agressividade confere qualidade

intrínseca do “ser homem” no Nordeste.

A construção histórica e cultural da identidade do nordestino reverbera um homem

símbolo de virilidade sobre os signos de um “cabra macho”, “cabra da peste”, “valentão”.

Ela reproduz territorialmente as características fundantes da hegemonia masculina,

impede que o homem nordestino seja outra coisa que não seja o “verdadeiro macho”.

Como se escuta nos nove estados do Nordeste um grito de “seja macho, menino, seja

homem!”.

Tomamos os escritos do historiador brasileiro Albuquerque Júnior (2003, 2005)

para pensarmos as experiências de ser homem no Nordeste. O ser masculino como

definidor não só da identidade de gênero, mas da construção da identidade regional

nordestina. O autor refaz um discurso tradicionalista em que as transformações sociais

que ocorreram no Nordeste desde o final do século XIX até a década de 1940 eram

referidas como um processo de feminilização da sociedade. As mudanças que inclinavam

para o rompimento das hierarquias sociais, a ascensão da República, o avanço da

modernidade e a progressiva conquista da cidade sobre o campo eram descritas a partir

de representações que remetiam a significados de gênero em que a sociedade estaria se

feminizando. O autor aponta que o aprimoramento da vida moderna, exigido pela moda,

levava os homens a uma delicadeza de falas, gestos e atitudes, “os homens duros de

antigamente agora amoleciam, perdiam a virilidade, a potência” (ALBUQUERQUE

JÚNIOR, 2003, p. 49).

Albuquerque Júnior (2003, 2005) apresenta a criação do conceito freyriano de

patriarcalismo, entre o discurso tradicionalista e a percepção da feminização da

sociedade. O historiador apreende o conceito freyriano a partir de uma inteligibilidade

ligada às relações contemporâneas em que Freyre estava inserido. Portanto, o

patriarcalismo seria uma forma hierárquica de relacionamentos sociais, um discurso

construído.

Segundo Albuquerque Júnior (2003):

A elaboração da figura do nordestino vai se dar pelo cruzamento de

conceitos, temas e enunciados vinculados à formação discursiva

naturalista, com conceitos, temas e enunciados vinculados à formação

discursiva nacional-popular de matriz culturalista. (ALBUQUERQUE

JÚNIOR, 2003, p.164).

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Considerando esse discurso, o autor nos mostra como a identidade regional

nordestina é arquitetada como uma “reação viril” perante da passividade da região. O

modelo nordestino surge, ou ainda, é inventado com intuito de preservação de um passado

tradicional, regional e patriarcal que estaria desaparecendo e dando lugar a uma sociedade

“matriarcal”, efeminada.

É importante notar que de acordo com Albuquerque Júnior (2003), nesse discurso,

pensa-se o nordestino enquanto um macho, homem e não enquanto termo que transporta

para se mencionar toda a espécie humana, pois o conceito de nordestino que emergia era

pensada no masculino, não existia lugar para o feminino nesse esboço. Deste modo, a

figura do nordestino ao ser gestado, na década de 1920, agencia toda uma gama de tipos

regionais ou tipos sociais vivenciados em uma vida rural, por uma sociabilidade

tradicional, e, sobretudo, como se refere o autor, desenhados em apanágios masculinos

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003).

Sendo assim, definir a masculinidade em contexto territorial acaba por limitar o

homem a ser sujeito espacialmente construído sob a égide das lembranças do passado –

tradição. Ao inferir a masculinidade como legitimadora das ações do verdadeiro macho

instaura-se no Nordeste a supremacia hegemônica do que é vivenciar a experiência de ser

homem. Do final do século XIX aos dias atuais, ser homem/macho no Nordeste brasileiro

impele significações tórridas. Seu corpo tem que ser texto lido por todos

heteronormativamente.

O autor nos mostra as interpelações do ser homem no nordeste a partir do texto

Do Fogo Morto: mudança social e crise nos padrões tradicionais de masculinidade no

Nordeste do começo do século XX, Albuquerque Júnior (2005) analisa a crise dos padrões

tradicionais de masculinidade nordestina a partir do romance, Fogo Morto, de José Lins

do Rego, de formas de ser homem na sociedade nordestina patriarcal. Para o autor, a obra

de José Lins do Rego, sinaliza um discurso de masculinidades em crise, “impossibilitados

de reproduzirem determinados padrões de comportamento, determinados valores,

hábitos, costumes, relações” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, p. 155, 2005). Assim, o autor

mais uma vez desmonta a partir da obra de José Lins do Rego a ideia de um sujeito

“macho/homem”, nordestino universal, contudo, apresenta-nos através de três

personagens a construção de um corpo violento/agressivo, corpos lidos na e pela

heteronormatividade, “homens que viviam uma profunda crise de identidade a não

poderem mais atualizar em suas vidas o modelo de sujeito masculino representados pelos

patriarcas do engenho” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2005, p. 153).

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Albuquerque Júnior (2005) afirma que a obra de José Lins do Rego:

Nos faz pensar como as relações de gênero implicam que os sujeitos

assumam determinados papéis e como eles são mutável nesse jogo

relacional que envolve o masculino e o feminino. Estes são máscaras

sociais rostilhadas e corporeidades que se assumem e que podem vir a

ruir a qualquer momento – homens e mulheres jogam um jogo

atravessado por astucias e angústias. Os homens de Fogo Morto

assumem máscaras rotas, puídas, que desabam diante dos percalços que

enfrentam em suas vidas. As mulheres também participam, em

solidariedade, dessa mascarada, mesmo que tenham uma clara

percepção que estão apenas representando um papel para agradar seus

homes; essas máscaras já não tem contornos de verdade para elas. Às

vezes, até por pena, essas mulheres evitam tornar claro para seus

homens que eles não passam de bufões, figuras grotescas, a simular uma

forma de ser masculino que não apresenta menor correspondência com

sua vida cotidiana, com suas práticas (ALBUQUERQUE JÚNIOR,

2005, p. 168).

Segundo o autor, os homens de Fogo Morto denotam uma obrigação de

demonstrar que são machos, tanto para si como para os outros. Conferindo para o outro a

legitimidade da sua masculinidade, ou ainda de seu reconhecimento enquanto sujeito

existente (BUTLER, 2015), imperadas em seu autoritarismo, opressão e agressividade

com aqueles que julgam fracos e inferiores, como se dadas características determinadas

socialmente refletissem em ser homem no Nordeste. Diante disto, o autor assegura que as

transformações que ocorreram na sociedade e nas relações de gênero colaboram para que

estes se tornassem mais agressivos, dado que a perda de autoridade, mando, poder e honra

são entendidos por estes homens como fim do convívio social (ALBUQUERQUE

JÚNIOR, 2005).

Além disto, percebe-se, através de Albuquerque Júnior (2005), que ao analisar

Fogo Morto, o autor apresenta uma sociedade que está em declínio econômico, político

e, principalmente, social. Em outras palavras, em uma transição social que no que diz

respeito ao gênero há uma desterritorialização da subjetividade masculina

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2005). Dessa forma, segundo o autor a decadência do

patriarcalismo no Nordeste brasileiro interpela nos territórios existenciais para o

masculino habitar.

A violência e a masculinidade são apresentadas por Albuquerque Júnior (1999,

2003, 2005) como elementos constitutivos da imagem do nordestino, que por sua vez

apareceram nos cordéis em contextos históricos distintos legitimando tal construção do

ser homem no nordeste, assim (re) produzindo a figura viril, valente e violenta, na imagem

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do cangaceiro, coronel, jagunço. Por conseguinte, como apontado, anteriormente, o

nordestino foi construído discursivamente com características que engendram os homens

como sujeitos da violência.

O nordestino é figurada por um conjunto de personagens que em seus

próprios nomes já trazem a marca da violência, da valentia e, as vezes,

da própria crueldade e maldade, nomes marcados por metáforas fálicas,

em que valentia, coragem e violência parecem ser associados ao

masculino e sua virilidade (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p.178).

O autor assinala o Nordeste na figura masculina como o lugar das violências, ou

seja, as masculinidades são generificadas sob o ideal de valentia, virilidade,

agressividade. Desviar-se desse padrão de masculinidade, atribui ao homem feminização,

um homem sem coragem, cabra frouxo (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999).

No percurso de pensar a construção das masculinidades nordestinas, identificamos

a partir de Albuquerque Júnior (1999, 2003, 2005) dois Nordestes brasileiros, o do Sertão

que traz como elementos instituidor de masculinidade a virilidade, valentia, e o Nordeste

da modernidade que por muito tempo foi sinônimo de feminização. Para o autor, definir

uma região não é refleti-la como uma uniformidade, mas sim como um grupo de

enunciados e imagens que se reproduzem, com certa constância, em diversos discursos e

épocas, com diferentes estilos. No entanto, o homem nordestino fora construído e (re)

produzido sob o encalce de um Nordeste unificado imageticamente, simbolicamente e

ideologicamente como sujeitos universalizados na valentia, virilidade, agressividade

exacerbadas do Nordeste/Sertão.

O autor nos faz refletir na construção de uma masculinidade violenta, das mortes

simbólicas no fazer-se homem. A negação e desvio das características ditas masculinas

são atravessadas nas violências psíquicas, simbólicas e físicas.

A violência psíquica sofrida pela a criança para tornar-se um homem,

para matar o feminino que ele foi, pode ser um dos fatores explicativos

da violência masculina (não se trata aqui de justificá-la, mas de tentar

entendê-la); a crueldade de que foi vítima pode torná-lo um adulto

cruel. A transformação de um menino em homem implica a submissão

dele em rituais marcados pela crueldade, pela violência física e

simbólica (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2014, p.110).

O masculino é investido afetivamente e racionalmente de práticas e discursos,

saberes e relações de poder que constituem o comando, dominação, superioridade. Em

outras palavras, a virilidade/masculinidade é moldada para cumprir as exigências

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socioculturais. Os homens não são apenas os sujeitos da violência, esses são também

violentados, no e pelo processo de construção da masculinidade, visto que são

violentamente inscritos sob signos de agressividade, valentia, coragem, honra, logo estão

imerso de violência simbólica (BOURDIEU, 2006). Cabe-nos aqui fazermos o mesmo

questionamento de Albuquerque Júnior (2014, p. 108), “quantas surras e espancamentos

de pais ou de estranhos não são precisos para se fabricar “homens de verdade?”, os que

desviam-se do padrão de masculinidade que fora atribuído são mortos simbolicamente e,

por muitas vezes, fisicamente.

O processo de construção de masculinidade no Nordeste por meio de

características ditas masculinas constitui uma percepção cristalizada dos homens autores

de violência contra mulher, sobretudo, a doméstica. Isto quer dizer que, os discursos e

narrativas dá e deu consentimento para matar e violentar mulheres, principalmente, pela

produção de “verdade” (FOUCAULT, 1988). Nesses discursos, há uma produção de

verdade do homem nordestino em um espectro exagerado de universalização e

essencialização, a qual a violência sob o feminino torna-se uma característica fundante de

dominação e superioridade. Violência essa apresentada por meio de micro violências.

Apesar disto, como dito anteriormente, o processo de construção dos gênero é um

processo violento para ambos, é um processo de corpos e subjetividades violadas e

violentadas. De interpelações e violência simbólica (BOURDIEU, 2006) que são

imperceptíveis na construção da violência contra o feminino como ato “condicionante” e

generificado no processo de construção de “ser” homem. Ou ainda, na construção

simbólica dos gêneros (MACHADO, 2006).

Logo, ao refletir sobre a LMP e como as características apresentadas aos homens

nordestinos sob a ênfase de uma masculinidade hegemônica compreendemos que há uma

hipervalorização de características de força, agressividade e virilidade. Desse modo, esses

elementos constroem uma posição do lugar da violência, do agressor. Pensar sobre como

esses homens são socialmente construídos e reproduzidos, nos faz refletir sobre a maneira

como a violência é enxergada, tendo em vista que ao universalizar os homens nordestinos

parece que temos um consentimento da violência em si.

Devemos colocar em suspensão a maneira como se vê o Nordeste e como se

constroem discursos e práticas de verdades, visto que pensar a masculinidade de forma

hegemônica mascara as múltiplas maneiras de experenciar a masculinidade e as variáveis

que compõem o Nordeste. No mais, trazer os escritos do Albuquerque Júnior (1999, 2003,

2005), contribui para o diálogo da imagem que é feito sobre o nordestino e que aparece

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como reflexo dos homens autores de violência contra a mulher, sobretudo, no Nordeste.

Entretanto, ao longo do texto procuraremos dessencializar características inatas aos

gêneros.

1.5. CONSTRUÇÃO DO CORPO VIOLENTADO

O fenômeno da violência sempre esteve presente em nossa sociedade, a forma

como se apresenta varia de uma sociedade para outra, assim sendo, o formato como a

violência se configura depende do arranjo histórico, cultural e social de cada sociedade.

Nesse sentido, são consideradas práticas violentas e legitimadas pela coletividade

conforme a sociedade. Procuraremos trazer as reflexões de gênero a partir de teóricas que

pensam como a violência “achou” no corpo feminino o lugar construído para a agressão,

uma vez que o aparato cultural sanciona este lugar como possível.

Por muito tempo vigorou no Brasil Colônia do século XVI até o início do século

XIX as Ordenações Filipinas, código de Leis de Portugal, que dava domínio absoluto ao

homem, logo, eles tinham total direito sobre a mulher. Por conseguinte, as mulheres

estavam sujeitas ao poder disciplinador do pai ou marido, os homens eram suprimidos de

pena, legitimava-se o uso da violência contra a mulher, desde que essa fosse “moderada”,

entretanto, ao mesmo tempo, davam ao homem o direito de matar sua mulher caso a

mesma cometesse adultério. Segundo Mariza Corrêa (1981) o novo código penal6

reconhece “a igualdade de todos perante a lei enquanto indivíduos, mas mantém a mulher

numa situação de tutela e submetida ao único coletivo admitido em nossas leis: a família”

(CORRÊA, 1981, p.15). Deste modo, o adultério como crime permaneceu no código

brasileiro por muito tempo, o que legitimou assassinatos em detrimento da defesa de

honra, assassinatos que pareciam caber à masculinidade.

Diante disto, a violência contra as mulheres em suas múltiplas formas reflete-se

na violência doméstica contra as mulheres, dado que a violência contra a mulher fora

justificada e legitimada sobre o pressuposto da defesa de uma honra masculina até o final

do século XX7 É notório que a violência doméstica contra a mulher é decorrente, em

6A autora refere-se ao código penal de 1940. 7 Pimentel, Pandjiarjian e Belloque (2006) nos mostra que o argumento da legitima defesa da honra foi

aceito até meados dos anos 2000; contudo este argumento só passa a ser desfeito em sua plenitude com a

implementação da Lei 13.104/15, Lei do Feminicídio.

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grande parte, do controle e dominação masculina, cujo poder e a defesa da honra

configuram-se como uma violência estrutural, que controla, pune e violenta o corpo

feminino. Como vimos, é a partir dos questionamentos e reivindicações do movimento

feminista que se tem início de forma enfática a correlação entre a violência e o gênero.

Sendo assim, as reflexões das militâncias feministas ajudam-nos a perceber e

problematizar a violência assinalada no feminino. Esta que é recheada de significados,

bem como de distinções, apesar de suas similitudes. Podemos creditar as marcas da

violência no feminino decorrente do diferentes tipos de violências: violência contra a

mulher, violência doméstica, violência intrafamiliar e violência de gênero, deste modo,

“diversos significados dessas categorias adquirem desdobramentos e implicações

teóricas e práticas em função das condições e situações específicas de sua concretude”

(BANDEIRA, 2014a, p 451), além de acentuar a própria persistência da violência a partir

de sua multiplicidade.

Cecília MacDowell Santos e Wânia Pasinato (2005) contribuem significadamente

para compreendermos como os conceitos de violência contra as mulheres e violência de

gênero são formulados e utilizados. A literatura sobre violência contra as mulheres se

inicia no Brasil na década de 1980 constituindo uma das mais importantes temáticas dos

estudos feministas. Os estudos feministas são frutos de mudanças políticas e sociais do

país que incide no desenvolvimento de mulheres e o processo de redemocratização.

Nos anos 80, uma das principais reivindicações e problematização do movimento

feminista e, consequentemente, dos estudos feministas recaía sobre as questões sobre a

violência, logo, os primeiros estudos apresentam como objeto “as denúncias de violência

contra as mulheres nos distritos policiais e as práticas feministas não-governamentais

de atendimento às mulheres em situação de violência” (SANTOS, PASINATO, 2005,

p.02). Com a criação das delegacias da mulher na década de 80, as pesquisas realizadas

consistiam em conhecer os crimes denunciados, o perfil das mulheres agredidas e seus

agressores. Ressaltamos que essas pesquisas oferecem referencias teóricos para

entendermos o fenômeno da violência contra as mulheres e a posição das mulheres em

relação à violência.

Santos e Pasinato (2005) identificam três correntes teóricas que vieram a se

constituir como referências a esses estudos: a primeira que denominam de dominação

masculina. Nessa a violência contra as mulheres é definida como expressão de dominação

da mulher pelo homem, “resultando na anulação da autonomia da mulher, concebida

tanto como “vítima” quanto “cúmplice” da dominação masculina”. (SANTOS,

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PASINATO, 2005, p.02). As autoras se referem à segunda corrente como dominação

patriarcal, compreendida como influenciada pela perspectiva feminista e marxista, sendo

assim uma expressão do patriarcado, “em que a mulher é vista como sujeito social

autônomo, porém historicamente vitimada pelo controle social masculino”. (SANTOS,

PASINATO, 2005, p.2). A terceira corrente é nomeada de relacional, visto que

relativizam as noções de dominação masculina e vitimização feminina, a violência é

compreendida nessa corrente teórica “como uma forma de comunicação e um jogo do

qual a mulher não é “vítima” senão “cúmplice””. (SANTOS, PASINATO, 2005, p. 02).

A primeira corrente identificada como dominação masculina, segundo Santos e

Pasinato (2005), é uma das principais referências que orienta as análises sobre a violência

contra as mulheres nos anos 80. De acordo com essa perspectiva, a violência contra a

mulher é resultado da ideologia que confere inferioridade ao feminino mediante o

masculino, logo teóricos dessa corrente compreendem que a violência acaba por

transformar as diferenças em desigualdades hierarquizadas com a finalidade de oprimir,

explorar e dominar. Assim sendo, a mulher é silenciada através dos discursos masculinos

sobre as mulheres, há o que podemos considerar um apagamento social delas enquanto

sujeito.

A segunda corrente teórica que orienta-nos sobre trabalhos de violência contra as

mulheres é a concepção feminista e marxista do patriarcado introduzida no Brasil por

Heleieth Saffiotti. Essa concepção entende que a dominação masculina está vinculada aos

sistemas capitalistas e racistas, visto que essa concepção acredita que o patriarcado não

deve ser resumido a um sistema de dominação de ideologia machista, mas que ele é em

si próprio um sistema de exploração. Contrariando a perspectiva de dominação masculina

na qual a mulher é considerada “cúmplice” da violência, a teoria feminista e marxista do

patriarcado considera que embora sejam as mulheres concebidas como “vítimas” da

violência elas são definidas como “sujeitos” dentro de uma relação desigual de poder com

os homens.

Sobre a teoria da dominação masculina e a teoria feminista e marxista do

patriarcado, Santos e Pasinato (2005) compreendem que:

As pesquisas sobre violência contra as mulheres na década de 80

utilizam o conceito de violência de Chauí8, mas não incorporam sua

reflexão sobre a “cumplicidade” das mulheres na produção e

8Ver: CHAUÍ, Marilena, “Participando do Debate sobre Mulher e Violência”. In: Franchetto, Bruna,

Cavalcanti, Maria Laura V. C. e Heilborn, Maria Luiza (org.). Perspectivas Antropológicas da Mulher 4,

São Paulo, Zahar Editores, 1985.

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reprodução da violência. Na trilha de Saffioti, concebem violência

contra as mulheres como expressão do patriarcado e acabam

assumindo, com ou sem ressalvas, uma posição vitimista em relação à

mulher. (SANTOS, PASINATO, 2005, p. 05).

Com isso, Santos e Pasinato (2005) assinalam que a teoria da dominação e a teoria

feminista acabam por conferir em suas concepções a mulher o lugar vitimista. Já no que

concerne a terceira corrente teórica dos estudos sobre violência contra as mulheres, esta

irá relativizar a perspectiva dominação-vitimização. A principal expoente que

exemplifica essa corrente é Maria Filomena Gregori. A corrente relacional rejeita a ideia

de “violência como expressão de dominação e a dicotomia analítica autonomia-

heteronomia” (SANTOS, PASINATO, 2005, p. 07), visto que os estudos dessa corrente

compreendiam o fenômeno da violência conjugal como uma forma de comunicação nas

quais homens e mulheres davam significados e sentidos as suas práticas, o que para essa

teoria correspondia mais a um jogo relacional do que uma luta de poder. Para Gregori

(1993), a mulher participa de maneira ativa e violenta na relação, tendo em vista que,

segundo a autora, a mulher tem autonomia, logo não a concebe como “vítima” da

dominação masculina, embora a conceba como “cúmplice” da (re) produção e papéis de

gênero que mantém a violência. O que a diferencia das correntes anteriores é que ela

entende que a mulher é considerada protagonista da violência conjugal e “se representa

como “vítima” e “não-sujeito”” (SANTOS, PASINATO, 2005, p. 07).

No mais, segundo Santos e Pasinato (2005), a cumplicidade não pode ser

apreendida como simples instrumento de dominação. A perspectiva relacional foi

fortemente criticada, principalmente, os estudos de Gregori, pois a sua perspectiva ao

relativizar as relações de violência a compreende como algo que acontece fora de uma

relação de poder assumindo uma igualdade social entre os cônjuges.

No final dos anos 80 as acadêmicas feministas começam a “substituir” a categoria

“mulher” por gênero em consonância com os debates e estudos norte-americanos e

franceses a respeito da construção social do sexo e gênero. Há uma ruptura com a

perspectiva da violência sob a ótica patriarcal que dava margem a essencialização,

naturalização e biologização da mulher. Logo, afirmar os estudos de gênero é, sobretudo,

enfatizar a diferença entre o social e o biológico. Por conseguinte, a luz da perspectiva

dos estudos de gênero, os estudos sobre a violência contra a mulher adotam o uso da

expressão “violência de gênero” para se referirem a estudos tanto sobre mulheres quanto

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homens, além disso, o termo também aparece para ampliar a categoria violência de modo

mais geral.

Segundo Saffiotti (2001), a violência de gênero perpassa o exercício do papel

patriarcal, no qual os homens possuem o poder de produzir a conduta das categorias

sociais nomeadas, ganhando “alvará” ou, pelo menos, condescendência da sociedade para

punir os que se apresentam como desviantes. Assim, cabe frisar que a violência de gênero

concerne mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos. Nesse sentido, homens

afeminados e gays são considerados desviantes, logo, são alvos desta violência9.

Nesse contexto, compreende-se a violência de gênero como atos violentos

produzidos em contextos e espaços relacionais, a qual as ações desta está eminentemente

associada ao feminino, visto que a centralização deste tipo de violência está

historicamente sobre os corpos femininos. Ressalta-se que a violência de gênero,

proveniente da intimidade amorosa, nos mostra a existência do controle social sobre os

corpos, a sexualidade e as mentes femininas, “equivale dizer que a violência física e

sexual está sendo mantida como forma de controle, já que se ancora na violência

simbólica” (BANDEIRA, 2014a, p. 459).

No percurso de pensar a violência de gênero, principalmente, nas relações íntimas

a partir da violência simbólica como primeira personificação da violência sofrida pelos

sujeitos nas relações de força, trazemos para o diálogo Suely Almeida (2007). A autora

assinala que “dimensão simbólica é pontecializadora, por ser um problema circunscrito

a um espaço fechado, ambíguo, fortemente estruturado no campo axiológico e moral”

(ALMEIDA, 2007, p. 29). Assim sendo, a autora nos faz pensar que as categorias de

conhecimento do mundo têm uma predisposição maior no emocional do que no cognitivo,

fundando-se como um fenômeno social constante, invariável e articulado por facetas

psicológicas, morais e físicas.

Em consonância com Almeida (2007), Bandeira (2014a) afirma que:

Suas manifestações são maneiras de estabelecer uma relação de

submissão ou de poder, implicando sempre em situações de medo,

isolamento, dependência e intimidação para a mulher. É considerada

como uma ação que envolve o uso da força real ou simbólica, por parte

de alguém, com a finalidade de submeter o corpo e a mente à vontade e

liberdade de outrem. A maior parte das agressões sofridas pelas

mulheres é decorrente de conflitos interpessoais, o que acaba por

merecer pouca atenção e sua exposição causa embaraço. Estes traços

9Parece-nos que a aproximação performática de um indivíduo com o feminino é o suficiente para conferir

a este um corpo violentado pelas múltiplas formas de se fazer e exercer a violência.

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contribuem para a complexidade do fenômeno, uma vez que é inerente

às situações entre homens e mulheres, que mantêm vínculos afetivos e

profissionais. (BANDEIRA, 2014a, p.460).

Deste modo, conforme a autora, medo, isolamento, intimidação e dependência são

resultantes de manifestações e relações de submissão e/ou poder. Por este ângulo,

Bandeira (2014a) aponta as diversas interfaces onde as mulheres estão aprisionadas na

relação de poder, em uma dominação, ou seja, as múltiplas formas de violência

introjetadas na mulher, uma ação que abrange o uso da força física ou simbólica.

Portanto, ao longo do capítulos procuramos apresentar como o gênero e sua

construção marca os limites da violência. Nesse sentido, a Lei Maria da Penha formulada

para o enfrentamento da violência tem alcance e desestabiliza norma sociais construídas

e repetidas por anos. Perceber como as violências praticadas contra as mulheres interpela

em suas experiências faz com que questionemos às ações do Estado na formulação de

políticas públicas. Desse modo no capítulo seguinte procuraremos investigar o percurso

e a nomeação de uma política pública como nome e figura de mulher.

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CAPÍTULO II

2. MOVIMENTO FEMINISTA E O COMBATE À VIOLÊNCIA

As desigualdades que permeiam a vida das mulheres ao redor do mundo têm sido

elemento de profunda discussão, e, principalmente, de luta dos movimentos feministas.

No desafio de pensar as desigualdades de gênero, o movimento feminista entra em cena

questionando, interrogando e protestando contra “os sistemas culturais e políticos, de

maneira que novas formas de enfrentamento recolocam a compreensão do poder e a

forma de regulação entre o espaço público e privado” (BARBOSA, 2014, p.18).

Reivindicava-se e ainda reivindica-se o reconhecimento da mulher como sujeito de direito

e social, visto que as desigualdades de gênero colocam a toda prova a mulher ainda na

posição de uma luta constante. Sendo assim, as relações de poder apresentam um

marcador legítimo de/da luta do movimento feminista.

É importante sinalizar que não há um feminismo, mas múltiplos, dado que são

diversas as abordagens de se pensar mulher e reivindicar direitos, logo se tem várias

bandeiras e estratégias de luta. Outrossim, a luta, questionamentos e reivindicações

feministas é uma luta simbólica, pois “a luta política é uma luta cognitiva (prática e

teórica) pelo poder de impor a visão legítima do mundo social” (BOURDIEU apud

BARBOSA, 2014, p.46), em que o espaço social é alicerce das decisões antagônicas sobre

uma estrutura de distribuição assimétrica. Diante disto, o feminismo apresenta como

bandeira inicial os questionamentos em torno da garantia dos direitos das mulheres, ou

seja, o combate à discriminação de gênero na ideia de um desmonte social das

desigualdades e, consequentemente, garantia dos direitos das mulheres.

O movimento feminista brasileiro e internacional tem papel importante na

consolidação dos estudos sobre a violência contra a mulher (BANDEIRA, 2014b), visto

que este adquiriu integração no plano internacional a fim de enfrentar estrategicamente

os estados nacionais, tendo como finalidade atenuar a posição da mulher frente à

dominação masculina (BOURDIEU, 2005). De acordo com Anna Christina Barbosa

(2014), o movimento feminista apresentou-se como um movimento transnacional, com

competência de projeção sobre organizações, particularmente, a “ONU e a OEA, do que

resultou a promulgação da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), e que o coloca em uma

esfera privilegiada de interlocução com os governos e produz direcionamentos no plano

das políticas públicas” (BARBOSA, 2014, p. 27). Nesse contexto, Bandeira (2014)

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sinaliza que o movimento feminista ao inserir a violência de gênero compõe um campo

linguístico e narrativo que colaboraram para instituir e intervir no fenômeno das esferas

da segurança pública, da saúde e judiciário.

O desempenho do movimento feminista e das ONGs possibilitaram condições

históricas, políticas e culturais indispensáveis ao reconhecimento da legitimidade e da

seriedade da questão, aferindo novos caminhos às políticas públicas. Ademais, os

movimentos feministas tiveram desempenho primordial para a implementação de

políticas públicas direcionadas para as mulheres, sobretudo, no que diz respeito no

combate à violência de gênero, visto que a sua atuação deu visibilidade a violência

cometida contra o feminino, principalmente, se refletirmos a atuação estatal a partir das

lutas do movimento feminista. A relação entre o Estado brasileiro e os movimentos

feministas nos coloca temporariamente, digo, com espaço de dez anos para a

construção/implementação de políticas públicas no enfrentamento da violência contra a

mulher com dimensão singular. Em 1985 tem origem as Delegacias Especiais de

Atendimento as Mulheres (DEAMs), em 1995 os Juizados Especiais Criminais, em 2006

foi outorgada a Lei 11.340/06 e em 2015 a Lei do Feminicídio. Essas políticas indicam

que a discussão e o discurso feminista sobre violência contra mulher, acima de tudo, a

violência doméstica, ganha visibilidade no processo de formulação e implementação de

políticas públicas voltadas para as mulheres, haja visto que a atuação do movimento

feminista evidencia a violência cometida contra o feminino.

É importante destacar que o movimento feminista no Brasil, bem como outros

movimentos sociais das décadas de 1970 e 1980, foram reconhecidos pela maneira de se

vincular, por meio de redes, tanto nos espaços micro e macros das relações, contribuindo

na construção do mesmo no que concerne à identificação, articulação e diálogo no

movimento. É nesse período que os estudos feministas são produzidos nas universidades

promovendo um diálogo da sociedade civil e movimento feminista com a academia.

Primeiramente, os estudos sobre a mulher no âmbito da violência é apresentado como

violência contra a mulher e posteriormente violência de gênero. Pensar as questões de

violência no que concerne o feminino possibilita-nos compreender as relações de poder

que produz e reproduz socialmente desigualdades e campos de disputa, sobretudo, que

destina o lugar da mulher. Cabe ressaltar, quando falamos de violência que o lugar no

qual a mulher ocupa majoritariamente é o do sujeito violentado. Diante do exposto,

compreendemos que o feminismo colaborou expressivamente na constituição de uma

agenda de gênero, tanto global quanto local, ao revelar as múltiplas violências aferidas ao

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feminino. Para tanto, procuraremos apresentar nesse capítulo a entrada do gênero na

agenda política e seus desdobramentos.

2.1.AGENDA DE GÊNERO

Desde a década de 1960, os movimentos feministas internacionais visibilizam as

diversas formas de discriminação entre os gêneros e a violência contra a mulher,

constituindo uma agenda política no enfrentamento de tais violências. Segundo Barsted

(2016), a agenda internacional tinha como pressupostos a igualdade e equidade de gênero,

assim como o respeito à dignidade humana. Além disso, as feministas demandavam

políticas eficazes para suplantar as práticas de violência contra as mulheres e, que o

Estado fosse efetivo no processo de (des) construção dos costumes introjetados e

generificados do ser homem e ser mulher, acima de tudo, nas práticas que reforçavam o

homem como sujeito da violência e a mulher da agredida.

No percurso da construção de uma agenda política que teve a intenção de

reconhecer as mulheres como sujeitos de direitos e com necessidades específicas,

determinadas violações de direitos passam a ser questionadas. Sob essa ótica, em 1967, a

Organização das Nações Unidas (ONU), aprova a Declaração sobre a Eliminação da

Discriminação Contra as Mulheres e em 1972 anuncia o ano de 1975 como o ano

Internacional das Mulheres. Ainda em 1975, a ONU organizou a I Conferência Mundial

das Mulheres, na cidade do México. Em 1979, a ONU aprovou a Convenção para

Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW)

confirmada por 186 Estados (BARSTED, 2016, PIOVESAN e PIMENTEL, 2011).

De acordo com Piovesan e Pimentel (2011) a CEDAW realizada em 1979:

No plano dos direitos humanos, contudo, esta foi a Convenção que mais

recebeu reservas por parte dos Estados signatários, especialmente no

que tange à igualdade entre homens e mulheres na família. Tais reservas

foram justificadas com base em argumentos de ordem religiosa, cultural

ou mesmo legal, havendo países (como Bangladesh e Egito) que

acusaram o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a

Mulher de praticar “imperialismo cultural e intolerância religiosa”, ao

impor-lhes a visão de igualdade entre homens e mulheres, inclusive na

família (HENKIN apud PIOVESAN, PIMENTEL, 2011, p. 106).

Piovesan e Pimentel (2011) ao citar Henkin, fazem isto para assinalar o quanto a

implementação dos direitos humanos das mulheres está dependente à dicotomia entre os

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espaços público e privado. Concordamos com as autoras ao afirmarem que os discursos

de ordem religiosa e cultural corroboram para uma acepção dicotômica nos papéis de

gênero, ou seja, no binômio homem (público) - mulher (privado). Dessa forma, a

exigência feminista por demandas de (des)construção do processo dos gêneros é válida

para uma vida sem violência e de direitos iguais, assim como, para desmistificar a ideia

de uma espaço privado/doméstico destinado ao feminino e público ao masculino. No que

tange à violência contra a mulher, as autoras elucidam que a Convenção para Eliminação

de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres não fez referência ao tema , no

entanto o Comitê da ONU sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra

as Mulheres (Comitê CEDAW) compreende a violência doméstica a partir da

Recomendação Geral n.19, a qual encontra-se em todas as sociedades, na esfera das

“relações familiares, mulheres de todas as idades são vítimas de violência de todas as

formas, incluindo o espancamento, o estupro e outras formas de violência psíquica e

outras” (PIOVESAN, PIMENTEL. 2011, p.106).

É a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, adotada em

1993, assim como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a

Violência contra a Mulher, mais conhecida como Convenção de Belém do Pará, adotada

pela Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1994, que caracteriza e identifica

a violência contra a mulher, no espaço público e privado, como violação aos direitos

humanos. Além disso, define no artigo 1° “a violência contra a mulher como qualquer

ação ou conduta baseada no gênero, que cause dano ou sofrimento físico, sexual e

psicológico, tanto na esfera pública ou privada” (CIDH,1994).Pode-se aferir, a partir

dessa perspectiva, que a violência baseada no gênero conforme aponta o artigo 1° da

Convenção de Belém do Pará, e adotada pela Lei Maria da Penha no artigo 5° elucida que

a violência contra a mulher, principalmente, a violência doméstica são reflexos das

relações de poder assimétricas entre homens e mulheres (PIOVESAN, PIMENTEL,

2011). As Convenções citadas delimitam violência e discriminação contra a mulher, além

de assumir direitos e comprometer os Estados membros a seguir um conjunto de medidas

que tem por finalidade eliminar as violações através de políticas públicas, bem como

mecanismos que visibilizem os dados das violências a fim de avaliar os avanços ou não

no enfrentamento da violência contra o feminino.

Observando a perspectiva elaborada pela Convenção de Belém do Pará a partir

dos artigos 7° e 8,º eles indicam garantia de pesquisas e recopilação de dados estatísticos

sobre causas, consequências e frequência da violência contra as mulheres em prol de

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avaliar a eficiência das medidas tomadas para prevenir, punir e erradicar a violência contra

a mulher, bem como formular e implementar as mudanças necessárias (art. 8°, h);

existência de legislação para prevenir, punir e erradicar a violência contra as mulheres

(art. 7º, c); assim como, existência de serviços especializados apropriados para o

atendimento necessário à mulher objeto de violência (art. 8º, d).

No Brasil tínhamos em vigor apenas Delegacias Especializadas em Atendimento

à Mulher, no entanto, em poucos estados. Destarte, as Conferências, Assembleias e

Declarações são ferramentas basilares na efetivação do enfrentamento à violência de

gênero contra as mulheres, estas se deram sob a influência do movimento feminista em

colaboração com a Organização das Nações Unidas contribuindo pra um advocay

feminista (BARSTED, 2016) que mobilizou-se em várias direções, no desenvolvimento

e implementação de políticas públicas e leis que elucidaram e elucidam os direitos das

mulheres, primordialmente, para uma vida sem violência.

A construção da agenda de gênero no Brasil segue os princípios norteadores das

Conferências, Assembleias e Declarações internacionais. Isto é, apresentou-se de forma

ampla e abarcava diversas questões: trabalho urbano e rural, da renda, participação

política e social, sexualidade, saúde, aborto, direito a uma vida sem violência,

discriminação racial, entre outros (BARSTED, 2016). Nessas demandas, a luta legislativa

por igualdade, nos chama atenção, tendo em vista que houve uma preocupação de

rompimento com a “lógica patriarcal”, pois o movimento feminista incluiu a relação

familiar como elemento fundamental na consolidação de igualdade, ou seja, a igualdade

pensada em todas as esferas, pública e privada. Observando essa perspectiva, entendemos

que a organização dos movimentos feministas e de mulheres constrói um campo de poder

que influenciou nos direitos alcançados, assim como na possibilidade de novos direitos,

podemos exemplificar, a Lei do Feminicídio, como a última conquista do movimento

feminista no que diz respeito à violência de gênero contra a mulher no Brasil.

A advocacy feminista brasileira assinala a entrada da mulher na agenda política,

reconhece a mulher como sujeito de direito. Esse percurso de visibilização da mulher

como sujeito coletivo, sobretudo, por uma vida sem violência e elucidado a partir do final

da década de 70 em suas múltiplas dimensões permitiu reconhecimento e uma vida

“menos” precária. Nesse sentido, as políticas públicas de gênero e leis são entendidas

neste trabalho dissertativo como mecanismos resultantes de uma advocacy feminista que

por meio de denúncias e demandas do movimento tem como resultado, por exemplo, a

criação da Lei Maria da Penha. Dessa maneira, as questões de gênero saírem da esfera

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doméstica para a pública ilustra o reconhecimento da precariedade da condição da mulher

enquanto sujeito que estava a margem, como também desmonta as práticas culturais

inseridas no aspecto histórico das sociedades incluídas na dinâmica social que colocavam

as mulheres sob dominação masculina, construindo homens que creem ter o poder sobre

a mulher, inclusive, de vida e morte.

2.2.AGENDA DE GÊNERO NO BRASIL

O movimento feminista brasileiro é responsável por visibilizar a problemática da

violência contra as mulheres. Rozeli Porto (2014) observa que é na década de 1970 que a

discussão acerca da violência doméstica e conjugal torna-se visível, principalmente, por

ser reconhecida como uma violação dos Direitos Humanos.

Denunciados os assassinatos cometidos contra as mulheres, as

feministas começaram a reivindicar uma atenção jurídica-policial mais

eletiva para tais crimes, criticando veementemente as teses da legitima

defesa da honra e da violenta emoção. (PORTO, 2014, p.24)

A autora chama atenção para uma vida com violência legitimada pelo Estado, e

mais uma vez, aponta a participação do movimento feminista para elaboração de um

“projeto” político, jurídico-policial, acima de tudo social, para uma vida vivível de

reconhecimento e direitos. Destacamos que é na década de 70 que há uma construção das

mulheres como sujeito coletivo de luta, uma vez que “nascem” novos atores políticos no

domínio da sociedade civil, os sindicatos e os movimentos sociais apresentam

questionamentos que até então não estavam nas agendas políticas. É nesta década também

que os estudos de gênero se solidificam no Brasil, em 1975, como movimento social e

político centrando a sua discussão em temas como poder, igualdade e democracia

(BARSTED, 1994, PITANGUY, 2002 e FARAH, 2004).

A década de 70 foi importante, uma vez que ocorreram transformações

importantes no Brasil no que se refere à relação do Estado e sociedade, o impacto da

democratização e a crise fiscal juntamente com a mudança do regime ditatorial foi

fundamental para a inserção de novos sujeitos políticos. Farah (2004) observa que,

primeiramente, houve uma agenda de reforma que enfatizava a democratização dos

processos decisórios e dos resultados das políticas públicas e reivindicava o aumento dos

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sujeitos envolvidos nas decisões, assim como, a inclusão de novos segmentos da

população entre os favorecidos das políticas públicas. Para a autora, nesse primeiro

momento, as mulheres e a problemática de gênero já estavam em pauta, bem como a

história desses movimentos e também a construção das mulheres como sujeito coletivo

de luta, como sujeito de direito e reconhecimento (FARAH, 2004).

A constituição das mulheres como sujeito político deu-se inicialmente

por meio de sua mobilização em torno da democratização do regime e

de questões que atingiam os trabalhadores urbanos pobres em seu

conjunto, tais como baixos salários, elevado custo de vida e questões

relativas à inexistência de infra-estrutura urbana e ao acesso precário a

serviços coletivos, manifestação ‘perversa’ no espaço urbano do

modelo de desenvolvimento capitalista adotado no país, caracterizado

pela articulação entre ‘crescimento e pobreza’. Os movimentos sociais

urbanos organizavam-se em torno de questões como falta de água e de

saneamento nas periferias urbanas e de reivindicações por

equipamentos coletivos como escolas, creches e postos de saúde. Ao

mesmo tempo que denunciavam desigualdades de classe, os

movimentos de mulheres – ou as mulheres nos movimentos –passaram

também a levantar temas específicos à condição da mulher como direito

a creche, saúde da mulher, sexualidade e contracepção e violência

contra a mulher (FARAH, 2004.p.50/51).

Para Farah (2004), a mulher passou a ser vista como sujeito político a partir de

sua mobilização em torno da democratização do regime e de questões que atingiam os

trabalhadores urbanos. É necessário destacar que o feminismo, diferentemente dos

‘movimentos sociais com participação de mulheres’, apresentava como finalidade

principal a mudança da situação da mulher na sociedade, de forma a superar a

desigualdade presente nas relações entre homens e mulheres. Contudo, o movimento

feminista, bem como, o movimento de mulheres corroboraram para a inserção da questão

de gênero na agenda pública como uma das desigualdades a ser superada pelo regime

democrático. A discriminação de temas diretamente vinculados às mulheres, segundo a

autora, “envolveu, por sua vez, tanto uma crítica à ação do Estado quanto – à medida

que a democratização avançava – a formulação de propostas de políticas públicas que

contemplassem a questão de gênero” (FARAH, 2004, p.51).

Outrossim, dialogamos com Pitanguy (2002) para reafirmar a importância do

movimento feminista, principalmente o da década de 70 , uma vez que este discutia as

bases culturais nos quais se acentuava a desvalorização do feminino, propagada em leis,

em práticas, em linguagens simbólicas e chamava atenção para o fato de que, ao decorrer

da história a hierarquia e a desigualdade atravessaram as relações de gênero,

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estabelecendo um elemento essencial no arranjo do poder e nos sistemas de valores que

balizavam os conceitos de masculino e de feminino em nossa sociedade. Deste modo, a

autora explica que o movimento feminista e o movimento de mulheres da década de 70

buscaram diálogo com o legislativo, propondo mudança no Código Civil em 1976, assim

como apresentação em 1979 de propostas e demandas aos partidos políticos. Conforme a

autora, o movimento feminista da década de 70 tem como marcador a capacidade de

interlocução, o que diferenciava dos demais países que estavam neste período mais

voltados para relações interpessoais, enquanto o movimento brasileiro era plural. É na

década de 80 que o movimento feminista brasileiro centraliza seu discurso em torno da

violência doméstica, surgindo nesta também às primeiras políticas de gênero.

Na década de 80 foram implementadas as primeiras políticas de gênero, Farah

(2004) afirma que políticas públicas com recorte de gênero “reconhecem a diferença de

gênero e, com base nesse reconhecimento, implementam ações diferenciadas para as

mulheres” (FARAH, 2004, p. 51). É no início da década de 1980 com a redemocratização

do Brasil que de fato os novos atores sociais, até então excluídos das agendas (mulheres,

negros e índios) passam a ser reconhecidos como sujeitos de direitos. Mais uma vez

chamamos atenção para os tratados internacionais, visto que estes influenciaram

diretamente na constituição de garantias e direitos das mulheres, principalmente, no

combate à discriminação das desigualdades entre os gêneros.

As agências internacionais, sobretudo do Sistema das Nações Unidas,

colaboraram muito para dar visibilidade e sistematizar as demandas do

movimento de mulheres. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as

Formas de Discriminação contra as Mulheres, de 1979, e o documento

elaborado na III Conferência Mundial da Mulher, em Nairóbi, em 1985,

Estratégias para o Ano 2000, comprometeram os países signatários com

a implementação de políticas públicas voltadas para a eliminação das

desigualdades entre os sexos e orientaram as ações do movimento de

mulheres para esse fim (BASRSTED, 1994, p.42).

Pode-se dizer que há nestas Convenções uma certa “unidade” nas diversidades,

uma vez que busca-se alcançar a igualdade de gênero e fortalecer a autonomia das

mulheres. Embora, no Brasil já se tenha pautado em 1975 a discussão e proposta de

agenda de gênero, é apenas em 1983 que veremos uma política direcionada para as

mulheres com a criação do primeiro Conselho Estadual da Condição Feminina em São

Paulo e a instituição do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) e,

posteriormente, em 1985 à primeira Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, ainda em

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São Paulo. A Constituição de 1988 também reflete a mobilização das mulheres e do

movimento feminista, dado que estas estruturam propostas para a nova Constituição,

apresentando ao Congresso Constituinte sob o título Carta das Mulheres Brasileiras10

propostas para a saúde, discriminação, violência, cultura, educação, família e propriedade

da terra. Os movimentos feministas e de mulheres direcionavam suas inquietações e

reivindicações a distintos níveis de governo, a violência contra a mulher era direcionado

aos níveis estadual e municipal, enquanto a saúde ao governo federal. (FARAH, 2004)

No final da década de 80, segundo Farah (2004), há uma reformulação da agenda

de reforma do Estado sob o conflito da crise do Estado e de sua capacidade de

investimento. Esta irá integrar a agenda a busca pela eficiência, efetividade e eficácia da

ação do Estado.

A agenda que emerge desse processo integra à agenda democrática dos

anos 80 novos ingredientes, voltados à busca da eficiência, da eficácia

e da efetividade da ação estatal. A agenda de reforma nesse novo

momento se estrutura em torno dos seguintes eixos: a) descentralização,

vista como uma estratégia de democratização, mas também como forma

de garantir o uso mais eficiente de recursos públicos; b)

estabelecimento de prioridades de ação (focalização ou seletividade),

devido às urgentes demandas associadas à crise e ao processo de ajuste;

c) novas formas de articulação entre Estado e sociedade civil, incluindo

a democratização dos processos decisórios mas também a participação

de organizações da sociedade civil e do setor privado na provisão de

serviços públicos; e d) novas formas de gestão das políticas públicas e

instituições governamentais, de forma a garantir maior eficiência e

efetividade à ação estatal. (FARAH, 2004, p.52)

Como aponta a autora há tensão entre o vetor eficiência e o vetor democratização

dos processos decisórios e do acesso aos serviços públicos. Nesse sentido, a agenda de

gênero construída nos anos 70 unificava uma demanda mais abrangente em torno da

democratização e direitos humanos, enquanto a agenda dos anos 80 era mais complexa e

perde o valor de unidade. No processo de redemocratização o movimento de mulheres

ampliou-se para várias direções buscando influenciar os organismos governamentais na

formulação de políticas públicas.

Pode-se perceber que o diálogo das feministas com o Estado

redemocratizado e com os setores organizados da sociedade, sensíveis

a questão democrática, tornou-se possível a partir da superação das

10 Carta apresentada pelas mulheres brasileiras aos Constituintes de 1987 a partir da campanha

“Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher”.

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antigas hierarquias temáticas, que privilegiavam as questões do

trabalho feminino em detrimento da discussão sobre sexualidade, e da

consolidação de um consenso em torno de questões básicas

(BARSTED, 1994, p. 43).

A articulação do movimento feminista e de mulheres passou a associar como um

dos seus elementos as organizações não governamentais com as ações governamentais

para a formulação de políticas públicas com recorte de gênero enfatizando a “inclusão

das mulheres como beneficiárias das políticas, reivindica-se a sua inclusão como ‘atores’

que participam da formulação, da implementação e do controle das políticas” (FARAH,

2004, p, 54).

Como vimos, a agenda política que operava com o conceito de gênero surge no

Brasil a partir da pressão de organismos e organizações internacionais, sobretudo, a

Organização das Nações Unidas que, em 1975, começa a da ênfase às questões

relacionadas a gênero, mas ganha força na década de 80 com a redemocratização no país.

Outra grande influência na constituição da agenda de gênero no Brasil foi a Conferência

Mundial sobre a Mulher, mais conhecida como Conferência de Beijing em 1995, onde

articulou-se as mudanças mais significativas na relação Estado-Sociedade, logo vemos

nesta agenda diretrizes como: violência, saúde, meninas e adolescentes, geração de

emprego e renda, educação, trabalho, infraestrutura urbana e educação, questão agrária,

incorporação da perspectiva de gênero por toda política pública e acesso ao poder político

e empowerment, vale ressaltar, que a Carta das Mulheres reivindicava algumas dessas

demandas.

Deste modo, é na década de 80 que surgem no Brasil as primeiras políticas

públicas de gênero. O Estado brasileiro cria em 1983 o Conselho Estadual da Condição

Feminina e em 1985 as primeiras Delegacias Especiais de Atendimento às Mulheres,

estas aparecem como as primeiras políticas públicas de gênero, principalmente, no que

diz respeito ao enfrentamento da violência contra as mulheres. Vale ressaltar, que após a

criação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher em 1985, a outra política

pública de gênero que provocou maior impacto social foi a Lei 11.340/06.

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2.3. DAS DEAMS À LEI MARIA DA PENHA: POR UMA VIDA SEM

VIOLÊNCIA

A partir da intensificação em torno da discussão e atuação política e social acerca

das categorias gênero e violência, o movimento feminista e acadêmico consolidou a

violência contra a mulher enquanto categoria política e social indispensável. Tais

categorias demonstram as possibilidades de violências que o feminino está

“condicionado” sócio historicamente: assédio sexual, violência conjugal, violência

intrafamiliar, violência sexual, tráfico de mulheres, prostituição infantil, entre outras.

Pode-se aferir que é sob essa ótica que surge a Delegacia da Mulher em 1985.

A criação das Delegacias Especializadas em Atendimento à Mulher foi motivada

pelo tratamento que era dado às mulheres em situação de violência em delegacias não

especializadas para mulheres. Em grande parte as delegacias tinham um contingente

policial masculino que frequentemente desacreditava da situação de violência da mulher,

para além disso, depreciavam as mulheres que denunciavam violência sexual e violência

doméstica. Isto é, agentes que colocam os valores morais e a “norma” acima dos direitos

das mulheres. É na tentativa de romper com tal tratamento dado às mulheres que as

DEAM’s constituem-se como primeiro instrumento que dá início as políticas públicas de

combate à violência de gênero contra a mulher, isto é, como mecanismo de proteção à

mulher em situação de violência e a acepção da fala feminina, sem preconceitos. A

criação das delegacias para as mulheres nos faz refletir essa como primeira instância de

criminalização da violência contra o feminino, requerendo e responsabilizando o Estado

a implementação de políticas públicas que enfrente tal violência, além de balizar a luta

feminista (SANTOS, 2010).

Contudo, Lia Zanotta Machado (2002) afirma que as palavras de ordem no que

tange à violência se dão em 1979 em torno dos maridos e companheiros que matam suas

esposas e/ou companheiras “lutava-se pelo direito à sobrevivência e denunciava-se a

impregnação dos valores culturais misóginos e discriminatórios nas leis do código penal

e civil, e nas interpretações da jurisprudência” (MACHADO, 2002, p. 03).

Fazia-se a denúncia do controle masculino sobre os corpos femininos,

mas foi a denúncia do caso extremado do poder de vida e de morte dos

homens sobre suas mulheres, a tônica capaz de repercutir na opinião

pública e nas elites políticas da época. A repercussão dos homicídios

conjugais de homens contra suas companheiras deu origem a

mobilizações feministas com a criação de centros e da Comissão de

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Violência contra a Mulher. Alguns grupos feministas passam a

constituir grupos de SOS, oferecendo serviços dirigidos ao atendimento

das mulheres vítimas de violência. (MACHADO, 2002, p. 3)

A autora pondera que a dominação e controle masculino sob o feminino foi a

questão que reverberou na sociedade, em outras palavras, foi essa repercussão que

mobilizou o movimento feminista. Vale destacar que, no Brasil antes da República, o

adultério feminino servia como pressuposto para o assassinato de mulheres. Mulheres que

tinham relação sexual fora do casamento eram mortas pelos companheiros, que tinham o

livro V das Ordenações Filipinas como dispositivo que alicerçava tal crime, permitindo

o marido matar a mulher e seu amante.

E ainda:

O Código Criminal de 1830 atenuava o homicídio praticado pelo

marido quando houvesse adultério. Observe-se que, se o marido

mantivesse relação constante com outra mulher, esta situação constituía

concubinato e não adultério. Posteriormente, o Código Civil (1916)

alterou estas disposições considerando o adultério de ambos os

cônjuges razão para desquite (BLAY, 2003, p. 87).

Eva Blay (2003) chama atenção para as leis e códigos que legitimaram a violência

de gênero contra a mulher acentuando a desigualdade nas relações de gênero. Salientamos

que as mudanças das leis e Constituição Federal não implicam a forma e o motivo de

como se mata as esposas ou companheiras. As reivindicações das mulheres em torno desta

temática iniciam-se nas décadas de 20 e 30, mas é na década de 70 que ganha força com

o slogan “Quem ama não mata”, tendo como caso emblemático, o caso Ângela Diniz. O

caso Diniz teve grande apelo midiático nacional e internacional, evidenciando o sistema

jurídico brasileiro que absolvia homens sob o discurso da legitima defesa da honra.

Doca Street matou Ângela Diniz e confessou o crime alguns dias

depois. Convivera com ela apenas três meses. Argumentava a

Promotoria (auxiliada pelo advogado Evaristo de Morais, contratado

pela família de Angela), que ela não suportava mais sustentar um

companheiro ciumento, agressivo e violento. Depois dos poucos meses

de conturbada convivência, durante os quais houve várias tentativas de

rompimento, Ângela mais uma vez mandou Doca sair de sua casa em

Cabo Frio (Estado do Rio de Janeiro). Este fingiu se retirar da

residência, arrumou as malas, colocou-as em seu automóvel, mas,

minutos depois retornou munido de uma Bereta. Perseguiu-a no

banheiro e a matou com vários tiros, especialmente no rosto e no crânio.

(BLAY, 2003, p.89/90)

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A morte de Ângela Diniz e a absolvição de Doca Street em primeira instância é a

personificação dos corpos que importam (BUTLER, 2002) para o Estado e, mais ainda,

evidencia a legitimação do masculino ao direito da vida e da morte das mulheres. Nesse

sentido, é o movimento feminista que torna visível este corpo que é agredido, violentado,

estuprado e violado, isto é, através do movimento que se desmonta a legitimação da morte

das mulheres por seus maridos e companheiros. Há um repúdio e denúncia pública ao

discurso passional, ou seja, que amor não justificava os crimes cometidos contra a mulher.

Foi a organização de mulheres em torno da publicização do caso Doca Street que o “fez”

ser condenado em seu segundo julgamento, ou seja, as manifestações do movimento

feminista dificultou o uso do argumento de legítima defesa da honra, bem como de um

crime passional como argumento de absolvição. Como aponta Machado (2002) ainda que

as DEAM’s tenham como intenção responder às formas de violências de gênero contra a

mulher, foi o tornar público a morte de mulheres pelos seus companheiros e maridos, bem

como a absolvição destes que impulsionou a criação das DEAMs. E ainda a criação de

grupos feministas que ofereciam serviços para as mulheres em situação de violências, por

exemplo, o SOS Mulheres.

Ademais, é importante destacar que na década de 90 a eficácia do funcionamento

das DEAM’s começa a ser questionada com o surgimento da Lei 9.099/95 que institui os

Juizados Especiais Criminais (JECrim). Segundo Santos (2010), um dos motivos para

criação do JECrim foi substituir as penas repressivas por penas alternativas. Frisamos que

esta não é uma Lei concebida para lidar com a violência doméstica, no entanto, a mesma

foi acionada para responder por tal violência, haja visto que considerava a violência

doméstica como violência de menor grau, tal como, brigas de vizinhos. Além disto, de

acordo com Santos (2010) a Lei 9.099/95 afastou da delegacia o poder de investigação e

diálogo nos conflitos, ressignificando a criminalização da violência doméstica.

A Lei 9.099/95 recebeu várias críticas por parte de militantes

feministas, pesquisadores e policiais. Vários estudos feministas

examinam os JECrim como um espaço de ressignificação das penas e

dos crimes, onde ocorre uma descriminalização da violência contra

mulheres, com efeitos de “trivialização” (Campos, 2001),

“reprivatização” (Debert, 2006) e “invisibilização” do conflito e

desigualdade de poder em que se baseia a violência (Oliveira, 2008).

Melo (2000) e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (2001)

apontam que, no JECrim, os juízes são, em geral, do sexo masculino e

não recebem treinamento especializado para lidar com a problemática

específica da violência contra mulheres. (SANTOS, 2010, p. 160)

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A autora observa a partir de Campos, Debert , Oliveira e do Conselho Nacional

dos Direitos da Mulher que o JECrim deu um novo significado à violência de gênero

contra a mulher, resultado disto é uma inversão nas penas, elas deixam de ser repressivas

para serem alternativas, cesta básica e serviço comunitário são entendidas por esta Lei

como um suficiente mecanismo para prevenção, proteção e, sobretudo, punição aos

autores da violência. Além disso, retira o caráter de crime público, no qual qualquer

pessoa poderia denunciar e transformar em uma representação apenas por parte da mulher

agredida. Isto quer dizer, que a única forma de cessar a violência se dava a partir da

denúncia da mulher em situação de violência contra o autor da mesma, bem como previa

a conciliação entre a mulher agredida e o autor da agressão como forma de finalizar o

procedimento policial. Diante do exposto, podemos apontar que o JECrim mostrou-se

como um mecanismo de “rápida” solução, porém, sem caráter punitivo da violência ao

feminino. E, ainda, que não havia uma perspectiva de gênero e institucionalização da

capacitação dos agentes para atender esta demanda como nos explica Santos (2010).

Destaco que assim como o JECrim, a DEAMs partilhava da ausência de uma perspectiva

de gênero, visto que mesmo com policias mulheres não havia uma vínculo por parte destas

à mulher em situação de violência. Sendo assim, o JECrim e as DEAMs sem perspectiva

de gênero e capacitação de seus/suas agentes encorajavam a desistência das mulheres em

denunciar e processar os autores da violência.

Compreendemos que o JECrim configurou-se como um dispositivo que

corroborou para “impunidade” e legitimação da violência do masculino contra o

feminino, haja visto que trazia elementos que desmotivava a denúncia por parte das

mulheres, assim como perpetrava os costumes e práticas que concebia tal violência. Deste

modo, vamos em direção a perspectiva de Santos (2010) ao afirmar que este dispositivo

é a (re)tradução da criminalização e ressignificação da violência. Nessa direção,

entendemos que a Lei Maria da Penha desmonta a perspectiva elaborada pela Lei

9.099/95 e se afirma como dispositivo que elucida a violência de gênero contra as

mulheres, sobretudo, a violência doméstica e familiar como violação dos direitos

humanos.

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2.4 . POR QUE MARIA?

Quando nos referimos à violência doméstica, o primeiro caso que nos vem à mente

é o da farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, talvez isto aconteça pelo

fato da Lei da violência doméstica levar o nome da mesma. No mais, isso é válido como

reparação simbólica da negligência do Estado quanto ao caso da cearense. Entretanto, na

década de 1980 outro caso chamou atenção, o caso Márcia Leopoldi, estudante de

arquitetura, 24 anos, morta pelo ex-namorado, José Antônio Pereira Brandão. Esses dois

casos indicam a violação dos direitos das mulheres por parte do Estado quanto à punição

de seus algozes. Um silêncio que pune com violências, e no caso de Márcia a morte. Em

outras palavras, uma invisibilidade que mata. Silêncio que é rompido apenas pela voz das

mulheres a questionarem e reivindicarem uma vida sem violência. Deste modo,

indagamos: Quais violências poderiam e podem ser evitáveis se o Estado se

responsabilizar para uma vida de garantias para as mulheres? A vida das mulheres

importam? Se sim, quais mulheres? A partir destes questionamentos, entendemos que a

precarização da vida das mulheres constrói uma vida de violências, podendo configurar-

se como o caminho para morte.

É importante destacar que ao nos referirmos à morte falamos desta também como

morte simbólica. Maria da Penha foi morta pelo Estado por 20 anos, a negligência deste

é o seu atestado de óbito, bem como a família da Márcia Leopoldi, que além da vida de

sua filha, irmã, prima, tiraram destes o direito de ver o assassino pagando pelo seu crime11.

Mas afinal, por que Maria? A lei foi nomeada, Lei Maria da Penha, em

homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes. Mulher que teve seu corpo/alma

(MACHADO, GROSSI, 2015) violado pelo seu então marido, Marcos Antônio Heredia

Viveiros, bem como pelo Estado brasileiro. Em 1983 Maria foi vítima de duas tentativas

de assassinato, a primeira tentativa- simulação de um assalto, recebeu tiro nas costas

enquanto dormia, já a segunda tentativa o marido tentou eletrocutá-la no banho, em

decorrência das tentativas de homicídio, Maria ficou paraplégica em consequência do

tiro, além de outras implicações. A história de Maria da Penha é a história de várias

11Após quase três meses, a estudante decidiu terminar o namoro porque ele era muito ciumento. Então, ele

a procurou, a torturou e a matou asfixiada. Em 1989, José Antônio foi julgado pelo Tribunal de Santos e

condenado a cinco anos de prisão. A família da moça recorreu e, em novo julgamento em 1992, o agressor

foi condenado a 15 anos. No entanto, José estava foragido e só foi preso 23 anos após o assassinato de

Márcia. Ver:http://gshow.globo.com/programas/mais-voce/v2011/MaisVoce/0,,MUL479435-

10345,00.html

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Marias, Joanas, Karlas, Márcias, ou seja, de uma imensidão de mulheres que vivenciaram

situação de violência doméstica e familiar e, foram deixadas à margem. O “calvário” da

mulher com nome de Lei iniciou-se em 1983 e teve desfecho final 20 anos depois, em

2003.

Embora a investigação do caso tenha iniciado ainda em 1983, a denúncia só foi

entregue ao Ministério Público Estadual em 1984. Tendo um atraso de oito anos para o

primeiro julgamento, em 1991, quando Marco Antônio Viveiros (o agressor) vai a júri e

é condenado a 15 anos de prisão, no entanto, o advogado de Viveiros conseguiu anular o

julgamento que viera acontecer cinco anos após a tentativa do primeiro julgamento, em

1996, quando o Marco Antônio Viveiros foi condenado a dez anos de prisão, mas acabou

cumprindo apenas dois. Em outubro de 2002, carecendo apenas seis meses para

prescrever os crimes cometidos, em 2001 há a condenação do Brasil pela CIDH. Em 2004,

propõem-se a Lei sobre violência doméstica com sua consolidação em 2006, no governo

do presidente Luís Inácio Lula da Silva. É no caminho de construção de uma específica

Lei para violência doméstica e familiar que Marco Viveiros é preso em 2002 na cidade

de Natal, Rio Grande do Norte, entretanto cumpriu apenas 1/3 da pena que foi sugerida.

A luta de Maria da Penha para a condenação de seu ex-marido, nos faz entender

que a violência contra a mulher configura-se como uma violação dos direitos humanos,

violência que tem multiplicidades, bem como múltiplos espaços. As mulheres são

violentadas/agredidas no espaço doméstico e público, a dimensão da violência ao

feminino mostra-se por meio do sexismo, machismo, assim como desigualdade entre os

gêneros e, ainda nas estatísticas. A cultura do machismo enraizada no Brasil aponta que

a cada 11 minutos uma mulher é estuprada, a cada 4 minutos agredida e a cada 1h30

minutos é morta12. Nesse sentido, o silêncio e a invisibilidade da violência baseada no

gênero viola a dignidade das Marias por uma vida minimamente segura, leia-se, vivível

(BUTLER, 2015). Sintetizamos a violência de gênero contra a mulher com o trecho da

poeta Mayara Vaz, no Slam Resistência de 201613, “(...)Todas nós agredidas,

humilhadas, subjugadas, arrastadas, penetradas, mutiladas, empaladas, diminuídas.

Mortas! Trago esse pequeno trecho a fim de representar as multiplicidades das violências

marcada no feminino.

Como já mencionado ao longo do texto, a violência de gênero foi legitimada por

muito tempo, a Constituição Federal de 1988 apesar de assegurar “igualdade entre os

12Ver:https://emais.estadao.com.br/blogs/nana-soares/em-numeros-a-violencia-contra-a-mulher-brasileira/ 13Ver: https://www.youtube.com/watch?v=zNKuGpF-dD4

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gêneros”, não garantiu uma vida sem violência para as mulheres. Nesse sentido, a

violência marcada no feminino tem conotação política, isto quer dizer que não se

configura somente como uma violência pessoal ou cultural. Como destaca Leila Barsted

(2016), ao dialogar com Charlott Bunch, indica também “conotação política na medida

em que é o resultado das relações de poder, de dominação e de privilégio estabelecidas

na sociedade em detrimento das mulheres” (BARSTED, 2016, p. 17). Em outras

palavras, a violência contra as mulheres é um mecanismo que mantêm as relações de

poder tanto no espaço doméstico quanto no público. Nesse contexto, as políticas públicas

de enfrentamento à violência contra mulher foi e são movidas pela resistência e luta das

mulheres pelos seus direitos. Assinalamos três momentos que refletiram politicamente a

partir da demanda dos movimentos feministas no combate à violência contra as mulheres,

sobretudo, no âmbito doméstico, foram elas: a criação da Delegacia da Mulher em 1985,

os Juizados Especiais Criminais (JECrim) em 1995 e a Lei 11.340/06, em 2006, mais

conhecida como Lei Maria da Penha. Esses momentos ecoaram a relação sociopolítica de

(re) fluxo das políticas públicas e lutas feministas (SANTOS, 2010).

2.5. MARIA DA PENHA: LEI COM NOME DE MULHER

A Lei n°11.340/06, de 07 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da

Penha (LMP), é fruto de um longo processo de criação de uma lei específica para

violência doméstica e familiar contra as mulheres. Deste modo, é uma lei direcionada,

primordialmente, para criminalização da violência doméstica. Compreendemos que a

LMP intensifica a abordagem feminista no que diz respeito à criminalização, assim como

sugere uma perspectiva multidisciplinar, instituindo medidas protetivas, preventivas e

punitivas. Santos (2010), em diálogo com Myllena de Matos, pondera que até meados de

2004 não existia um projeto de lei voltado para violência doméstica e familiar, apesar dos

Tratados e Conferências sinalizarem ao Brasil a necessidade de implantação de uma lei

ampla e integral que protegesse as mulheres em situação de violência. Conforme indica a

autora é o projeto de Lei n° 4.559/2004 que dá origem a Lei 11.340/06.

Como já pontuamos, a implementação de políticas públicas e leis de

enfrentamento à violência contra as mulheres no Brasil são resultado de um contexto

político e social internacional e nacional, nesse percurso, advém a LMP. Apesar da Lei

ter sido uma ação do Poder Executivo, ela é oriunda do debate entre o Governo brasileiro,

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a comunidade internacional e nacional, organizações governamentais e não

governamentais, acima de tudo, do movimento feminista e de mulheres que questionavam

a discriminação baseada no gênero.

No Brasil, a Lei de combate à violência ancorada no gênero na esfera doméstica

e familiar, chega com um déficit de 12 anos de atraso14. Países como Chile, Peru e

Equador adotaram uma lei de proteção à violência contra a mulher ainda nos anos 90.

Contudo, a década de 1990 no Brasil foi basilar na luta da violência contra a mulher,

mantendo esta temática na pauta política por meio da criação das DEAMs e serviços

especializados, como Casa Abrigo e Centro de Referência, foi ainda nos anos 90 que o

Supremo Tribunal de Justiça (STJ) “declarou a ilegalidade da chamada “tese da legitima

defesa da honra”, argumento da legislação colonial que se perpetuava nas decisões do

júri popular” (BARSTED, 2016, p. 30). Leila Barsted (2016) chama atenção ao afirmar

a importância do STJ ao pontuar como antijurídico a aceitação de tais discursos como

legitimadores das violências ao feminino. Dessa maneira, de acordo com a autora, os

discursos que perpetuaram durante séculos foram validados, garantidos e absolvidos pelo

próprio Estado, isto quer dizer que as Ordenações Filipinas ocasionou um impacto

ideológico (BARSTED, 2016), principalmente, nas relações de gênero e violência que

persistiu por longos anos a ratificação das violências sob o feminino, ou seja, o poder

pátrio de vida e morte foi concebida a figura masculina, marido, pai, irmão tinham o

direito e controle sob o feminino e qualquer conduta fora da norma e padrões

socioculturais estava passível de correção e/ou morte.

Nesse sentido, consideramos que a adoção da LMP tenciona mais uma vez a

visibilidade da violência baseada no gênero, tal como fora visibilizada nas décadas de 80

e 90 com a ideia da legítima defesa da honra e crimes passionais colocando em xeque o

desmonte destes discursos. Além disto, estrutura a violência como uma questão social a

ser enfrentada, retirando o “direito do homem bater na mulher”. A Lei se institui como

primeiro mecanismo jurídico brasileiro de enfrentamento à violência de gênero contra a

mulher. Ademais, situa que lugar de mulher em situação de violência não é apenas a

delegacia, uma vez que dá várias possibilidades de proteção e prevenção a violência.

Santos (2008) observa que:

[...], é importante situá-la nos contextos políticos internacional e

nacional que permitiram a sua promulgação e a absorção/tradução

14 Segundo Santos (2010) grande parte dos países latino americanos instituíram leis sobre a violência contra

as mulheres ainda na década de 90.

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quase integral do anteprojeto de lei proposto por feministas brasileiras.

No âmbito internacional, a Conferência dos Direitos Humanos

promovida pela Organização das Nações Unidas em 1993, em Viena,

foi um marco importante para o reconhecimento internacional da

violência contra mulheres como uma violação dos “direitos humanos

das mulheres”. Logo após esta conferência, a Assembléia Geral da

ONU aprovou a Declaração sobre Violência contra a Mulher,

estabelecendo que tal violência constitui uma violação dos direitos

humanos. Em 1994, a Organização dos Estados Americanos também

aprovou a Convenção para a Eliminação, Prevenção, Punição e

Erradicação da Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção

de “Belém de Pará”, que define a violência contra mulheres como uma

violência baseada no gênero e como uma violação dos direitos

humanos. (SANTOS, 2008, p. 22)

Tomando a percepção de Santos (2008) sobre os instrumentos que corroboraram

para a criação de uma lei específica no combate à violência contra a mulher no espaço

doméstico, é fundamental, sinalizar que o Brasil era signatário destes instrumentos que

ordenam toda forma de discriminação baseada no gênero e preconceito contra as

mulheres, mas, apesar disto, como já sinalizamos teve um atraso de 12 anos para instituir

tal lei. A Convenção de Belém do Pará constitui-se como instrumento substancial para

elaboração e implementação da LMP, tendo em vista que foi baseada nessa Convenção

que o consórcio de Ongs não governamentais feministas em colaboração com a Secretaria

de Política para as Mulheres (SPM) sugeriu a Lei 11.340. Ressaltamos que a LMP norteia-

se a partir dos princípios e diretrizes da Convenção de Belém do Pará, que indica como

uma das principais causas da violência contra a mulher, as relações desiguais entre o

gênero, principalmente, de poder, que são frutos da legitimação tanto no plano histórico-

social quanto no sociocultural (BANDEIRA e ALMEIDA, 2015).

No mais, a SPM, ONU, OEA e Ongs desempenharam papel importante para a

consolidação de uma lei que protege a mulher na esfera doméstica. A articulação destes

órgãos e do movimento feminista brasileiro pressionou o governo, especialmente, por

expor a negligência do Estado, a proteção às mulheres em situação de violência. O

descumprimento do Estado aos Tratados e Convenções ratificadas pelo Brasil mostrou

que o país não cumpria as obrigações de defesa dos direitos humanos. Frente à

impunidade dos casos de mulheres mortas pelos maridos/companheiros houve, por parte

do movimento feminista e juristas, a possibilidade de recorrer a organizações

internacionais de direitos humanos para cessar tamanha violência.

Na segunda metade da década de 1990, dois casos foram encaminhados

à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): o caso

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Márcia Leopoldi, que se refere ao assassinato de Leopoldi por seu ex-

namorado, tendo sido encaminhado à CIDH em 1996; e o caso Maria

da Penha, referente à dupla tentativa de assassinado de Maria da Penha

por parte de seu marido, tendo sido encaminhado à CIDH em 1998.Um

breve exame dos dois casos revela que, apesar da criação das delegacias

da mulher, havia a necessidade de se transformar todo o sistema de

justiça criminal brasileiro e de se criar mecanismos mais eficazes de

prevenção e coibição da violência doméstica contra mulheres. O trâmite

dos dois casos também revela o descaso do governo brasileiro diante

das denúncias internacionais de violência doméstica contra mulheres,

bem como a morosidade do Sistema Interamericano de Direitos

Humanos. Verifica-se também que, nos dois casos, as mobilizações

feministas tiveram um papel importante na politização e materialização

do discurso dos “direitos humanos das mulheres”, contribuindo para a

promoção de algumas mudanças legais relativamente à questão da

violência doméstica contra as mulheres. Os dois casos mostram,

principalmente, que as vítimas e familiares não se resignaram e

traduziram suas dores em clamor por Justiça, buscando, tenaz e

arduamente, caminhos coletivos de luta pelos seus direitos e pelos

direitos das mulheres na sociedade brasileira. (SANTOS, 2010.p.

23/24)

O texto acima aponta que mesmo com a criação das DEAMs e do JECrim, o

Estado brasileiro não tinha a violência de gênero contra a mulher como crime passível de

proteção para as mulheres. Nessa direção, Fabiana Leite e Paulo Victor Leite Lopes

(2013) assinalam que a Lei Maria da Penha, estabeleceu-se como um dispositivo legal

sistêmico, com desenvolvimento em várias áreas do Direito recomendando o

compartilhamento de responsabilidades tendendo ao enfrentamento da violência. Isto é,

a Lei 11.340/2006 “propõe um conjunto de ações que amplia o escopo do âmbito

estritamente penal para a sua constituição como uma política afirmativa e sistêmica de

enfrentamento a esta modalidade de violência” (LEITE e LOPES, 2013, p. 20/21).

Observa-se que a LMP fundamentada no gênero entende a violência doméstica

para além de “crime de menor grau inofensivo”. Apesar disso, cabe salientar que o Brasil

foi condenado por omissão15, negligência e tolerância, diga-se, legitimação da violência

doméstica contra a mulher. O caso Maria da Penha foi essencial para condenação do

Estado, visto que este caso foi a personificação de todas as formas de negligência,

omissão, tolerância e abandono por parte do Estado. Em agosto de 1998, a Comissão

Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) recebeu a denúncia da Maria da Penha, pelo

Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e pelo Comitê Latino-Americano

15 O desrespeito e abandono do Estado aos Tratados e Convenções ratificadas pelo Brasil mostrou que o

país não desempenhava as obrigações de defesa dos direitos humanos às mulheres.

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de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) baseada na competência que lhe conferem

os artigos 44 e 46 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante

denominada “a Convenção” ou “a Convenção Americana”) e o artigo 12 da Convenção

Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção

de Belém do Pará ou CVM), (CIDH, 2001). A cearense e as organizações acusavam o

Brasil de tolerância da violência cometida por seu marido:

Denuncia-se a violação dos artigos 1(1) (Obrigação de respeitar os

direitos); 8 (Garantias judiciais); 24 (Igualdade perante a lei) e 25

(Proteção judicial) da Convenção Americana, em relação aos artigos II

e XVIII da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem

(doravante denominada “a Declaração”), bem como dos artigos 3, 4, a,

b, c, d, e, f, g, 5 e 7 da Convenção de Belém do Pará. A Comissão fez

passar a petição pelos trâmites regulamentares. Uma vez que o Estado

não apresentou comentários sobre a petição, apesar dos repetidos

requerimentos da Comissão, os peticionários solicitaram que se

presuma serem verdadeiros os fatos relatados na petição aplicando-se o

artigo 42 do Regulamento da Comissão. (CIDH, 2001)

Ainda em 1998, a Comissão Interamericana respondeu a solicitação da Maria da

Penha e do Consórcio feminista, como também transmitiu ao Estado a petição e solicitou

explicação16, porém, não obteve resposta do mesmo. Ou seja, não tomou medidas para

prevenção, punição e proteção das mulheres em situação de violência. Diante disto, a

CIDH recomendou ao Estado brasileiro uma série de medidas, dentre elas, finalização do

processo penal da Maria da Penha, reparação simbólica e material por parte do Estado,

adoção de políticas públicas no enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres,

como também ““sem demora, uma lei sobre a violência doméstica”, e tomasse “medidas

práticas para acompanhar de perto e supervisionar a aplicação de uma lei desse tipo e

avaliar sua eficácia”” (SANTOS, 2010, p.164/165). Assim, é nesse contexto, que advém

a Lei Maria da Penha, seis anos após a condenação do Brasil na Corte de Justiça da

Organização dos Estados Americanos.

16De acordo com o CIDH (2001) o Estado brasileiro não apresentou à Comissão resposta alguma com

respeito à admissibilidade ou ao mérito da petição, apesar das solicitações formuladas pela Comissão ao

Estado em 19 de outubro de 1998, em 4 de agosto de 1999 e em 7 de agosto de 2000.

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CAPÍTULO III

3. POSSIBILIDADES E LIMITES DA LEI 11.340/06

A proposta deste capítulo é apresentar a Lei Maria da Penha, compreendendo o

seu texto a partir de duas propostas distintas: a punitiva e a socioeducativa que convergem

na construção de três eixos da Lei, que são: 1) punição; 2) proteção e assistência; 3)

prevenção e educação.

O capítulo versa sobre a análise da Lei, uma vez que esta procura imprimir um

novo paradigma de atenção às mulheres em situação de violência, bem como aos autores

da agressão. A interpretação e análise da Lei nos permite compreender a dimensão da

mesma.

3.1.POR DENTRO DA LEI 11.340/06

TÍTULO I

Disposições Preliminares da Lei

Disposições Preliminares da Lei

TÍTULO II

Da Violência Doméstica e Familiar Contra

a Mulher

Capítulo I

Disposições Gerais

Capítulo II

Das Formas de Violência Doméstica e

Familiar contra a Mulher

TÍTULO III

Da Assistência à Mulher em Situação de

Violência Doméstica e Familiar

Capítulo I

Das Medidas Integradas de Prevenção

Capítulo II

Da Assistência à Mulher em Situação de

Violência Doméstica e Familiar

Capítulo III

Do atendimento pela autoridade policial

TÍTULO IV

Dos Procedimentos

Capítulo I

Disposições Gerais

Capítulo II

Das Medidas Protetivas de Urgência

Capítulo III

Da Atuação do Ministério Público

Capítulo IV

Da Assistência Judiciária

TÍTULO V

Da Equipe de Atendimento

Multidisciplinar

Da Equipe de Atendimento Multidisciplinar

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TÍTULO VI

Disposições Transitórias

Disposições Transitórias

TÍTULO VII

Disposições Finais

Disposições Finais

A Lei 11.340/06 tem em sua composição 46 artigos distribuídos em sete Títulos a

partir de três eixos: punição; proteção e assistência e, prevenção e educação. Propomo-

nos analisar os seus sete Títulos a partir de duas perspectivas: a socioeducativa e a penal,

uma vez que compreendemos que a Lei nos permite interpretá-la e analisá-la a partir

destas prerrogativas. Analisamos, primeiramente, as Disposições Preliminares do Título

I que diz respeito aos artigos 1º ao 4º e o Título II Da Violência Doméstica e Familiar

Contra a Mulher, que se refere aos artigos 5º ao 7º.

Compreendemos que os dois primeiros Títulos constituem a estrutura da Lei, visto

que esses nos ajudam na discussão para quem essa Lei é ofertada, além de apresentar as

formas de violências. Refletimos as disposições preliminares da Lei, a partir de Carmen

Hein Campos (2011), uma vez que a autora indica que os dispositivos para coibir a

violência contra mulheres no âmbito doméstico e familiar tencionam a funcionalidade

“da norma constitucional aos direitos fundamentais à vida, à liberdade, à igualdade e à

segurança, irradiados a partir do princípio constitucional da dignidade da pessoa

humana” (CAMPOS, 2011, p. 175). Além de acentuar o fundamento central

constitucional da igualdade de homens e mulheres e da violência assinalada no feminino.

As Disposições Preliminares – Título I enunciam politicamente a Lei. Define-se

nesta, a finalidade e “proteção” normativa. Desse modo, a Lei tem como intenção criar

mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo

assim, ordena criação de Juizados de Violência Doméstica e medidas de assistência e

proteção à mulher em situação de violência. A invocação normativa se dá por meio da

Constituição Federal de 1988, CEDAW e outros tratados internacionais.

Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência

doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da

Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as

Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana

para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros

tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil;

dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar

contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às

mulheres em situação de violência doméstica e familiar (BRASIL,

2006).

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O artigo 1º assinala que a Lei tem como premissa principal a criação de

mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Dessa

forma, apreendemos esta como uma ação afirmativa que procura assegurar de forma

mínima uma vida sem violência, além de emergir como mecanismo jurídico de relevância

para a garantia da segurança das mulheres. No entanto, os instrumentos para o combate à

violência doméstica são atribuídos a cada unidade federativa, ou seja, a Lei é federal, mas

os mecanismos de criação ao enfrentamento cabe a cada estado brasileiro, logo não há

uma unidade de programas e políticas públicas de enfrentamento à violência contra a

mulher. Por exemplo, a Ronda Maria da Penha, não tem adesão de todos os estados

brasileiros.

O documento da LMP direciona as diretrizes para o enfrentamento da violência

doméstica com objetivo de assegurar à mulher uma vida sem violência

independentemente da posição social, diga-se, estrutural que esta ocupa, porém cabe aos

estados implementar as políticas públicas e programas.

Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia,

orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião,

goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe

asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência,

preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral,

intelectual e social. (BRASIL, 2006)

O artigo 2º da Lei sinaliza a não discriminação para o gozo dos direitos

fundamentais a pessoa humana, como mencionado anteriormente, visto que em seu texto

assegura o exercício dos direitos fundamentais independe de classe, raça ou etnia,

orientação sexual, renda, nível cultural, idade ou religião. Logo, os marcadores sociais

são “irrelevantes” para a garantia da Lei. Desta forma, a partir da leitura da Lei, entende-

se que para ser assegurada pela Lei “basta” ser mulher. Entretanto, vemos a partir dos

dados do Ligue 180, Mapa da Violência, Obvio/RN, que as interseccionalidades são de

fundamental importância para visibilizar os sujeitos da violência, uma vez que “sabe-se

que preconceitos como o de classe, cor, orientação sexual ou idade aumentam a

vulnerabilidade das mulheres” (CAMPOS, 2011, p. 179). Acrescentamos aqui o

preconceito e vulnerabilidade ao que diz respeito à identidade de gênero pensando as

mulheres transexuais e mulheres travestis.

Portanto, a instabilidade social apresentada nas interseccionalidades do sujeito

mulher demanda do poder público medidas efetivas para a diminuição dos riscos de novas

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violências e mais, que as violências mostram-se exacerbadas no cruzamento das

interseccionalidades. A mulher negra periférica não sofre o mesmo “grau” de violência

que a mulher branca da classe média, ou ainda, a mulher trans não sofre a mesma violência

da mulher não trans. Todavia, a violência doméstica confere teor discriminatório nas

relações conjugais, configurando-se como um atentado ao feminino, isto é, como

discriminatório de gênero.

Os elevados índices de violência doméstica no Brasil, sobretudo, contra as

mulheres nos revela um arquétipo ordenado de tal violência. Os dados do Mapa da

Violência (WAISELFIZ, 2015) assinala a violência na mulher negra como o corpo o qual

a violência se instaura, ou seja, estatisticamente o corpo e a subjetividade das mulheres

negras são violados e violentados nas relações íntimas por pai, filho e (ex) companheiro

(a) com maior frequência. O aumento da violência a essas mulheres denota, como canta

Elza Soares, que a “carne mais barato do mercado é a carne negra”. Podemos vislumbrar

isto, a partir dos próprios dados cujo qual apresenta a violência a mulher negra com um

aumento significativo e a mulher branca com uma queda também significativa

(WAISELFIZ, 2015). Ora, temos então, ao mesmo tempo o aumento da violência e

diminuição da violência contra a mulher, no entanto, este aumento e diminuição se

inscreve nas interseccionalidades, que como mencionamos, anteriormente, nos revela um

arquétipo ordenado da violência.

Nesse contexto, podemos aferir que o que diminuiu foi a quem essa violência

atinge com maior expressão. Os dados revelam que a violência doméstica à mulheres

brancas diminuiu 2,1%, enquanto à mulheres negras teve um aumento de 35% no que diz

respeito à vigência da Lei Maria da Penha. Esses dados referem-se também ao número de

homicídio de mulheres, a qual houve um aumento de 54,2% de assassinatos de mulheres

negras e uma queda de 9,8% de mulheres brancas. No mais, percebemos através dos dados

que a violência nas relações domésticas, conjugais, é uma realidade persistente no Brasil

e que tem cor, classe e idade, visto que são as mulheres negras, periféricas e entre 18 e 30

anos (WAISELFIZ, 2015) que são as mais agredidas e mortas. Desta forma, deve-se

assegurar através de políticas públicas equipamentos e programas que vá em direção a

esse público afim de garantir condições para o direito à vida.

Em relação à garantia de vida e políticas para mulheres o Art. 3º proclama que:

Art. 3º Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício

efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à

educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer,

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ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à

convivência familiar e comunitária (BRASIL, 2006).

O artigo 3º reforça o irrestrito desempenho dos direitos fundamentais, indica que

serão assegurados às mulheres em situação de violência doméstica direitos à vida, saúde,

alimentação, educação, moradia, acesso à justiça. Sendo assim, cabe ao poder público,

juntamente, com a família e a sociedade a “construção” permanente de seguridade. É

importante a concepção e implementação de programas sociais, campanhas, políticas que

(des) construa a violência doméstica como uma violência estrutural, ou seja, já

naturalizada no Brasil. Nesse sentido, os caminhos sociais que a Lei possibilita para

desnaturalização da violência como condicionante de uma masculinidade (virilidade,

agressividade) e uma feminilidade (submissa, agredida).

Art. 4º Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a

que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das

mulheres em situação de violência doméstica e familiar (BRASIL,

2006).

O artigo 4º acentua os fins sociais a que a Lei se destina, portanto, as prerrogativas

socioeducativo e punitivo de prevenção, educação, assistência e punição. Ademais, o

Título I das Disposições Preliminares aponta que a Lei Maria da Penha concebe um

código jurídico independente com dispositivos específicos para proteção, assistência e

punição da violência doméstica. Segundo Campos (2011), com regras próprias de

interpretação, aplicação e execução, ou ainda, um traço integrativo e sistemático que

transpõe a interpretação desse estatuto legal, estatuto esse, que tem por finalidade

proteção, assistência e punição da violência, e que são regidos a partir de dispositivos

internacionais de direitos humanos que sucintam dignidade e direitos às mulheres.

3.2. A LEI 11.340/06: PARA QUEM?

Neste tópico apresentaremos a LMP a partir do Título II, a qual expõe as formas

de violência doméstica e familiar contra a mulher a partir de dois Capítulos: Capítulo I e

II. O Capítulo I apresenta as Disposições Gerais da Lei a partir dos artigos 5º e 6º, ou seja,

para quem a Lei é oferecida, isto é, para as mulheres. O Capítulo II identifica as Formas

de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher alicerçado no artigo 7º.

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O 5º artigo apresenta como se configura a violência doméstica e familiar contra a

mulher, utilizando-se da definição adotada pela Convenção de Belém do Pará. Deste

modo, o documento da Lei caracteriza por violência doméstica e familiar contra a mulher

toda ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause violência que atinjam sua

integridade física, material e imaterial no âmbito da unidade doméstica (com ou sem

vínculo familiar - agregados), no âmbito da família (unidos por laços naturais, por

afinidade ou por vontade expressa) e em qualquer relação íntima de afeto (companheiro

ou ex-companheiro).

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e

familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no

gênero17 que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou

psicológico e dano moral ou patrimonial (BRASIL, 2006)

A Lei, apesar de suas motivações gerais, apresentar-se como uma Lei de combate

à violência contra a mulher baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão, sofrimento

físico, sexual, psicológico, dano moral e patrimonial, não deixa claro qual a perspectiva

de gênero que se apropria, o mesmo acontece para a categoria violência. A violência é

posta como sinônimos de agressão física, sexual, psicológica, moral e patrimonial. O

texto da Lei não afere como se toma o que entendemos como as principais categorias da

Lei: gênero e violência.

Nesse sentido, compreendemos que no texto da Lei as relações de poder e

subordinação são apreendidas a partir do gênero. Desse modo, o componente teórico da

categoria gênero está relacionado à relação de poder, a hierarquia social, a estrutura

hierarquizante com base no fato de ser homem e mulher. Acerca dessa discussão

aparecem três planos teóricos distintos para pensar gênero, que nos remete a discussão do

Capítulo 1, são eles: mulher-sexo, gênero e sexualidade18.

O gênero é capturado por meio de um processo sociocultural, dessa forma, o que

ilustra as diferenças de lugares sociais entre homens e mulheres são as diferenças sociais,

históricas e políticas que dão sentido e que ordenam as diferenças. Essas que são lidas a

partir das normas, regras culturais e a “heterossexualidade compulsória19” (MISKOLCI,

2009, os mecanismos discursivos do gênero. Diante disto, a Lei 11.340/06 em sua

17Grifos da autora 18 Grifos da autora 19 De acordo com Miskolci (2009), a heterossexualidade compulsória tem por objetivo “formar a todos

para serem heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente coerente, superior

e 'natural' da heterossexualidade”.

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disposição alude que o enfrentamento à violência de gênero procura dissolver o exercício

de poder e de afeto atravessados de relações de subordinação, expressando que a

desigualdade dos gêneros resulta de construções socioculturais. Isso explica o trato mais

assertivo no que concerne ao homem quando a violência é atentada na esfera doméstica

e familiar. Em outras palavras, a Lei apresenta as violências a partir da desigualdade de

gênero, identificada como subordinação, relações de poder e controle de caráter

estruturalmente cultural refletidas na e pela violência.

Diante disto, ressaltamos o quão amplo são os laços de pertencimentos que a Lei

atinge, ou seja, de onde e de quem as violências podem decorrer, companheiro (a), ex-

companheiro (a), namorado (a), ex-namorado (a), amante, pai, avô, tio, irmão, filho,

cunhado, primo, agregado. Destaca-se que no que concerne aos autores da violência

doméstica a Lei não discrimina sexualidade e gênero.

Segundo Fabiane Simioni e Rúbia Abs da Cruz (2011):

Situações de conflitualidade encontra legitimidade entre aqueles (sejam

homens ou mulheres) que operam e agem segundo uma lógica

androcêntrica baseada na dominação e subordinação imposto a todo

aquele que não se encontra em igual ou superior posição hierárquica

(SIMIONI, CRUZ, 2011, p.186).

Simioni e Cruz (2011) afirmam que as relações interpessoais marcadas pela

violência são consequências das hierarquias e desigualdades, estas que são entendidas

pelas autoras como estrutura cultural das práticas discriminatórias e violentas, nesse

sentido, “a relação afetivo-conjugal e a habitualidade das situações de violências tornam

as mulheres ainda mais vulneráveis dentro do sistema das desigualdades de gênero”

(CAMPOS apud SIMIONI & CRUZ, 2011, p. 186/187).

O espaço doméstico, lócus destas violências é tido e lido socialmente como o

espaço privado e da restrição das relações interpessoais, como o lugar da compreensão,

tolerância, mas também, da punição, do castigo, do crime, ou seja, das violências, um

espaço de relações indefinidas, no qual a violência fora legitimada socialmente. Não

obstante, formulou-se o espaço doméstico como lugar do sagrado, logo, como o que

ocorresse no âmbito familiar não ecoasse na ordem social, ou ainda, como a maneira que

esses sujeitos se relacionam fossem e sejam naturais, assim, atuando com a ilusão de que

a liberdade é vivida na esfera pública e a privação na esfera privada (SIMIONI, CRUZ,

2011).

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Assim, o artigo 5º da LMP desmonta essa ideia de proteção da violência no âmbito

doméstico e familiar, bem como o lugar do sagrado. Tal artigo, visibiliza as diversas

condutas punitivas no feminino na esfera doméstica a partir dos laços de pertencimentos

e, aponta o espaço doméstico como o lócus para a proteção às mulheres e não proteção

da violência.

A violência, comumente, está associada ao uso da violência física e psicológica

com o objetivo de coagir/forçar ao outrem fazer algo que não quer fazer. Na relação de

desigualdade de gênero, a mulher, historicamente, confere o lugar de inferioridade e, é

imposto para estas sujeição e dependência. De acordo com Dias e Reinhemer (2011),

estas características são uma afronta ao direito à liberdade. O artigo 6º da Lei Maria da

Penha, vai justamente indicar que a violência doméstica e familiar contra a mulher

constitui uma das formas de violação dos direitos humanos: “Art. 6º A violência

doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos

humanos”. (BRASIL, 2006). Nesse sentido, conforme Dias e Reinhemer (2011), a Lei

11.304/06 criou dispositivos para coibir a violência contra a mulher no âmbito doméstico

das relações interpessoais.

As autoras afirmam que a Lei:

Veio dar efetividade a Constituição Federal que proclama no seu artigo,

226: “A família base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.

E promete no artigo 226, § 8º: o Estado assegurará a assistência à

família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos

para coibir a violência no âmbito de suas relações (DIAS,

REINHEMER, 2011, p.196).

As autoras indicam que antes da promulgação da Lei, as violências contra a

mulher no contexto doméstico não eram entendidas como violação dos direitos humanos.

Ou seja, tivemos um longo percurso de violências contra o feminino que foi negligenciado

pelo Estado brasileiro, um processo de violência que vai das Ordenações Filipinas até a

Constituição Federal de 1988, a qual começa a pensar a igualdade de gênero, segurança

e assistência para as mulheres. Mas é somente em 2006 que, de fato, se tem um

mecanismo que criminaliza a violência doméstica e familiar contra a mulher no âmbito

do privado/lar.

Dias e Reinhemer (2011) afirmam que para chegar ao real conceito de violência

doméstica é fundamental refleti-la a partir dos artigos 5º e 7º, uma vez que deter-se

somente a um desses é insatisfatório para chegar o conceito de violência. Sendo assim, as

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autoras compreendem violência doméstica como as ações especificadas no artigo 7º,

violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial ou

violência moral praticada contra a mulher em razão de laço familiar ou afetiva.

É obrigatório que ação ou omissão ocorra na unidade doméstica ou

familiar ou em razão de qualquer relação íntima de afeto, na qual o

agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida,

independentemente de coabitação (DIAS, REINHEMER, 2011, p.199).

Portanto, segundo as autoras, para configurar-se como violência doméstica e

familiar perante a LMP não se faz necessário morar no mesmo lar, mas ter constituído ou

constituir laços afetivos de vínculo de natureza familiar com o agressor.

Em diálogo com a Lei 11.340/06, apoiado no artigo 7º, podemos refletir sobre as

dimensões da violência, intituladas de: violência sem sangue e violência com sangue,

visto que este artigo apresenta as formas que a violência doméstica pode se expressar.

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher,

entre outras:

I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua

integridade ou saúde corporal;

II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe

cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe

prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou

controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante

ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento,

vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,

ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer

outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à

autodeterminação;

III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a

constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não

desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a

induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua

sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou

que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição,

mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite

ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que

configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus

objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores

e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer

suas necessidades;

V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure

calúnia, difamação ou injúria (BRASIL, 2006).

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O artigo 7º oferece-nos as multiplicidades das violências. Dessa maneira,

apreendemos neste trabalho tal artigo a partir de duas dimensões citadas anteriormente.

Os incisos II, IV e V, são compreendidas como violência sem sangue, ou seja, violência

psicológica, violência patrimonial e violência moral, já o que diz respeito à violência com

sangue toma-se como pressuposto os incisos I e III, violência física e violência sexual.

Nomeamos estes para elucidar as marcas visíveis e invisíveis da violência contra a mulher

no âmbito doméstico. E para entender sobre os instrumentos e mecanismos públicos que

devem garantir às mulheres segurança na busca ao enfrentamento contra a violência

doméstica precisamos, primeiramente, compreender como a violência se inscreve na Lei,

bem como refletir a partir da Lei o que seu texto apresenta de efetivo para o enfrentamento

da violência doméstica. Para, posteriormente, no capítulo 4 problematizar e analisar os

instrumentos de enfrentamento à violência doméstica descritos pela LMP no Rio Grande

do Norte. Logo, compreende-se que discutir sobre como a violência assume formas

múltiplas possibilita-nos analisar os impactos efetivos ou não que as ações de

enfrentamentos têm produzido em solos potiguares.

3.2.1. Violência sem sangue

Entendemos por violência sem sangue os incisos II, IV e V do artigo 7º da LMP.

Estes estão intensamente conectados “ao boicote do ser; ao boicote à liberdade de

escolha, que nos define como humanos” (FEIX, 2011, p.205). Assim, estas violências

colaboram para a subordinação e submissão das mulheres, atingindo a autonomia

econômica financeira da mulher, desprezando a autoestima e o reconhecimento social,

principalmente, sustenta formas de dependência psicológica.

A violência psicológica configura-se na Lei como qualquer dano emocional que

provoque estrago a saúde psicológica originada de ameaça, xingamentos, manipulação,

chantagem, isolamento, entre outros. Conforme Isadora Vier Machado e Miriam Pillar

Grossi (2015), os meios ou estratégias que podem acarretar a violência psicológica está

embutido de características que se cruzam entre os danos do plano moral e no plano

psicológico. Diante disto, as autoras compreendem a violência psicológica a partir de suas

multiplicidades, um conjunto de violências que afetam o psicológico composta por

modalidades. As violências psicológicas para estas centralizam-se “na historicidade da

Lei Maria da Penha e a concretiza enquanto lugar de memória dos movimentos

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feministas brasileiros” (MACHADO, GROSSI, 2015, p.562), uma vez que estes

contribuem para ampliar a noção de violência com a intenção de proteger os sujeitos de

direito, no caso da Lei, as mulheres.

À luz das concepções conceituais de Machado e Grossi (2015) de pensar as

violências psicológicas a partir da dor no corpo a dor na alma, apreendemos esta a partir

do que Bandeira (2013) nomeia como violência sem sangue, entretanto, a autora assinala

a violência sem sangue somente a partir da violência psicológica. Tomamos a concepção

de violência sem sangue de Bandeira (2013) e abarcamos outras violências apresentadas

na Lei Maria da Penha, tais como, a violência moral e a violência patrimonial, entendendo

que essas violências violentam a subjetividade da mulher agredida (MACHADO,

GROSSI, 2015). No artigo 7º, tais violências são entendidas como:

II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe

cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe

prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou

controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante

ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento,

vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,

ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer

outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à

autodeterminação;

IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que

configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus

objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores

e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer

suas necessidades;

V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure

calúnia, difamação ou injúria (BRASIL, 2006).

Nesse sentido, entendemos que há na violência sem sangue um controle dos

sujeitos a partir de um terrorismo psicológico e moral, inicialmente apresentada através

das “sutilezas” e certa invisibilidade da própria violência. O medo, controle, destruição

parcial ou total de seus bens, xingamentos, difamação e humilhação, por muitas vezes se

dá de forma imperceptível, desta forma é na repetição das violências que se identifica a

própria violência. Vale destacar que a violência simbólica se aproxima de certa forma a

violência psicológica, visto que está se faz presente nas relações de força, logo o poder

vai conferir e legitimar os significados das violências.

A violência psicológica pode ser concebida como a violência primária mediante

as outras, podendo desencadear as demais violências. Segundo Virgínia Feix (2011), a

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violência psicológica está essencialmente relacionada a todas as outras expressões de

violência doméstica e familiar contra a mulher.

Para Feix (2011):

Sua justificativa encontra-se alicerçada na negativa ou impedimento à

mulher de exercer sua liberdade e condição de alteridade em relação ao

agressor. É a negação de valor fundamental do Estado de Direito, o

exercício da autonomia da vontade e, portanto, da condição de sujeito

de direitos conquistada pelos homens, nas revoluções burguesas,

americana e francesa, já no século XVIII. Como sujeitos geneticamente

sociais que somos, nossa identidade é constituída culturalmente pela

interação social e inter-relação de vários “Outros” sujeitos que nos

constituem e com quem compartilhamos nossa trajetória de vida. Os

ataques à liberdade de escolha pela afirmação constante da

incapacidade da mulher de fazer e sustentar eticamente suas escolhas

infantilizam-na enquanto sujeito; impedindo-a de desenvolver sua

identidade com autonomia, pelo permanente ataque a sua tentativa de

diferenciação e afirmação de sua alteridade em relação ao agressor, ou

seja, como outro ser, capaz de autodeterminação. (FEIX, 2011, p.205).

No desafio de pensar os entraves e consequências que as violências sem sangue

introjetam nas mulheres, concordarmos com Feix (2011) ao afirmar que a violência

psicológica fere e marca a subjetividade dos que passam constantemente por este tipo de

violência e que esta é a violência que perpassa pelas demais. Logo, sofre-se uma dupla

violência, visto que se adiciona o sofrimento psicológico com o físico, sexual, moral ou

patrimonial.

De acordo com Machado e Grossi (2015), as violências psicológicas no que diz

respeito à Lei Maria da Penha são compostas por três dimensões: normativa penal,

protetiva e nominativa, uma vez que:

A Lei 11.340/06 subverte a inscrição opressora da feminilidade sobre

os corpos das mulheres, concebendo-os agora como uma entidade

psicofísica e aumentando as possibilidades de expressão dessas

mulheres e de resguardo de sua integridade (MACHADO, GROSSI,

2015, p.571).

O conceito de violência psicológica apresentada na Lei 11.340/06, segundo as

autoras, é essencial porque demarca uma nova postura frente às violências contra as

mulheres, além de indicar uma nova visão das próprias mulheres como sujeitos de

direitos. É necessário destacar que o conceito de violência psicológica designa que a

“implementação da Lei Maria da Penha é uma tarefa permeada pelas subjetividades,

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crenças e formação específica das/os agentes de segurança e justiça em questão”

(MACHADO, GROSSI, 2015, p.572).

Destarte, ao inferir os inciso II, IV e V como violência sem sangue apontamos a

violência psicológica como primária, visto que esta encontra-se intrinsecamente ligada às

violências patrimonial e moral. A detenção ou destruição de bens total ou parcial,

desqualificação por meio de xingamentos, difamação e inferiorização localizam a mulher

em posição de vulnerabilidade, violenta o psicológico destas. Diante do exposto,

entendemos que estas violências não deixam marcas físicas, porém, as marcas atacam a

subjetividade, uma ferida/dor que pode permear por tempo indeterminado. As calúnias,

ameaças, xingamentos, assédios, humilhação, controle, ferem a relação mais íntima e

subjetiva dos sujeitos, “não são necessariamente ataques ao corpo, mas a identidade, a

subjetividade da mulher, em outras palavras, o que a constitui como pessoa”

(BANDEIRA, 2013, p.74). Assim, nas práticas da violência sem sangue, sobretudo,

reiteramos que a violência psicológica, pode ser compreendida como primeira etapa da

violência reverberada nas demais.

3.2.2. Violência com sangue

No percurso de pensar as violências sinalizadas no texto da Lei Maria da Penha,

no artigo 7º, como mencionado anteriormente, concebemos essas a partir da violência

sem sangue e com sangue. A violência sem sangue é apreendida como a que viola a

subjetividade, enquanto a, violência com sangue é a que viola o corpo da mulher em

situação de violência. Entendemos a violência com sangue a partir do parágrafo 7º do

Capítulo II da Lei 11.340/06, Lei Maria da Penha, como sendo:

I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua

integridade ou saúde corporal; III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a

constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não

desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a

induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua

sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou

que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição,

mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite

ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos (BRASIL,

2006).

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Ao apresentar a violência física e a violência sexual como violências com sangue

estamos conferindo a estas o domínio do corpo feminino como sujeito da violência, dado

que estas violências tem como principal objetivo ferir e marcar os corpos femininos.

Marcas estas que diferentemente das violências sem sangue tem seu marcador na

visibilidade da dor, dos tons de roxos, do sangue.

A violência física é a forma mais socialmente visível e identificável de

violência doméstica e intrafamiliar contra a mulher por gerar

consequências e resultados materialmente comprováveis, como

hematomas, arranhões, cortes, fraturas, queimaduras entre outros tipos

de ferimentos. Na prática, sua presença indica grandes possibilidades

de existência das demais formas de violência (FEIX, 2001 p.204).

E ainda:

Vale lembrar, para melhor compreender o fenômeno da violência

doméstica e intrafamiliar como violência de gênero, indissociável do

conceito de violência política (ou seja, de instrumento para perpetuar

relações desiguais de poder), que o castigo físico ainda é prática

culturalmente aceita e naturalizada como condição de afirmação da

autoridade, ou poder familiar (antes conhecido como pátrio poder) dos

pais sobre seus filhos. Assim o castigo físico imposto às mulheres nas

relações afetivas e domésticas também é, em última análise, o recurso

utilizado para dizer quem manda, ou qual dos sujeitos está em condição

de subordinar e submeter o outro, toda a vez que a sua conduta ameaçar

ou não atender as expectativas ou desejos de quem “deve” deter a

autoridade. Nesse comportamento, como já se disse, há tentativa de

perpetuar a posição de poder, pela anulação do outro como sujeito,

como diverso, que só existe como extensão ou projeção do sujeito

dominador. (FEIX, 2001 p.204/205).

Feix (2011) assevera que a violência física é visível e identificável socialmente,

logo, é a violência doméstica que se faz ver. Em consonância com a autora, assinalamos

que a violência com sangue, física e sexual, sinaliza a condição social e cultural de

dominação/poder dos homens sobre as mulheres, dado que são legitimadas nas relações

de poder, de um domínio do homem sobre a mulher, além de instituir-se como dispositivo

de controle, disciplinador e regulador dos corpos (FOUCAULT, 2004). Logo, a violência

doméstica sugere uma experiência especifica centrada na conversão de diferenças e de

assimetrias em uma relação hierarquia de desigualdade, gerando práticas de dominação e

exploração (BANDEIRA, 2013).

As violências apresentadas na Lei Maria da Penha são compreendidas como

recursos, mecanismos de controle e dominação dos homens sobre as mulheres, visto que

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as violências se inscrevem e exteriorizam na dor dos corpos agredidos, violentados,

explorados, desmoralizados. Assim, as violências que denominamos como violências

com sangue são as que apresentam o corpo da mulher como um “corpo de batalha20” e,

nesta luta, como já mencionado, as marcas são visíveis.

Os dados apresentados pelo Ligue 180 da Secretaria de Políticas para Mulheres

(2015) apontam que as violências que são mais relatadas são as violências físicas com

50% dos relatos e a psicológica com 30%.

GRÁFICO 01

Dados: Ligue 180 (2015)

Desse modo, a partir do Gráfico 01 podemos refletir a dimensão da violência

doméstica, problematizando a partir das violências sem sangue e com sangue. Os dados

do Ligue 180 (2015) mostra-nos que a violência com sangue é a mais relatada entre as

denunciantes, 55% relatam ter sofrido determinada violência, (50% violência física e 5%

violência sexual). Já, a violência sem sangue é relata por 42% das denunciantes, sendo

que nestas 30% são denúncias de violência psicológica. Este é um dado importante, visto

que a concepção de estar sendo agredida psicologicamente pode vir a minar uma possível

violência física, ademais, que a mesma não entre no ciclo da violência. Ainda de acordo

com o Ligue 180 (2015), 72% dos casos de violências são cometidos por homens nos

20 Expressão usada por Lourdes Bandeira no evento realizado pela Pauta Feminina no evento da

Procuradoria da Mulher do Senado sob o título O feminicídio como violência política em 16 de fevereiro

de 2017.

50%

30%

7%5%

5%2%

1%Tipos de violência

Violência física Violência psicológica Violência moral

Cárcere privado Violência sexual Violência patrimonial

Tráfico de pessoas

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quais as vítimas têm ou tiveram relacionamento, vínculos afetivos atuais ou ex

companheiros, bem como amantes das vítimas, o último dado pode ser visibilizado no

artigo 5° da Lei, que expressa os autores da violência doméstica.

GRÁFICO 02

Dados: Ligue 180 (2015).

GRÁFICO 03

Dados: Ligue 180 (2015).

Relação heteroafetiva

72%

Relação homoafetiva

0%

Relação familiar17%

Relação externa11%

Relação vítima- agressor

Relação heteroafetiva Relação homoafetiva Relação familiar Relação externa

40%

34%

12%

3%7% 4%

Duração das violências

Todos os dias Algumas vezes na semana Algumas vezes no mês

Algumas vezes ao ano Ocorreu um vez Outras frequências

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Os Gráficos 02 e 03 sinalizam a relação vítima-agressor e a duração das violências

sofridas. Segundo os dados do Ligue 180 (2015), predominantemente, as denúncias

recebidas dizem respeito à relacionamentos heterossexuais, o que corresponde a 72%, a

relação familiar com 17% das denúncias e 11% de relações externas. Ainda de acordo

com os dados, as denúncias de violência doméstica em relacionamentos homoafetivos

não contabilizam 1%. O que concerne à duração da violência, os números apontam que

as mulheres em situação de violência doméstica estão neste ciclo ou sendo agredidas

algumas vezes na semana ou todos os dias. O que corresponde a um total de 54% de

mulheres que sofrem as marcas da dor da violência sem sangue e violência com sangue.

Os dados do Ligue 180 (2015) demonstram a violência com sangue marcada nos

relacionamentos heterossexuais. Em suma, acreditamos que esta violência marcada no

corpo das mulheres é um mecanismo, principalmente, de força para mostrar quem manda

na relação, bem como evidenciar qual “dos sujeitos está em condição de subordinar e

submeter o outro, toda a vez que a sua conduta ameaçar ou não atender as expectativas

ou desejos de quem “deve” deter a autoridade” (FEIX, 2011, p. 204/205), na intenção

de preservar e perdurar à disposição/arranjo de/do poder nas relações, pela eliminação do

outro como sujeito, em outras palavras, a invalidação do outro com ser existente como

pessoa.

Os dados apresentados pelo Ligue 180 (2015) mostra-nos que as violências com

sangue são denunciadas diariamente, bem como que as mulheres em situação de violência

sofrem frequentemente com a violência. O número alarmante de violência física nos faz

pensar que essas mulheres agredidas/violentadas fisicamente já passaram por outras

etapas da violência, a violência psicológica ou moral e que podem vir a se tornarem

estatística da violência com morte21, caso não rompam com o ciclo da violência.

Os dados exibidos acima reverberam os anos de legitimação da violência

doméstica contra a mulher, violência essa que ainda não foi cessada e que a cada ano

apresenta novos números. As mulheres no Brasil são agredidas a cada 15 segundos e de

cada 10 mulheres agredidas, 03 são mortas pelo seu companheiro ou ex-companheiro,

segundo dados da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Isto é, podemos descrever

esses dados da violência doméstica, tal como: no Brasil a cada 15 segundos uma mulher

21No próximo capítulo discutiremos a violência com morte.

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cai da escada, tropeça no tapete, bate o rosto no guarda roupa22. A cada 1h30 minutos

uma mulher é morta por seu companheiro ou ex-companheiro.

Nesse contexto, Machado (2006) apresenta em pesquisa realizada na Delegacia

das Mulheres em Brasília em que ouviu autores de violência domésticas e mulheres que

sofreram tal violência, que o “controle e posse da mulher, desejo de ter, desejo de não

perder, desejo de que as mulheres nada queiram a não ser eles mesmos” (MACHADO,

2006, p.14) como justificativas que culminariam o ato da violência. Os autores de

violência doméstica entrevistados pela autora declararam que a violência ocorre quando

as mulheres, além dos elementos citados acima, não cumprem ou obedecem o que lhe são

impostas por seus companheiros ou ex-companheiros. Sendo assim, a partir da fala dos

entrevistados pela autora, a violência é apresentado como ato corretivo (MACHADO,

2006).

Eles não se interpelam sobre o porquê agiram desta ou daquela forma.

Sua interpelação é apenas e somente sobre seus excessos: descontrole,

bebida ou o “eu não sei o que me deu”. Para eles, o descontrole e o ficar

“transtornado”, é o que explica o desencadear da agressão, mas não é a

razão do ato violento. Para os agressores, a razão é legítima pois a “sua”

função masculina na relação “de casal” e familiar, é a de disciplinar.

Como “devem disciplinar”, podem e devem usar a força física contra as

mulheres. É esta a razão do ato violento. Ao “transtorno” e ao

“descontrole”, cabe apenas explicar a fraqueza e os “excessos”

(MACHADO, 2006, p. 14).

A autora aponta o caráter disciplinador dos sujeitos que corrigem qualquer

conduta que não lhe agrade com violências. A agressão parece não ser questionada, ou

melhor, o motivo de agredir sua companheira ou ex-companheira não tem uma dimensão

de constituição de uma masculinidade. Isto é, não percebem a construção da violência

contra o feminino como ato “condicionante” e generificado no processo de construção de

“ser” homem. Destarte, concordamos com Machado (2006) ao afirmar que no Brasil, o

peso da categoria relacional da “honra” baseia-se “na construção simbólica dos gêneros,

no que tem mais de impensado e naturalizado” (MACHADO, 2006, p. 14). Dessa forma,

a construção hegemônica dos atributos do masculino gira em torno do desafio da honra,

do controle das mulheres e da disputa entre homens.

22Mulher no Estado da Paraíba denuncia o ex-companheiro por violência doméstica e o delegado pergunta

se não foi o guarda roupa. Ver: https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/mulher-na-pb-denuncia-agressao-

de-ex-companheiro-e-delegado-pergunta-se-nao-foi-o-guarda-roupa.ghtml

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Não são poucos os conflitos domésticos e amorosos onde as agressões

verbais são recíprocas e igualmente fortes e graves entre homens e

mulheres, mas o exercício da violência física, quer seja entendida como

disciplinar ou como demonstração de poder evocador ou não de

legitimidade compartida, parece ser “atributo preferencial masculino”,

em que os feminicídios parecem ser o ponto final de uma escalada da

violência física. (MACHADO, 2006, p. 15)

Machado (2006) apresenta a violência como atributo prioritário da masculinidade,

portanto, a violência corretiva seja ela física, psicológica, moral, patrimonial e sexual lhe

retira existência, reconhecimento, coloca-as aprisionadas23, primeiramente, no medo,

após a denúncia, na vergonha.

Em vista disso, o artigo 7º da Lei Maria da Penha, o qual apresenta as formas de

violência, juntamente, com o artigo 5º que localiza o lugar da violência, o doméstico e os

laços de pertencimento que a Lei atinge e, o artigo 6º que refere-se à violação dos direitos

humanos estruturam a LMP, uma vez que demarcam a finalidade de sua aplicação (FEIX,

2011). Contudo, como aponta a autora, tais artigos ainda precisam ser assimilados pelos

agentes da Lei para que possa haver efetividade plena desta.

Vale destacar os anos inicias de implementação da Lei no aspecto jurídico, os

quais muitos casos ainda foram julgados na premissa da Lei 9.099/95, equiparada a um

crime de menor grau ofensivo, ou ainda, juízes que julgaram a Lei Maria da Penha como

discriminatória de gênero, entendendo que esta feria a Constituição Federal de 1988, com

o discurso que não davam direitos iguais a homens e mulheres. Ou seja, que a Lei era

inconstitucional por ferir o princípio de isonomia anunciado no artigo 5º, inciso I, que

afirma que todos são iguais perante as leis, “homens e mulheres são iguais em direitos e

obrigações, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 1988). Estes entendiam a LMP

como uma “arma” do feminino para “punir” os autores da violência, assim como

instrumento de proteção para as mulheres e de punição para os homens. Entretanto, a Lei

Maria da Penha foi criada para chamar a atenção para aspectos socioculturais e jurídicos

que por fim fundamentam a elaboração de uma lei própria para o combate à violência

doméstica, dessa maneira, não fere a igualdade entre homens e mulheres.

Lenio Luiz Streck (2011) assinala que a Lei não sofre de vício de

inconstitucionalidade, visto que:

23 Segundo dados do Ligue 180 as mulheres ficam por anos sofrendo violência doméstica até sentirem-se

seguras para pedir medidas cabíveis ou apenas terminar os relacionamentos.

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Trata-se de uma Lei que preenche um gap histórico, representado por

legislações anteriores que discriminavam as mulheres e, se não as

discriminavam explicitamente, colocavam o gênero feminino em um

segundo plano. Isso pode ser visto no velho Código Penal de 1940, em

que, até há pouco tempo, o estupro era considerado “crime contra os

costumes”. Somente nos últimos anos passou-se denominá-lo “crime

contra a dignidade sexual” (pode ser também “crime contra a liberdade

sexual”) (STRECK, 2011, p. 99).

Segundo o autor, a LMP ocasionou estranhamento no jurídico, em especial, os

aplicadores - juízes/as, promotores/as, delegados/as e servidores da justiça – reagiram ao

reconhecimento e aplicabilidade legal de um novo paradigma aos casos de violência

contra a mulher. Outro entrave da Lei, de acordo com Isadora Vier Machado (2011) é

apreensão da violência psicológica como violência. A autora afirma que para constatar

tal violência tem que prová-la, bem como as violências moral e patrimonial. Portanto,

precisa-se da afirmação de outro para “comprovar” que se sofre a violência, ou as

violências. Como já mencionado, as violências sem sangue não deixam marcas visíveis,

e isso, parece-nos ser um dos limites da aplicabilidade e efetividade da Lei quando

mencionamos a violência psicológica.

Enfim, compreendendo que a violência no âmbito doméstico culmina,

predominantemente, nas mulheres, a Lei pontua as relações interpessoais baseadas nas

relações desiguais de poder, por consequência, o texto da Lei em comento desfaz de

ilegalidade no que tange os direitos para os homens e mulheres. No mais, para que a Lei

seja aplicada corretamente e atenda às necessidades da mulher em situação de violência

é importante que os seus aplicadores sejam preparados para atender e viabilizar suporte

para as mulheres que denunciaram seus agressores.

Procuramos apresentar e analisar os artigos iniciais, pois estes são os alicerces

para a compreensão dos artigos posteriores. Desse modo, para compreender a construção

das disposições que serão apresentadas a partir de duas concepções na qual apreendemos

a Lei: a socioeducativa e a punitiva, foi necessário esse percurso detalhado do 1º ao 7º

artigo. Analisaremos no tópico seguinte o texto da Lei Maria da Penha pelas concepções

já mencionadas, entretanto, não analisaremos de forma linear os artigos, esses serão

apresentados conforme a acepção que o mesmo se insere.

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3.3. PERSPECTIVA SOCIOEDUCATIVA DA LMP

A LMP estrutura-se em três eixos de intervenção: punição; proteção e assistência;

e prevenção e educação com objetivo de garantir juridicamente um mínimo de proteção

as mulheres em situação de violência doméstica.

No eixo punição encontram-se os procedimentos policiais, aplicação da pena,

impedimento de penas alternativas. Este eixo afasta de vez a violência doméstica da Lei

9.099/95. O eixo da proteção e assistência às mulheres em situação de violência doméstica

e familiar refere-se às medidas de urgência direcionadas a elas e outras aos autores de

violência. Por fim, o terceiro eixo diz respeito à prevenção e educação que abarcam ações

pedagógicas com papel de conter o comportamento violento e discriminatório baseado no

gênero. No entanto, a Lei foi e ainda é compreendida a partir de seu caráter punitivo, haja

vista que pouco se fala de seu caráter educativo e pedagógico. Dessa forma, discorremos

neste ponto a perspectiva socioeducativa da Lei. Dois questionamentos subsidiarão a

discussão: Como prevenir e modificar os comportamentos masculinos apreendidos

socialmente e reproduzido por séculos? Denúncias são feitas, o problema é reconhecido,

mas é possível outra forma de ação?

As questões acima nos levam de encontro para o caminho socioeducativa da Lei

em análise, percebemos que os eixos proteção e assistência; prevenção e educação

compreendem a acepção social, sobretudo, educativa da Lei Maria da Penha. Contudo,

são apenas 04 artigos que denotam tal perspectiva de maneira assertiva os artigos 8º, 38º

e o 45º apontam o mesmo ponto de vista, o artigo 35º a partir dos incisos IV e V

convergem com determinada perspectiva.

Ao trazer em seu texto uma concepção socioeducativa a LMP sinaliza para um

processo do (des)fazer os gêneros fixados na inteligibilidade (BUTLER, 2006) que

aprisiona os sujeitos no “ser” homem e mulher e não no “tornar-se” homem e mulher. O

eixo prevenção e educação no documento da Lei desmonta, ou melhor, tenta desmontar

a hierarquia nas relações de gênero rompendo paradigmas sócio históricos de dominação

masculina (BOURDIEU, 2005) e poder. Portanto, é neste eixo que se entende as ações

socioeducativas com objetivo de controlar conduta violenta e discriminatória baseada no

gênero.

O primeiro artigo do Título III – Da Assistência à Mulher em Situação de

Violência Doméstica - do capítulo I do texto da LMP, o artigo 8º, é o primeiro que assinala

princípios socioeducativos da Lei em seus incisos I, II, III, V e VII.

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Art. 8º A política pública que visa coibir a violência doméstica e

familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de

ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de

ações não governamentais, tendo por diretrizes:

I– a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público

e da Defensoria Pública as áreas de segurança pública, assistência

social, saúde, educação, trabalho e habitação;

II – a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras

informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou

etnia, concernentes às causas, às consequências e à frequência da

violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização

de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos

resultados das medidas adotadas;

III – o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e

sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis

estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e

familiar, de acordo com o estabelecido no inciso III do art. 1º, no inciso

IV do 3º e no inciso IV do art. 221 da Constituição Federal

IV – a implementação de atendimento policial especializado para as

mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher;

V – a promoção e a realização de campanhas educativas de

prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas

ao público escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos

instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres;

VI – a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros

instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou

entre estes e entidades não governamentais, tendo por objetivo a

implementação de programas de erradicação da violência doméstica e

familiar contra a mulher;

VII – a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da

Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais

pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às

questões de gênero e de raça ou etnia;

VIII – a promoção de programas educacionais24 que disseminem

valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com

a perspectiva de gênero e de raça ou etnia; IX – o destaque, nos

currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos

relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia

e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher

(BRASIL, 2006).

O artigo 8º da LMP pressupõe um conjunto articulado de ações que reduzam a

violência contra a mulher. Conforme o artigo, é de responsabilidade da União, dos

Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e ações não governamentais medidas

integradas de políticas públicas que visem coibir a violência doméstica, como também,

ações que antecedem a violência. O inciso II do artigo em comento aponta como

prerrogativa fundamental para a prevenção a violência doméstica o desenvolvimento de

24 Grifos da autora.

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estudos, pesquisas, informações, estatísticas com perspectiva de gênero.

Inquestionavelmente, ao evidenciar a perspectiva de gênero, a Lei aponta a violência

doméstica como fruto de uma construção sócio histórica que conferiu ao corpo feminino,

seja fisicamente ou psicologicamente, o lugar das violências. Dessa maneira, o papel

socioeducativo da Lei é colaborar com programas, campanhas, pesquisas, informações

que desnaturalize a violência doméstica como condição primária do homem-

agressor/violento e mulher- agredida/submissa.

Artigo 38º- As estatísticas sobre a violência doméstica e familiar contra

a mulher serão incluídas nas bases de dados dos órgãos oficiais do

Sistema de Justiça e Segurança a fim de subsidiar o sistema nacional de

dados e informações relativo às mulheres (BRASIL, 2006).

O artigo 38° da referida Lei reforça o artigo 8º através do direcionamento de

programas, estudos, pesquisas, em virtude de requisitar uma base de dados do Sistema de

Justiça e Segurança, assim como das Secretarias de Segurança Pública (LIMA, 2011).

Por certo, os artigos mencionados trazem à luz os debates em torno das questões de

gênero, de como pensar e trabalhar as questões de gênero na e com a Lei Maria da Penha.

No mais, sinalizam o debate para a sociedade, não pensando somente a mulher em

situação de violência doméstica, tampouco, o autor da violência, visto que os artigos

mencionados, a partir de suas diretrizes, indicam medidas socioeducativas no combate à

violência, bem como da desconstrução de estereótipos e representação de gênero.

A discussão acerca da violência contra a mulher, acima de tudo, nas relações de

gênero, demanda um debate transdisciplinar, haja vista que para apreender a

multiplicidade do “ser/tornar-se” mulher e homem se faz necessário a articulação de

várias áreas, saúde, ciências humanas, entre outras.

De conformidade com a perspectiva transdisciplinar, todas essas

dimensões devem ser consideradas no conhecimento e na abordagem

da violência contra a mulher, buscando-se definir a diversidade de

situações sem se perder de vista a globalidade do fenômeno e a

singularidade de suas manifestações em cada sujeito que se apresenta

(BIANCHINI, 2011, p. 221).

Concordamos com Alice Bianchini (2011) ao apontar que refletir a violência

doméstica transdiciplinariamente colabora para uma articulação de diversas áreas de

conhecimento para o debate da (des) construção da violência no feminino. Outra

articulação que deve ser levada em consideração é entre os poderes do Estado. Para que

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se tenha uma plena efetividade da Lei se faz necessário que ela funcione em Rede, “é de

importância vital para a melhor condução das políticas públicas de coibição da violência

doméstica e familiar” (BIANCHINI, 2011, 221). Logo, as campanhas educativas na qual

são citadas no artigo 8º da Lei cumpre um papel importante de prevenção a violência

contra a mulher, pois contribui com rompimento dos papéis atribuídos aos homens e

mulheres, uma vez que algo foi construído ele pode certamente ser desconstruído, isto é,

novos “valores”, pensamentos, imagens, discursos podem ser lançados (BIANCHINI,

2011).

Vale destacar que as medidas socioeducativas fazem parte de um conjunto de

recomendações do CEDAW, Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a

Mulher e da Convenção de Belém do Pará, onde foi recomendado para o Brasil uma lei

específica no combate à violência doméstica que contemplasse: Planos de combate à

violência contra a mulher, de longo termo e alcance; Programas de reabilitação e abrigos

temporários; Programas específicos dirigidos a meninos e homens; Campanhas de

tolerância zero – que se exprimam em políticas com inclusão legislativa e criação de um

ambiente no qual a violência não seja mais admitida; entre outras. Outro fator importante

na recomendação das organizações mencionadas é a entrada da temática da discriminação

e da violência contra as mulheres nos currículos escolares e nos meios de comunicação,

assim como arquétipos de formas não violentas de resolução de conflitos, nas áreas de

educação e dos meios de comunicação.

Mais um artigo que elucida o caráter socioeducativo da Lei em análise é o artigo

45º, que diz que:

Art. 45. O art. 152 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de

Execução Penal), passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 152. ...........................................................................

Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o

juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a

programas de recuperação e reeducação25 (NR)”.

O artigo especificado indica a obrigatoriedade do agressor a programas de

reabilitação e reeducação. Ao caracterizar como recuperação, o artigo confere um caráter

de doença para os autores de agressão. Em concordância com Leandro Feitosa Andrade

(2014), pensamos que os homens autores de agressão, violência doméstica, não estão em

recuperação ou reabilitação, dado que não existe nada a recuperar-se, mas a ser

25 Grifos da autora.

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(des)construído. O autor ainda assegura que os agressores não devem ser tratados como

doentes, no mais, deve-se estranhar e interrogar a patologização individualizada da

violência (ANDRADE, 2014), entendendo que estes não são doentes, dessa forma, os

grupos reflexivos não funcionam como tratamento, muito menos como autoajuda,

funcionam como medida socioeducativa, ou ainda como Serviço Para Homens- SPH

(LOPES, 2016).

De acordo com Flávio Urra (2014), a violência cometida contra o feminino não

tem uma origem específica, contudo um modelo violento de masculinidade arquitetado

sócio historicamente e culturalmente nas relações situadas entre homens e mulheres

apresenta-se como um princípio basilar da violência contra as mulheres.

A partir dos Mapas da Violência (WAISELFIZ, 2012; 2015) é possível medir-se

o aumento de assassinatos de mulheres. De acordo com estes, desde 2007, um ano após a

aprovação da Lei Maria da Penha, as percentagens de mulheres mortas por homens vêm

acendendo, e esses assassinatos são cometidos, na sua maioria, por maridos, (ex)maridos,

e (ex) namorados. Em resumo, em uma lista com 83 países, o Brasil ocupa a 5ª posição

dos países com maiores taxas de homicídios de mulheres. As taxas de homicídios

sinalizam que “os mecanismos de punição e repressão têm se mostrado insuficientes na

contenção do crescimento da violência contra as mulheres” (ANDRADE, 2014, p. 174).

Segundo o Mapa da Violência (WAISELFIZ, 2012) entre 1980 e 2010 foram mortas mais

de 91 mil mulheres, o que representou aumento de 217,6% de mulheres vítimas de

assassinatos, destes 40% das mulheres foram assassinadas em suas casas (WAISELFIZ,

2012). Conforme o Mapa da Violência (WAISELFIZ, 2015) somente em 2013, 4.762

mulheres foram mortas, o que representa 13 homicídios de mulheres por dia.

Entre os estados brasileiros, o Rio Grande do Norte, apresenta uma taxa de 6,2%

(79.708) de mulheres agredidas por pessoas que mantém algum vínculo afetivo, ocupando

a 5ª posição no ranking dos 26 estados brasileiros mais o Distrito Federal. Ainda de

acordo com o Mapa da Violência (WAISELFIZ, 2015), apenas cinco estados brasileiros

diminuíram os índices de violência contra as mulheres, Rondônia, Espírito Santo,

Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro, os demais estados às taxas de violência

aumentaram. O Mapa ainda aponta que o RN teve também um acréscimo significativo de

homicídios de mulheres potiguares de 33 mortes em 2003 para 89 mortes em 2013, deste

modo, o Rio Grande do Norte está em conformidade com os números totais do Brasil,

dado que os homicídios contra as mulheres tiveram um aumento de 260%.

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No contexto de violência perpetrada no feminino, principalmente, pelo masculino,

números da violência assinalam a importância dos Serviços Para Homens (LOPES,

2016). Por conseguinte, esses serviços constituem um espaço para os homens refletirem

sobre sua conduta, debaterem os papéis impostos a homens e mulheres evitando

reincidência.

A violência doméstica e familiar contra a mulher possui causa social.

Ela decorre, principalmente, do papel reservado na sociedade às

representantes do sexo feminino. Apesar dos avanços, perduramos

vivendo em uma sociedade marcada por herança de costumes

patriarcais, na qual predominam valores estritamente masculinos, restos

de imposição por condição de poder. Dito de outra forma, a dominação

do gênero feminino pelo masculino é apanágio das relações sociais

patriarcais, que costumam ser marcadas (e garantidas) pelo emprego de

violência física e/ou psíquica. Tal dominação propicia o surgimento de

condições para que o homem sinta-se (e seja) legitimado no controle da

mulher por meio de agressão (BIANCHINI, 2011, p. 231).

Bianchini (2011) assinala a herança da tradição patriarcal como dado que legitima

a violência a partir dos papéis que são atribuídos aos gêneros. Nesse sentido, entendemos

que a autora assinala a importância dos Serviços Para Homens, esses podem ser lidos

através da inclusão nos currículos escolares da perspectiva de gênero sob as relações de

poder, desigualdade entre os gêneros, da própria Lei Maria da Penha com potencialidade

para a coibição da violência doméstica e familiar, pois se passa a instituir valores que

desnaturalize as violências contra gênero feminino. Portanto, é importante sinalizarmos

que para a prevenção da violência contra a mulher é primordial a presença de discussões

sobre violência doméstica, gênero e o alcance da LMP em todos os níveis educacionais,

assim como em todas as fases (infância, adolescência, adulta). Com isso, no percurso de

pensar a educação e reeducação dos homens no que se refere às violências contra a

mulher, o artigo 35º o qual tem como papel da União, o Distrito Federal, os Estados e

Municípios a criação e promoção de competências, os inciso, IV e V do artigo referido

estão em convergências com os artigos analisados nesse tópico.

IV – programas e campanhas de enfrentamento da violência

doméstica e familiar;

V – centros de educação e de reabilitação26 para os agressores.

(BRASIL, 2006)

26 Grifos da autora.

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Em suma, é de competência do Estado investir em centros de educação e

reabilitação para os agressores, bem como de campanhas e programas no combate à

violência contra a mulher em situação de violência doméstica. Pois, como mencionado,

anteriormente, não conferimos o caráter de doença para os autores de violências, mas sim

o caráter socioeducativo, ou seja, a construção de novas masculinidades, a partir da

definição de gênero, “a imposição de medida restritiva de direitos, que leve o agressor a

conscientizar-se de que é indevido seu agir, é a melhor maneira de enfrentar a violência

doméstica” (DIAS apud LIMA, 2011, p. 286). Nesse sentido, o compromisso do Estado

não se limita em punir, mas também operar na prevenção, assistência das mulheres em

situação de violência e reeducação dos autores de violência, bem como da educação no

que diz respeito às relações de gênero.

Portanto, entendemos que é fundamental que seja instrumentalizado a

prerrogativa proposta na Lei de investir sob aparelhos que eduquem os sujeitos aferindo

sobre o processo educativo a problemática de gênero suscitando o caráter de equidade,

ou seja, é importante um processo educativo voltado à infância, de modo que as relações

entre os gêneros sejam construídas, desde sempre, sem elementos de desigualdade,

relação de poder

3.4.PERSPECTIVA PUNITIVA DA LMP

Embora o eixo socioeducativo tenha dimensão basilar no texto da LMP, a mesma

é entendida por muitos como se fosse sinônimo de punição, visto que as medidas punitivas

foram mais propagadas. O teor punitivo da Lei foi utilizado para amedrontar os autores

de violência doméstica e os possíveis autores de agressão. Todavia, não dá para mensurar

se a violência doméstica contra a mulher diminuirá ou aumentará, apesar de os dados do

Mapa da Violência (WAISELFIZ, 2012, 2015) apontarem a crescente taxa de agressão e

assassinatos de mulheres no Brasil. Contudo, não podemos aferir que tal diminuição em

determinados estados brasileiros ou aumento são consequência da implementação da Lei

Maria da Penha. Apresentaremos, neste momento, a perspectiva punitiva por meio dos

três eixos, visto que contêm o caráter punitivo e jurídico da Lei. Abordamos,

primeiramente, os procedimentos policiais e a aplicabilidade, posteriormente,

discorremos sobre as medidas de urgência para as mulheres e os agressores.

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O Título III – Da Assistência à Mulher em Situação de Violência Doméstica e

Familiar – no capítulo III discorre sobre o atendimento pela autoridade policial a partir

do 10º ao 12º artigo e apontam as providências cabíveis que devem ser tomadas pela

autoridade policial através do 13º ao 17º artigo.

Art. 10º Na hipótese da iminência ou da prática de violência doméstica

e familiar contra a mulher, a autoridade policial que tomar

conhecimento da ocorrência adotará, de imediato, as providências

legais cabíveis.

Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput deste artigo ao

descumprimento de medida protetiva de urgência deferida.

Art. 11º No atendimento à mulher em situação de violência doméstica

e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências:

I– garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de

imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário;

II – encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto

Médico Legal;

III – fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo

ou local seguro, quando houver risco de vida;

I V – se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de

seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;

V – informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os

serviços disponíveis.

Art. 12° Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a

mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial

adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles

previstos no Código de Processo Penal:

I – ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a

representação a termo, se apresentada;

II – colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato

e de suas circunstâncias;

III – remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente

apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas

protetivas de urgência;

IV – determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida

e requisitar outros exames periciais necessários;

V – ouvir o agressor e as testemunhas;

VI – ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua

folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de

prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele;

VII – remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao

Ministério Público.

§ 1º O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade policial

e deverá conter:

I – qualificação da ofendida e do agressor;

II – nome e idade dos dependentes;

III – descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela

ofendida.

§ 2º A autoridade policial deverá anexar ao documento referido no § 1º

o boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em

posse da ofendida.

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§ 3º Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários

médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde (BRASIL, 2006).

Os artigos referidos aludem as atitudes e ações do atendimento pela autoridade

policial. Porém, para que estes cumpram determinadas ações se faz necessário a

capacitação dos mesmos para o atendimento da mulher em situação de violência

doméstica. Segundo Adilson José Paulo Barbosa e Léia Tatiana Foscarini (2011), a

ausência de capacitação para entender a violência doméstica, fez com que muitos

delegados solicitassem à mulher agredida que entregasse ao autor da violência a

intimação, embora o artigo 21º da Lei expresse em parágrafo único que “a ofendida não

poderá entregar intimação ou notificação ao agressor” (BRASIL, 2006). No mais, os

artigos referidos convergem com os incisos IV e VII do 8º artigo da Lei em diálogo, no

qual direciona a implementação de atendimento pericial especializado para as mulheres,

sobretudo, nas DEAM’s e capacitação constante no que refere-se as questões referentes

a gênero, raça ou etnia das autoridades policiais e profissionais que atenderão mulheres

que sofreram violência doméstica.

Em novembro de 2017 o Governo Federal sancionou a lei 13.505 que prevê para

a mulher em situação de violência doméstica e familiar o atendimento policial e pericial

especializado e prestado, preferencialmente, por mulheres. Acrescentou-se na Lei

11.340/06, em seus artigos 10º e 12º, o subitem A (10º-A e 12º- A). Os subitens indicam

que o inquérito da mulher em ocorrência de violência doméstica tem que garantir a

integridade física, psíquica e emocional, bem como que essas, familiares ou testemunhas

não tenham contato com os agressores em investigação e, principalmente, revitimização.

Outrossim, a Lei indica que a formulação de políticas e planos de atendimento às

mulheres em caso de violência doméstica e familiar, darão prioridade, no âmbito da

Polícia Civil, à criação de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, de

Núcleos Investigativos de Feminicídio e de equipes especializadas para o atendimento e

a investigação das violências graves contra a mulher. A alteração, ou melhor, inclusão

desses subitens na Lei apontam e reforçam o não cumprimento do acolhimento destas

determinações pela autoridade policial. A revitimização aparece com teor sexista e

machista durante o atendimento em delegacias, hospitais e instituições públicas de uma

maneira geral27.

27Clara Averbuck no blog “Lugar de Mulher”, relata a ineficiência da Delegacia da Mulher, descreve o

caminho percorrido para fazer um boletim de ocorrência (B.O).

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O relato que apresentamos a seguir evidencia o despreparo e a urgência dos

subitens mencionados anteriormente.

Quando eu sentei de frente com essa escrivã a primeira coisa que ela

me disse foi:

– Vai fazer mesmo isso? Porque eu não tô aqui pra perder meu tempo e

depois você não levar isso adiante!”

Sim, eu vou!

– Fala isso agora, depois volta com o namoradinho igual todas as outras

que vem aqui e eu que fico aqui escrevendo pra nada.

– Não, não pretendo voltar com ele. Ele tentou me matar, me deu um

soco na cara e enquanto eu jorrava sangue me jogou no chão, chutou e

apertou meu pescoço.

– É, mas você nem tá com nenhuma marca muito grande, só esse olho

roxo, isso nem vai dar nada pra ele.

Tá, mas que eu faço…

– Pensa bem se quer fazer esse BO, porque além de depois se

arrepender, desistir, voltar com ele, vai ter que ir fazer exame de corpo

de delito e tudo mais, e só com esse olho roxo aí o juiz nem vai fazer

nada com ele, porque não é nem agressão grave.

– Ele tentou me matar! Se eu não fiquei mais marcada foi sorte, ele

continua me ameaçando, eu preciso fazer alguma coisa!

– Eu vou fazer esse seu BO, mas tenho certeza que você não vai levar

isso pra frente e se levar só com essa marquinha no olho, não vai dar

em nada, já te aviso!

Um pouco depois ela me passou pra outra escrivã. Essa policial,

conversando comigo, vendo meu nervoso e tendo ouvido como a outra

havia me tratado, pediu desculpa e disse que estava a somente dois

meses na PM e se sentia decepcionada e envergonhada com as coisas

que ela andava vendo. No final, depois de fazer exame de corpo de

delito, ser chamada várias vezes na delegacia pra dar depoimento, levar

testemunhas, não deu em nada mesmo, porque quando ele finalmente

foi chamado me ligou 10 minutos depois de entrar na delegacia rindo e

disse:

– Sabe como foi? A delegada me perguntou se eu bati em você, eu disse

que sim ela falou pra eu não fazer mais isso e me liberou!28 (A

INEFECIÊNCIA ... 2015).

Como dito anteriormente, a citação acima mostra-nos a ineficiência dos agentes,

desmonta o papel dos artigos 10º, 11º e 12º, mas acima de tudo, os incisos IV e VII do

artigo 8º da Lei, pois elucida a ausência do preparo no atendimento à mulher em situação

de violência doméstica. Além disso, o texto acima aponta que a violência contra a mulher

não é deferida apenas por homens. Para tanto, o machismo, sexismo e discriminação são

construtos sociais que são reverberados na sociedade independentemente do gênero. A

28 Ver: http://lugardemulher.com.br/a-ineficiencia-da-delegacia-da-mulher-parte-ii/

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figura da escrivã referenciada na citação representa o descaso, despreparo e deboche a

mulher que procura assegurar juridicamente pelos seus direitos, e mais, uma segunda

violência a estas. Apesar dos artigos 11º e 12º estabelecerem as providencias na garantia

de bem estar da mulher que sofreu agressão e de seus familiares, bem como que a

autoridade policial deve de imediato ouvir, lavrar a ocorrência e tomar a representação do

termo, entendemos que não há uma efetividade na capacitação desses agentes ou ainda se

há está não parece-nos constante. Em outras palavras, entendemos que a medida jurídica

não pode ser dissociada das medidas socioeducativas, deste modo, os agentes que

recebem as mulheres em situação de violência doméstica devem ser preparados como

assinala os incisos IV e VII do artigo 8º para o acolhimento dessas mulheres sem diferir

qualquer ação discriminatória, ou seja, é fundamental o entendimento das relações de

gênero e desigualdade entre os gêneros para não inferir e afastar as mulheres que buscam

ajuda.

No que diz respeito aos procedimentos que cabem à autoridade, o Título IV

divide-se em quatro capítulos. O primeiro apresenta as Disposições Gerais (artigos 13º,

14º, 15º 16º e 17º), o capítulo II as Medidas Protetivas de Urgência (três seções, artigos

18º ao 24º), o capítulo III discorre sobre a atuação do Ministério Público (artigos 25º e

26º), por fim o capítulo IV apresenta a Assistência Jurídica (artigos 27º e 28º).

Art. 13º Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e

criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar

contra a mulher aplicar- se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal

e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao

adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta

Lei.

Art. 14º Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a

Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal,

poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e

pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas

decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a

mulher.

Parágrafo único. Os atos processuais poderão realizar- se em horário

noturno, conforme dispuserem as normas de organização judiciária.

Art. 15º É competente, por opção da ofendida, para os processos cíveis

regidos por esta Lei, o Juizado:

I - do seu domicílio ou de sua residência;

II - do lugar do fato em que se baseou a demanda;

III - do domicílio do agressor.

Art. 16º Nas ações penais públicas condicionadas à representação da

ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à

representação perante o juiz, em audiência especialmente designada

com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o

Ministério Público.

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Art. 17º É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e

familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação

pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento

isolado de multa (BRASIL, 2006).

Os artigos acima fazem referência à aplicação subsidiária do Código de Processo

Penal e Código de Processo Civil, da competência cível dos juizados especializados, da

renúncia a representação na presença do juiz, como também à proibição de aplicação de

pena por pagamento de multas ou cestas básicas. Os artigos apresentam os procedimentos

voltados aos aparelhos estatais incumbidos pela persecução do crime de violência

doméstica e familiar. Os artigos 16º e 17º apontam o caráter inovador da Lei, no qual

respectivamente, sinalizam como mecanismo inclusão da medida de urgência e a exclusão

da lei 9.099/95 como política de enfrentamento à violência doméstica. Antes da Lei Maria

da Penha, a violência contra a mulher no âmbito doméstico era compreendida como um

crime de menor potencial ofensivo. Dessa maneira, a pena era alicerçada na lei 9.099/95,

sugeria para o autor de violência contra a mulher uma pena branda com pagamento de

cestas básicas e multa, bem como conciliação. Os crimes/agressões cometidos contra as

mulheres eram julgados nos Juizados Especiais Criminais (JECrim), se fosse considerado

crime eram julgados na Varas Criminais comuns e os crimes contra a vida no Tribunal do

Júri.

A LMP rompe com esse caráter despenalizador do autor da violência doméstica

conferindo a essa um elevado potencial ofensivo com medidas de prevenção, proteção e

punição. De acordo com a Lei deve ser criados Juizados Especiais de Violência

Doméstica contra a Mulher, o artigo 14° indica a criação desses com competência cível e

criminal. O artigo 16° alude que uma vez dada a “queixa” não se pode mais retirá-la, só

poderá desistir do processo em audiência específica. Tal artigo nos faz refletir que essa

medida anula de certa forma o homem que tenta de várias maneiras, diga-se de modo

violento, fazer com que a mulher retire a denúncia. No entanto, esta só pode ser arquivada

em casos de ameaça.

Dessa forma, a LMP dificultou a renúncia das vítimas (art. 16),

estabeleceu e sistematizou medidas protetivas a serem aplicadas pela

vara especializada (arts. 18 a 24), permitiu a prisão em flagrante em

todos os crimes ao revogar a Lei 9099/95, e admitiu a prisão preventiva

até para crimes punidos com detenção (art. 42) (LIMA, 2011, p. 272).

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Conforme Lima (2011), a LMP afastou a violência doméstica do lugar dos crimes

de pequeno grau. Isto é, com esta Lei houve uma ruptura do lugar da violência, da

inconstitucionalidade dos sistemas e legislações anteriores que apoiavam-se na omissão

do Estado, e consequentemente na jurisprudência brasileira, notoriamente

“discriminatório e prejudicial ao gênero feminino porque desconsiderava as

peculiaridades desse tipo de violência, bem como os tratados internacionais que regiam

a matéria” (LIMA, 2011, p. 272), ou seja, legitimavam a violência doméstica.

Não é exagero dizer que a Lei Maria da Penha foi criada justamente

para combater a jurisprudência que permitia ao marido bater

impunemente na mulher em nome da “harmonia familiar”, bem como a

Lei 9099/95 que, oficializando aquela jurisprudência, optou pela não

intervenção estatal nestas causas, propondo às vítimas que se

reconciliassem com os ofensores em nome da tal “harmonia familiar”

(LIMA, 2011, p. 265/266).

Concordamos com o autor ao afirmar que a Lei surge para combater a

jurisprudência brasileira, mas acima de tudo, a omissão do Estado brasileiro no que diz

respeito à violência doméstica e familiar. No entanto, ressaltamos a obrigatoriedade do

Brasil a conceder tal Lei. Nesse sentido, as medidas sinalizadas pela Lei seja no âmbito

penal ou socioeducativo são medidas que foram acionadas de acordo com medidas

pautadas nas políticas de enfrentamento a violência contra a mulher.

O capítulo II do Título IV, o qual o texto da Lei faz referência, diz respeito as

medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor e medidas protetivas de urgência

a ofendida. As disposições gerais deste alude ao prazo, a autoridade competente, as

formas de concessão, bem como as formas de aplicação das medidas protetivas de

urgência.

Art. 18º Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao

juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:

I - conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas

protetivas de urgência;

II - determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência

judiciária, quando for o caso;

III - comunicar ao Ministério Público para que adote as providências

cabíveis.

Art. 19º As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo

juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida.

§ 1o As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de

imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação

do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado.

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§ 2o As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou

cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por

outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei

forem ameaçados ou violados.

§ 3o Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido

da ofendida, conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever

aquelas já concedidas, se entender necessário à proteção da ofendida,

de seus familiares e de seu patrimônio, ouvido o Ministério Público.

Art. 20º Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução

criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de

ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação

da autoridade policial.

Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no

curso do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem

como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.

Art. 21º A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos

ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da

prisão, sem prejuízo da intimação do advogado constituído ou do

defensor público.

Parágrafo único. A ofendida não poderá entregar intimação ou

notificação ao agressor (BRASIL, 2006).

O escopo das medidas, assim como a Lei Maria da Penha, está em consonância

com os princípios e ordenamento com os Tratados Internacionais de proteção aos direitos

humanos voltados para o enfrentamento e eliminação das violências contra as mulheres,

“os referidos tratados relacionam-se à proteção de direitos de indivíduos integrantes de

segmentos que demandam política de reconhecimento, em grande medida associada à

redistribuição” (LAVIGNE, PERLINGEIRO, 2011.p, 290). Nesse sentido, Rosane

Lavigne e Cecília Perlingeiro (2011) assinalam que é importante identificar o papel social

e de condição de cada indivíduo para que assim as reivindicações por reconhecimento

sejam também por justiça. Isto é, para que a LMP seja aplicada em plenitude se faz

necessário que os envolvidos saibam minimamente a condição de subalternidade e

vulnerabilidade que se encontra a mulher em situação de violência doméstica. Ou melhor,

para que a reivindicação por reconhecimento seja também por reconhecimento de justiça

é importante que a mulher que procura a justiça (DEAM’s, Ministério Público, entre

outros) sejam acolhida e não afastada do lugar que deve assegurar a vida da denunciante.

Desse modo, entendemos que a aplicação da Lei constitui-se um desafio, apesar de

mostrar-se as inúmeras possibilidades desta como dispositivo no combate à violência

doméstica, encontra no Poder Judiciário alguns limites pela posição central que este

“ocupa no referido sistema, com vistas a levá-lo a uma atuação marcada pela eficiência

ética e pela aplicabilidade dos direitos da mulher segundo os valores neles subjacentes”

(LAVIGNE, PERLINGEIRO, 2011.p, 291). Para se ter uma eficiência ética, é necessário

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que a ineficiência nesse sistema seja “combatida”, como afirmado anteriormente (in)

eficiência começa nos primeiros passos das denunciantes ao registrarem o boletim de

ocorrência.

Chegando na Deam da Avenida Visconde do Rio Branco, próximo à

Praça Tiradentes, nos deparamos com a primeira barreira: a delegacia

estava trancada. Tocamos a campainha duas vezes e algum tempo

depois fomos recebidas por dois agentes – um homem e uma mulher.

Perguntaram o que havia ocorrido e minha amiga explicou. Pedi, então,

para registramos a ocorrência. Mais um entrave.

– Vocês trouxeram o laudo médico?, questionou o homem.

– Ainda não fizemos o exame de corpo de delito, respondi por ela.

– Não estou falando do corpo de delito. Vocês não foram à

emergência?, devolveu o agente, com ar de quem achava que

deveríamos saber de cór o procedimento.

– Vocês precisam ir à emergência primeiro. Só depois posso fazer a

ocorrência, explicou.

– Não dá para fazer o registro e depois a gente vai ao hospital?, insisti.

– Não, e encerrou (CRÔNICA29..., 2017).

O texto acima aponta os limites da Lei que inicia-se, primeiramente, nas

delegacias e termina no Poder Judiciário. O relato da citação assinala a negação dos

incisos I e IV do artigo 12. Desse modo, mostra que os procedimentos cabíveis a mulher

agredida pelo seu (ex) companheiro (a), pai ou filho esbarra no percurso do atendimento

a essas mulheres. Desta forma, questionamos quantas mulheres podem ter recuado a

denúncia, visto que não foram acolhidas, logo não tiveram a oportunidade de obter as

medidas protetivas de urgência. Retomo aqui o que já tinha apontado anteriormente ao

discorrer sobre o artigo 12º, compreendendo que o relato indica, além do despreparo ao

atendimento da mulher em situação de violência doméstica, o não prosseguimento da

denúncia. Lavigne e Perlingeiro (2011) em diálogo com Carmen Hein Campos assinalam

que os juristas desconheciam o esforço da mulher agredida para romper com uma relação

violenta, em concordância com as autoras acrescentamos os profissionais que antecedem

o trabalho dos juristas, delegados(as), policiais, escrivã(ão)s, médicos.

No hospital, éramos às únicas na sala da emergência, mas mesmo assim

o médico que a atendeu demorou quase uma hora para nos entregar o

tal laudo exigido pela delegacia.

Questionado pela demora, ele disse que precisava esperar a paciente se

acalmar – ele havia lhe dado Rivotril. E num tom mais baixo, deixou

escapar seu pensamento: “ela não vai denunciar”. Mas ela foi.

Voltamos à delegacia e finalmente minha amiga foi atendida.

29Ver:http://justificando.cartacapital.com.br/2017/12/07/cronica-o-desamparo-sentido-pelas-mulheres-

vitimas-da-violencia-e-real-e-letal/

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Mas a sensação de acolhimento não durou muito. Enquanto prestava

depoimento, o marido chegou querendo “dar a sua versão”. O escrivão

abriu a porta e explicou que ele não poderia falar naquele momento e

que seria notificado. Contudo, não mandou que fosse embora

(CRÔNICA..., 2017).

Lavigne e Perlingeiro (2011) acionam Carmen Campos para exemplificar que as

acusações nas delegacias fazem parte da ruptura da violência doméstica. Sendo assim,

ignorar a mulher que está solicitando judicialmente amparo é negar uma vida de amparo

legal, ou seja, segurança. Como declarado anteriormente, as medidas protetivas de

urgência que obrigam o agressor e medidas protetivas de urgência a ofendida só serão de

fato medidas protetivas se houver a denúncia. Dessa forma, é fundamental que os

organismos que atendem à mulher em seu tratamento jurídico a acolha. Ratificamos que

é da competência da autoridade policial prender o agressor em flagrante sempre que

houver qualquer das formas de violência doméstica contra a mulher, registrar o boletim

de ocorrência e instaurar o inquérito policial, assim como enviar o inquérito policial ao

Ministério Público com a possibilidade de solicitar ao juiz, em quarenta e oito horas, que

seja conferida medidas protetivas de urgência para a mulher em situação de violência e

solicitar ao juiz a requisição da prisão preventiva. No processo judicial, o juiz pode

consentir as medidas protetivas de urgência, ao Ministério Público cabe apresentar a

denúncia ao juiz e propor penas de três meses a três anos de detenção.

Os artigos 18° ao 24º30 apresentam os procedimentos que segundo a Lei referida

devem certificar a proteção contra o risco imediato, ou seja, a integridade pessoal da

mulher e seus familiares. Conforme Lavigne e Perlingeiro (2011), os artigos em

referência aludem a importância da atuação do magistrado, deste modo, requer a estes

uma interpretação ou conhecimento das questões de gênero.

A busca da solução mais acertada ao caso concreto exige do julgador,

ademais do estudo das questões de gênero e dos direitos da mulher,

conhecimento de práticas desenvolvidas em outros países destinadas ao

enfrentamento dessa singular violência que vitimiza/atinge o segmento

feminino da população mundial (LAVIGNE, PERLINGEIRO, 2011, p.

294).

30 Os artigos 18° ao 24° são reforçados pelo artigo 42°, já que este sinaliza a execução das medidas

protetivas de urgência. Art. 42º O art. 313 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de

Processo Penal), IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei

específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência” (NR) (BRASIL, 2006).

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As autoras chamam atenção para práticas e leis desenvolvidas em outros países,

entendem que o conhecimento das práticas e leis podem corroborar na decisão do

julgador, principalmente, no que se refere à palavra da mulher em situação de violência

doméstica, uma vez que a violência, em grande parte, acontece sem testemunhas, sendo

assim, ao dar entrada a solicitação de medidas protetivas, a palavra da mulher em situação

de violência doméstica, “com suas marcas visíveis e invisíveis relata, via de regra,

anamnese até então oculta, na qual finca raiz a violência geradora do pedido de amparo

e tutela”(LAVIGNE, PERLINGEIRO, 2011, p. 297).

[...] do constrangimento e da humilhação ao longo do inquérito policial

e do processo penal que vasculha a moralidade da vítima (para ver se é

ou não uma vítima apropriada), sua resistência (para ver se é ou não

uma vítima inocente), reticente a condenar somente pelo exclusivo

testemunho da mulher (dúvidas acerca da sua credibilidade)

(ANDRADE apud LAVIGN, PERLINGEIRO, 2011, p. 297).

Lavigne e Perlingeiro (2011), citando Vera Andrade, chamam atenção para a

posição da mulher agredida, o constrangimento e humilhação no decorrer do processo das

medidas protetivas de urgência. De acordo com as autoras, desqualificar o depoimento

sugere desamparar a denunciante e contribui para a ausência de efetividade dos

mecanismos conquistados. Reiteramos que a desqualificação e menosprezo à mulher em

circunstância de violência doméstica, em grande parte, inicia-se nas DEAMs, e por

consequência, a violência que aconteceu no âmbito doméstico estende-se para o público

no discurso dos “agentes/operadores da Lei” que depreciam a situação da mulher agredida

podendo fazê-la desistir do processo, ou ainda, iniciar o processo/denúncia, já que não

sentiu-se assegurada por estes. Desse modo, entendemos a falta de capacitação dos

agentes/operadores da Lei como uma “negação” as medidas protetivas de urgência, assim

como legitimadores da violência.

Pouco se sabe sobre o caso. M. e F. foram casados por cinco anos e

estavam separados há aproximadamente 1 ano. O rapaz não se

conformava com a separação, tendo já feito várias ameaças contra a

vida de M. Em 2009 F. havia lançado uma bomba contra o portão do

salão de M. Outra ameaça teria ficado registrada na caixa postal do

celular de M. Temerosa de que as intenções de seu ex-companheiro se

concretizassem, por oito vezes ela registrou ocorrência nas

delegacias de polícia de Belo Horizonte, sendo que quatro dessas

ocorrências foram registradas na Delegacia da Mulher31. De acordo

com notícias veiculadas na imprensa, num desses registros foi solicitada

31 Grifos da autora

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113

a suspensão do porte de armas. Em outra medida, foi concedida a

proibição de aproximação e F. não poderia se aproximar da ex-mulher,

devendo respeitar a distância de 200 metros. Ambas são medidas

protetivas previstas na Lei Maria da Penha. Na tentativa de inibir o

comportamento violento do ex-companheiro, M. havia instalado em seu

salão a câmera de circuito interno, cujo filme agora servirá de prova

contra o assassino. M. não era uma vítima passiva dos acontecimentos,

sabia que corria risco de morte e vinha procurando se proteger. Como

outras tantas mulheres fazem diariamente em todo o país, procurou

ajuda institucional, e através do registro policial esperava que o estado

protegesse sua vida e seu direito a viver sem violência. Ela não foi

passiva diante das ameaças do ex-companheiro, mas foi vítima da

inércia do estado que ainda não parece ter acordado para a gravidade da

violência que se pratica contra mulheres em todo o país. (PASINATO,

2010, p.217/218)

E ainda:

[...] pode-se mencionar o conteúdo do relato circunstanciado, que

muitas vezes não fornece ao juiz elementos suficientes para decidir

sobre a necessidade das medidas e nem mesmo sobre sua adequação. O

caso de M. tem elementos que ilustram essa dificuldade. A medida

protetiva que lhe foi concedida pela justiça determinava que F., seu

agressor, mantivesse uma distância de 200 metros da vítima. O que o

Judiciário e a polícia pareciam desconhecer é que os dois eram

vizinhos e a borracharia onde F. trabalhava estava situada a menos de

50 metros do salão de M. Informações como essas parecem

elementares demais, mas devem ser entendidas como essenciais pela

polícia e pela Justiça, evitando que sejam deferidas medidas que não

são adequadas à realidade vivida por aquela mulher. (PASINATO,

2010, p.217/218)

Pasinato (2010) sinaliza os limites das medidas protetivas de urgência, sobretudo,

aponta a ineficácia das medidas protetivas quando não há uma investigação de quem é o

autor da agressão e a agredida, isto é, na dimensão de elementos para a aplicação de uma

medida protetiva que de fato proteja a mulher em situação de violência doméstica. Ao

expor o caso de M., a qual registrou “oito” boletins de ocorrência contra o seu ex-

companheiro, Pasinato (2011) descreve uma mulher que conhece os seus diretos e sabe

onde recorrer. M. é uma mulher que sabia do papel do Estado, conhecia a Lei Maria da

Penha, desse modo, ao recorrer “oito” vezes à delegacia, ela não desistiu de si mesma,

lutava por sua vida, porém parece-nos que já sabia qual seria o fim, a morte. A ida de M

“oito” vezes à delegacia foi um pedido de socorro. Assim, concordamos com a autora a

afirmar que M. não era uma mulher passiva diante das violências sofridas, buscou ajuda

institucional para viver uma vida sem violência, mas foi vítima da apatia, desinteresse e

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114

indiferença do Estado quando o assunto é violência contra a mulher (PASINATO, 2011).

Outrossim, o Ministério Público pareceu-nos omisso a situação de M., apesar de aplicar

o inciso I do artigo 22 da LMP, que suspende a posse ou restrição do porte de arma e o

inciso III do mesmo artigo que proíbe a aproximação e contato com a ofendida, não tomou

conhecimento que M. e F. eram vizinhos. Logo, a distância de 200 metros imposta a F.

tornou-se uma distância de 50 metros. Compreendemos que cabe ao Ministério Público

“exercer postura mais ativa como defensor da legalidade e fiscalizar a observância

integral da Lei Maria da Penha, a começar pela eficácia das medidas protetivas”

(LAVIGNE, PERLINGEIRO, 2011, p. 298).

O que chama a atenção sobre o caso de M. foi ele desnudar para todo o

país, os problemas que estão sendo enfrentados pelas mulheres que

buscam a proteção da polícia e da justiça no exercício de seus direitos.

Em particular, aqueles direitos que estão assegurados na Lei Maria da

Penha (PASINATO, 2010, p.218).

Pasinato (2010) chama atenção para casos como o de M. revelar obstáculos da

proteção da justiça e da polícia, especialmente, nos direitos garantidos na LMP. As

medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor (artigo 22º) e as medidas de

urgência a ofendida (artigos 23º e 24º) que se ancoram no segundo eixo da LMP, proteção

e assistência, aparecem-nos como dispositivos que deveriam instituir um olhar mais

atento para serem deferidas medidas que sejam adequadas à realidade vivida por cada

mulher. Isto é, medidas que garantam a integridade física, psicológica e dos direitos da

mulher.

Art. 22° Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra

a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao

agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas

protetivas de urgência, entre outras:

I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com

comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22

de dezembro de 2003;

II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a

ofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida32, de seus familiares e das testemunhas,

fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer

meio de comunicação;

IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida

a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

32 Grifos da autora.

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115

V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

§ 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de

outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da

ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser

comunicada ao Ministério Público.

§ 2o Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor

nas condições mencionadas no caput e incisos do art. 6o da Lei no

10.826, de 22 de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo

órgão, corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência

concedidas e determinará a restrição do porte de armas, ficando o

superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da

determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação

ou de desobediência, conforme o caso.

§ 3o Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência,

poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial.

§ 4o Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o

disposto no caput e nos §§ 5o e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de

janeiro de 1973 (Código de Processo Civil) (BRASIL, 2006).

Vimos a partir de Pasinato (2010) que as medidas acima foram aplicadas no caso

de M., porém não foram suficientes para cessar e protegê-la da violência do ex-

companheiro33. Como dito anteriormente, as medidas tomadas nesse caso e tantos outros

não levam em consideração informações (onde mora o autor da violência, ou ainda onde

este vai morar após a concessão da medida protetiva, isto é, a distância para evitar o

contato da ofendida com o autor da violência e/ou possíveis violências) as quais

entendemos como preliminares na decisão da medida protetiva. Para Juliana Garcia

Belloque (2011), a medida protetiva que afasta o autor da agressão do lar suscita,

aparentemente, segurança à mulher agredida e os demais familiares. Concordamos com

a autora ao utilizar o termo “aparentemente”, entretanto, o afastamento do lar não

assegura a preservação física e psicológica da mulher em situação de violência doméstica.

Destacamos que vários casos de violência com morte aconteceram quando não ouve esse

risco iminente de agressão. O agressor não estar dentro de casa não significa uma vida

sem violência. O que pode ser agregado a essa medida de urgência ao autor de agressão

é a fiscalização/controle das medidas de urgência.

Das medidas protetivas à ofendida:

Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras

medidas:

I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou

comunitário de proteção ou de atendimento;

33 Veremos no capítulo posterior alguns casos de mulheres no Rio Grande do Norte que fizeram denúncias

e tinham medidas protetivas, mas foram mortas pelos seus (ex) companheiros. Apresentaremos quando a

violência sem sangue e com sangue transforma-se em violência com morte.

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II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao

respectivo domicílio, após afastamento do agressor;

III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos

direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;

IV - determinar a separação de corpos.

Art. 24º Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou

daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar,

liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:

I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à

ofendida;

II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de

compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa

autorização judicial;

III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;

IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por

perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica

e familiar contra a ofendida.

Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os

fins previstos nos incisos II e III deste artigo (BRASIL, 2006).

As medidas protetivas de urgência à ofendida têm um caráter tanto de proteção

quanto de assistência. O inciso I do artigo 23º tenciona fatores (dependência econômica,

recursos materiais) que dificultam as mulheres em situação de violência denunciarem

seus companheiros(as).

As medidas de proteção também carecem de um olhar atento sobre elas.

Sem políticas sociais focadas na promoção dos direitos das mulheres e

programas de assistência que tenham como objetivo o fortalecimento

das mulheres para o exercício da cidadania, as respostas possíveis

limitam-se ao assistencialismo imediatista da cesta básica ou da

inclusão em programas sociais que visam a manutenção e o sustento da

família (PASINATO, 2010, p, 231).

A autora assinala um olhar para as medidas de urgência que são direcionadas as

mulheres entendendo que estas podem conferir um caráter assistencialista. Assim sendo,

evocamos o artigo 9ª da lei em comento para apresentar mais um artigo que tem o viés

assistencialista e suas diretrizes vão de encontro com o artigo 23º.

Art. 9º A assistência à mulher em situação de violência doméstica e

familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as

diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema

Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras

normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando

for o caso.

§ 1º O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em

situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas

assistenciais do governo federal, estadual e municipal.

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117

§ 2º O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e

familiar, para preservar sua integridade física e psicológica:

I– acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da

administração direta ou indireta;

II – manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o

afastamento do local de trabalho, por até seis meses.

§ 3º A assistência à mulher em situação de violência doméstica e

familiar compreenderá o acesso aos benefícios decorrentes do

desenvolvimento científico e tecnológico, incluindo os serviços de

contracepção de emergência, a profilaxia das Doenças Sexualmente

Transmissíveis (DST) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

(AIDS) e outros procedimentos médicos necessários e cabíveis nos

casos de violência sexual (BRASIL, 2006).

O artigo mencionado acima indica a articulação do conteúdo de assistência para

as mulheres. Para Ela Wiecko de Castilho (2011), esta articulação pode ser compreendido

a partir de três grupos: políticas públicas de proteção, proteção no trabalho e proteção na

saúde. A autora determina que de acordo com a perspectiva do controle e/ou

gerenciamento das “normas, essas são dirigidas, em sua maior parte, aos agentes da

administração pública dos três níveis de governo, na área da saúde, da assistência social

e da segurança pública” (CASTILHOS, 2011, p. 235).

O 2º Tribunal de Júri de Natal condenou Marcos Antônio Izaias de

Macedo a 16 anos de reclusão pela morte de sua ex-mulher Alexsandra

Moreira da Silva. A sentença foi proferida pelo juiz Geomar Brito

Medeiros, que presidiu a sessão do júri popular realizada nesta segunda-

feira (23), no Fórum Miguel Seabra Fagundes.O réu estava detido na

Cadeia Pública de Natal desde o homicídio, ocorrido em dezembro de

2014. Ele foi condenado pelo crime de homicídio triplamente

qualificado por motivo torpe, utilização de meio cruel, e meio que

dificultou a defesa da vítima. Segundo os autos, os casos de agressão a

Alexsandra eram frequentes durante todo o relacionamento que

começou quando a vítima tinha 13 anos. Alexsandra já possuía medida

protetiva contra o ex-marido, fazia tratamento psicológico pelas

agressões e foi acolhida em casa abrigo (JÚRI POPULAR...34, 2015).

O texto alude para mais uma morte de mulher sob medida protetiva, apontando às

limitações de tais medidas, como já mencionado, as medidas são ferramentas de

prevenção da violência, no entanto não há um controle e fiscalização da mesma. A

promotora do caso, Dra. Érica Canuto, ressaltou que a morte da Alexssandra35 “é mais

34 Ver: Tribunal da Justiça do Rio Grande do Norte.

http://www.tjrn.jus.br/index.php/comunicacao/noticias/9759-juri-popular-condena-acusado-de-matar-ex-

mulher-a-16-anos-de-reclusao 35Conforme o Portal do Judiciário, Alexsandra Moreira da Silva foi morta com 21 facadas dentro de um

ônibus quando estava indo para o trabalho, no dia 18 de dezembro de 2014. O acusado pediu parada no

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um processo que leva à morte uma mulher pelo fato de ser mulher. Enquanto esse

pensamento perdurar, vamos ter muitos casos de feminicídio” (JÚRI POPULAR...,

2015). Outrossim, a promotora enfatizou a importância de respeitar o direito da mulher e

abominar o pensamento machista e dominador, como o que o marido da Alexssandra

possuía.

Diante do exposto destacamos que é de ordem direta a inclusão das mulheres em

situação de violência doméstica e familiar em programas assistenciais. Por exemplo, no

que diz respeito ao governo, cabe a este a criação de centros de Referência, da mesma

forma, desempenhar a função integradora das instituições governamentais e não

governamentais que constitui a Rede de Atendimento: Casas-Abrigo, Delegacias

Especializadas de Atendimento à Mulher, Defensorias da Mulher, Juizados de Violência

Doméstica e Familiar contra a Mulher, Atendimento à Mulher-Ligue 180, Ouvidorias,

Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), Centros de Referência

Especializado de Assistência Social (CREAS) e Centros de Educação e Reabilitação do

Agressor (CASTILHO, 2011). Ressaltamos que a ação articulada entre os serviços

mencionados pode configurar-se como a base do sistema protetivo o qual se insere as

Medidas Protetivas de Urgência.

O § 2º do art. 9º prevê dois instrumentos para reforçar as medidas

protetivas à mulher. Se necessário, por exemplo, conforme o art. 23,

afastar a ofendida do lar e encaminhá-la a programa oficial de proteção

de vítimas ou a casa-abrigo, o exercício da função pública em outro

local, pelo acesso prioritário à remoção, ou a manutenção do vínculo

empregatício por prazo determinado podem ser indispensáveis para dar

condições à mulher de retomar sua vida (CASTILHO, 2011, p. 241).

No entendimento da autora, as medidas do artigo 9º instrumentalizam a condição

da mulher em situação de violência doméstica o retorno à sua vida, o acesso a remoção e

a manutenção do vínculo trabalhista, conforme Castilho (2011), o artigo tem por intenção

assegurar a “existência” das mulheres em situação de violência, por meio de resguarde da

vida em casa abrigo, além de prever mecanismos para reforçar as medidas protetivas.

Dados do Conselho Nacional de Justiça – CNJ mostram que as medidas

protetivas de urgência constituem o procedimento mais aplicado pelos

Juizados especializados, representando cerca de 60% da atuação dos

mesmos. Desde 2006, ano de início de vigência da lei, até o ano de 2010

foram deferidas 96.098 medidas protetivas contra 11.659 prisões

bairro de Felipe Camarão e ao entrar no coletivo, atacou a ex-mulher. Alexsandra faleceu a caminho do

hospital.

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deferidas, ou seja, existe uma relação média de 1 prisão para cada 8

medidas protetivas deferidas. A prática tem confirmado que as medidas

protetivas são uma mostra evidente de que o tratamento prioritário que

se pretende dar aos direitos humanos das mulheres na pauta estatal não

está em desalinho com o esforço de contenção do poder punitivo. A

utilização criteriosa e adequada das medidas protetivas pode conferir às

mulheres a proteção necessária e o desencarceramento desejado pelas

orientações garantistas. Desta forma, a despenalização e a

descriminalização de condutas devem ser o parâmetro norteador da

política criminal (LAVIGNE; PERLINGEIRO, 2011, p. 293).

As autoras apresentam as medidas protetivas de urgência como o procedimento

mais aplicado pelos Juizados Especializados, segundo dados do Conselho Nacional de

Justiça. Entretanto, juridicamente a aplicabilidade das medidas protetivas de urgência

apresenta limitações, dado o retardamento do consentimento da medida, o não

acompanhamento da verificação da mesma por parte da polícia, deixando as mulheres

suscetíveis ao agressor, que por muitas vezes não teme diante da circunstância. Nesse

sentido, Érica Canuto36, coordenadora do Núcleo de Apoio à Mulher Vítima de Violência

Doméstica e Familiar (NAMVID), em entrevista ao jornal Tribuna do Norte em 2016,

questiona: onde está a Patrulha Maria da Penha para fiscalizar as medidas protetivas?

“Nossa realidade nas delegacias é de falta de estrutura, poucas

especializadas e que já não atendem a demanda existente de investigar

crimes e entregar inquéritos no prazo da lei de até 30 dias ao Poder

Judiciário, o que vem acontecendo atualmente com muitos meses e até

anos de atraso, como no ano passado que recebemos inquéritos ainda

de 2009. É essencial para as delegacias cumprir o papel de investigar

crimes”, enfatizou Érica (MUDANÇA37..., 2017).

Gilcilene Sousa em entrevista ao Portal no Ar (2017) reforça o que a promotora

Érica Canuto sinalizou acima. Conforme Souza (MUDANÇA..., 2017) há habitual retardo

“desde a tomada de depoimento das vítimas ao prazo de envio de inquéritos para que

possamos fazer a denúncia. O que deveria ser feito em 48 horas, chega com vários meses

de atraso.” Ainda em entrevista ao Portal no Ar (2017), Érica Canuto, assinala que o

prazo de deferimento das medidas protetivas no Rio Grande do Norte ocorre em menos

de três horas, desde que seja encaminhado pela delegacia.

36 Disponível em: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/quem-mata-a-a-cultura-machista/366733

37 Ver: http://portalnoar.com.br/mudanca-polemica-na-maria-da-penha-divide-opinioes-entre-guardioes-da-lei-no-rn/

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De acordo com Érica Canuto:

“A lei diz que é em até 48 horas, mas a realidade do nosso estado é que,

enviando o pedido de medida protetiva, em menos de 3 horas, o juiz já

dá o despacho. Nunca alguma mulher morreu ou foi agredida no Rio

Grande do Norte dentro desse prazo de análise, então não tem

argumento, já está sendo concedida no prazo certo pela autoridade

competente”, reforçou (MUDANÇA..., 2017).

Conforme a promotora, compreendemos que a limitação da concessão das

medidas protetivas esbarra no envio dos inquéritos. Apesar da promotora afirmar que

ainda não houve agressões ou morte durante a análise de medidas encaminhadas, ela não

faz nenhuma alusão ao período do inquérito. Isto é, não sabemos se os meses ou anos de

espera para consolidação do inquérito ou concessão das medidas às mulheres que

recorreram a Lei através das delegacias encontram-se em situação de violência doméstica

ou não. Além disso, ressaltamos que o consentimento de medidas protetivas não garante

uma vida sem violência. Nesse sentido, alguns questionamentos surgem no decorrer da

pesquisa: Há falhas na condução dos processos? As mulheres ainda estão temerosas em

denunciar? As medidas e serviços implantados são (in)suficientes?

Percebe-se uma judicialização do fenômeno da violência, têm-se

investido na punição e na definição dos casos denunciados, mas as

ações de prevenção e proteção também previstas na LMP estão

olvidadas. Nesse sentido, Silva et al. (2015) afirma que a delegacia é o

serviço mais procurado pelas mulheres, seguido das unidades de saúde

de urgência e emergência, e que a atenção prestada a essas mulheres

restringem-se, quase sempre, a essas duas instituições, reduzindo a

violência aos aspectos criminais e curativos (CARVALHO, 2017, p,

80/81).

Segundo Pammella Carvalho (2017), o caráter de prevenção e proteção da Lei são

esquecidos diante do caráter punitivo que é dado a Lei, dessa forma, enfatiza-se os

aspectos criminais e curativos. A autora entende que para que haja um enfrentamento

efetivo da violência contra a mulher, é fundamental que haja uma incorporação/integração

“dos setores jurídicos, segurança pública, saúde, assistência social etc., possibilitando

que os recursos necessários estejam disponíveis e o acesso das mulheres seja facilitado”

(CARVALHO, 2017, p. 81).

Se não houver marcas físicas a violência tende a ser ignorada, apesar da

LMP tratar de tipos de violência que, na maioria das vezes, não deixam

marcas visíveis, como a psicológica, patrimonial e moral. Os trechos

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abaixo revelam como a banalização da violência contra mulher ainda

está presente: “No contexto da violência contra as mulheres, a palavra

do réu é tomada como verdade, em detrimento da palavra da vítima (...).

Parece que, se a mulher minimiza a ação violenta, sua fala é acatada,

ocorrendo o contrário quando faz uma acusação” (A1)

Para que a violências seja caracterizada como tal, a mulher deve

apresentar uma prova inconteste – marcas visíveis como hematomas,

machucados etc – enquanto maus tratos, humilhações, entre outras

formas de violência, cujas ranhaduras na autoestima feminina revelam-

se internamente, continuam a ser ignoradas (A9). (CARVALHO, 2017,

p. 81/82).

Carvalho (2017), assim como Machado (2013) assinala para a seletividade nos

tipos de violência que é visibilizada como violência doméstica. Para as autoras, as marcas

visíveis são sinônimo de violência doméstica, enquanto as invisíveis são ignoradas. Essa

invisibilidade pode refletir nas medidas protetivas de urgência. Ignorar as violências

invisíveis (violência sem sangue) é negar o artigo 7º da Lei como núcleo estrutural (FEIX,

2011) das violências contra a mulher no âmbito doméstico, em outras palavras, é aferir a

violência física como única forma de violência a ser enfrentada. Segundo Carvalho (2017)

é como se houvesse uma resistência dos profissionais de seguir em frente com a denúncia

da mulher contra o autor da agressão.

No percurso analítico de assegurar medidas protetivas à ofendida, os capítulos III

e IV do Título IV continuam versando sobre as medidas protetivas, contudo, abordam a

atuação do Ministério Público e assistência do Judiciário38. Conforme o texto da Lei é

competência destes:

Art. 25º O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas

causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica e familiar

contra a mulher.

Art. 26º Caberá ao Ministério Público, sem prejuízo de outras

atribuições, nos casos de violência doméstica e familiar contra a

mulher, quando necessário:

I - requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação,

de assistência social e de segurança, entre outros;

II - fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de

atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, e

adotar, de imediato, as medidas administrativas ou judiciais cabíveis no

tocante a quaisquer irregularidades constatadas;

38O artigo 37º substancia os artigos 25º, 26º, 27º e 28º da lei referida no que diz respeito a competência do

Ministério Público e da assistência Jurídica. Art. 37º A defesa dos interesses e direitos transindividuais

previstos nesta Lei poderá ser exercida, concorrentemente, pelo Ministério Público e por associação de

atuação na área, regularmente constituída há pelo menos um ano, nos termos da legislação civil. Parágrafo

único. O requisito da pré-constituição poderá ser dispensado pelo juiz quando entender que não há outra

entidade com representatividade adequada para o ajuizamento da demanda coletiva (BRASIL, 2006).

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III - cadastrar os casos de violência doméstica e familiar contra a

mulher.

Art. 27º Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em

situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada

de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei.

Art. 28º É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica

e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência

Judiciária Gratuita nos termos da lei, em sede policial e judicial,

mediante atendimento específico e humanizado. (BRASIL, 2006)

O texto da LMP atribui ao Ministério Público o requerimento de medidas

protetivas no artigo 19º da Lei a favor da ofendida. Os artigos mencionados acima (25° e

26º) reforçam o artigo 19º e aludem os procedimentos do Ministério Público quanto à

solicitação das medidas. Para este não é necessário aguardar o pedido da mulher em

situação de violência doméstica.

A LMP previu a possibilidade de requerer medidas protetivas39 em

favor das vítimas (art. 19). Dessa forma, o Ministério Público não

precisa aguardar o pedido das vítimas e pode, inclusive, requerer

medidas contra a vontade delas. Esta é a razão principal do dispositivo.

É que a vulnerabilidade própria das pessoas que sofrem violência

doméstica, motivo da construção da LMP, não raro as impede de se

opor aos(às) agressores(as). O medo ou o sentimento de lealdade

vigente na família, aliado à perplexidade perante um ato criminoso

praticado por pessoa próxima, paralisa sua reação. (...) Frise-se que a

jurisprudência tem admitido até a abertura de processos contra a

vontade das vítimas nos casos em que a representação delas é necessária

(vide comentários ao art. 16) (LIMA, 2011, p. 328).

Segundo Lima (2011), o desempenho do Ministério Público é evidenciado quando

a situação de vulnerabilidade da mulher em ocorrência de violência doméstica é

impossibilitada de buscar seus direitos. Neste caso, quando a assistência jurídica não

supre sua necessidade. Diante disto, o Ministério Público tem um papel importante para

a implementação da Lei Maria da Penha, uma vez que juntamente com a Assistência

Judiciária prevê medidas integradas de prevenção e, por conseguinte possibilidade de

criação de atendimento multidisciplinar aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar

contra a Mulher (MACHADO, 2006). Ressaltamos que a ação do Ministério Público de

acordo com texto da Lei em comento deve perpassar em todas ações do processamento

da denúncia seja ela cível ou criminal. É concedido ao Ministério Público atuar na

proteção da mulher em ocorrência de violência doméstica, alcançando as medidas quando

39 Grifo da autora.

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por estas forem recusadas e quando se percebe que há uma recusa não espontânea (LIMA,

2011). O Ministério Público alinha-se no eixo de prevenção à violência, bem como o de

assistência, visto que cabe a este fiscalizar os estabelecimentos, requisitar força policial e

serviços públicos, além de cadastrar os casos de violência doméstica.

No que tange o Poder Judiciário a Lei inscreve este com atribuições cíveis e

criminais a partir da Assistência Judiciária gratuita. Para Juliana Garcia Belloque (2011),

a inexistência da assistência jurídica faz com que a mulher em situação de violência

doméstica esteja mais vulnerável podendo dificultar o exercício de seus direitos.

.

Uma das principais hipóteses em que esse prejuízo pode ocorrer reside

na audiência judicial prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha,

aquela especialmente designada para a formalização da renúncia ao

direito de representação ou, mais tecnicamente, para a retratação da

representação feita na fase policial. Trata-se de um dos momentos

culminantes de exercício de direitos por parte da vítima, ou de renúncia

a eles, pois a ausência da representação da ofendida, condição de

procedibilidade da ação penal, implica no encerramento da persecução

penal e leva, pelo decurso do tempo, à extinção da punibilidade do

suposto agressor, ocasionando a conseqüente impossibilidade de

adoção ou manutenção de medidas de proteção à mulher, as chamadas

medidas protetivas de urgência. O ato, portanto, apenas é válido se a

vítima houver sido devidamente orientada sobre as conseqüências

jurídicas e práticas de sua decisão, merecendo anulação notadamente

quando a manifestação de vontade da mulher ofendida estiver marcada

por erro quanto à compreensão de seus efeitos. Daí decorre a

imprescindibilidade da assistência jurídica nesta audiência

(BELLOQUE, 2011.p. 338).

Conforme Belloque (2011), para a aplicação dos artigos 27º e 28º da LMP, é

necessário que não haja renúncia do direito de representação (artigo 16º), havendo que

seja sob orientação jurídica, sobretudo, as possíveis consequências. Diante disto,

Belloque (2011) entende que o artigo 16º limita as possibilidades de mulher agredida,

visto que não concordar “com a interpretação de que seja dispensável a presença de

advogado justamente na audiência designada para a ratificação ou a retratação do

direito de representação contra o agressor” (BELLOQUE, 2011, p. 339).

Segundo o texto da Lei Maria da Penha é assegurado a mulheres em situação de

violência doméstica o acesso a Assistência Jurídica gratuita, em todas as fases

processuais, judicial e/ou processual e penal, bem como na fase policial, quando a mulher

denuncia a agressão na delegacia. Salientamos que a primeira procura da mulher

agredida/violentada é a instauração do inquérito na delegacia, dessa forma, a orientação

jurídica é importante nesse primeiro contato com os dispositivos de assistência, já que é

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na delegacia que deve ser informado os procedimentos preliminares, ou seja, é na fase de

persecução criminal que devem ser adotadas as medidas protetivas de urgência

(BELLOQUE, 2011). As atribuições jurídicas nos artigos 27º e 28º da LMP apontam a

importância do acompanhamento jurídico como facilitador na defesa dos interesses da

mulher.

O Título V da Lei referenciada pontua o Atendimento Multidisciplinar dos órgãos

mencionados nos artigos anteriores (Delegacia, Ministério Público, Judiciário). Dessa

forma, os artigos 29º, 30º 31º e 32º discorrem sobre assistência de equipes de atendimento

multidisciplinar40. Isto nos faz refletir a dimensão desta assistência. Compreendemos que

esta assistência envolve todos que estão ancorados na Lei, as mulheres agredidas, os

autores da agressão, os agentes/operadores da Lei (policial, juiz(a), psicólogo(a),

assistente social, defensores públicos, médicos, entre outros).

Art. 29º Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a

Mulher que vierem a ser criados poderão contar com uma equipe de

atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais

especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde.

Art. 30º Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, entre

outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local,

fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à

Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e

desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e

outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares,

com especial atenção às crianças e aos adolescentes.

Art. 31º Quando a complexidade do caso exigir avaliação mais

aprofundada, o juiz poderá determinar a manifestação de profissional

especializado, mediante a indicação da equipe de atendimento

multidisciplinar.

Art. 32º O Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta

orçamentária, poderá prever recursos para a criação e manutenção da

equipe de atendimento multidisciplinar, nos termos da Lei de Diretrizes

Orçamentárias (BRASIL, 2006).

Compreendemos que os artigos acima, principalmente, o 29º e 30º tem o papel de

auxiliar a atuação dos juízes, advogados, defensores públicos, primordialmente, no que

diz respeito às relações hierárquicas de gênero. Sendo assim, entendemos que se faz

necessário para a atuação efetiva das equipes multidisciplinares, capacitações constantes

no que se refere às relações de poder e gênero. Havendo um direcionamento para as ações

40 O artigo 35º intensifica os artigos 29º ao 32º, visto que elucida em suas diretrizes a criação de equipe de

atendimento multidisciplinar para os equipamentos que a Lei sinaliza para a efetividade e eficiência da

LMP.

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socioeducativas, isto é, um diálogo mútuo entre as perspectivas socioeducativa e a

punitiva para a apreensão da violência doméstica e suas dimensões. O atendimento de

equipes multidisciplinares qualificadas no atendimento da mulher em situação de

violência doméstica pode revelar-se como possibilidade de retirar o caráter constrangedor

e de culpa que as mulheres agredidas por vezes são submetidas. Para Belloque (2011), o

constrangimento e a culpa são ferramentas que são acionadas pelos agentes/operadores

da Lei para inferir a ofendida “responsabilidade” da ação violenta do autor da agressão,

“vítimas e testemunhas chamadas a participar de um processo judicial, que transforma

pessoas em objeto de produção da prova com a reprodução de padrões estereotipados

que refletem, entre outras, a discriminação de gênero” (BELLOQUE, 2011, p. 338).

Essa forma, não incomum, de agir do sistema de justiça exemplifica o

que se chama de vitimização secundária, aquela produzida pelas

instituições públicas em função do tratamento desumanizado e

discriminatório dado à vítima. O fenômeno encontra o seu ápice na

persecução criminal dos crimes que afrontam a liberdade e a dignidade

sexual da mulher, conforme retratado no estudo de casos desenvolvido

por Silvia Pimentel, Ana Lucia Pastore Schritzmeyer e Valéria

Pandjiarjian (1998), mas permeia todo o sistema de repressão aos

crimes e atinge especialmente as mulheres vítimas de violência,

notadamente aquela praticada no âmbito doméstico e familiar. A

vitimização secundária se reflete no tratamento recebido pela mulher

quando presta declarações como vítima na polícia ou em juízo, quando

se submete a exames corporais necessários à prova da existência da

agressão, quando se vê confrontada com o agressor no processo em

desigualdade de forças e, muito especialmente, quando transparece

dúvida acerca do exercício ou da renúncia de seus direitos enquanto

vítima em função das conseqüências práticas de sua conduta processual

para o próprio agressor e para a sua família (BELLOQUE, 2011, p.

338).

Belloque (2011) indica este cenário como um obstáculo de ajuda para a mulher

que procura sair de uma situação de risco. Para a autora, esse cenário sinaliza uma

vitimização secundária, bem como um empecilho da consciência dos seus direitos. É

importante destacar que a produção do cenário que vitimiza duplamente a mulher em

situação de risco, violência doméstica, institui um olhar discriminador quando as

interseccionalidades são colocadas à mostra. Por vezes é como se o artigo 7° da Lei

adquire-se mais uma violência, a violência institucionalizada que nega todo o princípio

do artigo 7º.

Nesse contexto, a situação se agrava para as mulheres negras também

ao buscar pelo apoio do Estado para enfrentar a violência vivida. Elas

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são, no geral, revitimizadas – por exemplo, quando profissionais de

saúde tendem a tratar suas queixas como menores por considerá-las

“mais fortes”. Muitas vezes quem atende essas mulheres sequer tem

conhecimento técnico para identificar lesões como hematomas na pele

negra (AGÊNCIA PATRICIA GALVÃO, 2015).

A pesquisa realizada pela Agência Patrícia Galvão (2015) mostra a revitimização

das mulheres negras, os quais os tons de roxos são invisibilizados no discurso de uma

força “condicionada” a negritude, logo a invisibilidade dos hematomas. Para Belloque

(2011), a vitimização secundária ou revitimização corrobora para a transformação da

violência doméstica e familiar em dado social oculto. Podemos aferir que a pesquisa da

Agência Patrícia Galvão (2015) sinaliza mais uma vez a ausência de capacitação dos

agentes/operadores da Lei. Diante disto, reiteramos a importância de capacitação para a

efetividade do desempenho da LMP.

Neste contexto, para o desempenho da equipe de atendimento multidisciplinar nos

Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, bem como nas atribuições

que lhe fora reservado desenvolver orientação, encaminhamento e prevenção voltados

para a ofendida, o autor da agressão, familiares, crianças e adolescentes (artigo 30º). A

criação dos juizados especializados, Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra

a Mulher é uma das diretrizes formativas da Lei no que diz respeito à assistência e

prevenção da Lei Maria da Penha, o texto da Lei em seu artigo 33º41 sobre as Disposições

Transitórias no Título VI afirma que:

Art. 33º Enquanto não estruturados os Juizados de Violência

Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão

as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas

decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a

mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela

legislação processual pertinente.

Parágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas

criminais, para o processo e o julgamento das causas referidas no caput

(BRASIL, 2006).

41Os artigos 34° e 41° reforçam o artigo 33° da Lei em comento, haja visto que indicam a inserção de

curadorias e serviço de assistência, assim como não aplicação da lei 9.099/95 para os casos de violências

doméstica. Art. 34º A instituição dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher poderá

ser acompanhada pela implantação das curadorias necessárias e do serviço de assistência judiciária Art.

41º Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena

prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995. (BRASIL, 2006)

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O dispositivo em diálogo atribui às varas criminais a competência cível e criminal

na ausência de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher no intuito de

não recorrer aos Juizados Especiais Criminais, o qual ancora-se na lei 9.099/95. Segundo

Westei Conde e Martin Júnior (2011), a lei 9.099/95 colaborou para exacerbar a violência

contra a mulher, nesse sentido, a implementação da Lei Maria da Penha representa um

avanço no enfrentamento da violência doméstica, especialmente, por romper com a lei

9.099/95, uma vez que reconhece a violência contra o feminino, sobretudo, doméstica

como violação dos direitos humanos, como assinala o artigo 6° da Lei. A remoção dos

JECRIM’s como ferramenta no enfrentamento à violência doméstica “dar tratamento

jurídico (penal e processual penal) a questão sem descuidar da dimensão de direitos

humanos que representa esta particular forma de violência” (CONDE, JUNIOR, 2011,

p. 358). De acordo com os autores, os artigos 33° e 41° demarcam o impedimento da

aplicação da lei 9.099/95, independentemente, da pena prevista. Deste modo, em

consonância com Conde e Junior (2011), compreendemos que a lei 9.099/95 mostra-se

insuficiente para prevenir a violência contra a mulher.

No balanço dos efeitos da aplicação da Lei 9.099/95 sobre as mulheres,

diversos grupos feministas e instituições que atuavam no atendimento

a vítimas de violência doméstica constataram uma impunidade que

favorecia os agressores. Cerca de 70% dos casos que chegavam aos

juizados especiais tinham como autoras mulheres vítimas de violência

doméstica. Além disso, 90% desses casos terminavam em

arquivamento nas audiências de conciliação sem que as mulheres

encontrassem uma resposta efetiva do poder público à violência sofrida.

Nos poucos casos em que ocorria a punição do agressor, este era

geralmente condenado a entregar uma cesta básica a alguma instituição

filantrópica. Os juizados especiais, no que pese sua grande contribuição

para a agilização de processos criminais, incluíam no mesmo bojo rixas

entre motoristas ou vizinhos, discussões sobre cercas ou animais e

lesões corporais em mulheres por parte de companheiros ou maridos.

Com exceção do homicídio, do abuso sexual e das lesões mais graves,

todas as demais formas de violência contra a mulher, obrigatoriamente,

eram julgadas nos juizados especiais, onde, devido a seu peculiar ritmo

de julgamento, não utilizavam o contraditório, a conversa com a vítima

e não ouviam suas necessidades imediatas ou não (CALAZANS &

CORTES, 2011, p. 42).

Myllena Calazans e Iáris Cortes (2011) apontam que a lei 9.099/95 revelava-se

incompatível no enfrentamento da violência contra a mulher, haja visto que tenciona no

mesmo bojo de lesões corporais em mulheres pelo companheiro, discussões sobre

animais, brigas de vizinho, ou seja, sinaliza a violência no âmbito doméstico como uma

violência banal, de menor grau. Deste modo, a lei n° 9.099/95 fere a Convenção de Belém

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do Pará, que configura a violência contra a mulher como uma violação dos direitos

humanos, assim como compreende as dimensões da violência para além da violência

física, práticas abusivas, relações desiguais de poder, medo, a dependência econômica e

emocional, entre outras são acionadas como violência na Convenção de Belém do Pará.

Diante disto, com a implementação da LMP, a violência doméstica até então submetida

a lei 9.099/95 a partir de um inquérito simplificado (Termo Circunstanciado) passa a ser

registrado independente do crime cometido ou contravenção penal (artigos 10° a 12°).

O Título VII da LMP corresponde às disposições finais da Lei e discorre sobre

curadorias e assistência judiciária, serviços especializados de atendimentos para a mulher,

criação dos centros de responsabilização do agressor, políticas públicas, competência do

Ministério Público, sistema de informação e estatística, proibição da lei 9.099/95, prisão

preventiva, ou seja, reforça as diretrizes assinaladas nos artigos anteriores, isto é, supõe a

ação integrada de diversas áreas do poder público, possibilita a criação de Juizados de

Violência Doméstica e Familiar nas diversas unidades federativas e designa, entre outros,

o atendimento qualificado por parte da autoridade policial, recusando a aplicação da Lei

9.099/95 os crimes que envolvam essa forma de violência.

Art. 39ºA União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no

limite de suas competências e nos termos das respectivas leis de

diretrizes orçamentárias, poderão estabelecer dotações orçamentárias

específicas, em cada exercício financeiro, para a implementação das

medidas estabelecidas nesta Lei.

Art. 40º As obrigações previstas nesta Lei não excluem outras

decorrentes dos princípios por ela adotados

Art. 46º Esta Lei entra em vigor 45 (quarenta e cinco) dias após sua

publicação (BRASIL, 2006).

Como já assinalado, os artigos que compõem as disposições finais (artigos 34° ao

46°) no documento textual da Lei Maria da Penha elucidam e ratificam os artigos

anteriores. Reforçam que a mudança na legislação, ou melhor, uma lei específica de

enfrentamento contra a violência doméstica, reconhece e visibiliza as violências deferidas

ao gênero feminino que fora negado por muito tempo na legislação brasileira, assim como

compreende que esta violência tem como lócus o doméstico e ancora-se nas relações

desiguais de gênero. Sendo assim, analisar o desenho institucional da LMP nos

possibilitou questionar a efetividade das diretrizes assinalada pela Lei, assim como,

compreender que a LMP é uma lei que tenta possibilitar uma vida vivível (BUTLER,

2015), uma vida sem violência. A Lei configura-se como espaço de resistência, bem como

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de reconhecimento, “mas não se deve esquecer, tampouco, que está só atuará como

efetivo instrumento de reconhecimento quando conseguir traduzir não o que constitui

uma maioria, ou uma minoria, e sim o que é ser humana/o” (MACHADO, 2013, p. 162).

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CAPÍTULO IV

4. (DES) CONSTRUINDO VIOLÊNCIA NO RN: ANÁLISE DA EFETIVIDADE

DO EIXO SOCIOEDUCATIVO

Procuramos neste capítulo analisar e apresentar os instrumentos socioeducativos

oferecidos pelo Estado potiguar, a fim de identificar quais os recursos e como age o

Estado no enfrentamento da violência doméstica. Traçar uma análise sob o eixo

socioeducativo se torna necessário, visto que, embora a análise punitiva ganhe uma maior

notoriedade, a socioeducativa é o eixo elaborado no texto da Lei que produz, de fato,

maior inferência sobre as mudanças de tipos hegemônicos e constrói um espaço de

prevenção ao ato da violência, uma vez que nos permite desestabilizar a estrutura de

relações de poder entre os gêneros, sobretudo, tendo em vista que é na educação a maneira

de apresentar para sociedade os perigos de uma socialização voltada aos domínios

universais dos corpos.

Nesse contexto de desmonte da violência apresentamos, inicialmente, a discussão de

quando a violência doméstica torna-se violência com morte no RN. A intenção de iniciar

o capítulo a partir desta discussão é apontar e reiterar a necessidade de políticas públicas

com perspectivas socioeducativas para que possa de maneira paulatina combater a

violências de gênero contra as mulheres e, que a violência sem sangue não torne-se

violência com morte. Deste modo, discorremos após a discussão do feminicídio como

decorrência da ausência de políticas socioeducativas acerca dos equipamentos e projetos

implementados no RN sob esse viés, o Projeto Maria da Penha vai à Escola, o Grupo

Reflexivo para Homens: por uma atitude de paz e o Reconstruindo o Self como políticas

efetivas de prevenção à violência contra a mulher.

4.1 DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA AO FEMINICÍDIO

No percurso de pensar a violência doméstica como um fenômeno socialmente

construído que ocorre no interior das relações sociais, trazemos para o diálogo Mariza

Corrêa (1981). A autora mostra como as violências encontram na sociedade justificativas

e respostas para legitimar o ato da violência. Nesse sentido, apresentamos como violência

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com morte, o feminicídio, visto que entendemos este como a última etapa da violência

contra a mulher, pensando as relações conjugais/íntimas, que acarretaram na morte da

mulher pelo companheiro ou ex-companheiro. Assim, eventualmente as violências

apresentadas na Lei 11.340/06 podem resultar na violência com morte, logo quando se

extrapola os abusos verbais, psicológicos e físicos. Mostraremos mais à frente esta

violência a partir do que nominamos de Agosto Sangrento.

Até então os homicídios de mulheres praticados por seus companheiros ou ex-

companheiros parecia oferecer o privilégio da impunidade, onde mais uma vez via a

mulher em uma situação estruturalmente subordinada. Os crimes passionais eram

julgados a partir da conduta moral do réu ou vítima como se este fosse referência para

“legitimar” dada violência. Ademais, a mulher no cenário de vítima era duplamente

violentada, primeiro pelo companheiro, segundo pelo judiciário, era julgada pela sua

conduta moral e social.

Para Corrêa (1981), os “crimes passionais” tinham como motivação: o adultério,

a legítima defesa e defesa da honra, este último nos lembra a tradição patriarcalista onde

a honra é defendida/lavada com próprio sangue.

Os advogados de defesa de maridos, noivos, namorados ou amantes,

assassinos de suas companheiras, passaram a afirmar então que a paixão

era uma espécie de loucura momentânea, tornando irresponsáveis na

ocasião do crime os que estavam por ela “possuídos” (CORRÊA, 1981,

p.22).

Dessa forma, podemos inferir que os homens em sua maioria matavam as

mulheres por motivo de traição, não aceitação de vê-la com outro mesmo com o fim do

relacionamento, e homens que diziam defender sua honra (como uma defesa de sua

masculinidade). Estes homens foram defendidos e absolvidos socialmente e

juridicamente pautados em discursos introjetados socialmente em uma sociedade

estruturalmente machista, que legitima a violência contra o feminino a partir de uma

legítima defesa da honra, ou seja, absolvem os agressores conferindo ao mesmos como

se eles fossem as vítimas e não os réus, logo crimes absolvidos pela ofensa à honra e a

dignidade familiar.

De acordo com Corrêa (1981):

A narrativa de um crime passional se construía como um enredo de uma

novela: um homem de bem, isto é, noivo, namorado ou amante de bom

comportamento social, encontra um dia sua companheira mantendo

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relações com outro homem e a mata, ou mata a ambos (CORRÊA, 1981

p.45).

Logo, o adultério classificava-se como um crime que lavaria a honra, ou melhor,

um crime de legítima defesa da honra, ele ainda aparecia como elemento do crime

passional – amor contrariado, dando ênfase à paixão (CORRÊA, 1981). E, diante do

exposto, Corrêa (1981) nos questiona e nos faz questionar o que seria então o amor,

paixão. Quem é honrado, o que é honra? De fato sua honra volta para você quando mata

o outro? O amor e a paixão são sentimentos de afeto desprendido à outra pessoa, quando

este sentimento se transforma em obsessão eis o grande perigo, pois você não deseja

apenas estar com a pessoa, você deseja ter, não consegue visualizar um fim de

relacionamento ou o desejo da pessoa amada por outra pessoa, o querer ter a todo custo,

“se não vai ser minha não vai ser de mais ninguém,” corroborou por muito tempo com

os crimes passionais, em momento de “loucura” momentânea mata-se o ser desejado,

mortes que se fazem presente na sociedade atual também.

Contudo, a ideia de legítima defesa da honra traz consigo a justificativa de

recompor um sentimento de dignidade, ao matar a mulher adúltera e seu amante parece

retomar sua dignidade, sua masculinidade lhe é devolvida ou reconstruída.

Segundo Pimentel, Pandjiarjian e Belloque (2006):

Em que pese os avanços internacionais, regionais e nacionais logrados

em relação ao tema, em especial na década de 90, ainda persistem, e

pleno século XXI, legislações e decisões jurisprudenciais violadoras

dos direitos humanos das mulheres, marcadas pela impunidade de seus

agressores e pela incorporação de estereótipos, preconceitos e

discriminações contra as mulheres vítimas de violência. Essas violações

encontram-se – em especial no Brasil e em demais países da América

Latina e Caribe – refletidas, entre outros aspectos, em certos

dispositivos legais penais discriminatórios referentes à violência sexual.

Encontram-se também em teorias, argumentos jurídicos e sentenças

judiciais que, por exemplo, constroem, utilizam e se valem da figura da

legítima defesa da honra ou da violenta emoção para – de forma direta

ou indireta – justificar o crime, culpabilizar a vítima e garantir a total

impunidade ou a diminuição de pena em casos de agressões e

assassinatos de mulheres, em geral praticados por seus maridos,

companheiros, namorados ou respectivos ex. (PIMENTEL,

PANDJIARJIAN, BELLOQUE, 2006, p. 65/66).

Segundo as autoras até o início do século XXI persistiu-se na luta por leis e

jurisprudência que enquadrasse os agressores, sobretudo, porque os resultados de

sentenças que davam liberdade aos agressores marcam de maneira significativa a

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incorporação de estereótipos, preconceitos e discriminação das mulheres. Com isso,

podemos dizer que ao decretar liberdade de agressores e assassinos quem sai “vencedor”

é o sistema machista, visto que era na soltura e legitimação do crime como permissível

que o machismo se fortalecia.

As autoras ainda afirmam que:

A comunidade internacional reunida na Organização das Nações

Unidas (ONU) já se manifestou, por mais de uma vez – há vários

documentos a respeito – sua não aceitação e mesmo repúdio às práticas

culturais desrespeitadoras dos direitos humanos das mulheres. A IV

Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing, 1995, em

sua Plataforma de Ação, item 224, estabeleceu que a violência contra

as mulheres constitui ao mesmo tempo uma violação aos seus direitos

humanos e liberdades fundamentais e um óbice e impedimento a que

desfrute deste direito. Ressalta a violência contra as mulheres derivada

dos preconceitos culturais e declara que é preciso proibir e eliminar

todo aspecto nocivo de certas práticas tradicionais, habituais ou

modernas, que violam os direitos das mulheres (PIMENTEL,

PANDJIARJIAN, BELLOQUE, 2006, p. 93).

A violência contra as mulheres é apreendida como uma violação dos direitos

humanos das mulheres, porém o que concerne à violência com morte no Brasil é só no

ano de 2015 que se sanciona uma lei tipificada acerca dos crimes cometidos em virtude

da violência contra a mulher, a Lei 13.104/15, que cria o delito de feminicídio, a qual

nominamos por violência com morte. Deste modo, até então homens matavam suas

esposas, companheiras ou namoradas em nome de uma suposta honra conjugal ou

familiar e/ou sob o discurso de uma paixão sem fim-crime passional.

4.1.1. Feminicídio

Feminicídio é um termo que surge com a sul africana Diana Russel para evidenciar

o assassinato de mulheres, mas este ganha notoriedade com os estudos de Lagarde (2008)

que aborda os assassinatos de mulheres na Ciudad de Juárez no México em 1993, onde

mulheres operárias e da indústria têxtil foram encontradas mortas com amplo grau de

crueldade: queimadas, esquartejadas, jogadas em lata de lixo. O feminicídio, crime contra

a mulher, retira todo caráter de crime de amor, como reivindica e reivindicava a luta

feminista e de movimento de mulheres. Ao chamar de crime passional é como se tirasse

toda a subjetividade feminina e reconhecesse o sujeito masculino como sujeito absoluto,

detentor de poder (vítima e vitorioso). A lei do feminicídio outorgada no Brasil em 15 de

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março de 2015 coloca a mulher em ênfase, esta é a vítima e não a “réu”. O feminicídio

acaba ganhando status teórico, político e judicial, logo uma reinterpretação dos crimes

vistos como passionais.

A Lei 13.104/2015 qualifica o feminicídio como crime de homicídio, a lei por sua

vez alterou o art. 121 do Código Penal (Decreto Lei nº 2.848/1940), para tanto feminicídio

condiz ao homicídio:

VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:

§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino

quando o crime envolve:

I - violência doméstica e familiar;

II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher (BRASIL,

2015).

O feminicídio no Brasil está de certo modo atrelado à violência doméstica, como

esse fosse uma extensão da Lei Maria da Penha, visto que as duas leis têm por finalidade

proteger os direitos das mulheres, bem como coibir e prevenir a violência. Além disso, o

feminicídio tem o seu principal cenário o contexto de violência doméstica e familiar, e

que geralmente é precedido pelas violência sem sangue e violência com sangue. Deste

modo, a morte de mulheres pelo fato de serem mulheres abonadas sócio culturalmente

por uma história de dominação, subordinação e de poder do homem sobre a mulher

respaldou os assassinatos relacionados a gênero, logo, o feminicídio.

O feminicídio é a instância última de controle da mulher pelo homem:

o controle da vida e da morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita

de posse, igualando a mulher a um objeto, quando cometido por

parceiro ou ex-parceiro; como subjugação da intimidade e da

sexualidade da mulher, por meio da violência sexual associada ao

assassinato; como destruição da identidade da mulher, pela mutilação

ou desfiguração de seu corpo; como aviltamento da dignidade da

mulher, submetendo-a a tortura ou a tratamento cruel ou degradante.

Tivemos em nosso País um grande avanço no combate à impunidade e

à violência contra a mulher com a edição da Lei Maria da Penha (Lei nº

11.340, de 2006). Com a promulgação dessa lei, o Estado brasileiro

confirmou seus compromissos internacionais e constitucionais de

enfrentar todo o tipo de discriminação de gênero e de garantir que todos,

homens e mulheres, que estejam em seu território, gozem plenamente

de seus direitos humanos, que naturalmente incluem o direito à

integridade física e o direito à vida. A lei deve ser vista, no entanto,

como um ponto de partida, e não de chegada, na luta pela igualdade de

gênero e pela universalização dos direitos humanos. Uma das

continuações necessárias dessa trajetória é o combate ao feminicídio

(BRASIL, 2013, p. 1003).

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Neste contexto, o feminicídio no Brasil tem um significado político haja vista que

denuncia a falta de compromisso por parte das Convenções internacionais. Sendo assim,

pode ser compreendido como uma violência política relacionada ao fato de não se tratar

de uma violência eventual, mas sim em uma prática que tem seu fundamento a relação

desigual de poder. Segundo o Mapa da Violência (WAISELFIZ, 2015) dos 50% dos

assassinatos de mulheres no ano de 2013 305 foram mortas pelos seus (ex) companheiros.

O mapa ainda indica que essas mortes tem um lugar lócus, a residência. Isto quer dizer

que, a casa é concebida como o lugar da morte, portanto, o local de risco para as mulheres.

Como dito anteriormente, o feminicídio aparece também como continuação da violência

doméstica, sua fase final. O Mapa da Violência (WAISELFIZ, 2015) nos alude para

outros números significativos, onde apresenta que mesmo com a Lei Maria da Penha em

vigor houve um aumento da violência contra a mulher no ano de 2006, uma pequena

queda no ano de 2007 e posteriormente os números da violência contra a mulher voltaram

a aumentar.

GRÁFICO 04

Dados: Mapa da Violência 2015

Como aponta o Gráfico 04, os números da violência de 2005 a 2013 mostram que

a implementação da Lei Maria da Penha nos seus anos iniciais não conteve de forma

efetiva a diminuição da violência contra a mulher, reverberando-a em violência com

morte. “Feminicídio, portanto, ocorre quando o Estado não garante a seguridade das

mulheres ou cria ambientes no qual as mulheres não estão seguras em suas comunidades

ou lares” (LISBOA, 2010, p.64). Sendo assim, cabe ao Estado criar leis e políticas

públicas que previnam e combatam a violência contra a mulher.

3.884 4.0223.772

4.0234.260 4.465 4.512 4.719 4.762

0

1.000

2.000

3.000

4.000

5.000

6.000

2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Taxa de Homícidio por 100 mil habitantes

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136

4.1.2. As Marias do RN: quando as violências sem sangue e com sangue

tornam-se violência com morte

No contexto de refletir a violência contra a mulher no Rio Grande do Norte

atrelado ao feminicídio vale lembrarmos agosto de 2016, onde 11 mulheres em

aproximadamente 11 dias foram assassinadas. Destas, sete mulheres foram vítimas de

feminicídio, entendido aqui como violência com morte. Edilene Felipe, Josefa Ferreira,

Francycris Silva foram mortas pelos seus maridos, já Ana D’Avila, Maria do Socorro,

Mykaela Rhuanna e Nayara Régia42 foram mortas pelos ex-companheiros. Mortas no

contexto de relações interpessoais e íntimas ou por alguma razão pessoal por parte do

agressor, podendo estar associado à violência doméstica; e pela apropriação do corpo

feminino como proprietário sob o ideal se não for minha não será demais ninguém.

Ana D’Ávila foi a primeira vítima de feminicídio do Agosto Sangrento do Rio

Grande do Norte, foi assassinada pelo ex- companheiro em Santa Cruz, cidade vizinha da

capital potiguar.

Segundo o delegado da região, Silva Júnior, o responsável teria sido o

companheiro dela. Ana chegou a procurar a delegacia em março,

quando foi aberto inquérito de violência doméstica e o juiz

determinou o afastamento do companheiro43. Apesar da medida, o

homem invadiu a casa em que Ana vivia e a matou a facadas. Ela teria

gritado por ajuda ao vê-lo armado44.

Edilene Felipe foi morta a facadas pelo seu marido na cidade de São José do

Mipibu, grande Natal. De acordo com o delegado Geriz, responsável pelo caso, o marido

da Edilene "era ciumento, bruto, e queria voltar para ela. Eles estavam separados havia

oito dias. Na noite do crime, conversaram em casa... Quando os filhos acordaram, a mãe

estava morta45”.

Mykaella Ruanna foi morta a tiros pelo seu ex- companheiro ao sair da academia

na cidade de Natal. O seu filho de 03 anos presenciou o crime.

"Pa, pa, pa, pa". O som dos tiros que mataram a diarista Mykaella

Ruanna Fagundes, de 21 anos, no Rio Grande do Norte, é repetido pelo

filho dela - órfão aos três anos... Ele estava na hora que aconteceu (o

42Fonte: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-37278496 43 Grifos da autora. 44Idem. 45Idem.

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137

crime), diz uma parente da vítima à BBC Brasil. "E sabe que a mãe não

volta”46.

As mortes de mulheres vítimas de seus companheiros ou ex-companheiros não teve seu

fim no mês de agosto. Em 12 de dezembro de 2016, o assassinato de Ana Lívia Sales, mulher de

19 anos, mãe de uma criança de seis meses chocou o Rio Grande do Norte, o caso da Ana foi uma

de tantas outras mulheres que no ano de 2016 entraram na estatística da violência com morte. Ana

Lívia foi morta pelo seu ex- companheiro, pai da criança enquanto amamentava o seu filho na casa

da ex-sogra por golpes de faca. De acordo com jornais locais, Ana Lívia teria ido à casa do ex-

companheiro amamentar o filho que passara o dia com o pai, foi acompanhada por uma amiga,

pois tinha medo que acontecesse algo, a amiga ficou do lado de fora esperando a mesma e

comunicando-se pelo celular. Em mensagens antes do crime Ana Lívia teria dito à amiga que

estava com medo, que ele tinha trancado a porta47.

Uma amiga de Ana Lívia esperava por ela na frente da casa e foi a última pessoa

a falar com a vítima pessoalmente e pelo celular. Na última mensagem enviada

pela vítima para a amiga ela escreveu "tô com medo". A amiga respondeu

"qualquer coisa grita". De acordo com a amiga da vítima, o casal se separou

recentemente e a mulher já tinha prestado queixa à Polícia Civil por

violência doméstica48. Vizinhos disseram que ouviam as agressões que seriam

motivadas por ciúmes49.

O agressor e assassino de Ana Lívia Sales, Felipe Cunha Pinto, 19 anos confessou o crime

e disse ter sido motivado por legítima defesa. Felipe Cunha não foi o único a afirmar que teria

cometido o crime por legítima defesa, outros disseram ser por traição. Logo, entendo que estes

mataram suas companheiras ou ex- companheiras sob dois discurso: legítima defesa da honra e

crime passional (lembramos que utilizaram a traição de suas esposas ou souberam de

envolvimento da ex- companheira com outro homem), mais uma vez na premissa se não vai ser

minha não será de mais ninguém. É nesse ideal de legítima defesa, principalmente, da honra sob

o encalce de um crime de amor que homens seguem matando suas companheiras ou ex-

companheiras. É necessário destacar que a mulheres que sofrem violência doméstica são

primeiramente mortas simbolicamente, uma vez que entendemos que as violências sem sangue e

com sangue são as mortes inicias, dado que estas ceifam as mulheres pouco a pouco. Desse modo,

46Idem. 47Fonte:http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2016/12/mae-e-morta-facadas-na-grande-

natal-enquanto-amamentava-bebe.html 48 Grifos da autora. 49Idem

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questionamos: o que é necessário fazer para que mais mulheres não sejam mortas pelos

seus companheiros ou ex-companheiro? Quem a cultura do machismo

matará/agredirá/violentará hoje?

Assim sendo, pensar os variados tipos de violência contra a mulher no sentido

político permite-nos refletir, a partir das concepções de Judith Butler (2015), sobre como

a mulher em situação de violência constante – seja simbólica, psicológica, moral,

patrimonial, sexual ou física – está inserida numa condição precária da vida. Butler (2015)

define condição precária da vida como sendo:

[...] A condição politicamente induzida na qual certas populações

sofrem com redes sociais e econômicas de apoio deficientes e ficam

expostas de forma diferenciada às violações, à violência e à morte.

Essas populações estão mais expostas a doenças, pobreza, fome,

deslocamentos e violência sem nenhuma proteção. A condição precária

também caracteriza a condição politicamente induzida de maximização

da precariedade para populações expostas à violência arbitrária do

Estado que com frequência não têm opção a não ser recorrer ao próprio

Estado contra o qual precisam de proteção. Em outras palavras, elas

recorrem ao Estado em busca de proteção, mas o Estado é precisamente

aquilo do que elas precisam ser protegidas. Estar protegido da violência

do Estado-Nação é estar exposto à violência exercida pelo Estado-

Nação; assim, depender do Estado-Nação para a proteção contra a

violência significa precisamente trocar uma violência potencial por

outra. Deve haver, de fato, poucas alternativas. É claro que nem toda

violência advém do Estado-Nação, mas são muito raros os casos

contemporâneos de violência que não tenham nenhuma relação com

essa forma política (BUTLER, 2015, p. 46-47).

Nesse sentido, a partir das formulações de Butler (2015), podemos também fazer

uma relação sobre os tipos de violência cometidos pelo o Estado seguindo a mesma linha

de raciocínio já apresentada: violência com sangue, violência sem sangue, violência com

morte. Estamos tentando demonstrar com isso que a mulher em situação de violência

doméstica ao recorrer aos mecanismos oferecidos pelo Estado com o objetivo de proteção

ou amparo, acaba por não se sentir nem protegida nem aparada pelo fato de que o próprio

Estado não proporciona itinerários cabíveis para que essa vítima se sinta devidamente

resguardada pelo o Estado, como, por exemplo, nos casos já citados onde as vítimas

sofrem duplamente a violência cometida contra o seu gênero feminino, uma vez em casa

e a outra na delegacia, uma vez no âmbito doméstico e a outra no ambiente hospitalar.

Essas questões referem-se sociologicamente e historicamente a como o machismo está

incutido nas relações interpessoais e institucionais.

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Dessa maneira, se torna ainda mais visível a possibilidade de considerar a

violência contra a mulher como um atentado a vivência do gênero feminino, tendo como

pressuposto que a violência como prática social pode ser entendida como uma prática de

não reconhecimento da importância da vida do “Outro”. Esse “Outro” sujeito, ou seja, a

mulher que é passível de ser violentada, humilhada ou assassinada, tem a sua vida perdida

ou negada pelo fato do agressor não reconhecer na figura feminina uma vida que merece

ser vivida ou respeitada.

Afirmar que uma vida pode ser lesada, por exemplo, ou que pode ser

perdida, destruída ou sistematicamente negligenciada até a morte é

sublinhar não somente a finitude de uma vida (o fato de que a morte é

certa), mas também sua precariedade (porque a vida requer que várias

condições sociais e econômicas sejam atendidas para ser mantidas

como uma vida). A precariedade implica viver socialmente, isto é, o

fato de que a vida de alguém está sempre, de alguma forma, nas mãos

do outro (BUTLER, 2015, p. 31).

As questões que essa discussão desemboca e que servem para complexificar ainda

mais a nossa reflexão são: de quantos “Outros” podemos falar quando nos referimos à

violência contra a mulher? Do “Outro” como sujeito agressor? Do “Outro” como

instituição incorporada no papel do Estado que em suas atribuições não oferece com

efetividade proteção e amparo às vítimas de violência doméstica? Ou do “Outro” como

norma social produzida e reproduzida através do machismo? As respostas para essas

indagações talvez sejam acionadas por meio do entrecruzamento formado pelo possível

complemento de suas resoluções explicativas. Em outras palavras, o que estamos

tentando dizer é que não se pode isolar o ponto de vista sobre a violência contra a mulher

em apenas uma via de acesso. Um dos apontamentos do trabalho é que na maioria dos

casos estudados, desde o momento da denúncia, a mulher está sujeita a sofrer variados

tipos de violência em diferentes espaços por diferentes pessoas. Essas violências

“secundárias” podem ser entendidas como extensões do atentado à vida física, psicológica

ou simbólica da mulher em ambiente doméstico. Nesse sentido, reiteramos mais uma vez,

que a perspectiva socioeducativa pode instrumentalizar uma vida sem violência,

perspectiva essa que deve ser ampliada para todas as instituições que direta ou

indiretamente pautem o enfrentamento a violência baseada no gênero no sentido que a

violência sem sangue não transforme-se em violência com sangue, nem tampouco

violência com morte.

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4.2. REDE DE ATENDIMENTO AS MULHERES EM SITUAÇÃO DE

VIOLÊNCIA NO RIO GRANDE DO NORTE

A temática da violência de gênero contra a mulher vem sendo pautada desde a

redemocratização brasileira. A partir da demanda feminista, reivindicou-se serviços que

amparassem a mulher em situação de violência, serviços jurídicos; sociais; de saúde,

assistência e prevenção. Entretanto, o equipamento que veio respaldar a luta da demanda

das mulheres na década de 80 foi à Delegacia para as Mulheres, em 1985, o Estado

demandou uma política com caráter punitivo, onde por muito tempo foi o principal

aparelho legal no enfrentamento da violência baseado no gênero (embora esta informação

esteja repetida, acho importante mantê-la). Em outras palavras, o Estado entendeu a

violência contra a mulher, essencialmente, como caso de polícia, como mencionado em

uma perspectiva meramente punitiva. Como já pontuamos, foi 20 anos após a criação da

primeira delegacia para mulher que se criou uma lei específica para o enfrentamento da

violência, a lei 11.340/06, que tem em sua construção o caráter punitivo e educativo e,

configura-se hoje como mecanismo legal para prevenção, proteção e punição da violência

doméstica e familiar, uma vez que direciona diretrizes e políticas de combate à violência

aferida ao feminino na esfera doméstica.

Nessa direção, 11 anos passados desde a implementação da LMP, o estado do Rio

Grande do Norte mostra-se incipiente em relação aos serviços destinados as mulheres,

primordialmente, no que diz respeito à violência abalizada no gênero. O Rio Grande do

Norte é composto por 167 municípios, nos quais apenas 07 apresentam

políticas/equipamentos para as mulheres, são eles: Natal, Parnamirim, Mossoró, Caicó,

Passa e Fica, Portalegre e Apodi. Ou seja, 160 municípios do estado não têm

equipamentos específicos para o atendimento à mulher em situação de violência, dessa

forma, utilizam como plataforma de Rede de Atendimento à Mulher, o Cras, o Creas, a

Secretaria de Ação Social e a Secretaria de Assistência Social50.

Tabela 01 EQUIPAMENTOS DE ATENDIMENTO A MULHER NO RIO GRANDE DO NORTE

DELEGACIA ESPECIALIZADA EM ATENDIMENTO À MULHER

JUIZADOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

50 Destacamos que os 07 municípios listados também têm esses órgãos como rede de atendimento.

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SECRETARIA EXTRAORDINÁRIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES

SECRETARIA MUNICIPAL DA MULHER – SEMUL

COORDENADORIA DA MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E

FAMILIAR-

COORDENADORIA DA DEFESA DA MULHER E DAS MINORIAS - CODIMM

COORDENADORIA DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL –

COEPPIR

NÚCLEO ESPECIALIZADO NA DEFESA DA MULHER VÍTIMA DE VIOLÊCIA

DOMÉSTICA E FAMILIAR – NUDEM

NÚCLEO DE APOIO À MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

– NAMVID

CASA ABRIGO CLARA CAMARÃO

CENTRO ESPECIALIZADO DE ATENÇÃO À MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA

ELIZABETH NASSER

CONSELHO MUNICIPAL DA MULHER

PROMOTORIA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

CENTRO DE REFERÊNCIA DA MULHER

Fonte: Portal da Mulher Potiguar, 2017.

A partir da observação do Portal da Mulher Potiguar, fez-se um mapeamento das

políticas de atendimento as mulheres em situação de violência, como dito anteriormente,

o mapeamento constatou que apenas 07 municípios do Rio Grande do Norte têm serviços

voltados para a mulher, sendo que Natal, capital potiguar, concentra predominantemente

esses serviços, seguido respectivamente no que tange a quantidade de serviços ofertados

por Parnamirim, Mossoró, Caicó, Apodi, Passa e Fica e Portalegre.

Tabela 02 Equipamentos- Natal

Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher Zona Leste

Delegacia Especializada em Atendimento à Zona Norte

03 Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher

Secretaria Extraordinária de Políticas Públicas para as Mulheres

Secretaria Municipal da Mulher – SEMUL

Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar-

Coordenadoria da Defesa da Mulher e das Minorias - CODIMM

Coordenadoria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – COEPPIR

Centro Especializado de Atenção à Mulher Vítima de Violência Elizabeth Nasser

Núcleo Especializado na Defesa da Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar –

NUDEM

Núcleo de Apoio à Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar – NAMVID

Promotoria de Violência Doméstica

Casa Abrigo Clara Camarão

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Conselho Municipal da Mulher Cidadã

Fonte: Portal da Mulher Potiguar, 2017

Tabela 03 Equipamentos -Parnamirim

DELEGACIA ESPECIALIZADA EM ATENDIMENTO À MULHER

NÚCLEO ESPECIALIZADO NA DEFESA DA MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA

DOMÉSTICA E FAMILIAR – NUDEM

NÚCLEO ESPECIALIZADO DE PROTEÇÃO À MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA

DOMÉSTICA E FAMILIAR

JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

Fonte: Portal da Mulher Potiguar, 2017

Tabela 04 Equipamentos -Mossoró

DELEGACIA ESPECIALIZADA EM ATENDIMENTO À MULHER

CENTRO DE REFERÊNCIA DA MULHER – CRM

JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER MOSSORÓ

CENTRO ESPECIALIZADO DE ATENDIMENTO À MULHER

Fonte: Portal da Mulher Potiguar, 2017

Tabela 05 Equipamentos- Apodi, Caicó, Passa e Fica, Portalegre

APODI Secretaria da Mulher e da Igualdade

CAICÓ Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher

PASSA E FICA Coordenação da Defesa da Mulher

PORTALEGRE Coordenadoria de Políticas para Mulheres de Portalegre

Fonte: Portal da Mulher Potiguar, 2017

Dos equipamentos mencionados acima, como forma de situar o (a) leitor (a),

apresentamos sucintamente os equipamentos de enfrentamento à violência na cidade de

Natal, escolhemos a capital potiguar por esta atender à maior demanda da violência contra

a mulher, além de sediar os principais equipamentos de proteção a violência no Rio

Grande do Norte: Casa Abrigo Clara Camarão; Centro de Referência Mulher Cidadã;

Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; Centro Especializado de

Atenção à Mulher Vítima de Violência Elizabeth Nasser; Coordenadoria da Defesa da

Mulher e das Minorias – CODIMM; Núcleo de Apoio à Mulher Vítima de Violência

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Doméstica e Familiar – NAMVID, Delegacias Especializadas em Atendimento à Mulher

e Secretaria Extraordinária de Políticas Públicas para as Mulheres.

Das políticas citadas destaca-se o Núcleo de Apoio à Mulher Vítima de Violência

Doméstica e Familiar – NAMVID, Secretaria Extraordinária de Políticas Públicas para

as Mulheres e a Coordenadoria da Defesa da Mulher e das Minorias – CODIMM como

principais mecanismos de proteção e prevenção da violência, enquanto política integral a

mulher.

O NAMVID é vinculado a Promotoria de Justiça de Natal, o núcleo surge a partir

de convênio com o Ministério Público do Rio Grande do Norte, através da Resolução n°

188/2011 da Procuradoria Geral da Justiça (PGJ), “considerando que tal convênio

permitirá o fortalecimento da atuação do Ministério Público e a efetivação no Estado da

Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha)” (MPRN, 2011a). De acordo com a Resolução

é competência do NAMVID organizar e apoiar campanhas que promovam discussão

sobre os efeitos sociais e pessoais da violência baseada no gênero; capacitação dos

membros e servidores do MPRN; promover campanhas educativas, entre outras, de forma

geral propor e executar políticas institucionais relacionadas a temática de gênero (MPRN,

2011a).

O Núcleo tem seus princípios ancorados a partir de uma concepção educativa e

preventiva da violência contra a mulher. É composto por uma equipe multidisciplinar,

constituída por promotora de justiça-responsável pela coordenação, assistente social e

psicóloga. Dentre as competências que lhe cabe, o Núcleo vem desenvolvendo

capacitação no que tange o Grupo Reflexivo de Homens nos municípios do estado. Em

2017, psicólogas e assistentes sociais dos municípios de Pau dos Ferros, Marcelino

Vieira, Tenente Ananias, Alexandria, Pilões, João Dias, São Paulo do Potengi, Sítio

Novo, Serra Caiada, Senador Eloi de Souza e São Gonçalo do Amarante foram

qualificadas pelo NAMVID no enfrentamento da violência doméstica e familiar. A

capacitação consistiu em explicações acerca do funcionamento da entidade, das questões

de gênero e o Grupo Reflexivo. Como mencionado anteriormente, as ações desenvolvidas

pelo Núcleo estão alicerçadas nas políticas institucionais ligadas ao debate de gênero, ou

seja, implementação de programas e campanhas que evidencie tal discussão, bem como

articulação com entidades (MPRN, 2011a) que pontuem a proteção e prevenção da

mulher em situação de violência. Entre os serviços possibilitados estão o Grupo Reflexivo

para Homens: por uma atitude de paz, Rede Mulher, Violência de Gênero, Discutindo a

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Lei Maria da Penha no ambiente de trabalho, Lugar de Amor e Respeito (LAR) e Guardiã

Maria da Penha.

Outro equipamento que apontamos como alicerce das políticas de gênero é a

Secretaria Extraordinária de Políticas Públicas para as Mulheres, a qual foi decretada em

janeiro de 2015 pelo governador do Estado, Robinson Faria, juntamente com a Secretaria

Extraordinária de Juventude. Segundo o decreto 24.949/2015, é de competência da

Secretaria Extraordinária de Políticas Públicas para as Mulheres:

I - desenvolver ações institucionais voltadas para a igualdade de

gêneros;

II - atuar, em articulação com órgãos governamentais e instituições não

governamentais, com o objetivo de fortalecer as políticas públicas

voltadas para as mulheres;

III - propor, ao Governador do Estado, a adoção de políticas públicas

voltadas para as mulheres, além das já existentes;

IV - formular, ao Governador do Estado, proposta de reestruturação

do Conselho Estadual de Políticas Públicas para as Mulheres, que

poderá contemplar, em sua composição, a paridade entre o Poder

Público Estadual e a sociedade civil;

V – propor, ao Governador do Estado, a realização da Conferência

Estadual de Políticas para as Mulheres;

VI - auxiliar a realização, pelos Municípios, das Conferências

Municipais de Políticas para as Mulheres;

VII - propor, ao Governador do Estado, a adoção de meios capazes de

assegurar a consolidação do Plano Estadual de Políticas para as

Mulheres;

VIII - propor, ao Governador do Estado, o desenvolvimento de ações

articuladas com a Secretaria de Políticas para as Mulheres da

Presidência da República (SPM-PR) com o objetivo de implementar,

no âmbito deste Estado, o Plano Nacional de Enfrentamento à

Violência contra as Mulheres51 (PNPM);

IX - desempenhar outras atribuições correlatas quando, para tanto,

receber as devidas designações (RIO GRANDE DO NORTE, 2015).

O decreto 24.949/2015 aponta que a Secretaria Extraordinária de Políticas

Públicas para as Mulheres deve propor, atuar e formular políticas públicas estaduais, bem

como auxiliar a realização de eventos para as mulheres em parceria com os municípios.

Além disso, indica a articulação da Secretaria com a Secretaria de Políticas para as

Mulheres (SPM-PR) e com o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência contra as

Mulheres (PNPM). Para tanto, a implementação de políticas voltadas para o

enfrentamento à violência baseada no gênero consiste em uma ação de vários setores,

saúde, segurança pública, justiça, educação, assistência social, entre outros. A articulação

51 Grifos da autora.

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145

permite “ações que combatam as discriminações de gênero e a violência contra as

mulheres; interfiram nos padrões sexistas/machistas ainda presentes na sociedade

brasileira” (SPM-PR, 2011, p. 25). Dessa forma, a Secretaria Extraordinária ao dialogar

com o PNPM aduz os princípios que norteiam o plano de enfrentamento: prevenção-

ações educativas; assistência - fortalecimento da Rede de Enfrentamento a Violência e

qualificação dos agentes públicos; enfrentamento e combate - ações punitivas e

cumprimento da Lei Maria da Penha e, acesso a garantia de direitos – cumprimento da

legislação nacional e internacional (SPM-PR, 2011).

Portanto, cabe a Secretaria Extraordinária propor ao governador a implementação

de programas e projetos que se alinhem as ações desempenhadas pela SPM-PR. Nesse

contexto, temos o exemplo, do Projeto Maria da Penha vai à Escola, como uma medida

socioeducativa que se alinha a apreensão preventiva de ações educativas no

enfrentamento da violência contra a mulher. O deputado Dison Lisboa (PSD)52 propõe

tornar lei estadual o projeto da Secretária Estadual de Políticas Públicas para as Mulheres.

Destacamos que o município de Natal tornou tal projeto em lei municipal.

A Coordenadoria da Defesa da Mulher e das Minorias – CODIMM é responsável

por fiscalizar os serviços já existentes para atender as mulheres e minorias. É a primeira

Coordenadoria brasileira vinculada à Secretaria do Estado da Segura Pública, através da

Secretaria da Defesa Pública e da Defesa Social (SEDED), o que nos faz entender que o

estado do Rio Grande do Norte aponta a violência deferida entre as minorias ( LGBT,

idosos e portadores de limitações físicas) e as mulheres como questão de segurança

pública e social. É atribuição da Coordenadoria promoção e articulação de políticas

públicas, elaboração de projetos e a coordenação de equipe multidisciplinar para

implementar as políticas para as mulheres. Isto é, a Coordenadoria além de fiscalizar os

equipamentos já existentes de proteção para as mulheres tem que elaborar e auxiliar

políticas e projetos no combate ao enfrentamento da violência e discriminação, assim

como estimular o diálogo e discussão das questões que giram em torno da mulheres e

minorias. Além disso, a Coordenadoria administra os dados e serviços das violências

contra as mulheres e os homossexuais, por meio do SOS Mulher e Disque Defesa

Homossexual.

É importante salientar por que expusemos esses órgãos, e não os equipamentos

como a Casa Abrigo, Centro do Referência ou a DEAMs. Apresentamos esses, por que

52 Ver: http://agorarn.com.br/cidades/projeto-maria-da-penha-vai-as-escolas-pode-virar-lei-no-rn/

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146

entendemos que a efetividade de políticas públicas com teor socioeducativo perpassa

diretamente as ações dos órgãos competentes, principalmente, os dois últimos. A

responsabilidade de encarar a violência como problema social e enfrentá-la com o viés

educativo possibilita não erradicar, mas diminuir o índice de violência baseada no gênero.

Nesse sentido, é necessário que o artigo 8° da Lei Maria da Penha seja efetivado, tendo

em vista que indica as principais diretrizes socioeducativas que podem ser implantadas

pelo Estado, como: promoção de campanhas educativas voltadas ao público escolar

promoção de estudos com perspectiva de gênero, convênios e parcerias com organismos

que objetivam o combate à violência, capacitação dos servidores públicos quanto ás

questões de gênero e destaque no currículo escolar de todo nível com conteúdo que de

direitos humanos, equidade de gênero53 e violência doméstica (BRASIL, 2006).

Lançamos as palavras para evidenciar que a Lei Maria da Penha sublinha o caráter

socioeducativo como função do desmonte das construções de discriminações baseada no

gênero. Ademais, a CODDIM e a Secretaria Extraordinária para as Mulheres no Rio

Grande do Norte assinalam o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência contra as

Mulheres como plataforma a ser seguida, dessa forma, deve-se implantar dispositivos e

programas, promoções com características educativas para além de Natal e região

metropolitana, o interior do Rio Grande do Norte tem e deve demandar atenção para

promoção de políticas que discuta violência com perspectiva de gênero. Apontamos aqui

o Projeto Maria da Penha vai à Escola como principal instrumento educativo, até então

no Rio Grande do Norte, mas devemos elucidar que este percorre os municípios que o

demandam.

À luz dos dados apresentados acima entendemos que a ausência de aparelhos

destinados ao enfrentamento da violência reforça a violência contra a mulher, assim como

dificulta um trabalho em rede. Nesse sentido, é importante retomar a Lei por meio do

artigo 3° que expressa às mulheres condições para o exercício efetivo dos direitos à vida,

à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, sobretudo, dá responsabilidade

ao poder público na construção de políticas que visem garantir os direitos às mulheres.

Contudo, o Estado do RN, apresenta quantitativamente poucas políticas que garantam

segurança à mulher em situação de violências, por exemplo, as DEAMs, são 05 no total,

03 na Grande Natal (02 em Natal e 01 em Parnamirim) funcionando de segunda- feira a

sexta-feira em horário comercial, 01 na região Oeste, Mossoró, e outra em Caicó,

53 Grifos da autora.

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funcionando de segunda- feira a sexta-feira em horário comercial. A Casa Abrigo atende

somente 30 mulheres que podem abrigar-se até 03 meses na mesma. Deste modo,

compreendemos que o Estado não converge de forma efetiva com a Lei, uma vez que as

políticas públicas direcionadas ao enfrentamento da violência não atinge a todas de forma

igual.

Outrossim, os 160 municípios do estado que não tem equipamentos específicos de

enfrentamento à violência contra mulher utilizam o Cras e o Creas como ferramentas para

tal enfrentamento, ou seja, esses constituem-se como uma rede de atendimento. Apesar

disso, em conversa com psicóloga do Cras e Creas, em relação ao atendimento às

mulheres em situação de violência, ela afirmou que há grupos para as mulheres nos

municípios e que essas são acompanhadas pela assistente social e/ou psicóloga, porém

campanhas, programas são apresentadas somente em datas comemorativas, como o 08 de

março e Agosto Lilás. Salientamos que de acordo com a psicóloga apresenta-se nessas

datas a violência contra a mulher a partir da Lei Maria da Penha, inclusive, a mesma foi

responsável por palestrar no último Agosto Lilás sobre a Lei, no entanto informou que

não houve e que não há capacitação para discussão acerca da violência de gênero. Isto é,

de acordo com a psicóloga, a apresentação se deu a partir de dados copilados da internet

e ajuda da pesquisadora54. Diante disto, a partir da fala da psicóloga, observamos que não

há uma inclusão da perspectiva de gênero, apresentam-se as violências nomeadas na Lei,

mas não se aprofunda a discussão que a Lei proporciona, as relações de poder, as

desigualdades entre os gêneros, machismo, assim como quem são as mulheres sujeitas à

violência. Apontamos tais categorias como fundamentais para compreender a (des)

construção de um corpo violentado. Dessa forma, a utilização do Cras e Creas como

principal ferramenta no combate à violência nos 160 municípios potiguares aponta os

desafios à materialização da Lei Maria da Penha, tendo em vista que essa tem que ser

problematizada e refletida para além de apresentação das violências nomeadas na Lei e

datas comemorativas, bem como para prevenir uma possível agressão. Entretanto, como

já apontamos, o NAMVID tem sido o dispositivo de capacitação de psicólogos e

assistentes sociais do Creas e Cras para subsidiar a discussão acerca de gênero e a

violência doméstica.

Contudo, diante do exposto, mais uma vez percebemos a “falha” do Estado, a não

articulação e relação operacional dos Governos estadual e municipal, ou seja, indo na

54 A psicóloga procurou-me para que eu pudesse subsidiar a apresentação da mesma sobre a Lei Maria da

Penha.

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direção contrária do artigo 8° da Lei ao afirmar que medidas integradas de prevenção a

violências se dá por um meio articulado de ações da União, do Estado, dos Municípios e

organizações não governamentais (BRASIL, 2006). Apesar disso, não estamos dizendo

que nos 164 municípios norte rio-grandenses (incluindo aqui Apodi, Caicó, Passa e Fica

e Portalegre) não haja uma articulação dos municípios com organizações não

governamentais, nem tampouco com o Governo estadual, mas sim que há uma articulação

momentânea, em eventos específicos, tais como o Agosto Lilás e agora com o Projeto

Maria da Penha vai à Escola. Compreendemos o Creas e o Cras como instrumento que

possibilita uma efetividade parcial, pois acredita-se que a falta de capacitação dos

agentes55 de informação, prevenção e problematização da LMP é ineficaz56 para a

efetividade da Lei Maria da Penha, se faz importante apresentar os Núcleos como

ferramentas eficazes para tal efetividade, visto que o Núcleo Especializado na Defesa da

Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar – NUDEM e o Núcleo de Apoio à

Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar – NAMVID são responsáveis pela

aplicabilidade de campanhas, projetos e programas de combate à violência baseada no

gênero, isto quer dizer, que esses Núcleos estão em consonância com a Lei,

principalmente, sua perspectiva socioeducativa, visto que promovem palestras e ações

educativas, sinalizando tais ações como instrumento de desconstrução de violências.

Destacamos o projeto Maria da Penha vai à Escola, Grupo Reflexivo: por uma atitude

de paz, Reconstruindo o Self e Projeto Lumiar sob a luz da Lei Maria da Penha como

principais medidas socioeducativas promovidas a partir dos Núcleos no Rio Grande do

Norte.

4.2.1. LPM: Serviço para homens

Os grupos reflexivos57 são serviço para homens (LOPES, 2016) que conotam a

importância dos papéis e da política na disposição e gestão das ações para homens autores

de violência doméstica a partir de debates e palestras acerca das relações de gênero e

violência, “tais empreendimentos hoje encontram-se relativamente difundidos entre

55Dos 160 munícipio do Estado somente uma pequena parcela teve algum tipo de capacitação acerca da

temática de gênero. 56Ao afirmamos esses instrumentos como ineficazes para o combate à violência de gênero, acima de tudo

a doméstica e familiar, estamos assinalando que esses não devem ser o a única ferramenta municipal no

enfrentamento da violência. 57Segundo Lopes (2016), no Brasil na década de 90 grupos não governamentais já ofereciam esse serviço

para homens, porém só houve reconhecimento destes com a nova legislação.

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outros agentes: além das ONGs, diferentes instâncias do executivo e do judiciário

realizam esses serviços” (LOPES, 2016, p.7). No Rio Grande do Norte, temos o Grupo

Reflexivo: por uma atitude de paz e o Reconstruindo o Self que atendem os homens da

Grande Natal, esses grupos tem como incumbência acolher e discutir a problemática da

violência contra a mulher, assim como, apresentar as questões de gênero que constrói

homens como sujeito da violência/agressor e a mulher como agredida por meio de ações

socioeducativas. E, ainda, desmontar a percepção que a Lei Maria da Penha corrobora

para desigualdade entre os gêneros. Neste sentido, a ponderação proporcionada pelos

grupos constitui-se a partir de questões que lhes são próprias, como construção violenta

dos gêneros, masculinidade, a fim de pontuar as implicações que recai nas mulheres. Tais

categorias suscitam a problematização acerca das desigualdades, papéis, direitos e relação

de poder entre os gêneros. Compreendemos que os grupos reflexivos têm o papel de

desmontar as categorias mencionadas anteriormente, e indicar a violência doméstica

numa perspectiva relacional de gênero (BENTO, 2006).

O trabalho com homens autores de violência doméstica e familiar

contra a mulher, no âmbito do Direito, é uma inovação proposta na Lei

Maria da Penha como um dos mecanismos de enfrentamento à violência

contra a mulher. Com caráter reflexivo/ educativo, essa ação, destinada

aos homens a partir de um processo judicial, já tem sido implementada

em muitas comarcas espalhadas pelo Brasil como ferramenta para

promoção da proteção à mulher (LEITE, LOPES, 2013, p.22).

Leite e Lopes (2013) chamam atenção ao aferir os grupos reflexivos para homens

no contexto da violência doméstica como inovador, pois para os autores, o caráter

reflexivo/educativo constitui-se como mais um mecanismo de proteção e prevenção no

enfrentamento da violência contra a mulher. Sendo assim, concordamos com os autores

ao pontuarem que para a política de combate à violência de gênero contra a mulher seja

efetiva em sua aplicabilidade precisa ser concebida a partir do aspecto

reflexivo/educativo, sobretudo, dos três eixos norteados pela Lei Maria da Penha,

punição; proteção e assistência; e prevenção e educação, ou seja, uma combinação e

equilíbrio dessas medidas (LEITE, LOPES, 2013). Nessa direção, apresentamos os

Grupos Reflexivos de Natal e Parnamirim, uma vez que se alinham as perspectivas

apresentadas.

O Grupo Reflexivo: por uma atitude de paz é um equipamento vinculado ao

NAMVID através do Ministério Público do Rio Grande do Norte, que vem

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desenvolvendo desde 2012 ações para homens autores de violência doméstica. Conforme

José Rafael Dantas (2017), o grupo já atendeu desde sua implementação cerca de 300

homens distribuídos em 26 grupos. O autor chama atenção para as questões que são

trabalhadas no grupo, entendendo que essas giram em torno das questões de gênero. Nesse

sentido, o Projeto Grupo Reflexivo de Homens: por uma atitude de paz (MPRN, 2011b)

acredita que é necessário ampliar o atendimento para além da mulher em situação de

violência.

Necessário estendê-lo ao acusado, as crianças e adolescentes

envolvidas, nesses conflitos, enfim, a toda família. Afinal, não adianta

só institucionalizar o indivíduo acusado, se não existir no sistema

prisional ações ou políticas que promovam a conscientização do mesmo

em prol de uma mudança de atitude em frente a suas vítimas e suas

atitudes enquanto sujeito social. Logo, o fato do indivíduo estar recluso

não garantirá o rompimento do ciclo da violência, uma vez que toda

situação familiar e histórica permanecerá a mesma após o cumprimento

da pena (MPRN, 2011b, s/p).

O texto acima sinaliza a acepção de uma perspectiva socioeducativa no

enfrentamento da violência, ou seja, a promoção de ações pedagógicas para a ruptura das

violências aferidas do masculino sob o feminino. Diante disto, o documento escrito pelo

Ministério Público do Rio Grande do Norte, entende que a implementação de Grupo

Reflexivo é um mecanismo que possibilita uma ação voltada para homens autores de

violência, no mais, pensa-se essa ação a partir de desconstruções (gênero, estereótipos,

feminilidades e masculinidades, relação de poder). Ainda de acordo com MPRN (2011b),

o projeto tem por finalidade estimular, nos homens autores de violência, reflexão sobre

as suas atitudes/agressões; problematizar a Lei Maria da Penha no contexto de violência

doméstica na promoção de igualdade; promover alternativas diante de situações de

estresse e, a criação de um espaço compartilhado de escuta. Assim sendo, o projeto de

implementação de grupo reflexivo no Estado dialoga com a Lei Maria da Penha, os artigos

35º e 45º, visto que a Lei sinaliza este como uma ferramenta legal para desconstrução da

violência entre os gêneros. Para tanto, se faz necessário uma abordagem

psicosocioeducativa que visibilize e promova a ruptura de conceitos engendrados e

impostos sócio historicamente. O texto do projeto sinaliza tal abordagem, compreendendo

o caráter psicosocioeducativo como princípio de intervenção para proporcionar aos

homens autores de violência doméstica o processo de responsabilidade de suas atitudes,

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assim como a compreensão de fatores históricos, culturais e sociais na construção do

masculino como sujeito da violência.

Ressaltamos que o grupo atende às demandas dos juizados de violência doméstica

dos munícipios de Natal, Parnamirim, Macaíba e São Gonçalo do Amarante. Os grupos

são formados por 10 homens autores de violência doméstica sob assistência da

coordenadora do projeto, psicóloga e assistente social. A frequência é semanal e consiste

em 10 encontros que debate tais temas:

1º encontro: Apresentação pessoal através de dinâmica de grupo.

Esclarecimento de dúvidas e estabelecimento de regras de convivência.

A importância do sigilo. Saber da expectativa do grupo e da importância

dos encontros. Apresentação e discussão do filme Acorda Raimundo,

Acorda! Reflexão sobre papéis familiares58e conflitos de convivência.

2º encontro: Introdução as discussões de gênero. Dinâmica sobre o que

é ser homem e mulher. Questões biológicas/sociais/históricas e

culturais. Reflexões sobre violência.

3º encontro: O papel da comunicação e a solução de conflitos a partir

do diálogo. Trabalho motivacional. Convivência familiar: Como é

percebida a dinâmica familiar e a importância da comunicação.

4º encontro: identificação do comportamento agressivo – Prevenindo

a violência e como ter o controle da raiva.

5º encontro: Considerações sobre Direitos humanos. O conceito de

direito e suas interfaces.

6º encontro: História da Lei Maria da Penha e a sua execução.

Momento de tirar dúvidas sobre questões jurídicas e legais.

7º encontro: Uso abusivo de álcool e outras drogas. Conceito de

dependência química. Conhecendo as drogas no organismo: como

prevenir, identificar e tratar.

8º encontro: Saúde do homem: sexualidade, doenças sexualmente

transmissíveis e comportamentos de risco. Identificação da violência

sexual.

9º encontro: Avaliação geral da equipe e participantes. Verificação da

situação familiar e expectativas pós-grupo.

10º encontro: encerramento com momento motivacional (MPRN,

2011, s/p).

Os pontos elencados acima reforçam a natureza da perspectiva adotada para

dialogar com autores de violência doméstica, dessa forma, gênero aparece como categoria

basilar no processo de (des)construção da violência baseada no gênero. Deste modo,

podemos observar que conforme o texto do projeto tais categorias são acionadas em

consonância com visitas institucionais realizadas pela rede de atendimento as mulheres

em situação de violência doméstica e familiar, na qual foi verificado a partir dos discursos

das mulheres que não existia nenhuma intervenções/ação voltada para os autores de

58Grifos da autora

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violência no estado do Rio Grande do Norte, principalmente, na desconstrução da

naturalização da violência como inerente ou condicionada ao masculino (MPRN, 2011b),

isto quer dizer que, a implementação de grupo reflexivo como serviço para homens

(LOPES, 2016) possibilita a estes sujeitos problematizar e refletir a violência a partir da

construção violenta dos gêneros.

Vale ressaltar ainda que o Grupo de Reflexivo: por uma atitude de paz apesar de

receber homens autores da violência doméstica e familiar trava uma discussão para além

de uma apresentação da Lei Maria da Penha, como vimos anteriormente elencado nos 10

encontros. E, ainda é importante apontar que não cabe aqui defender nem muito menos

condenar esses homens, mas sim apresentar dispositivos que discuta o gênero como

categoria socioeducativa para romper uma vida de violência. Nesse sentido, indicamos

que a construção de gênero constrói sujeitos femininos e masculinos de forma violenta.

Logo, a discussão acerca da violência baseada no gênero, nesse caso para homens autores

de violência doméstica, sob processo judicial da Lei Maria da Penha, corrobora para que

estes sujeitos construam novas reflexões. O serviço para homens (LOPES, 2016), por

meio de grupos reflexivos, chama atenção para um campo emergente no requerimento de

mecanismos para homens autores de violência doméstica (DANTAS, 2017).

É importante reiterar que está sendo ampliado a outros municípios do estado,

como Parnamirim, São Gonçalo e Macaíba o grupos reflexivos. A efetivação dos Grupos

fica sob a responsabilidade dos Centros de Referência Especializado de Assistência

Social (CREAS). O NAMVID, além do grupo reflexivo foi apresentado em 2014, o

projeto Violência de gênero: um diálogo possível nas escolas que percorreu escolas

municipais de Natal das quatro regiões (norte, sul, leste e oeste) do ensino fundamental.

A dinâmica adotada foi apresentação de palestra e uma peça teatral.

De acordo com a Promotora de Justiça Érica Canuto, Coordenadora do

NAMVID e também do projeto, a ideia é trabalhar a temática dentro da

escola, devido a algumas violências de gênero começar no próprio

ambiente educativo. “Temos que aproveitar o espaço em favor de sua

própria ação educativa na desconstrução de desigualdade de gêneros e

prevenção da violência”, declarou (MPRN, 2014)59.

59Entrevista da coordenadora do NAMVID ao site do MPRN. Ver:

http://www.mprn.mp.br/portal/inicio/noticias/6281-6281-namvid-inicia-projeto-de-prevencao-a-

violencia-de-genero

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O projeto possibilitou a problematização da discussão da violência de gênero nas

escolas municipais da cidade de Natal, e configura-se como pioneiro para o projeto Maria

da Penha vai à Escola. A recepção do projeto serviu como pressuposto para

implementação do que veio em seguida60. No mais, esses projetos aludem à prevenção

das violências baseadas no gênero. Por conseguinte, afirmamos mais uma vez neste

trabalho que para visualizar uma mudança efetiva no processo de construção da violência

baseada no gênero é fundamental que se pense esse tipo de violência, primordialmente, a

partir da perspectiva socioeducativa, ou seja, a perspectiva punitiva não deve ser

compreendida como primeira resposta da violência baseada no gênero.

Assim como o Grupo Reflexivo de Homens: por uma atitude de paz que atende a

Grande Natal, temos o Reconstruindo o Self, vinculado ao Centro de Referência

Especializado de Assistência Social de Parnamirim (CREAS), em parceria com o

Ministério Público-RN, que desenvolve ações com perspectivas pedagógicas no

município de Parnamirim, região metropolitana do estado potiguar. O projeto tem como

premissa a reeducação de homens autores de violência doméstica, o que faz compreendê-

lo como um grupo reflexivo. Ademais, cada município é responsável por inclusão de

políticas, programas e projetos que atendam a demanda da violência contra a mulher.

Assim sendo, o Creas e o Cras configuram-se como equipamentos que podem subsidiar

a ausência de aparelhos específicos no combate à violência de gênero. O Reconstruindo

o Self trabalha a partir da perspectiva socioeducativa com a intenção de fazer que os

homens no contexto da violência (re) pensem as relações de gênero. Nessa direção,

segundo o juiz do Juizado de Violência Doméstica, Familiar e contra a Mulher-

Parnamirim, Deyvis de Oliveira Marques61 o projeto objetiva romper com o ciclo da

violência por meio de ações educativas, de acordo com o juiz aproximadamente 180

homens passaram pelo serviço.

Como já sinalizado, os serviços para homens autores de violência doméstica e

familiar é algo recente, uma recomendação da Lei 11.340/06, a partir dos artigos 35º e

45º. Retomamos o artigo 45°, parágrafo único, que aduz que o juiz pode designar para o

60 Lembramos que em 2013 o Núcleo Tirésias-UFRN, ofereceu um curso de capacitação para os professores

do município de Natal em parceria com a Prefeitura de Natal. O curso consistiu em 04 encontros aos

sábados, o qual discutia gênero e sexualidade. Inicialmente, o curso seria apenas para professores/as do

município, mas devido à demanda teve uma segunda turma aberta. Vale destacar que o Tirésias percorreu

algumas escolas da cidade de Natal para palestrar com os alunos, a demanda veio a partir dos/as

professores/as que participaram do curso. 61 Ver: http://www.tjrn.jus.br/index.php/comunicacao/noticias/10840-juizado-da-violencia-contra-a-

mulher-e-creas-implementam-projetos-em-parnamirim. Acessado em 18/12/2017.

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agressor comparecimento obrigatório em programas de reeducação (BRASIL, 2006). Em

outras palavras, ao encaminhar esses sujeitos para grupos reflexivos, há possibilidade que

com esses programas haja uma ruptura do processo construído socialmente e

historicamente em torno das relações de gênero, tendo em vista que os grupos reflexivos,

Reconstruindo o Self e o Grupo Reflexivo para Homens: por uma vida de paz, têm caráter

preventivo, pois entendemos que este serviço pode “desmontar” os homens autores de

violência por meio de uma (re)educação. Logo, a não reincidência de práticas violentas

contra a mulher, no entanto, cremos que o número de 10 encontros é apenas o ponto de

partida no processo de desconstrução desses sujeitos.

A experiência reflexiva orientada sob uma perspectiva feminista

procurará, no caso destes grupos, incorporar o(s) relato(s) de

violência(s), outros aspectos da vida conjugal e familiar dos sujeitos,

bem como diversos elementos da vida, com intuito de, partido dessa

matéria-prima e em constante diálogo dos participantes entre si e destes

com os facilitadores, possibilitar a emergência de (re)leituras que

conduzam os próprios homens a melhor se compreenderem no interior

das relações que estabelecem e, ao mesmo tempo, tornar conhecidas e

possíveis diversos outros modos de relações pessoais não violentas,

modos de resolução e mediação de conflitos que não impliquem recurso

às diversas formas de violência. Esse elemento reflexivo e prático, em

certo sentido, instrumental, confere a esses serviços uma conotação

específica quando conjugado ao adjetivo “educativo”. Por educativo,

neste caso, não nos referimos a uma mera questão conteudística,

preocupada em transmissão de determinados domínios/linguagens

definidos como universalmente válidos e inquestionáveis. Mais

próximo das reflexões de Paulo Freire, postula-se uma experiência

pedagógica que, baseada no reconhecimento dos saberes e nas

referências dos sujeitos envolvidos no processo de ensino-

aprendizagem, não só dos participantes, mas também da equipe de

profissionais que com eles atua, construa-se um conhecimento que, ao

mesmo tempo produzido como saber, produza-se também como prática

e, neste processo, conduza a novas experiências de libertação,

autonomia e outras formas de edificação de si e, deste modo, de relação

com o outro (LEITE, LOPES, 2013, p. 28).

Os autores sugerem que as intervenções com homens autores de violência devem-

se dar a partir da perspectiva feminista, já que a concepção da violência por esta

perspectiva elabora a compreensão das relações de poder e dominação masculina. Para

tanto, dar voz às mulheres em situação de violência, ou seja, transformar as vozes

silenciadas em barulho. Ademais, Leite e Lopes (2013) ponderam através de Paulo Freire

o processo de ensino-aprendizagem nos grupos reflexivos, assinalando que estes devem

adotar uma acepção pedagógica de compartilhar e trocar saberes. Isto é, criar

possibilidades que o agressor “seja o agente de uma reflexão transformadora, tendo as

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dinâmicas relativas aos gêneros e às violências como elementos que cruzam todo o

processo”, (LEITE, LOPES, 2013, p. 28), para que a partir disto, desenvolva-se e

potencializem-se relações que não terminem em violências, independentemente das

relações de gênero. Diante do exposto, é importante ressaltar que a Lei Maria da Penha

não ordenava a criação de espaços de (re) educação para os agressores, mas sim sinalizava

a possibilidade destes. Nesse sentido, podemos observar que a não obrigatoriedade deste

serviço pode ser a resposta da ausência do mesmo nos municípios norte rio-grandense. É

a partir da iniciativa do MPRN em 2016 com o grupo reflexivo que o Senado Federal

aprova a alteração da LMP, tornando obrigatória aos homens autores de violências

passarem por reabilitação em centros de educação62.

4.2.2. Maria da Penha vai à Escola

Para que a lei cumpra a sua função social, que é garantir a proteção

integral da mulher e fazer cessar definitivamente a violência, é preciso

avançar na constituição de uma rede de proteção pelo Estado (Centros

de Referência, Núcleos de Atendimento, Casas-abrigo, Casas de

Acolhimento Provisório, Delegacias Especializadas, Núcleos nas

Defensorias Públicas, Promotorias Especializadas, Juizados Especiais

de Violência Doméstica e Familiar), sendo necessário, ainda, uma

postura de mais comprometimento das instâncias judiciais no sentido

de promoverem, além da aplicação de medidas de caráter repressivo de

acordo com o contexto da criminalidade, a aplicação de medidas de

caráter educativo, visando mudanças estruturais no contexto da cultura

da violência no Brasil ( LEITE, LOPES, 2013, p.24).

No Rio Grande do Norte, o projeto Maria da Penha vai à escola tem por objetivo

apresentar a comunidade escolar a Lei Maria da Penha. O projeto é oriundo de uma

parceria com entidades que pautam o enfrentamento à violência doméstica no estado

potiguar, a Defensoria Pública, a Coordenadoria de Defesa da Mulher e das Minorias

(CODIMM), vinculada à Secretaria da Segurança Pública e da Defesa Social (Sesed-RN)

em diálogo com Secretaria de Estado da Educação (SEEC) e a Fundação José Augusto.

O projeto tem percorrido os municípios do Rio Grande desde 2016. A fim de subsidiar as

questões de violência doméstica. É distribuído nas escolas municipais e estaduais os gibis,

As Marias: em a Maria da Penha vai à Escola. O gibi apresenta a discussão da Lei Maria

62Ver: http://www.mprn.mp.br/portal/inicio/noticias/7361-iniciativa-do-mprn-inspira-projeto-de-lei-

aprovado-no-senado

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da Penha na sala de aula da professora Mariazinha. O material expõe de forma lúdica as

cinco formas de violências que a Lei aborda, bem como as medidas de prevenção e

proteção. Além dos gibis o projeto distribui panfletos e conta com palestra e apresentação

de mamulengo.

Figura 01. Panfletos e cartilha distribuída na escola Fonte: Portal da Mulher Potiguar

Figura 02. Cartilha: As Marias em: Maria da Penha vai à escola Fonte: Portal da Mulher Potiguar

Entendemos o projeto como uma ferramenta importante para a educação de

docentes e discentes na (des) construção das violências baseadas no gênero como algo

naturalizado socialmente e historicamente. Além do mais, a discussão levada à escola

possibilita compreender a Lei a partir do caráter socioeducativo. Nesse sentido, podemos

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considerar que o projeto dialoga com a perspectiva de prevenção e proteção da violência,

compreendendo que esta apresenta medidas para a interrupção da violência, medidas que

se aplicam após a violência, impedindo que suas implicações sejam agravadas, assim

como medidas que evitem que aconteça novamente tal violência (PASINATO, LEMOS,

2017).

A discussão da Lei, por meio do projeto, indica a escola como um espaço legítimo

da discussão de gênero. Dessa forma, apreendemos a escola como espaço de formação e

(des) construções, isto quer dizer que embora as relações de gênero, suas “diferenças” e

desigualdades não sejam colocadas previamente, podem ser e são construídas com

frequência (SAFFIOTI, 1999). A ação no âmbito da educação é essencial para a (des)

construção de relações pautadas nas discriminações, assim, a inclusão de uma educação

com perspectiva de gênero possibilita romper com discursos que perpetuam as múltiplas

dimensões da violência nos diferentes sujeitos. Isto é, a incorporação de programas que

abordem as questões de gênero, raça e classe social no ensino básico ao ensino médio

pode corroborar para construção de sujeitos reflexivos e que não (re) produzam padrões

violentos. Ou seja, temos que iniciar na fase da infância, nem que seja, no campo da

educação o debate sobre a temática – uma vez que somos socializados em diversos

espaços –, e processos que desconstruam padrões sociais e culturais ditos normativos e

normalizadores do que é certo e errado, normal, anormal e naturalizado. Diante disto, o

Projeto Lei Maria da Penha vai à Escola constitui-se como uma ferramenta primária para

a inserção da perspectiva de gênero na escola, principalmente, por essa ser mais que uma

política de processo penal. Reiteramos que essa se constitui muito mais norteada pela

perspectiva socioeducativa.

Para tanto, entendendo a escola como campo de formação, socialização,

multiplicidades e das diferenças, a discussão da Lei Maria da Penha neste território, indica

a escola como campo formador da garantia dos direitos das mulheres, neste caso com o

Maria da Penha vai à Escola, da garantia de uma vida sem violência. Reiteramos que o

projeto dá a possibilidade de compreender os processos sociais e históricos que constroem

o feminino como sujeito da violência, para que a partir desta compreensão haja uma

desnaturalização da violência. E, mais, que crianças e jovens comecem a enxergar as

sutilezas das violências baseadas no gênero, não só no âmbito doméstico, mas também

no público por meio de brincadeiras/piadas, ou mesmo, no comentário “isso é coisa de

menina ou de menino”. As marcas do machismo, sexismo, relações de poder e

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desigualdades está nas sutis brincadeiras, no processo de construção dos gêneros, logo,

essas marcas reforçam as violências.

O Maria da Penha vai à Escola é um projeto novo que foi lançado em Natal no

ciclo de comemoração dos 10 anos da Lei Maria da Penha e que tem percorrido escolas

estaduais e municipais do RN desde então. A capital potiguar destaca-se por tornar o

projeto em lei municipal n° 6.687/2017 que dispôs a criação do programa Lei Maria da

penha vai à Escola.

O PREFEITO MUNICIPAL DE NATAL, Faço saber que a Câmara

Municipal aprovou e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1° - Fica criado o Programa Lei Maria da Penha vai à Escola no

âmbito da Rede Municipal de Ensino do Natal.

Art. 2º - O Programa Lei Maria da Penha vai à Escola tem como

desígnio:

I – Contribuir para o conhecimento da comunidade escolar acerca da

Lei Federal nº 11.340, de 07 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha.

II – Impulsionar as reflexões sobre o combate à violência contra a

mulher;

III – Conscientizar crianças, adolescentes, jovens e adultos, estudantes

e professores que compõem a comunidade escolar, acerca da

importância do respeito aos Direitos Humanos, notadamente os que

refletem a promoção da igualdade de gênero, prevenindo e evitando,

dessa forma, as práticas de violência contra a mulher.

IV – Explicar sobre a necessidade da efetivação de registros nos órgãos

competentes de denúncias dos casos de violência contra a mulher.

Art. 3º - O Programa Lei Maria da Penha vai à Escola, será executado

pela Secretaria de Municipal de Educação do Natal e pela Secretaria

Municipal de Políticas para as Mulheres de Natal, em parceria com

entidades governamentais e não governamentais ligadas às temáticas da

Educação e dos Direitos Humanos.

Art. 4º - As equipes pedagógicas das escolas municipais deverão ser

capacitadas quanto às estratégias metodológicas no

desenvolvimento do trabalho pedagógico, em torno da temática

específica de gênero com apoio da Secretaria Municipal de Educação

de Natal e Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres de Natal.

Art. 5º - O Programa Lei Maria da Penha vai à Escola será

desenvolvido, ao longo de todo o ano letivo, em todos os níveis e

modalidades e junto à comunidade escolar realizando, no mês de março,

uma programação ampliada específica em alusão ao Dia Internacional

da Mulher destacando o tema do qual trata a presente Lei. Parágrafo

único. Os conteúdos referentes às noções básicas sobre a Lei Maria

da Penha63 serão ministrados dentro deste Programa.

Art. 6° - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas

as disposições em contrário (NATAL, 2017).

63 Grifos da autora.

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159

Observa-se que a implementação do projeto enquanto programa a partir da Lei

6.687/2017 assinala a capital potiguar com uma política socioeducativa específica no

campo escolar, sinalizando a capacitação da equipe pedagógica em torno da temática

exclusiva de gênero. O documento acima é importante para refletirmos que a Lei Maria

da Penha enquanto política pública de gênero tem introjetado a discussão de gênero nas

escolas a partir da Lei. Como dito anteriormente, o projeto inicia a discussão de gênero a

partir da violência doméstica. Nessa direção, adotar no campo escolar uma educação a

partir da perspectiva de gênero permite desfazer a escola enquanto instituição

normalizadora em que as masculinidades e feminilidades são construídas e lapidadas, ou

melhor, possibilita a desconstrução da mesma como espaço de naturalização de

comportamentos ditos masculinos e femininos.

Segundo Pasinato e Lemos (2017):

São reproduzidos e reforçados, inclusive, padrões violentos presentes

em contextos domésticos e familiares, como a “obrigação” das

mulheres para com as tarefas domesticas e de cuidado, a “habilidade”

dos homens para o trabalho na esfera pública e para a aprendizagem nas

ciências, para além de comportamentos violentos na forma de se

relacionar com mulheres e com homens também no seu dia a dia. Essa

reprodução de estereótipos de gênero tem impacto direto na reprodução

da violência por favorecer identidades sociais que atribuem papeis

distintos aos sexos de acordo com padrões hegemônicos, promovendo

relações de poder desiguais e, frequentemente, autoritárias. Desse

modo, difundir uma educação que discuta criticamente os papeis de

gênero construídos socialmente tornou-se instrumento prioritário para

promover uma ruptura no ciclo vicioso da violência (PASINATO,

LEMOS, 2012, p. 21).

Conforme pontuam Pasinato e Lemos (2017), a ruptura da violência masculina

heteronormativa exige uma mudança social, cultural e política que só é plausível com

construção de sujeitos que questionem os padrões normativos e os dispositivos de (re)

produção da desigualdade nas relações de gênero. Nessa direção, assim como as autoras,

entendemos que se faz necessário o reconhecimento da pluralidade das identidades, assim

como das desigualdades em sua multiplicidade e intersecionalidades. Para tanto, a (des)

construção dos sujeitos é fundamental para a concepção da violência a partir da

perspectiva de gênero, posto que não dá para mensurar a discussão acerca da violência

contra a mulher ignorando a perspectiva de gênero. É importante ressaltar que passados

onze anos de implementação da Lei, a incumbência de efetivar as medidas preventivas

no campo da educação ainda configura-se como:

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160

[...] um grande esforço através de ações desenvolvidas por profissionais

das Defensorias Públicas, Ministério Público, Poder Judiciário, com

palestras e atividades educativas ministradas para alunos(as) e

professores(as) e gestores(as) nas escolas” (PASINATO, LEMOS,

2017, p.22).

A integralização do ensino de gênero nas escolas está cada vez mais longe de

tornar-se realidade. Embora tenham sido demandados investimentos políticos, técnicos e

orçamentários aos governos federal, estadual e municipal, são poucos que assumiram a

responsabilidade de prevenção, proteção e punição da violência baseado no gênero.

Resultante dessa (in) responsabilidade há uma desarticulação nas redes de atendimento,

isto é, implicando diretamente nos serviços requerido pela Lei.

É importante deixar claro para o/a leitor (a) a inquietação da pesquisadora ao

refletir como é que tem se dado à implementação deste projeto nos municípios norte rio-

grandense durante esse pânico moral (MISKOLCI, 2007) acerca da Ideologia de Gênero

e da Escola Sem Partido, uma vez que entendo que a Lei Maria da Penha tem que ser

refletida e problematizada a partir do gênero. Nesse sentido, discorreremos no ponto

seguinte os entraves da discussão de gênero no âmbito escolar.

4.3. IDEOLOGIA DE GÊNERO: GÊNERO COMO UM PÂNICO MORAL

De acordo com Richard Miskolci (2007), o pânico moral é o mecanismo de

“resistência e controle da transformação societária que emergem a partir do medo social

com relação às mudanças, especialmente, as percebidas como repentinas e, talvez por

isso mesmo ameaçadoras” (MISKOLCI, 2007, p. 103). É nesse contexto que o debate de

gênero é apreendido como um pânico moral, sobretudo, no ambiente escolar. O gênero

tem sido incorporado e traduzido de um campo discursivo de ação, de ameaça à

sociedade, sob a luz de uma construção ideológica de gênero.

Junho de 2015: em várias partes do Brasil, vários vereadores, deputados

estaduais e federais se posicionam contrários à inclusão do gênero e da

identidade de gênero nos planos de educação. Dizem que as duas

expressões escondem desejo satânico de destruir a família tradicional.

Daí, portanto, defenderem que tal teoria de gênero deva ficar fora da

escola (BENTO,2017, p.171).

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Bento (2017) chama atenção para o medo da incorporação do gênero no plano da

educação. Salientamos que esse medo se dá pelo entendimento que gênero e sexualidade

não se distinguem, que ensinarão “os nossos filhos a ser gay”, uma vez que gênero e

sexualidade são colocados silenciosamente em seus discursos a partir do medo da

destruição da família nuclear cristã com moral inabalada.

Em direção do que acabamos de expor temos a Câmara de Apodi, região Oeste

potiguar que:

Aprovou um projeto de lei que “proíbe atividades pedagógicas que visem a

reprodução de conceito de ideologia de gênero na grade de ensino da rede

municipal e da rede privada” da cidade. Autor do projeto, o vereador João

Evangelista (PR) disse que o objetivo “é preservar as crianças” e que “cabe aos

pais discutir a orientação sexual dos filhos" ( G1 RN, 201764).

O discurso do vereador não se refere a gênero, mas a sexualidade. Há um temor

em torno da sexualidade. Lemos o projeto aprovado pelo vereador como um dispositivo

de controle dos corpos. É importante explicar, são inúmeras as apreensões acerca de

ideologia, no entanto, nenhuma que apresentássemos aqui significaria o que o

conservadorismo aponta como ideologia de gênero, até porque propor uma concepção ou

estudo acerca das questões de gênero na escola não denota teor persuasivo. Em outras

palavras, o debate de gênero não insinua/alude/obriga/ensina meninos a serem meninas,

ou meninas a serem meninos. Os estudos de gênero refletem sobre as construções

generificadas, sobre identidades e, ainda, sobre “ser” ou “estar” e “tornar-se” homem e

mulher. Ou seja, retirar da ótica da “normalidade” “nascer” homem ou mulher e conferir

a este corpo práticas masculinas e femininas condicionado pelas genitálias.

Aqueles que se negam a aprovar a inclusão da categoria gênero nos

planos de educação também têm teoria de gênero. Acreditam que somos

obra exclusiva do trabalho dos hormônios, dos cromossomos, dos

formatos das genitálias e de outras estruturas biológicas. Seriam estas

estruturas as responsáveis por definir nossas identidades? (BENTO,

2017, p.171).

Como observa Bento (2017), os sujeitos que recusam a inclusão da categoria

gênero do plano de educação também tem teoria de gênero, acrescento aqui, que esses

são os ideólogos de gênero, tendo em vista que arquitetam uma ideologia, concebem uma

64Ver: https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/vereadores-de-apodi-rn-aprovam-lei-que-

proibe-discutir-ideologia-de-genero-em-ambiente-escolar.ghtml

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apreensão do gênero a partir de práticas morais, religiosas e conservadoras65, baseia-se

na família como dispositivo que será ferido, desfeito.

Somam-se a esses grupos, outros, os quais apoiam a batalha por razões

não apenas religiosas, caso do Programa Escola sem Partido, no Brasil,

criado em 2004 como reação às práticas educacionais que seus

defensores definem como “doutrinação política e ideológica na sala de

aula” e “usurpação do direito dos pais sobre a educação moral e

religiosa de seus filhos”. No âmbito dos embates em torno da “ideologia

de gênero” [...] (MISKOLCI, CAMPANA, 2017, p.7329/730).

Miskolci e Campana (2017) explicam que os defensores da Escola Sem Partido e

contrário a Ideologia de Gênero, creditam que a inclusão de determinadas temáticas em

sala de aula dar-se por meio de uma doutrinação política e ideológica. Mas pensemos

bem, essa doutrinação política e ideológica não é tomada por estes na Câmara Municipal

e Estadual, no Senado Federal quando decidem as leis?

E, assim, os homens continuarão matando as mulheres.

As mulheres continuarão a serem estupradas. As mulheres trans

(travestis, transexuais) continuarão excluídas da categoria de

humanidade e seguirão sendo, diariamente, crucificadas. O que os

representantes dessa teoria de gênero incentivadora da violência dirão?

Diante dos argumentos reconhecidos internacionalmente da

importância de dotar as escolas de políticas capazes de transformar a

cultura da violência de gênero, esses parlamentares certamente

responderão: Vamos fazer mais uma lei para criminalizar (BENTO,

2017, p 172).

É na direção de se fazer mais uma Lei para criminalizar, como explica Bento

(2017), que a lei do Feminicídio surge em 2015, porém ela vai à direção contrária da Lei

Maria da Penha no que diz respeito ao gênero, pois a LMP assinala a violência baseada

no gênero, já a do Feminicídio sinaliza o homicídio de mulheres baseado no sexo.

Ressalto que o texto inicial tinha a pretensão de converge com a LMP, no entanto a

bancada evangélica cristã solicitou a exclusão de gênero no texto da Lei. Deste modo, os

ideológicos de gênero estão sempre preocupados em marcar o que é ser mulher e homem,

utilizando o biológico para definir tal. Portanto, a inclusão dos estudos de gênero no plano

educacional e até na lei apresenta-se como um pânico moral que deve ser combatido pelos

65 Como não lembrar os discursos nas votações (Câmara e Senado) sobre o impeachment da Presidenta

Dilma Rousself. Foi recorrente a afirmação que se dizia sim pelo impeachment por Deus e pela família. A

toda hora usavam as instituições religiosas e familiar para legitimar o voto sim ao impeachment.

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sujeitos que deveriam assegurar institucionalmente direitos iguais para todos, inclusão e

não exclusão.

Dessa maneira, trazemos o questionamento para reflexão da Lei Maria da Penha

sob o aspecto socioeducativo: como falar de gênero no processo educativo se no contexto

atual vivemos no processo inquisitório de caças as bruxas dos sujeitos que desestabilizam

as estruturas sociais? Como (des)construir modelos hegemônicos quando a sociedade

produz e reproduz na escola o lugar das hierarquias, relações de poder e assimetrias?

Porque o gênero e suas teorias amedrontam a sociedade promovendo perseguição e

ataques?

Não procuramos pensar em respostas imediatas para tais questionamentos, mas

precisamos reiterar que os ataques que a discussão de gênero sofre nos espaços

socioeducativos demandam desse espaço resistência para formar e instruir sujeitos que

no futuro não compreendam a violência como característica “natural” do masculino.

Logo, falar da LMP, da violência, do gênero nas escolas é propor que os discursos de

verdades sejam desestabilizados.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do texto procuramos problematizar e analisar a efetividade da LPM,

sobretudo, pensando à ação do eixo socioeducativo no Rio Grande do Norte. Para isso,

compreender como o gênero marca a Lei foi necessário, visto que compreendemos que

as tendências explicadas por Bento (2006), são postas implícita e explicitamente na

construção do gênero que hierarquiza o lugar da violência.

Tentou-se, primeiramente, apresentar neste trabalho como a violência encontra no

gênero uma forma hierárquica de agir nos sujeitos, uma vez que somos educados e

socializados para sermos homens e mulheres e conferir a estes corpos práticas masculinas

e femininas condicionado pelas genitálias, dessa forma, “desde o nascimento, o homem

e a mulher são “treinados” socialmente para interpretar o mundo que os cerca com

olhares do seu gênero” (BENTO, 2015, p. 53).

Mulheres e homens estão totalmente implicados na produção de um

modelo de homem violento e viril. Não se trata de dizer: “vocês,

mulheres, educaram seus filhos para matar as mulheres”, mas de pensar

que a estrutura hierárquica e assimétrica de gênero faz parte de um

projeto social o qual homens e mulheres estão envolvidos na

reprodução do modelo hegemônico. (BENTO, 2015, p. 10)

Bento (2015) chama atenção para o processo violento de construção dos gêneros,

e que essa construção implica em projetos de sujeitos engendrados nas normas sociais do

ser homem e mulher sob uma construção cristalizada nas instituições família, igreja e

escola, na “aprovação” do que é ser homem e mulher. É sob essa ótica que as violências

baseada no gênero vai responder a reprodução do modelo hegemônico que Bento (2015)

sinaliza. Segundo a autora, o modelo hegemônico de masculinidade produz e “exalta a

virilidade, a posse, o poder, a violência, a competitividade, mas apenas uma pequena

parcela da população masculina preenche as condições desse modelo” (BENTO, 2015,

p.90). Nesse sentido, o processo de construção dos gêneros se dá por meio de

interpelações, ideologias, Aparelhos Ideológicos (ALTHUSSSER, 1980) e práticas

discursivas que normatizam padrões e comportamentos e que sustentam e justificam as

violências ao feminino.

No segundo momento, procuramos demonstrar como a LMP visa à proteção da

mulher em situação de violência doméstica, os artigos analisados evidenciam a proteção,

prevenção e punição como dispositivos que alicerçam a Lei comentada. Contudo, como

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a violência contra a mulher foi legitimada histórica e socialmente por anos, e ao longo

desses anos vem se redimensionando, se fez e faz necessário a interferência do Estado

por meio da implementação de políticas públicas no enfrentamento da violência contra a

mulher. Nesse sentido, para que a LMP seja uma política efetiva no combate à violência

doméstica e familiar é importante que as políticas públicas assinaladas nas diretrizes da

Lei sejam implementadas em sua plenitude, ou seja, para que esta não tenha um caráter

técnico e superficial.

Não se pode ignorar que em muitos países todo o esforço em modificar

a legislação parece se apoiar muito mais numa crença na eficácia

simbólica que essas leis podem ter sobre os agressores do que num

compromisso efetivo para mudar a realidade de violência na qual se

encontram muitas mulheres. É como se o temor de ser preso e afastado

da convivência da família fosse suficiente para inibir o comportamento

violento, sem que maiores investimentos para implementação das

medidas através de políticas sociais sejam necessárias. (PASINATO,

2008). Além disso, a experiência tem demonstrado que é muito mais

fácil criar e mudar leis, do que alterar práticas institucionais e valores

morais com relação à violência contra a mulher. As reformas legais e

políticas podem ser inócuas se não forem acompanhadas de um esforço

para alterar também as práticas institucionais das pessoas encarregadas

da aplicação das leis e do atendimento nos serviços especializados ou

não. Agregue-se ainda a esta dificuldade, as diferenças regionais e as

dificuldades locais de oferta de serviços e pessoal qualificado para o

atendimento de mulheres em situação de violência (PASINATO, 2009,

p. 14).

De acordo com Pasinato (2009), as leis de enfrentamento à violência contra a

mulher se apoiam no medo deferido ao autor da agressão, não há investimento efetivo em

políticas sociais. Isto é, as leis de combate à violência contra a mulher centralizam-se no

eixo punitivo e as medidas socioeducativas compreendidas a partir do eixo prevenção e

proteção são pensadas também a partir do eixo punitivo, seja uma punição em forma de

prisão ou na ideia da prisão pelo “aprisionar” os sujeitos agressores numa ideia de punição

através do medo. Assim, o caráter socioeducativo das leis demandam menor

investimento, uma vez que enfatizam o encarceramento dos agressores como se este fosse

o mecanismo para mudança dos homens autores de violência doméstica. Diante disto, em

consonância com a autora, compreendemos que para mudanças nas relações desiguais de

gênero é fundamental intervenção e investimento em políticas sociais, que a

aplicabilidade da Lei Maria da Penha seja compreendida para além do aspecto jurídico-

policial. Em outras palavras, que o aspecto socioeducativo seja o aspecto fundante para o

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enfrentamento à violência doméstica e familiar, ou ainda, que a perspectiva

socioeducativa alcance o aspecto jurídico-policial.

Nesse contexto, no terceiro momento, apresentamos o Projeto Maria da Penha

vai à Escola, o Grupo Reflexivo para Homens: por uma atitude de paz e o Reconstruindo

o Self como programas efetivos na implementação de políticas educativas, no entanto

enquanto pensamos no alcance dos mesmos, entendemos essa efetividade parcial, uma

vez que não atinge o Rio Grande do Norte em grande escala. Apesar de compreender que

os municípios são responsáveis por incorporação de programas que possibilitem o debate

acerca de gênero entendemos que o Estado tem que demandar de forma mais eficaz a

propagação de programas estaduais com viés educativo e punitivo para todos os

municípios.

[...] a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a

Mulher (com competência para julgar processos civis e criminais), a

previsão e estímulo à criação e consolidação de uma diversificada rede

de assistência (incluindo, entre outros equipamentos, casas-abrigos,

centros de referência da mulher, serviços de educação e

responsabilização para autores de violência doméstica), o

estabelecimento de algumas garantias sociais às mulheres (por

exemplo, a inclusão, por tempo determinado, em programas

assistenciais do governo; a garantia do afastamento do posto de

trabalho, sem implicar rompimento de vínculo, quando a integridade

física estiver ameaçada), a previsão das medidas protetivas e do tempo

máximo de 48 horas para a sua apreciação pelos juízes; a estipulação e

planejamento de campanhas e atividades de prevenção centradas no

combate ao machismo; e a criação de programas continuados de

qualificação e formação para os operadores de Direito desse campo.

Outra importante inovação sancionada com a lei é a possibilidade de o

juiz determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas

de caráter educativo (LEITE, LOPES,2013, p.20/21).

Ao elencar as diretrizes da Lei 11.340/06, chamamos atenção junto com Leite e

Lopes (2013) para a inovação que a Lei apresenta. Observamos a partir desta a

necessidade de fortalecimento das políticas públicas destinadas às mulheres. Desse modo,

assinalamos que envolver crianças, jovens, adolescentes, agressores e mulheres no

contexto de violências no RN a partir do plano de educação dos projetos citados,

intensifica a (des) construção da violência contra a mulher, bem como o violento processo

de construção dos gêneros, uma vez que acreditamos que a ação nas escolas e a

intensificação de campanhas educativas é uma das formas de dar efetividade a Lei, bem

como o atendimento aos autores da violência, haja visto que compreendemos que a Lei

por si só não é o suficiente para a compreensão da violência aferida ao feminino.

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Portanto, reiteramos ao decorrer do texto a importância da educação através da

escola e (re) educação por meio de grupos reflexivos como mecanismos de pensar a

violência a partir do gênero para aferirmos a mesma de maneira preventiva, ou seja,

pensar, primeiramente, na prevenção como instrumento de controle da violência. Assim

sendo, indicamos os trabalhos socioeducativos/pedagógicos como ferramenta de

enfrentamento à violência contra a mulher como forma de acentuar as práticas de

violência, a fim de evidenciar a efetividade na desconstrução de práticas violentas.

Entendemos que esse não é um trabalho que encerra a necessidade de pensar a

efetividade da LMP, tampouco, refletir sobre as práticas discursivas inscritas na

construção e na leitura social da LPM. Desse modo, outros questionamentos são lançados

na tentativa de compreender os múltiplos questionamentos não refletidos aqui, tais como:

Como pensar uma vida sem violências quando o atual contexto social e político brasileiro

nos “puxa” a todo momento para séculos passados? Ou ainda, é possível prevenir a

violência doméstica e familiar sem falar de gênero, principalmente, quando temos na

escola a disputa eleitoreira, religiosa de Escola Sem Partido, Ideologia de Gênero? Estes

questionamentos nos levam a afirmar que estamos inserido em um momento político e

social de caça às bruxas quando nos referimos a gênero, assim sendo, as políticas de

promoção de igualdade de gênero, o direito de viver sem violências, os direitos sexuais e

reprodutivo estão sob ataque do conservadorismo. Destacamos mais uma vez que

conforme o artigo 8° da Lei a educação compõe um elemento basilar na construção de

uma vida sem violência, desempenhando um papel central na construção das identidades.

Outrossim, é importante, voltarmos aos questionamentos que fizemos no capítulo

2, indagações provocadores e que devem ser pensadas em estudos futuros: Quais

violências poderiam e podem ser evitáveis se o Estado se responsabilizar para uma vida

de garantias para as mulheres? A vida das mulheres importam? Se sim, quais mulheres?

Ao decorrer da escrita podemos ver quais vidas importam, sim as vidas das

mulheres importam, entretanto, de acordo com os dados do Mapa da Violência

(WAISELFIZ, 2015) são as vidas de mulheres não trans, brancas e de classe social

média/alta. Isto quer dizer que, a violência se inscreve no corpo e alma (MACHADO,

GOSSI, 2015) da mulher negra e periférica. Ademais, vale apontar que os dados

referentes a violência doméstica não faz menção as mulheres trans e travestis, haja visto

que os dados/estatísticas sinalizam a violência apenas na mulher não trans. Dessa forma,

questionamos: Se a Lei Maria da Penha é uma Lei para as mulheres baseada no gênero,

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porque os dados não apresentam as diversas maneira de se entender mulher nas

estáticas?

Portanto, ao atravessar gênero e violência sob efeitos de uma política pública, uma

Lei de enfrentamento à violência contra mulher, procuramos contribuir sociologicamente

para refletir e analisar os seus significados, percurso histórico e sua ação no Rio Grande

do Norte, estado que rankeia o 5º lugar e que como vimos seus equipamentos e programas

de combate à violência doméstica ainda estão centralizadas na Grande Natal. Reiteramos

que o não alcance territorial acaba corroborando para que o processo socioeducador da

Lei não seja disponibilizado para todos os municípios potiguar. No mais, analisar o eixo

socioeducativo, possibilita-nos também no futuro refletir sobre as ações conjuntas entre

os eixos socioeducativo, proteção e prevenção; e o eixo punitivo no Rio grande Norte.

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