UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · Na obra Crítica da Modernidade, Alain Touraine...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E CRÍTICA DA METAFÍSICA
MAURO ROGÉRIO DE ALMEIDA VIEIRA
NIETZSCHE E A MODERNIDADE: DA CRÍTICA À METAFÍSICA À CRÍTICA À DEMOCRACIA
Natal (RN) 2012
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MAURO ROGÉRIO DE ALMEIDA VIEIRA
NIETZSCHE E A MODERNIDADE: DA CRÍTICA À METAFÍSICA À CRÍTICA À DEMOCRACIA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia, Área de Concentração: História e crítica da Metafísica. Orientadora: Profª. Drª. Fernanda Machado de Bulhões.
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Natal (RN) 2012
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MAURO ROGÉRIO DE ALMEIDA VIEIRA
NIETZSCHE E A MODERNIDADE: DA CRÍTICA À METAFÍSICA À CRÍTICA À DEMOCRACIA
Dissertação aprovada em _____/_____/______, para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Banca Examinadora:
___________________________________________
Profª. Drª. Fernanda Machado de Bulhões Orientadora (Departamento de Filosofia - UFRN)
___________________________________________ Profº. Dr. Markus Figueira da Silva
Membro Interno (Departamento de Filosofia - UFRN)
___________________________________________
Prof. Dr. Miguel Angel Barrenechea Membro Externo (Departamento de Filosofia - UFRJ)
Natal (RN) 2012
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Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Vieira, Mauro Rogério de Almeida. Nietzsche e a modernidade: da crítica à metafísica a critica à democracia /
Mauro Rogério de Almeida Vieira. – 2012. 127f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Natal, 2012.
Orientadora: Prof.ª Fernanda Machado de Bulhões. 1. Metafisica. 2. Ideias modernas. 3. Verdade. 4. Moral. 5. Democracia. 6.
Filósofos do futuro. I. Bulhões, Fernanda Machado de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/BSE-CCHLA CDU 111
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À Poliana, Por ter incentivado o retorno à pesquisa em filosofia, algo quase perdido devido ao
espírito de papagaismo impregnado nas academias, e pela intensidade vivida e pelo afeto e humor durante todos esses dias.
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AGRADECIMENTOS
Esta pesquisa foi possível devido ao incentivo e à paciência dos meus pais, José
Raimundo Vieira e Eronice de Almeida Vieira, e ao companheirismo dos meus
irmãos e primos, Robert Vieira, Renato Vieira, Laiza Vieira, Larissa Vieira, Enéias
Santos, Edilson Santos, Edson, Eliane, Ana Júlia Vieira.
Agradeço aos amigos Romildo Gomes, Marciano Vieira e ao poeta Smith de Sinope.
Agradeço aos amigos da Escola Estadual Rui Barbosa (2009), em Tibau/RN, e da
EEEP Prof. Walquer Cavalcante Maia (2011) em Russas/CE.
Agradeço carinhosamente à Poliana por suportar o humor cansado e ajudar durante
a confecção do trabalho. Enfim, agradeço a todos que estão próximos destes que
acabei de mencionar.
Agradeço à Profª Fernanda Bulhões por aceitar a orientação.
Agradeço especialmente aos detalhados comentários do Profº Miguel Angel
Barrenechea e do Profº Markus Figueira da Silva durante o exame de qualificação.
Agradeço, ainda, ao Profº Miguel Angel pelas recomendações e indicações precisas
pós-qualificação no que se refere à finalização da pesquisa, principalmente por sua
atenção e vasto conhecimento sobre a obra e crítica de Nietzsche.
Meus agradecimentos ao Profº. Alípio Sousa, pelas contribuições durante o
desenvolvimento da disciplina ―Ética I‖.
Agradeço, ainda, aos Profºs. Jaimir Conte, Sérgio Dela-Sávia, Jaime Biela e
Eduardo Pellejero, pela troca de experiência durante o estágio de docência
assistida.
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“Eu não sei o que significa uma verdade objetiva, todas as verdades são para mim verdades sangrentas”.
“A vida mesma é, para mim, instinto de crescimento, de duração, de acumulação de forças, de potência: onde falta a vontade de potência, há declínio.”.
“É difícil ser compreendido: sobretudo quando se pensa e se vive no ritmo do Gânges entre os homens que pensam e vivem diferente, ou seja, no ritmo da
tartaruga ou, no melhor dos casos, “conforme o andar da rã”.
(Friedrich Wilhelm Nietzsche)
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RESUMO
VIEIRA, Mauro Rogério de Almeida. Nietzsche e a modernidade: da crítica à metafísica à crítica à democracia. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012.
Esta dissertação apresenta uma interpretação a respeito das considerações críticas do filósofo alemão Friedrich Nietzsche sobre a modernidade, mais precisamente a crítica de Nietzsche à verdade, à moral-cristã e à democracia por ele desenvolvidas em Além do bem e do Mal. Nietzsche analisa atentamente os pormenores da modernidade, faz um diagnóstico do homem moderno e encontra o sinal da decadência. Consideramos que a crítica de Nietzsche à modernidade passa necessariamente pela crítica à metafísica clássica. Destacamos algumas questões como: o que em nós aspira à verdade? Por que e para que a moral-cristã? O que caracteriza a modernidade? Seria o apelo ao gosto democrático? É possível reinventar a modernidade? Salientamos o vínculo que existe entre a noção de verdade, a democracia e os valores morais cristãos, mostrando que esses valores morais foram herdados da cultura socrática. Também esclarecemos a proposta nietzschiana de um novo modo de fazer filosofia, que seria capaz de ultrapassar a decadência que impera na moderna cultura europeia. Ou seja, o término desta pesquisa aponta para os ―filósofos do futuro‖, filósofos capazes, segundo Nietzsche, de afirmar a vida além das oposições metafísicas, além do bem e do mal.
Palavras-chave: Ideias modernas. Verdade. Moral. Democracia. Filósofos do futuro.
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ABSTRACT
This dissertation presents an interpretation concerning the critical considerations of
the German philosopher Friedrich Nietzsche on Modernity, especially Nietzsche‘s
criticism of Modernity, of Christian mores and democracy produced by him in Beyond
Good and Evil. Nietzsche attentively analyses details of Modernity, produces a
diagnosis of modern man and discovers the sign of decay. We consider that
Nietzsche‘s criticism of modernity is directly linked to the criticism of classic
metaphysics. We emphasize questions like: what in us aspires to truth? Christian
mores: why and what for? What characterizes modernity? Could it be the appeal to
the democratic taste? Is it possible to reinvent Modernity? We stress the relation
between the notion of truth, democracy and Christian mores, showing that these
mores were also inherited from the Socratic culture. We also intend to clarify
Nietzsche‘s proposal of a new way of doing philosophy, that would be able to
surpass the decay which rules in European modern culture. The end of this research
points out to the ―philosophers of the future‖ who are able, according to Nietzsche, to
claim life beyond the metaphysics opposition, beyond the good and the evil.
KEY WORDS: Modern Ideas. Truth. Moral. Democracy. Philosophers of the future.
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.............................................................................................
PRIMEIRO MOVIMENTO
2. A CRÍTICA DE NIETZSCHE À VERDADE E À MORAL............................
2.1- A fé metafísica na verdade...............................................................
2.2- A moral cristã europeia e a crença nas ideias modernas................
2.3- O método genealógico de Nietzsche...............................................
SEGUNDO MOVIMENTO
3. A CRÍTICA À DEMOCRACIA......................................................................
3.1- Ideal ascético e decadência.............................................................
3.2- Homem moderno: o animal de rebanho...........................................
3.3- Democracia e igualdade: extinção da singularidade........................
3.4- Uma nova espécie de filósofo..........................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................
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1. INTRODUÇÃO
A esperança e o medo movem muitos homens. A esperança surge como
crença em um mundo sempre melhor. O medo faz as pessoas desconfiarem da
novidade, alimenta o temor na ação diante do mundo. A modernidade é um
movimento histórico que traz, no seu bojo, a esperança. Há esperança no abandono
da superstição, esperança em novas descobertas, esperança na maioridade e na
independência dos homens. Ao mesmo tempo em que a esperança apresenta a
novidade, o medo sufoca e instala a covardia, anula a ação e suspende a expansão
das potencialidades humanas. O sentimento de medo impele nas pessoas uma
permanência e a espera de um destino, de um futuro próspero, repleto de
comodidades e certezas. O medo encerra a afirmação da vida1, mantém dentro de
certos limites ou sob controle o transbordamento desta. O homem moderno é
trespassado por esses dois sentimentos, a esperança de encontrar o âmago das
coisas e o medo de que ele não exista.
A modernidade2 surgiu com a esperança de que a sociedade fosse regida
pela racionalidade. A esperança na razão disseminou a ideia de que o conhecimento
pode ser fragmentado, e cada parte examinada positivamente. O que se pretende
com a racionalidade é compreender a vida ao invés de intensificá-la. O corpo é
figurado como uma máquina, com cada peça independente e passível de troca,
razão pela qual é dissecado nas universidades. A sociedade moderna é pensada a
partir de uma grande engrenagem cujo funcionamento depende da positividade dos
fatos e da previsão dos acontecimentos. Acredita-se em uma divisão
suficientemente clara entre o bem e o mal. O desenrolar dos fatos é previsto em
uma direção única e cumulativa, em busca de uma situação próspera. O mal, ou
1 Nesta pesquisa, o conceito de vida não será tratado de modo estanque, ao longo do texto serão
realizadas algumas indicações. Porém, de acordo com Nietzsche (2005), adiantamos que, em sentido amplo, a vida é efetivamente atuação e embate de forças numa realidade de caráter móvel, dinâmico, incessantemente em transformação, é conservação e intensificação. A vida é vontade de potência, isto é, diz Nietzsche, ―a vida mesma é, para mim, instinto de crescimento, de duração, de acumulação de forças, de potência: onde falta a vontade de potência, há declínio‖ (NIETZSCHE, 2007, § 6). 2 Cf. TOURAINE, 1994. Na obra Crítica da Modernidade, Alain Touraine toma como preocupação
central a construção do grande projeto histórico da modernidade, destacando os seus aspectos positivos e negativos. Houve, sem dúvida, um grande avanço. A humanidade passou de uma sociedade tradicional, alicerçada na fé a qualquer custo e na tradição, para uma sociedade regida pela racionalidade. A importância da análise reside no fato de que as sociedades ocidentais ainda se organizam à luz da racionalidade.
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qualquer outro elemento negativo, no processo progressivo da humanidade, deve
ser negado e eliminado.
Desse modo, o que se percebe é o excesso do uso da racionalidade, o que
nos faz pensar o processo da vida, em todos seus aspectos, encarcerados em uma
grande racionalização. A racionalização consiste em colocar a razão como a única
forma de conceber a vida e como aspecto primordial nas relações que o homem
produz e das quais participa. O uso extremado da razão diante da vida nos permite
visualizar os sintomas inconfundíveis que prenunciam o surgimento de uma
sociedade decadente, de homens doentes e sem vontade, fracos e debilitados no
seu modo de ser. Essa sociedade moderna é governada por um poder político
debilitado, tacanho e resoluto na proposta de tudo resolver e prever. Quando esse
poder debilitado não pode resolver e prever, utiliza o exercício da força para manter
e controlar a vida.
Friedrich Nietzsche, nesse contexto, analisa, de modo muito atento, os
pormenores da modernidade. Na obra de Nietzsche, não encontramos a crítica à
modernidade organizada através de um conceito pronto, acabado, tecido lógica,
precisa e objetivamente. Nietzsche menciona em Além do bem e do mal (2005) as
chamadas ―ideias modernas‖. Por ideias modernas, podemos entender os valores
hegemônicos da ciência, da religião cristã e política, a partir do modelo socrático-
platônico na Grécia antiga até o século XIX. Os conceitos científicos, pautados pelo
modelo lógico-cientificista, foram se ampliando, pouco a pouco, até atingir todas as
esferas da atividade humana. A religião cristã, através dos valores ascéticos,
consolidou uma ética prescritiva e redutora das especificidades humanas em uma
moral universal e padronizante. A política, praticada sob influência desses valores,
encontra-se subordinada à produção capitalista. Com a propagação dos ideais de
liberdade, igualdade e fraternidade, forja-se uma falsa igualdade democrática. Em
decorrência da disseminação desses valores, há o distanciamento do homem da sua
atuação efetiva no espaço público e, consequentemente, a eliminação de toda
autonomia e originalidade pertencentes ao ser humano.
O filósofo alemão faz o diagnóstico do homem moderno e encontra o sinal
da decadência. A decadência invade a vida, a cultura e enseja o surgimento de
homens domesticados na sua ação e nivelados em seus desejos e anseios. O que
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provoca a decadência e o rebaixamento do homem é a escalada do modo de valorar
advindo das ideias modernas. As valorações mais veementes são produzidas pela
crença metafísica, principalmente a crença metafísica na verdade.
A crença metafísica na verdade, marca da filosofia socrático-platônica que
perdura até o século XIX, pressupõe a oposição entre mundo verdadeiro e mundo
falso. Ela estabelece a busca do verdadeiro a qualquer custo. Essa crença é
metafísica porque opõe o falso ao verdadeiro. A metafísica clássica, para Nietzsche,
é a crença na oposição dos valores. Dessa forma, o verdadeiro é atributo de um
mundo em si, e o falso, pertencente ao irreal e aparente. O verdadeiro deve ser
alcançado a todo custo e o falso, negado a qualquer preço. Por que a crença da
verdade é sintoma de decadência? Porque, ao buscar a verdade, o homem cria uma
cisão entre um mundo inteligível, transcendente, e outro sensível. A verdade está
situada no mundo transcendente e inteligível e pode ser referência e se tornar
fundamento para o mundo sensível. Ao colocar a verdade em um mundo
transcendente, o homem desqualifica e nega toda a exuberância da vida. Daí surge
a decadência. A partir da negação do mundo sensível, o ser humano idealiza a
manifestação de vários aspectos da vida.
Nesse sentido, a crítica de Nietzsche à modernidade passa pela crítica da
metafísica clássica. É na modernidade que se consolida a oposição de valores, que
supõe a negação de um valor em detrimento do outro. Ao realizar a cisão entre
mundo verdadeiro e mundo falso, o ser humano abandona a afirmação do mundo
dos sentidos e a sensualidade da vida para colocar a verdade em um patamar
estritamente absoluto. O critério da verdade não é a condição de representação do
mundo, mas sua identificação e adequação com o ser perfeito e eterno. A
metafísica, como entendimento dual da realidade, procura sobrepor o mundo
inteligível ao sensível. Sua dualidade é tributária da ideia de razão que permeia o
mundo com o substrato do procedimento verdadeiro e negação do falso como
irracional. Assim, para Nietzsche, a metafísica clássica, como criação dessa
dualidade e concessão de privilégio ao mundo inteligível e transcendente, nada mais
é do que um processo de juízo de valor. Desde então, a vida e o mundo são
sentenciados e condenados à decadência sem ampla defesa ou contraditório.
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A crítica de Nietzsche à democracia é uma análise desse processo de
valoração impresso desde a metafísica clássica até a modernidade. O processo de
valoração consiste em interpretações e juízos de valor. Os modos de interpretar e
julgar, aplicados à vida desde o platonismo até a consolidação da moral cristã,
suprimem e soterram a ação, além de minar a expansão da espécie humana e a
superação constante a qual está submetida. A vida a ser cultivada por esse modelo
de ação é a vida que se apresenta como negação das potencialidades e
singularidades humanas. O próprio corpo é um fardo a ser esquecido e recusado. O
mais importante a ser considerado é o ideal ascético, é a eliminação da originalidade
e da força do ser humano. A moral cristã europeia, dessa forma, seduz e empalidece
a vontade de potência3 (Wille zur Macht). É a partir desse prisma que Nietzsche vai
tecer suas considerações críticas a respeito da democracia burguesa.
Para Nietzsche, o tipo animal de rebanho surge quando o cristianismo
escamoteia as necessidades e os anseios pessoais, dissolve e ignora o instinto de
superação. É a partir da instalação do rebanho humano que se pode distinguir entre
os homens fracos e os homens fortes. O animal de rebanho é o sintoma mais
evidente do tipo fraco que surge com as ideias modernas. O panorama traçado por
esse modo de existência é o desprendimento da vida em atividade, em expansão. O
animal de rebanho se torna um ser dependente, comum, mediano, haja vista exigir
de si apenas a renúncia, o sacrifício em prol do todo.
A tese de Nietzsche, no que toca à sua análise sobre a moral presente na
Europa de seu tempo, permite-nos perceber o incentivo à formação de indivíduos
através do conceito de bom atrelado à equalização das vontades, dos desejos e dos
hábitos e, como virtude, um único instinto, o de rebanho. Esse instinto assume
status de único e predomina sobre os demais. O instinto de rebanho é assimilado
fisiologicamente através de uma conformidade crescente que pretende suprimir a
diferença no modo de valorar e instalar a semelhança através da moral, ou melhor,
da moral de rebanho.
3 Escolhemos a tradução de Wille zur Macht por vontade de potência, levando em consideração a
justificativa de BARRENECHEA (2009, p. 59). Esse autor optou por traduzir Macht por potência porque, na língua portuguesa, potência possui um alcance mais amplo: ―há potência no homem, nos animais e até no âmbito inorgânico‖. Na tradução de Macht por poder, há uma redução de sentido em português, uma vez que poder se restringe à esfera humana como, por exemplo, poder militar, econômico, estatal e outros.
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Essa moral que, durante séculos, alcança hegemonia na Europa é
fomentada e auxiliada pela religião cristã, que justifica e aceita a regularidade dos
desejos do animal de rebanho. Essa religião, em que se escoa a untuosa moralidade
de rebanho, permeia, onde sequer poderíamos imaginar, as instituições políticas e
sociais. É a partir desse ângulo que Nietzsche aponta que o movimento democrático
compõe legado legítimo na modernidade do movimento cristão.
Todavia, Nietzsche criticou o idealismo metafísico clássico que sustenta a
cultura ocidental moderna e traçou, como objetivo audacioso, resgatar a filosofia à
vida. Sua intenção é trazer a filosofia para a esfera das potencialidades e
singularidades humanas. Desse modo, é importante, na filosofia de Nietzsche, sua
crítica aos grandes ideais da modernidade. O filósofo alemão procura analisar
criticamente, por exemplo, a democracia, não para afirmar o totalitarismo; analisa o
socialismo, devido ao seu despotismo; analisa o liberalismo e seu vínculo à moral
utilitária; analisa o animal de rebanho e seu apego à felicidade e à comodidade
generalizadas que alicerçam os ideais de decadência.
Nesse sentido, a presente dissertação tem por objetivo estudar a crítica de
Nietzsche à metafísica tradicional, priorizando sua análise da verdade e da moral,
bem como examinar a crítica da democracia, advinda de sua análise da
modernidade prenhe da metafísica clássica. Partimos da suposição de que a
delimitação e a articulação dessa crítica são fundamentais para a reconstituição das
análises de Nietzsche sobre o problema da modernidade. A partir da delimitação dos
conceitos, pretendemos recompor, em linhas gerais, a investigação da
caracterização da moderna cultura europeia apresentada na filosofia de Nietzsche.
Nesse trajeto, pretendemos assimilar a compreensão do processo de decadência da
civilização e a proposta de uma filosofia futura que aponta o surgimento de novos
filósofos no âmbito da cultura.
Conforme o exposto, o desenvolvimento do estudo se realiza em dois
movimentos suplementares: o primeiro refere-se ao entendimento da crítica à
metafísica. Procuramos delinear a crítica feita por Nietzsche à tradição metafísica a
partir de sua análise sobre a verdade. De acordo com Nietzsche, nossa
possibilidade de conhecer as coisas não atinge um ―em si‖. O sentido do verdadeiro
se faz para garantir a paz e abolir a guerra de todos contra todos. De acordo com o
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filósofo alemão, o critério de verdade não é a correta nomeação da realidade. A
instituição do ―verdadeiro‖ é produto de um único propósito, o de garantir a vida em
sociedade.
Levando em consideração a crítica de Nietzsche à tradição metafísica,
examinaremos a moral cristã europeia. Como as ideias modernas tomam corpo? O
que faz uma verdade se cristalizar com tanto vigor? Ao que parece, não precisamos
remontar, diz Nietzsche, a um ―em-si‖ metafísico ou exigir um procedimento de
anterioridade ad infinitum na busca de uma razão incipiente para compreender
essas ponderações. Nietzsche nos alerta que a busca de tais procedimentos é
inglória, pois o contexto histórico em que surge o sentido e o significado das coisas é
fruto do modelo de pensamento, ações e sentimentos que grupos humanos
produzem no seu embate para afirmar ou negar a construção da existência. Quer
dizer, as ideias modernas são produzidas e desenvolvidas no arcabouço das
valorações que são admitidas como verdade para garantir a vida em sociedade.
Sendo as ideias modernas resultado das valorações, o que garante sua eficácia?
Que métodos eficientes e arrojados garantem sua temporalidade e seu
acontecimento? Nesse momento, a criação e a utilização do método genealógico por
Nietzsche é importante para a análise e a delimitação do conceito de verdade e a
caracterização da moral. O método genealógico proporciona um importante
exercício de crítica, por ser capaz de mostrar que valores e ideais são produto da
mudança dos eventos históricos.
No segundo movimento, pretendemos reconstituir a crítica do filósofo
alemão à democracia. A análise inicial diz respeito ao cristianismo e sua influência
na cultura democrática. Para Nietzsche, o que se constata é a oposição cerrada à
vida, desenvolvida pelo cristianismo. A valorização de uma vida além-mundo
orquestrada pela metafísica tradicional desvaloriza a vida na terra e retira do centro
do mundo a criação humana e sua ação singular.
É nesse movimento que faremos uma breve análise dos ideais ascéticos. O
ascetismo religioso cristão adota a postura de arauto da decadência humana. A
atuação humana a partir da prática do ascetismo nega os valores vitais, e sua
incapacidade de expandir o humano assume o modelo virtuoso a ser seguido. Essa
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análise é possível devido à afirmação de Nietzsche sobre a continuidade entre
movimento democrático e movimento cristão.
Prosseguindo na análise, pretendemos traçar algumas observações sobre o
conceito animal de rebanho. De acordo com Nietzsche, o sintoma das ideais
modernas é o surgimento do animal de rebanho, compreendido por Nietzsche como
aquele indivíduo cooptado pela moral cristã. Seus interesses são minados pelo ideal
de coletividade. Sua atuação é definida por fins externos que sufocam suas paixões
e instintos.
A análise da democracia prossegue a partir da delimitação dos conceitos de
igualdade, compaixão e aristocracia do espírito. Para finalizar esse movimento,
faremos, em linhas gerais, a caracterização de uma nova espécie de filósofo. Para
Nietzsche, uma nova espécie de filósofo é a exceção, que pensa e age de maneira
diversa dos juízos predominantes em seu tempo, abandona o grande rebanho e
funda sua singularidade. Essa espécie de filósofo pode possibilitar a restauração das
formas adoecidas, anêmicas e destruídas pela homogeneização da humanidade nos
últimos milênios.
Metodologicamente, procuramos colocar no centro da análise dos dois
movimentos a obra Além do bem e do mal, a partir da qual situamos a questão das
ideias modernas e as questões de análise política. Outros textos de épocas
diferentes da produção do filósofo serão analisados com vistas a colaborar para o
esclarecimento da problemática.
No que diz respeito ao primeiro movimento, procuramos realizar a
verificação das considerações críticas de Nietzsche com relação à problemática da
modernidade. Iniciamos pelo estudo da questão da verdade, procurando refazer o
registro dos conceitos presentes no capítulo primeiro de Além do bem e do mal,
intitulado Dos preconceitos dos filósofos. Também utilizamos os textos Introdução
teorética sobre verdade e mentira no sentido extra-moral e A infância dos povos,
escritos póstumos produzidos no período da juventude; contamos, ainda, com
Foucault (1998), Machado (1999), Barrenechea (2008; 2009), Bulhões (2007). Na
análise sobre a moral, iniciamos com o capítulo cinco de Além do bem e do mal,
intitulado Contribuição à história natural da Moral. Depois, recorremos ao exame da
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Genealogia da moral, primeiro o prólogo e, em seguida, a primeira dissertação: bom
mau, bom ruim. Também analisamos Foucault (1998), Giacóia Jr. (2001) e Marton
(1990).
No segundo movimento, investigamos os conceitos presentes em Além do
bem e do mal, principalmente os capítulos O espírito livre, A natureza religiosa,
Contribuição à história natural da moral. Realizamos o exame da Segunda
dissertação: culpa, má consciência e coisas afins e da Terceira dissertação: o que
significam ideais ascéticos?, da Genealogia da moral. Examinamos o Livro II de
Aurora; o Livro I, de A gaia ciência, o prólogo e o primeiro capítulo Das coisas
primeiras e últimas de Humano demasiado humano. Verificamos também os
comentários de Ansell-Pearson (1997), Giacóia Jr. (1996), Moura (2005), Marton
(2011), Barrenechea (2008; 2009) e Bulhões (1996).
Nossa pretensão não é realizar uma exegese estrita dos filósofos modernos
com quem Nietzsche dialoga. Nosso intento é apontar, em linhas gerais, no
pensamento de Nietzsche, algumas das críticas que ele faz a esses filósofos ou,
genericamente, aos chamados filósofos das ideias modernas. Nosso trabalho é uma
análise interpretativa das obras citadas de Nietzsche.
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PRIMEIRO MOVIMENTO
2. A CRÍTICA DE NIETZSCHE À VERDADE E À MORAL
Na obra Ecce Homo, Nietzsche faz um breve quadro representativo para
verificar a situação de suas obras. Sobre Além do bem e do mal: prelúdio a uma
filosofia do futuro, o filósofo alemão afirma que o propósito do livro era começar a
―dizer não‖. Quer dizer, até então, Nietzsche apresentara propostas filosóficas
afirmativas, um ―dizer sim‖ como, por exemplo: a proposta de um espírito livre, em
Humano demasiado humano; a proposta de preparar a humanidade para uma
tomada de consciência, em Aurora; a proposta de um alegre saber, em A gaia
ciência.
Em Além do bem e do mal, o ―dizer não‖ é lançar o olhar apurado, o olhar
em volta. De acordo com o filósofo, ―este livro é, em todo o essencial, uma crítica da
modernidade, não excluídas as ciências modernas, as artes modernas, mesmo a
política moderna‖4.
Ao analisar os valores e conceitos da modernidade, Nietzsche encontra
antinomias entre os conceitos e a afirmação da vida. A busca da verdade, a
objetividade, a moral cristã, o liberalismo, a democracia burguesa são conceitos que
se opõem à plenitude e à expansão da vida. A contradição interna de cada um é
aferida em relação ao desenvolvimento da própria vida. Cada conceito é uma
interpretação. A interpretação municiada de juízos de valores e de operações
dicotômicas que vise manter em letargia, acalmar, disfarçar, interromper e
desqualificar as lutas corporais que são atributos da natureza – que constantemente
se expande e se afirma –, representa um deslocamento de sentido da dinâmica
fundamental do fenômeno vital.
Em sua obra, Nietzsche cria e desenvolve um conceito que contrasta com o
espírito da modernidade5. O filósofo do futuro é, de acordo com indicações precisas,
4 Cf. NIETZSCHE, 1995, p. 95-96.
5 No segundo movimento da pesquisa, faremos uma contextualização da tipologia conceitual
fraco/forte para, didaticamente, apontar as ligações e relações existentes entre o tipo fraco, defensor das ideias modernas, e o tipo forte, antípoda do espírito moderno e arauto de uma filosofia do porvir, a de filósofos legisladores.
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o menos moderno possível. O filósofo do futuro é um tipo nobre, que diz Sim.
―Nobre‖, diz Nietzsche, significa, em um primeiro momento, aquele que possui o
cultivo espiritual e não realiza oposição entre pensamento e ação6. É um conceito
radical, pois indica que o homem nobre é criador de valores que se aplicam a si
mesmo e afasta de si homens com alma de escravo.
Nietzsche, através do método genealógico, faz a crítica à modernidade e aos
valores do Iluminismo e da Revolução Francesa. A genealogia é entendida aqui
como um método de decifração que coloca em relevo os diferentes processos de
instituição de um texto, mostrando as lacunas, as entrelinhas, o implícito ou o que foi
reprimido e que permitiu erigir determinados conceitos à condição de verdades
eternas e absolutas. Ao apreender o caráter histórico dos conceitos, bem como dos
códigos, esclarecendo sua relação com outros, a genealogia mostra o que eles
excluíram para poder chegar à intemporalidade da tradição, da autoridade ou da lei.
Ao expor a inexistência de significados estáveis, conclui pela ausência de
fundamento rigoroso da verdade metafísica7. Além do mais, a genealogia proposta
por Nietzsche não se contenta apenas com uma abordagem histórica dos textos,
sentimentos e conceitos morais. A gênese histórica é tarefa preparatória para uma
questão mais incisiva, mais radical: aquela que se pergunta pelo próprio valor dos
valores e avaliações da moral tradicional8.
De acordo com o filósofo, o que se desprendeu do Iluminismo é resultado de
designações de sistemas morais. Ao afirmar o caráter perspectivo9 da produção de
conceitos e, portanto, um perspectivismo cultural e um pluralismo moral, Nietzsche
realiza uma demolição das pretensões universalistas afirmadas por vários sistemas
filosóficos. De acordo com o filósofo alemão, a interpretação perspectiva se
aproxima mais da efetividade das coisas, pois as tonalidades, as interpretações e a
doação de sentido produzem um efeito real sobre elas. É neste ponto que assinala
6 Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 156. Faremos a análise do tipo nobre no segundo movimento, assim
como a análise do conceito de aristocracia de espírito. 7 Cf. Prólogo da Genealogia da moral In NIETZSCHE, 1998.
8 Cf. GIACÓIA Jr., 2000, p. 37.
9 Perspectivismo significa saber e reconhecer, de modo ontológico, que não existe um ponto de vista
exterior ao mundo. Os conceitos são produzidos no mundo e pelo homem na história. De acordo com Nietzsche, perspectivismo é aquilo ―em virtude de que todo centro de força — e não apenas o homem — constrói todo o resto do mundo de seu próprio ponto de vista‖ Cf. ROCHA, Silvia Pimenta Velloso. Os abismos da suspeita: Nietzsche e o perspectivismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
20
que a verdade é um produto discursivo de um sistema que fabrica o ―certo‖, o
―errado‖, as proposições ―verdadeiras‖ ou ―falsas‖.
A crítica à modernidade implica, em Nietzsche, uma crítica às ideias e às
instituições modernas, a saber: a democracia, o liberalismo, a liberdade, a verdade,
a igualdade, a moral cristã, o casamento moderno, a ciência, a educação moderna.
Neste trabalho dissertativo, procuramos nos dedicar à investigação da crítica à
verdade, à moral cristã e à democracia burguesa.
Para Nietzsche, o trabalho filosófico, desde seu surgimento na Grécia antiga,
é regido pela interminável procura do verdadeiro. Essa busca, principalmente a partir
do socratismo e do platonismo10, comporta, nos seus meandros, a apreensão de
uma disposição metafísica marcada pela oposição entre essência e aparência, pela
distinção de dois mundos e pelo contraste entre o verdadeiro e o falso. A busca da
verdade a todo custo, empreitada pela tradição filosófica europeia, é caracterizada,
por Nietzsche, como um movimento de decadência. De acordo com o pensamento
do filósofo, a ilusão de possuir uma verdade em si, presente já no socratismo e no
platonismo, fez surgir o início da decadência que perdura no cânone da filosofia
ocidental.
A verdade intentada pela tradição socrático-platônica se outorga como
mecanismo de valoração11 da tradição e é disseminada através da moral cristã como
modo de julgamento da vida. Embora se tenham denunciado as falsas pretensões
do conhecimento, o ideal de conhecer não foi posto em questão. A moral foi
problematizada, mas suas pretensões permaneceram, não havendo preocupação
10
A busca de uma verdade em si oposta ao falso é representada, a partir do socratismo, pela conquista do uso da razão (principalmente a partir da disputa filosófica com os sofistas), e se constitui como herança principal assimilada pelo platonismo. O racionalismo socrático aparece como arrojado procedimento metafísico capaz de negar a experiência, abolir a legitimidade da vida, do corpo, dos instintos em afirmar certezas sobre o mundo. Quer dizer, a razão passa a ser a única fonte capaz de afirmar a verdade. A tentativa de encontrar uma verdade em si, nesse sentido, é um desvencilhamento radical dos aspectos vitais, dos instintos, do corpo (Cf. BARRENECHEA, 2009). Para Deleuze, o socratismo faz da vida qualquer coisa que deve ser julgada, medida, limitada, e do pensamento, uma medida, um limite, que exerce em nome de valores superiores – o divino, o verdadeiro, o belo, o bem. Com Sócrates, afirma Deleuze, aparece o tipo de filósofo voluntária e sutilmente submisso. A preocupação de Nietzsche não é com sua inserção na esteira da tradição filosófica nem com a busca de uma verdade em si; a novidade de seu pensamento se dá estritamente no sentido de analisar os modos como ela é produzida (Cf. DELEUZE, 1965, p. 20). 11
Utilizamos a tradução de Wertschätzung por valoração, proposta por Paulo César de Souza. A ideia correspondente é a de ―emitir juízo de valor acerca de‖; ―ponderar‖. A esse respeito, ver nota 11 em NIETZSCHE, 2005, p. 190.
21
em apreender a produção de seus valores. Ao longo da tradição filosófica ocidental
canonizada, ainda permanece a busca pelo conhecimento verdadeiro, a aplicação
da verdadeira moral e da verdadeira religião.
Essa metafísica difundida a partir do critério da verdade, e não da vida, nos
possibilita perceber que a realidade é construída, inventada, contando com a
perspectiva moralizante, que dualiza a realidade, implicando a identificação de uma
com o valor Bem e outra com o valor Mal, um maniqueísmo metafísico que anula o
modo de atuação singular do ser humano. Isso porque a moral que sustenta esse
modelo de valoração, a moral cristã, enfraquece o modo de atuação dos homens
devido a sua preocupação com um mundo além, intransitório e perfeito. Os homens
crentes dessa perspectiva esperam inertemente por esse lócus do não-devir. Sua
espera é marcada pelo medo de não participar desse desígnio, o que torna a ação
anêmica, rarefeita e carente de expansão e de superação de si.
O processo de cristalização da verdade através de preceitos morais anima a
legitimidade da implantação de um modelo político que celebra a igualdade, a
compaixão, o alheamento, a inércia, ao invés de consolidar o conflito, a disputa,
capazes de ativar a singularidade da ação do ser humano. Esse é o resultado do
processo de racionalização da verdade metafísica em moral, ocorrida desde a
tradição socrático-platônica que desemboca na instituição de uma democracia
capenga.
Daí realizarmos esse recorte de análise da modernidade nas ideias de
verdade, moral e democracia, pois o entrelaçamento desses conceitos ao longo da
tradição também nos permitiria analisar o liberalismo, a liberdade, o casamento
moderno, a ciência, a educação moderna, se fosse o caso.
2.1 A FÉ METAFÍSICA NA VERDADE
―Decifra-me ou devoro-te‖. Eis a sentença que a esfinge lança para seus
interlocutores mais audazes, dentre eles Édipo, aquele que não escapa da deusa
Moira. Nietzsche se põe diante da mesma sentença: ou decifra os preconceitos da
modernidade ou é devorado por eles. O primeiro preconceito a ser decifrado
22
relaciona-se à ideia de verdade. A questão da verdade na filosofia é um problema
que os filósofos sempre enfrentaram. É longa a história da verdade, mas a cada
instante ela parece sempre pronta a se reiniciar e iniciar os filósofos nos seus
recônditos.
Friedrich Nietzsche se apresenta no cenário filosófico da discussão sobre a
verdade, quebrando uma evidência. Durante uma longa história, afirmamos existir
uma verdade. Porém, essa verdade, que sempre desfilou como inquebrantável, é
colocada em questão por Nietzsche, que nos encaminha a um estado de inquietação
e de desconfiança quanto à noção de verdade. Ao invés de afirmar que há uma
verdade ou que seria necessária constantemente a busca desta, o filósofo alemão
nos desafia a ponderar sobre: o que, em nós, aspira realmente ―à verdade‖?12
Quando realiza esse questionamento sobre nosso desejo pela verdade, não
se interessa pela busca da origem dessa vontade, pois o entendimento de origem
supõe que a ideia surge por trás da natureza ou possui um sentido por trás da
história. O questionamento se faz porque a preocupação de Nietzsche é com o valor
dessa vontade. De outro modo, se a preocupação de Nietzsche se restringisse à
origem desse desejo, poderíamos, ainda, nos questionar: ―por que, ao invés da
verdade, não temos vontade de inverdade?‖; ―por que, ao invés da verdade como
certeza, não temos vontade de incerteza?‖13.
Parece que Nietzsche foi o primeiro a abordar a questão por esse ângulo. É
a esfinge quem lança o enigma ou é o próprio Édipo? A verdade é em si e por si ou
há alguma ação demasiado humana que batiza coisas, objetos, mundos de
verdadeiros?
Na busca pela origem da verdade, os filósofos de todos os tempos
cometeram o pré-julgamento de que algo poderia despontar como advindo do
âmago do Ser, do mistério do universo, da essência anterior à experiência. Para
esses filósofos, é impossível algo surgir do seu oposto. A verdade não poderia surgir
do erro ou do engano, pois ―as coisas de valor mais elevado‖14 devem ter uma
origem própria, ironiza Nietzsche. Não podem surgir, derivar do transitório, desse
12
Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 9 13
Ibidem. 14
Ibidem.
23
impetuoso mundo doido e cifrado pelo desejo desmedido. As coisas derivam do
―deus oculto‖, da ―coisa em si‖. Sua causa é da ordem do intransitório, do ―seio do
ser‖. Aqui está situado o preconceito dos filósofos, que consiste em uma crença
dogmática de que a verdade existe em si e por si, distante das experiências
humanas e dos fenômenos do mundo sensível.
O que esses filósofos realizam é uma espécie de valoração15. Quem é a
esfinge nesse sentido? A vontade de verdade? E o Édipo? É, sim, aquele que
questiona o valor da verdade. É essa valoração que vai sustentar todos os lances
que as operações lógicas realizam para garantir a retidão dos seus raciocínios. A
sabedoria, o conhecimento, a ciência nada mais são do que valorações, isto é,
crenças. A crença, depois de muito usada, é transformada pela história como sendo
a verdade.
Porém, aquilo que é cravado como celebração da verdade é um
procedimento metafísico. Mais precisamente, um procedimento de crença
metafísica. Pois, para Nietzsche, a metafísica é ―a crença nas oposições de
valores‖16. Nietzsche desvenda o enigma da Esfinge metafísica quando lança, como
resposta à sua sentença, outra questão: é a vontade de verdade uma valoração? De
acordo com Fernanda Bulhões,
15
Cf. nota 11, NIETZSCHE, 2005, p. 190. Paulo César de Souza traduz Wertschätzung por valoração. A ideia expressa o significado de ―emitir juízo de valor acerca de‖; ―ponderar‖. De acordo com o tradutor, ―valorar‖ não pode ser confundido com ―valorizar‖, isto é, aumentar o valor. Há, ainda, a distinção entre ―valorar‖ e ―avaliar‖. Avaliar possui maior amplitude semântica (apreciar, determinar o valor, calcular, fazer ideia, ajuizar). De acordo com Souza, Nietzsche utiliza Wertschätzung e Schätzung, este com significado de avaliação. Portanto, acompanhamos a tradução de Wertschätzung por ―valoração‖. 16
Metà tà physikà: Metafísica, termo criado por Andrônico de Rodes (por volta de 50 a.C.) para designar os tratados de Aristóteles classificados após os tratados sobre a física. São os livros que Aristóteles designou como Filosofia Primeira (Próte Philosophía) e que se referem ao estudo do ser como ser. Esse sentido tradicional e clássico coloca a metafísica como conhecimento racional das coisas em si, isto é, é um conhecimento racional apriorístico, pois não se baseia nos dados conhecidos diretamente pela experiência sensível ou sensorial (nos dados empíricos), mas nos puros conceitos formulados pelo pensamento puro ou pelo intelecto. De outro modo, exige a distinção entre ser e parecer ou entre realidade e aparência, seja porque, para alguns filósofos, a aparência é irreal e falsa, seja porque, para certos filósofos, a aparência só pode ser compreendida e explicada pelo conhecimento da realidade que subjaz a ela (CHAUÍ, 2002, p. 505). À luz do pensamento de Nietzsche, essa metafísica clássica é compreendida pela crença na distinção de dois mundos, pela oposição entre essência e aparência, verdadeiro e falso, inteligível e sensível. Essa metafísica faz da vida qualquer coisa que deve ser julgada, medida, limitada e, do pensamento, uma medida, um limite, que se exerce em nome de valores superiores (o divino, o verdadeiro, o belo, o bem) ( NIETZSCHE, 2005, p. 10).
24
A postura metafísica, procurando um fundamento ontológico para a verdade, concebe duas realidades radicalmente distintas, dois mundos que se excluem mutuamente: de um lado, o mundo sensível, fugaz, efêmero, transitório, passageiro, onde a realidade escapa como se fosse água entre os dedos, esse é o mundo que nos engana, pois sempre nos mostra mudanças e diferenças; do outro lado, o mundo que só pode ser compreendido pelo intelecto, mundo estável, perene, idêntico, onde a realidade se mantém a mesma, por isso pode dar garantias, sustentar certezas e verdades. Esses mundos distintos possuem valores distintos: um vale mais do que o outro. A verdade, a razão, o ser, valem mais do que o vir-a-ser, a mentira, o corpo. Isto significa que o modo de pensar metafísico trata a realidade a partir de uma perspectiva moral (BULHÕES, 1996, p. 104).
Faz-se mister notar que, em um ensaio produzido no verão de 1873,
Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral17, o ainda
professor de Filologia clássica e de grego da Universidade de Basiléia, na Suíça,
Friedrich Wilhelm Nietzsche, manifesta como epicentro de suas preocupações a
questão da possibilidade do conhecimento e a problemática da verdade. Nesse
ensaio, o jovem professor afirma a origem do conhecimento como invenção
(Erfindung). Esta, de acordo com o filósofo, é um disfarce que o intelecto humano
cria como modo de afirmação da vida.
O intelecto, afirma Nietzsche, cria uma ilusão sobre o valor da existência. A
ilusão de que o humano é o ser privilegiado da natureza. A ilusão de que os eixos da
natureza giram a partir dele. O intelecto é para o humano assim como o chifre ou a
presa pontiaguda de qualquer outro animal predador é necessária à sua existência.
Para garantir a sobrevivência da espécie, os indivíduos mais fracos, menos
robustos, utilizam o estratagema do intelecto como força de dissimulação, disfarce.
Para Nietzsche, o intelecto é um meio auxiliar que o homem possui para sobreviver,
para antever o ―cubículo de sua consciência‖, para fingir que é o centro do mundo,
para enganar-se diante de um universo infinito. O intelecto engana-se a si mesmo
através da invenção do conhecimento, da linguagem.
Sendo o conhecimento uma invenção, de onde provém a verdade? De
acordo com o pensador alemão, a verdade emerge no momento em que o instinto
de afirmação da existência tece os mais sutis labirintos. Sua trama alcança o cume
17
Ensaio escrito no verão de 1883 (NIETZSCHE, 2004).
25
da dissimulação. De acordo com Nietzsche, a ilusão, a mentira, o engano, a
organização do poder, a hierarquia, a convenção corroboram para o aparecimento
da verdade.
Atrás das coisas, diz Nietzsche, estão os jogos de organização da vida. Os
indivíduos olham para as coisas, recebem excitações, nomeiam. A necessidade
social, a vida gregária, se impõe. O indivíduo marca sua presença no mundo através
da criação de conceitos. Torna esses conceitos obrigatórios e válidos para todos os
membros do grupo.
É nesse momento, diz Nietzsche, que se estabelece o primeiro antagonismo
de forças. A verdade é aceita como válida para garantir o bem-estar, a paz entre os
desiguais. O engano, a inverdade, a mentira toma corpo como negação daquilo que
é estabelecido solidamente. A legislação de uma linguagem arbitrária fixa a
ordenação para as coisas. A linguagem é arbitrária porque é regida simplesmente
por convenção social, e, portanto, por símbolos que representam as coisas, os
objetos. A linguagem é arbitrária porque produz nomes, que são metáforas. Desse
modo, a linguagem não é, como supunha a modernidade, uma expressão adequada
para os fenômenos, como exigiam os procedimentos clássicos da metafísica
ocidental. A linguagem é metáfora que esquece o diferente e desperta para a
representação. Nesse sentido, a mentira, o engano, o erro nada mais são do que a
inversão do que foi estabelecido como verdadeiro. Uma mistura, uma confusão entre
as convenções mais sólidas e a própria subjetividade de algum indivíduo. De acordo
com Nietzsche,
À medida que o indivíduo quer conservar-se diante dos outros indivíduos, mais frequentemente utiliza o intelecto apenas para a dissimulação, num estado de coisas natural: mas como o homem, por necessidade e tédio ao mesmo tempo, quer viver social e gregariamente, tem necessidade de estabelecer a paz e procura, em conformidade, fazer com que desapareça de seu mundo ao menos o mais grosseiro bellum omnium contra omnes. Esta paz estabelecida
traz consigo qualquer coisa que parece de verdade. Quer dizer que agora fixou-se o que deve ser ―verdade‖ daqui em diante, isto significa que se encontrou uma designação uniformemente válida e obrigatória para as coisas e a própria legislação da linguagem contém as primeiras leis da verdade: pois nasce aqui pela primeira vez o contraste entre a verdade e a mentira. O mentiroso usa designações válidas, as palavras, para fazer com que o irreal pareça real (NIETZSCHE, 2004, p. 66).
26
É nesse ponto que Nietzsche empreende uma ruptura com a metafísica
clássica, principalmente com Aristóteles. Este, no início de sua obra A Metafísica,
afirmava que é peculiar à humanidade o desejo de conhecer, quer dizer, o próprio do
homem, sua essência, está vinculada ao desejo natural pelo conhecimento. Assim
escreve Aristóteles:
Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até da sua utilidade, elas nos agradam por si mesmas e, mais do que todas as outras, as visuais (ARISTÓTELES, 1984, p. 11).
Nietzsche se contrapõe ao enunciado de Aristóteles que afirma o
conhecimento como algo natural. De acordo com ele, o conhecimento não é fruto da
argúcia de um sujeito soberano, mas da astúcia, do ranger de dentes, do agon18
(disputa) entre os homens. O conhecimento, portanto, não é em natureza, não é
instintivo, é invenção (Erfindung). O instinto natural é o de sobrevivência. É na
batalha, na disputa pela sobrevivência que o conhecimento é inventado. O
conhecimento é uma Erfindung (invenção), um engenho de animais inteligentes.
Essa perspectiva se contrapõe à afirmação de Aristóteles, para quem o problema do
conhecimento está relacionado à ideia de um fundamento originário, metafísico,
supra-histórico, cuja duração é repetida perpetuamente e sua essência, sua ousía19,
é dada desde os primórdios dos dias. Essa negação do caráter natural do
conhecimento terá importância imprescindível em outras concepções de Nietzsche.
O conhecimento, como toda invenção, tem um tempo e um lugar que lhe são
próprios, um ponto de surgimento, sua emergência. O fato de ser um invento implica
dizer que o conhecimento tem uma origem histórica, humana. Ocorre que a
invenção do conhecimento, em muitas situações, é uma ruptura com o que até então
predominava no modo de conhecer. Desse modo, outros conhecimentos são
fundados através da disputa, de lutas e embates entre os grupos humanos, o que
18
Para Nietzsche, o agon designa um modo fundamental da vida dos gregos, envolvendo as competições e concursos. O agon, nesse sentido, é uma espécie de jogo, que se define pelo aspecto lúdico e competitivo. Para os gregos, os jogos, as competições, as disputas, as lutas, os combates são agonísticos. Aqui procuramos compreender o agon a partir dos aspectos de ambiguidades, conflitos e interdependências que constituem as relações sociais, embates de forças que são inerentes às esferas de atuação. 19
Do grego antigo, possui o significado de essência, ser, realidade. Substantivo abstrato derivado ón, óntos, particípio presente de eimi, ser. Em latim, o verbo esse (ser) corresponde ao grego einai (infinito de eimi, eu sou); também em latim, essentia corresponde ao grego ousía (CHAUÍ, 2002, p. 507).
27
nos faz perceber que os conhecimentos produzidos em dados contextos históricos
não são eternos, imutáveis, intransitórios ou visões intelectuais produzidas a priori.
Nietzsche situa o conhecimento no mundo dos homens, longe de qualquer além
metafísico. Para ele, o conhecimento é fruto da batalha entre os instintos20.
Barrenechea (2009, p. 63), à luz do pensamento de Nietzsche, analisa o
fenômeno corporal e defende que este não é uma substância nem um fundamento.
Ao longo de sua análise, demonstra que homem e mundo estão imbricados através
da vontade de potência que permeia o jogo do devir. De acordo com ele, através da
vontade de potência, a realidade, em toda sua plenitude, é compreendida como a
dinâmica de expansão e intensificação de forças. Sob essa perspectiva, o universo,
o cosmo, é entendido como um fluir vital que não obedece a nenhum telos21. Sua
fluidez é comparável ao movimento dos corpos, um aglomerado de forças que
absolutamente muda sem cessar.
Dessa forma, Barrenechea (2009) interpreta o corpo como um jogo de
processos instintivos, um embate estrito de forças orgânicas que exigem a
implementação e a elevação de sua potência. Desse modo, de acordo com ele, o
conhecimento advém do corpo, ou melhor, das disputas inconscientes, das lutas
orgânicas que permeiam desconhecidamente o surgimento do pensamento
consciente. ―Cada atividade humana é produzida por um instinto específico‖22. Ao
exaltar os instintos, diz Barrenechea (2009), Nietzsche exige a superação de
20
De acordo com nota de Paulo César de Souza (NIETZSCHE, 2005, p. 195) a palavra alemã para instinto é Trieb. Esse termo pode ser traduzido, ainda, por ―impulso, ímpeto, inclinação, propensão, propulsão, pressão, movimento, vontade e (em botânica) broto ou rebento‖. Portanto, vários sentidos podem ser apresentados: impelir, mover, empurrar, enxotar, conduzir, estimular, animar, ocupar-se de ou dedicar-se a algo, fazer, ―transar‖, brotar, germinar. Roberto Machado (1999, p. 91) sustenta que Trieb, além dos termos usuais de impulso e instinto, pode ser interpretado, na filosofia de Nietzsche, como força, vontade, atividade e ainda potência, energia, intensidade. Outra compreensão de Trieb que aparece na obra de Nietzsche, afirma Barrenechea (2009), é o significado de cunho biológico, referente a ―instinto gregário‖, ―instinto materno‖ etc. 21
Aristóteles (384–322 a.C.), em sua Metafísica, elenca vários tipos de explicações sobre os processos existentes no mundo, que, respectivamente, correspondiam a quatro tipos de causas. Nessa ordem, temos: 1ª – causa formal; 2ª – causa material; 3ª – causa eficiente. Como quarto e último tipo causal, temos a explicação teleológica ou finalista, que explica o fim (ou meta) ao qual o acontecimento, ou ser, se encontra destinado. No viés dessa explicação, Aristóteles afirma que todas as coisas tendiam naturalmente para um fim, o que, dessa forma, significa afirmar que a concepção teleológica da realidade torna possível explicar a natureza (o fim, ou meta) de todos os seres. Nesse sentido, a concepção teleológica de Aristóteles remete à essência de cada ser, a uma teleologia interna dos entes naturais. A causa final faz o objeto mover-se e até transformar-se, procurando a perfeição, e esta só se realiza na medida em que ele cumpre a função para a qual foi designado em essência. 22
Cf. BARRENECHEA, 2009, p. 68.
28
diversas doutrinas filosóficas e religiosas que, durante milênios, minaram a ação
humana e criou o sentimento de culpa, má-consciência, deturpando o sentido do
corpo.
Nesses termos, o conhecimento tem a ver com a guerra, a efervescência
dos instintos, ou seja, é fruto da guerra entre vários instintos em uma incessante
luta. A partir de uma trégua precária entre estes, um dia o homem pôde conhecer. A
esse respeito, Nietzsche afirma:
Ora, o homem esquece sem dúvida que é assim que se passa com ele: mente, pois, da maneira designada, inconscientemente e segundo hábitos seculares – e justamente por essa inconsciência, justamente por esse esquecimento, chega ao sentimento de verdade. No sentimento de estar obrigado a designar uma coisa como ―vermelha‖, outra como ―fria‖, uma terceira como ―muda‖, desperta uma emoção que se refere moralmente à verdade: a partir da oposição ao mentiroso, em quem ninguém confia, que todos excluem, o homem demonstra a si mesmo o que há de honrado, digno de confiança e útil na verdade. Coloca agora seu agir como ser ―racional‖ sob a regência das abstrações; não suporta mais ser arrastado pelas impressões súbitas, pelas intuições, universaliza antes todas essas impressões em conceitos mais descoloridos, mais frios, para atrelar a eles o carro de seu viver e agir. Tudo o que destaca o homem do animal depende dessa aptidão de liquefazer a metáfora intuitiva em um esquema, portanto de dissolver uma imagem em um conceito (NIETZSCHE, 1991, p. 35).
O propósito de Nietzsche, nesse sentido, é enfatizar que o ato de conhecer
não pertence à natureza humana. O conhecimento não se encontra no mesmo limiar
dos instintos e, dessa forma, não podemos afirmar, como Aristóteles, na sua
Metafísica, que os homens desejam naturalmente conhecer. O que Nietzsche
pretende é sinalizar que o conhecimento não é um instinto do homem, quer dizer,
não é da mesma natureza que os instintos. O conhecimento foi produzido, foi
inventado, como enuncia no texto Verdade e mentira. A invenção do conhecimento,
sua produção, faz parte da disputa, da guerra, entre vários instintos23.
Em contraste, pois, com a tradição da metafísica clássica, Nietzsche
realça que o conhecimento das coisas não aponta a um ―em si‖, mas resulta de
desdobramentos sociais, políticos ou, mais estritamente, de valorações morais. Daí
23
Machado (1999) analisa essa questão em seu texto Nietzsche e a verdade. Cf. MACHADO, 1999, p. 35-36.
29
a verdade aparecer como uma necessidade. A própria fundação social exigirá a
veracidade como elemento de coesão. De outro modo, a verdade surge da
necessidade a partir de um fundo de mentira, para garantir a edificação da
sociedade. O sentido da veracidade se faz para garantir a paz e abolir a guerra de
todos contra todos. As leis criadas pelo grupo e estabelecidas pela linguagem é que
produzem originariamente a oposição entre verdade e mentira. Dessa forma, o
mentiroso utiliza o código linguístico considerado verdadeiro, mas infringe as
designações comuns, prosaicas e imperativas do grupo. Nesses termos, a
veracidade não é a correta nomeação da realidade. O estabelecimento do
―verdadeiro‖ é produto de um único objetivo, que é o de garantir a vida em
sociedade, a relação entre os homens. A esse respeito, Nietzsche afirma que
Esse tratado de paz traz consigo algo que parece ser o primeiro passo para alcançar aquele enigmático impulso à verdade. Agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser ―verdade‖, isto é, é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira. O mentiroso usa as designações válidas, as palavras, para fazer aparecer não-efetivo como efetivo; ele diz, por exemplo: ―sou rico‖, quando para seu estado seria precisamente ―pobre‖ a designação correta. Ele faz mau uso das firmes convenções por meio de trocas arbitrárias ou mesmo inversões de nomes (NIETZSCHE, 1991, p. 32).
Nesse sentido, percebemos, a partir de Nietzsche, que os homens não
desejam naturalmente a verdade, mas as consequências favoráveis que ela realiza
e produz. De igual modo, os homens não recusam naturalmente a mentira.
Invariavelmente, o que não lhes agrada são os prejuízos gerados na sociedade pela
sua divulgação e efetivação. O que se quer afastar, expulsar, banir, o que não se
aceita e não se deseja é o que é considerado danoso, nocivo. Então, são as
consequências funestas, desastrosas, tanto da mentira quanto da verdade, que
devem ser lançadas ao ostracismo social. A obrigação, o dever de dizer a verdade
nasce para antecipar as consequências lesivas da mentira. Quando a mentira
30
agrega e engendra um valor agradável, ela é muito bem aceita, admitida e
tolerada.24
Desse modo, o conhecimento das coisas não possui uma origem em um
mundo exterior, superior, metafísico, mas é inventado no vácuo, nas tensões em que
ocorrem as correlações de forças. O ato de conhecer é, portanto, uma invenção
histórica25. Dizer que o conhecimento foi inventado é dizer que ele não tem origem,
não possui uma ousía. É afirmar que ele não está incondicionalmente inscrito na
natureza. Essa afirmação nos permite compreender, à luz de Nietzsche, que no
comportamento humano não há um impulso, um ímpeto cravado naturalmente no
seu corpo, que o impulsione a conhecer. Muito menos uma centelha instintiva do
conhecimento impregnada, como um germe, nas funções vitais do homem. De
acordo com Nietzsche, o conhecimento possui uma relação com os instintos, mas
não faz parte deles. O ato de conhecer resulta do jogo, da disputa, do confronto, da
luta, da junção entre vários instintos. Depois de travar esse embate, um acordo entre
os instintos se processa. Esse processo engendra o conhecimento. De acordo com
Nietzsche,
Mal sabemos, de fato, se a própria humanidade é apenas um estágio, um período no todo, no devir, se ela não é uma manifestação [Erscheinung] arbitrária de Deus. O homem não é, talvez, apenas o desenvolvimento da pedra através dos meios da planta, do animal? Já se teria atingido aqui sua completude, não haveria aí também história? Esse devir nunca tem um fim? Quais são as pulsões moventes [Triebfedern] deste grande mecanismo de
relógio? Elas estão escondidas, mas são as mesmas desse grande relógio que chamamos história (NIETZSCHE apud LEMOS, 2012, p.
133).
Então, o conhecimento é produzido diante das pulsões moventes, dos
instintos, acima deles ou no meio deles. Ele os reduz, exprime certo estado de
tensão ou quietamento entre os instintos. Mas não se pode deduzir o conhecimento 24
Machado (1999, p. 38) também aborda essa questão dos efeitos e consequências tanto da verdade quanto da mentira. 25
A esse respeito, Foucault (2011) realiza uma interpretação de Nietzsche suficientemente esclarecedora. Para ele, Nietzsche enfatiza que o conhecimento não é da mesma natureza que os instintos, não é como que o refinamento dos próprios instintos. O conhecimento tem por fundamento, por base e por ponto de partida os instintos, mas instintos em confronto entre si, de que ele é apenas o resultado em sua superfície. O conhecimento é como um clarão, como uma luz que se irradia, mas que é produzido por mecanismos ou realidades que são de natureza totalmente diversa. O conhecimento é o efeito dos instintos, é como um lance de sorte ou como o resultado de um longo compromisso.
31
de maneira analítica, segundo uma espécie de derivação natural. Não se pode,
necessariamente, deduzi-lo dos próprios instintos. O conhecimento, no fundo, não
faz parte da natureza humana. É a luta, o combate, o resultado do combate e,
consequentemente, o risco e o acaso que vão dar lugar ao conhecimento. O
conhecimento não é instintivo, é asfixiador dos instintos. Do mesmo modo, não é
natural, mas sufoca o que é natural.
No texto Nietzsche, a genealogia e a história, Foucault comenta a ideia de
invenção. ―A invenção (Erfindung) para Nietzsche é, por um lado, uma ruptura, por
outro, algo que possui um pequeno começo, baixo, mesquinho, inconfessável. Este
é o ponto crucial da Erfindung‖26. A invenção se processa, se produz através das
relações de poder, nos poros dessas relações, nas sucessivas rupturas, e não
através de desdobramentos metafísicos.
É neste aspecto que, para Nietzsche, o conhecimento é uma invenção e não
uma faculdade instintiva humana marcada, a priori, no seu entendimento e na sua
consciência, como uma faculdade supra-histórica. Portanto, o conhecimento não faz
parte da natureza humana, mas é resultante de lutas, combates e processos
corporais. A universalidade e a identidade não constituem o lugar próprio do
conhecimento. É a contingência, o acaso e, desse modo, uma invenção do intelecto
para expandir a vida.
Dessa forma, podemos compreender o conhecimento como invenção e não
fundado numa origem atemporal. O que implica que não podemos conceber para o
conhecimento que ele possa refletir uma adequação ao mundo a ser conhecido.
Quer dizer, além de não fazer parte da natureza humana, de não provir da natureza
humana, nem tem semelhança com o mundo a ser conhecido. Nietzsche, nesse
aspecto, enfatiza que
As diferentes línguas, colocadas lado a lado, mostram que nas palavras nunca importa a verdade, nunca uma expressão adequada: pois senão não haveria tantas línguas. A ―coisa em si‖ (tal seria justamente a verdade pura sem consequências) é, também para o formador da linguagem, inteiramente incaptável e nem sequer algo que vale a pena. Ele designa apenas as relações das coisas aos
26
Cf. FOUCAULT, 1998, p. 15.
32
homens e toma em auxílio para exprimi-las as mais audaciosas metáforas (NIETZSCHE, 1991, p. 33)
Dessa maneira, Nietzsche se opõe à compreensão metafísica clássica do
homem, do conhecimento, ao realizar o procedimento genealógico. Com esse
método de decifração do surgimento e da emergência histórica das relações e dos
processos humanos, opõe-se aos estudos da origem e adota uma postura diante da
história como sendo esta uma oficina de invenções das possibilidades humanas de
agir discursivamente no mundo27.
O procedimento genealógico consiste em substituir a busca pela origem
metafísica pela busca do princípio a partir de sua emergência história e humana. Ao
passo que é necessário se afastar da ideia que expressa que as coisas são
imediatamente objetos puros diante de si. É imprescindível não esquecer a formação
metafórica de cada possibilidade e de cada ação humana, na sua emergência e no
seu surgimento, como metáforas e não como coisas mesmas. De acordo com
Nietzsche, o que possuímos das coisas são metáforas. A ―coisa em si‖ é
completamente inapreensível, tenta designar as relações das coisas com os
homens. Porém, esse procedimento de dizer as coisas não ocorre devido ao ―em si‖
a priori. Somente se faz possível devido ao uso expressivo de metáforas. Estas são
excitações nervosas transpostas para uma imagem. Daí formamos, então, a primeira
metáfora. Esta é transformada em um som articulado. Desse modo, temos a
segunda metáfora. Esse movimento de passagem de um modo a outro (excitação
nervosa=>som=>imagem=>metáfora) cria incessantemente metáforas novas28. A
esse respeito, Nietzsche afirma que
Quando alguém esconde uma coisa atrás de um arbusto, vai procurá-la ali mesmo e a encontra, não há muito que gabar nesse procurar e encontrar: e é assim que se passa com o procurar e encontrar da ―verdade‖ no interior do distrito da razão. Se forjo a definição de animal mamífero e em seguida declaro, depois de inspecionar um camelo: ―vejam, um animal mamífero‖, com isso decerto uma verdade é trazida à luz, mas ela é de valor limitado,
27
Para Foucault (1998), o método genealógico de Nietzsche necessita escavar as invenções históricas humanas para insurgir-se contra as quimeras da origem atemporal, suprassensível das coisas. Esse método supõe, diz Foucault, a origem não como providência e sim como fabricação histórica nas lutas humanas e processos corporais Cf. FOUCAULT, 1998, p. 19. 28
Cf. NIETZSCHE, 2004, p. 67.
33
quero dizer, é cabalmente antropomórfica e não contém um único ponto que seja ―verdadeiro em si‖, efetivo e universalmente válido, sem levar em conta o homem. O pesquisador dessas verdades procura, no fundo, apenas a metamorfose do mundo em homem, luta por entendimento do mundo como uma coisa à semelhança do homem e conquista, no melhor dos casos, o sentimento de uma assimilação (NIETZSCHE, 1991, p. 36).
O genealogista compreende o mundo inteiro como ligado ao homem, como a
repercussão da propagação de um som inicial infinitamente repetido pelo homem,
uma imagem individual multiplicada ao infinito por este. O trabalho do genealogista é
tal como o de um historiador que remove todos os entulhos, todas as ações
humanas, que soterram fixamente os acontecimentos e a emergência dos conceitos.
A utilização desse método não deve esconder ou transformar em um ―em si‖ as
mesquinharias humanas que estão na gênese dos processos de edificação dos
conceitos, uma vez que, de eventos sórdidos, de opressões, violências, de pequena
em pequena, de grande em grande coisa, formaram-se as coisas.
Todavia, o que isso representa para as ideias modernas? Provavelmente a
fé metafísica na verdade desmoronará. Ou melhor, se o filósofo, o genealogista,
atentar em ouvir os rumores, invenções e fabricações da história ao invés de
acreditar na metafísica clássica, o que descobrirá? Encontrará algo distintamente
variado e diverso, não um mistério essencial e perfeito, sem data, sem o crivo
humano, mas descobrirá o segredo de que elas são sem segredo, sem essência. De
outro modo, deparar-se-á com uma fabricação, criação humana e histórica no lugar
daquilo que nomeavam como substância essencial, eterna, imutável e imperecível.
Compreendermos, então, que aquilo que se tornou proveniente de uma essência
para a metafísica clássica e se cristalizou como ideia moderna nada mais é do que
uma fabricação, criação, de grupos humanos, imprimindo sua dominação sobre
outros29. Assim, Nietzsche, a partir de uma ironia, esclarece:
Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores, e, no entanto, não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem às entidades de origem. Assim como o som convertido em figura na areia, assim se comporta o enigmático X da coisa em si, uma vez
29
Para Michel Foucault, o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem, mas sim a discórdia entre as coisas, o disparate. A razão, o método científico, são frutos das paixões subjetivas durante as lutas pessoais e, portanto, o ser e a verdade são, no mínimo, invenções das classes dominantes (Cf. FOUCAULT, 1998, p. 17-18).
34
como estímulo nervoso, em seguida como imagem, enfim como som. Em todo caso, portanto, não é logicamente que ocorre a gênese da linguagem, e o material inteiro, no qual e com o qual mais tarde o homem da verdade, o pesquisador, o filósofo, trabalha e constrói, provém, se não de Cucolândia das Nuves, em todo caso não da essência das coisas (NIETZSCHE, 1991, p. 34).
De outra maneira, afirma, ainda, Nietzsche:
Enquanto o indivíduo, em contraposição a outros indivíduos, quer conservar-se, ele usa o intelecto, em um estado natural das coisas, no mais das vezes somente para a representação: mas, porque o homem, ao mesmo tempo por necessidade e tédio, quer existir socialmente e em rebanho, ele precisa de um acordo de paz e se esforça para que pelo menos a máxima bellum omnium contra omnes desapareça de seu mundo. Esse tratado de paz traz consigo
algo que parece ser o primeiro passo para alcançar aquele enigmático impulso à verdade (NIETZSCHE, 1991, p. 32).
O método genealógico, em Nietzsche, é de importância fundamental para a
compreensão do surgimento dos ―filósofos do futuro‖, pois este toma a genealogia
como uma atitude crítica diante da produção do conhecimento e das verdades que
configuram a realidade social. A genealogia é um importante exercício de crítica por
ser capaz de mostrar que todos os valores e ideias são produtos da mudança e dos
desdobramentos históricos. Os sentimentos, os conceitos e as paixões possuem
uma história. Dessa forma, as criações humanas não são fixas e imutáveis. Toda a
produção humana, inclusive as instituições sociais, os costumes sociais e os
preceitos morais, são desdobramentos de uma forma específica de organização
social e de correlações de forças na própria sociedade. Então, analisando a verdade
como uma construção emergente, que surge na história, o que se pretende é
mostrar que o estabelecimento dos nomes, a criação das leis, a fundação de laços
sociais são originários dos conflitos, lutas, contestações entre os grupos humanos,
sendo efetivado sempre aquele que consegue dominar, sobressair-se na disputa.
Dentro do arcabouço das ideias modernas, a dúvida se insurge como
procedimento cuidadoso, munido de clareza e distinção. Porém, até mesmo os
filósofos que alimentavam a convicção de em tudo duvidar titubearam quando suas
necessidades humanas (posição social, trabalho etc.) se tornaram imperativas. Os
filósofos das ideias modernas poderiam proceder com o processo de dúvida primeiro
em relação à própria oposição entre verdade e erro ou entre qualquer jogo de
35
oposições absolutas. Em seguida, esses filósofos poderiam dar relevo à dúvida com
relação às várias condições de valoração e oposições que se fazem de modo
metafísico. Poderiam elevar a dúvida e reconhecer que aquilo que denominamos
como verdadeiro acompanha um procedimento de avaliação, perspectiva transitória,
diametralmente contrária à existência do verdadeiro em si, ao inato reconhecível
pela identidade e estatuto da verdade transcendente e ideal. É nestes termos que
Nietzsche se pronuncia:
Nem aos mais cuidadosos entre eles ocorreu duvidar aqui, no limiar, onde mais era necessário: mesmo quando haviam jurado para si próprios de omnibus dubitandum [de tudo duvidar]. Pois pode-se
duvidar, primeiro, que existam absolutamente opostos; segundo, que as valorações e oposições de valor populares, nas quais os metafísicos imprimiram seu selo, sejam mais que avaliações-de-fachada, perspectivas provisórias, talvez inclusive vistas de um ângulo, de baixo para cima talvez, ―perspectiva de rã‖, para usar uma expressão familiar aos pintores (NIETZSCHE, 2005, p. 10).
Porém, o reconhecimento de que a dúvida pode levar a algo certo e
indubitável impele o filósofo das ideias modernas a encontrar uma verdade
metafísica da qual a própria dúvida escapa. Mas o que poderia ser o erro para esses
filósofos senão a influência maléfica dos sentidos, da aparência? Ao conceber
zombeteiramente a possibilidade de existir a verdade em si, Nietzsche traça sua
engenhosidade em direção àquilo que se oculta em relação à existência de uma
verdade ideal e imutável. Sua trama, nesse sentido, assume o status que não é
cogitado por esses filósofos, na medida em que estes não examinam a verdade
como valor. Esse exame pode não ter sido realizado, talvez, pela própria ―vontade
de engano‖30. Por um lado, não atribuir a verdade à aparência talvez seja um
procedimento imprescindível para afirmação da vida daqueles filósofos. Por outro
lado, o verdadeiro como algo imutável, eterno e ideal talvez seja um procedimento
pérfido para dissimular ou inverter as valorações acerca das coisas boas e
honradas. Algo pérfido ou cálculo da conveniência, poderia afirmar Nietzsche.
Essas ponderações são colocadas por Nietzsche (2005), através de sua
leitura da tradição das ideias modernas. Há uma exigência do filósofo alemão com
relação à maneira de se pensar filosoficamente. Seguindo seus passos, vemos que
30
Cf.NIETZSCHE, 2005, p. 10.
36
é notória a sua posição em relação à formulação de juízos filosóficos. Ele afirma
que, ao analisar os pormenores da produção filosófica das ideias modernas, percebe
que sua produção se dá de modo instintivo, fisiológico e não através de arquétipos
oriundos da hereditariedade ou do campo das ideias inatas. A figura do filósofo,
nesse sentido, é atravessada não pela capacidade de trazer as ideias de dentro para
fora, mas pela própria condição da ação, atividade corporal, que se insinua na
criação do pensamento filosófico. Daí temos mais uma sinalização de que a verdade
não faz parte de uma zona idealizada em um âmbito transcendente. A verdade seria
uma ação, embate entre instintos, produzido pela carga fisiológica do filósofo em
determinadas relações sociais, em dadas condições históricas. Nesse ponto,
podemos alcançar o que Nietzsche chama de dissimulação do intelecto, que é algo
guiado pela luta entre vários instintos e forças para garantir a sobrevivência ou
plenitude da vida. A esse respeito, Nietzsche acrescenta que
O intelecto, como um meio para a conservação do indivíduo, desdobra suas forças mestras no disfarce; pois este é o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela existência com chifres ou presas aguçadas. No homem esta arte do disfarce chega a seu ápice; aqui o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar-por-trás-das-coisas, o representar, o viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo, em suma, o constante bater de asas em torno dessa única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível do que como pôde aparecer entre os homens um honesto e puro impulso à verdade. Eles estão profundamente imersos em ilusões e imagens de sonhos, seu olho apenas resvala às tontas pela superfície das coisas e vê ―formas‖, sua sensação não conduz em parte alguma à verdade, mas contenta-se em receber estímulos e como que dedilhar um teclado às costas das coisas (NIETZSCHE, 1991, p. 31-32).
O que é produzido pelo filósofo em seu estado mais consciente e em vigília
não é uma dádiva ou inspiração do imutável, perfeito e fixo, mas é guiado, em todos
os seus passos e na retidão de um caminho, de um método, pelo embate impetuoso
entre seus instintos e forças. Isso porque, pressupostamente, naquilo que mais se
alinha e na autoridade mais infalível e absoluta, há valorações. Essas valorações
são, indubitavelmente, apelos fisiológicos compatíveis com a conservação de um
modo de existir. Sobre isso Nietzsche afirma que
37
Depois de por muito tempo ler nos gestos e nas entrelinhas dos filósofos, disse a mim mesmo: a maior parte do pensamento consciente deve ser incluída entre as atividades instintivas, até mesmo o pensamento filosófico. [...] o pensamento consciente de um filósofo é secretamente guiado e colocado em certas trilhas pelos seus instintos. Por trás de toda lógica e de sua aparente soberania de movimentos, existem valorações, ou, falando mais claramente, exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de vida (NIETZSCHE, 2005, p. 10-11).
Nesse sentido, todo jogo de oposições metafísicas, antagonismos, enfim,
são avaliações demasiadamente humanas, que possuem sua importância para a
organização regular e fixa da existência. De outro modo, o valor é conferido e
determinado precisamente à medida que, positiva ou negativamente, conserva ou
expande a existência. Ao conservar a existência, um desses procedimentos assume
o papel principal enquanto o outro auxilia ou coopera, senão é desconsiderado ou
até mesmo eliminado.
É desse modo que se privilegia o determinado ao invés do indeterminado, a
verdade ao invés da aparência. Esse valor é concedido às coisas prioritariamente
devido ao ato de conferir à temporalidade delas uma regularidade universal,
necessária e uma fixidez no modo de sua existência. Com efeito, esse valor
pressuposto exige para si um estatuto de lei geral fundamental – a lógica. É o que
Nietzsche assevera como sendo um procedimento da ordem da ficção.
De acordo com Luciana Zaterka (1996)31, Nietzsche aponta a relação entre a
lógica e o mundo do ―puramente inventado do absoluto‖. Afirma essa autora que a
lógica é um sistema formal de proposições e operações que são tomadas como
verdades a priori. Seus enunciados não derivam da experiência, mas, na maioria
dos casos, aplicam-se a ela. Como as proposições e regras lógicas são formais e
gerais, elas evidentemente são vistas como verdades universais. A esse respeito,
afirma que o fundamento da lógica é a crença na identidade. Esta, por sua vez,
pressupõe a convicção de que existe um mundo absoluto, suprassensível,
verdadeiro. Para a autora, Nietzsche acredita que os princípios da lógica implicam
pressupostos metafísicos. Em seus escritos, ele critica a ideia de um mundo ou de
uma realidade essencial, eterna, imutável. Anunciando a morte de Deus, ele aponta
31
Luciana Zaterka (1996) discute a concepção nietzschiana de ―verdade‖ como ficção. Para tanto, utiliza, como fio condutor de sua pesquisa, a crítica de Nietzsche à lógica, à ciência, à gramática e à linguagem (Cf. ZATERKA, 1996, p. 83-92).
38
para o caráter ilusório da transcendência. É por essa razão que Nietzsche afirma
que a lógica é uma ficção completa. O homem transpõe a ilusão de ter uma unidade
subjetiva (Eu – Ich) para o mundo e, dessa transposição, conclui – ilusoriamente – a
permanência e a estabilidade deste mundo. De acordo com ela, encontramos, aqui,
a convicção na ideia de permanência. Ora, a possibilidade de pensarmos em um
sujeito ou em uma substância com essas características não significa a existência
desse sujeito ou dessa substância no mundo dito exterior. A crença na existência de
substâncias que pensam não é um fato concreto, mas um postulado lógico-
metafísico.
De acordo com Nietzsche, devemos considerar as verdades hegemônicas
como interpretações que podem ser modificadas, isto é, como ficções. Para
Nietzsche, ficção tem o mesmo sentido que interpretação, e as ficções consideradas
verdadeiras são as interpretações que dominam por um longo período. A
interpretação ruim é aquela que se vê como absoluta, como portadora de uma
verdade inquestionável e que não se vê, de forma alguma, como mais uma
interpretação. É através da ficção lógica, da ficção do princípio de identidade, que o
cosmo é ordenado e se torna fixo. Daí ser imprescindível compreender e perceber
que o arbitrário, o erro, a aparência, igualmente podem fazer parte do local de onde
emerge o conhecimento e seus dispositivos indispensáveis para regular a realidade.
Assim, as ideias modernas alocam, como ferramenta indispensável,
absolutamente necessária, o critério de veracidade, forjado nas lutas corporais,
históricas e sociais e dotado de entendimento através da ostentação do predomínio
e da força estabelecida nas hierarquias das sociedades. Nesse horizonte teórico,
podemos acompanhar a fala de Nietzsche, quando este afirma ―que os juízos mais
falsos nos são os mais indispensáveis‖32, pois inventam um mundo igual a si
mesmo, puro e absolutamente verdadeiro. Dessa forma, negar ou abandonar a
veracidade daquilo se tornou, veio a ser, é abandonar voluntariamente a vida.
Com efeito, o que se torna problemático para Nietzsche é que esse
procedimento de valoração não se constitui explicitamente, para a tradição
metafísica clássica e os filósofos das ideias modernas, como o momento de
emergência do conhecimento. Ou pelo menos não é permitida essa compreensão de
32
NIETZSCHE, 2005, p. 11.
39
modo evidente, claro e distinto, o que nos leva a crer que o conhecimento, na
qualidade de invenção e criação humana, torna-se verdadeiro pela correlação de
forças que os grupos sociais mantêm entre si. Lidar com o conhecimento por esses
caminhos talvez seja encargo de uma filosofia que se pronuncia além do bem e do
mal. A propósito, Nietzsche acrescenta que
O que leva a considerar os filósofos com olhar meio desconfiado, meio irônico não é o fato de continuamente percebermos como eles são inocentes – a frequência e a facilidade com que se enganam e se perdem, sua puerilidade e seus infantilismos, em suma –, mas sim que não se mostrem suficientemente íntegros, enquanto fazem um grande e virtuoso barulho tão logo é abordado, mesmo que de leve, o problema da veracidade. Todos eles agem como se tivessem descoberto ou alcançado suas opiniões próprias pelo desenvolvimento autônomo de uma dialética fria, pura, divinamente imperturbável (NIETZSCHE, 2005, p. 11-12).
Os filósofos das ideias modernas criam conceitos que consideram verdades
a partir de seus próprios desejos, vontades. Depois de inventarem do seu âmago,
procuram razões puras para batizar suas ações. Com efeito, o ―amor à sabedoria‖
assume seu mais estrito conceito. Amar, desejar, ser amigo do conhecimento
significa desejo, amor ―à sua sabedoria‖33, uma vez que, para Nietzsche, ―toda a
grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal de seu autor‖34. Desse modo,
a compreensão da valoração se torna muito clara aqui. Valoração explicita o sentido
do a priori filosófico. Quer dizer, por valoração, Nietzsche designa o modo como é
produzido o conhecimento para os filósofos metafísicos e das ideias modernas. Essa
produção é atrelada às intenções morais que os filósofos carregam. Esses filósofos,
em especial, carregam concepções morais que julgam e condenam a vida. O
conhecimento, desse modo, é fruto de procedimentos moralizantes que os filósofos
das ideias modernas revelam na sua individualidade, desenvolvendo, então,
oposições metafísicas que possuem raízes na metafísica socrático-platônica.
O conhecimento não aponta para um ―em si‖. Todo conhecimento é
perspectivo, generalizante e particular. Perspectivo, pois é fruto de uma batalha, de
disputas e, portanto, todo conhecimento é um estratagema, um mapa de relações;
generalizante, dado que ele sistematiza e ordena a fixidez das coisas no mundo;
33
Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 12. 34
Ibid., p. 12.
40
particular, já que o conhecimento apresenta-se como um desafio, uma disputa, uma
luta singular entre os instintos humanos nas lutas sociais.
O objetivo de Nietzsche, todavia, parece não ser encontrar as condições de
possibilidade do conhecimento ou a origem das ideias, nem tampouco a realização
de uma apologia ao empirismo. O que o filósofo alemão pretende, talvez, é anunciar
que a elaboração dos conceitos se realiza através de um procedimento inicial da
linguagem e só posteriormente é deslocado e efetivado como saber metódico, como
ciência. Da linguagem à ciência, ocorre um processo de ampliação e de cristalização
incessante dos conceitos, com o objetivo de arrumar, dispor o mundo das
experiências sensíveis. O próprio mundo é uma construção sistemática da ação, da
atividade humana. Este não possui uma regularidade, uma coerência fixa e eterna.
Ele é cifrado, dedilhado pelos atributos humanos. O homem antropomorfiza o
mundo, concedendo-lhe novidade constante, regularidade e rigidez. Sua ordenação,
portanto, está sujeita à justaposição e à fixação das palavras, que são metáforas, e
não à ―coisa em si‖. Os conceitos, como ―sepulcro das intuições‖35, estabelecem e
determinam as leis de funcionalidade do mundo.
Outro texto que trata da produção do conhecimento como fruto de uma
relação antropomórfica com o mundo e, portanto, uma relação moral, uma
valoração, é o ensaio Infância dos povos36, escrito na juventude e proferido por
Nietzsche na confraria Germânia37, na presença de alguns amigos, em 1861. Nesse
texto, Nietzsche aponta, de forma embrionária, vários aspectos de seu pensamento.
Dentre estes, menciona o fato de a imaginação, que leva à criação de metáforas,
constituir conhecimento do ser humano acerca da realidade. Sobre esse aspecto,
Nietzsche afirma que
35
Cf.NIETZSCHE, 2004, p. 74. 36
Ensaio traduzido para o português por Fabiano Lemos de Brito, publicado em 2009, na Revista Índice – revista eletrônica de Filosofia. 37
Uma espécie de associação entre amigos para realização e divulgação dos estudos. De acordo com Paulo César de Souza, ―Germânia‖ era uma pequena sociedade lítero-musical que Nietzsche havia fundado com dois amigos (Wilhelm Pinder e Gustav Krug), em 1860. Nos estatutos, aparecia a seguinte recomendação: ―Cada um é livre para trazer uma composição musical, um poema ou um ensaio. Mas todos são obrigados a escrever no ano pelo menos seis ensaios‖. Em 1864, ao mesmo tempo em que iniciou seus estudos de teologia e filologia clássica em Bonn, aderiu a uma Associação de cunho filológico de nome Franconia. Porém, no ano seguinte, abandonou-a por não concordar com seu ‗materialismo cervejeiro‘ (SAFRANSKI, 2001. p. 325-327).
41
Ocorreu, então, que os homens com sentido de profundidade, os que carregavam as vibrações de uma imaginação desenfreada, se deram como tarefa serem os enviados dos mais altos deuses, fundaram um novo culto divino, e disseminaram em seu povo, a partir de então, através da doutrina e do exemplo, o que se referia aos fundamentos da moral (NIETZSCHE, 2009, p. 138).
Dessa forma, podemos perceber que os ―homens de profundidade‖,
mencionados por Nietzsche, são homens que sentem que o intelecto é um meio de
preservar, conservar ou expandir o humano, assim como, em outros animais,
prevalecem garras, teias, presas. As ―vibrações da imaginação‖ capturam as
sensações e fundam a linguagem. A disseminação dessa linguagem constrói no ser
humano um ―impulso à verdade‖ como forma de expandir-se ou conservar-se na
sociedade. Aí se dá a separação entre imaginação e razão. Quando o ser humano,
―por necessidade e tédio, quer manter-se em rebanho‖38 e ―acredita saber algo das
coisas em si mesmas‖39, afirma que não é a imaginação o ―primeiro motor‖ do
conhecimento. Afirma, em contrapartida, uma essência lógica anterior e
transcendente à linguagem.
A esse respeito, Fernanda Bulhões esclarece que
Nietzsche destaca o papel fundamental da imaginação no processo que forma a linguagem, pois ela é a força artística que cria os ―pensamentos originais‖. É a matriz a partir da qual se desenvolve todo pensamento, inclusive o pensamento dedutivo, silogístico, matemático, que pretende ser exato. Para Nietzsche, as palavras mais simples, mãe, por exemplo, como as mais complexas teorias, Big-bang (um exemplo que em sua época ainda não existia), são
igualmente metáforas criadas pela imaginação. Todo pensamento, por mais lógico e racional que seja, é, mesmo sem querer, resultado de um processo artístico: ―há algo de artista nesta produção de formas por meio das quais alguma coisa entra na memória‖ (BULHÕES, 2007, p. 95).
Nesse sentido, Nietzsche faz severas críticas ao racionalismo e ao
empirismo. De acordo com ele, o racionalismo e o empirismo desprezam o
conhecimento manifestado pela organização de imagens, pela imaginação. Em
outras palavras, por esquecimento, o ser humano supõe um mundo guiado por uma
entidade pura e fixa, na qual é afastado tudo que não pode ser dissecado em
38
Cf. NIETZSCHE, 2004, p. 66. 39
Ibid., p. 68.
42
conceitos, como se o conceito não estivesse ligado imanentemente à imaginação.
Isso porque é preferível entender e conhecer através de conceitos racionais
extraídos da ―essência das coisas‖, devido à propensão do homem de deixar-se
enganar, a aceitar que, na ação, conhecemos numerosas coisas individuais,
diferentes, que são igualadas, identificadas e designadas como essas ou aquelas.
O conhecimento é uma encenação do instinto de sobrevivência. No ato
principal de sua produção, a ―convicção‖40 entra em cena. Nietzsche afirma que, em
toda filosofia, há um ponto no qual a ―convicção‖ do filósofo entra em cena. No caso
da metafísica clássica e das ideias modernas, a convicção cria coisas, cria o
mundo. Ao criar as coisas, esquece. Do esquecimento à confiança desmedida em
um princípio de racionalidade filosófica, é quase um salto inevitável. O mundo, neste
ínterim, é criado de acordo com seus afetos, com a imagem que pinta de si mesmo.
Daí a própria filosofia fazer parte da vontade de potência (Wille zur Macht)41, ser
―criação do mundo à sua imagem‖42.
A noção de vontade de potência, em Nietzsche, é um conceito capital. Neste
trabalho, optamos por entender e compreender o conceito como superação de si.
Para o filósofo alemão, vontade de potência está relacionada com o conceito de
vida. Diz Nietzsche (2008, p. 144): ―e este segredo a própria vida me confiou: ‗vê‘,
disse, ‗eu sou aquilo que deve sempre superar a si mesmo‘‖. Sendo a vida embate
de forças numa realidade de caráter móvel, dinâmico, incessantemente em
transformação, a vontade de potência é uma tendência da vida em subir, é uma
constante vitória sobre si mesma, domínio de si mesma, um esforço contínuo por
mais potência. De acordo com Roberto Machado (1997, p. 101), há uma relação
entre vida, autossuperação e vontade de potência. Esta é apresentada como a vida
40
Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 14. 41
Nesta dissertação o conceito ―vontade de potência‖ é entendido como superação de si. Sobre este conceito Moura (2005) esclarece que Nietzsche não está reatando laços com a tradição filosófica que ele criticara. Heidegger e Karl Jaspers interpretam o conceito de ―vontade de potência‖ como um retorno de Nietzsche ao seio dogmático da metafísica clássica. O que eles pretendem é identificar a vontade a uma qualidade que assumiria a posição de essência dos seres em geral, uma fundamentação e uma determinação metafísica no sentido clássico. Desse modo, Nietzsche não se distinguiria da postura metafísica de Schopenhauer a qual afirma que a essência das coisas deve ser a mesma que, em nós, é chamada de vontade. Moura (2005), porém, adverte sobre a redução que se pode fazer quando equalizam os conceitos que possuem certa dificuldade de compreensão no pensamento de Nietzsche. Diz ele: ―Desconfiemos sempre destas grandes doutrinas da ―metafísica‖ que, embrulhando todos os autores em um mesmo pacote filosófico, transformam a história da filosofia em mais uma noite em que todos os gatos são pardos‖. 42
Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 15.
43
que se projeta para além de si mesma, pelo qual ela se autossupera, o que permite
compreender por que a vida pode se apresentar como mutável.
De acordo com Moura (2005), essa noção não principia qualquer ontologia.
Ao afirmar que ―o mundo é vontade de potência‖, o filósofo alemão não pretende
destacar que é o mesmo que afirmar que ―o mundo é matéria‖, ou que ―o mundo é
espírito‖. Ao comentar os conceitos físicos com os quais se descreve a natureza, tais
como ―coisa‖, ―causa‖ ou ―átomo‖, Nietzsche adianta que, uma vez eliminadas essas
ficções substancialistas, restam na natureza apenas quantidades dinâmicas em uma
relação de tensão com outras quantidades dinâmicas. Assim, a vontade de potência
designa o conceito de uma relação, produzida em um horizonte de tensão. A
natureza, nesse sentido, é necessariamente uma unidade que, ao mesmo tempo, é
o princípio de sua multiplicidade, é a forma na qual o processo natural se realiza
como um processo de diferenciação, como um vir-a-ser. Dessa forma, Nietzsche
afirmará, de acordo com Moura (2005), que a vontade de potência é resistência e,
assim, ela procura o que resiste. Então, ao afirmar que o ―mundo‖ é vontade de
potência, Nietzsche, diz Moura, procura compreender um conceito de natureza como
processo do vir-a-ser na forma dessa vontade, vir-a-ser que é superação de si e
necessária autodestruição. ―A vontade de potência não é um ser, não é um vir-a-ser,
mas um pathos; ela é o fato elementar do qual resulta precisamente um vir-a-ser, um
atuar‖43.
Todavia, a fórmula da noção de potência é um ―superar-se‖. Como afirma
Moura (2005, p. 199), de acordo com essa fórmula, a potência não nomeia nenhum
estado ao qual se possa aspirar, nenhuma finalidade determinada, mas apenas um
momento do próprio aspirar, o momento da superação de um estado por outro mais
elevado. Nesse sentido, Moura acrescenta:
E, se é assim, como a vontade de potência, para poder exteriorizar-se, tem como condição uma resistência, e como uma resistência só pode ser feita por outra potência, então toda a vida será compreendida por Nietzsche como uma luta de potências, em que diferentes centros de força se determinam por sua relação e potências antagônicas. Assim caracterizado, o conteúdo essencial da vontade de potência está na ideia de ―superação de si‖ (MOURA, 2005, p. 200).
43
Cf. NIETZSCHE apud MOURA, 2005, p. 197.
44
Com o conceito de vontade de potência, não se pretende formatar nenhuma
caricatura de um novo humano divino. A ideia de superação traz, no seu bojo, a
proibição de qualquer tentativa de cristalização de uma imagem determinada.
Nesses termos, a melhor figura para esse conceito são os filósofos do futuro,
espíritos livres, viajantes sem porto de chegada, legisladores e capazes de
superação a partir da criação constante no devir. Podemos interpretar, então, o
movimento de superação de si, ou seja, é exatamente por haver este superar-se que
as perspectivas, os sentidos, as interpretações são infinitos, e que o dogmatismo
necessariamente precisa ser rejeitado. De acordo com Moura, as diversas
interpretações superam-se em direção a outras interpretações. Por isso mesmo,
devido aos filósofos do futuro exprimirem a vontade de potência, eles jamais se
fixarão em alguma certeza. É exatamente porque a vontade de potência é
superação de si que as convicções são prisões, e os filósofos do futuro, legisladores
e criadores de novos valores estarão condenados a ser experimentadores.
Barrenechea (2009, p. 59) confirma, em sua análise, que todos os seres,
sem exceção, respondem à dinâmica da vontade de potência. A realidade, em sua
totalidade, é compreendida como dinâmica de expansão e intensificação de forças.
De acordo com ele, Nietzsche faz referência à vontade de potência como uma
tormenta de forças em movimento permanente. Esse processo de forças se cria e se
destrói a si mesmo ininterruptamente, não possui início nem fim, não diminui nem
aumenta. Em seu livro, Barrenechea (2009, p. 60) argumenta que, vinculado ao
conceito de vontade de potência, Nietzsche utiliza termos como mundo, terra e vida,
alusivos ao processo de devir dos corpos e regidos pela vontade de potência. De
acordo com ele, mundo e terra refletem o movimento vital do incessante vir-a-ser, e
o termo vida alude a instinto de crescimento, de duração, de acumulação de forças,
de potência. Assim, todos os corpos são representados pela tendência de ampliar
seu poder, de manifestar e intensificar suas forças44 e de impor cada vez mais seu
44
No início de sua obra, Nietzsche emprega os termos Trieb (instinto), Instinkt (pulsão) e Kraft (força) como sinônimos. Na última etapa do seu pensamento, Nietzsche usa diferenciadamente o termo força. É possível encontrar diversas interpretações sobre as características da força, introduzidas pelos termos ponto, quantum e centro de poder. Kossovich sustenta o caráter monádico da força; já Fink fala em ―unidades de duração breve‖, ―simples ondas no mar‖. Porém, ambos os autores concordam em assinalar o caráter íntimo e espontâneo da força, que prescinde de qualquer estimulante externo, agindo de forma autônoma no devir corporal (BARRENECHEA, 2009, p. 76 e 90).
45
domínio, tendendo ao crescimento, a vencer resistências e obstáculos. Desse modo,
Barrenechea afirma que
A realidade é um movimento vital, em cujo fluxo é impossível dissociar homem e mundo, justamente porque: ―esse mundo é vontade de potência e nada além disso! E vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso‖. O devir é interpretado como dinâmica da vontade de potência, como permanente confronto de forças. Essa vontade se configura através dos corpos, do movimento vital. A totalidade do universo repete o esquema corporal que é ―jogos de forças e ondas de forças, ao mesmo tempo um e múltiplo‖. Nessa interpretação do vir-a-ser, Nietzsche sustenta uma postura monista que resgata, contudo, o caráter plural das forças que compõem o contínuo corpo-mundo, isto é, esse universo é simultaneamente um e múltiplo (BARRENECHEA, 2009, p. 61).
A partir desse entendimento da vontade de potência, podemos perceber
que o conhecimento e, portanto, a verdade, interpretada pela metafísica clássica e
pelas ideias modernas, é pensada como advindo do estável. Mas o conhecimento
resulta de infindáveis forças e de infinitas composições de poder. Sendo assim, a
filosofia, a ciência, a arte, a religião são invenções antropomórficas, ou seja, não
existem em si e por si mesmas. Esses modos de existência não apontam para uma
essência ideal. O que ocorre são generalizações de uma filosofia que se pretende
verdadeira e/ou amante da verdade.
Daí a legitimidade da questão: ao invés de tentar explicitar a anterioridade
do conhecimento à própria razão, não seria razoável procurar ―a que moral isto (ele)
quer chegar?‖45. Com efeito, para explicitar como surgiram as mais profundas
afirmações da metafísica clássica e das ideias modernas, é necessário se perguntar,
antes de tudo, que tipo de valoração antecede sua inteligibilidade.
2.2 A MORAL CRISTÃ EUROPEIA E A CRENÇA NAS IDEIAS MODERNAS
Como as ideias modernas tomam corpo? O que faz uma verdade se
cristalizar com tanto vigor? Ao que parece, não precisamos remontar a um ―em-si‖
metafísico ou exigir um procedimento de anterioridade ad infinitum na busca de uma
razão incipiente, para compreender essas ponderações. Nietzsche já nos alertou de
45
Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 12.
46
que a busca de tais procedimentos é inglória, pois aquilo de que tudo surge, emerge,
é fruto do modelo de pensamento, de ações e sentimentos que grupos humanos
produzem no seu embate para afirmar ou negar a construção da existência. Quer
dizer, as ideias modernas são produzidas e desenvolvidas no arcabouço das
valorações que são admitidas como verdade para garantir a vida em sociedade.
Sendo as ideias modernas resultado das valorações, o que garante a eficácia
daquelas? Que métodos eficientes e arrojados garantem sua temporalidade e seu
acontecimento? O filósofo alemão é bastante pontual nesse aspecto, afirmando que
provavelmente o que garante a hegemonia dessas ideias é a crença na moral. Como
as ideias modernas são oriundas principalmente da Europa, a moral a que se refere
é a moral cristã europeia.
É a partir desse ângulo que pretendemos situar nossos esforços daqui
para frente. Nossa preocupação é reunir alguns dados, formular e ordenar
conceitualmente um imenso campo das diferenças dos sentimentos, ações e
pensamentos de valor que se fixaram na Europa moderna. Esse esforço constitui
uma tentativa de tornar manifestas as configurações mais presentes e recorrentes
desse processo de cristalização da moral cristã. O esforço toma a forma de um
preparo para elaboração do estudo dos traços característicos, do conjunto de dados,
visando determinar tipos, sistemas, uma tipologia da moral.
Nietzsche é incisivo na sua crítica da tradição. Para ele, os filósofos que se
ocuparam em estudar a moral com rigor científico se enredaram no alvo metafísico
de buscar algo fundante para a moral. A partir da crença metafísica na oposição de
valores, esses filósofos acreditaram que a moral era algo dado antecipadamente.
Movidos por um sentimento que beirava a vaidade, consideravam insignificante a
realização de uma representação pormenorizada da moral. Para os filósofos das
ideias modernas ou os da moral cristã, a moral não era conhecida através de uma
descrição detalhada dos fatos morais e de seus meandros. Esses filósofos
―conheciam os fatos morais apenas grosseiramente‖46.
A limitação desses filósofos se dá pela redução do alcance de seu olhar.
Sua visão alcança, em muitos casos, apenas seu ambiente mais próximo, apenas
sua classe social, sua religião. Alcança tão somente seu contexto. Não alcança os
46
NIETZSCHE, 2005, p. 74.
47
escombros, os soterramentos e as transformações da moral, mesmo considerando
apenas seu lugar geográfico e histórico.
Ao errar o alvo de investigação da moral, não consideram seus vários
problemas, os quais só são visíveis e audíveis a partir da compreensão do momento
em que tal moral surgiu. Quer dizer, a problemática da moral só possui seu estatuto
considerado quando realizada suas interprtação e confrontação com outras e muitas
morais47.
A tentativa de se fazer uma ciência da moral foi posta em suspeita pelo
filósofo alemão a partir do momento em que se tentou ornamentar um movimento de
fundamentação da moral. O que Nietzsche sublinha neste aspecto é o fato de se
tentar escamotear o advento de uma ciência propriamente. Ciência que examine,
coloque em questão, analise e proceda a partir de um estudo minucioso da moral ou
da fé na moral. Até então, o que os filósofos da tradição metafísica e das ideias
modernas realizaram, podemos denominar de uma redução do problema da moral.
A ciência a que se refere Nietzsche em nada nos leva a associá-la à ciência
moderna. A ciência moderna, que desemboca no Positivismo de Auguste Comte,
caracteriza-se por pensar a construção do conhecimento de modo cumulativo e
linear. Esses pressupostos concederam à ciência moderna o lugar de porta-voz de
verdades objetivas e a legitimidade para forjar os conceitos. O que se pretende com
isso é a substituição da especulação filosófica pela positividade dos dados
científicos. Por isso, há uma exaltação da observação dos fatos puros, positivos.
Essa postura torna a ciência o único conhecimento válido48.
Ao contrário, o método genealógico que propõe o filósofo alemão utiliza a
crítica genealógica para realizar uma inspeção meticulosa do caráter incondicional e
absoluto da moral. Na obra Genealogia da Moral, escrita entre junho e julho de
1887, Nietzsche pretende realizar alguns esclarecimentos e complementos de Além
do bem e do mal49. Logo no prólogo de Genealogia da Moral, Nietzsche se refere à
47
Ibid., p. 75. 48
Sobre o positivismo ver: COMTE, Auguste. Discurso sobre o espírito positivo: ordem e progresso. Trad. Renato B. R. Pereira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1976. 49
Acerca dessa questão de uma obra ser complemento da outra ver a análise de Oswaldo Giacóia Júnior sobre Genealogia da Moral In GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Para a genealogia da Moral/Nietzsche; adaptação de Oswaldo Giacóia Júnior. São Paulo: Scipione, 2001.
48
genealogia como um método agudo e efetivo cuja importância é sondar a coisa
documentada e, sobretudo, constatar o efetivo, o que houve realmente. A
genealogia decifra o quase indecifrável, vasculha a escrita ilegível do passado moral
da humanidade50.
O método genealógico em Nietzsche é de importância fundamental para a
compreensão da moral cristã europeia e a credulidade nas ideias modernas. A
utilização desse método constitui uma rejeição da abordagem da tradição que vê,
por exemplo, uma lei natural na formação das ideias modernas e da moral a elas
subjacente. Lei natural que legitima a moral cristã europeia como moral hegemônica.
Nietzsche utiliza esse método, faz uma análise histórica e psicológica do
desenvolvimento da humanidade e percebe que, ao invés de uma legitimação
metafísica da moral, o ser humano produz culturalmente a moral. De acordo com
Nietzsche, o ser humano não possui naturalmente uma moral, mas tem sido
submetido a um processo de aprendizado e de cultivo de seu espírito através de
longas sucessões e supressões de ordens morais e séculos de organização social.
É nesse sentido que Foucault (1998) utiliza e pensa o método genealógico
de Nietzsche. Foucault opõe a genealogia à pesquisa da origem. Esta é impregnada
de história. Muitas vezes, essa pesquisa se torna enigmática, imprecisa e
estritamente suspeita. A genealogia não pode ser entendida como origem devido
aos processos de dissimulação que falseiam a origem. Tal pesquisa é encoberta por
adereços, máscaras, conflitos, desejos reprimidos, desejos privilegiados, invasões,
até se tornar hegemônica. De acordo com Foucault, a genealogia vasculha a
emergência das ações, dos sentimentos, dos conceitos e das paixões humanas
produzidas nas disputas sociais, nos processos corporais e soterradas pelo
esquecimento, sendo elevada ao status de origem miraculosa.
Foucault inicia o seu texto Nietzsche, genealogia e história com a afirmação:
―a genealogia é cinza‖51. Quando faz essa afirmação, não está somente retomando
Nietzsche, mas pretendendo utilizá-lo como meio da sua reflexão. Foucault,
utilizando as palavras de Nietzsche, pretende nos mostrar que o estudo das
emergências não é linear, não revela certezas claras, distintas, primárias e precisas.
50
Cf. NIETZSCHE, 1998, p. 13. 51
Cf. FOUCAULT, 1998, p. 15.
49
Esse estudo do documento empoeirado deve tratá-lo como coisa descontínua,
vazada por interferências, várias combinações, misturas diversas, reconfigurações
de toda ordem. O resultado desse estudo não pode ser universal. Esse resultado
obtido é inerente à nuance, ao prisma, à tonalidade que adquire no tempo, ao
receber várias perspectivas. O trabalho do genealogista é cinzento, pois sua
realização é esmiuçadora, detalhista, perspicaz, paciente. No seu lugar de trabalho,
há cheiro de pó, o ambiente é abarrotado de arquivos, de documentos igualmente
cinzentos.
É indispensável, para o genealogista, o trabalho da espera, da minúcia. O
genealogista espreita, com perseverança, cuidado, sabedoria, todos os aspectos a
serem estudados. Esse agir minucioso visa escolher, com sabedoria, as ferramentas
necessárias para o escavamento das entrelinhas, do não dito, não escrito da
história. Nas lacunas e brechas da história, encontramos as correlações de forças
que interferem na produção e na transformação de fatos históricos em
acontecimentos importantes.
Munidos da genealogia, podemos começar as escavações sobre a moral
cristã europeia e demarcar o modo como esta revela o caminho sinuoso segundo o
qual as ideias modernas delinearam a maneira de sentir, agir e pensar da
humanidade. Nietzsche, em Além do bem e do mal, faz e refaz esse percurso. Em
vários parágrafos do capítulo Contribuição à história natural da Moral, o filósofo
menciona o parentesco das formulações filosóficas da modernidade ao projeto moral
do cristianismo que se encontra em curso na Europa. Desse projeto, não escapam
sequer as ações, os sentimentos e desejos mais independentes e espontâneos. Por
exemplo, qualquer acontecimento, desde o mais lírico, das emoções e sentimentos
mais pessoais aos eventos notórios e pomposos da esfera pública, está mais
relacionado aos desígnios do ―glória a Deus‖ e ao ―graças a Deus‖ do que mesmo à
soberania da ação humana e sua singularidade na criação de seus modos de
existência.
É assim que, em Além do bem e do mal, encontramos espalhado em várias
direções o arcabouço esparso da crítica genealógica da moral cristã europeia. Aqui
abrimos uma pequena fresta para retomar um aspecto já muito comentado da
filosofia de Nietzsche. Referimo-nos ao caráter assistemático de suas obras,
50
mencionado aqui devido à dificuldade encontrada para organizar, em Além do bem e
do mal, a crítica genealógica da moral. A lógica ilógica de seus escritos está
relacionada ao aspecto mais próprio de sua filosofia52. Sua filosofia é um desafio à
tentativa de logicizar e ordenar o mundo com os conceitos e, ao mesmo tempo, uma
comprovação de que isso ocorre por necessidade da vida e ainda de que todo modo
de ordenação é válido na medida em que cria espaço e aparece no mundo como
manifestação do caos perpétuo que é a realidade. Por não se pretender verdade e
mostrar, talvez, como a verdade se forja, é que Nietzsche nos desafia para a
―esgrima‖ filosófica de pensar com ele.
Essas informações são importantes até mesmo para mostrar que, embora
nossa obra de análise interpretativa seja Além do bem e do mal, em diferentes
momentos, iremos nos transportar para outros escritos, seja da juventude, seja do
período intermediário53 do autor, para apontar o que nos interessa. Nesse caso, a
interpretação dar-se-á conforme análise da emergência dos valores morais cristãos
petrificados ao longo do desenvolvimento das ideias modernas. Dessa forma, no
âmbito deste exame, as contradições e incertezas serão consideradas tanto quanto
a objetividade e a certeza.
2.3 O MÉTODO GENEALÓGICO DE NIETZSCHE
Diante do exposto acima, faremos uma pequena incursão nos emaranhados
mais sutis da primeira dissertação de Genealogia da Moral, para exemplificar o uso
do método genealógico empregado por Nietzsche para questionar a moral cristã
europeia e mostrar a filiação das ideias modernas no seio dessa moral. A
Genealogia da moral, como mencionado acima, é uma obra que complementa Além
52
Sobre essas observações de metodologia, ver a Introdução do texto de ROCHA, Silvia Pimenta Velloso. Os abismos da suspeita: Nietzsche e o perspectivismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. A autora fala da decorrência necessária entre o aspecto assistemático das obras de Nietzsche em relação ao perspectivismo que é a marca de sua filosofia. 53
Muitos autores tratam da divisão da obra de Nietzsche em três períodos. Neste trabalho, seguimos o que propõe MARTON, Scarlett. Nietzsche: Das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990. Para ela, o primeiro período, compreendendo O nascimento da tragédia e as Considerações extemporâneas, é marcado pela crença do filósofo na renovação da cultura alemã; o segundo, englobando Humano, demasiado humano; Aurora e os quatro primeiros livros de A gaia ciência, mostra a busca de seu próprio caminho como espírito livre; o terceiro, abrangendo de Assitn falou Zaratustra a Ecce homo, apresenta a doutrina do eterno retorno (MARTON, 1990, p.24-25).
51
do bem e do mal. Se, na atualidade, há certa dificuldade de compreensão e
formulações apressadas sobre essa obra, imaginemos o tumulto que causou aos
poucos leitores na época de sua publicação, em 1886. É provável, portanto, que
Genealogia da moral tenha realmente o caráter elucidativo e de complementação de
Além do bem e do mal.
No prólogo da Genealogia da moral, Nietzsche inicia o percurso de análise
da moral cristã, utilizando o método genealógico. Inicia sua atividade de escavação
da moral a partir de algumas ponderações: sob que condições o ser humano
inventou para si os juízos de valor ―bom‖ e ―mau‖? Esses valores obstruíram ou
promoveram o crescimento e a elevação do ser humano?54
O objetivo do filósofo alemão é criar hipóteses sobre a procedência da
moral. De acordo com ele, há a necessidade de um conhecimento das condições e
circunstâncias nas quais nasceram os valores morais, quais deles se desenvolveram
e quais se modificaram. Por exemplo, o autor vai mostrar que, no que diz respeito ao
sentido de utilidade, atribui-se ao ―bom‖ valor mais elevado do que ao ―mau‖. Nesse
sentido, sua finalidade é percorrer as recônditas regiões da moral.
O trajeto apontado por Nietzsche não é linear. Seu percurso exige
jovialidade para olhar o entorno. É necessário minúcia, pois tudo requer
desconfiança, a suspeita salta à nossa frente e, dessa maneira, faz cambalear a
crença em toda moral. A proposta de Nietzsche é seguir a trilha da arte da
interpretação. Ao segui-la, é importante recordar a atitude de uma vaca, sua postura
ante o alimento, uma vez que a arte da interpretação é muito similar à de ruminar. E
é quase mais necessário ser uma vaca na arte de ruminar do que um homem
moderno. Este não possui arte para a leitura devido à velocidade que o encarcera.
Na primeira dissertação da Genealogia da Moral, Nietzsche esclarece que a
fonte do conceito ―bom‖ não está no sujeito que faz o ―bem‖. O conceito ―bom‖ é
proveniente do ―bom‖ mesmo, daquele que estabeleceu a si mesmo e as suas ações
como ―boas‖. O ―bom‖ provém do sentimento de nobreza. A nobreza do espírito, a
nobreza do pensamento. Nobreza, inclusive, que se encontra hierarquicamente
54
Cf. NIETZSCHE, 1998, p. 9.
52
organizada e prefere distância de tudo que é vulgar, mesquinho, assenhoreado à
utilidade imediata. Nesse sentido, afirma Nietzsche:
Foram os ―bons‖ mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu. Desse pathos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade! (NIETZSCHE, 1998, p. 19).
O distanciamento vigoroso que o ―bom‖ estabeleceu para si através de sua
nobreza é o que notabiliza a criação de valores, ou seja, a cunhagem de nomes para
as coisas que elevam e celebram a vida. Para essa espécie, o útil, a conveniência, o
deixar-se levar é o menos adequado. A utilidade e o cálculo da conveniência
marcam a pequenez e a própria negação do vigor da vida.
Para Nietzsche, a liberdade55 e a singularidade da ação não são travadas
pelo ―direito senhorial‖. Todavia, não pretende apontar o surgimento de uma
organização social baseada no ―tudo é permitido‖. Para Nietzsche, a liberdade da
ação atende aos princípios necessários de ordenação e legitimidade da prática de
expansão dos processos vitais. A cautela e a denúncia do filósofo são uma só: a
ação promove a elevação da vida, ―a ação é tudo‖56. O direito senhorial, para
Nietzsche, é necessário. Não é necessário como massacre, repressão e opressão,
mas pelo caráter de oposição ao ―instinto de rebanho‖. Inclusive, nesse sentido, é
indispensável que o homem se torne senhor de si mesmo, capaz de criar seu modo
de atuação para além de um bem ou de um mal. Não sendo possível seu próprio
assenhoramento, há a necessidade de um direito senhorial que regule as atuações
humanas.
A expressão de potência e transbordamento do ―direito senhorial‖ é a
capacidade de criação de valores. Os ―senhores‖ são aqueles que doam sentido a
coisas, valores, ideias e comportamentos. Percebem o poder da linguagem na
origem dos valores e marcam cada fato, fenômeno, objeto, atribuindo-lhe um ―som‖.
55
A aceitação livre da necessidade transforma todas as nossas decisões, muda a perspectiva da nossa vontade, tornando leveza qualquer constrição. Se acolhermos os eventos da mesma forma, se agirmos desejando intensamente tudo o que acontece, cada ato representará uma libertação, nenhum evento se apresentará como uma restrição ao nosso arbítrio (BARRENECHEA, 2008). 56
Cf. NIETZSCHE, 1998, p. 36.
53
A partir de então, apropriam-se das coisas, valores, ideias, comportamentos e
legitimam o direito sobre os aspectos da vida.
Todavia, o ―instinto de rebanho‖, o ―animal de rebanho‖, com seu arrojado
cálculo da utilidade, declina os juízos de valor e, ao conceito ―bom‖, por exemplo,
atribui as ações praticadas como ―não egoístas‖. Quando a nobreza de pensamento
é contaminada pelo ―instinto de rebanho‖ surge, a oposição entre ―egoísta‖ e ―não
egoísta‖ para marcar o que é o ―bom‖. Daí se experimentou a ―providência‖, ou,
talvez, a emergência do conceito de ―bom‖ como uma ―ideia fixa‖ oposta às ações
―não egoístas‖. A violência da ―ideia fixa‖ só é possível quando o animal de rebanho
―toma finalmente a palavra (e as palavras)‖57. Sobre este aspecto, Nietzsche
esclarece:
é velho costume entre filósofos, de maneira essencialmente a-histórica, [...] investigar a origem do conceito e do juízo ―bom‖. ―Originalmente‖ – assim eles decretam – ―as ações não egoístas foram louvadas e consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas, aqueles aos quais eram úteis; mais tarde foi esquecida essa origem do louvor, e as ações não egoístas, pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas, foram também
sentidas como boas – como se em si fossem algo bom‖. Logo se percebe: esta primeira dedução já contém todos os traços típicos da idiossincrasia dos psicólogos ingleses – temos aí ―a utilidade‖, ―o esquecimento‖, ―o hábito‖ e por fim ―o erro‖, tudo servindo de base a uma valoração [...] essa teoria busca e estabelece a fonte do conceito ―bom‖ no lugar errado: o juízo ―bom‖ não provém daqueles aos quais se fez o ―bem‖! (NIETZSCHE, 1998, p. 18-19).
O que torna razoável e sustentável, nesse ponto, a Genealogia da moral é a
percepção mais intensa que a etimologia permite descobrir. Nietzsche observa que
diversas línguas cunham o conceito ―bom‖ a partir do sentido social de ―nobre‖,
―aristocrático‖, ―espiritualmente nobre‖, ―espiritualmente bem-nascido‖.
Compreendemos até que, espiritualmente, diz respeito a pensamentos elevados,
pensamentos impregnados de cuidado com a vida. ―Espiritualmente bem-nascido‖,
vinculado ao entorno, vinculado à preocupação de estabelecer para si valores
elevados. Soa até estranho vincular ―espiritualmente bem-nascido‖ à posição
econômica. O sentido semântico que a etimologia fornece relaciona ―nobre‖, ―bem-
nascido‖ ao status, não há referência à detenção de riqueza ou usurpação
econômica. Nesse sentido, Giacóia Jr. afirma que
57
Ibid., p. 19-20
54
a primeira pista é fornecida por uma derivação semântica: ela é dada com a pergunta pelo referente designado pelo conceito ―bom‖ em
diversas línguas. Um exame etimológico a respeito da questão conduziu, em quase todos os idiomas examinados, à mesma metamorfose conceitual: o elemento básico originário é o conceito ―nobre‖, ―aristocrático‖, no sentido de status; essa foi a matriz a partir
da qual se desenvolveu o conceito ―bom‖, no sentido de ‗nobre de alma‘ ou de ‗sentimentos nobres‘; ‗aristocrático‘, em sentido social, derivando para ‗animicamente mais elevado‘, ‗alma privilegiada‘. Esse deslocamento da significação é sempre acompanhado, em paralelo, pela transposição que faz derivar o conceito ―mau‖ dos conceitos ―plebeu‖, ―vulgar‖, ―baixo‖ (GIACÓIA Jr., 2001, p. 25).
Por outro lado, o ―ruim‖ é aquele ―comum‖, ―baixo‖, ―plebeu‖. O ―ruim‖ é o
que sequer experimenta ―pensar‖ seu entorno, possui apenas uma preocupação e
um objeto de ponderação: o conforto imediato. Nesses termos, a designação do
―bom‖ pode ser atribuída a um ―traço típico de caráter‖58. O ―bom‖ seria o guerreiro.
O que move a bondade é o uso do logos durante os dissídios da vida em comum. É
na e pela disputa que o ser humano é tangenciado como ―bom‖. É por esse
caminho, diz Nietzsche, que os romanos compunham a representação da ―bondade‖
de um ser humano59.
O que a Genealogia da moral permite observar é que o surgimento, a
emergência dos valores morais não é permeada por um simbolismo. Os conceitos
da humanidade foram criados e compreendidos como algo rude, da superfície e,
portanto, assimbólico. Ao longo de outros processos de disputa, os conceitos da
humanidade se inverteram e suas interiorização e intensidade foram despontando
como uma ―metafísica antissensualista‖60. Assim, uma radical tresvaloração dos
valores se realiza e a inversão dos valores cujo devir é constante se realizou. O
problema é que, nesse processo, algumas noções e conceitos foram cristalizados e
insistem na duração temporal, pretendendo uma hegemonia total. É como se a
vingança sacerdotal tivesse se fincado como conceito fixo. Ou, então, como se um
conceito bastante alimentado pela fraqueza da vontade, pela decadência,
despontasse nas lutas, nas disputas, nos confrontos, como algo que permaneceu
inalterável, sólido e estável.
58
Ibid., p. 22. 59
Ibid., p. 23. 60
Ibid., p. 24.
55
A inversão dos valores guerreiros aristocráticos se principia quando a
afirmação de seu modo de existência é negada. O valor criado pela moral escrava
abandona a singularidade da ação voltada para si mesmo. O olhar invertido da moral
escrava soa como uma negação de si. O olhar se dirige para fora. A atividade, a
ação que norteia o espírito nobre, é substituída pela reação. A moral escrava
necessita reagir ao outro, ao fora, ao exterior. Nietzsche representa esse processo
como um modo de decadência, o ressentimento. Enquanto isso, a criação de valores
nobres se intensifica na ação e cresce espontaneamente e percebe no fora, no
exterior, no outro, apenas possibilidade de afirmação da vida. Por outro lado, e ao
contrário do modo nobre de valorar, os valores criados pela moral escrava minam o
agir, empalidecem a vida e a paixão na ação.
É dessa maneira, por exemplo, que ocorre o desprezo, o olhar para frente do
nobre. Ao se equivocar no modo de valorar a realidade, o nobre despreza as
condições que lhe são estrangeiras. O desprezo é um falseamento da realidade, é
um deixar de lado. A moral escrava falseia a imagem desconhecida, atacando-a.
Mesmo diante do desprezo, o que permanece é a alegria consigo. Desse modo, o
desprezo se dá como uma desatenção, uma impaciência. O falseamento da
realidade não é causa para lamentação e para a infelicidade. O falseamento da
realidade ou aquilo que lhe é estranho pode ser tratado com desprezo e não como
uma caricatura monstruosa a ser aniquilada.
Portanto, a valoração nobre, aristocrata e guerreira não constrói e cria seus
valores artificialmente. A criação de seus valores é oriunda da plenitude de sua
humanidade, de sua existência. A força da criação é necessariamente ativa. A
condição de felicidade, por exemplo, não pode se distanciar da ação e da afecção
do ser feliz. Nesse caso, a felicidade não é um alívio ao desassossego, um
relaxamento dos membros ou distensão do ânimo, tampouco uma passividade, uma
curvatura ante as necessidades61.
Durante o abandono da singularidade da ação, da atividade, a inversão dos
valores realizada pela moral escrava do ressentimento salta como um feito original.
A noção de ―bom‖, criada espontaneamente, a partir da avaliação do próprio nobre,
estabelece a criação de uma representação do ―ruim‖. Porém, o que prevalece como
61
Ibid., p. 30.
56
original é a noção de ―mau‖. O ―ruim‖ é uma representação, produzida pelo ―nobre
de espírito‖. O ―ruim‖ representa a falta de consideração inter pares, a ausência de
autodomínio, a indelicadeza e a deslealdade. A moral do ressentimento privilegia a
noção de ―mau‖ por reconhecer naqueles ―bons‖ os inimigos. Porquanto, para a
moral do ressentimento, o ―mau‖ é precisamente o ―bom‖ da outra moral, o ―nobre‖,
pois aqueles ―bons‖, ―nobres‖ são identificados como os inimigos maus62.
A inversão dos valores ocorre devido à necessidade que a cultura63, através
do processo civilizatório, impõe. Em sentido amplo, cultura, para Nietzsche,
representa o conjunto de todas as determinações da experiência humana
consideradas como resultado de uma determinada atividade vital. De acordo com
Oliveira Jr., há, na análise realizada pelo filósofo alemão, um aspecto ―positivo‖ e
outro ―negativo‖64 no tratamento do conceito de cultura. O aspecto positivo diz
respeito à cultura trágica, apresentada como um modo de conciliação entre o
homem e a realidade trágica do devir. Essa conciliação é valorizada na obra de
Nietzsche por permitir a criação de um espaço para o descobrimento do ser humano
em toda sua diversificada natureza. Por outro lado, a acepção negativa de cultura é
entendida de modo ambivalente. Nietzsche contesta e combate a cultura por
considerá-la um modo de domesticação e enfraquecimento do homem. Todavia,
mesmo esse processo de domação humana possui um caráter necessário, uma vez
que, em dados eventos históricos, o homem teve de ser ―domesticado‖, teve de ter
seus impulsos e forças domados, devido ao processo civilizatório. No entanto, é
importante avaliar e questionar se essa domesticação resultou em crueldade e
supressão das potencialidades humanas. No horizonte do sentido positivo de
cultura, é necessário manter sua direção voltada para a formação, ao mesmo tempo,
da liberdade interior e de uma rigorosa disciplina. Nesse sentido, afirma Oliveira Jr.:
A liberdade interior conduz à rebelião contra toda autoridade e à revolta contra toda crença. A disciplina rigorosa leva a desfazer-se de hábitos, abandonar comodidades, renunciar à segurança. Aliás, é no âmbito desse reclamo pela autonomia do indivíduo diante do Estado que se deve entender o que Nietzsche chamaria de uma Paidéia
antiestatal, uma educação do indivíduo que se contraponha à ação embargadora do Estado, com relação ao surgimento do super-
62
Ibid., p. 32. 63
Cf. BARROS, 2002, p. 72. 64
Acolhemos a estratégia estilística e didática adotada por Oliveira Jr. para acentuar a ambivalência do conceito de cultura em Nietzsche (Cf. OLIVEIRA Jr., 2004, p. 42.).
57
homem, educação essa na qual o indivíduo superaria uma característica que lhe é inerente, relacionada à dificuldade que possui em desaprender e propor-se um novo alvo, o cultivo do super-homem (OLIVEIRA Jr., 2004, p. 44).
Prosseguindo na análise da inversão dos valores, percebemos que ela
ocorre devido à necessidade que a cultura impõe. A cultura produz a verdade. A
verdade produz a moral. A moral cristã cristaliza alguns entendimentos da
modernidade. Nesse sentido, a cultura, para Nietzsche, é um amestramento. O que
se crê como verdade é o adestramento do ser humano. Na modernidade, a cultura
adestra o ser humano, reduzindo-o a animal manso, civilizado, um animal
doméstico. De acordo com Nietzsche,
Supondo que fosse verdadeiro o que agora se crê como ―verdade‖, ou seja, que o sentido de toda cultura é amestrar o animal de rapina ―homem‖, reduzi-lo a um animal manso e civilizado, doméstico, então deveríamos sem dúvida tomar aqueles instintos de reação e ressentimento, com cujo auxílio foram finalmente liquidadas e vencidas as estirpes nobres e os seus ideais, como autênticos instrumentos da cultura; com o que, no entanto, não se estaria dizendo que os seus portadores representem eles mesmos a cultura (NIETZSCHE, 1998, p. 33-34).
Esse animal domesticado é incapaz de ação singular. Seu modo de atuação
diante da vida é reativo, ressentido. A tipologia da moral escrava constitui a marca
do ser humano manso, insosso. Sua mediocridade é indicada por sua vinculação à
incapacidade de afirmação da vida. Quando não se afirma a vida em fortitude, não
nos reconhecemos como senhores da cultura e, portanto, não criamos valores que
superem o nivelamento e permitam a restituição da moral guerreira. A moral escrava
oferece ao mundo a formatação de uma alma malograda. A moral guerreira é
necessariamente combativa. Sua frente de batalha almeja o surgimento de uma
cultura que crie almas logradas, potentes, triunfantes, que restabeleça a fé no
homem ou a sua superação65.
Portanto, o que o método genealógico permite compreender é a não
existência de um substrato transcendente por trás dos valores morais que se
assume numa permanência imutável e que vem deslizando gradualmente, numa
linha histórica. Os conceitos e, portanto, as valorações gotejam fluente e
65
Cf. NIETZSCHE, 1998, p. 34-35.
58
incessantemente. O valor das valorações é seu cálculo de transformação eterna.
Suas modificações são fruto da história efetiva dos povos. É nesse sentido que os
valores morais, mesmo aqueles que se apresentam como mais sagrados e
inquestionáveis, possuem origem, foram criados como expressão das relações de
poder e dominação. Nesse aspecto, é possível falar em morais e não em moral no
singular e universal66.
As diferenças impressas em cada moral não são variações da participação
ou do afastamento da essência do ser. Cada cultura inventa, produz um tipo de
homem. Cada tipo pode ser representado através da relação de domínio ou de
obediência, sujeição, na qual está inscrita sua cultura. Tais relações também não
são imutáveis. A cada ciclo cultural, percebemos seu caráter mutável e a ordem
consolidada se subverte.
Na modernidade, o embate das relações de domínio/sujeição não cessou.
Ao contrário, esse duelo insaciável assume outro formato. Ao invés da disputa entre
uma ―aristocracia guerreira‖ e uma ―aristocracia sacerdotal‖, temos o contraste entre
o ―filósofo-legislador‖, ―espírito livre‖ e o ―animal de rebanho‖. O que marca essa
disputa é o elemento da atividade ou o da passividade diante da bios, da vida e do
mundo. Esses elementos coexistem simultaneamente no mesmo homem, sendo a
marca de um sobre o outro que determina, ou seja, o predomínio de um sobre o
outro que condiciona a condição de animal de rebanho ou de espírito livre,
legislador. No animal de rebanho, é a passividade que predomina, pois ele é
contemplador, renuncia à sensualidade dos sentidos. O filósofo-legislador, espírito
livre, é o que, espontaneamente, lança mão da força, potência, e demonstra,
experimenta a capacidade de agir por si, constituindo, desse modo, o sujeito ativo de
sua ação, pois nele a atividade predomina sobre a passividade.
Retornando a Além do bem e do mal, é possível afirmar que, ao buscar a
fundamentação da moral, os filósofos das ideias modernas propunham um modo
erudito de afirmar a sua complacência com a moral dominante. Quer dizer, os
filósofos das ideias modernas, do alto de sua ilustração, do seu esclarecimento,
revestiram a moral predominante em sua época da condição de única moral a ser
aceita universalmente como fé irrefutável e inquestionável. Ao conceber somente um
66
Cf. GIACÓIA Jr., 2001, p.30-31.
59
novo modo de expressar a moral hegemônica da época, esses filósofos não
cumpriram seu propósito, seu projeto e trajeto. De acordo com Nietzsche, ao invés
de criar as bases de uma ciência da moral, como algo que encontraria seu âmago,
seu fundamento, se isso fosse possível, os filósofos das ideias modernas
generalizaram seus próprios pré-conceitos e foram incapazes de colocar em dúvida
a própria fé na moral de seus senhores.
A busca de uma fundamentação para a moral conduziu os filósofos das
ideias modernas ao esquecimento. O que eles afirmam como fundamentação da
moral se inscreve em um contexto mais geral. A multiplicação dos discursos
apontando um fundamento ou uma essência de onde jorra a moralidade, a
generalização de seu contexto, de seu ambiente mais próximo, de sua classe social,
de sua religião, ou a crença na oposição do mundo sensível ao mundo inteligível,
indicam, para Nietzsche, não apenas preconceito filosófico, mas a tentativa de
afirmação do discurso, do logos que sintetiza um ponto de vista que encarcera
outras perspectivas de afirmação de outros arranjos sociais, outro ethos67, talvez
plural. Nesse enunciado da fundamentação da moral, encontramos o disfarce para a
expressão de uma ―erudita fé na moral dominante‖68.
O que significa fé na moral dominante? Não há uma definição
pormenorizada no contexto em questão. Encontramos algumas ressonâncias
quando observamos a descrição de algumas posturas consideradas moralistas por
Nietzsche. De acordo com o filósofo, algumas morais, dentre elas as que são
hegemônicas, pretendem demonstrar a sua universalidade; em outros casos, seguir
a moral dominante seria o modo de acalmar seu entendimento e de se saciar com
as conveniências vigentes. A moral dominante desenha uma paisagem em que a
interioridade de seu idealizador esqueça algo de si, de seu próprio processo de
participação na construção dessa moral que exala o predomínio exterior. Depois de
pintada, colorida, a paisagem salta aos olhos como se tivesse sido forjada no âmago
67
Éthos/Êthos: Essas duas palavras derivam de uma mesma raiz que assume significado diferente: Éthos significa: costume, uso, hábito; e o verbo eíotha: ter o costume, ter o hábito. Êthos significa: caráter, maneira de ser de uma pessoa, índole, temperamento, disposições naturais de uma pessoa segundo seu corpo e sua alma, os costumes de alguém conforme sua natureza. Éthos se refere ao costumeiro; Êthos se refere ao que se faz ou se é por características naturais próprias (CHAUÍ, 2002, p. 500) Nosso entendimento circula entre os dois significados: tanto se refere ao costume, ao hábito, quanto à maneira de ser, à índole e ao temperamento. Por isso, optamos por retirar o acento diferencial. 68
NIETZSCHE, 2005, p. 75.
60
de um espírito puro. Nos jogos de dominação, hierarquias, nas lutas políticas,
forjam-se as morais dominantes.
―Toda moral é, em contraposição ao laisser aller [―deixar ir‖], um pouco de
tirania contra a ‗natureza‘‖69. Esse aspecto analisado por Nietzsche é importante por
demarcar exatamente o modo como se realiza a avaliação detalhada, a crítica da
moral cristã europeia. Nietzsche faz menção à moral como sendo uma espécie de
―tirania de tais leis arbitrárias‖70. As leis arbitrárias são as leis que os homens criam
para garantir a sobrevivência. Essas leis são arbitrárias, pois somente os humanos
são capazes de usá-las e de usufruir delas, de acordo com a afirmação e a
expansão das forças que se movem constantemente ao dotarem de sentido os
contornos sociais. A necessidade que lhes indica sua maneira de ser e existir é
posta em evidência devido a seu poder para dispor, ordenar, criar o mundo possível
de vida gregária.
O que há na atuação humana é um modo de ser dessa tirania das leis
arbitrárias. E é dessa maneira que nos afastamos do simples ―deixar-se levar‖ para
criar liberdade, arte, pensamento, política, ciência, religião. A tirania das leis
arbitrárias é o modo como os signos (leis arbitrárias) se organizam para a criação do
mundo, é a expressão da Wille zur Macht, uma vez que a ordenação e a logicidade
atribuídas ao cosmo estão no modo como dispomos da linguagem e da criação de
uma moral para sobrevivermos numa relação inter pares na sociedade.
Nesse sentido, ―moral é contra natureza‖, porque a natureza é dinamismo do
vir-a-ser, jamais se fixa, não possui estabilidade, mudando conforme o embate dos
impulsos. Natureza é vontade de potência. Apressadamente, porém, poderia se
tentar afirmar que Nietzsche retorna à esteira da metafísica clássica. Como?
Entendendo o conceito de natureza como substância, como causa. Para a
metafísica clássica, que opõe essência/aparência, a natureza é pensada como ousía
para coisas, fenômenos, ideias, comportamentos, através da força de criação do
intelecto. Esta cria o entendimento de uma qualitas occulta para as coisas.
Nietzsche, todavia, questiona essa perspectiva ao afirmar que, somente através de
um ato imaginativo e por esquecimento, o ser humano estabelece a posse e a busca
69
Ibid., p. 76. 70
Ibidem.
61
de uma essência primordial de onde tudo jorra. O que se chama de substância,
causa, essência, para o filósofo alemão, é tão somente um empreendimento do
princípio de razão. A substância, a causa, a essência são apenas palavras,
metáforas. Toda e qualquer palavra, metáfora, é uma excitação nervosa, criada
arbitrariamente no embate de forças, para lidar com a realidade. Dito de outra forma,
são impulsos linguísticos capazes de dotar de ordenamento o mundo e, sobretudo,
de organizar e garantir a sobrevivência.
Todavia, concluir que uma excitação nervosa é causa, substância ou
essência primeira e exterior é um mau uso do princípio de razão, uma tentativa de
objetivar gêneros, criar e estabelecer a obediência irrefletida, inquestionável e
eterna. A essência das coisas, portanto, é um conceito fruto do trabalho e do esforço
do pesquisador, do filósofo que edifica seu edifício provavelmente da ―cucolândia
das nuvens‖, como afirma Nietzsche em Sobre verdade e mentira no sentido extra-
moral71. A essência das coisas, como uma verdade pura e sem restrições, na
condição de objeto para aquele que cria uma linguagem, permanece absolutamente
ininteligível e não merece ser levada em consideração. Desse modo, moral é contra
a natureza, pois é contra o fluxo de expansão dos instintos. É contra a natureza
porque esta é vontade de potência e não conserva estados puros, inertes ou
imutáveis.
A partir desse entendimento, percebemos que a crítica da moral realizada
pelo filósofo alemão não deságua numa proposta de criação de um mundo ―imoral‖
ou ―amoral‖ ou de um mundo em que não haveria elos humanos mínimos para
assegurar a sociabilidade mantenedora da vida gregária. Sua crítica é
suficientemente pontual. O aspecto a ser nela vislumbrado com mais nitidez é a
maneira como a moral cristã europeia se tornou hegemônica e sua coerção diante
do desenvolvimento da vida fincou-se ao longo de séculos, de modo a julgar e banir
os aspectos vitais que estão ininterruptamente em transformação.
Do entendimento de que a moral é necessária, surge outra proposição: a
moral exige obediência. A obediência é a regulação da vida em sociedade, cuja
atividade se dá a partir do próprio desembocar da coerção, um modo de limitação
que aproxima os desiguais. A coerção é reta, mostra-se em uma dada direção. Seu
71
NIETZSCHE, 1991, p. 34.
62
modus operandi exige que as relações sociais sejam organizadas a partir de uma
cultura da domesticação. Daí a obediência se manifestar sorrateiramente, devido ao
modo como a coerção é exercida, pela tradição de um povo e sua respectiva cultura.
Exatamente quando o homem passou a se organizar em sociedade, devido à
comodidade e ao bem-estar, passou a submeter-se a determinados costumes e
tradições. A comodidade e o bem-estar estão relacionados ao mínimo de conflito
dentro do mesmo segmento social organizado pela cultura.
Porém, a condição de demora no estado de obediência retira a possibilidade
de criação de novos arranjos sociais. Além disso, o reiterado sucumbir ante a
coerção pode tornar-se enfraquecimento e inércia no momento em que a cultura
exigir ação, uma vez que a vontade de potência exige uma inesgotável superação
de si. É provável, dessa forma, que a coerção retire o aspecto transfigurador da
própria atuação humana. É nesse ponto que o demorar-se na obediência soterra a
condição de liberdade, já que, seja qual for a ação deliberada que se possa tomar, o
distanciar-se dos modos reguladores e paradigmáticos estipulados torna-se uma
afronta, talvez tratada como algo sórdido e imoral.
Com efeito, a tradição e a lei moral estão tão associadas que a primeira
assume o status de imunidade ao questionamento e gera o dogmatismo da lei. Há,
assim, tal condicionamento que a possibilidade de revogar a ação daqueles que
impõem as regras sequer é cogitada. No entanto, permanece uma questão:
obedecemos às leis e aos costumes por hábito, por tradição, ou tememos o embate
direto com as autoridades e devido ao medo de provocar desequilíbrio na nossa
convivência?
Nietzsche afirma que a ―obediência foi até agora a coisa mais longamente
exercitada e cultivada entre os homens‖72. A formação de rebanhos humanos é
responsável por apregoar a obediência de muitos em relação ao pequeno número
dos que mandam ou mandaram. Torna-se muito forte a percepção que cada um
eleva como necessidade de obedecer, pois é cultivada no espírito humano uma
espécie de consciência que diz: ―você deve absolutamente fazer isso, e
absolutamente se abster daquilo‖73. A ideia gregária da obediência é transmitida por
72
NIETZSCHE, 2005, p. 85. 73
Ibidem.
63
herança da tradição (dos pais, mestres, leis, preconceitos de classe, opiniões
públicas).
É a essa situação que Nietzsche vai denominar de hipocrisia moral. As
ideias modernas divulgadas na Europa demonstram uma peculiar estreiteza da
atuação humana. Privilegia-se a obediência, a resignação, em detrimento da arte de
mandar, de estabelecer para si valores e criar modos de existência autênticos,
singulares, à medida que se reconhece a condição de superação constante de si.
Quando o instinto gregário domina e se torna hegemônico, podemos
perceber o esgotamento do espírito independente e criador. Por esquecimento, o
espírito independente, que ―manda‖, o criador de valores, se dissipa. A má
consciência surge. Então, os rebanhos humanos precisarão se iludir para poder
mandar. Começam a acreditar que, ao mandar, eles também apenas obedecem.
―Essa situação existe realmente na Europa de hoje: eu a denomino a hipocrisia da
moral dos que mandam‖74. As ideias modernas são reféns da má consciência. A
única forma de defesa delas em relação à má consciência é posar de executores de
ordens mais antigas ou mais elevadas. Ordens dos ancestrais, da Constituição, do
direito, das leis, ou de Deus. Outra possibilidade é aparecer como ―primeiros
servidores de seu povo‖ ou ―instrumentos do bem comum‖75.
É nesse sentido que as ideias modernas alcançam hegemonia total. A moral
cristã europeia, a moral do homem de rebanho se apresenta como a única
possibilidade permitida. Seus atributos tornam o ser humano um animal manso,
afável, dócil e absolutamente útil ao rebanho. Daí serem eleitos, como virtudes
exatamente humanas: espírito comunitário, benevolência, diligência, moderação,
modéstia, indulgência, compaixão, virtudes que provêm não da elevação e da
afirmação da vida, mas da hipocrisia da moral daqueles que precisam mandar para
manter o estado gregário. Há, nesse sentido, uma inversão das forças. Há a inibição
da ação, a letargia e a passividade no agir.
A moral cristã europeia, portanto, seduz e empalidece a atividade política
dos humanos, pois sintetiza seus desejos e anseios em comodidade, bem-estar e
74
Ibidem. 75
Ibidem., p.86.
64
ausência de disputa, confronto, luta, na organização da vida inter pares na
sociedade. É desse prisma que Nietzsche vai tecer suas considerações críticas a
respeito da Democracia burguesa. Como não se pode dispensar quem ―manda‖,
criam-se várias formas de tentar substituir quem comanda por uma soma acumulada
de homens sagazes do rebanho. Cria-se, portanto, a ilusão de que quem exerce o
comando é o rebanho geral, ou seja, as instituições representativas saltam aos olhos
como máxima da igualdade.
65
SEGUNDO MOVIMENTO
3. A CRÍTICA À DEMOCRACIA
O cerne da crítica de Nietzsche são as práticas humanas e suas fronteiras,
isto é, sua preocupação reside em auscultar as experiências humanas mais
profundas e as suas possibilidades mais inesgotáveis. Ao realizar esse
procedimento, diagnosticou que esse território a ser explorado constitui vasto
empreendimento. A partir do desenvolvimento da genealogia, alcança o
entendimento de que encontrou na história da ação humana até o momento uma
caça grande76.
A ―caça grande‖ é a percepção segundo a qual o movimento iniciado com a
tresvaloração moral e, principalmente, a inversão promovida pela moral cristã
europeia teria desembocado no gosto democrático alimentado pela ideia de
igualdade das almas. Para a realização da ―caça‖ em terras tão vastas e
inexploradas, seria necessário um sem número de caçadores, todos munidos de
cães bem treinados, para adentrar no âmago da história, quer dizer, no momento em
que valores, conceitos, ideias surgiram, emergiram, para capturar sua presa: o fio
condutor que liga a moral cristã europeia ao discurso da igualdade e da instauração
da democracia burguesa. Daí Nietzsche afirmar:
Moral é hoje, na Europa, Moral de animal de rebanho: logo, tal como
entendemos as coisas, apenas uma espécie de Moral humana, ao lado da qual, antes da qual, depois da qual muitas outras morais, sobretudo mais elevadas, são ou deveriam ser possíveis. Contra tal
―possibilidade, contra tal ―deveriam‖ essa moral se defende com todas as forças, porém: ela diz, obstinada e inexorável: ―Eu sou a moral mesma, e nada além é Moral!‖ – e, com a ajuda de uma religião, que satisfez e adulou os mais sublimes desejos do animal de rebanho, chegou-se ao ponto de encontrarmos até mesmo nas instituições políticas e sociais uma expressão cada vez mais visível dessa moral: o movimento democrático constitui a herança do
movimento cristão (NIETZSCHE, 2005, p. 89-90).
Porém, afirma Nietzsche, é árdua a tarefa para encontrar ou é ínfimo o
tempo de que se dispõe para esperar tais caçadores. A busca e a espera muitas
76
Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 47.
66
vezes são inglórias. Para realizar a caça grande, são necessárias muita perspicácia,
ousadia e finura. É por esse motivo que a caça grande pode representar um ―grande
perigo‖. Quando os caçadores são os eruditos modernos, com sua pressa e fixidez
do olhar, o grande perigo surge como possibilidade de incompreensão, pois o
erudito, em muitas situações, perde a capacidade de interpretar e de avaliar. E é
muito conflituoso para o erudito relacionar e julgar a ligação entre a moral cristã
europeia e o aparecimento do gosto democrático. O erudito é defensor das ideias
modernas e, desse modo, da democracia burguesa. Mas a curiosidade e a suspeita
ante a amplitude das experiências humanas permite a Nietzsche empreender sua
caça grande, sua análise e crítica das implicações da democracia no mundo
moderno.
A formação e a orientação alimentada pela moral cristã europeia cultiva um
modo submisso, conformista, reacionário e retrógrado de olhar a realidade. O livre-
pensador, o homem das ideias modernas, aquele que possui formação na esteira da
moral cristã europeia, possui uma fé de vassalo77. O cristianismo forja um espírito
que aniquila e sacrifica a liberdade humana, ou melhor, incentiva a renúncia,
impossibilita a confiança do espírito em si mesmo. A formação e a orientação para a
edificação da fé de vassalo nutrem uma consciência debilitada78. Sua eficácia é
garantida quando a submissão se torna algo em que o pressuposto é a dor. Admite-
se que as manifestações da vida no passado devem ser esquecidas porque
causaram dor e sofrimento. Assim, o passado e os hábitos de outrora são
vislumbrados como absurdos e, ainda assim, são colocados em contraposição à fé
de vassalos e sua representação.
O homem das ideias modernas, sem a devida percepção ante a criação de
conceitos do cristianismo, não percebe a movimentação iniciada no sentido de
tresvalorar hábitos e cultura do gosto clássico. O exemplo mais evidente, de acordo
com Nietzsche, é a apresentação teórica da fórmula: Deus na cruz. A tresvaloração
e a inversão dos valores ocorre quando, ousadamente, os teóricos da fé de vassalos
criam uma cisão paradoxal a partir desse acontecimento. Deus estava na cruz
simbolizando a transformação dos valores que é exigida constantemente e, ao
77
Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 48. 78
Ibidem.
67
mesmo tempo, forjando uma nova visão para compreender a realidade que fora
apresentada como promessa e inversão dos valores clássicos.
Essa tresvaloração foi possível devido à flexibilidade em alguns momentos
históricos acerca da seriedade da fé. Os romanos, por exemplo, com suas nobreza e
sutileza, começaram a admitir a liberdade de fé. Esse acontecimento gerou um
problema e uma confusão no modo de valorar dos escravos. Daí estes se tornarem
responsáveis por essa inversão devido à inconsistência dos nobres romanos em
―aceitar o catolicismo‖ romano da fé.
A ilustração irrita: o escravo quer o incondicional, ele só compreende o que é tirânico, também natural; ele ama como odeia, sem nuance e até o fundo, até a dor, até a doença – seu enorme sofrimento oculto se revolta contra o gosto nobre, que parece negar o sofrer. O ceticismo em relação ao sentimento, no fundo somente uma pose da Moral aristocrática, concorreu em não pequena medida para a última grande rebelião dos escravos, que teve início com a Revolução Francesa (NIETZSCHE, 2005, p. 48).
É sob a proposta de esclarecer, ilustrar para alcançar o progresso da
humanidade, que a fé de vassalos se alastra pelos campos das ideias modernas. O
homem esclarecido, ilustrado, assume sua condição de inércia diante do mundo,
pois seu ímpeto de progresso em relação à humanidade é sufocado pelo controle
exercido sobre os resultados alcançados. O progresso é da ordem que se visa
manter para a criação de necessidades para o animal doméstico.
Antes da moral cristã europeia, não havia a ideia de progresso humano. A
persistência da humanidade se dirigia à superação de si. A superação da cultura não
necessariamente significa criar artefatos engenhosos ou preencher seus hábitos
com fugacidades. A pretensão de superar a cultura é algo que, constantemente,
perpassa a superação de si. Superação esta que advém a partir da superação da
sujeição. É nesse sentido que o homem poderoso é capaz de se curvar perante a
grandiosidade de sua criação de conceitos. Sua curvatura demonstra sua fortaleza,
seu vigor e sua intensidade. É daí que, sujeitando-se somente a si, supera
ininterruptamente sua condição de minguado animal doméstico79.
79
Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 52.
68
É nesse sentido que Nietzsche analisa o cristianismo como religião que
promove a decadência. O sistema de valoração que o cristianismo admite e
desenvolve se opõe à afirmação da vontade de potência (Wille zur Macht). O
conjunto de valores criados e disseminados pelo cristianismo celebra a fraqueza da
vontade em detrimento de seu desenvolvimento afirmativo. O cristianismo surge com
o intento de preterir os instintos humanos ao modelo de sujeição e negação da
vontade. O cristianismo, neste ponto, é antípoda da afirmação da natureza, do
mundo, dos instintos, da expansão e da circulação da vida.
Ao invés de cultivar a força e a potência que os instintos exprimem para
propiciar a criação de novos valores e modelos, o cristianismo soterra a afirmação
do instinto e asfixia o próprio desenvolvimento da espécie. Ao inverter os valores, a
cultura e a religião cristãs cultivam o ser humano apático e esperançoso dos
desígnios da qualitas occulta das coisas.
O passo em direção ao cerceamento dos instintos humanos, principalmente
da limitação do instinto de perpetuação da vida, é um caminho quase irreversível
para a negação das potencialidades humanas. Isso porque o cristianismo suga, faz
murchar, através de suas pressões e ameaças, o vigor que a vida exige de si
mesma. Ao tornar ―mal‖ tudo que é instintivo, natural, e ―bem‖ o que é contra o
instinto, o cristianismo atenta contra o próprio desenvolvimento da vida.
Há uma grande escala na crueldade religiosa, com muitos níveis; mas três deles são mais importantes. Houve tempo em que se sacrificava ao deus seres humanos, talvez justamente aqueles que mais se amava – nesse caso estão os sacrifícios de primogênitos, em todas as religiões pré-históricas, e também o sacrifício do imperador Tibério na gruta de Mitra, na ilha de Capri, o mais horrível dos anacronismos romanos. Depois na época moral da humanidade, sacrificava-se ao deus os instintos mais fortes que se possuía, a própria ―natureza‖; é esta alegria festiva que reluz no olhar cruel do asceta, do entusiasta ―antinatural‖. Por fim: o que restava ainda sacrificar? Não era preciso, finalmente, sacrificar tudo o que há de consolador, sagrado, salvador, toda esperança, toda fé numa harmonia oculta, em bem-aventuranças e justiças futuras? Não era preciso sacrificar o próprio deus, e, por crueldade a si mesmo, adorar a pedra, a imbecilidade, a gravidade, o destino, o nada? Sacrificar Deus ao nada – esse paradoxal mistério da crueldade derradeira ficou reservado para a geração que surge agora: todos nós já sabemos alguma coisa disso (NIETZSCHE, 2005, p. 53-54).
69
Ao inverter a valoração, são cultivados os valores que debilitam e
enfraquecem a ação humana. O abrandamento do espírito torna o humano
acanhado ante sua força de superação de si e, mais preocupante, é o modo como
difama tudo que é natural e instintivo na ação humana. Daqui em diante, tudo que é
natural, que é vida, que é mundo e, portanto, o que é viver passa a ser algo
secundário. O desassossego gerado por esse modo de valorar sugere ao humano
opor corpo e espírito. Preocupado em recompensar o espírito para alcançar o
merecido descanso no firmamento, o cristianismo condena ao banimento a
preocupação com a vida terrena, material. Daí, o cristão ser tomado de aversão
contra o corpo, a natureza, os instintos, o mundo, devido ao medo de vagar num
precipício eterno e subterrâneo.
Desse modo, a denúncia de Nietzsche em relação à religião cristã como
religião da decadência é uma denúncia de toda oposição à vida. O jejum, a solidão,
a abstinência sexual são práticas que minam a vida a partir do momento em que há
a negação do mundo. Somente alguém que visitou um além-vida seria capaz de
estabelecer uma valoração de ―bem‖ ou ―mal‖ para a vida, uma vez que seria
possível uma comparação entre uma e outra vida. Se particularmente admito essa
vida como ―mal‖, estou generalizando uma experiência individual que não se aplica a
todos os casos. E se há essa avaliação negativa da vida, ela é oriunda de uma
consciência debilitada.
O que Nietzsche constata nessa oposição cerrada à vida é uma
supervaloração desta em um além-mundo orquestrado pela fé metafísica na
oposição de valores (mundo verdadeiro versus mundo da aparência). O mundo
metafísico é concebido a partir de um antagonismo ao mundo real e tudo que é
condenável, inadequado e vil neste mundo desaparece no mundo além. Essa
supervaloração do além em detrimento da realidade da vida indica uma
desvalorização desta e retira do centro do mundo a criação humana e sua ação
singular. Esse sentimento acomete o ser humano e retira-lhe o ímpeto de justificar a
vida e de dar-lhe sentido.
70
3.1 IDEAL ASCÉTICO E DECADÊNCIA
A ação humana, depois de soterrada pela decadência, é transformada em
ação ascética. Nietzsche inicia a terceira dissertação da Genealogia da Moral
inquirindo sobre o significado dos ideais ascéticos. A vida a ser cultivada por esse
modelo de ação é a vida que se apresenta como negação da existência. O próprio
corpo é um fardo a ser esquecido e recusado. O mais importante a ser considerado
pelo ideal ascético é a eliminação da vontade, é a supressão da potência. Há uma
necessidade de abdicar dos instintos e impulsos de manutenção e expansão da
espécie. Essa atuação encontra ressonância no modo de vida de líderes religiosos,
santos, místicos esotéricos. Sua existência é garantida principalmente quando há a
presença de promessas de abstinência sexual, sujeição dócil e pobreza. A esse
respeito, Nietzsche comenta:
O asceta trata a vida como um caminho errado, que se deve enfim desandar até o ponto onde começa; ou como um erro que se refuta – que se deve refutar com a ação: pois ele exige que se vá com ele, e impõe, onde pode, a sua valoração da existência (NIETZSCHE, 1998, p. 106).
A existência desse ideal é alimentada por um tipo peculiar de asceta: o
sacerdote. O sacerdote-asceta constrói em torno de si uma esfera de poder e
legitima sua ação através do cultivo de valores que retiram a vivacidade da
existência, enfraquece os instintos e suprime a atividade. Por que o sacerdote
realiza esse procedimento com legitimidade inquestionável? O sacerdote é aquele
que assume a posição de elo único entre os ―simples mortais‖ e a divindade.
Qualquer que seja a dádiva que se procura perante a divindade, é o sacerdote, ser
apurado e seleto, que é responsável por intermediar e agenciar o homem do
rebanho80 perante a divindade. Sua atuação se dá no campo da intervenção, da
súplica e dos requerimentos à divindade.
No entanto, à medida que a superstição é considerada cada vez mais
contraditória, ambígua, e alcança sua crise interna, o sacerdote cria um novo
estratagema, busca novo modo de continuar atuando. De interventor mais apurado,
assume a posição de orientador dos indivíduos, conciliador dos conflitos mais
80
Esse conceito será mais bem desenvolvido mais adiante, em uma seção específica.
71
íntimos. Anteriormente, a diferença entre o sacerdote e os demais indivíduos se
dava devido à sua capacidade de impor uma interpretação dos fenômenos e,
porventura, dominá-los. A diferença marcante nesse estágio é sua atuação como
uma espécie de psicólogo hipnotizador, aquele que é capaz de remediar os medos,
angústias, inseguranças e fobias mais peculiares da ―alma‖ humana através do
receituário de doses homeopáticas de esperança em um mundo intransitório e
perfeito.
Mais uma vez, o sacerdote se sobrepõe aos homens do rebanho. Estes são
treinados a se saciar a partir de suas necessidades fisiológicas e utilitárias. O
sacerdote supera o fisiologismo, porque sabe do seu funcionamento e quer mais,
quer expandir suas forças. Por isso, o que garante ao sacerdote o seu valor na
história não é aquilo que ele é, mas aquilo que ele representa aos olhos dos não
sacerdotes. A separação e a diferença que o animal de rebanho percebe no modo
de existência do sacerdote é que o torna legítimo domador e inibidor das
singularidades humanas. Desse modo, ele alcança uma força acima de tudo capaz
de dominar os povos e épocas inteiras.
O modo de vida ascético convence os povos a inverter sua valoração. Ao
invés de continuarem afirmando a vida, os povos e épocas inteiras abdicam de sua
vitalidade. Fazem isso de modo que sua perspectiva apareça como afirmadora. As
forças do sacerdote são uma referência não da superação de si que exige a vida,
mas do desinteresse pelos aspectos vitais.
Dessa forma, o sacerdote-asceta adota a postura de arauto da decadência
humana. Sua atuação de negador dos valores vitais e sua incapacidade de
desenvolver o humano assumem o modelo virtuoso a ser seguido. Assim, o
sacerdote incutiu na experiência humana a renúncia à vida e às suas necessidades
de expansão, como modo de vangloriar-se sobre estas. Com o objetivo exclusivo de
dominar e manter sua autoridade sobre os homens do rebanho, o sacerdote
estabelece as ideias de culpa e má consciência.
A ideia de livre arbítrio disseminada pelo sacerdote teve uma contribuição
especial na história da decadência inflada pelo cristianismo. A consciência livre
contribuiu para unicamente um aspecto: tornar o humano responsável por suas
72
ações e, dessa forma, aniquilar a expansão de suas forças e torná-lo culpado e
ressentido diante do mundo. Ao utilizar ideias pretensamente virtuosas, como as
ideias de liberdade e consciência, o cristianismo decadente, através do sacerdote-
asceta, apenas inicia um trabalho hipnótico de transformação da liberdade em
pecado e da consciência em sentimento de culpa. Nietzsche complementa:
Desatar a alma humana de todas as suas amarras, submergi-la em terrores, calafrios, ardores e êxtases, de tal modo que ela se liberte como que por encanto de todas as pequeninas misérias do desgosto, da apatia, do desalento: que caminhos levam a esse fim? E quais os mais seguros entre eles?...No fundo, todo grande afeto tem capacidade para isso, desde que se descarregue subitamente: cólera, pavor, volúpia, vingança, esperança, triunfo, desespero, crueldade; e de fato, o sacerdote ascético não hesitou em tomar a seu serviço toda a matilha de cães selvagens que existe no homem, soltando ora um, ora outro, sempre com o mesmo objetivo, despertar o homem da sua longa tristeza, pôr em fuga ao menos por instantes a sua surda dor, sua vacilante miséria, e sempre sob a coberta de uma interpretação e ―justificação‖ religiosa. Todo excesso de sentimento dessa natureza tem o seu preço, está claro – ele torna o doente mais doente – e por isso esse tipo de remédio contra a dor é, segundo a medida moderna, ―culpado‖ (NIETZSCHE, 1998, p. 128-129).
Nesse sentido, o sacerdote-asceta cria e desenvolve a má consciência como
modo de subordinação total dos indivíduos. Ao inverter o itinerário de valoração,
dissimula em causa santa os motivos mais danosos ao crescimento afirmativo da
vida. Remorsos, frustrações, medo, consciência culpada são apenas alguns dos
valores difundidos pelo sacerdote. A má consciência e a culpa são apenas algumas
das estratégias criadas pelo sacerdote para castigar e punir aquilo que ele mesmo
criou e cultivou na experiência humana.
O homem é controlado por seu ―mago‖, o sacerdote-asceta, ele indica a
causa da sua dor e de seu sofrimento. O sacerdote constrói psicologicamente a
sentença de que a causa deve ser buscada em si mesmo, na sua consciência, no
seu passado culpado. Sua dor e seu sofrer só podem ser amenizados a partir do
reconhecimento de que constituem uma punição. O sacerdote ouve e diz
compreender o sofredor. Este sucumbe tal qual uma galinha quando se traça uma
linha em torno do seu corpo. Envolvido em um círculo, sua dor e seu sofrer são
transformados em pecado. Assim Nietzsche se expressa:
73
E agora estamos condenados à visão desse novo doente, ―o pecador‖, durante alguns milênios – jamais nos livraremos dele? –; para onde quer que nos voltemos, em toda parte o olhar hipnótico do pecador, movendo-se sempre na mesma direção (na direção da ―culpa‖, como a única causa do sofrer); em toda parte a má consciência, esta ―besta abominável‖, no dizer de Lutero; em toda parte o passado ruminado, o fato distorcido, o ―olhar bilioso‖ para toda ação; em toda parte, a incompreensão voluntária do sofrer tornada teor da vida, a reinterpretação do sofrer como sentimento de culpa, medo e castigo; em toda parte o flagelo, o cilício, o corpo macilento, a contrição; em toda parte o auto-suplício do pecador na roda de uma consciência inquieta, morbidamente lasciva; em toda parte o tormento do mundo, o pavor extremo, a agonia do coração martirizado, as convulsões de uma felicidade desconhecida, o grito que pede ―redenção‖ (NIETZSCHE, 1998, p. 130).
Logo, o sacerdote-asceta alimenta esse imaginário que possui a pretensão
de tornar a vida algo sórdido e impuro. Seu julgamento da existência condena-a a
finalidades ruins assim como os meios de que dispõe também são ruins, desleais,
indelicados. O fim, por exemplo, é a orquestração de um rebanho de decadentes,
cuja liderança cabe ao sacerdote. Os meios mais explorados são o desenvolvimento
da má consciência e da culpa e a espera obediente de uma redenção ou de um
redentor. O sacerdote-asceta, com sua atuação negadora do desenvolvimento das
potencialidades humanas, seduz os espíritos embriagados pelo medo e castiga-os a
formar um rebanho amorfo com o objetivo de suprir suas carências.
Resta-nos examinar, nesse contexto do ascetismo, o que se coloca como
antítese desse modo de valorar. Nesse aspecto, o sacerdote-asceta é denunciado,
em seu caráter de negador da vida, por um tipo de homem que valoriza a terra e
―diviniza‖ a vida. Ao invés de difamar os aspectos mais esplendorosos da vida e sua
aparência, ao venerar a ilusão e não recusar e eliminar a mentira, tal tipo de homem
radicalmente se opõe ao ideal ascético. E este, como veremos adiante, é o homem
artista, o criador de seus próprios valores, o ordenador de sua vida.
Porém, não podemos afirmar que o antípoda do ideal ascético seja o ideal
científico. Tampouco que o ideal ascético se manifeste somente através da religião.
74
Da forma em que o mundo moderno está organizado, é exatamente com o
cientificismo que o ideal ascético é acentuado81.
A característica marcante das ideias modernas é o ideal de cientificismo que
procura a verdade a todo custo. Essa vontade de verdade que domina a ciência
moderna constitui a peculiaridade mais exaltada pelo ideal ascético na modernidade.
A valoração mais evidenciada por esse tipo de idealismo consiste em submeter os
valores humanos a um tribunal que criva as ações como verdadeiras ou não. Ao
realizar esse procedimento, descarta o falso numa dialética fria e objetiva,
acreditando alcançar valor absoluto para a atuação humana. Nietzsche contraria
esse ideal à medida que as avaliações e valorações podem ser analisadas e
discutidas não pela objetividade da ciência e sim pelo método genealógico, como foi
mostrado anteriormente.
A descrença do homem das ideias modernas, quer dizer, do homem do
cientificismo alimenta em Nietzsche profunda desconfiança. Essa descrença, em
relação à fé de vassalo dos sacerdotes ascetas, fornece uma suspeita e um
diagnóstico: a fé na verdade aparece não como um esclarecimento, mas como mais
um sintoma de fraqueza e decadência humana.
É por isso que a descrença e o ateísmo dos modernos não se apresentam,
levando em consideração a genealogia, como antagonistas do sacerdote asceta. O
modo de valorar da ciência moderna pretende demonstrar que a fé não revela a
verdade. Mas, ao tentar fazê-lo, ainda concebe a crença metafísica na verdade82.
Dessa forma, esse suposto ateísmo da ciência moderna não representa, para
Nietzsche, uma ruptura com o ideal ascético, mas significa seu mais próximo e
autêntico descendente. Nietzsche assim se pronuncia:
eu aqui lhes revelo o que eles próprios não conseguem ver – pois estão demasiados próximos a si mesmos –: esse ideal é também o seu ideal, eles mesmos o representam hoje, ninguém mais talvez, eles mesmos são o rebento mais espiritualizado desse ideal, sua mais avançada falange de guerreiros e batedores, sua mais insidiosa, delicada e inapreensível forma de sedução – se jamais fui um decifrador de enigmas, quero sê-lo com esta afirmação!...Esses estão longe de serem espíritos livres: eles creem ainda na verdade...
(NIETZSCHE, 1998, p. 138).
81
Cf. GIACÓIA Jr. 2001, p. 66. 82
Cf. NIETZSCHE, 1998, p. 138.
75
O homem das ideias modernas, com seu pretenso rigor científico advindo da
fé metafísica na oposição entre mundo verdadeiro e mundo falso, busca a verdade
essencial das coisas a partir da negação de um Deus. Porém, em nome do
verdadeiro e da verdade em si, declara sua fé em uma verdade divinizada e
incondicional.
Mais do que crente na verdade, o cientista ascético mira seu intento na ideia
de que há um progresso na história da verdade. Com esse intento e um sentimento
de decoro intelectual em face de uma consciência científica, a moderna ciência e
seus pressupostos atentam tão somente para mais uma faceta do ideal ascético.
Este, com sua crença na verdade a todo custo e seu radical ateísmo, constitui uma
fé metafísica que mina a vida ao buscar um valor em si83. Não há aqui apenas um
aspecto remanescente do ideal ascético, o que predomina é seu caráter de
aperfeiçoamento. Nietzsche analisa esse aspecto na seção 344 do livro quinto de A
gaia ciência:
O homem veraz, naquele ousado e derradeiro sentido que a fé na ciência pressupõe, afirma um outro mundo que não o da vida, da natureza e da história; e na medida em que afirma esse ―outro mundo‖, como? Ele não deve assim negar o seu oposto, este mundo, nosso mundo?...É ainda uma fé metafísica, aquela sobre a qual repousa a nossa fé na ciência – e nós, homens do conhecimento de hoje, nós, ateus e antimetafísicos, também nós tiramos ainda nossa flama daquele fogo que uma fé milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina... Mas como, se precisamente isto se torna cada vez mais incrível, se nada mais se revela divino, exceto o erro, a cegueira, a mentira – se Deus mesmo se revela como nossa mais longa mentira? (NIETZSCHE, 1998, 139-140).
Portanto, ciência e ideal ascético se encontram compartilhando os mesmos
ideal e espaço. Ambos dedicam valor exagerado e incriticabilidade à verdade e,
desse modo, ao invés de uma antítese entre ciência e ideal ascético, temos uma
relação de alinhamento e aliança de seus modos de valorar a existência. O combate,
o questionamento, nesse sentido, não pode ser diferente: tanto ciência quanto ideal
ascético precisam ser combatidos e questionados em conjunto. A avaliação do ideal
ascético conduz fatalmente a uma avaliação da ciência, pois ambos possuem como
pressuposto certo empobrecimento da vida.
83
Cf. GIACÓIA Jr. 2001, p. 67.
76
Um aspecto em que não iremos nos deter com profundidade neste trabalho
é a proposta de Nietzsche para superar o ideal ascético. Se a ciência não é o
antípoda desse ideal, na análise que Nietzsche faz das conquistas em vários
campos do cientificismo, é importante destacar que quem assume essa empreitada
é a arte. A arte, por não negar nem excluir a mentira, quando afirma também a
vontade de ilusão, seria inevitavelmente o antípoda legítimo do ideal ascético. A
arte, para Nietzsche, não alimenta uma superação do mundo falso como modo de
conseguir suprir a existência. Não está na estirpe da arte a busca de um mundo
além. Sua preocupação é dar sentido e leveza ao mundo e à existência sem
distinguir uma existência verdadeira de uma falsa, bem como sem opor uma à outra.
Nesse sentido, Nietzsche afirma:
A arte, para antecipá-lo, pois ainda tornarei mais demoradamente ao assunto – a arte, na qual precisamente a mentira se santifica, a vontade de ilusão tem a boa consciência a seu favor, opõe-se bem
mais radicalmente do que a ciência ao ideal ascético: assim percebeu o instinto de Platão, esse grande inimigo da arte, o maior que a Europa jamais produziu. Platão contra Homero: eis o verdadeiro, o inteiro antagonismo – ali, o mais voluntarioso ―partidário do além‖, o grande caluniador da vida; aqui, o involuntário divinizador da vida, a natureza áurea (NIETZSCHE, 1998, p. 141).
Mas como a ciência empobrece a vida? De acordo com Nietzsche, o que faz
a ciência tornar a vida árida e anêmica é a substituição do instinto pela dialética, é
arrancar da imaginação, da intuição, das emoções sua importância. O cientista
asceta exaure a vida a partir da frieza e da velocidade em que se encontra imersa a
modernidade. Suas retidão e seriedade nas ações condicionam a vida a funcionar
com mais dificuldade, pois não se enxergam outras possibilidades com a rigidez de
um único olhar. A seriedade não significa certeza. A seriedade do gesto, um dado a
mais na argumentação, quer afirmar e forjar a certeza das coisas.
A partir dessa constatação, tanto o ascetismo do sacerdote quanto o do
cientista expressam sintoma da vida que declina84. O sacerdote se sobressai como
avaliador de uma vida contaminada, torpe, que precisa ser depurada. O único capaz
de realizar tal proeza é o instrutor do cristianismo com sua visão no ininteligível. Por
outro lado, a ciência moderna cria suas valorações tendo em vista uma existência
fatigada. Seu ideal ascético é caracterizado por adornos que o conhecimento
84
Cf. GIACÓIA Jr., 2001, p. 53-69.
77
reveste para si e pelo olhar estritamente objetivante. Tanto uma quanto outra
perspectiva colocam o indivíduo em uma via de mão única, como se o
aperfeiçoamento, até o momento, fosse o único possível, como se fosse possível
somente a homogeneidade do indivíduo. Dessa forma, tanto um quanto o outro são
apenas sintomas de uma humanidade de indivíduos doentes, incapazes da
superação de si, os animais de rebanho.
3.2 HOMEM MODERNO: O ANIMAL DE REBANHO
Quando as forças são enfraquecidas pela culpa, pela má consciência, e
espera um redentor, e o sacerdote-asceta emerge como guia a decidir os desígnios
da comunidade, surge o ―animal de rebanho‖. Essa tipologia é criada por Nietzsche
com o intento de mostrar que o homem moderno ou o homem das ideias modernas
é tomado pela fraqueza e pela decadência no seu modo de valorar a vida, dar-lhe
sentido. O animal de rebanho é aquele incapaz de caminhar com os próprios pés. A
reunião em rebanho é uma fuga da debilidade em que o homem moderno está
imerso. A teia que se criou com os ideais cristãos alimenta uma vontade cansada, o
forjamento de um homem atomizado, cuja singularidade é desprezada. O humano é
despersonalizado. Seu poder de ação e sua espontaneidade são substituídos pelo
grande anseio das massas e pela satisfação imediata e fugaz de suas
necessidades.
Para Nietzsche, o tipo animal de rebanho surge quando o cristianismo
escamoteia as necessidades e os anseios pessoais, bem como dissolve e ignora o
instinto de superação. É a partir da instalação do rebanho humano que se pode
distinguir entre os homens fracos e os homens fortes85. Sobre esse aspecto,
Nietzsche escreve:
Todos os doentes, todos os doentios, buscam instintivamente organizar-se em rebanho, na ânsia de livrar-se do surdo desprazer e do sentimento de fraqueza: o sacerdote ascético intui esse instinto e o promove; onde há rebanho, é o instinto de fraqueza que o quis, e a sabedoria do sacerdote que o organizou. Pois atente-se para isso: os fortes buscam necessariamente dissociar-se, tanto quanto os fracos buscam associar-se (NIETZSCHE, 1998, p. 149).
85
Na última seção desta pesquisa, analisaremos mais detidamente a caracterização dessa tipologia.
78
A distinção entre fortes e fracos se refere ao modo como cada indivíduo vê
suas potencialidades. A descoberta de modos particulares de atuar permite ao forte
aceitar sua diferenciação e, ao invés de suprimir sua singularidade, procura
fortalecê-la. Por outro lado, o fraco encara qualquer força como uma doença que
deve ser curada através do mergulho cego no rebanho. Há, desse modo, a anulação
do instinto de superação. Portanto, é frequente a admissão ao rebanho devido a
uma vontade de esquecimento de si, ao abandono de suas particularidades e à
busca de reconhecimento do grupo.
O cristianismo, nesse sentido, é o responsável por desagregar o indivíduo
com o intuito de esculpir uma corporação maior que chama rebanho. O rebanho é
formado pelos indivíduos fracos que abdicaram de seus sentimentos e interesses
pessoais para viver com vistas aos mesmos ideais, quais sejam: negação do corpo,
fraqueza dos instintos, separação entre espírito e corpo. Os anseios, os objetivos, o
alcance, as necessidades são os mesmos sem diferenciação. A igualdade que nega
a singularidade é celebrada como a maior virtude. Desse modo, o que ocorre é o
alheamento do homem a um aspecto: o de que todos são pretensamente tomados
por iguais, embora uns sejam mais iguais que outros.
Quando esse sentimento de fraqueza se sobressai, o homem passa a se
reconhecer apenas como uma parte do todo, um átomo a constituir o rebanho. Seu
agir é reconhecido somente como pertencente ao rebanho e seu afastamento é
encarado como doença. Ao abrir mão de sua singularidade, só consegue ver-se
como um instrumento coletivo para melhorar o rebanho e obedecer cada vez mais a
este. Sua satisfação e sua disposição adquirem status de utilidade para os
propósitos do rebanho.
Ao espraiar a decadência e conter a vontade de se expandir, o cristianismo
proporciona o surgimento de uma sociedade dominada pela apatia e,
consequentemente, impulsiona-a a um desejo constante de nada. A esse respeito,
Nietzsche assevera:
Não se pode em absoluto esconder o que expressa realmente todo esse querer que do ideal ascético recebe sua orientação: esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais ainda ao que é
79
matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio – tudo isto significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma
revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida (NIETZSCHE, 1998, p. 149).
Esse ódio ao que é humano, a negação dos instintos potentes, é
transformado, pouco a pouco, em nivelamento do homem. Aquilo que, em dado
momento histórico, era cultivado como honroso e forte, agora é transformado em
algo imoral. O que se pretende supostamente é a ornamentação de um espírito
fraco, doente, que deseja a tolerância, é modesto, submisso e igualitário. O que se
fomenta, na criação e na ação humanas, é o surgimento de um indivíduo acanhado,
medíocre, pusilânime. Dessa forma, será considerado ―mal‖ aquilo que distingue os
homens dos outros e causa temor ao próximo86.
A partir daí, constrói-se o edifício que sustenta nosso ideal de vida em
comunidade. A vontade de nada, principalmente a vontade de nada a temer na
convivência, é algo a se apreciar e aguardar como o fim perseguido pelo homem. É
nesse sentido que a ideia de progresso87 entra em cena. O progresso para a
edificação dessa comunidade é o alcance da não temeridade, é a espera de que não
haja nada mais a temer.
O que significa a vontade de nada mais temer na convivência? Significa que
a consciência debilitada alimenta para si o ideal de felicidade, que é a cômoda
situação de eterno bem-estar. O bem-estar que retira qualquer perigo, seja o do
aperfeiçoamento da espécie, seja o desejo de se expandir. O que se presume, para
que não haja mais nada a temer, é o ideal de uma vida comunitária em que se
exclua e neutralize o conflito. O que se espera, com a vontade de nada temer, é a
ausência do pólemos (polêmica), do dissenso tão necessário para o
desenvolvimento e a formação de uma sociedade forte, cujo sintoma mais visível é o
filósofo do futuro, espírito livre, legislador de seus próprios valores. A imagem que se
perfila dessa comunidade é que os homens atomizados que a compõem não são
passíveis de movimento, não se encontram em constante efervescência. Ao evitar a
86
Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 87. 87
Idem, p.89.
80
polêmica, equalizam-se os desiguais e ameniza-se a vontade de superação
presente em cada humano.
Se a paz for selada na comunidade de homens atomizados, a vontade de
nada temer na convivência se transformará numa vontade paralisada. A busca de
uma ―felicidade‖ no repouso será apenas o desejo de conservação de si e não uma
constante tentativa de expansão da potência, do poder realizar-se plenamente como
indivíduo capaz de superação constante em um devir eterno. Caso a convivência
não seja estabelecida pelo conflito e se as contradições não mais existirem, seremos
realmente um belo rebanho, uma vez que a moral do rebanho exige, como máxima
felicidade, a segurança da propriedade, a ausência de perigos, o bem-estar, a
facilidade em tudo, o levar vantagem na vida. E se tudo for preciso, seguro e
infalível, com essa moral, caminharemos para um gran finale: talvez, o fim do devir88.
Porém, o que representa mesmo a ―vontade de nada temer na
convivência‖89 é a escrita de um futuro na qual o grande rebanho humano é
caracterizado pela domesticação de sua ação e pelo nivelamento de seus desejos e
anseios. Por princípio, o que se espera e se imagina para uma convivência futura é
que inexistirá o conflito e que os homens dessa comunidade sejam munidos de uma
vontade paralisada, depois de aniquilarem suas singularidades e estenderem o
igualitarismo.
Quando Nietzsche utiliza a expressão ―animal de rebanho‖, seu objetivo é
analisar o ideal de igualitarismo, a extirpação das especificidades e a anexação dos
homens em um coletivismo amorfo. Em Aurora, § 132, Nietzsche afirma que o
enfraquecimento e a supressão do homem estão entre as últimas ressonâncias do
cristianismo na moral90. O cristianismo suprime a atuação humana a partir do
momento em que a transforma em instrumento de um telos no qual cada um, mesmo
ao seu modo, realiza a finalidade do ―todo‖. Do mesmo modo, o enfraquecimento. O
cristianismo supõe que o homem caminha, atento, em direção ao benefício geral da
88
Cf. MOURA, 2005, p. 96, acrescenta, sobre este aspecto, que todas as doutrinas da paz perpétua, todas as teorias da ―morte do estado‖ tacitamente supõem uma antropologia para que seu enredo chegue ao happy end desejado: quando se fala em morte do estado, é porque se imagina uma convivência futura que, por princípio, não será mais conflituosa; e se o conflito pode diluir-se no horizonte, é porque se supõe que os cidadãos da nova polis serão todos sujeitos da felicidade espinosana, indivíduos com a vontade paralisada. 89
NIETZSCHE, 2005, p. 89. 90
Cf. NIETZSCHE, 2004, p.100.
81
espécie. Isso enfraquece o indivíduo devido à negação de sua própria superação,
devido à incompreensão de que ele mesmo é o todo91.
Ao nos depararmos com as experiências humanas na sociedade, podemos
perceber que os interesses individuais se sobressaem, mesmo na organização em
rebanho. Uma finalidade concedida ao todo é apenas um efeito da razão, pois o que
predomina é a conquista, o domínio, mas o que se apresenta é apenas a aparente
finalidade conjunta. Ao realizar uma análise sobre o altruísmo, Nietzsche percebe
que, em tempo algum, ele é praticado em vista da totalidade, mas, ao contrário, sua
efetividade é garantida na história, pelo interesse individual e pela utilidade que o
pressupõe. Em A gaia ciência, Nietzsche considera:
Eis indicada a contradição fundamental dessa moral que precisamente agora é tida em alta conta: os motivos para essa moral se opõem ao seu princípio! Aquilo com que essa moral quer se
demonstrar é por ela refutado com o seu critério do que é Moral! Para não ir de encontro a sua própria moral, a tese de que ―você deve abdicar de si mesmo e sacrificar-se‖ deveria ser decretada apenas por quem dessa maneira abdicasse de sua própria vantagem, e que talvez acarretasse a própria ruína, no sacrifício imposto aos indivíduos. Mas assim que o próximo (ou a sociedade) recomenda o altruísmo em nome da utilidade, tem aplicação a tese
oposta, de que ―você deve buscar a vantagem também à custa dos outros‖, e portanto se prega, simultaneamente, um ―você deve‖ e um ―você não deve‖! (NIETZSCHE, 2001, p. 71-72).
O homem é suprimido quando acredita na hipocrisia da moral. Ao conceber
sua atuação no mundo como a soma para formar o todo, não percebe, por um efeito
da razão, que o ―todo‖ alcançado é o ―todo‖ do líder ascético, ―todo‖ do sacerdote, da
classe, do cientista.
Ao realizar essa análise, percebemos que Nietzsche não pretende louvar o
―individualismo‖. De acordo com Moura (2005), quando Nietzsche afirma que seu
propósito é ―distanciar-se de sua própria época‖, sua intenção é se afastar ao
máximo da moral individual e da coletividade. Quando configura sua análise sobre
as ―ideias modernas‖, com a análise da continuidade do movimento cristão no
movimento democrático e socialista, seu intento é mostrar, de modo surpreendente,
91
Ibid. p.101.
82
que individualismo e coletivismo, aparentemente antagônicos, são, no fundo,
extremos de um mesmo contínuo92.
A crítica que Nietzsche realiza da supressão do homem e de sua atomização
em um rebanho amorfo não representa uma apologia ao individualismo, pois o que
ele combate na supressão do homem é a anulação de suas potencialidades e
singularidades. O Individualismo, enquanto movimento político do século XIX,
apregoa o distanciamento do individuo da esfera política. Individualismo, nesse
sentido, também seria herança do movimento cristão, porque enfraquece e retira a
possibilidade de ação e atuação afirmativas. O Individualismo é, nesse ponto, uma
ideia vinculada ao liberalismo93, pois coloca o indivíduo na condição de um ator pré-
político e pré-social, mantenedor de uma vida privada e ausente dos espaços de
decisões. O individualista é um particular, é o indivíduo antes do cidadão, do
universal. É essa a caracterização do individualismo realizada pelas ideias liberais
do século XIX. Nietzsche opõe-se a essa visão. Para ele, cada homem é único,
como ser singular, homem capaz de ação inter pares. A vontade de potência existe
no homem particular, entretanto, ela é muito acanhada, não se manifesta
conscientemente94.
Pela mesma razão, o coletivismo também é objeto de suspeita do filósofo
alemão. O coletivismo representa a eliminação completa da singularidade da ação
do homem. Sua atuação é política e social, no entanto, é nivelada, é calcada. O
homem mergulhado no coletivo precisa se adaptar às necessidades gerais. Sua
felicidade e seu sacrifício são idênticos à medida que aspira à conservação do ―todo‖
e, portanto, há a negação das potencialidades singulares dos homens. O homem
92
Cf. MOURA, 2005, p. 173. 93
Na linguagem comum, chamamos liberal a pessoa tolerante e generosa, tanto no sentido de não controlar seus gastos, quanto no de não ser autoritária. No entanto, o que nos interessa do conceito de liberalismo é seu aspecto histórico. Nesse sentido, o liberalismo é o conjunto de ideias éticas, políticas e econômicas da burguesia, em oposição à visão de mundo da nobreza feudal. Na atualidade, o liberalismo não é simplesmente uma concepção racional, objetiva e neutra, como apregoam seus teóricos, mas expressão de uma determinada ideologia política, a ideologia política do liberalismo. Esta é liberal na medida em que procura limitar a soberania popular e a ação do Estado a procedimentos legais institucionalizados. Assim, o liberalismo é um sistema metafísico (moralismo abstrato) que faz da categoria do indivíduo seu conceito fundamental, derivando daí uma concepção individualista de liberdade e privatista de propriedade. Dessa forma, o liberalismo é uma crítica de toda e qualquer forma de política em favor tão somente da economia e de uma visão abstrata do indivíduo. Seu objetivo é regulamentar toda ação do Estado e limitá-la a um funcionamento maquinal, calculado e, consequentemente, consolidar o esvaziamento da política como espaço de decisão coletiva, de exercício da soberania popular. 94
Cf. MOURA, 2005, p. 173.
83
imergido no coletivo, dessa forma, é transformado em um órgão que desempenha
funções de adequação ao fim pré-estabelecido pelo coletivo95.
O animal de rebanho é o resultado mais evidente das ideias modernas. O
panorama traçado por esse modo de existência é o desprendimento da vida em
atividade, em expansão. O animal de rebanho se torna um ser dependente, comum,
mediano, haja vista exigir de si apenas a renúncia, o sacrifício em prol do ―todo‖.
Essa ideia de coletivismo, organizada em torno da moral cristã da negação,
impulsiona o homem à condição de animal abatido, animal anêmico. O auto-
aniquilamento empurra a ação humana para sua derrocada. O que irrompe desse
homem é o servilismo passivo, sua incapacidade de se expandir. Esse estado de
indiferença, inatividade, repouso, desprezo e insignificância diante da vida se
processam através de um desgaste progressivo e lento, ampliando cada vez mais a
decadência e a ruína.
Nesse sentido, a existência do animal de rebanho é condicionada por um
modo de valorar específico. A valoração desse homem é delimitada pela moral da
conformidade, da inércia, da baixeza, da harmonia, da igualdade. O que é louvado
ou censurado, o que se qualifica como bom é produzido pela dependência ao
rebanho. Essa moral reativa, que motiva o definhamento do animal homem,
promove o coletivismo. A felicidade que desponta dessa moral é a própria vida
diluída no rebanho. A felicidade é morna, sem ação, apenas o arrebatamento das
necessidades gerais. Há, portanto, rejeição à diversidade humana, negação da
individualidade, recusa de culturas e épocas diversas e, assim, pretende-se esgotar
a ação em face de uma felicidade inatingível.
Os homens de rebanho, homens fracassados, doentes, fracos e
conformados com o sofrimento, possuem exclusivamente uma convicção: a de que
precisam manter a vida, conservá-la. Por mais que Nietzsche aprecie a conservação
da vida, o que se torna problemático é a preocupação somente em conservar, é o
excesso de conservação. A conservação excessiva pode representar para esses
homens sua própria degradação, uma espécie de atrofia. E se pudéssemos nos
distanciar do cristianismo que domina a Europa por vários séculos, perceberíamos,
95
Ibid. p. 175.
84
diz Nietzsche, que somente uma vontade predominou, a saber: a de fazer do
homem um sublime aborto96. Assim afirma Nietzsche:
Em outras palavras: o cristianismo foi, até hoje, a mais funesta das presunções. Homens sem dureza e elevação suficiente para poder, como artistas, dar forma ao homem; homens sem longividência e
força suficiente para, com uma sublime vitória sobre si, deixar valer a lei primordial das mil formas de malogro e perecimento; homens sem nobreza suficiente para perceber o hiato e a hierarquia abissalmente diversos existentes entre homem e homem – esses homens, com sua ―igualdade perante Deus‖, governam sempre o destino da Europa, até que finalmente se obteve uma espécie diminuída, quase ridícula, um animal de rebanho, um ser de boa vontade, doentio e medíocre, o europeu de hoje... (NIETZSCHE, 2005, p. 61).
A espécie diminuída, o animal de rebanho, não brotou do nada. De acordo
com Nietzsche, chama-se ―civilização‖, ―humanização‖ ou ―progresso‖ o modo como
distinguimos o animal de rebanho. Para ele, esses três aspectos podem ser
sintetizados numa única fórmula: o movimento democrático97. Esse movimento que
não para de alcançar temporalidade se disfarça com todas as fachadas morais e
políticas e investe, a passos lentos, no processo de homogeneização, nivelamento e
mediocrização do homem, um homem animal de rebanho, útil, laborioso98.
Portanto, o conceito de animal de rebanho pode ser compreendido, no
contexto da filosofia de Nietzsche, como aplicado ao homem cooptado pela moral
cristã, prioritariamente o homem moderno, que é assinalado como modelo de uma
única conduta coletivista, obediente aos valores exteriores, sufocando suas paixões
e anulando seus instintos. Seus interesses são minados e suas pretensões são as
da coletividade. Sua atuação é delineada através de fins externos, para garantir sua
inserção e sua anuência no grupo. Portanto, em nome do bem-estar geral, imprime-
se a semelhança. Nietzsche complementa:
Digamos novamente, de imediato, o que já dissemos uma centena de vezes: pois para essas verdades – nossas verdades – os ouvidos de hoje não demonstram boa vontade. Já sabemos como soa ofensivo incluir o homem cruamente e sem metáforas, entre os animais; mas nos é imputado quase como culpa o fato de empregarmos sempre, em relação precisamente ao homem das ―ideias modernas‖, as expressões ―rebanho‖, ―instintos de rebanho‖ e
96
NIETZSCHE, 2005, p. 61. 97
Ibid. p. 134. 98
Ibid. p. 135.
85
outras semelhantes. Que importa! Não podemos agir de outra forma: pois precisamente nisso está nossa nova visão (NIETZSCHE, 2005, p. 89).
3.3 DEMOCRACIA E IGUALDADE: EXTINÇÃO DA SINGULARIDADE
A tese de Nietzsche, no que tange à sua análise sobre a moral presente na
Europa de seu tempo, permite compreender que é incutido nos homens um conceito
de bom que apela para a equalização dos desejos, vontades e hábitos e que celebra
como virtude um único instinto, o de animal de rebanho homem99. Este assume
status de único e predomina sobre os demais. O instinto de rebanho é assimilado
fisiologicamente através de uma conformidade crescente que pretende suprimir a
diferença e instalar a semelhança através da moral, ou melhor, da moral de rebanho.
Logo, por esquecimento e hábito, acreditamos que essa moral é a única possível.
Daí decorre o impedimento da compreensão de que outras morais ou seu processo
possam vir a constituir um novo modo de compreensão e de ação dos homens nas
relações inter pares.
Essa moral, que alcança hegemonia por séculos, na Europa, é promovida e
ajudada por uma religião que justifica e fomenta a regularidade dos desejos do
animal de rebanho. Essa religião da qual escoa a untuosa moralidade de rebanho
permeia, onde sequer poderíamos imaginar, as instituições políticas e sociais. É a
partir desse ângulo que Nietzsche aponta que o movimento democrático compõe
legado direto na modernidade do movimento cristão100.
Esse movimento de continuidade entre o movimento cristão e o movimento
democrático é uma análise muito precisa e fecunda da filosofia de Nietzsche. O
ritmo desse movimento é percebido em muitas outras análises, de modo demasiado
vagaroso e abrandado. Por exemplo, aqueles que buscam uma saída do grande
rebanho não percebem, muitas vezes, esse entrelaçamento entre os dois
movimentos. É o caso do movimento anarquista, radicalização do socialismo, e do
próprio movimento socialista.
99
Ibid. p. 89. 100
Ibid. p. 89-90.
86
Os anarquistas, supostamente antagonistas dos democratas liberais e dos
ideólogos da revolução vagarosamente trabalhada, e os socialistas, partidários da
semelhança, da identidade e da igualdade a todo custo, que almejam uma
―sociedade livre‖101, são, na perspectiva de Nietzsche, apenas uma face da mesma
moeda. Ambos concordam com a tese de que não há possibilidade de nenhum outro
arranjo e de elos na sociedade que não seja a organização em um grande rebanho
autônomo102.
Tanto a democracia burguesa quanto o anarquismo e o socialismo
concordam com o fim das diferenças humanas e com a exaltação da igualdade total
entre os indivíduos. Basta observar que esses movimentos combatem incisivamente
qualquer pretensão de diferenciação ou particular direito. Ao celebrar a igualdade a
todo custo, podem idealizar um tipo de sociedade na qual ninguém precisaria de
direito algum. Aqui novamente estaríamos atentando contra a própria dinamicidade
da sociedade. Seria, como mencionamos anteriormente, um modo de conduzir o
devir a uma finalidade, a um telos.
Sobre esse aspecto, Giacóia Jr.103 assinala:
Aqui se encontra, talvez, um dos aspectos mais peculiares da platonizante crítica de Nietzsche à modernidade política: o desdobramento virtual do liberalismo democrático no socialismo e também no anarquismo. Para ele, o liberalismo burguês, com suas aspirações universais à liberdade e igualdade conduz fatalmente, no plano político, às instituições democráticas e daqui tanto à absoluta igualização da humanidade na camisa de força social do "rebanho autônomo", quanto à anárquica vontade de destruição de todo regime existente (GIACÓIA Jr., 1996).
A moral vigente, a moral cristã que se reconhece como única, pretende ser
universal. Desse modo, essa moral se constitui como única e principal ferramenta
que sustenta o nivelamento almejado pelo cristianismo e também o anseio do
movimento democrático. A moral cristã e o movimento democrático supõem a
inexistência de hierarquias entre os homens. Os privilégios são negados pela ordem
101
Ibid. p. 90. 102
Ibid. p. 90 103
Cf. GIACÓIA Jr., 1996. Oswaldo. Crítica da Moral como política em Nietzsche. In: Cadernos do IEA\USP, São Paulo: 1996.
87
dos direitos iguais, a dor e o sofrimento são trocados pela piedade, a diferença
singular é substituída pela igualdade coletiva diante da Lei e de Deus.
Os privilégios das hierarquias, isto é, o pathos da distância, estão
relacionados à afirmação da vontade de potência, à possibilidade de comandar, de
criar e estabelecer, para si e para a sociedade, outros modos de organização do
lócus social. Não encontramos ressonâncias desse privilégio da hierarquia
relacionadas com opressão, repressão, nem tampouco relacionadas à usurpação
das riquezas produzidas. Por outro lado, percebemos que o privilégio da hierarquia
diz respeito à diferenciação no modo de pensar e de organizar outros modos de
sociabilidade. Portanto, o privilégio da hierarquia procura, na visão de Nietzsche,
questionar o modo de organização em rebanho, a utilidade na qual se finca para
deliberar. Trata-se, então, de exaltar o forte, aquele que é capaz de superar-se, quer
expandir-se e acusar a domesticação e a fraqueza promovidas pela modernidade.
Nietzsche assim descreve os privilégios da hierarquia:
Desse pathos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade! Esse ponto de vista da utilidade é o mais estranho e inadequado, em vista de tal ardente manancial de juízos de valor supremos, estabelecedores e definidores de hierarquias: aí o sentimento alcançou bem o oposto daquele baixo grau de calor que toda prudência calculadora, todo cálculo de utilidade pressupõe - e não por uma vez, não por uma hora de exceção, mas permanentemente (NIETZSCHE, 1998, p. 19).
A análise de Nietzsche sobre a continuidade entre a moral cristã e o
movimento democrático explicita inegavelmente a crítica ao ―rebaixamento‖, à
mediocrização do homem mediante o conceito de igualdade. O defensor das ideias
modernas, inspirado pelo instinto de rebanho, concebe suas ação e atuação a partir
dos ideais de universalidade e identidade. Desse modo, desaprova ações de pensar
e agir que prezam pela singularidade do agir e concebe a realidade como fixa e
inalterável. A dinâmica do devir, a ação afirmativa, o agir diferenciado são negados
em prol de um padrão coletivista bem delineado sem o qual seria impossível outra
maneira de viver.
Percebendo que esse modo de atuação se espraia por toda a Europa,
Nietzsche chega a sustentar que, ao invés de igualdade de direito, poderíamos
88
delinear um projeto de desigualdade dos direitos. Essa desigualdade não faz
menção à questão econômica e ao acesso à deliberação na esfera política. A
desigualdade se dá de um tipo de igualdade para outro. Há os que afirmam o vigor
de suas forças, os que criam, são munidos da capacidade de invenção; e aqueles
que possuem uma vontade cansada, uma vontade que nega, que procura o
repouso, que afirma o bem-estar, que busca a comodidade.
É nesse ponto que Nietzsche, talvez, afirme a desigualdade entre grupos de
iguais. Essa afirmação é fruto de sua análise sobre a configuração da modernidade.
De acordo com o filósofo alemão, a modernidade inaugura um modo de ataque que
visa extinguir o que é raro, nobre, inusitado, dotado de privilégio, pela sua
capacidade de criar; pretende desvanecer os homens; combate sem trégua o dever
elevado, a responsabilidade elevada. Trata-se de uma verdadeira luta contra o
sentimento de criação e de domínio através da criação de outros valores104.
Nietzsche afirma que
o ser-nobre, o querer-ser-para-si, o poder-ser-distinto, o estar-só e o ter-que-viver-por-si são parte da noção de ―grandeza‖; e o filósofo revelará algo do seu próprio ideal quando afirmar: ―será o maior aquele que puder ser o mais solitário, o mais oculto, o mais divergente, o homem além do bem e do mal, o senhor de suas virtudes, o transbordante de vontade; precisamente a isto se chamará grandeza: pode ser tanto múltiplo como inteiro, tanto vasto como pleno‖. E mais uma vez perguntamos: será hoje – possível a grandeza? (NIETZSCHE, 2005, p. 107).
Nesse sentido, Nietzsche fará uma distinção entre os espiritualmente
limitados e aqueles de uma superior espiritualidade. O que caracteriza os
espiritualmente limitados é o julgamento e a condenação moral, que realizam por
vingança contra aqueles que se supõem menos ainda limitados. E também o
julgamento e a condenação como forma de compensação por ter sido desprovido de
uma espiritualidade elevada. Daí, os espiritualmente limitados lutarem tanto pela
―igualdade de todos perante Deus‖ e crerem necessariamente na existência de um
Deus. Esse é o critério que satisfaz aos espiritualmente limitados, por igualar
aqueles homens acumulados de bens e privilégios do espírito e, portanto, superiores
em espiritualidade a eles. Assim Nietzsche se pronuncia:
104
Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 107.
89
Quem lhes dissesse que não ―há comparação entre uma superior espiritualidade e qualquer honradez e respeitabilidade de um homem apenas moral‖, faria com que ficassem furiosos – eu tratarei de não dizê-lo. Pretendo, isto sim, lisonjeá-los com minha tese de que uma superior espiritualidade existe apenas como rebento final de qualidades morais; que é uma síntese de todos aqueles estados atribuídos ao homem ―apenas moral‖, após terem sido adquiridos isoladamente, através de longa disciplina e exercício, e talvez por cadeias de gerações; que a superior espiritualidade é justamente a espiritualização da justiça, e daquele rigor bondoso que se sabe encarregado de manter no mundo a hierarquia entre as coisas mesmas – e não só entre os homens (NIETZSCHE, 2005, p. 112).
Sobre a relação entre igualdade diante da lei e o desenrolar da democracia
do rebanho, Scarlet Marton105 esclarece a perspectiva de Nietzsche:
Direitos mantêm relações de força; constituem ―graus de poder‖. ―A desigualdade de direitos‖, declara Nietzsche, ―é a condição necessária para que os direitos existam. Um direito é sempre um privilégio‖. Meus direitos são essa parte do meu poder que os outros reconhecem e me permitem conservar; meus deveres, os direitos que outros têm sobre mim. Segue-se daí que os direitos duram tanto quanto as relações de forças que lhes deram origem. A partir do momento em que a força de um certo número de indivíduos se reduz consideravelmente, os outros membros do grupo não mais reconhecem os seus direitos. Mas se, ao contrário, sua força aumenta, são eles que não mais garantem os direitos alheios. À medida que as relações de forças sofrem modificações profundas, certos direitos desaparecem e outros surgem. Dessa perspectiva, a igualdade dos cidadãos perante a lei – eco da igualdade dos homens diante de Deus – não passaria de fórmula forjada por quem precisa somar forças para subsistir (MARTON, 2011, p. 22-23 ).
O direito, nesse sentido, não é um contrato estabelecido mediante a
igualdade e a bondade natural entre os homens. O cristianismo e algumas correntes
políticas modernas disseminam essa ideia com o intuito de justificar o fracasso e a
fraqueza de sua vontade. O que prevalece, para o surgimento da ideia de direito, é a
correlação das forças que regem as experiências humanas. Os mais fracos da
espécie procuram se unir para conservar a existência. Estabelecem o modo de vida
gregário, aguardando que os mais fortes possam ameaçá-los. Percebendo o mais
forte que os rebanhos gregários poderiam resistir ao seu domínio ou que possuiriam
a mesma força, restaria aos fortes selar a paz e estabelecer contratos. Os regimes
democráticos e a religião cristã primam pelo modo de ação fraca e o incentivam,
105
In. Nietzsche e a crítica da democracia. Revista Dissertatio[33], UFPel, 2011.p. 17 – 33.
90
exercendo, portanto, um domínio que passa despercebido pelo rebanho. Este é
incentivado a não reconhecer sua força. Sua atuação social é medida pelo grau de
semelhança e obediência de uns em relação aos outros106.
Dessa forma, o que Nietzsche questiona, na ideia de igualdade generalizada
pela modernidade, é o pressuposto da existência de uma consciência coletiva, uma
consciência social pura, um ―nós‖ que existiria fora dos indivíduos e que age sobre
estes na forma de coação. Nietzsche privilegia os indivíduos na sua condição
singular e em como se organizam em sociedade. Dessa forma, a consequência
direta de sua opção de investigação é o estudo de questões relacionadas à vontade,
desejo, crenças que permeiam a pluralidade da vida.
A ideia da igualdade de todos perante a Lei ou diante de Deus postula que
todos os indivíduos teriam nascido semelhantes uns aos outros em seus desejos,
objetivos, vontades, crenças e aptidões. Desse modo, todas as transformações que
porventura se efetuassem ao longo de sua existência seriam tributárias de
determinações sociais exteriores aos próprios homens, o que suscita nestes um
estado de inércia diante dos acontecimentos ou apenas transforma-os em uma
grande massa de manobra que pode deslocá-los na direção que os líderes do
rebanho desejarem. Em outras palavras, a igualdade a todo custo, pretendida pelo
cristianismo e pelas ideias modernas, comportaria um estado de homogeneização
pacífica em si mesma que só poderia ser perturbada por uma entidade exterior à
organização social.
A diferença está na ação da vontade de potência, presente nos nossos
sentimentos, atos e pensamentos. Nossa existência é criada através da passagem
do estado passivo do rebanho à ação, dando vazão às nossas forças, a nossa
criação e ação. Dessa forma, por hábito e esquecimento, submetemo-nos ao estado
passivo, o que caracteriza a fraqueza, que acaba por minar nossas forças, que
trazem em si a potencialidade de realização do homem, no sentido de existir, de
pensar e de agir.
À luz do pensamento de Nietzsche sobre a ideia de igualdade, é-nos
possível perceber diversas implicações que não podemos excluir. Por exemplo,
106
Ibidem.
91
baseada nos princípios de igualdade e identidade, a sociedade poderia eliminar tudo
o que é vivo, movimento, heterogêneo, acaso e nuance de colorações dos diversos
modos de pluralidade humana, em nome de uma unanimidade para legitimar ações,
sentimentos, pensamentos homogêneos.
Percorrer o caminho da diferença entre os indivíduos, considerando cada um
como um universo de pluralidades e variações, pressupõe o estabelecimento de
novas e potentes hipóteses. De acordo com o pensamento de Nietzsche, se
partíssemos da ideia de diferença, ao invés de igualdade, o que se tem e se deverá
explicar são justamente as tentativas de homogeneização, as semelhanças e ordens
que se apresentam no mundo social, ao lado das singularidades.
Parece-nos que até mesmo um indivíduo, para Nietzsche, é uma
generalização. De fato, trata-se de um corpo singular de forças diversas de vontade,
crença e desejos em constante expansão e superação de si. Nietzsche não parte do
homem como dado para a explanação de fenômenos sociais. Apesar de adquirir
notável importância em sua filosofia, o homem não é origem e princípio de tudo que
há, pois, a ideia de origem não é possível a partir da filosofia de Nietzsche. O
discurso da origem e do princípio é jargão da metafísica clássica e da tradição
judaico-cristã que perpassa a história e se consolida na modernidade.
Ademais, há uma tentativa de argumentar a favor da igualdade, levando-se
em consideração a explicação das ciências da natureza. A igualdade pretendida
pelas ciências da natureza, afirma Nietzsche, não passa de uma interpretação
apressada e ruim. Ao afirmar a existência de ―leis da natureza‖, procuram submeter
tudo aquilo denominado como ―entes naturais‖ ao conceito de igualdade, pois estes
supostamente seguiriam o mesmo curso de tais leis. E, portanto, seriam iguais
porque seguem Leis necessárias e universais, iguais para todos. Nietzsche é
enfático quanto a isso. Afirma que essa interpretação é apenas uma outorga ao
movimento democrático da alma moderna, pois as leis da natureza não são
realidade fatual, um texto objetivo a ser decifrado. São apenas organizações,
arranjos e alterações de sentidos e significados criados pelo engenho humano.
A igualdade diante da Lei é um belo conceito retirado do intelecto humano,
este mestre do disfarce. O problema é que ele serve ao ideal democrático e impede
92
as forças de continuarem criando. Há nele uma espécie de estática, que não lhe
permite avançar, nem se expandir. Contraria o desenvolvimento da vontade de
superação constante. Nietzsche questiona a existência de tais leis devido à própria
ausência de leis na natureza. A natureza opera a cada instante, até suas últimas
consequências107. Então, essa ideia de igualdade diante da Lei é apenas uma
metáfora criada pela vontade enfraquecida e serva das ideias modernas e da
democracia.
Outro ponto fundamental que Nietzsche destaca sobre a influência da Moral
cristã na consolidação e na legitimação do movimento democrático é a questão da
compaixão. A hegemonia das ideias modernas gera um entendimento de compaixão
pouco valorizado pelos filósofos até então: o entendimento de que a compaixão, a
abnegação, o não egoísmo, o sacrifício são valores em si. A idealização e a
divinização da compaixão através da repetição de costumes modernos propiciam
nos indivíduos um desejo de negação da vida e de si mesmo. Essa idealização da
compaixão arranca do indivíduo a vontade de afirmação e de superação da vida.
A moral da compaixão, o cansaço que olha para trás108, a vontade que se
volta contra vida se espalha quase numa metástase por toda a Europa moderna. De
acordo com Nietzsche, a compaixão é um amolecimento dos instintos, impresso pelo
modo de valorar dos modernos e que enfraquece e adoece os homens. A
moralização cristã refere-se ao amolecimento doentio, uma vez que os homens
aprendem a envergonhar-se de seus instintos, de suas forças. Próximo de se tornar
um santo, o homem da moral da compaixão desenvolve uma fraqueza que arruína e
torna repulsivas a inocência e a alegria da vontade, perdendo o sabor da própria
vida. Isso ocorre, diz Nietzsche, devido à inversão do significado de sofrimento. O
sofrimento na Europa moderna é sempre visto como argumento contra a existência,
como seu grande problema. Em outros contextos históricos, o sofrimento não
prescindia de si mesmo, fazer-sofrer não é renunciado, era até mesmo cultivado
como um valor para fazer valer a vida. Porém, ironiza Nietzsche, talvez nesse
sofrimento, a dor doesse menos. Sobre isto, ele afirma:
Talvez possamos admitir a possibilidade de que o prazer na crueldade não esteja realmente extinto: apenas necessitaria, pelo
107
MARTON, 2011, p.26-27. 108
Cf. NIETZSCHE, 1998, p. 11.
93
fato de agora doer mais a dor, de alguma sublimação e sutilização, isto é, deveria aparecer transposto para o plano imaginativo e psíquico, e ornado de nomes tão inofensivos que não despertassem suspeita nem mesmo na mais delicada e hipócrita consciência (a "compaixão trágica" é um desses nomes; um outro é "les nostalgies de ta croix" [as nostalgias da cruz]) (NIETZSCHE, 1998, p. 57-58).
Através do método genealógico, Nietzsche escava a emergência, o
surgimento da inversão promovida pela moral cristã no comportamento dos
modernos. Para os antigos gregos, ser moderno e exercer o poder é considerado, à
luz do método genealógico, como pura híbris109 e impiedade. As coisas que veneram
as ideias modernas e que tiveram apoio da consciência e de Deus são opostas ao
que era respeitado e venerado pelos gregos antigos. Por exemplo, é pura híbris na
modernidade, afirma Nietzsche, nossa atitude para com a natureza. Violentamos a
natureza com ajuda de máquinas e da irrefletida invenção técnica. Fazemos
experimentos conosco cuja realização não seria concebível com nenhum outro
animal. Do mesmo modo, todas as coisas boas da modernidade foram um dia coisas
ruins. Basta observar o direito, a submissão ao direito. O direito, durante muito
tempo, foi algo proibido, um abuso. De acordo com Nietzsche, o direito surge como
violência, à qual, somente com vergonha de si mesmo, alguém se submetia. O
direito é da ordem da conquista, uma inovação para cessar o dissídio nas
sociedades.
Essa inversão afirma certos rancor e vergonha em relação à dureza
constatada na modernidade, como se tinha vergonha da suavidade na antiguidade
clássica. Desse modo, afirma Nietzsche:
É este orgulho, porém, que nos torna hoje quase impossível sentir como os imensos períodos de ―moralidade do costume‖, que precederam a ―história universal‖ como a verdadeira e decisiva história que determinou o caráter da humanidade: quando o sofrimento, a crueldade, a dissimulação, a vingança, o repúdio à verdade eram virtude, enquanto o bem-estar, a sede de saber, a paz, a compaixão eram perigo, ser objeto de compaixão era ofensa (NIETZSCHE, 1998, p. 104).
109
De acordo com Nota de Paulo César de Souza, ―Híbris‖ era uma palavra com que os antigos designavam todo comportamento arbitrário, arrogante, desrespeitador dos direitos do próximo e das normas da comunidade. No sentido mais geral, aquele em que é empregada por Nietzsche, era – é – a violação soberba das leis divinas ou naturais (NIETZSCHE, 1998, p. 159).
94
Mas de onde vem o sentimento de compaixão? Nietzsche propõe, como
resposta, que esse sentimento se sustenta em resquícios cristãos. O cristianismo
promoveu a emergência de modos de agir e de pensar de acordo com a utilidade
destes. Porém, Nietzsche condena esses modos de agir e de pensar, pois eles
destroem toda individualidade, exaltam a negação da singularidade. Essa
aniquilação acontece ao se considerar como bom somente o pertencimento ao
grupo.
A última ressonância do cristianismo no campo da moral, afirma Nietzsche,
foi a criação do sentimento de piedade. A bondade, de acordo com o cristianismo, é
mediada pela piedade. É necessário que haja, no nosso modo de agir e pensar,
algum modo de piedade. Os indivíduos são medidos moralmente pelas suas ações
simpáticas, desinteressadas, sociais, de utilidade geral. Esse comportamento
produzido pelo cristianismo na Europa moderna é sustentado pela importância
concedida a uma só coisa: a eterna salvação pessoal, que ocorreria em segundo
plano, pelo amor ao próximo e pelo sentimento de misericórdia, pois o mais
difundido e dissimulado foi o sentimento de viver para o outro.
Esse sentimento da compaixão ou da utilidade para os outros como princípio
da ação se disseminou por todos os lugares. A contribuição mais evidente para essa
disseminação foi dada pela Revolução Francesa. Os sistemas socialistas, quase que
automaticamente, puseram-se como solo comum dessa doutrina. De acordo com
Nietzsche, ser um indivíduo moral, a partir de então, era servir à sociedade,
adequar-se às necessidades gerais. A felicidade, para o indivíduo moral, é o
sacrifício de sua singularidade em prol de sua aceitação no grupo como membro útil
e instrumento comum da ordenação do todo. Nietzsche acrescenta:
Pretende-se nada menos – seja ou não admitido – que uma radical transformação, uma debilitação e anulação do indivíduo: não se para de enumerar e denunciar tudo de mau e hostil, de esbanjador, dispendioso, luxuoso, na forma da existência individual até o momento; espera-se uma administração mais econômica, mais segura, mais equilibrada, mais uniforme, se houver apenas corpos grandes e seus membros. É visto como bom tudo o que, de algum modo, corresponde a esse impulso formador de corpo e membros, e
a seus impulsos auxiliares. Esta é a corrente moral fundamental de nosso tempo (NIETZSCHE, 2004, p. 102).
95
O que Nietzsche pretende mostrar é que a compaixão não é um sentimento
em si. Não existe a priori no individuo. A compaixão passa a ser disseminada devido
à hegemonia da moral cristã na Europa moderna. Os indivíduos são direcionados
para a ação compassiva. Esse cultivo passa pela difusão do medo e pela esperança
de salvação pessoal. O medo domestica os indivíduos através da doutrina do
castigo. A domesticação é reforçada pelo sentimento de crédito na esperança de
outra vida no além.
Para Nietzsche, então, a compaixão é um efeito da dissimulação e da
hipocrisia da moral. Esse autor, através da genealogia, impulsiona-nos a refletir e a
questionar a compaixão, devido à observação de que o indivíduo, em nenhum
momento, realiza algo para o outro sem alguma motivação pessoal, egoísta. É como
a ação do eu sem a sua presença. Por exemplo, amamos alguém pelo instinto
agradável que nos causa esse amor. A compaixão, nesse sentido, não é uma ação
não egoísta, ela é o próprio egoísmo. Nietzsche110 nos faz ponderar, por exemplo,
que os sentimentos compassivos, o sentimento sexual e a ação de venerar são
equivalentes, uma vez que as pessoas fazem o bem ao outro, pelo seu próprio
prazer.
Então, podemos compreender que a compaixão, mais do que um tipo de
sofrimento em si na relação em sociedade, é um estratagema engendrado pelo
cristianismo e efetivado pelas relações de poder que, no exato momento em que
fazem promessa de auxílio e assistência, proliferam dispositivos de coerção,
docilização, nivelamento e submissão. A compaixão e a piedade se revelam como
astuciosos processo e projeto do poder que insistem em se apresentar como um
desapaixonado e necessário ―humanismo‖.
Realizamos, até aqui, o tracejo da continuidade entre a religião cristã e o
movimento democrático. Analisamos como a democracia burguesa, até mesmo o
anarquismo e o socialismo, promovem o fim das diferenças humanas e a exaltação
da igualdade total entre os indivíduos. Mostramos que há certa unanimidade quanto
à crença da moral da compaixão partilhada. Unanimidade dos movimentos sociais
modernos (liberalismo, anarquismo e socialismo) diante de uma moral que insinua
um viver para o outro apenas como fachada.
110
Cf. NIETZSCHE, 2004, p. 59-60.
96
Dessa forma, resta-nos analisar a seguinte questão: Nietzsche afirma que o
pensamento social moderno possui ponto comum (promove o rebanho autônomo) e
que ambos são mantenedores de uma vida que declina, que não alimenta a
singularidade, que não intensifica as forças. Faz essa análise com base no método
genealógico, aplicado por ele por meio da realização de uma comparação entre
modernos (defensores da democracia liberal) e antigos (na figura de uma
aristocracia guerreira). Resta-nos compreender se Nietzsche, ao analisar a
negatividade da vida no movimento democrático, está propondo a substituição deste
pelo modelo aristocrático.
Faz-se mister, nesse sentido, aproximarmo-nos daquilo que Nietzsche
chama de Aristocracia de espírito. O filósofo alemão parte da ideia de que toda
―elevação‖ do espírito é tarefa de uma sociedade que acredita numa escala de
hierarquias e de diferenças de valor entre um e outro homem. É uma sociedade que
admite a escravidão e necessita dela em algum sentido111. A contínua
autossuperação do homem112 exige uma gradação hierárquica e o pathos da
distância, tal como advém da diferença entre os grupos, para que sejam elaborados
e alcançados estados cada vez mais elevados, mais raros, mais remotos, amplos,
abrangentes.
A concepção aristocrática de Nietzsche às vezes provoca certo desconforto
para os ouvidos da moderna democracia, com seus ideais de nivelamento e
igualdade liberal. Basta observar como o filósofo caracteriza tal aristocracia:
O essencial numa aristocracia boa e sã, porém, é que não se sinta como função (quer da realeza, quer da comunidade), mas como seu sentido e suprema justificativa – que portanto aceite com boa consciência o sacrifício de inúmeros homens que, por sua causa, devem ser oprimidos e reduzidos a seres incompletos, escravos, instrumentos. Sua fé fundamental tem de ser que a sociedade não deve existir a bem da sociedade, mas apenas como alicerce e andaime no qual um tipo seleto de seres possa elevar-se até sua tarefa superior (NIETZSCHE, 2005, p. 154).
111
Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 153. 112
Ibid.
97
Para Keith Ansell-Pearson113, Nietzsche, com seu aristocratismo, opõe-se
tanto ao socialismo quanto ao liberalismo. De acordo com ele, Nietzsche vê, na base
de ambos, apesar de suas diferenças, uma tentativa de administração da sociedade
onde prevalece apenas o aspecto econômico. A cultura, nesse sentido, é
considerada secundária e a lógica utilitarista assume as rédeas do pensar social. O
liberalismo presume um individualismo abstrato, anterior à sociedade, que não
estima nenhuma diferenciação na escala de hierarquia, cria e incentiva o surgimento
de um tipo de homem submisso, condescendente. Por outro lado, o socialismo, com
a bandeira da justiça social, subordina o cultural, a formação dos indivíduos, ao
desenvolvimento econômico, e, portanto, enreda-se numa cadeia burocrática.
No aristocratismo, o senhor, o nobre, aquele que comanda, deve realizar um
árduo trabalho de autodisciplina e autodomínio. Os seres humanos mais espirituais,
afirma Nietzsche114, encontram sua felicidade onde os outros encontrariam sua
destruição, a saber, no labirinto, na severidade para consigo mesmo e com os
outros.
Uma sociedade formada por homens que se abstêm da força, de sua
vontade de potência, que pretende constituir um único ―corpo‖, revelaria somente
sua vontade de negação da vida. De acordo com Nietzsche, a vida é apropriação
orgânica do mais fraco, é dureza. Mas até mesmo em uma aristocracia sã, os
indivíduos poderiam se tratar como iguais, à medida que fossem valorizados os
aspectos vitais de força, expansão, superação. Nesse sentido, Nietzsche
complementa:
deve, se for um corpo vivo e não moribundo, fazer a outros corpos tudo o que os seus indivíduos se abstêm de fazer uns aos outros: terá de ser a vontade de poder encarnada, quererá crescer, expandir-se, atrair para si, ganhar predomínio – não devido a uma moralidade ou imoralidade qualquer, mas porque vive, e vida é precisamente vontade de poder (NIETZSCHE, 2005, p. 155).
Nietzsche enfatiza que a história é perpassada pelo caráter explorador e que
este caráter não é fruto de uma organização social imperfeita, injusta, é apenas uma
faceta da função orgânica daquilo que possui vida. Para ele,
113
In Nietzsche como pensador político: uma introdução. trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. p. 53. 114
Ibid. p. 53.
98
em toda parte sonha-se atualmente, inclusive sob roupagem científica, com estados vindouros da sociedade em que deverá desaparecer o ―caráter explorador‖ – a meus ouvidos isto soa como se alguém prometesse inventar uma vida que se abstivesse de toda função orgânica. A ―exploração‖ não é própria de uma sociedade corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz parte da essência do que vive, como função orgânica básica, é uma consequência da própria vontade de potência, que é precisamente vontade de vida. Supondo que isto seja uma inovação como teoria – como realidade é o fato primordial de toda a história: seja-se honesto consigo mesmo até esse ponto (NIETZSCHE, 2005, p. 155).
De acordo com Nietzsche, o homem nobre, pertencente à aristocracia,
afasta de si, através do phatos da distância, tudo que é contrário ao seu estado de
elevação. Há, nesse sentido, distanciamento do covarde, do medroso, do
mesquinho, do que pensa na estreita utilidade. Mantém-se distância do desconfiado,
daquele que rebaixa a si mesmo. Despreza-se a espécie canina de homem, que é
submisso e se deixa maltratar, o adulador que mendiga, e, sobretudo, o mentiroso.
O homem nobre se vê como aquele que determina valores. Seu julgamento diante
da vida é: o que me é prejudicial é prejudicial em si. Ele cria valores, possui uma
sensação de plenitude, uma sensação de poder transbordando. Sua sensação de
plenitude também é sensação de uma consciência de riqueza que gostaria de
compartilhar. Afirma Nietzsche:
também o homem nobre ajuda o infeliz, mas não ou quase não por compaixão, antes por um ímpeto gerado pela abundância de poder. O homem nobre honra em si o poderoso, e o que tem poder sobre si mesmo, que entende de falar e calar, que com prazer exerce rigor e dureza consigo e venera tudo que seja rigoroso e duro (NIETZSCHE, 2005, p. 156).
A nobreza da aristocracia é avessa à moral que vê como sinal distintivo de
uma moral mesma a compaixão, a ação altruísta ou o desinteresse. A moral nobre
enaltece a fé em si mesmo, o orgulho de si, e ironiza a abnegação.
Portanto, o que caracteriza a aristocracia de espírito, para Nietzsche, é a
possibilidade de organização social, na qual percebemos que o privilégio da
hierarquia diz respeito à diferenciação no modo de pensar e organizar outras
possibilidades de organização social. A hierarquia é a distribuição de talentos e de
responsabilidades em uma sociedade que supere a condição de organização da
99
vida em um grande rebanho autônomo. Nesse aspecto, concordamos com Giacóia
Jr., quando este afirma que
A aristocracia, pensada por Nietzsche, ainda que evoque o tipo-homem da Grécia pré-socrática e coqueteie com a nobreza renascentista, é, essencialmente, uma aristocracia do espírito - ela se refere, sobretudo, à hierarquia dos talentos e das responsabilidades e, nesse sentido, é também um curioso e paradoxal tributo ao filósofo-governante da República de Platão -; não se deve, pois, confundi-la com a inescrupulosa instrumentalização do rebanho dos medíocres e malogrados para fins de satisfação da insaciável ânsia de poder e dominação política; até mesmo porque o aplastamento e a maquinalização da humanidade que caracterizam a ‗moderna escravidão remunerada‘ já representavam, para Nietzsche, uma realidade histórica. Ao invés de ser o cínico amoral que se compraz no ócio e na exploração da figura moderna do ‗trabalho escravo‘, o além-do-homem não pode ser identificado com anacrônico saudosismo do antigo regime, ou com o capitalista possuidor dos meios de produção. Ele é, antes, o filósofo-legislador para os futuros milênios, criador de novas tábuas de valor; uma personagem que - como os mitos de origem e formação na filosofia platônica - é criada para fixar em imagem e atuar no sentido da formação, da promoção de um tipo-homem que represente uma alternativa para sua assustadora bagatelização da humanidade em escala planetária, sua definitiva transformação em massa uniforme, padronizada em seu pensar, sentir e agir, sob o efeito dos mecanismos de normatização e controle dessa hybris moderna da racionalidade instrumental (GIACÓIA Jr., 1996).
Desse modo, para Nietzsche, a aristocracia possui o significado de elogio do
forte, daquele que é capaz de superação do humano tal como ele vem sendo
compreendido até então. Elogia-se o forte para denunciar o nivelamento e o
rebaixamento impostos pela modernidade. Podemos até afirmar que a questão da
escravidão, tão difamada no pensamento de Nietzsche, diz respeito, levando-se em
conta a história, à denúncia que Nietzsche faz da hipocrisia da sociedade que
estampa como princípio emancipatório a dignidade do trabalho. Nietzsche parece
chamar a atenção, isso sim, para a ditadura do trabalho e do lucro a todo custo, para
o processo de instalação de uma sociedade administrada por especialistas, para
uma sociedade voltada para a produção e o consumo. O que se realiza plenamente
no trabalho é a expropriação do produto e do sentido do trabalho, é a formatação de
um grande rebanho uniforme e homogêneo.
Então, retomando a questão levantada anteriormente – Nietzsche pretende
substituir a democracia por uma aristocracia? – acreditamos que não. Sua análise
100
da democracia sequer, a nosso ver, se configura como análise estritamente política.
Ao contrapor a aristocracia guerreira da Grécia antiga ao modelo democrático da
modernidade, parece-nos que Nietzsche denuncia a perspectiva cultural que se
alcançou com a moral cristã. A contribuição decisiva, nesse aspecto, é a perspectiva
de que a moral e a cultura modernas não são imutáveis e eternas. Ao caracterizar
genealógica e filologicamente a aristocracia, quer nos mostrar o processo de
construção de uma cultura através de outra ética, através da valorização das
potencialidades criadoras dos indivíduos. Porém, essa outra ética precisa ser
cultivada. Ao invés de dispensar, suprimir ou preterir quem ―manda‖ por um ideal de
massificação, criam-se várias formas de tentar substituir quem comanda por uma
soma acumulada de homens sagazes do rebanho. Cria-se, enfim, a ilusão de que
quem exerce o comando é o rebanho geral, ou seja, as instituições representativas
são apresentadas como modelos de igualdade. No entanto, por esquecimento e
hábito, não enxergamos o domínio e a conquista na marca do direito e do dever.
Diante da afirmação de que Nietzsche ―odiava a democracia e sonhava com
uma sociedade aristocrática‖, resta-nos lembrar que, para ele, a democracia é um
fato irreversível, como afirma na seção 275 de O andarilho e sua sombra, em que
lemos que a democratização da Europa é irresistível115. No mesmo texto, afirma
que as instituições democráticas são necessárias para garantir o impedimento de
desejos tirânicos e como forma de se pensar em uma valorização da autonomia do
indivíduo. Portanto, suas críticas à democracia são feitas num contexto de análise
cultural dos valores, com o propósito de elevação do tipo homem. O que se critica,
como continuidade do movimento democrático à esteira dos valores cristãos, é o
ascetismo, o nivelamento por baixo, a mediocrização, a domesticação do homem.
Dessa forma, afirma Nietzsche,
Nós, que somos de outra fé – nós, que consideramos o movimento democrático não apenas uma forma de decadência das organizações políticas, mas uma forma de decadência e diminuição do homem, sua mediocrização e rebaixamento de valor: para onde apontaremos nós as nossas esperanças? – Para novos filósofos, não há escolha;
para espíritos fortes e originais o bastante para estimular valorizações opostas e tresvalorar e transtornar ―valores eternos‖, para precursores e arautos, para homens do futuro que atem no
115
Cf. ANSELL-PEARSON,1997. p. 105.
101
presente o nó, a coação que impõe caminhos novos à vontade de
milênios. (NIETZSCHE, 2005, p. 91).
3.4 UMA NOVA ESPÉCIE DE FILÓSOFO
Ao considerar o movimento democrático uma forma de decadência tal qual o
movimento cristão, Nietzsche pretende pontuar sua crítica cultural às organizações
políticas, como foi mostrado anteriormente. As organizações políticas da
modernidade, com seu ideal de democratização, forjaram uma atuação humana que
se configura a partir do rebaixamento de valor, da mediocrização e da diminuição da
espécie humana. As forças são rebaixadas. A vontade de nada assume a vanguarda
da ação. A mediocridade é tomada como modo a ser contemplado e construído.
Disso resulta o afastamento daquilo que é único e privilegia-se o igual e insosso. A
semelhança, critério único das ideias modernas, assume horizontes amplos,
retirando da vida seu vigor e sua coloração. Há, desse modo, uma tentativa de
tornar tudo igual, idêntico a si mesmo e homogêneo. Desconsidera-se a soberania
do particular, a singularidade da ação.
Diante dessas considerações, que são um ponto de partida sólido, Nietzsche
possui uma proposta resoluta. De acordo o filósofo, temos a necessidade de novos
filósofos, filósofos do futuro. Para Nietzsche, esses novos filósofos serão, em última
instância, filósofos-legisladores. Estes, abundantes em força e originais, amantes da
singularidade, tomados pelo ímpeto de tresvalorar os valores idealizados, são os
porta-vozes para um novo modo de sociabilidade, outra construção do ethos. Esses
filósofos-legisladores representam os novos caminhos que o mundo atual pode
trilhar para alcançar uma longa vontade, sufocada há séculos. A partir daqui, em
nossa análise, pretendemo-nos deter na categoria filósofos-legisladores no
pensamento de Nietzsche.
Inicialmente, é necessário retomar uma caracterização importante para
compreender o surgimento dos filósofos do futuro, os legisladores. Trata-se da
caracterização da tipologia fraco e forte, possível somente para efeito de
organização e sistematização conceitual, sendo impossível atribuir o caráter
dicotômico para essa escolha didática. Isso porque ambos os tipos podem coexistir
102
especificamente nos traços de composição das forças dos homens. De acordo com
Deleuze (1965), a vontade de potência pode impulsionar à obediência ou
impulsionar ao comando, ao criar e doar sentido. Em relação aos dois tipos116 de
atuação das forças, podemos identificar uma que afirma a sua expansão e
transbordamento, outra que nega, que limita o transbordamento daquela. Portanto,
no jogo de organização das forças, encontramos ora sua afirmação, ora a negação,
como analisamos acima. Daí ser imprescindível assinalar a distinção entre tipo fraco
e tipo forte para situar o surgimento dos filósofos do futuro, os legisladores.
Em Nietzsche, o tipo fraco é a personificação de impulsos fracos e reativos
sobre os fortes e ativos durante a agitação interna dos impulsos e dos desejos no
humano. De acordo com Oliveira Jr.(2004, p.113), nessa tipificação, o homem é
incapaz de afirmar a superação de si. Ele é levado a escolher a negação dessa
característica marcante do processo vital, através da afirmação da crença e da fé
metafísica, eliminando, desse modo, a luta interna, os conflitos e as contradições
presentes no seu organismo, na sociedade e na vida. Quer dizer, os homens de tipo
fraco criam realidades transcendentes (Deus, Verdade, Bem etc.), por serem
incapazes de superar e de exercer superação devido à comodidade e à estabilidade
que é proporcionada pela absolutização dos conceitos metafísicos. Então, o fraco é
aquele que não encara a vida como luta incessante, opta pela manutenção e pela
conservação na esperança de um conforto eterno em uma vida no além.
A tipologia do forte indica que, hierarquicamente, o forte é superior ao fraco.
A capacidade de enfrentar os desafios da existência ao se deparar com o agon é,
para Nietzsche, medida de valor do homem. Nesse sentido, o forte é aquele que
suporta o jogo do devir, ousa nas suas potencialidades, possui a capacidade de
assimilar a existência na sua plenitude, sem excitação.
Em Nietzsche, a caracterização do forte exige que este seja
transbordamento da vontade de potência, um impulsionador de seus instintos,
afirmando sem reservas sua máxima realização. De outro modo, o tipo forte é
116
Cf. DELEUZE, 1965, p. 22-23. Para Deleuze, afirmação e negação são qualidades da vontade de potência, como ativo e reativo são qualidades das forças. Mas é necessário evitar, em função de considerações terminológicas, reduzir o pensamento de Nietzsche a um simples dualismo, pois, ambas as qualidades co-pertencem ao mesmo homem, mudando somente o modo de valoração diante da vida.
103
encarado por Nietzsche como aquele que, incondicionalmente, encara seu existir
sem levar em consideração os percalços. De acordo com Oliveira Jr. (2004, p. 119),
o que sintetiza a caracterização do tipo forte são os seguintes traços: inocência,
autonomia, criação de seus próprios valores, supramoralidade, transgressão,
solidão, transbordamento de força, posse de grandes afetos, capacidade para
comandar, assimilação e superação das dificuldades inerentes à vida, grandeza de
alma e alegria dos sentidos.
Todavia, é necessário destacar que o tipo fraco não é sempre subordinado
ao forte, pois, ao ascender ao poder, o fraco não perde sua fraqueza. Deleuze
explicita esse aspecto:
As forças reativas, ao levarem a melhor, não deixam de ser reativas, porque, em todas as coisas, segundo Nietzsche, trata-se de uma tipologia qualitativa, trata-se da baixeza e da nobreza. Os nossos senhores são escravos que triunfam num devir-escravo universal (DELEUZE, 1965, p. 23).
É importante essa explicitação, diz Oliveira Jr. (2004, p. 117), porque evita o
contrassenso quanto à interpretação dos fortes e dos fracos, mediante o qual se crê
que os mais poderosos, em um regime social, são, desse modo, os fortes.
Assim, as peculiaridades dos tipos fortes e fracos se apresentam em um
mesmo homem, coexistindo cada característica de princípios e forças. Quer dizer, ao
mesmo tempo, o tipo forte pode sofrer oscilações na sua potência. Porém, ao
contrário do tipo fraco, que não encara a existência afirmando suas forças, o forte
reuni-as e projeta-as para transbordamento.
A partir da caracterização dessas tipologias, podemos acompanhar que o
tipo fraco e o tipo forte possuem internamente vários componentes. Consoante a
análise de Oliveira Jr.117 (2004, p.124-131), encontraremos, na obra de Nietzsche, a
organização desses componentes do tipo fraco do seguinte modo: ―os homens
superiores‖, ―os últimos homens‖, ―o tipo escravo‖ e ―os animais de rebanho‖.
117
Cf. OLIVEIRA Jr., 2004, p. 124 – 131.
104
O primeiro componente do tipo fraco são ―os homens superiores‖, descritos
de modo positivo, afirmativo, no segundo período da produção filosófica de
Nietzsche. Nesse período, o homem superior é apresentado como aquele que se
opõe ao homem inferior. Ele é avesso à fé, aos juízos que necessitam de uma
certeza absoluta. Porém, na obra Assim falou Zaratustra, adquire acepção negativa.
Nesse sentido, os homens superiores são caracterizados como tipo fraco, isto é,
como aqueles que não possuem grandeza, pois não podem ousar em suas
potencialidades, nem criar seus próprios valores.
Outro componente do tipo fraco são ―os últimos homens‖, mencionados na
obra Assim falou Zaratustra. Nietzsche os contrapõe ao super-homem118. Os últimos
homens tendem ao nivelamento e à uniformização que caracterizam as ideias
modernas. A atuação desses homens promove a banalização da vida, pois eles são
marcados pela busca do conforto imediato e tendem somente à conservação da
vida, ao invés de expandi-la. Dessa forma, os últimos homens personificam o
homem moderno, o representante do processo de decadência.
Do tipo fraco, ainda, é componente ―o tipo escravo‖. Este aparece na obra
Humano demasiado humano e em Além do bem e do mal. Ele é marcado pela
reatividade, pelo ressentimento e pela incapacidade para criar valores. O tipo
escravo é reativo porque nele prevalecem as forças reativas e a negação de suas
forças, ou seja, há o predomínio das forças reativas sobre as ativas, o que impede a
afirmação de sua existência. O tipo escravo, nesse sentido, é ressentido por não
conseguir superar seus malogros, suas derrotas e porque é movido pelo sentimento
de vingança contra o tipo forte. Além disso, o tipo escravo é incapaz de engendrar
novos valores, sua atuação necessita de exterioridade para a ação e o que realiza é
a inversão dos valores do tipo forte.
O último componente do tipo fraco são ―os animais de rebanho‖. Estes se
organizam em sociedade devido à necessidade de usufruir dos benefícios que a
coesão social lhes proporciona, isto é, organizam-se em rebanho para gozar das
118
Optamos por utilizar a tradução de Übermensch por Super-homem, acompanhando a tradução proposta por Machado (1997, p. 45), Oliveira Jr. (2004), Barrenechea (2008). A tradução super-homem mantém uma correspondência entre o prefixo ―super‖ e ―über‖, presente em outras terminologias importantes na obra de Nietzsche como, por exemplo, Überwindung que traduzimos por ―superação‖.
105
vantagens particulares que a vida comum assegura, tais como: comodidade, bem-
estar, segurança e refúgio ante os perigos da natureza. Os animais de rebanho,
nesse sentido, tomam como único critério de valoração a utilidade imediata.
No que diz respeito à tipologia dos fortes, podemos compreender, conforme
análise de Oliveira Jr.119, a mobilidade entre os seguintes componentes: ―senhores,
nobres, aristocratas‖, ―o homem mau‖, ―os grandes homens‖.
O que marca a composição dos ―senhores, nobres e aristocratas‖ é a
prevalência das forças ativas sobre as reativas. Os senhores, nobres e aristocratas
são movidos por forças ativas e reativas, porém, as forças ativas predominam sobre
as reativas. Os senhores, nobres e aristocratas são antípodas do tipo escravo. O
que é comum entre eles é a capacidade de criação de valores e a afirmação das
potencialidades vitais, almejando sempre a expansão da vida, ao invés da
conservação. De acordo com Oliveira Jr.120 (2004, p. 134), as virtudes cultivadas por
estes são: dureza consigo mesmo, aceitação da luta como essencial à vida,
aprovação do sofrimento como experiência vital, criação de valores, pujança de
forças, natureza afirmativa. Os senhores, nobres e aristocratas aparecem, nessa
ordem, na obra Humano demasiado humano, no caso do primeiro, e em Além do
bem e do mal, no caso dos dois últimos.
Outro componente do tipo forte é ―o homem mau‖. Esse conceito é criado a
partir de Humano demasiado humano, aparecendo também em Aurora e em A gaia
ciência. Ele é apresentado como transgressor da moralidade cristã e das leis
instituídas. Seu surgimento é necessário por impulsionar mudanças e
transformações constantes na sociedade, uma vez que, em uma época histórica, é
considerado mau e, em outra, é celebrado como herói por imprimir outras leis e
mostrar a necessidade do fluir dinâmico na sociedade.
Outra composição do tipo forte são ―os grandes homens‖, que aparecem
conceitualmente na fase intermediária e final da produção filosófica de Nietzsche.
Eles são grandes devido à liberdade de suas paixões, ou melhor, porque dominam
119
Cf. OLIVEIRA Jr., 2004, p. 132-141. 120
Cf. OLIVEIRA Jr., 2004, p. 134.
106
suas paixões sem enfraquecê-las ou exterminá-las. Sua grandeza é possível graças
à meta que estabelecem para eles próprios: a elevação acima de si mesmos. As
forças dos grandes homens, por prevalecer aquelas que impedem a resistência, a
inércia, colocam em questão o que foi construído lentamente desde o socratismo e o
platonismo até a modernidade. O que garante a grandeza ao homem é o processo
de assimilação trágica da vida, pois os homens grandes não negam o sofrimento e o
que é terrível e questionável na vida. Eles estão isentos de qualquer ideal,
emancipados de qualquer remorso, sem nenhuma má-consciência e, portanto,
capazes de lidar com todas as condições vitais que se apresentam.
A composição do tipo forte permite, ainda, a caracterização do ―gênio‖, do
―espírito livre‖ e do ―super-homem‖. O gênio, que aparece inicialmente em O
nascimento da tragédia, é aquele capaz de produzir, gerar, a partir da natureza,
produtos culturais que vão além de uma sociedade decadente. Na segunda fase da
produção filosófica de Nietzsche, afirma Oliveira Jr.(2004), o gênio passa a ser
aquele que suspeita do resultado do processo civilizatório, aquele que almeja se
desvencilhar da tradição metafísica e religiosa do Ocidente.
O ―espírito livre‖ se refere ao tipo forte de homem que se torna senhor de si,
adquire a soberania de si próprio. O espírito livre, de acordo com Fink (1983)121, é
capaz de descobrir a si próprio como criador de valores, de revolucionar todos os
valores. O espírito livre marca o segundo período da produção de Nietzsche, sendo
o antípoda do animal de rebanho, aquele que optou por ter opiniões próprias e
estabelecer para si a afirmação e a criação de novos valores. O requisito principal do
espírito livre é a superação do dogmatismo e do ceticismo presentes na tradição
metafísica idealista. Livre da metafísica e do idealismo, o espírito livre pretende
desenvolver a coragem, a força, a fibra e a persistência para desvanecer a nefasta
condição de servidão cravada pelas ideias modernas.
A referência inicial que Nietzsche faz ao espírito livre está demarcada na
obra Humano demasiado humano, mais precisamente no subtítulo: um livro para
espíritos Livres. Logo no primeiro tópico do prólogo, esclarece que há um projeto
comum nas obras até então publicadas, que é o de incitar a inversão das valorações
121
Apud OLIVEIRA Jr. (2004, p.146).
107
habituais e dos hábitos valorizados122. Para dar cabo ao seu projeto, Nietzsche
conclama espíritos livres, aqueles, em um primeiro momento, que possuem a
destreza de romper com o idealismo de Schopenhauer e o romantismo-cristão de
Richard Wagner.
Então, quem seriam tais espíritos livres? As pistas iniciais que nos são
apresentadas apontam tão somente para uma invenção conceitual que Nietzsche
cria para escapar de um momento de crise. Crise de saúde, ruptura com Wagner e
Schopenhauer, solidão, exílio e inatividade devido à doença. Porém, a invenção
conceitual assume o estatuto de anseio intempestivo da vinda de tais espíritos, uma
vez que o caminho pelo qual possam trilhar aparece no limiar da modernidade e sob
seus escombros e fados.
O espírito livre, em um gesto de rubor vergonhoso, começa a suspeitar
daquilo que outrora defendia e amava e, a partir de uma alegria impetuosa, um
alegre tremor, sente uma intensa satisfação de autodeterminação, determinação
própria de criação dos valores, e apego à experiência das coisas que podem ser
reviradas, remexidas. Nietzsche acrescenta:
Um passo adiante na convalescença: e o espírito livre se aproxima novamente à vida, lentamente, sem dúvida, e relutante, seu tanto desconfiado. Em sua volta há mais calor, mais dourado talvez; sentimento e simpatia se tornam profundos, todos os ventos tépidos passam sobre ele. É como se apenas hoje tivesse olhos para o que é próximo. Admira-se e fica em silêncio: onde estava então? Essas coisas vizinhas e próximas: como lhe parecem mudadas! De que magia e plumagem se revestem! Ele olha agradecido para trás – agradecido a suas andanças, a sua dureza e alienação de si, a seus olhares distantes e vôos de pássaros em frias alturas. Como foi bom não ter ficado ―em casa‖, ―sob seu teto‖, como um delicado e embotado inútil! Ele estava fora de si: não há dúvida. Somente agora vê a si mesmo – e que surpresas não encontra! (NIETZSCHE, 2000, p. 11-12).
Outro aspecto que precisa ser destacado no desenrolar do conceito de
espírito livre (der Freigeist) é a marca de sua diferenciação dos ―livres-pensadores‖
(Fredenker). De acordo com Nietzsche, o espírito livre é um homem de gosto
elevado, diverso do gosto do grande número, das massas, da multidão. O conceito
livres-pensadores, os seguidores das ideias modernas, identifica-se com o indivíduo
de gosto médio, mais precisamente com o que Nietzsche denomina de
122
Cf. NIETZSCHE, 2000, p. 07.
108
―niveladores‖. Estes assumiram compromisso com o dogmatismo presente na
metafísica clássica. O sentido expresso das suas forças é remanejado para a
edificação e a manutenção do gosto democrático pelo fato de essas forças se
encontrarem agrilhoadas ao cristianismo. Os livres-pensadores são hóspedes das
ideais modernas, almejam a felicidade generalizada no rebanho autônomo e se
contentam com o bem-estar utilitário e a ausência de conflitos. Nietzsche
complementa:
Em todos os países da Europa, e também na América, existe atualmente quem abuse desse nome, uma espécie bem limitada de espíritos, gente prisioneira e agrilhoada, que quer mais ou menos o oposto daquilo que está em nosso intento e nosso instinto – sem falar que, em relação aos novos filósofos que surgem, eles com certeza serão portas fechadas e janelas travadas. Em suma, e lamentavelmente, eles são niveladores, esses falsamente chamados ―espíritos livres‖ – escravos eloquentes e folhetinescos do gosto democrático e suas ―ideias modernas‖; ... com que ao menos evitamos ser confudidos com outros: somos algo diverso de ―libres penseurs‖, ―liberi pensatori‖, ―Freidenker‖ [livres-pensadores], ou
como quer que se chamem esses bravos defensores das ―ideias modernas‖ (NIETZSCHE, 2005, p. 45-46).
A imagem do tipo forte mais vinculada é a do ―super-homem‖, que aparece,
na obra Assim falou Zaratustra, como aquele que sabe que Deus morreu, quer dizer,
aquele que sabe que o idealismo chegou ao fim. De acordo com Oliveira Jr. (2004,
p. 158), cabe ao homem trilhar o caminho da autossuperação, tomando consciência
de que, não havendo mais uma autoridade absoluta, divina, que o guie, ele mesmo
deve escolher seu próprio caminho. Assim, com o advento da morte de Deus123,
resta aos homens dedicação à terra. De outro modo, não havendo outra vida, outro
mundo, são possíveis, então, outros homens, que precisam afirmar a existência,
superando-a constantemente, em uma dinâmica incessante.
Assim, o super-homem é um tipo transgressor e destruidor de valores
instituídos. O que lhe interessa, nesse movimento, é a criação de valores como
condição para superação constante de si. De acordo com Oliveira Jr.:
123
A morte de Deus também pode representar um risco para o homem, pois surge assim o perigo do niilismo, da negação não apenas dos valores divinos e metafísicos, mas também a negação da existência, das esperanças terrenas. O sentimento nadificante, instaurado pela ausência de Deus, pode gerar a sensação de que nada vale a pena e de que tudo é em vão. Mas essa sensação pertence aos últimos homens e, portanto, a homens cujas forças reativas prevalecem (Cf. DELEUZE, 1965, p. 26)
109
Superando as projeções no além-mundo e fixando o sentido na vida terrena, o super-homem aparece na viragem no pensamento de Assim falou Zaratustra, demarcado pela transição do segundo período – no qual predominam a crítica e a suspeita – para o terceiro período, no qual a sua filosofia atinge o zênite, vertendo-se em afirmativa e positiva: ―o super-homem é um afirmador trágico, pois acolhe todas as dores, sem rejeitar nada, sem tentar mudar nenhuma experiência vivida, diz um ‗sim‘ dionisíaco ao universo, a ele se entregando sem limites‖. A afirmação incondicional da existência caracteriza assim o super-homem por seu posicionamento trágico diante da existência, ―querendo a vida, a cada momento, sem reservas, integralmente, incondicionalmente, por toda a eternidade, sendo forte ou pleno a ponto de afirmar até o mais árduo sofrimento‖ (OLIVEIRA Jr., 2004, p. 175).
Essa caracterização da tipologia dos fortes e dos fracos é relevante para
compreender as articulações e rupturas no pensamento de Nietzsche durante seu
amadurecimento conceitual. Em cada traço dessa análise, conseguimos
compreender e destacar o tipo de homem decadente, tributário das ideias modernas
(tipo fraco) e do tipo que supera e reinventa essa condição (tipo forte). Importante
destacar ainda que Nietzsche não pretende exigir a existência de um tipo único, não
quer eliminar a multiplicidade de tipos. Sua intenção, talvez, seja apontar um
potencial, uma disposição, que tem a humanidade futura.
Como nossa obra de análise é Além do bem e do mal, a imagem do tipo
forte que nela aparece é a do filósofo do futuro, o filósofo-legislador, espírito livre.
Esse será nosso alvo de caracterização a partir daqui, pois, como vimos, há uma
relação entre os tipos fortes até chegar ao super-homem e, portanto, ao filósofo-
legislador. A esse respeito, Nietzsche enfatiza:
Mas os autênticos filósofos são comandantes e legisladores: eles dizem ―assim deve ser!‖, eles determinam o para onde? e para quê? do ser humano, e nisso têm a seu dispor o trabalho prévio de todos os trabalhadores filosóficos, de todos os subjugadores do passado – estendem a mão criadora para o futuro, e tudo que é e foi torna-se para eles um meio, um instrumento, um martelo. Seu ―conhecer‖ é criar é legislar, sua vontade de verdade é – vontade de potência. – Existem hoje tais filósofos? Já existiram tais filósofos? Não têm que existir tais filósofos? (NIETZSCHE, 2005, p. 106).
Nietzsche destaca que o filósofo é um legislador, um inventor de valores que
planejam uma nova história. Nesse sentido, o filósofo-legislador é tomado por uma
madura liberdade do espírito. O ímpeto ou impulso que o conduz é o autodomínio e
a disciplina. Esse refinamento do espírito é endossado pela paixão de experienciar e
110
se aventurar-se numa sensação de curiosidade, inquietude. Nessa aventura é
permitida, diz Nietzsche, a construção de modos de pensar numerosos e contrários
ao período de convalescença que marcou o domínio da moral cristã e o idealismo
metafísico124.
O assenhoramento de si passa pelo domínio de suas próprias virtudes. O
que há em cada valoração é do domínio da perspectiva, dos deslocamentos, das
distorções que a história pontua como sendo a justificação da justiça. O que refina a
valoração é o grau de injustiça que se perde nas dobras do tempo e que é
indissociável da própria vida. Em nome da preservação de si, é despedaçado aquilo
que é capaz de superar a si mesmo. A livre vontade125evocada pela moral cristã e
pelo idealismo metafísico é, talvez, a responsável pelo apequenamento e pela
justificação de que o que existe é da ordem do absoluto, do imutável, e alimenta a
crença de que os valores são transportados pela história com as rodas da justiça e
não pelo enfrentamento entre o mais elevado, capaz de autossuperação através de
suas forças plásticas126 e, o mais estreito, capaz de desenvolver a vida ao mínimo.
Desenvolver ao mínimo deve ser entendido como incapaz de autodomínio e
disciplina e, porventura, capaz de compactuar com o domínio da moral sobre a vida
e não ao contrário.
Na tentativa de manter-se fiel ao seu impulso de ouvir a si mesmo, Nietzsche
supõe que os problemas filosóficos das ideias modernas, em todos os seus
aspectos, estão vinculados à tradição metafísica que aponta uma origem miraculosa
para as coisas que são algo humano, demasiado humano. O espírito livre e
legislador utilizam o mais novo método, a filosofia histórica127, que mais tarde
assumirá notoriamente o escopo de uma genealogia, como mostramos
anteriormente. Esse método, mais tarde erguido pelo filósofo-legislador, parte da
ponderação diante da oposição de valores. O próprio Nietzsche explica suas
inquietações:
124
Cf. NIETZSCHE, 2000, p. 10-11. 125
Ibid., p. 10. 126
Para Nietzsche, força plástica é a capacidade de crescer por si mesmo, de transformar e assimilar o passado e o heterogêneo, de ―cicatrizar suas feridas, de reparar suas perdas, de reconstruir as formas destruídas‖. Quer dizer, é a capacidade de um homem, de uma nação, de uma civilização para assimilar o passado e encontrar em si a energia necessária para crescer, agir e criar (Cf. DIAS, 1991, p.61). 127
Cf. NIETZSCHE, 2000, p. 15.
111
como pode algo se originar de seu oposto, por exemplo, o racional do irracional, o sensível do morto, o lógico do ilógico, a contemplação desinteressada do desejo cobiçoso, a vida para o próximo do egoísmo, a verdade dos erros? Até o momento a filosofia metafísica superou essa dificuldade negando a gênese de um a partir do outro, e supondo para as coisas de mais alto valor uma origem miraculosa, diretamente do Âmago e da essência da ―coisa em si‖. Já a filosofia histórica, que não se pode mais conceber como distinta da ciência natural, o mais novo dos métodos filosóficos, constatou, em certos casos (e provavelmente chegará ao mesmo resultado em todos eles), que não há opostos, salvo no exagero habitual da concepção popular ou metafísica, e que na base dessa contraposição está um erro da razão (NIETZSCHE, 2000, p. 15).
Quando menciona a ciência histórica ou a filosofia histórica equiparada às
ciências da natureza, como por exemplo a Química, visa direcionar a questão do
método da busca pelo momento no qual surgem, emergem as coisas. É nesse
sentido que, ao escutar a história ao invés de crer no hábito metafísico de opor as
coisas, o filósofo-legislador percebe que, atrás das coisas, há algo completamente
diferente, não uma origem miraculosa, mas algo datado, inventado, criado humano,
demasiadamente humano. As coisas, nesse sentido, são sem essência ou pelo
menos o que se chama ―essência‖ é algo construído peça por peça, a partir da
experimentação das grandes e pequenas relações da cultura e da sociedade128,
próprias das relações de que a humanidade faz questão de se afastar para esquecer
suas origens mais vis ou mesmo desprezadas.
O que o filósofo-legislador precisa realizar é o afastamento, diz Nietzsche,
do defeito hereditário dos filósofos129. Os filósofos das ideias modernas possuem em
comum o defeito de acreditarem em verdades absolutas. A partir de suas intuições
involuntárias, imaginam que o homem possui uma essência fundamental e
intemporal. Em seguida, transformam essas intuições em uma aeterna veritas. Os
conceitos criados por esses filósofos partem do homem contemporâneo a eles e
tudo aquilo que declaram e afirmam sobre este é uma espécie de testemunho a
partir de um espaço e um tempo suficientemente limitados, somente a partir de seu
entorno, sem a devida distância histórica. Os filósofos das ideias modernas
configuram o homem a partir de pressões da religião cristã e de eventos políticos
que procuram fixar o entendimento de onde se deve partir.
128
Ibid. p. 15. 129
Ibid. p. 16.
112
O defeito hereditário dos filósofos das ideias modernas consiste em que
estes não percebem ou não querem perceber que o homem veio a ser. O ato de
conhecer veio a ser. De acordo com Nietzsche, os filósofos das ideias modernas
experimentam a sensação de que a cognição identifica e se adéqua à criação do
mundo. Não se apercebem de que o mundo é desde sempre e de que a cognição se
tornou, veio a ser, como tentativa de orquestração e organização da vida.
Ao se afastar do defeito hereditário dos filósofos, o filósofo-legislador se
afasta da compreensão de que o homem dos últimos quatro séculos é um homem
eterno, para o qual se dirigem teleologicamente todas as coisas do mundo, desde
um início miraculoso. Munidos dessa compreensão, o filósofo-legislador intui e
percebe que tudo veio a ser130, forma a ideia de que não existem fatos eternos, do
mesmo modo como não existem verdades eternas. Daí a importância do filosofar
histórico.
De acordo com Nietzsche, o filósofo-legislador é movido por um refinamento
interior131 que, alimentado pela abundância de vida, concede aos homens o cultivo
vasto de seu espírito, de modo a torná-los independentes e capazes de curar suas
enfermidades e decadência. O cultivo do refinamento interior, para o filósofo-
legislador, pode possibilitar a reconstrução e a restauração por si próprias das
formas adoecidas, anêmicas e destruídas pela homogeneização da humanidade dos
últimos dois milênios.
É por isso que Nietzsche afirma que uma cultura superior132 é marcada por
uma afeição por verdades despretensiosas. Através de um método rigoroso, a
genealogia, preza-se o alcance de pequenas e provisórias perspectivas distanciadas
de tempos e homens metafísicos. Para construir ou restaurar uma cultura superior, é
necessário que o filósofo-legislador apegue-se ao conhecimento com coragem,
simplicidade e moderação, ao contrário da cultura atual, cultura decadente que, com
seu olhar inteligente, aprisiona os homens e tece as formas e símbolos do jogo de
caracteres que se pretendem universalmente verdadeiros.
130
Ibidem. 131
Ibid. p. 15. 132
Ibid. p. 17.
113
O filósofo-legislador é um filósofo de espírito livre e é diametralmente oposto
ao espírito cativo133. Este é tributário das ideias modernas, principalmente da moral
cristã que predomina na Europa de até então. Seus juízos e valorações são oriundos
do hábito e do esquecimento. Os espíritos cativos são regra na atualidade, dotados
de uma vontade cansada, aprisionados e suprimidos na sua ação negativa,
abandonando os aspectos terrenos e vitais para se lançar a uma valoração supra-
histórica e que nega o mundo em sua concretude.
Por outro lado, o filósofo-legislador de espírito livre é a exceção, pensa e age
de modo diverso dos juízos predominantes em seu tempo, abandona o grande
rebanho e funda sua singularidade, sua autenticidade. Ao passo que, para o espírito
cativo, o que importa é a posse da verdade, o filósofo-legislador de espírito livre
estipula como preocupação a indagação sobre o impulso e o que impele nossa
busca por ela. Desse modo, mais do que domar e reter a verdade, o filósofo-
legislador de espírito livre absorve-se de preocupação intensa sobre o ―como‖ foi
achado o caminho até ela.
A concepção que Nietzsche possui do filósofo-legislador, de seus aspectos
mais relacionados à ciência, precisa ser mais estudada. De acordo com Nietzsche, a
ciência é produzida pelo erudito, e este é, na modernidade, um difamador do
filósofo-legislador. O erudito acusa o filósofo-legislador de não considerar, na
observação metódica, a especificação e a minúcia da abordagem dos fatos. Faltam
ao filósofo-legislador, afirmam os eruditos, a rapidez da investigação e a providência
dos fatos.
Por outra perspectiva, a engenhosidade do filósofo-legislador questiona
exatamente esses aspectos que os eruditos apresentam como ausência na sua
produção cognitiva. O filósofo-legislador levanta primeiramente a questão da
opressão do tempo na produção erudita do conhecimento. De acordo com
Nietzsche, o erudito sofre de constante inexistência de tempo e seu espírito se
encontra permanentemente tenso e intranquilo para pensar. É nesse momento de
intranquilidade do espírito que as criações e produções de conhecimentos diversos
são recusadas ou até mesmo odiadas. Não há uma ponderação moderada, simples,
na produção do conhecimento. O erudito é quase uma caricatura daquele indivíduo
133
Ibid. p. 157.
114
que está sempre correndo, atrasado e com uma única certeza: a de que é sempre
tarde demais.
O descrédito do erudito em relação ao filósofo-legislador é uma tentativa de
deslocar sua atuação na criação e na produção da cultura superior. Alastram-se
progressivamente os parâmetros de edificação de uma cultura incapaz de criar
―modelos‖ a partir de si própria. Uma cultura superior, voltada para a educação e
para a formação de indivíduos capazes de superação constante de si e da criação
dinâmica de valores, sucumbe ante a decadência promovida pela cultura decadente
da modernidade. A tarefa do filósofo-legislador é orientar a tropa de cientistas e
eruditos, ―mostrando-lhes os caminhos e objetivos da cultura‖134.
Em A gaia ciência, o filósofo-legislador aparece como um ―grande liberador‖.
Nietzsche, após realizar o diagnóstico da vida moderna, afirma que não se desiludiu
de viver. O grande liberador apresentou-se diante de Nietzsche como um
pensamento afirmativo da vida. Afirmar a vida a partir das experiências de
descobertas do conhecimento. Experiências que não são da ordem de um ―dever
ser‖, ao fazer de um conhecedor, um profissional especializado em um
conhecimento distanciado da vitalidade da existência. Nietzsche fala do
conhecimento mesmo, uma sintonia vibrante entre a vida e o ato de conhecer, uma
exploração intuitiva e alegre. Ele entende o conhecimento como busca do
fortalecimento e da expansão do homem. Esse conhecimento pode ser alcançado
não através de metodologias frias. Ele provém talvez de uma experiência artística,
ou melhor, de uma experiência de vida na qual prevalecem o riso, os jogos, a dança
e o viver bem sem abandonar os grandes desdobramentos da existência, os
espaços de disputa. Assim Nietzsche se pronuncia:
Não, a vida não me desiludiu! A cada ano que passa eu a sinto mais verdadeira, mais desejável e misteriosa – desde aquele dia em que veio a mim o grande liberador, o pensamento de que a vida poderia ser uma experiência de quem busca conhecer – e não um dever, uma fatalidade, uma trapaça! – E o conhecimento mesmo: para outros pode ser outra coisa, um leito de repouso, por exemplo, ou a via para esse leito, ou uma distração, ou um ócio – para mim ele é um mundo de perigos e vitórias, no qual também os sentimentos heróicos têm seus locais de dança e de jogos. “A vida como meio de conhecimento” - com este princípio no coração pode-se não apenas viver valentemente, mas até viver e rir alegremente! E quem saberá
134
Ibid., p. 191
115
rir e viver bem, se não entender primeiramente da guerra e da vitória? (NIETZSCHE, 2001, p. 215).
O homem moderno, condicionado pelo cristianismo, ainda necessita da
metafísica clássica com a mesma força que precisa da exigência de certeza que se
espalha pela disseminação do modo de pensar ―científico-positivista‖. De acordo
com Nietzsche, isso não constitui necessariamente uma força, mas precisamente é a
confirmação do ―instinto de fraqueza‖135. Este não é criador de valores, nem sequer
expande as potencialidades humanas, pois seu traço marcante é tornar suportável e
conservar a existência enferma, decadente. O filósofo-legislador é guiado por uma
soberania e por uma força que Nietzsche chama ―liberdade da vontade‖. O
comando, a criação de valores, o exame crítico, a independência de um deus, um
príncipe, uma classe, um confessor, um dogma, uma consciência partidária são
atributos dessa liberdade da vontade. O que é necessário explicitar é a diferença
entre liberdade da vontade e vontade livre. De acordo com Nietzsche, a vontade livre
é a típica forma estimulada pelas ideais modernas. O cristianismo é o maior
disseminador dessa categoria. Por vontade livre, Nietzsche compreende o
―adoecimento da vontade‖136, um ―tu deves‖ ancorado na busca de uma ―verdadeira
verdade‖. A vontade livre se alastra ―como uma espécie de hipnotização de todo o
sistema sensório-intelectual‖137. Sobre isso, Nietzsche acrescenta:
Quando uma pessoa chega à convicção fundamental de que tem de ser comandada, torna-se ―crente‖; inversamente, pode-se imaginar um prazer e força na autodeterminação, uma liberdade da vontade, em que um espírito se despede de toda crença, todo desejo de certeza, treinado que é em se equilibrar sobre tênues cordas e possibilidades e em dançar até mesmo à beira de abismos (NIETZSCHE, 2001, p. 241).
Seguindo o rastro da moral cristã, os modernos se posicionam contrários à
expansão da vida e ao transbordamento de suas forças. A moral, ao impor juízos
universais contrários à manifestação da vida, estimula a mediocrização humana. A
força que é peculiar ao que possui vida é inibida através da submissão às leis e
normas supostamente válidas universalmente. O que é singular no homem
enfraquece e declina, pois a moral atrelada à ideia de um ―bem‖ abstrato e
135
Cf. NIETZSCHE, 2001, p. 240. 136
Ibid., p. 241. 137
Ibidem.
116
idealizado se contrapõe ao desenvolvimento fisiológico dos homens. Então, na
tentativa de melhorar os homens, a moral universal e absoluta enfraquece os
indivíduos a partir do estado de paralisia que instaura nos meandros da vida. A esse
respeito, Fernanda Bulhões afirma:
A moral, fundamentada num "Bem" abstrato e ideal, que está em desacordo com as atividades instintivas, que são concretas e singulares, não serve para avaliar o que vive, não tanto por ser uma falsa avaliação, mas por ser prejudicial à saúde. Em suma, a moral, sempre na tentativa de tornar o homem "melhor", acaba por enfraquecê-lo, já que valores universais e absolutos tendem a paralisar a circulação da vida - e disso nunca podemos nos esquecer: a vida circula (BULHÕES, 1996, p. 107).
Os filósofos-legisladores, também conhecido como ―tentadores‖, ―filósofos do
futuro‖, ―homens do experimento‖138 criam e inventam sua filosofia a partir de
experimentos ousados, sedutores. O gosto elevado desses filósofos impede sua
aproximação aos dogmas da metafísica tradicional. Suas ―verdades‖ não são
impostas ao gosto médio, pois sentiriam sua dignidade pessoal ferida ao ver suas
verdades sendo generalizadas. O filósofo-legislador nutre a expectativa de que
todos são capazes de criar e inventar modos de vida singulares. O filósofo-legislador
chama a atenção para o mau gosto de querer estar de acordo com ―maiorias‖. De
acordo com esse tipo de filósofo, o ―bem comum‖ é algo idealizado. Além do mais, o
que é comum sempre será algo vulgar, de pouco valor139.
Os filósofos do futuro, filósofos-legisladores, ao invés de receberem a
alcunha de ―irracionalistas‖ ou ―imorais‖ (no sentido do vulgo), são considerados, na
filosofia de Nietzsche, filósofos ―além do bem e do mal‖, contrários às ideias
modernas e ao cristianismo. Para eles, a filosofia é uma atividade extra-moral. De
acordo com Fernanda Bulhões,
Esta nova espécie de filósofos, que Nietzsche vê surgindo, são amigos do perigo, da incerteza tanto quanto são amigos do mundo "fugaz, enganador, sedutor, mesquinho mundo, ... turbilhão de insânia e cobiça". Esses "filósofos do futuro" não acreditam na existência de uma verdade em si, mas admitem que os homens não poderiam viver sem suas verdades, sem suas crenças, suas ficções lógicas, já que "tudo o que é profundo ama a máscara‖. Eles
138
Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 29-46. 139
Ibid., p. 44.
117
consideram que ―... tudo o que há de mau, terrível, tirânico, tudo o que há de animal de rapina e de serpente no homem serve tão bem à elevação da espécie homem quanto seu contrário...‖. Isto mostra a "imoralidade", quer dizer, a não-moralidade, desses novos filósofos. Mas, o termo que melhor expressa o lugar que ocupam é "além do bem e do mal". Os filósofos do futuro são estes que levam a filosofia para fora do terreno da moral, fazendo do pensar filosófico um ato extra-moral (BULHÕES, 1996, p.109).
Então, o filósofo-legislador é como o filósofo espírito livre, o ―andarilho‖
descrito em Humano, demasiado humano. O filósofo-legislador é aquele que alcança
a ―liberdade da razão‖140, entende os princípios racionais pertencendo ao caráter de
necessidade da existência humana, mas não confere à razão um estandarte, um
local privilegiado nos contornos da vida. O espírito livre desnuda, de modo loquaz, a
ideia de que o mundo, a vida humana, os valores, tendem a uma meta teleológica.
Ao contrário, o filósofo-legislador ironiza a ideia de fim afirmando: se algo tendesse a
algum fim supra-histórico, metafísico, esse já deveria ter sido alcançado. Entretanto,
ele observará atentamente o que decorre no mundo e da existência humana. Por
isso, não atrela sua perspectiva a nada em particular, mas está atento a todo
movimento e dinâmica que a vida pode oferecer, sentindo alegria com as mudanças.
Desse modo, enfim, o conceito de filósofo-legislador requer dos homens
uma busca diária e bastante experimentada de atenta escuta aos apelos do corpo,
da capacidade de sonhar, dos desejos, dos anseios, das necessidades de
convivência com os percalços, malogros, asperezas, transformações, restrições e
mesmo impossibilidades que surgem na lida com a existência, bem como com as
dores que essas constantes mudanças e superações provocam. Tudo isso é algo
que só pode ser realizado por cada homem em sua singularidade, circunscrito em
seu contexto mais próximo ou mais distante, culminando em um modo de vida
autêntico, peculiar, autônomo e criativo, bastante diferente do modo de proceder das
sociedades de massa, dos animais de rebanho, dos espíritos que negaram a si
mesmos e à sua liberdade.
140
Cf. NIETZSCHE, 2000, p. 306.
118
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa proposta foi analisar as críticas que Nietzsche direciona à
modernidade. Nosso objetivo foi reconstituir o exame que o filósofo alemão realizou
das ideias de verdade, moral e democracia. Seguimos suas ponderações ao longo
de seu trajeto de apreciação das ideias modernas: o que em nós aspira à verdade?
Por que e para que a moral-cristã? O que caracteriza essa modernidade? Seria o
apelo ao gosto democrático?
Para Nietzsche, essas questões foram postas como desafios, e a grandeza
delas só pode ser alcançada por uma filosofia do depois de amanhã. Filosofia de
homens do porvir: filósofos-legisladores. Estes manifestam certas forças de vida,
que são mutiladas em outros por causa das noções parciais que a metafísica
tradicional e a moral cristã oferecem de nós. Em meio à hipocrisia, à debilidade da
consciência na burguesia europeia do século XIX, ao humanitarismo malicioso com
que procuravam adormecer o sentimento de culpa, Nietzsche assume, por vezes, o
modelo de um amante da justiça. Sua ironia feroz, ao afirmar virtudes de dureza,
levou, ao longo do século XX, a interpretações de suas ideias como celebração de
um tipo de homem que ele fez questão de denominar de escravos. O filósofo-
legislador expande plenamente sua singularidade humana, cuja dureza é, no fundo,
amor pela existência, desejo incessante pela construção de homens fortes, amantes
da liberdade e capazes de criação de valores que valorizem, de fato, a vida.
As condições de surgimento desses homens do porvir, filósofos-legisladores,
não podem e não devem ser compreendidas a partir de um desentendimento. Serão
esses filósofos do futuro livres-pensadores? O que nos interessa com essa questão
é demarcar a confusão que advém da própria modernidade em associar aos
filósofos modernos a condição de espíritos livres. Quando se faz ver, a atividade dos
filósofos modernos se reduz ao que o filósofo alemão chama de livre-pensadores. O
próprio Nietzsche, na tentativa de desfazer esse mal-entendido, assume a posição
de mensageiro, porta-voz do filósofo-legislador. De acordo com ele, sendo seu
precursor, faz-se necessário desvanecer todo equívoco e preconceito em torno
dessa expressão. Há quem faça uso desmedido dessa expressão, ―uma espécie
119
bem limitada de espíritos‖141. O que muitas vezes é expresso por essa espécie de
homens, diz Nietzsche, é o oposto do que realmente seria próprio daquele espírito,
uma vez que esses novos filósofos encontrarão muita dureza e incompreensão da
parte dos espíritos modernos.
O diálogo que Nietzsche trava com a modernidade desfaz o engano em
torno do conceito de filósofo-legislador e assinala os contornos precisos entre os
filósofos do futuro e aqueles das ideias modernas. Estes recebem do filósofo alemão
a alcunha de niveladores, livres-pensadores. Em direção oposta ao filósofo-
legislador, os niveladores estão convencidos do gosto democrático de suas ideias
modernas. O que lhes convence é a eloquência com que as valorações são
amplamente divulgadas como verdadeiras.
Parece que os niveladores, no auge do enfraquecimento e da mediocrização
de suas forças, querem alcançar é a felicidade generalizada e homogênea do
rebanho. Essa felicidade aspira, tomada de furor, à proteção à propriedade, à
ausência de qualquer perigo, bem-estar e à facilidade em tudo. O que guia essa
aspiração do rebanho é a doutrina da igualdade de direitos e compaixão pelos que
sofrem. A doutrina da igualdade de direitos e compaixão pelos que sofrem sempre
foi afirmada com intenções opostas, de modo idealizado e distante das realizações
humanas.
Diametralmente oposto à moderna ideologia do rebanho, Nietzsche afirma
sua aversão à decadência moderna, elevando como método a genealogia. ―Nós os
avessos, que abrimos os olhos e a consciência para a questão de onde e de que
modo, até hoje, a planta ‗homem‘ cresceu mais vigorosamente às alturas‖142.
O que há de realizável pelo humano é a sua condição de elevação ou não
da espécie e de superação singular de si. Durante esse percurso de elevação ou
não, é impossível excluir aquilo que ele cria demasiadamente humano. Daí o modo
como o humano constrói sua existência estar relacionado inexoravelmente à
afirmação ou à negação de sua vitalidade. Por isso, a igualdade de direitos e a
compaixão pelos que sofrem não podem ser afirmadas como aspirações
141
Cf. NIETZSCHE, 2005, p. 44. 142
Ibid., p. 45.
120
idealizadas. Nietzsche sempre estimula essa inquietação de que a modernidade se
desviou do seu projeto, idealizando aspirações ao invés de afirmá-las como
elevação da espécie humana. Nesse sentido, há uma denúncia na filosofia de
Nietzsche que precisa soar como algo revelador da própria potência humana e não
como aparentemente desumano.
A força da invenção, dissimulação do espírito humano, afirma sua vitalidade
até o alargamento, até transbordar em vontade de potência (Wille zur Macht). Daí, o
filósofo-legislador de espírito livre ser o antípoda dessa aspiração de rebanho, pois
as forças da invenção, a vontade de potência, não excluem nenhum atributo humano
em detrimento de uma igualdade de fachada. Ao contrário, é próprio ou atributo do
humano ser duro, forte, principalmente consigo mesmo.
Ao realizar a crítica da democracia, Nietzsche antecipa, por assim dizer, uma
das grandes questões do nosso tempo, a saber: o problema da representatividade
política. Tornou-se lugar-comum a reflexão da democracia representativa como
única alternativa válida para a organização do lócus social e político. Todavia, ocorre
que os sistemas que denominamos democrático seriam, no fundo, sistemas
autocráticos variados e restritos, ou melhor, oligarquias liberais. Nesse sentido, a
democracia demanda apenas a alternância no poder de grupos oligárquicos. Basta
observar, a olho nu, a manipulação da opinião pública durante a realização do
processo democrático. No lugar da argumentação fundamentada que poderia exigir
dos cidadãos a utilização de sua capacidade de análise e seu desejo por autonomia,
estamos imersos nas vultosas campanhas que prezam pela propaganda eleitoral.
Essa realidade, por sua vez, reprime o desenvolvimento da autonomia e das
potencialidades singulares, devido à aplicação esmagadora do poder econômico,
disfarçado de liberdade civil, com um único objetivo: domar as liberdades políticas
de participação dos homens.
O efeito de fachada da participação e de decisão dos cidadãos somente
legitima a existência de elites oligárquicas que concorrem entre si para ocupar o
topos do poder. A fachada se consolida quando a participação e a decisão são
limitadas pelo acesso a ―comícios eleitorais‖, ―passeatas‖, ―carreatas‖, ―levantar o
braço na assembleia‖, que aparecem como única forma de ação política, quando, de
fato, somente garantem estatuto de simulacro, ficção, às ações efetivas de decidir e
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participar dos rumos da organização social, alimentando, dessa forma, a fraqueza e
a domesticação dos homens.
A ocorrência dessa inversão da prática democrática, sem dúvida, é motivada
pelo descumprimento das promessas que a própria democracia anunciou. Quando a
promessa da ―soberania popular‖ é travada pela burocracia pública; quando o sonho
de autonomia e protagonismo dos homens na sociedade pluralista foi substituído por
grupos, organizações, partidos, comissões; quando o cidadão é tratado como
incompetente frente às necessidades técnicas acessíveis tão-só aos especialistas;
quando a cogestão democrática é contrastada pela apatia e pelo conformismo
generalizado fomentados pelos meios de comunicação de massa; quando não se
consegue erradicar o poder invisível das grandes corporações que comandam os
estados; quando tudo isso assume a esfera da atuação efetiva, cria-se uma ficção
de unidade do poder de grupos articulados e das decisões ―tomadas por todos‖. Isso
caracteriza a ficção democrática que produz efeitos de verdade na consolidação da
participação e da autonomia dos homens.
Talvez a filosofia de Nietzsche seja uma provocação à pretensa validade
universal e incontestável da democracia ocidental. Sua obra aponta a incapacidade
de os defensores da democracia pensarem além dela mesma, além da democracia
de partidos e dos acordos espúrios realizados como máxima racionalização nos
púlpitos mais diversos espalhados em todas as sociedades de homens. Nietzsche
questiona o sistema democrático e todas as suas formas de governo (liberal,
socialista, anarquista), talvez pela ausência de imaginação política, pelo medo de
afirmar o desconhecido, pelo medo dos pensamentos ainda não expressos, pelo
medo de organizações sociais ainda não experimentadas.
Nesse sentido, a exigência de Nietzsche com relação aos filósofos é de que
estes se coloquem além do bem e do mal. Essa exigência advém de sua tese de
que não há absolutamente fatos morais. O que ocorre com o julgamento moral é que
ele mesmo é guiado pelo julgamento religioso e, portanto, é apenas uma
interpretação dos fatos. E quando analisamos essa interpretação, encontramos a
linguagem, signos arbitrários que nos revelam valiosas realidades e diversidade das
culturas e potencialidades singulares, que não conseguem compreender a si
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próprios. Por isso, a moral cristã, instituindo suas verdades, apenas tira proveito de
outras e profundas dimensões da humanidade.
Dessa forma, Nietzsche não pretende ―melhorar‖ a humanidade. Para ele,
melhorar é o disfarce para moralizar. Na tentativa de melhorar a humanidade, a
moral cristã ―amansa‖ o homem, retira-lhe a capacidade de se expandir. Ao invés de
melhorado, o homem é enfraquecido, torna-se um ―pecador‖, adoece de si mesmo,
repugna os impulsos à vida. Enfim, os meios de tornar a humanidade melhor através
da moral foram, para Nietzsche, meios fundamentalmente imorais, à medida que
promove a domesticação dos homens inibindo suas forças e impulsos.
Em sua obra, principalmente em Além do bem e do mal, Nietzsche afirma
que o homem é mais complexo do que supõem as normas e as convenções. Daí
nossa concordância com a afirmação de Antonio Candido (1991, p.190), de que a
obra de Nietzsche nos pretende sacudir, arrancar deste torpor, mostrando as
maneiras pelas quais negamos cada vez mais a nossa humanidade, submetendo-
nos em vez de nos afirmarmos. Encarada assim, a exaltação do homem vital e sem
preconceitos vale, de um lado, como retificação do humanitarismo frequentemente
ingênuo do século XIX; de outro, como reivindicação da complexidade do homem,
contra certas versões racionalistas e simplificadoras.
Estes contornos da crítica de Nietzsche à modernidade, e precisamente da
crítica à democracia, revelam que o filósofo-legislador pode se liberar das ideias
modernas dos livres-pensadores e ser impelido ao experimento, a outros modos de
organização da vida, do ethos, outros modos de sensibilidade que os novos filósofos
do porvir apontam no seu surgimento. A própria educação atual, o cultivo do
humano, com sua formação redutora e repleta de especialidades, pode se
desvincular de seu objetivo de proporcionar uma inserção rápida dos jovens na vida
laborativa. Podemos, a partir das ressonâncias do pensamento de Nietzsche,
abandonar a tendência de formar indivíduos conformistas e estereotipados, que
personificam uma ausência profunda da capacidade de criar. Portanto, a filosofia
ensejada pelo filósofo-legislador pode promover o cultivo de indivíduos criadores dos
seus próprios valores, capazes de estabelecer para si seu próprio ―imperativo
categórico‖. Por isso, Nietzsche é fundamentalmente um eminente educador, pois
sua filosofia constitui-se de aulas de práticas libertadoras.
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