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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM OUTRAS VERDADES, MUITO EXTRAORDINÁRIAS, DO GRANDE SERTÃO NATAL/RN 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

OUTRAS VERDADES, MUITO EXTRAORDINÁRIAS, DO GRANDE SERTÃO

NATAL/RN

2010

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MARIA DO PERPÉTUO SOCORRO GUTERRES DE SOUSA

OUTRAS VERDADES, MUITO EXTRAORDINÁRIAS, DO GRANDE SERTÃO

Dissertação apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, como requisito parcial à obtenção do título de mestre na área de concentração de Literatura Comparada. ORIENTADOR: Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros

NATAL/RN

2010

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Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Sousa, Maria do Perpétuo Socorro Guterres de.

Outras verdades, muito extraordinárias, do grande sertão / Maria do Perpétuo Socorro Guterres de Sousa. – 2010.

99 f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) – Universidade

Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, 2010. Orientador: Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros,

1. Literatura comparada. 2. Grande Sertão: veredas – Guimarães Rosa. 3. Crítica literária. I. Falleiros, Marcos Falchero. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/BSE-CCHLA CDU 82.091

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PÁGINA DE APROVAÇÃO

A dissertação OUTRAS VERDADES, MUITO EXTRAORDINÁRIAS, DO GRANDE SERTÃO, apresentada por Maria do Perpétuo Socorro Guterres de Sousa, como parte dos quesitos necessários para a obtenção do grau de mestre, foi aprovada pela banca examinadora constituída pelo PPgEL – Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem do Departamento de Letras da UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Em 09 / 11 / 2010.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________ Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros

(Orientador – UFRN)

_____________________________________________

Profº. Drº. Manoel Freire Rodrigues (Examinador Externo – UERN Pau dos Ferros)

_____________________________________________ Prof ª. Dr ª. Ana Lúcia Barbosa Moraes

(Examinador Interno – UFRN)

_____________________________________________ Profº. Drº. Andrey Pereira de Oliveira

(Suplente – UFRN)

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Para Francisco, Leonardo e Ana Clara

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais e irmãos, que compartilharam comigo os primeiros livros.

Ao meu marido e aos meus filhos, pelo respeito a este trabalho.

Ao meu orientador, que me guiou com segurança pelas veredas do Grande sertão.

Ao PPGEL e à UFRN, pela oportunidade dessa travessia.

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Eu queria a muita movimentação, horas novas. Como os rios não dormem. O rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo.

(Guimarães Rosa)

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RESUMO

Este trabalho de dissertação examina a simbologia do trato diabólico no romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, em relação ao pacto fáustico, de Goethe, e assim tenta apreender como na linguagem rosiana estão dispostas as estratégias que põem em suspense a efetividade do acordo demoníaco e possibilitam, com intensividade poética, diversas interpretações, sobretudo no que diz respeito às angústias da condição humana. Para tanto, a pesquisa respalda-se na Simbologia Mítica, na Crítica Literária e em aspectos da Metafísica, além da análise de clássicos ensaios literários, na abordagem da estrutura da obra-prima de Rosa. Busca-se demonstrar que a incorporação da lenda de Fausto em Grande sertão reflete o mesmo desejo de felicidade que não se realiza por completo e, destarte, instiga a discussão sobre os limites à satisfação do ser humano. Desse modo, observa-se que a épica narrativa do ex-jagunço Riobaldo ao doutor da cidade especula sobre o homem humano, na aprendizagem contínua de sua travessia.

Palavras-chave: romance moderno; Guimarães Rosa; Grande sertão: veredas; pacto fáustico.

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ABSTRACT

This study explores the symbolism of evil way in the novel Grande sertão: veredas, by Guimarães Rosa, regarding faustian pact by Goethe, and so tries to understand how the rosiana language are present to the strategies which put in suspense the effectiveness of the demonic agreement and enable, with poetic intensity, different interpretations, especially as regards the anguish of the human condition. This research thus has drawn upon the Mythical Symbolism, in Literary Criticism and aspects of Metaphysics, in addition to analyzing classic literary essays in approaching of Rosa‘s masterpiece structure. It has also demonstrated that the incorporation of the Faust legend in Grande sertão reflects the same desire for happiness that is not done completely, and in this manner, instigates a discussion about the limits to the satisfaction of being human. Therefore, it has observed that epic narrative of ex-gangster Riobaldo to the doctor of city speculates on human man, in the continuous learning of his passing.

Key-words: modern novel; Guimarães Rosa; Grande sertão: veredas; faustian pact.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 09

1 FORMA LITERÁRIA – O ROMANCE..................................................................... 12

REGISTROS DE SABEDORIA..................................................................................... 12

LITERATURA E SOCIEDADE .................................................................................... 18

LÍRICO DISCURSO...................................................................................................... 23

2 RECURSOS MITOPOÉTICOS .................................................................................. 32

SIMBOLISMO .............................................................................................................. 32

MEMÓRIA CULTURAL .............................................................................................. 36

O ESPRAIAR POÉTICO............................................................................................... 42

3 O TEMA DO PACTO.................................................................................................. 47

ABSOLUTAS ESTRELAS............................................................................................ 47

MITO E GENERALIZAÇÕES LITERÁRIAS............................................................... 56

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................. 93

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 94

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INTRODUÇÃO

Como aluna de graduação em Letras tive a oportunidade de apreciar a ficção de

Guimarães Rosa que, sob o ponto de vista de Antonio Candido, transcende a ingenuidade do

regionalismo pitoresco e a denúncia das mazelas humanas do romance social ou regionalista

de 30, deixando transparecer uma adesão ao povo e às crenças populares e proporcionando

(por meio de uma linguagem requintada) uma dimensão universal aos enfoques regionalistas,

trazendo inovação ao campo literário.

Dessa forma, cresceu meu interesse em relação a Grande sertão: veredas, a fim de

especular um dos temas em destaque no romance: “O diabo existe e não existe?”. Portanto,

minha dissertação acadêmica procura refletir sobre a saga de Riobaldo no que diz respeito ao

episódio das Veredas Mortas e ao suposto pacto com o mal, que proporciona ao jagunço

Riobaldo, conforme esclarece Antonio Candido, “assimilar as potências demoníacas que

abrem caminho a todas as ousadias” (Candido, 1991, p. 303), pois a busca pela compreensão

das aspirações e limitações humanas, que em Grande sertão alegoricamente se expressa no

desejo de desvendar os enigmas da existência, é a questão constante que motiva este trabalho.

Para o pesquisador Willi Bolle, Grande sertão: veredas é uma glosa de mais de quinhentas

páginas sobre o acordo maligno, no que então se fundamenta toda a narração: “Atormentado

pela culpa, Riobaldo quer saber se de fato ele firmou um pacto com o Diabo, sendo que ele

não tem certeza de que o Cujo existe” (Bolle, 2004, p. 144). Assim, Riobaldo narra sua

história para um interlocutor, doutor da cidade, na esperança de que ele confirme que o Diabo

não existe.

O propósito de um minucioso estudo acerca da imagem do demônio no caminho de

Riobaldo conduz às características míticas das Veredas Mortas, ou como diz o poeta Pedro

Xisto, “o mito do encontro (no duplo significado de luta e de pacto) entre o homem

(Riobaldo, por exemplo) e o Espírito do Mal – um mito de todas as eras e de todas as terras”

(Xisto, 1991, p. 134-135). Sabe-se que o mito como realidade antropológica expressa o modo

de um povo interpretar suas origens e, conforme o pensador romeno Mircea Eliade, o mito

conta como qualquer coisa “foi efetuada, começou a ser” (Eliade, 1992, p. 85). Para Mircea

Eliade é o mito que revela como uma realidade veio à existência, seja a realidade total, um

fragmento dela ou o Cosmos.

Todavia, mito e literatura estão ligados, à medida que esta última tende a adaptar o

pensamento mítico às dimensões da vida humana, transformando-as em lendas, fábulas ou

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narrativas. Por conseguinte, Grande sertão: veredas, que guarda aspectos de cunho épico,

retrata uma concepção da experiência humana, configurada na trajetória de Riobaldo e

ilustrada pelos problemas metafísicos que o personagem tenta elucidar e que o levam a

recorrer ao ajuste diabólico. Desse modo, Riobaldo busca compreender e justificar a culpa de

ter consignado tal trato, o que pode ser visto como o fato que fundamenta as mudanças na

vida do personagem. O conceito de mito, segundo o etnólogo Eleazar Mielietinsky, estendeu-

se a generalizações literárias. Assim, examino a aventura de Riobaldo à luz do drama fáustico

de Goethe. Ademais, procuro analisar as diferenças no enfoque da simbologia fáustica dessas

respectivas obras, as quais podem ser evidenciadas sobretudo na cena das Veredas Mortas.

Especulando ideias é como Riobaldo rememora a travessia pelo grande sertão – fonte

e razão desse perscrutar – travessia que, como explica Walnice Nogueira Galvão, empregada

amiúde na narrativa, guarda metaforicamente o “sentido existencial do processo de mudança

que os percalços de uma vida implicam” (Galvão, 2001, p. 264). No destino de Riobaldo

essas mudanças intensificam-se após a passagem pelas “Veredas Tortas – veredas mortas”

(Rosa, 2006, p. 97), as quais, conforme retifica o narrador quase ao término da história são, na

verdade, Veredas Altas, marco das transformações do personagem que, no afã do poder,

alteia-se e passa a ter como seu pertencente “o brinquedo do mundo” (Rosa, 2006, p. 440). A

primeira referência às Veredas Tortas em Grande sertão, conforme observa Francis Utéza

(1994, p. 230), está grifada em itálico e com letras maiúsculas iniciais, enquanto que Veredas

Mortas mostra-se em caracteres normais e sem maiúsculas. Essas sutilezas que acumulam

incógnitas na escritura rosiana estimulam ainda mais esta análise.

Por tudo o que foi elencado, o pacto celebrado nas Veredas Mortas do Grande sertão

especifica-se como corpus desta pesquisa, em uma interação com o acordo fáustico, no

propósito de acrescentar aos estudos já existentes sobre o romance de Rosa um olhar

comparativo acerca dos aspectos luciferinos presentes no livro em relação ao Fausto, de

Goethe, no sentido de, nessa intertextualidade, aproximar os contextos dessas criações

literárias cujas temáticas procuram discutir a condição humana através da simbologia

codificada na forma mítica do pacto com o demônio.

O capítulo seguinte à Introdução aborda a Forma Literária – O Romance – abrangendo

três clássicos ensaios: “O narrador”, de Walter Benjamin, “O romance como epopeia

burguesa”, de George Lukács e “Palestra sobre lírica e sociedade” de Adorno, os quais são

trabalhados sob os respectivos títulos: Registros de Sabedoria, Literatura e Sociedade e Lírico

Discurso.

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No capítulo 2, Recursos Mitopoéticos, busco sobretudo ressaltar a análise do romance

de Rosa estipulada por Leonardo Arroyo, enfocando ainda o Simbolismo, a Memória Cultural

e o Espraiar Poético. Esse último é quase uma redundância, pois o romance em sua

completude é poesia.

Enfim as Absolutas Estrelas, bem como a abordagem sobre Mito e Generalizações

Literárias, correspondem ao capítulo final, O Tema do Pacto, dedicado à aspiração de

Riobaldo, à aspiração fáustica, à aspiração humana contida no enredo do romance rosiano,

que é tecido à semelhança de um poema helênico, no qual a terra e o homem espelham um

singular mundo sertanejo, em que “Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele...”

(Rosa, 2006, p. 42).

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1 FORMA LITERÁRIA – O ROMANCE

REGISTROS DE SABEDORIA

A peculiaridade formal da obra de Guimarães Rosa sempre provoca reflexões sobre a

natureza da narrativa. Para isso nada melhor que apreciar o célebre ensaio de Walter

Benjamin, “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, em relação à

preocupação com a função da memória como guardiã do passado evidenciada em Grande

sertão: veredas, pois apesar da contemporaneidade, a obra de Rosa traz a oralidade das

narrativas tradicionais. O texto de Benjamin, escrito em 1936, analisa o narrador através de

histórias de grandes narradores, com destaque para o escritor russo Nikolai Leskov, cujo

talento só foi reconhecido pelos críticos em seus últimos anos de vida. Benjamin evidencia,

no pós-guerra e em decorrência do desenvolvimento do capitalismo, que a experiência já não

é mais passada em forma de estórias, fato que compromete a narrativa. Isto ocorre

Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes. (Benjamin, 1993, p. 198)

O autor alerta que a experiência passada de pessoa a pessoa é tão importante porque é

a “fonte a que recorreram todos os narradores” (Benjamin, 1993, p. 198). Benjamin relata a

existência de dois grupos de narradores: o viajante (pelo deslocamento espacial) e o camponês

sedentário (através do deslocamento temporal), exemplificados respectivamente por Hebel e

Gotthelf e por Sielsfield e Gerstäcker, autores alemães que expressaram essencialmente tais

características. Segundo Benjamin, o declínio da experiência levou ao desaparecimento da

narrativa e, assegura o ensaísta, a rememoração se faz necessária como forma de resgatar

experiências comunicáveis por meio da arte de narrar.

Benjamin aborda a busca da tradição, relatando as viagens de Leskov pela Rússia.

Ressalta também a dimensão utilitária da narrativa, enfatizando que ela ensina regras para

viver melhor, tendo assim uma função instrutiva. Observa que “Aconselhar é menos

responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que

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está sendo narrada” (Benjamin, 1993, p. 200). A seguir, o filósofo questiona o advento do

romance como possível efeito histórico-formal. Expõe então as modificações na maneira de

contar, distinguindo o romance “de todas as outras formas de prosa” (Benjamin, 1993, p.

201). Benjamin expõe que o isolamento do romancista na sociedade burguesa é contraposto à

coletividade conferida pela situação de narrar. Mostra ainda a informação em oposição à

narrativa: a informação é explicativa, precisa e momentânea; a narrativa é ampla, provocando

subentendidos e diversas reflexões. Exemplifica esses dados com a história de Psammenit,

narrada por Heródoto, que relata a derrota do rei egípcio Psammenit, reduzido ao cativeiro

pelo rei persa Cambises, o qual, humilhando seu cativo,

Deu ordens para que Psammenit fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal dos persas. Organizou esse cortejo de modo que o prisioneiro pudesse ver sua filha degradada à condição de criada, indo ao poço com um jarro, para buscar água. Enquanto todos os egípcios se lamentavam com esse espetáculo, Psammenit ficou silencioso e imóvel, com os olhos no chão; e, quando logo em seguida viu seu filho, caminhando no cortejo para ser executado, continuou imóvel. Mas, quando viu um dos seus servidores, um velho miserável, na fila dos cativos, golpeou a cabeça com os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero. (Benjamin, 1993, p. 203-204)

Benjamin compara essa história a “[...] sementes de trigo que durante milhares de anos

ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas

forças germinativas”(Benjamin, 1993, p. 204), ou seja, a narrativa oral não tem um tempo

psicológico fixo e mesmo muito tempo depois é fonte de espanto e reflexão, pois a arte de

contar não se preocupa em dar explicações e não encerra uma única versão e assim, o presente

pode reencontrar o passado e tecer-lhe uma continuação, como em Proust o gosto da

madeleine revive múltiplas lembranças.

Outro traço importante da narrativa destacado pelo autor é a concisão, o que

efetivamente facilita a memorização. Prosseguindo em sua exposição Benjamin transcreve as

palavras de Paul Valery “[...] O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado”

(Benjamin, 1993, p. 206), desse modo justifica o aparecimento da short story, ao mesmo

tempo que dispõe a literatura não como arte, mas como trabalho manual:

Talvez ninguém tenha descrito melhor que Paul Valéry a imagem desse mundo de artífices, do qual provém o narrador. Falando das coisas perfeitas que se encontram na natureza, pérolas imaculadas, vinhos encorpados e maduros, criaturas realmente completas, ele as descreve como ‘o produto precioso de uma longa cadeia de causas semelhantes entre si’. O acúmulo dessas causas só teria limites temporais quando fosse atingida a perfeição. ‘Antigamente o homem imitava essa paciência’, prossegue Valéry.

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‘Iluminuras, marfins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamente polidas e claramente gravadas; lacas e pinturas obtidas pela superposição de uma quantidade de camadas finas e translúcidas... – todas essas produções de uma indústria tenaz e virtuosística cessaram, e já passou o tempo em que o tempo não contava. O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado’. Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa. Assistimos em nossos dias o nascimento da short story, que se emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição das camadas finas e translúcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas. (Benjamin, 1993, p. 206)

A autoridade da morte (relacionada à sabedoria) na narrativa é outro ponto investigado

pelo autor, observando que na antiguidade o espaço da morte era coletivo e na atualidade é

individual, refletindo que no momento da morte toda a experiência vivida assume “uma forma

transmissível” (Benjamin, 1993, p. 207). Benjamin expõe, para ilustrar a morte como algo

altamente significativo, a narrativa de Johann Peter Hebel, a qual descreve a passagem do

tempo na história, já que todos os acontecimentos mencionados se relacionam com a morte,

como se exemplifica no romance rosiano, em que o narrador Riobaldo, à semelhança de

Hebel, inscreve profundamente sua história na história natural.

Prosseguindo em seu estudo, Benjamin diferencia o relato histórico (que exige a

explicação dos fatos) da crônica, pois “o cronista é o narrador da história” (Benjamin, 1993, p.

209) e, portanto, fica à vontade para sentir os fatos por ele narrados, não sendo obrigado a

explicá-los. Outro destaque no texto é dado ao romance, esclarecendo que “a rememoração,

musa do romance, surge ao lado da memória, musa da narrativa, depois que a desagregação

da poesia épica apagou a unidade de sua origem comum na reminiscência” (Benjamin, 1993,

p. 211). Segundo o autor o romance se movimenta em torno do “sentido da vida” (Benjamin,

1993, p. 212).

Benjamin considera que o primeiro conselheiro da humanidade foi o conto de fadas, já

que este ensinou e ensina até hoje as crianças. O autor encerra o texto comentando a

influência da narrativa na obra de Leskov e afirmando que o escritor russo tinha uma grande

afinidade “pelo espírito do conto de fadas” (Benjamin, 1993, p. 216). Enfatiza ainda que os

aspectos de moral são importantes na obra de Leskov e que os elementos míticos favorecem o

narrador a transcender o dia-a-dia. Conclui dizendo que “o narrador figura entre os mestres e

os sábios” (Benjamin, 1993, p. 221), e assim, consequentemente, pode-se definir o narrador

como o detentor da sabedoria.

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Uma breve retrospectiva de tudo o que foi observado em “O Narrador” é

brilhantemente conduzida por Jeanne Marie Gagnebin, em Walter Benjamin, Os cacos da

história (1982).

Em seu ensaio O Narrador. considerações sobre a obra de Nikolai Lesskov, Benjamin formula uma espécie de tipologia da comunicação literária, e opõe a forma do conto (narrar uma história) ao romance e à informação jornalística moderna. Procura explicar por que a arte de narrar histórias perde-se gradualmente, e por que é tão raro encontrar atualmente um verdadeiro contista (narrador). Para Benjamin, a verdadeira narração toma sua fonte de uma experiência no sentido pleno do termo (Erfahrung), progressivamente abolida pelo desenvolvimento do capitalismo. Essa experiência está ligada a uma tradição viva e coletiva, característica das comunidades em que os indivíduos não estão separados pela divisão capitalista do trabalho, mas onde sua organização coletiva reforça a vinculação consciente a um passado comum, permanentemente vivo nos relatos dos narradores. Nessas comunidades pré-capitalistas – que não são por isso forçosamente idílicas! – a experiência do trabalho e do passado coletivos (Erfahrung, no vocabulário de Benjamin) predomina sobre a experiência do indivíduo, isolado em seu trabalho e em sua história pessoal (Erlebnis). A obtenção de uma memória comum, que se transmite através das histórias contadas de geração a geração, é hoje destruída pela rapidez e a violência das transformações da sociedade capitalista. Agora, o refúgio da memória é a interioridade do indivíduo, reduzido à sua história privada, tal como ela é reconstruída no romance. (Gagnebin, 1982, p. 67-68)

Para Günter Karl Pressler, em Benjamin, Brasil, (2006), o ensaio “O Narrador”,

planejado como resenha acerca de uma antologia de contos de Leskov é acrescido pelas ideias

de Benjamin sobre o romance e a arte de narrar, legando uma “reflexão profunda para os

estudos filosóficos sobre a questão da ‘experiência’ e ‘vivência’ na transição do século XIX a

XX – além de um ensaio fundador para os estudos sobre narração e narrativas” (Pressler,

2006, p. 305).

Pressler expõe que a queda da experiência aurática, chamada por Benjamin de o

‘declínio da arte de narrar’, “causa mudanças na relação poeta-sociedade e causa reações no

campo de ficção narrativa” (Pressler, 2006, p. 308). Segundo Pressler, Benjamin enfoca o

narrador empírico, ou seja, o escritor Leskov, relacionando-o com os antigos contadores de

histórias. Assim, o “antigo contador-de-histórias cria a aura do narrador”, que os tempos

modernos se encarregam de destruir, perdendo-se, desse modo, a arte tradicional, já não

transmitida e acumulada pela experiência, na qual se preserva a tradição, o que pode ser

evidenciado pelo início de “O Narrador”:

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Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais. Descrever um Leskov como narrador não significa trazê-lo mais perto de nós, e sim, pelo contrário, aumentar a distância que nos separa dele. Visto de uma certa distância, os traços grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam nele. Ou melhor, esses traços aparecem, como um rosto humano ou um corpo de animal aparecem num rochedo, para um observador localizado numa distância apropriada e num ângulo favorável. Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse ângulo de observação. É a experiência de que a arte está em vias de extinção. (Benjamin, 1993, p. 197)

Pressler destaca também que Jeanne Marie Gagnebin, pensando epistemologicamente

a questão da memória e do esquecimento, chama a atenção a respeito da apropriação rápida e

aplicativa do ensaio “O Narrador”. A pesquisadora, de acordo com Presler, relata que a

tendência “nostálgica” do ensaio deve ser vista no contexto memória/esquecimento da obra

benjaminiana e não “isoladamente como identificação acrítica de uma tendência melancólica

de reclamar a perda da experiência” (Pressler, 2006, p. 312). Davi Arrigucci Jr. igualmente

expôs o declínio da arte de narrar, pois na civilização industrial moderna, “dos homens

divididos e das relações reificadas entre todos e tudo, como pode alguém ter algo especial e de

seu para contar?” (Arrigucci, 1979, p. 160). O crítico encontra a resposta na prosa do cronista

Rubem Braga, na qual o momento “é surpreendido vivamente em toda a sua intensidade, mas

sob o prisma da recordação contemplativa” (Arrigucci, 1979, p. 161). Acredito que a tradição

de uma literatura impregnada pela oralidade (ainda que, obviamente, diferenciada do narrador

de contos e do cronista) pode ser exemplificada em Guimarães Rosa, que a concilia com o

romance, em especial o Grande sertão: veredas, no qual as lembranças das histórias vividas

pelo narrador Riobaldo são escritas pelo ouvinte-doutor, no claro intuito de conservar ou de

retransmitir o que foi contado. Rosa traz por meio da reminiscência de seu narrador o

arrebatamento da tradição oral. A obra de Rosa esboça o que Benjamin diz ser o centro em

torno do qual se movimenta o romance, ou seja, “o sentido da vida”, mas, além de convidar o

leitor a refletir sobre isso, também, como nas narrativas tradicionais, deixa em aberto o

questionamento sobre o que aconteceu depois.

Portanto, o tempo da memória articula a história de Rosa. No Grande sertão, o

narrador-protagonista, Riobaldo, conta sua história pessoal, a qual está entremeada por outras

pequenas estórias, causos, como o de Maria Mutema, que encerram a multiplicidade cultural

mineira, brasileira e mesmo refletem a condição humana em trajetórias de vida que buscam

verdades e, entre o bem e o mal, traçam caracteres universais. A experiência de vida

transmitida por Riobaldo ao ouvinte- doutor, com o qual certamente não tem nada em comum,

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foge às condições idealizadas por Benjamin na narrativa tradicional, mas parece criar uma

nova forma de narrar, uma “Erfahrung” reconstruída a partir de experiências isoladas,

“Erlebnis” (representativa do romance), mas que se mantém como obra aberta. Jeanne Marie

Gagnebin, no prefácio de Magia e técnica, arte e política, enfatiza os seguintes aspectos:

O leitor atento descobrirá em ‘O Narrador’ uma teoria antecipada da obra aberta. Na narrativa tradicional essa abertura se apóia na plenitude do sentido – e, portanto, em sua profusão ilimitada; em Umberto Eco e, parece-me, também na doutrina benjaminiana da alegoria, a profusão do sentido, ou, antes, dos sentidos, vem ao contrário, de seu não-acabamento essencial. O que me importa aqui é identificar esse movimento de abertura na própria estrutura da narrativa tradicional. Movimento intenso, representado na figura de Scheherazade, movimento infinito da memória, notadamente popular. Memória infinita cuja figura moderna e individual será a imensa tentativa proustiana, tão decisiva para Benjamin. Cada história é o ensejo de uma nova história, que desencadeia uma outra, que traz uma quarta, etc; essa dinâmica ilimitada da memória é a da constituição do relato, com cada texto chamando e suscitando outros textos. Mas também um segundo movimento, que, se está inscrito na narração, aponta para mais além do texto, para a atividade da leitura e da interpretação. (Benjamin, 1993, p. 12-13)

Saber contar sem dar explicações definitivas como Heródoto, é prática na narrativa de

Rosa. Além disso, diversas histórias tecem o enredo do Grande sertão. Carmem Lucia Tindó

Secco lembra, em A magia das letras africanas (2008), que “Envoltas em sacralidade, as

histórias orais se faziam instrumento dos mais velhos que passavam ensinamentos e conselhos

aos mais jovens, fundando dessa maneira, a ‘cadeia da tradição’, imprescindível ao

desenvolvimento das sociedades” (Secco, 2008, p. 26). Em Rosa o narrador tece enredos

configurados nas lembranças, que se constituem como testemunhos de experiências de vida.

Benjamim, em outro célebre ensaio, “Experiência e Pobreza”, datado de 1933, expõe

que em tempos passados:

Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (Benjamin, 1993, p. 114)

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Apesar de o contar artístico de Rosa ser configurado na forma romanesca, natureza

que o distinguiria fundamentalmente da tradição oral, conforme as observações de Benjamin

(1993, p. 201), a vivência do narrador dessa história é a substância que torna possível a

permuta da oralidade com a escrita. Assim, resgatam-se testemunhos que preservam aspectos

culturais expressos em Grande sertão: veredas, dispondo-os como registros de sabedoria,

pois como esclarece Lucília Delgado,

Os melhores narradores são aqueles que deixam fluir as palavras na tessitura de um enredo que inclui lembranças, registros, observações, silêncios, análises, emoções, reflexões, testemunhos. São eles sujeitos de visão única, singular, porém integrada às referências sociais da memória e da complexa trama da vida. (Delgado, 2006, p. 44)

“Contar é muito dificultoso”, diz Riobaldo em Grande sertão: veredas, mas, situando

a linguagem ao nível da oralidade e misturando realidade e devaneio, Rosa representa

perfeitamente as características dos grandes narradores, preservando a tradição em novas

veredas do cenário literário.

LITERATURA E SOCIEDADE

Uma breve análise da obra do filósofo, escritor e crítico literário húngaro, Georg

Lukács, “O Romance como Epopeia Burguesa” (publicado originariamente em Moscou no

ano de 1935) e as relações, que dele possam advir, com o Grande sertão: veredas, também se

faz necessária, já que o ensaio de Lukács, bem como as perspectivas anteriores, dispostas em

seu livro, A teoria do romance, redigido por volta de 1916, são de fundamental importância

para o estudo acerca do gênero romanesco, especificamente no que diz respeito à forma

aberta do romance, em contradição ao contexto histórico em que surgiu a epopeia, isto é, um

mundo fechado, estático e harmoniosamente perfeito. Além disso sob uma visão lukacsiana,

pode-se observar Riobaldo como o “herói problemático”, ou seja, como explica Arrigucci, em

O mundo misturado (1994, p. 25), o homem sem certezas que luta contra o medo e busca um

sentido para a vida e que, ao final da aventura, com a trágica morte do amado Diadorim,

busca reconciliar-se com a realidade concreta e social.

Mas antes de expor as ideias do crítico húngaro, dispostas em tão aclamado ensaio,

convém uma rápida retrospectiva dos conceitos clássicos de epopeia e de romance. A epopeia

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diz respeito a um poema heroico, no qual o protagonista caracteriza-se por ações grandiosas e

ideais elevados, que pretende celebrar os feitos representativos de toda uma coletividade,

tendo como predomínio a objetividade e como herança as tradições nacionais orais. É notório

que as epopeias gregas e romanas como exemplificam respectivamente, a Ilíada e a Odisseia,

de Homero e a Eneida, de Virgílio, tornaram-se paradigmas para a literatura ocidental. No

entanto, no final do século XVIII, o gênero épico entra definitivamente em decadência,

sobretudo em decorrência dos novos caracteres nacionais e políticos assumidos na Europa,

cedendo, então, lugar ao romance, o qual modela a experiência humana em diversificados

tipos de enredo e forma, como os romances de cavalaria, os romances históricos e os

psicológicos, dentre outros.Um excerto de A teoria do romance ilustra essas concepções:

O romance é a forma da aventura do valor próprio da interioridade; seu conteúdo é a história da alma que sai a campo para conhecer a si mesma, que busca aventuras para por elas ser provada e, pondo-se à prova, encontrar a sua própria essência. A segurança interior do mundo épico exclui a aventura, nesse sentido próprio: os heróis da epopeia percorrem uma série variegada de aventuras, mas que vão superá-las, tanto interna quanto externamente, isso nunca é posto em dúvida; os deuses que presidem o mundo tem sempre de triunfar sobre os demônios. (Lukács, 2006, p. 91)

Ademais, Lukács esclarece que o romance só adquire suas características típicas na

sociedade burguesa, na qual, então, surge como uma “forma artística substancialmente nova”.

No ensaio em estudo, o filósofo dispõe suas perspectivas em sete tópicos. No primeiro deles,

“O Destino da Teoria do Romance”, relata que o romance desenvolveu-se independentemente

dos primeiros teóricos burgueses, graças, principalmente, às observações isoladas dos grandes

romancistas. Isto porque, de acordo com Lukács, a burguesia mantinha-se próxima aos

modelos antigos, enquanto que o romance estabelecia ligações com a arte narrativa da Idade

Média. Assim, diz Lukács, “a forma do romance surge da dissolução da narrativa medieval

como produto de sua transformação plebeia e burguesa” (Lukács, 1999, p. 88).

Lukács reporta-se à filosofia clássica alemã como responsável pelas primeiras

tentativas, de forma sistemática e histórica, na criação de uma teoria estética do romance,

paralelamente às enunciações dos próprios romancistas acerca dos seus trabalhos, surgindo,

portanto, os princípios da teoria burguesa do romance. Segundo o filósofo, a consideração do

romance como epopeia burguesa é porque, para a perspectiva hegeliana, o romance seria o

gênero literário que no período do desenvolvimento da burguesia corresponderia à epopeia.

Lukács revela que, de acordo com Hegel, o prosaísmo da moderna época burguesa resultaria,

“do inevitável desaparecimento tanto da atividade espontânea quanto da ligação imediata do

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indivíduo com a sociedade” (Lukács, 1999, p. 89). A proposta de Hegel seria “conciliar as

exigências da poesia com os direitos do prosaísmo e achar uma ‘média entre eles’” (Lukács,

1999, p. 90), ou seja, uma dialogicidade entre o eu do individualismo burguês e as

“finalidades da totalidade” do mundo antigo. Conforme Lukács, a estética alemã revelou o elo

entre a epopeia e o romance, pois esse último apesar de tender para a epopeia, principalmente

por representar um quadro de sua época, é um gênero artístico tipicamente novo,

caracterizando-se pela possibilidade de “criar e representar um ‘herói positivo’” (Lukács,

1999, p. 91), isto é, aquele capaz de atuar sobre a realidade com o intuito de transformá-la e

até mesmo melhorá-la.

A seguir, Lukács explana sobre “A Forma Específica do Romance”, assegurando que

as bases para a criação “de uma autêntica teoria científica do romance foram colocadas pela

primeira vez na doutrina de Marx e Engels sobre a Arte” (Lukács, 1999, p. 92). De acordo

com Lukács, apesar de o romance apresentar os elementos que caracterizam a forma épica,

não pode alcançar os mesmos fins a que aspira esse gênero, porque, justifica o pensador, o

romance é, na verdade, “a epopeia de uma sociedade que destrói as possibilidades da criação

épica” (Lukács, 1999, p. 93), pois a sociedade moderna caracteriza-se por uma ausência de

totalidade, que o homem tenta em vão buscar para seu mundo fragmentado. Esse fato que

aparentemente constituiria um defeito artístico para o romance em relação à epopeia, contudo,

confere-lhe uma série de vantagens, pois, “O Romance abre caminho para um novo

florescimento da epopeia, de cuja dissolução ele nasce, e revela possibilidades artísticas

novas, que eram desconhecidas da poesia homérica” (Lukács, 1999, p. 93). Nesse aspecto, em

que do antigo brota o novo, pode-se fazer um paralelo com as perspectivas de Walter

Benjamin, em “O Narrador”, a respeito dos rumos tomados pela narrativa na sociedade

capitalista do pós-guerra, ou seja, a perda gradual da arte de narrar em decorrência de a

experiência ser progressivamente abolida pelo desenvolvimento do capitalismo, como

esclarece Jeanne Marie Gagnebin em Os cacos da história. Além disso, como muito bem

expõe Günter Karl Pressler, em Benjamin, Brasil, enquanto Lukács confronta o romance com

a epopeia e a tragédia, ou seja, no contexto intraliterário, Benjamin coteja o romance com a

narração e a informação jornalística (Pressler, 2006, p. 308).

Voltando ainda ao tópico em questão, “A Forma Específica do Romance”, Lukács diz

que o ponto central da teoria do romance se concentra no problema da ação, cuja centralidade,

“decorre da necessidade de um reflexo o mais adequado possível da realidade” (Lukács, 1999,

p. 94). Assim, por meio de uma penetração profunda nos problemas sociais, os grandes

narradores podem representar um quadro da sociedade a que pertencem. Essa representação,

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reconhece Lukács, é diametralmente diferenciada na epopeia e no romance, pois a ação da

epopeia é resultado da luta de uma “sociedade enquanto coletividade contra um inimigo

externo”, enquanto que no romance “cada indivíduo representa apenas uma das classes em

luta, pois, esclarece Lukács, “Uma vez surgida a sociedade de classes, a grande epopeia não

pode extrair sua grandeza épica a não ser da profundidade e tipicidade das contradições de

classe em sua totalidade dinâmica” (Lukács, 1999, p. 99). Em relação a esse aspecto, tomando

como fonte Willi Bolle, em Grande sertão.br (2004), pode-se ver na obra rosiana a

construção da paisagem e de um retrato do país, mesmo que em uma geografia empírica e

alegórica.

O terceiro tema abordado por Lukács em sua explanação é “O Nascimento do

Romance”. Observa, então, que o romance moderno, ou melhor, o conteúdo do romance

moderno, nasce da luta ideológica entre a burguesia e o feudalismo, fato que não impede aos

primeiros grandes romancistas aproveitarem “a herança da arte narrativa medieval”, cujos

elementos, como as aventuras isoladas e ligadas entre si, são reelaboradas de modo inovador,

tanto na forma quanto no conteúdo, destacando-se nessa reelaboração, sobretudo “o afluxo

cada vez maior de elementos plebeus nessa composição” (Lukács, 1999, p. 99). O filósofo

cita Cervantes e Rabelais como os criadores do romance moderno, os quais refletem em suas

obras um fato importantíssimo, ao lado da renovação da temática de aventuras, qual seja: o

“prosaísmo da vida”. Ademais, Lukács explica que Cervantes e Rabelais cultivam um original

realismo fantástico (também caracterizador do romance em sua fase inicial), explicado do

seguinte modo:

Os grandes princípios ideológicos e sociais da época são percebidos e representados pelo romancista de modo realista; realistas são os tipos representados que, por meio da heterogênea variedade das aventuras, são conduzidos pelo artista a verdadeiras ações, a uma verdadeira manifestação de sua essência; realista é o modo da representação, o desenho preciso dos pormenores necessários na sua ligação orgânica com as grandes forças sociais, cuja luta se manifesta nesses pormenores. Mas a história narrada é conscientemente fantástica, não realista. Esse elemento fantástico nasce, de um lado, da visão utópica das grandes forças sociais da época e, de outro, da comparação satírica entre o velho mundo em dissolução e o novo que está nascendo, com os grandes princípios humanistas da luta contra a degradação do homem. (Lukács, 1999, p. 101)

Com o título de “A Conquista da Realidade Quotidiana”, Lukács revela que a

emergente sociedade capitalista provoca o aparecimento do romance capitalista, no estrito

sentido da palavra. Diz ainda que “pela primeira vez a realidade quotidiana é conquistada na

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literatura” (Lukács, 2006, p. 102). A própria burguesia torna-se objeto da épica, tendo como

ênfase seu princípio ativo, isto é, o progresso, explica Lukács em “Nota sobre o romance”

(1981). O romance então desprende-se do fantástico e passa a representar a vida privada do

burguês e, como exemplo do incipiente domínio da sociedade sobre a natureza, Lukács cita a

primeira parte do Robinson, de Defoe, que aproxima-se da epopeia clássica.

A seguir, Lukács discorre sobre “A Poesia do ‘Reino Animal do Espírito’”

(reportando-se nesse título, à Fenomenologia do Espírito, de Hegel). Relata que no período

compreendido entre a Revolução Francesa e a autonomia do proletariado “o romance retorna

ao fantástico do seu período inicial”, que nessa fase é a expressão “de um pressentimento

trágico do fim inevitável da civilização burguesa” (Lukács, 1999, p. 106).

Lukács revela que os grandes escritores dessa época não se rendem ao avanço da prosa

da vida burguesa, procurando representar os elementos da atividade espontânea. O crítico

coloca que quanto mais o artista descobre as contradições da sociedade burguesa, menos

realizável se torna a exigência de Hegel de um herói positivo, já inaceitável no Século XIX.

Mesmo que a exigência burguesa desse herói positivo dirija-se ao escritor, para que ele não

revele as contradições advindas da sociedade capitalista, mas “as disfarce e as concilie”. Os

grandes clássicos não cumprem essa instância, tornando-se, por esse motivo, “impopulares no

ambiente burguês”.

A penúltima explanação de Lukács é sobre “O Novo Realismo e a Dissolução da

Forma do Romance”. Lukács observa que no período da decadência ideológica burguesa, em

que mais nitidamente se apresentam as contradições do capitalismo, “mais grosseiros se

tornam os meios para glorificá-lo de maneira falsa e para caluniar o proletariado

revolucionário e os trabalhadores rebeldes” (Lukács, 1999, p. 109). Mas, segundo ele, o

romance sério, a partir de 1848, afasta-se dessa tendência, o que leva o escritor burguês a

isolar-se social e artisticamente. Exemplificando esse período, Lukács cita Flaubert e Zola.

Critica então, nesses escritores, o distanciamento actancial de suas narrativas, as quais

evidenciam aspectos de uma realidade que foge às verdadeiras condições sociais vivenciadas

nessa época. Em relação a Zola, Lukács expõe que “A representação épica das ações é

substituída, nele, pela descrição dos estados e das circunstâncias” (Lukács, 1999, p. 111), o

que representaria a inutilidade da vida que é ilustrada, segundo Lukács, pelo fato de as ações

humanas no romance serem suplantadas pela descrição das coisas e dos estados,

proporcionando assim a “decadência narrativa do romance moderno”.

As contradições da sociedade capitalista e a ascensão do socialismo na URSS

concorrem para que os intelectuais rompam relações com a burguesia, abrindo caminho para

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“As Perspectivas do Romance Socialista”, capítulo que encerra o ensaio do crítico húngaro e

aborda a tomada de poder pelo proletariado. Lukács recapitulando sua análise expõe que “o

problema da degradação do homem na sociedade capitalista se tornou inevitavelmente o

problema central da estética do romance” (Lukács, 1999, p. 114). O romancista socialista

intensifica a luta do homem tanto pela “sua existência material, quanto pelo seu bem-estar

espiritual”, assim o indivíduo proletário envolvido nessa luta, “deve necessariamente se tornar

um ‘herói positivo’” (Lukács, 1999, p. 115), o que identifica uma nova aproximação com a

epopeia antiga. Lukács explica ainda que o socialismo destrói a reificação, própria da

natureza da sociedade capitalista, cujas relações sociais são “coisificadas” e impedem o

surgimento de uma consciência de classe. Todas essas etapas de desenvolvimento e da luta do

proletariado vão gerar, segundo Lukács, uma tendência para a epopeia,”uma tendência e não

uma realidade acabada” (Lukács, 1981, p. 187), fazendo surgir na vanguarda do socialismo

uma forma artística inovadora, caracterizada por traços próprios da epopeia, mas guardando,

também, “os caracteres essenciais do romance, isso porque, “a edificação do novo e a

destruição subjetiva e objetiva do velho estado de coisas constituem uma unidade dialética”

(Lukács, 1981, p. 187).

Portanto, em “O Romance como Epopeia Burguesa”, Lukács situa o romance como a

forma artística de grande significado na sociedade burguesa, mostrando, desse modo, a

relação existente entre essa modalidade literária e a época em que surge, como gênero

dominante. Nesse aspecto creio poder estabelecer um diálogo entre as teorias de Lukács e o

Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, no que diz respeito à tensão que se estabelece

entre Riobaldo, herói do romance que busca compreender o sentido de sua existência, e o

ambiente em que vive, possibilitando uma interpretação social dos aspectos míticos

encontrados na obra rosiana: perspectiva que pode ser analisada sob a ótica de Lukács em

relação ao tema de consciência de classe e das relações entre literatura e sociedade.

LÍRICO DISCURSO

Dando continuidade às análises teóricas, com as quais busco compreender a forma

literária empreendida por Guimarães Rosa, minha reflexão volta-se para o texto de Theodor

Adorno, “Palestra sobre lírica e sociedade”, incluso na antologia de ensaios denominada

Notas de literatura I (2008), no qual o pensador alemão procura reintegrar na dimensão social

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as conjeturas da crítica imanente, observando então na configuração artística a manifestação

de um teor social, pretendido pela própria expressão subjetiva, revelando-se, portanto, como

imprescindível para a apreensão das contradições que envolvem arte e sociedade na

contemporaneidade. Procuro, assim, cotejar alguns aspectos da análise adorniana com meu

objeto de pesquisa: a interpretação do pacto fáustico no Grande sertão: veredas, já que o

acordo maligno é de suma importância no desenrolar do enredo do romance de Rosa, autor

que posiciona a linguagem e a vida como “uma coisa só” (Lorenz, 1991, p. 83).

A filosofia de Theodor Adorno (que também foi estudioso de música, psicologia e

sociologia) fundamenta-se, sobretudo, na perspectiva da dialética. Assim, em uma de suas

principais obras, Dialética do esclarecimento, escrita em parceria com Max Horkheimer,

Adorno expõe sua visão referente à lógica cultural do sistema capitalista e o domínio racional

deste sobre a natureza e, consequentemente, sobre o homem, considerações que, a meu ver,

encontram relações (como num encadeamento de acordes) com a “Palestra sobre lírica e

sociedade”, texto elaborado posteriormente, em uma fase de dedicação à crítica literária

(década de 1950), no qual se pode depreender que o poema para ter um verdadeiro cunho

artístico necessita transcender a expressão de emoções e experiências individuais, por meio de

uma generalidade do conteúdo lírico, o qual, na verdade, é antes de tudo social, expondo

assim a dialética do individual com o universal. Portanto, procurarei destacar os pontos que,

creio eu, ajustam-se ao meu propósito de compreender melhor a dimensão lírica do sertão de

Guimarães Rosa, sobretudo no que diz respeito ao redemoinho de dúvidas do personagem

Riobaldo quanto à interpretação de sua realidade expressa na tradição literária de homem

pactário.

No discurso sobre lírica e sociedade, Adorno expõe o caráter social da universalidade

lírica e sua relação com a individualidade do sujeito poético, pois, segundo o crítico literário,

as composições líricas no que se referem ao social revelam nelas próprias sua essencialidade,

já que ao voltar-se para a sua individualidade o poeta revela sua incompatibilidade social,

assim, na própria recusa do sujeito lírico ao fator social se revela a instância do social. Além

disso, Adorno relata que a referência ao social “Não deve levar para fora da obra de arte, mas

sim levar mais fundo para dentro dela” (Adorno, 2008, p. 66). Adorno explica que o teor de

um poema não é a mera expressão de emoções e experiências individuais, pois estas só se

tornam artísticas quando “justamente em virtude da especificação que adquirem ao ganhar

forma estética comportam sua participação no universal” (Adorno, 2008, p. 66).

Outrossim, relacionando o caráter social da universalidade lírica com a configuração

linguística, Adorno destaca a mediação como fator indispensável para a interpretação não só

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da lírica como de todas as obras de arte. Contudo, recomenda cuidado em relação ao conceito

de ideologia, a que chama de “falsa consciência”. Esclarece então que obras de arte “têm sua

grandeza unicamente em deixarem falar aquilo que a ideologia esconde” (Adorno, 2008, p.

68). Prosseguindo em sua explanação, Adorno diz que o conceito de lírica contém em si

mesmo “o momento da fratura”, no qual o eu lírico perde a unidade com a natureza, a que sua

expressão se refere, e então empenha-se em restabelecê-la por meio do animismo ou do

mergulho no próprio eu. Observa ainda Adorno que a filosofia – de Hegel – “conhece a

proposição especulativa que diz que o individual é mediado pelo universal e vice-versa”

(Adorno, 2008, p. 73). Adorno nega que o poema lírico tenha uma só voz, ressaltando, porém,

que quanto maior a ascendência da sociedade sobre o sujeito mais precária é a situação da

lírica. Assim, exemplifica efetivamente com a obra de Baudelaire, a qual na aparência está

negando o social, mas por meio da mediação ela está, na verdade, propagando esse mundo.

Portanto, mais uma vez Adorno enfatiza que através da mediação acontece sim o fator social,

o qual é dialógico, pois o poeta quando usa a palavra, mesmo não querendo, carrega o teor

social, mantendo então a linguagem como o elo entre lírica e sociedade e, desse modo,

configurando objetividade à expressão da subjetividade. A aparente contradição entre lírica e

sociedade, ou ainda a subjetividade que se reveste, por meio da linguagem, em objetividade,

estaria ligada, segundo Adorno, “a primazia da conformação linguística na lírica, da qual

provém o primado da linguagem na criação literária em geral, até nas formas em prosa”

(Adorno, 2008, p. 74), pois, ressalta o crítico, a própria linguagem é algo duplo, já que além

de ser a expressão da individualidade subjetiva é o meio, ou a mediação, dos conceitos. Para

assegurar suas proposições Adorno elucida:

O que afirmei foi que a configuração lírica é sempre, também, a expressão subjetiva de um antagonismo social. Mas como o mundo objetivo, que produz a lírica, é um mundo em si mesmo antagonístico, o conceito de lírica não se esgota na expressão da subjetividade à qual a linguagem confere objetividade. (Adorno, 2008, p. 76)

Segundo Adorno, a mediação permite identificar o sentido daquilo que não tem

sentido, pelo menos aparentemente. Desse modo, cita Baudelaire para expor o que chama de

corrente subterrânea da lírica, que surge como expressão individual, mas também como

“possível antecipação de uma situação que ultrapassa a mera individualidade” (Adorno, 2008,

p. 78), delineando assim a representação da coletividade pelo poeta. Para exemplificar essa

“corrente subterrânea da lírica”, Adorno analisa versos de Eduard Mörike e Stefan George,

destacando nesses dois poetas alemães, sobretudo, o estilo elevado. Contudo, Adorno ressalta

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que o poema bem mais antigo de Mörike exalta a felicidade em cada esquina, enquanto que a

poesia aristocrática de George distancia-se do mundo, interditando assim a felicidade das

coisas próximas. No processo de concretizar a relação do sujeito poético com a realidade

social que lhe é antitética, Adorno explica que tanto os elementos materiais quanto os formais

necessitam de interpretação, principalmente acerca do modo como ambos se interpenetram,

“pois somente em virtude dessa interpenetração o poema lírico captura realmente, em seus

limites as badaladas do tempo histórico” (Adorno, 2008, p. 78). O excerto abaixo, referente à

poesia de George, torna claro o que Adorno chama de estilo elevado:

Esse estilo é alcançado não pelo recurso fácil a certas figuras de retórica e a determinados ritmos, mas na medida em que economiza asceticamente tudo aquilo que poderia diminuir a distância em relação à linguagem degradada pelo comércio. Aqui, para que o sujeito seja capaz de, em sua solidão, resistir verdadeiramente à reificação, ele não pode nunca mais se refugiar no que lhe é próprio, como se fosse sua propriedade; os vestígios de um individualismo que, nesse meio-tempo, já se entregou à tutela do mercado, nos suplementos literários, assustam: o sujeito precisa abandonar a si mesmo, na medida em que se cala. Ele precisa se converter no receptáculo, por assim dizer, da idéia de uma linguagem pura, que os grandes poemas de George buscam resgatar. (Adorno, 2008, p. 87)

Expressando-se sobre a lírica de George, Adorno expõe que o poeta consegue captar

na própria linguagem a “idéia que lhe foi negada pela marcha da história”, bem como articula

versos que soam como se não fossem dele, mas como se tivessem existido desde o começo e

para sempre assim devessem permanecer.

Após essa breve exposição das reflexões de Adorno no texto em discussão e antes de

relacioná-las à obra de Guimarães Rosa é importante lembrar, para dar mais harmonia a esta

composição, outro grande nome da crítica literária, Alfredo Bosi:

Não há grande texto artístico que não tenha sido gerado no interior de uma dialética de lembrança pura e memória social; de fantasia criadora e visão ideológica da História; de percepção singular das coisas e cadências estilísticas herdadas no trato com pessoas e livros. (Bosi,1988, p.278)

Assim, acredito que dos aspectos míticos, existenciais ou metafísicos do romance

rosiano podem ser extraídos conhecimentos históricos, políticos e sociais formadores da

realidade brasileira, conforme esclarece o pesquisador Willi Bolle: “O episódio crucial para

esse tipo de hermenêutica é o pacto das Veredas-Mortas, que é uma representação

criptografada da modernização no Brasil” (Bolle, 2004, p. 148).

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Willi Bolle procura evidenciar em Grande sertão: veredas a história social do Brasil,

traçada por meio de uma linguagem cifrada, através da história de Riobaldo e somente

desvendada por seu destinatário (o leitor). Bolle explica que no romance de Guimarães Rosa

há uma gritante desigualdade social aliada à falta de diálogo entre as classes dominantes e as

classes populares, o que pode ser visto “como uma coisa do Diabo – entendendo-se o

diabolos, no sentido etimológico, como a entidade que ‘se interpõe’, entre as pessoas, entre,

as classes” (Bolle, 2004, p. 18). No livro de Rosa, o protagonista, Riobaldo, narra sua história

(ou fala consigo mesmo?) para um interlocutor, doutor da cidade, na esperança de que ele

confirme que o Diabo não existe. Segundo Bolle:

Ao estabelecer esse diálogo entre o universo arcaico e ‘atrasado’ das crenças do povo sertanejo e a mentalidade esclarecida dos habitantes das grandes cidades, Guimarães Rosa estimula em seus leitores a curiosidade de decifrar o(s) significado(s) do pacto, sendo o pacto com o Diabo em termos da história cultural, uma forma mítica popular de codificar questões do poder e da lei, o romance nos transporta para os domínios da história mítica. (Bolle, 2004, p. 144)

Todavia, como mito e literatura estão ligados, à medida que esta última tende a adaptar

o pensamento mítico ao cotidiano da vida humana, faz-se necessário também recapitular o

motivo fáustico que se inseriu na cultura ocidental no século XVI, proveniente de remotas

lendas medievais que culminaram, em 1592, no Doutor Fausto, de Christopher Marlowe, bem

como, no século XIX, no grandioso Fausto, de Goethe, tema que posteriormente destacou-se

em Doutor Fausto de Thomas Mann, o qual antecedeu em nove anos Grande Sertão: veredas,

publicado em 1956.

Então, a fantasiosa imagem do demônio no caminho de Riobaldo me leva a investigar

o conceito de mito que, segundo o etnólogo Eleazar Mielietinsky (1987, p. 119), “estendeu-se

paulatinamente a generalizações amplas puramente literárias”, que são às vezes denominadas

‘imagens eternas’, como Don Juan, Fausto, Don Quixote, Hamlet, Robinson. Ademais,

discorre Mielietinsky:

Entretanto a aplicação do conceito de ‘mito’ a semelhantes temas e tipos literários se deve não só ao seu caráter extremamente genérico, mas também ao fato de que eles serviram de ‘paradigmas’ para a literatura posterior, e ainda porque as tentativas de interpretações artísticas dos mesmos tipos artísticos sempre se renovam. Deste modo, a ampliação do conceito de ‘mito’ se traduz, por um lado, na recusa a tomar conscientemente como orientação as tradições antigas e a empregar com novos fins as habituais imagens da mitologia autêntica e, por outro lado, a equiparar qualquer tradição à tradição mitológica. (Mielietinski, 1987, p. 119)

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Lembrando que, para Adorno, a universalidade do teor lírico é essencialmente social,

o que proporciona o caráter dialético da individualidade com a universalidade, associo esse

pensamento ao grande sertão rosiano que reflete em suas veredas a exterioridade expressa no

desejo de compreender as aspirações e limitações humanas por meio de uma linguagem

dialética, na qual a configuração linguística destaca-se e promove a palavra poética, porém

sem perder de vista o mundo objetivo, cuja interpretação social pode ser condicionada à visão

histórica evidenciada no romance, pois entremeada ao especular ideias de Riobaldo

(rememorando na paisagem sertaneja, rios, fazendas e cangaço) está o panorama de uma

sociedade. Contudo, a ficção de Rosa transcende o regionalismo pitoresco e proporciona uma

dimensão universal aos enfoques regionalistas.

Para especificar adequadamente o lirismo e a complexidade formal que se estampa no

épico relato da travessia de Riobaldo, carregada de ingenuidade e da imaginação que motiva a

vida nos sertões, recorro às palavras de Roberto Schwarz:

Grande Sertão: Veredas não se passa no recesso de uma consciência, onde sua ousadia linguística poderia ser reduzida aos delírios de um espírito modorrento: faz-se do diálogo de duas personagens, entre as duas, no espaço social que exige a objetivação das relações por meio da língua falada. Trata-se de um fluxo oral. Em contraste com a maioria de seus pares na grande literatura contemporânea, a obra de Guimarães Rosa tem a virtude de colocar o experimento estético no nível da consciência, de reivindicar para ele a condição acordada. Não partilha a profunda nostalgia de irracionalismo representada, em última análise, pela pesquisa exclusiva dos níveis pré-conscientes. Sua audácia é mais audaz, pois não se escora no caráter informe dos estados anteriores à formulação; realiza-se ao criar um poderoso jôrro verbal, em cujo curso e sintaxe a palavra adquire qualidade poética. Não fica essa qualidade restrita a determinadas passagens do livro, que impregna todo. Independe da temática, é produto de um fluxo retórico peculiar, no qual, veremos, o vocábulo é valorizado a ponto de reviver com a intensidade que identificamos ao lirismo. (Schwarz, 1981, p. 39)

É importante destacar que na lírica narrativa de Riobaldo ressoa a Canção de Siruiz,

“toada toda estranha”, (en)canto que transforma o jagunço em homem de letras, permitindo-

lhe buscar o esclarecimento para os enigmas que procura desvendar. Assim, pelo estro poético

de Rosa, música e poesia conjugam-se e expõem-se aos olhos pelo contar de Riobaldo, que

constantemente adverte: “Mire e veja”. Há, portanto, uma elevada e subjetiva melodia que

ecoa, impregna e dá ritmo ao romance. Massaud Moisés, ao definir a lírica, citando Hegel

(1964, p. 293-294; 296) expõe:

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Na verdade, ‘o conteúdo da poesia lírica é (...) a maneira como a alma, com seus juízos subjetivos, alegrias e admirações, dores e sensações, toma consciência de si mesma no âmago deste conteúdo’; ‘Com efeito, o que interessa antes de tudo é a expressão da subjetividade como tal, das disposições da alma e dos sentimentos, e não a de um objeto exterior, por muito próximo que seja’. (Moisés, 2004, p. 261)

Mas, conforme Adorno, na própria recusa do sujeito lírico ao fator social se revela a

instância do social. Igualmente ressalto, na conceituação de Massaud Moisés, a seguinte

explanação: “Quanto ao tempo verbal, a lírica transcorre no presente, ainda quando o tempo

referido seja o passado ou o futuro. É que, ao debruçar-se sobre o seu mundo interior, o lírico

procede como quem se recorda” (Moisés, 2004, p. 263). E o que faz Riobaldo em seu

monólogo-diálogo senão recordar? Rememorando ele reconstrói para o seu ouvinte (e para o

leitor) sua travessia, em que, de quando em quando, repercute a balada de Siruiz. Assim, a

canção que conquista Riobaldo não poderia faltar neste raciocínio que procura discorrer

acerca da “Palestra sobre lírica e sociedade”, de Adorno, mesmo porque na toada encontra-se

a pura emoção do cantador Siruiz, espelhada na configuração da realidade sertaneja.

Urubú é vila alta, mais idosa do sertão: padroeira, minha vida – vim de lá, volto mais não... Vim de lá, volto mais não?... Corro os dias nesses verdes, meu boi mocho baetão: burití – água azulada, carnaúba – sal do chão... Remanso de rio largo, viola da solidão: quando vou p’ra dar batalha, convido meu coração... (Rosa, 2006, p. 119)

Posteriormente, Riobaldo acrescenta a esses versos algumas estrofes que parecem

expor na objetividade do mundo material uma reflexão de sua própria condição.

Trouxe tanto este dinheiro o quanto, no meu surrão, p’ra comprar o fim do mundo no meio do Chapadão. Urucúia – rio bravo cantando à minha feição:

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é o dizer das claras águas que turvam na perdição. Vida é sorte perigosa passada na obrigação: toda noite é rio-abaixo, todo dia é escuridão... (Rosa, 2006, p. 317-318)

Retomando o ensaio de Adorno, observa-se que, para o filósofo alemão, a obra lírica é

aquela em que o sujeito se faz presente na linguagem até que se evidencie. Assim, a lírica se

mostra social quando a subjetividade alcança a expressão adequada. Em Grande sertão:

veredas é perceptível a expressão individual subjetiva que procura, simbolicamente, discutir

os conflitos do homem, pois em Riobaldo encontra-se o desejo de aclarar o incompreensível,

conforme revela o personagem:

Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe! (Rosa, 2006, p. 100)

Portanto, Guimarães Rosa produz uma literatura universal, apesar de centrada no

espaço (real e fictício) do sertão norte-central de Minas, e por meio do mítico tema do pacto

maligno procura representar as angústias da condição humana, em uma espécie de colóquio

entre mito e esclarecimento. Sobre isso é perfeita a visão do ensaísta Davi Arrigucci Jr.:

Na realidade, no interior do Grande Sertão, a relação entre mito e esclarecimento parece repetir e desenvolver em enredo narrativo o mesmo esquema da dialética do esclarecimento que Adorno e Horkheimer apontaram já no interior da epopeia homérica. ‘Desencantar o mundo é destruir o animismo’, conforme notaram aqueles autores, e não é outra coisa que se registra na obra rosiana, na travessia de Riobaldo, que acaba, a seu modo, por exorcizar a projeção antropomórfica do homem na natureza do sertão, que é o demônio, reconhecendo por fim a objetividade do mundo desencantado. (Arrigucci, 1994, p. 28)

Desse modo, na dramatização poética dos conflitos humanos, iniciando-se in medias

res, Grande sertão: veredas traz a lírica inovadora de Guimarães Rosa, expondo elementos

que proporcionam a percepção do próprio sujeito, bem como das relações deste com a

sociedade. O constante questionar de Riobaldo a respeito da existência ou não do diabo e da

suposta efetivação do pacto nas Veredas Mortas, que retoma as lendárias histórias de temas

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fáusticos, imprime objetividade à subjetividade. Na verdade, Grande sertão é como uma

partitura na qual vocais e instrumentais (ou conteúdo e forma) permitem a leitura simultânea

de literatura e arte.

Outrossim, Arrigucci no já citado “O mundo misturado” (1994) ressalta que o

romance rosiano (épico e moderno), como história do esclarecimento de um destino

individual, retoma o começo na tentativa de responder os questionamentos sobre o sentido da

travessia solitária e enigmática de Riobaldo, o que, entretanto, segundo o ensaísta, não pode

ser respondido.

Porque esta é a história do romance: ‘O caminho acaba, e a viagem começa’, como bem afirmou Georg Lukács, na sua Teoria do romance, na década de 20. Espécie de peregrinação errante num labirinto desencantado que é o mundo moderno, o mundo sem Diadorim, o mundo sem sol do sertão que já não há, da aventura esvaziada e do encanto desfeito. (Arrigucci , 1994, p. 28)

Arrigucci observa ainda que Riobaldo cada vez mais se desgarrará da origem e do

absoluto a que aspira e assim cada vez mais se assemelhará ao herói problemático

configurado por Lukács, isto é, “O homem moderno, descentrado e sem volta a uma

verdadeira casa, que já não pode existir” (Arrigucci, 1994, p. 29), na travessia solitária, de

homem humano, “esclarecido e reconciliado”, o quanto possível.

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2 RECURSOS MITOPOÉTICOS

SIMBOLISMO

Em relação à diversidade de interpretações a que o simbolismo do Grande sertão pode

induzir, é fundamental a análise do gênero romanesco na obra rosiana equacionada por

Leonardo Arroyo, em A cultura popular em Grande sertão: veredas (1984):

A própria palavra ‘romance’ revela sentido ambíguo na obra. Tanto é tomada em seu sentido atual, como no sentido tradicional de composição, isto é, cantado ou narrado pelo povo (simbolizado por Riobaldo) com um núcleo central e aspectos formais submetidos a variações no tempo e no espaço pela contribuição do próprio povo e da tradição. (Arroyo, 1984, p. 7)

Segundo Arroyo, o romance tradicional se faz presente no texto rosiano tanto pelas

“reminiscências temáticas”, quanto pela linguagem arcaica empregada, revitalizando a fala da

região que serve de palco à história e trazendo por meio de “processos narrativos modernos”

as simultaneidades das histórias expressas em livros antigos, como as 1001 noites, de

Scheherazade. Analisando o erudito e o popular na escritura do Grande sertão, Arroyo

observa que Rosa “ao invés de contar estórias, como ouvia e aprendera desde criança, passou

a escrevê-las criando ‘lições’ novas da imensa literatura oral. Daí, particularmente, o tônus da

oralidade da estória de Riobaldo e mesmo porque nesse tônus remanescem os vestígios da

cantilena e do pranto” (Arroyo, 1984, p. 20). Desse modo, Guimarães Rosa utilizou os

elementos das narrativas populares não se submetendo, porém, “à tirania da gramática e dos

dicionários dos outros”, como disse em entrevista a Günter Lorenz (Lorenz, 1991. p. 70),

deixando, assim, fluir, num idioma próprio, um estilo inovador, lírico, delta de muitos rios.

Entretanto, torna-se extremamente difícil interpretar uma obra de arte, já que isso

implica em uma expressão simbólica e subjetiva do autor. Desse modo, minhas considerações

iniciais investigam os temas que se destacam na trama e sob os quais, acredito, é concebida a

história e, para isso, impõe-se uma exposição abreviada do texto, trabalho que pode parecer

complexo, por se tratar de um livro com mais de quinhentas páginas, como se estrutura o

Grande sertão: veredas, mas, na verdade, é tarefa leve discorrer sobre esse enredo.

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Riobaldo, ex-jagunço, é o protagonista e narrador da história que é relatada em um

pressuposto diálogo com um doutor proveniente da cidade. A fala do sertanejo, que se inicia

por um travessão, estende-se por todo o romance, como um caudaloso rio, sendo apreendida

pelo interlocutor, que parece mostrar-se ávido em ouvir as experiências vivenciadas pelo

contador. Estórias que exigem tempo e para isso o ouvinte é convidado a permanecer alguns

dias nesse intento, tomando notas em uma caderneta, tal qual um avatar do autor. Walnice

Nogueira Galvão em “Riobaldo, o homem das metamorfoses”, expõe a seguinte análise:

Tudo indica que João Guimarães Rosa tenha contrabandeado um simulacro seu para dentro do livro. E isso porque muitas vezes se colocou na posição de ouvinte de um narrador sertanejo, cujo relato provocou. Ele mesmo oriundo da vila de Cordisburgo, no sul do sertão de Minas Gerais, onde seu pai, Florduardo Rosa (de nome eminentemente rosiano), era dono de uma venda que ainda hoje lá está, preservada como museu. Todavia, o escritor partiria para a cidade, primeiro para São João del Rei e em seguida para Belo Horizonte, em função de seus estudos secundários e depois superiores, em medicina. E mais tarde, ao ingressar na carreira diplomática, passaria a viver no exterior; e só na última fase de sua vida moraria no Rio de Janeiro. (Galvão, 2001, p. 239-240)

O velho Riobaldo que rememora o passado acolhe o visitante, segundo ele, “assisado e

instruído”, na propriedade herdada do padrinho, Selorico Mendes, de quem, na verdade, era

filho bastardo. No proêmio de sua narrativa – relato não linear – explica ao interlocutor que os

tiros que este ouvira nada significavam:

– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos – O senhor tolere, isto é o sertão. (Rosa, 2006, P. 7)

Nesse introito já estão presentes algumas proposições que permeiam a obra: a vida de

jagunço e o dualismo da alma sertaneja, no temor ao Demônio bem como ao próprio homem e

às relações que este pode estabelecer entre o Bem e o Mal, o que incita Riobaldo a buscar

explicações, num constante especular sobre a paradoxalidade da condição humana.

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Prosseguindo no resumo do relato de Riobaldo, este relembra as andanças pelo sertão,

primeiramente como professor de Zé Bebelo, uma espécie de representante dos poderosos da

região na intenção de extinguir a jagunçagem das terras sertanejas, que o âmbito do romance

circunscreve a regiões interioranas de Minas, Bahia e Goiás. Posteriormente, Riobaldo se

integra ao bando de Joca Ramiro, combatido pelos bebelos, mas admirado por seus

comandados como verdadeiro “par-de-frança” do sertão, em que mandava por lei, “de

sobregoverno”. Como homens de confiança de Joca Ramiro, “ombreavam com ele” Ricardão

e Hermógenes os quais, traiçoeiramente o assassinaram. Antes disso, entre os companheiros

do famoso chefe, Riobaldo reencontra o “Menino”, que conhecera ainda mocinho, por volta

dos quatorze anos de idade, à beira do Rio São Francisco, agora tornado no jagunço Reinaldo,

ou melhor, Diadorim – “O nome perpetual” – como se diz chamar secretamente o jovem de

enigmáticos olhos verdes, que desperta a afeição de Riobaldo e lhe corresponde nesse

sentimento, chegando a sofrer por ciúmes, tanto em relação à Otacília, moça a quem Riobaldo

prometera casamento, como a Nhorinhá, meretriz de lindo nome. Riobaldo é impulsionado a

vingar a morte de Joca Ramiro, pai de Diadorim, e para isso percorre os sertões em busca do

pactário Hermógenes, “Homem sem anjo-da-guarda”. Para realizar seu objetivo, Riobaldo

procura acordar com o Diabo, invocando-o na encruzilhada das Veredas Mortas, a fim de

conquistar as forças que acredita não dispor.

Diversas circunstâncias fazem com que o bando de jagunços, seguido por Riobaldo,

passe por várias chefias: Medeiro Vaz, Sôr Candelário, Marcelino Pampa e até mesmo Zé

Bebelo, que parte em captura dos assassinos de Joca Ramiro, de quem obtivera o favor da

vida em uma situação adversa. Após a evocação demoníaca, Riobaldo torna-se chefe, com o

cognome de Urutú-Branco e segue em busca dos hermógenes, convocando para isso até os

catrumanos, moradores das mais remotas regiões, levando ainda em sua companhia o menino

Guirigó e o cego Borromeu, na épica jornada em que atravessa, com sucesso agora na

segunda tentativa, uma grande extensão desértica, o liso do Sussuarão, para assim atacar de

surpresa a fazenda de Hermógenes e raptar-lhe a mulher, a fim de forçá-lo a um confronto.

Então, muitas batalhas são travadas, sendo que a luta final ocorre no arraial do

Paredão. Riobaldo que se afastara por algum tempo, pensando em salvar Otacília, que julgara

estar em perigo em uma localidade próxima ao campo de combate, volta a tempo de assistir,

do alto de um sobrado, o duelo a faca travado entre Diadorim e Hermógenes, que resulta na

morte de ambos. Tal cena convulsiona o jagunço que chega a desmaiar e ao acordar tem a

extraordinária revelação: o corpo morto de Diadorim é, de fato, um corpo de mulher. Assim

desvenda-se a “neblina” que encobrira a sua grande paixão.

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Com o passar do tempo, Riobaldo volta às Veredas Mortas e constata que este local

não existe, já que o real nome do lugar é Veredas Altas. Doente, devido à perda de Diadorim,

Riobaldo é visitado por Otacília, com a qual contrairá matrimônio, fixando residência em uma

das fazendas herdadas do pai, Selorico Mendes, de onde conta sua história para o ouvinte-

doutor da cidade, refletindo sobre a dúvida que lhe atormentara, a qual em relatos anteriores

sempre expunha ao espiritualizado compadre Quelemém de Góis: “O senhor acha que a

minha alma eu vendi, pactuário?” Incerteza que parece desanuviar-se nas palavras finais da

narrativa:

Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro.O Rio de São Francisco que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou, que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... existe é homem humano. Travessia. (Rosa, 2006, p. 607-608)

No propósito de analisar a simbologia mítica do romance rosiano dentre a diversidade

de interpretações que o texto pode induzir, é importante destacar a representação do pacto

maligno no imaginário sertanejo, assunto estudado por Leonardo Arroyo na intenção de

“colocar teses sobre o conteúdo e a origem de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães

Rosa, de filiação e raízes na cultura popular” (Arroyo, 1984, p. 4).

Especificando o título “A Megera Cartesiana” dado à introdução do seu livro, Arroyo

procura informar o quanto de intuição se sobrepõe à racionalidade na obra de Rosa, traduzida

nas próprias palavras do autor mineiro (em carta ao tradutor italiano, Edoardo Bizzari) como

antiintelectual:

Seria longo enumerar a série de estudos inspirados na saga riobaldiana. Parece difícil a abordagem de Grande Sertão: Veredas em termos de objetividade crítica. Esta dificuldade seria decorrente das próprias formas da obra, dos valores múltiplos que a integram e definem como síntese de uma herança cultural de profundas ressonâncias. O romance é uma acumulação cultural, por isto se entendendo o resumo da experiência humana na sua frequência cósmica e na sua formação de camadas de mistérios e espantos do homem. Por isso, por exemplo, o cartesianismo peca por si mesmo e por sua natureza de racionalismo feroz no exame do livro, tais os elementos subjetivos, tradicionais, de folk que dominam e informam o texto. (Arroyo, 1984, p. 4)

Para Arroyo a cultura popular, principalmente na área vivencial e lúdica, seria muito

mais representativa para a humanidade do que a criação erudita, já que, segundo o ensaísta “A

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fonte de toda a sabedoria é o próprio homem do povo”, fato muito bem aproveitado por

Guimarães Rosa, homem de grande cultura, conhecedor de vários idiomas, que no exercício

da medicina percorreu lugarejos perdidos no interior de Minas Gerais, convivendo assim com

a cotidiana expressão da cultura popular, a qual em sua obra é ressaltada sobretudo em forma

de provérbios. Arroyo observa que temas da literatura popular, como o da “donzela que vai à

guerra” motiva a narrativa riobaldiana na emblemática figura de Diadorim, mulher que se faz

passar por homem nos embates travados no sertão, despertando em Riobaldo um tumultuado

sentimento. Do ponto de vista formal, conforme Arroyo, a história de Riobaldo assimilaria

elementos característicos da novela de cavalaria especificados pelo estudioso na forma de

cantilena anônima, poema de aventuras, novela em prosa, além do “uso dos processos orais de

narrativa com a interposição e alternatividade confusa dos planos discursivos como é

característico do caso oral contado” (Arroyo, 1984, p. 88).

MEMÓRIA CULTURAL

Sedimenta-se, no que Arroyo intitula de “Cultura de Herança”, ou seja, superstições,

crenças, usos e costumes, no relato riobaldiano a explicação para a questionada “agilidade

mental, discursiva e metafísica num homem ignorante do sertão”, tal qual Riobaldo, que

define-se como leitor de almanaques e fazedor de versos, alguns destes, já ilustrados

anteriormente, humildemente avaliados por ele como “sem razoável valor”.

Além disso, Arroyo destaca o contato de Riobaldo com um livro muito conhecido em

todo o interior brasileiro, o Saint Clair das Ilhas, obra encontrada pelo jagunço em um sítio

denominado “Currais do Padre”, que curiosamente, “não tinha curral nenhum, nem padre”

(Rosa, 2006, p. 379): trecho emblemático do romance, que me inspirou a dar título a esta

dissertação de mestrado.

Mas o dono do sítio, que não sabia ler nem escrever, assim mesmo possuía um livro, capeado em couro, que se chamava ‘Senclér das Ilhas’, e que pedi para deletrear nos meus descansos. Foi o primeiro desses que encontrei, de romance, porque antes eu só tinha conhecido livros de estudo. Nele achei outras verdades, muito extraordinárias. (Rosa, 2006, p. 380)

A verdade encontrada na Arte, segundo Anatol Rosenfeld, parece ser a expressão

autêntica de uma visão, de um sentimento, de uma emoção, que para mim, em Grande sertão:

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veredas exprime de forma extraordinária as fraquezas humanas. Ademais, Arroyo esclarece

que o Saint Clair das Ilhas, da inglesa Elisabeth Helme, encantou gerações, tornando-se obra

consagrada pela cultura popular, descendendo “diretamente da lenda arturiana ou da literatura

da cavalaria andante” (Arroyo, 1984, p. 118). Assim, formou-se o “equipamento cultural”,

segundo Arroyo, que influiu na forma narrativa de Riobaldo, sendo então o substrato de

cultura popular contido no Grande sertão representativo do povo e da realidade social.

Todavia, na pesquisa de Arroyo sobre a essência popular em Grande sertão

interessou-me particularmente o capítulo “Pacto com o Diabo”, no qual o ensaísta alega que a

indagação de Riobaldo acerca de o Demo ser ele mesmo, Riobaldo, não constituiria novidade

na vinculação mágica do Diabo, porque a própria alma humana constituía-se palco do

dualismo dramático, carregando em si o bem e o mal. Alerta ainda o estudioso que considerar

Riobaldo como um Fausto é uma incômoda injustiça, isto porque, antes de Goethe, Fausto já

existia, erudita e tradicionalmente.

É comum na literatura a divisa “vender a alma ao diabo”, o que me leva a investigar na

demonologia o significado dessa divindade (oriunda do grego, daimon), situada abaixo de

Deus e acima dos homens, tanto sendo benfazeja como malfazeja. Na verdade, o dualismo

entre o bem e o mal ressaltou-se, sobretudo, pela doutrina de Zoroastro (século VI a.C.), a

qual favoreceu a crença nos entes sobrenaturais. Posteriormente, nos anos iniciais do

Cristianismo, foi estabelecida uma hierarquia entre os anjos, atribuindo-se aos demônios a

situação de anjos decaídos, expulsos do paraíso pela tentativa de se igualarem a Deus, traindo

assim a sua própria natureza, não sendo, portanto, originalmente maus, já que eram

provenientes do Bem. Desse modo, “eles se revelam inimigos de toda a natureza, antagonistas

do ser” (Chevalier-Gheerbrant, 2005, p. 329-330). Os cristãos então passaram a ser severos

repressores dos assuntos relacionados ao demônio, o que causou a morte de milhares de

mulheres por meio das fogueiras inquisitoriais do Santo Ofício, tribunal que imputava-lhes

uma conivência com o demônio. Rose Marie Muraro na “Breve introdução histórica” do

Malleus Maleficarum, escrito pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, relata

que a partir do Gênesis, “a mulher é vista como tentadora do homem, aquela que perturba a

sua relação com a transcendência e também aquela que conflitua as relações entre os homens”

(Muraro, 1991, p. 12).

Sob esse aspecto é significante a presença feminina na ficção do autor mineiro, que

pode ser exemplificada nas configurações de Maria Mutema (caso contido no Grande sertão)

e Mula Marmela, do conto “A Benfazeja”, de Primeiras Estórias (2001), personagens em que

se dispõe a poeticidade que mistura encontros e desencontros, impossibilidades, simulacros e

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busca da verdade, revelando sob o fino véu da ironia, a complexidade humana das santas e

liliths rosianas. Mula-Marmela surge no conto “A Benfazeja” sob a defesa do narrador, o qual

explica os motivos que a levaram a assassinar o marido e cegar o enteado: o bem da

comunidade. Porém, para as pessoas que não aceitam tal concepção, a benfazeja é, na

verdade, lilith. Assim, entre o grotesco e o sublime e envolta nas sombras do mistério, a

Mula-Marmela se revela na dicotomia neobarroca, que expõe o contraste entre o corpo (Mula)

e o espírito (Marmela), por meio da metáfora sofisticada de Rosa. Já Maria Mutema era uma

pessoa igual às outras, mas matara o marido e propiciara a morte de seu confessor, Padre

Ponte, sem razão alguma, crime que confessa tempos depois e, arrependida, obtém o indulto

da comunidade, chegando a ser considerada santa.

A comparação desses textos, do mesmo autor estudado neste trabalho, procura,

conforme os ensinos de Compagnon acerca do método das passagens paralelas, esclarecer

certos sentidos do Grande sertão, como a exposição do caso Maria Mutema, no contexto da

obra, no que diz respeito às contradições humanas, pois conforme expressa o crítico literário,

“No sentido restrito, toda alegoria deve poder ser verificada por uma passagem paralela

interpretável literalmente”(Compagnon, 2006, p. 69). Assim, se faz necessário pormenorizar

melhor essas estórias.

O conto “A Benfazeja”, de Primeiras Estórias, expõe questionamentos que envolvem

razão – em sua íntima relação com o verdadeiro – e sabedoria, por meio da história da mulher

que mata o marido (ao qual amava), cega o enteado (a quem vai servir de guia) e,

supostamente, também o mata. O espaço em que se desenvolve a narrativa fica à mercê do

imaginário “num lugarejo, às sombras frouxas”. O narrador, em primeira pessoa, não se

designa nominalmente, mas se define como “de fora”, o que remete ao texto de Walter

Benjamin, “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, que destaca a

necessidade de uma distância apropriada para uma melhor observação, o que neste caso,

analogamente, parece permitir divisar melhor a condição da Mula-Marmela. Na verdade, o

narrador, em “A Benfazeja”, além de observador, é manipulador, já que procura estabelecer

raciocínios acerca dos personagens, os quais, como o narrador, não são nomeados, reduzindo-

se a apelidos: Mula-Marmela, Mumbungo e Retrupé, ou seja, a benfazeja, o marido e o

enteado. Outrossim, no nome composto, Mula-Marmela, encontra-se a dicotomia corpo e

alma (caracterizando o estilo neobarroco atribuído a Rosa), que no conto relaciona-se ao

grotesco e ao sublime. No corpo distingue-se a Mula:

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A que tinha dores nas cadeiras: andava meio se agachando; com os joelhos para diante. Vivesse embrenhada, mesmo quando ao claro, na rua. Qualquer ponto em que passasse, parecia apertado. Viam-lhe vocês a mesmez – furibunda de magra, de esticado esqueleto, e o se sumir de sanguexuga, fugido os olhos, lobunos cabelos, a cara –; as sombras carecem de qualquer conta ou relevo. Sabe-se se assustava-os seu ser: as fauces de jejuadora, os modos, contidos, de ensalmeira? Às vezes, tinha o queixo trêmulo. Apanhem-lhe o andar em ponta, em sestro de égua solitária; e a selvagem compostura. Seja-se exato. (Rosa, 2001, p. 176-177)

Na alma encontra-se a Marmela, doce fruto do Bem, mesmo que esse contradiga o

bom senso (ou o senso comum do Bem, de tudo o que é absolutamente bom), pois ela era a

benfazeja, destinada a livrar a comunidade do “muito criminoso” Mumbungo e do “vilão”

Retrupé, “filho tal-pai-tal”, transformando-os no “dócil morto” e no “impedido cego”. No

entanto, os habitantes do povoado não a compreendem e a repudiam, pois, diz o narrador: “Se

ninguém entende ninguém; e ninguém entenderá nada, jamais; esta é a prática verdade”

(Rosa, 2001, p. 186).

A estética neobarroca também é visível no contraste entre o claro e o escuro, visto que

a Mula-Marmela personifica-se como os olhos do cego Retrupé e, ao mesmo tempo, é sua

“sombra-da-alma”. Desse modo, a Mula-Marmela e o cego Retrupé formam “sobrossoso

séquito”, tal qual “loba e cão”, figuras simbolicamente antagônicas, mas que contêm

igualmente o aspecto ctônico, infernal. O jogo de luzes e a força dos conflitos presentes na

narrativa levam à associação com os conceitos de yin e yang (Chevalier-Gheerbrant, 2005, p.

968) os quais são, na filosofia oriental, princípios contrários que se harmonizam,

representados pelas duas partes de um mesmo círculo, uma escura, o yin, feminino e

simbolizando a terra; a outra, iluminada, o yang, masculino, associado ao céu (que fecunda a

terra). Essas forças contrárias podem prestar-se, em “A Benfazeja”, à interpretação do

processo cíclico de vida e morte.

A experiência da morte, tão significativa no conto em questão, remete novamente a

Benjamin, para quem “A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar” (Benjamin,

1985. p. 208), pois, em “A Benfazeja”, o enredo desenvolve-se a partir da morte de

Mumbungo, sucedida pela de Retrupé e finaliza com a descrição do cachorro morto sendo

carregado às costas da Mula-Marmela. Esse episódio tanto pode sugerir a epifania, a súbita

revelação em que a personagem percebe, e aceita, sua sina, bem como pode sugerir uma

condenação (um martírio para expiar sua culpa), pois carregar cães já foi considerado uma

pena infamante em tempos remotos (Lexikon, 2004, p. 44). Além disso, o texto não apresenta

justificativas para esse ato e assim, sem explicação, sobram espaços para que o leitor seja

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também autor, possibilitando reflexões que buscam a verdade, a alétheia da Mula-Marmela,

conforme aconselha o narrador: “Pensem, meditem nela, entanto” (Rosa, 2001, p. 187).

Interessante também é meditar sobre Maria Mutema, mulher sertaneja, que não ria,

“lenho seco”. Maria Mutema matara o marido e propiciara a morte de seu confessor, Padre

Ponte, sem razão alguma, apenas pelo “prazer do cão”. Tempos depois, um missionário que

passava pelo arraial provoca-lhe a confissão dos crimes. Revelação assim contada:

E Maria Mutema, sozinha em pé, torta magra de preto, deu um gemido de lágrimas e exclamação, berro de corpo que faca estraçalha. Pediu perdão! Perdão forte, perdão de fogo, que da dura bondade de Deus baixasse nela, em dôres de urgência, antes de qualquer hora de nossa morte. E rompeu fala, por entre prantos, ali mesmo, a fim de perdão de todos também, se confessava. Confissão edital, consoantemente, para tremer exemplo, raio em pesadelo de quem ouvia, público, que rasgava gastura, como porque avessava a ordem das coisas e o quieto comum do viver transtornava. Ao que ela, onça monstra, tinha matado o marido – e que ela era cobra, bicho imundo, sobrado do podre de todos os estercos. Que tinha matado o marido, aquela noite, sem motivo nenhum, sem malfeito dele nenhum, causa nenhuma –; por que, nem sabia. Matou – enquanto ele estava dormindo – assim despejou no buraquinho do ouvido dele, por um funil, um terrível escorrer de chumbo derretido. O marido passou, lá o que diz – do oco para o ocão – do sono para a morte, e lesão do buraco do ouvido dele ninguém não foi ver, não se notou. E, depois, por enjoar do Padre Ponte, também sem ter queixa nem razão, amargável mentiu, no confessionário: disse, afirmou que tinha matado o marido por causa dele, Padre Ponte – porque dele gostava em fogo de amores, e queria ser concubina amásia... Tudo era mentira, ela não queria nem gostava. Mas, com ver o padre em justa zanga, ela disso tomou gosto, e era um prazer de cão, que aumentava de cada vez, pelo que ele não estava em poder de se defender de modo nenhum, era um homem manso, pobre coitado, e padre. Todo o tempo ela vinha em igreja, confirmava o falso, mais declarava – edificar o mal. E daí, até que o Padre Ponte de desgosto adoeceu, e morreu em desespero calado... Tudo crime, e ela tinha feito! E agora implorava o perdão de Deus, aos uivos, se esguedelhando, torcendo as mãos, depois as mãos no alto ela levantava. (Rosa, 2006, p. 225-226)

Pelo arrependimento declarado, Maria Mutema obtém o perdão do povo, chegando a

ser considerada santa. O próprio nome da personagem já é um indício dessa transformação:

Mutema, mutação. Assim, é perceptível nas histórias da Mula Marmela e de Maria Mutema

um elo de ligação entre as personagens, as quais superam o estigma do bem e do mal,

manifestando-se nem como santas nem como liliths, mas como humanas mulheres.

Outrossim, é relevante lembrar que o modo utilizado por Maria Mutema para matar o marido,

veneno derramado no ouvido, recria a maneira pela qual o Rei Hamlet, personagem de

Shakespeare, é assassinado.

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Voltando às perspectivas de Arroyo, relacionadas à cultura popular presente no

Grande sertão o ensaísta enumera algumas considerações finais: primeiramente cita o

conhecimento de Riobaldo como fruto de progressiva pesquisa entre aqueles que o rodeavam,

acrescida, é claro, da herança cultural. Acredita que há um predomínio das técnicas populares

do pacto demoníaco em Riobaldo, ao qual o jagunço foi levado tanto pelo amor a Diadorim

como também pelo ódio a Hermógenes, o que pode ser comprovado, de acordo com os

preceitos populares da afirmação do pacto efetivada em forma de vento, conforme expõe

Arroyo nas palavras de Riobaldo: “‘ao que eu recebi de volta um adejo, um gozo de agarro,

daí umas tranqüilidades – de pancada’. O frio, o friúme e a ausência de sonhos foram

elementos comprovadores do pacto” (Arroyo, 1984, p. 245).

Arroyo destaca ainda o pacto como deflagrador da autoconfiança de Riobaldo e, deste

modo, “O Diabo é o homem mesmo – o homem arruinado ou o homem dos avessos – e por

isso existe” (Arroyo, 1984, p. 245). Conclui o ensaísta dizendo que

Na profunda convulsão psicológica resultante do pacto, Riobaldo ficou, eruditamente, com o drama de Fausto no trágico conflito moral: a dúvida sobre a possibilidade de vender a alma. Nesse traço há uma concessão à solução erudita da narrativa em função da dramaticidade da estória. No caso, a tradição popular é mais sábia. Não foi utilizada a solução encontradiça na literatura popular, ou seja, a de enganar o Diabo e salvar-se o pactuário. (Arroyo, 1984, p. 245-246)

Riobaldo, cujo embate em vender-se ao mal, na pactuação com o demônio, e a

impossibilidade de concretizar essa intenção, mostra não se tratar apenas de um jagunço,

especificamente, mas de um personagem representativo dos conflitos do homem ocidental na

primeira metade do século XX, conforme expõe Donaldo Schüler, pertencendo assim “[...] à

linhagem de que são representantes O castelo de Kafka, o Ulisses de Joyce, A montanha

mágica de Thomas Mann [...]” (Schüler, 1991, p. 364). Para esse estudioso da obra rosiana a

saga de Riobaldo ultrapassa a história do ódio de Diadorim em busca de vingar a morte de

Joca Ramiro, pois Schüler acredita que no Grande sertão “narra-se não só a busca dos

assassinos de Joca Ramiro, narra-se também a história de um homem que se busca a si

mesmo” (Schüler, 1991, p. 363). Conforme já citado na introdução desta dissertação,

Riobaldo está vinculado ao mito mas quer se libertar dele e, fundamentando-se no uso da

razão, romper com os preconceitos e crenças, circunstância que pode lhe proporcionar

apreender o universo e aperfeiçoar sua própria condição, como exemplifica-se na seguinte

fala, já referida anteriormente, a qual acentua a que aspirava o narrador:

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Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que conduz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, mas não sabe, não sabe, não sabe! (Rosa, 2006, p. 100)

Contudo, Riobaldo não fica somente a especular sobre vida e morte, bem e mal, na

constatação de sua realidade intrínseca e social, contada no monólogo revelador de um

homem, interiorano, brasileiro e indivíduo do mundo. Segundo destaca Schüler, Riobaldo não

é apenas um talento metafísico a se preocupar com o sentido das coisas, mas “[...] é também

um homem que sabe amar e admirar. Esta outra qualidade inunda o romance de intensa

poesia” (Schüler, 1991, p. 365). Beleza a que me volto agora, nesse caminhar pelo sertão.

O ESPRAIAR POÉTICO

A linguagem da narrativa, muitas vezes considerada complexa, é como o fruto doce do

Buriti, palmeira que se destaca na paisagem do Grande sertão e de cujo estipe resulta um

apreciado vinho, inebriante como a fala de Riobaldo. Subvertendo a formalidade da língua no

léxico, na morfologia e na sintaxe, Guimarães Rosa exibe no texto uma linguagem

caracterizada por uma mescla de palavras arcaicas, populares e terminações afetivas, além de

vocábulos específicos ao ambiente sertanejo mineiro de onde provém o protagonista da

história. Analogamente pode-se dizer que no romance rosiano percorrem-se as regiões

agrestes sob a guarida dos buritizais, já que cada palavra desse extenso contar é fruto

proveitoso conduzindo a semente de uma expressividade nova, feita de prosa e de poesia, a se

iniciar por um nonada, coisa sem importância, e se estender por um longo caminho, que

continua mesmo após a palavra final que encerra essa travessia.

Riobaldo contando a sua própria história diz que se esquiva de comentar sobre o

demo: “Do demo? Não gloso” (Rosa, 2006, p.8), conforme também sucede aos demais

moradores do sertão, os quais “Em falso receio, desfalam do nome dele – dizem só: o Que-

Diga” (Rosa, 2006, p. 8). Paradoxalmente, o inominado, então, suscita dezenas de epítetos

para tornar presente na história o personagem oculto: o Que-Diga, o Que-Não-Fala, o Que-

Não-Ri, o Pai-da-Mentira, o Pai-do-Mal, o Maligno, o Coisa-Ruim, o Coxo, o Capeta, o

Capiroto, o Das-Trevas, o Pé-de-Pato, o Bode-Preto, o Cão, o Morcegão, o Danado, o Diá, o

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Diabo, o Demônio, o Dião, Barzabu, Lúcifer, Satanás, o Sujo, o Outro, o Ele, o Dos-Fins, o

Solto-Eu, o O..., dentre tantas outras designações. Mas, segundo Pedro Xisto, em “A busca da

Poesia” (1991), “o que dá de pensar”, mesmo, são cinco nomes:

O Dos-Fins – o demônio escatológico. O Solto-Eu – O demônio psicanalítico. O Outro – o demônio sociológico (Sartriano?... ‘l’enfer, c’est les Autres’). O Ele – o demônio mítico. E este irredutível ‘o O’ – o fim do fim; o símbolo aqui da negação absoluta, a expressão do pavor mudo, do pavor sobrenatural que não ousa formular o nome nefando... (Xisto, 1991, p. 132)

Esse “O”, segundo Xisto, concentra numa única letra a supremacia da Poesia,

exprimindo, simbolicamente, uma letra ou um zero e, alegoricamente, o último círculo do

Inferno de Dante, ou ainda o círculo central, imóvel, de Plotino, que no livro de novelas de

Rosa, Corpo de Baile, é inscrição primordial. Esse “O”, que poderia ser um nonada fez, de

acordo com Xisto, com que se excluam “O nominável e o inominável”, tornando-se assim o

ponto por onde a Poesia supera a tentação do inefável e do nefando, diz Xisto.

A poesia surge no âmbito do romance de Rosa sob a forma da prosa, pois a narrativa é

entremeada de um lirismo confessional. Dentre tantas passagens que transbordam sentimentos

creio ser conveniente ressaltar sobretudo alguns motivos centrais que se destacam na obra,

não deixando de lado, porém, a contemplação da natureza, bichos e plantas, “a alegria de

amor” e o “razoável sofrer” que se misturam no Grande sertão. Um dos leitmotiv encontra-se

no subtítulo e também em outros trechos da obra: “O diabo na rua no meio do redemoinho”,

como exemplifica o seguinte excerto, capaz de suscitar diversas reflexões.

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa importância. Tomara não fosse. Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela – já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Nunca vi. Alguém devia de ver era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: ‘menino – trem do diabo’? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes. ...O diabo na rua, no meio do redemunho... (Rosa, 2006, p. 10-11)

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O redemoinho que pode ser a representação tanto de uma regressão irresistível ou de

um progresso acelerado (Chevalier, Gheerbrant, 2008, p. 773), em uma “simbólica evolução

incontrolada pelos homens e dirigida por forças superiores” (Chevalier, Gheerbrant, 2008, p.

73), parece relacionar-se em uma analogia de fugacidade e instabilidade a outra frase

constante na narrativa: “Viver é muito perigoso”, como no trecho em que Riobaldo expõe o

relativismo do seu saber:

De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi pensando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco; sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso... (Rosa, 2006, p. 10)

Em meio “as coisas divagadas”, quando alude pela primeira vez a Diadorim, Riobaldo

diz que queria morrer pensando no amigo, pois “Só pensava era nele”. Sentimento que vem

abruptamente à tona na casualidade da narrativa e que se mantém constante na história,

mesmo que muitas vezes repudiado, devido a sua impossível exteriorização: “Ah, eu pudesse

mesmo gostar dele – os gostares...” (Rosa, 2006, p. 50), lamenta o jagunço. Todavia, nos

passeios com Reinaldo (Diadorim) – que se iniciam quando este era ainda o dessemelhante

Menino – Riobaldo, no enlevo dessa companhia, aprende a apreciar a natureza, as garças, o

rio, o manuelzinho-da-crôa, passarinho mais bonito, de “rio-abaixo e rio-acima”:

Até aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido dizer de se parar apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera deles pássaros, em seu começar e descomeçar dos vôos e pousação. Aquilo era para se pegar a espingarda e caçar. Mas o Reinaldo gostava: – ‘É formoso próprio...’ – ele me ensinou. Do outro lado, tinha vargem e lagoas. P’ra e p’ra, os bandos de patos se cruzavam. – ‘Vigia como são esses...’ Eu olhava e me sossegava mais. O sol dava dentro do rio, as ilhas estando claras – ‘É aquele lá: lindo!’ Era o manuelzinho-da-crôa, sempre em casal, indo por cima da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras, desempinadinhos, peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer alimentação. Machozinho e fêmea – às vezes davam beijos de biquinquim – a galinholagem deles. – ‘É preciso, olhar para esses com um todo carinho...’ – o Reinaldo disse. Era. Mas o dito, assim, botava surpresa. E a macieza da voz, o bem-querer sem propósito, o caprichado ser – e tudo num homem d’armas, brabo bem jagunço – eu não entendia! Dum outro, que eu ouvisse, eu pensava: frouxo, está aqui um que empulha e não culha. Mas, do Reinaldo, não. O que houve, foi um contente meu maior, de escutar aquelas palavras. Achando que eu podia gostar mais

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dele. Sempre me lembro. De todos, o pássaro mais bonito que existe é mesmo o manuelzinho-da-crôa. (Rosa, 2006, p. 143)

Manuelzinho-da-crôa, passarinho, em par amoroso, trazendo a lembrança de

agradáveis terras: “O manuezinho-da-crôa! Diadorim comigo. As garças, elas em asas. O rio

desmazelado, livre rolador” (Rosa, 2006, p. 286). Contudo, o gostar de Riobaldo também

toma outras cores, como na paragem na Aroeirinha, na forma de Nhorinhá, mulher moça,

vestida de vermelho, que se ria tão bonita a servir ao jagunço café-coado e limonada de pêra-

do-campo. Assim, nas sutilezas de Rosa, mais uma vez toda poeticidade é revelada no

encontro de Riobaldo com a prostitutriz, retratada nessas recordações: “Recebeu meu carinho

no cetim do pêlo ─ alegria que foi, feito casamento esponsal. Ah, a mangaba boa só se colhe

já caída no chão, de baixo... Nhorinhá” (Rosa, 2006, p. 33). Também há o amor imaculado,

metaforicamente representado na passagem em que Riobaldo pergunta o nome da flor branca

do jardim da risonha “e descritiva de bonita” Otacília, a qual responde: “Casa-comigo”.

Pergunta que, comenta o jagunço, se fosse feita a Nhorinhá, a resposta seria “Dorme-comigo”.

Riobaldo explica então para o ouvinte-doutor: “E essa flor é figurada, o senhor sabe? Morada

em que tem moças, plantam dela em porta da casa-de-fazenda. De propósito plantam, para

resposta e pergunta. Eu nem sabia. Indaguei o nome da flor” (Rosa, 2006, p. 190).

É interessante observar a simultaneidade das lembranças de Nhorinhá e Otacília,

díspares gostares, carnal e espiritual ou, conforme Benedito Nunes (1998, p.34),

“dissemelhantes mulheres” da vida do jagunço. Mas, se o Amor é desejo, como pode ser

interpretado na leitura de o Banquete, de Platão, e se esse desejo reflete uma carência de

felicidade, impossibilitada de atingir, então para Riobaldo o Amor, não satisfeito e idealizado,

é Diadorim, conforme explícito no seguinte trecho do relato ao doutor citadino:

Tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um aceso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim, e também, recesso dum modo, a raiva incerta, por ponto de não ser possível dele gostar como queria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a voz dele. Que mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre. (Rosa, 2006, p. 39)

Diadorim deixou o rastro dele para sempre em todas as “quisquilhas da natureza”,

testemunha Riobaldo, mas também encaminhou o jagunço, por meio de comum acordo, ao

ajuste de contas com Hermógenes, assassino de Joca Ramiro, levando Riobaldo a pleitear o

pacto diabólico, incrédulo que era em suas próprias condições para tal fim. Diadorim, neblina

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no viver de Riobaldo, desviando os amores possíveis por Nhorinhá e Otacília, personaliza o

mistério e a poesia no “irremediável extenso da vida” (Rosa, 2006, p. 29). Benedito Nunes

(1991) discorre perfeitamente sobre o modo de amor de Riobaldo por Diadorim, incomparável

ao de Otacília e Nhorinhá:

Nele o divino e o diabólico são permutáveis e simbolizam dois momentos da aventura que se realiza no homem – o momento ancestral, do velho ser humano dividido, que permanece presa das forças elementares, materiais e sensíveis, e o momento por vir, que lentamente se prepara, da transformação do humano em divino, e em relação ao qual a vida constitui uma iniciação e uma aprendizagem. (Nunes, 1991, p. 165)

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3 O TEMA DO PACTO

ABSOLUTAS ESTRELAS

A aprendizagem no trilhar de Riobaldo, neste estudo, é observada sob a perspectiva da

metafísica e dos aspectos míticos que envolvem o suposto acerto com o demo nas Veredas

Tortas, Veredas Mortas ou como é finalmente identificado o lugar do pacto, Veredas Altas,

pelas quais seguiu o jagunço.

A aventura épica, e metafísica, de Riobaldo transcende o que pode ser dito e, portanto,

é também simbolicamente representada por meio das ilustrações estampadas nas orelhas da

segunda edição do romance, desenhadas por Poty sob a orientação de Guimarães Rosa, numa

clara proposição do que pode ser conhecível e do que mostra-se apenas intuível.

Associativamente, esse fato lembra a concepção do filósofo grego Anaximandro, o qual

procurou abstrair o sensível em prol do puramente conceitual ou, na acepção de Platão, o

mundo inteligível em oposição ao sensível.

A palavra metafísica originou-se no século I a.C., quando Andrômaco de Rodes, com

a finalidade de editar as obras esotéricas de Aristóteles, agrupou os textos que se referiam “à

ciência do ser como ser, aos princípios primeiros e às causas primeiras”, conforme expõe o

Dicionário Filosófico (Comte-Sponville, 2001). Então, a coletânea, que vinha depois da

física, tomou a denominação, não encontrada em Aristóteles, de “Metà tà physiká, ou seja,

livro que vem depois da física e talvez também, conforme Comte-Sponville, livro que vai

além dela, pois metá (em grego) pode ter esses dois sentidos. Comte-Sponville, abordando

ainda o verbete Metafísica, destaca a frase de Schopenhauer acerca de o homem ser um

animal metafísico, isso porque, de acordo com esse filósofo, o homem se espanta com a sua

própria existência, bem como com a existência do mundo e, enfim, com a existência de tudo.

Esse espanto com o mundo e a busca por respostas caracteriza o personagem principal do

Grande sertão: o especulador Riobaldo, o qual questionando o mundo ao nível do ser tenta

compreender sua história de vida.

Explicando o simbolismo das palavras que encerram o título do romance, Grande

sertão: veredas, Francis Utéza relata a importância de se reter o que o adjetivo grande

acrescenta ao substantivo sertão:

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Não se trata apenas de uma simples questão espacial: é a anteposição do próprio arquétipo, é o sagrado que se instaura no além do profano. As veredas-oásis, que nos Gerais de Minas e de Goiás equilibram com fluidos a secura do sertão, tornam-se caminhos que levam ao conhecimento, ao princípio indiferenciado, ao Tao dos orientais. (Utéza, 1994, p. 56)

O Taoísmo, sistema filosófico esotérico, privilegia a intuição em detrimento da razão e

conforme confidenciou em carta a Edoardo Bizzari, Rosa privilegiava esse pensamento, bem

como as perspectivas dos Vedas e dos Upanixades, dos Evangelistas e de São Paulo, e ainda

de Platão, Plotino, Bergson, Berdiaeff e, “principalmente”, de Cristo.

Desse modo, o caminho de Riobaldo pelo Grande sertão pode ser interpretado como

um percurso místico, marcado tanto pelo temor nas Veredas Mortas, quanto pelo despertar

após a suposta efetivação do pacto. O sentido mais alto das coisas é referido pelo jagunço ao

seu interlocutor, doutor da cidade:

O senhor tolere minhas más devassas no contar. É ignorância. Eu não converso com ninguém de fora, quase. Não sei contar direito. Aprendi um pouco foi com o compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa. (Rosa, 2006, p. 198)

Guimarães Rosa desperta a atenção para essa sobre-coisa desde o simbolismo das

ilustrações até o emblemático discorrer sobre o sertão, lugar de religiosidade e superstições, as

quais se inserem já nas primeiras linhas com a descrição do bezerro erroso, com

características de gente e de cão que, assim, para o povo ingênuo, “— era o demo”. Outras

manifestações exemplificam a presença do diabo no Grande sertão, espaço ambíguo, sagrado

e profano, pois, como diz Riobaldo, “[...] o sertão é grande ocultado demais” (Rosa, 2006, p.

505). Contudo, esse mundo à parte, sertão, é também uma realidade mineira e mesmo

universal, podendo ser a representação de um sentimento ou de uma ilusão: “o sertão é uma

espera enorme” (Rosa, 2006, p. 575). Sob essa ambiguidade o sertão assume então um

conceito metafísico, inserido em uma dimensão temporal em que o narrador, no tempo

presente, expõe um passado que alude à República Velha e às guerras entre jagunços – que

apresentam uma ambivalência, oscilando entre o bem e o mal – patrocinadas pelas disputas de

poder dos coronéis, como eram chamados, em geral, os proprietários de terras no interior do

Brasil: “Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus

mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal...” (Rosa,

2006, p. 19). Todavia, na obra literária de Rosa, às vezes há apenas uma tênue neblina

encobrindo esse sertão:

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Sertão velho de idades. Porque – serra pede serra – e dessas, altas, é que o senhor vê bem: como é que o sertão vem e volta. Não adianta se dar as costas. Ele beira aqui, e vai beirar outros lugares, tão distantes. Rumor dele se escuta. Sertão sendo do sol e os pássaros: urubú, gavião – que sempre vôam, às imensidões, por sobre... Travessia perigosa, mas é a vida. Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe. Ali envelhece vento. E os brabos bichos, do fundo dele... (Rosa, 2006, p. 542)

A travessia do sertão suscita uma busca da verdade, pois, de acordo com Mircea

Eliade, todo caminho pode simbolizar o caminho da vida e na peregrinação de Riobaldo,

jagunço que tem a consciência de ser um “nadinha de nada”, compactuar com o demo

equivaleria a conquistar o poder e, consequentemente, conquistar a realidade. Eliade diz que o

sagrado está saturado de ser.

Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. A oposição sagrado/profano traduz-se muitas vezes como uma oposição entre real e irreal ou pseudo-real (não se deve esperar encontrar nas línguas arcaicas essa terminologia dos filósofos – real-irreal etc. –, mas encontra-se a coisa). É, portanto, fácil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser, participar da realidade, saturar-se de poder. (Eliade, 1999, p. 18-19)

Eliade explica que para o homem religioso o espaço não é homogêneo, apresentando,

pois, áreas qualitativamente diferentes: sagradas, que realmente existem, e não-sagradas, sem

consistência, amorfas. Essa real existência do sagrado se dá, conforme Eliade, porque este se

manifesta, mostrando-se como algo absolutamente diferente do profano, ainda que essa

manifestação se faça em objetos, coisas do mundo profano. Ademais, Eliade expõe que o

sagrado e o profano constituem dois modos de ser no mundo, ou melhor, duas situações

existenciais assumidas pelo homem no decorrer da sua história, modos de ser que não

interessam somente ao filósofo, mas “[...] a todo investigador desejoso de conhecer as

dimensões possíveis da existência humana” (Eliade, 1999, p. 20).

Marilena Chaui diz que o conceito do sagrado traduz a presença de uma potência ou

força sobrenatural que venha a habitar algum ser tal como planta, animal, humano, coisas,

ventos, águas, fogo:

Essa potência é tanto um poder que pertence própria e definitivamente a um determinado ser quanto algo que ele pode possuir e perder, não ter e adquirir. O sagrado é a experiência simbólica da diferença entre os seres, da superioridade de alguns sobre outros, do poderio de alguns sobre outros –

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superioridade e poder sentidos como espantosos, misteriosos, desejados e temidos. (Chaui, 2005, p. 252-253)

No Grande sertão Riobaldo procura uma força ou a aquisição de um poder que o leve

a atingir sua pretensão: exterminar Hermógenes, bem como compreender os “ocultos

caminhos”, pois, constata o jagunço, “Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a

fazer outras maiores perguntas” (Rosa, 2006, p. 413). Em relação a esses aspectos,

reproduzindo a fala de Riobaldo, está chegando a hora de ponderar sobre “as coisas muito

estranhas” (Rosa, 2006, p. 381), isto é, de adentrar as Veredas Mortas, abordando assim o

tópico principal sobre o qual deve versar essa dissertação.

O episódio das Veredas Mortas, no Grande sertão, é precedido por uma estadia da

tropa de jagunços, liderados por Zé Bebelo, num “retiro taperado”, cujo nome, Coruja,

simbolicamente conhecida como ave dos mortos (Lexikon, 2004, p. 66), já é indício de maus

presságios. Assim, vai se mostrando o “[...] lugar demarcado, começo de um grande penar em

grandes pecados terríveis” (Rosa, 2006, p. 401), pois a poucos metros se abria um córrego de

“[...] água sem-cor por sobre de barro preto” (Rosa, 2006, p. 401) de onde fluíam duas

veredas, que logo depois, alargadas, formavam “um tristonho brejão”: as Veredas-Mortas, em

forma de encruzilhada no meio do cerrado. Nesse chão, que cheirava a “outroras”, Riobaldo

teve limite certo. O jagunço conta que durante a permanência na Coruja muitos companheiros

ficaram adoentados, e ele próprio alterava-se na intenção de um projeto que “queria ser e

ação”. A coruja, segundo Chevalier-Gheerbrant, também simboliza o conhecimento racional

em oposição ao intuitivo, como percebe-se nas reflexões de Riobaldo no lugar sagrado,

nomeado de ave noturna:

Conforme eu pensava: tanta coisa já passada; e, que é que eu era? Um raso jagunço atirador, cachorrando por este sertão. O mais que eu podia ter sido capaz de pelejar certo e de fazer; e no real eu não conseguia. Só a continuação de airagem, trastêjo, trançar o vazio. Mas, por que? – eu pensava. Ah, então, sempre achei: por causa de minha costumação, e por causa dos outros. Os outros, os companheiros, que viviam à-tôa, desestribados; e viviam perto da gente demais, desgovernavam toda-a-hora a atenção, a certeza de se ser, a segurança destemida, e o alto destino possível da gente. De que é que adiantava, se não, estatuto de jagunço? Ah, era. Por isso, eu tinha grande desprezo de mim, e tinha cisma de todo o mundo. (Rosa, 2006, p. 404)

Lembrando os dias tediosos passados na Coruja, e questionando o modo de ser

jagunço – tão prestativo uns com os outros nas doenças e tão ferozes contra as desamparadas

aldeolas sertanejas – Riobaldo interpela o interlocutor, doutor da cidade: “O senhor me

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entende?” (Rosa, 2006, p. 406), e, ao mesmo tempo, revela o que temia: “Eu tinha medo de

homem humano” (Rosa, 2006, p. 406). Nesse pensar, surge um entendimento: “...só o

demo...” (Rosa, 2006, p. 407), que se personifica no inimigo, Hermógenes. Hermógenes

Saranhó Rodrigue Felipes, “positivo pactário” – confirma o jagunço Lacrau para Riobaldo –,

que, como sinais do “Coisa-Má”, “não sofria nem se cansava, nunca perdia nem adoecia; e, o

que queria, arrumava, tudo” (Rosa, 2006, p. 408). Coisas angariadas por prazo certo,

assinando a alma em pagamento, e capazes de demudar o pactário. Sem crer e

paradoxalmente acreditando no palavreado do comparsa, Riobaldo busca uma razão maior, ou

seja, o que ainda não tinha sido capaz de executar, convocando para isso, numa encruzilhada,

à meia-noite, a aparição daquele em que não cria.

Do Tristonho vir negociar nas trevas de encruzilhadas, na morte das horas, soforma dalgum bicho de pêlo escuro, por entre chorinhos e estados austeros, e daí erguido sujeito diante de homem, e se representando, canhim, beiçudo, manquinho, por cima dos pés de bode, balançando chapéu vermelho emplumado, medonho como exigia documento com sangue vivo assinado, e como se despedia, depois, no estrondo e forte enxofre. Eu não acreditava, mesmo quando estremecia. (Rosa, 2006, p. 411)

Na Coruja também se dá a chegada de seô Habão, dono de terras, a provocar mais

inquietações em Riobaldo, no reconhecimento de que “[...] fazendeiro – mór é sujeito de terra

definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório” (Rosa, 2006, p. 413).

Além disso, a chegada de outros camaradas, o bando de João Goanhá, proporciona novidades,

o que incentiva Riobaldo à resolução final, o acerto com o “Pai do Mal”, como procura

explicar ao ouvinte citadino: “... Agora, por que? Tem alguma ocasião diversa das outras?

Declaro ao senhor: hora chegada” (Rosa, 2006, p. 418).

A encruzilhada expressa, simbolicamente, o centro do mundo no momento fixado,

lugar de revelações e aparições e de passagem de uma vida a outra e que figura ainda,

segundo Chevalier-Gheerbrant, como cômpito de cada ser humano, onde se cruzam os

aspectos diversos de cada pessoa. Sobretudo, a encruzilhada representa o enfrentamento do

desconhecido, desencadeando assim, no encontro com o sagrado, o medo ou uma tomada de

decisão, como parece espelhar a aventura de Riobaldo, aventura humana, em cujo encruzar

dos caminhos o jagunço depara-se consigo mesmo, na procura por respostas definitivas e

autoconfiança para agir e atuar sobre os companheiros, em prol de seu próprio bem e para o

mal de Hermógenes, o que envolve executar a vingança pretendida por Diadorim.

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Riobaldo busca novidades, movimento, mudança e, nessa dinamicidade e renovação,

procura atentar para o sentido da travessia da vida, no permanente fluir que se assemelha aos

rios tão citados na narrativa, com a prevalência do São Francisco (transposto, real e

misticamente, de uma banda a outra por Riobaldo e Diadorim, ainda meninos), representando

em suas duas margens situações diferentes ou sentimentos opostos: o bem e o mal; Deus e o

demo; Diadorim e Otacília; sertão e veredas. No empenho por uma certeza, Riobaldo dirige-se

para o local do acerto diabólico, as Veredas Mortas, apresentadas como um lugar alto: “então

eu subi de lá, noitinha” (Rosa, 2006, p. 418), diz o narrador, explicando que para alcançar tal

destino teve que atravessar uma terra ruim, espinhenta, uma capoeira e ainda um cerrado mato

até atingir o “concruz dos caminhos”, o qual se desenha como o centro do mundo, espaço

sagrado que para Mircea Eliade é onde se efetiva uma rotura dos níveis, nos quais Terra, Céu

e regiões inferiores tornam-se comunicantes; comunicação que, às vezes, é expressa por meio

da imagem de uma “coluna universal” (Eliade, 1999, p. 38). Essa coluna parece, na história

riobaldina, ser representada tanto pelo lugar alto, as veredas em que o pacto é pressuposto,

como também pela “árvore mal vestida”, ao lado da qual Riobaldo aguarda o pactário, ou

seja, uma espécie de axis mundi a promover uma transcendência, o que analogamente lembra

a travessia das margens opostas do rio, e da vida, narrada pelo já velho jagunço. Francis Utéza

em Metafísica do Grande Sertão esclarece que o episódio “trata de uma ascensão e não de

uma descida para os infernos: as veredas mortas de fato são veredas altas, inclusive

geograficamente” (Utéza, 1994, p. 232).

Riobaldo invoca o diabo, porém, o “Pai da mentira” “[...] não tinha carnes de comida

da terra, não possuía sangue derramável” (Rosa, 2006, p. 419), o que expõe uma acepção

diferenciada do lendário trato fáustico, que será abordado mais à frente nesta dissertação. Para

o jagunço, o demo, que “Naquela hora existia” (Rosa, 2006, p. 420), tinha que vir, “[...] com

um catrapuz de sinal ou momenteiro com o silêncio das astúcias” (Rosa, 2006, p. 420), de um

lugar “tão longe e perto de mim” (Rosa, 2006, p. 420) diz Riobaldo, para algo que ele procura

explicar ao interlocutor da narrativa: “E, o que era que eu queria? Ah, acho que não queria

mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, esta coisa: eu somente queria era

ficar sendo!” (Rosa, 2006, p. 420), o que revela o desejo do jagunço em emancipar-se,

transpondo as margens do mito para o logos. Antes de clamar por Lúcifer, Riobaldo ainda

pondera sobre os seus propósitos:

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‘Deus ou o demo’? – Sofri um velho pensar. Mas, como era que eu queria, de que jeito, que? Feito o argo de meu ar, feito tudo: que eu então havia de achar melhor morrer duma vez, caso que aquilo agora para mim não fosse constituído. E em troca eu cedia às arras, tudo meu, tudo o mais – alma e palma, e desalma... Deus e o Demo! ‘Acabar com o Hermógenes! Reduzir aquele homem!...’ –, e isso figurei mais por precisar de firmar o espírito em formalidade de alguma razão. Do Hermógenes, mesmo, existido, eu mero me lembrava – feito ele fosse para mim uma criancinha moliçosa e mijona, em seus despropósitos, e formiguinha passando por diante da gente – entre o pé e o pisado. Eu muxoxava. Espremia, p’r’ ali, amassava. Mas, Ele – o Dado, o Danado – sim: para se entestar comigo – eu mais forte do que o Ele; do que o pavor d’Ele – e lamber o chão e aceitar minhas ordens. Somei sensatez. Cobra antes de picar tem ódio algum? Não sobra momento. Cobra desfecha desferido, dá bote, se deu. A já que eu estava ali; eu queria, eu podia,eu ali ficava. Feito Ele. Nós dois, e tornopío do pé-de-vento – o ró-ró girado mundo a fora, no dobar, funil de final, desses redemoinhos: ... o Diabo, na rua, no meio do redemunho... Ah, ri; ele não. Ah – eu, eu, eu! ‘Deus ou o Demo – para o jagunço Riobaldo’. (Rosa, 2006, p. 421)

Contudo, somente o silêncio responde aos brados de Riobaldo por Lúcifer, silêncio

que o jagunço compreende como sendo “a gente mesmo, demais”, quando então confirma que

o diabo não existe, pois, “[...] não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado”

(Rosa, 2006, p. 422), circunstância que diferencia a história de Rosa dos pactos diabólicos

tradicionalmente relatados na literatura. Entretanto, Riobaldo supre ter sido ouvido, “[...]

conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que medeia” (Rosa, 2006, p. 422). Desse

modo o pacto é efetivado, fechando-se o “arrocho do assunto”, o que proporciona ao jagunço

uma imediata tranquilidade, expressa poeticamente: “Lembrei dum rio que viesse adentro a

casa de meu pai” (Rosa, 2006, p. 422), imagem que sugere um rio cósmico, simbolizando a

própria existência humana no curso da vida. A inexplicável ocorrência é então justificada ao

ouvinte-doutor: “As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da

noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas” (Rosa, 2006, p. 422).

Após a suposição do pacto, Riobaldo segue com determinação o intuito de exterminar

o Hermógenes, executar a vingança, empreitada a que se aventura como chefe, cargo que

recusara anteriormente por não acreditar em si mesmo. Porém, com a firmeza de ter efetivado

o ajuste julga-se em pé de igualdade com o pactário Hermógenes, o qual morre na batalha

final travada com Diadorim, já que isso era favor assegurado pelo demo em troca da alma de

Riobaldo, conforme presumiu o jagunço. Mas, Diadorim também morre no trágico duelo

travado na rua, em meio ao redemoinho, com o inimigo diabólico, Hermógenes, resgatando

assim as artimanhas mefistofélicas. Diadorim morre, ou melhor, morre Maria Deodorina da

Fé Bettancourt Marins “— que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para

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muito amar, sem gozo de amor...” (Rosa, 2006, p. 604-605). Para Riobaldo fica a culpa de ter

compactuado com o diabo e, desse modo, provocado a morte do amado Reinaldo-Diadorim.

Para Antonio Candido (1991) o diabo surge na consciência de Riobaldo como

dispensador dos poderes que o jagunço almeja, bem como encarnação das forças terríveis que

Riobaldo “[...] cultiva e represa na alma, a fim de couraçá-la na dureza que permitirá realizar

a tarefa em que malograram os outros chefes” (Candido, 1991, p. 303). Candido relata que a

cena do pacto na encruzilhada das Veredas Mortas, representa um tipo especial de provação

iniciatória, que proporciona ao jagunço Riobaldo “[...] assimilar as potências demoníacas que

abrem caminho a todas as ousadias” (Candido, 1991, p. 303). Desse modo, expõe Candido,

Riobaldo “[...] ao manipular o mal, como condição para atingir o bem possível no Sertão,

transcende o estado de bandido” (Candido, 1991, p. 308). Portanto, a ambivalência de ser

“bandido e não-bandido”, segundo Candido, induz à necessidade do jagunço em “[...] revestir-

se de certos poderes para definir a si mesmo” (Candido, 1991, p. 308), função desempenhada

pelo pacto na travessia riobaldiana, acentua o crítico.

Ademais, o pacto proporciona a Riobaldo o “pensar de novidades” (Rosa, 2006, p.

424), conforme relata o narrador ao seu interlocutor. Assim, com o ânimo renovado, Riobaldo

desperta para “todas as ousadias”, quando então, tudo o que vinha a lhe suceder, estipulado o

contrato, “era engraçado e novo” (Rosa, 2006, p. 429). Riobaldo explica ainda: “Eu queria a

muita movimentação, horas novas. Como os rios não dormem. O rio não quer ir a nenhuma

parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo” (Rosa, 2006, p. 434). Com o poder que

supõe ter adquirido, ele acredita que tudo se torna possível: “Tinham me dado o brinquedo do

mundo” (Rosa, 2006, p. 440) diz, e, numa comparação de dinamicidade expõe novamente ao

ouvinte-doutor a imagem do rio: “Mesmo na hora em que eu for morrer, eu sei que o Urucúia

está sempre, ele corre” (Rosa, 2006, p. 435), simbolizando, na fluidez das águas, uma

renovação constante.

Efetivamente um outro homem, assim é o chefe Riobaldo por renome Urutú Branco,

epíteto que lembra o Uróboro, serpente que morde a própria cauda, simbolizando, segundo

Chevalier-Gheerbrant, um ciclo de evolução encerrada nela mesma e ainda a ideia de eterno

retorno, como, analogamente, lembram os nonada presentes no início e também no final do

romance rosiano, em uma dinâmica circular. Sob essa nova imagem, montado no grande

cavalo Siruiz, Riobaldo arregimenta seus guerreiros a fim de realizar seu ato heroico:

transpassar o Liso do Sussuarão – “Chão esturricado, solidão, chão aventêsma –” (Rosa,

2006, p. 506), entoando seus emblemáticos versos:

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Hei-de às armas, fechei trato nas Veredas com o Cão. Hei-de amor em seus destinos conforme o sim pelo não. Em tempo de vaquejada todo gado é barbatão: deu doideira na boiada soltaram o Rei do Sertão... Travessia dos Gerais tudo com armas na mão... O Sertão é a sombra minha e o rei dele é Capitão!...

(Rosa, 2006, p. 463-464)

É o chefe Riobaldo, mudado no cômpito da alma e não por razão de autoridades de

chefias como reconhece Diadorim. Contudo, Riobaldo contesta esse pensar do amigo, além do

que o encontro com o Oculto nas Veredas-Mortas era segredo só seu. Outrossim, na

ambivalência do cético jagunço nada tinha sucedido: “O pacto nenhum – negócio não feito”

(Rosa, 2006, p. 469). Desse modo, nas andanças de Riobaldo após o acordo, quem mandava

nele eram seus próprios “avessos”, freados por vezes nos “miúdos remansos, aonde o

demônio não consegue espaço de entrar...” (Rosa, 2006, p. 471), isto é, no coração do

jagunço, que se pergunta: “O demo então era eu mesmo?” (Rosa, 2006, p. 471). Os “avessos”

podem ser compreendidos por meio da explanação de René Girard em a Violência e o

sagrado, pois para esse pensador o sagrado é tudo o que domina o homem, mas,

principalmente, o sagrado é também “ainda que de forma mais oculta, a violência dos

próprios homens, a violência vista como exterior ao homem e confundida, desde então, com

todas as forças que pesam de fora sobre ele” (Girard, 1990, p. 46-47). Assim, contando sua

vida ao ouvinte, Riobaldo reitera a pergunta crucial: “Tinha o Maligno?” (Rosa, 2006, p. 490).

O mito do diabo que leva Riobaldo ao “limite certo”, do qual resulta uma ascensão,

reproduz no sertão brasileiro o drama fáustico. Benedito Nunes revela no artigo “A volta ao

mito na ficção brasileira” que os poderes contra os quais Riobaldo luta, debatendo-se entre

Deus e o Diabo são os poderes do mito. Nunes expõe também que nas narrativas romanescas

de Ariano Suassuna, Raduan Nassar e Milton Hatoum, contidas nas respectivas obras, A

Pedra do Reino, Lavoura Arcaica e Dois Irmãos, está contido um retorno ao mito. Porém,

esse retorno, segundo Nunes, foi antecedido por dois outros surtos do mito no romance

brasileiro. O primeiro surto deu-se, de acordo com Nunes, na época do Romantismo com José

de Alencar, por meio das obras O guarani, O Sertanejo e O gaúcho, bem como, de maneira

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singular, com Machado de Assis, que trouxe a força poética do mito bíblico no livro Esaú e

Jacó, afastando-se assim do indianismo e do regionalismo. O segundo surto, mediado pelo

modernismo de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, sobressaiu-se na fase pós-

modernista, com Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa e ainda com A Paixão segundo

G.H. e alguns contos de A Legião Estrangeira, de Clarice Lispector.

Benedito Nunes esclarece que o mito seria um conto ao qual não se pode atribuir um

autor determinado. O mito, discorre Nunes, vem de muito longe, não procede de alguém e

parece provir de um difuso colegiado ou da própria coletividade. O mito seria, então, uma

história das origens. Modernamente, diz Nunes, “a literatura descobriu-se mitogênica”,

formou personagens como Hamlet de Shakespeare e Fausto, de Goethe, exemplificando-se no

momento modernista brasileiro citado, na obra de Rosa, cuja linguagem “redimensiona o

Sertão”, situando-o como “súmula do mundo”. Ademais, esclarece Nunes, o romance rosiano

não está num tempo estipulado como medida do movimento físico nem em um espaço

cartesiano, seria mais uma associação de mito e poesia ou como diz o pensador paraense, uma

“peregrinatio da alma no claro-escuro das veredas” (Nunes, 2008, p. 73).

Para Rosa “As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim”, como confessou

em sua entrevista a Günter Lorenz (Lorenz, 1991, p. 72). Desse modo, num intemporal

“tempo mítico”, conforme analisa Anatol Rosenfeld, Riobaldo revive o drama de Fausto,

assim, além de evocar o mito, o Grande sertão pode expressar também a hipótese desse

crítico sobre a “desrealização, abstração e desindividuação” do romance moderno que

culmina na superação da realidade sensível, com o objetivo de chegar – diz Rosenfeld citando

o pintor expressionista Franz Marc – à, ‘essência absoluta que vive por trás da aparência que

vemos’ (Rosenfeld, 1973, p. 91).

MITO E GENERALIZAÇÕES LITERÁRIAS

Ítalo Calvino em “A combinatória e o mito na arte da narrativa” discorre sobre o mito:

O mito é a parte escondida de toda história, a parte subterrânea, a zona ainda não explorada porque faltam ainda as palavras para chegar até lá. Para contar o mito, a voz do contador no meio da reunião tribal quotidiana não basta. É preciso lugares e momentos particulares, reuniões especiais. A palavra também não basta, o concurso de um conjunto de signos polivalentes, isto é, um rito, é necessário. O mito vive de palavra mas também de silêncio; um

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mito faz sentir sua presença na narrativa profana, nas palavras quotidianas; é um vácuo de linguagem que aspira as palavras no seu turbilhão e dá forma à fábula. Mas o que é um vácuo de linguagem senão o traço de um tabu, de uma interdição de falar de alguma coisa, de pronunciar certas palavras; o traço de uma interdição atual ou antiga? A literatura segue itinerários que costeiam ou transpõem as barreiras das interdições, que levam a dizer o que não podia ser dito; inventar em literatura é redescobrir palavras e histórias deixadas de lado pela memória coletiva e individual. (Calvino, 1977, p. 77)

O raciocínio de Calvino adéqua-se perfeitamente ao que já foi explanado sobre a

história de Riobaldo. Igualmente, o mito, como fábula que quer se fazer crer, parece mediar

simbolicamente o sagrado e o profano na intenção de organizar o mundo e os seres referindo-

se sobretudo a temas que transcendam os limites da experiência possível. A simbologia mítica

também é forma de inspiração artística e, portanto, é capaz de renovar míticos temas

tradicionais. Mielietinsky diz que “A forma artística herdou do mito o modo concreto-

sensorial de generalização e o próprio sincretismo” (Mielietinsky, 1981, p. 1). O estudioso

russo relata ainda que no mitologismo literário manifesta-se “a idéia da eterna repetição

cíclica dos protótipos mitológicos primitivos sob diferentes ‘máscaras’” (Mietietinsky, 1987,

p. 2). Assim, o “renascimento” do mito na literatura do século XX se basearia, segundo

Mielietinsky, num “novo enfoque apologético do mito como princípio eternamente vivo”.

Ademais, Mielietinsky expõe que a literatura, particularmente a literatura narrativa, está

relacionada com a mitologia através do folclore, ligando-se à mitologia por via do conto

maravilhoso e do epos heroico, os quais surgiram nas dimensões folclóricas. Nesse sentido,

Mielietinsky considera que “o drama e, em parte, a lírica assimilaram primordialmente os

elementos do mito pela via direta dos rituais, festejos populares e mistérios religiosos”

(Mielietinsky, 1987, p. 329). Guimarães Rosa (2003, p. 115), em carta ao seu tradutor alemão,

Curt Meyer-Clason, dispõe sobre uma versão inglesa do Grande sertão: “Não viram,

principalmente, que o livro é tanto um romance, quanto um poema grande, também. É poesia

(ou pretende ser, pelo menos)”. Portanto, no romance rosiano, de tantos paradoxos, o mito do

pacto – elemento mágico do texto, que busco compreender seguindo uma interpretação

metafísica – revigora-se por meio da linguagem poética de Rosa, linguagem que é revelada

assim ao seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri:

Sem imodéstia, porque tudo isto de modo muito reles, apenas, posso dizer a Você o que Você já sabe: que sou profundamente, essencialmente religioso, ainda que fora do rótulo estricto e das fileiras de qualquer confissão ou seita; antes, talvez, como o Riobaldo do ‘G.S.:V.’, pertença eu a todas. E especulativo, demais. Daí, todas as minhas, constantes, preocupações religiosas, metafísicas, embeberem os meus livros. Talvez meio-

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existencialista-cristão (alguns me classificam assim), meio neo-platônico (outros me carimbam disto), e sempre impregnado de hinduísmo (conforme terceiros). Os livros são como eu sou. (Rosa, 2003, p. 90)

A essas perspectivas, atribuídas a si próprio por Rosa, creio poder acrescentar a

riqueza da mitologia, que proporcionaria ao escritor e poeta subsídios para sua arte,

possibilitando reelaborar o mito fáustico, cuja precedência encontra-se nas narrativas

medievais europeias. De acordo com o crítico literário Harold Bloom, “a figura do Fausto

remonta às aparentes origens da heresia cristã no suposto primeiro gnóstico Simon Mago de

Samaria, que quando foi para Roma adotou o nome de Fausto, ‘o favorecido’” (Bloom, 1995,

p. 211). Em seguida, a tradição popular da venda da alma ao diabo em troca de saber e poder

foi ligada a Johann Faust, “um charlatão e astrólogo errante do início do século 16” (Bloom,

1995, p. 211), difundindo-se por toda a Europa e culminando na sua mais importante versão

literária: Fausto, a mitopoética obra de Goethe, na qual o escritor alemão dá forma aos

grandes problemas da alma humana.

O historiador Jacques Barzun (2002, p. 528) explana que “na antiga lenda do dr.

Fausto, dois terços dos pedidos ao Diabo são materiais – comida e dinheiro –, mas o último é

‘voar entre as estrelas’, e isso é também o que o século XIX desejava – metaforicamente”.

Analogamente, e um século após, nas Veredas Mortas do Grande sertão, Riobaldo ao invocar

Lúcifer busca desvendar o incompreensível: “as absolutas estrelas” (Rosa, 2006, p. 422), pois

a incorporação da lenda de Fausto no romance rosiano reflete o mesmo desejo de felicidade

que não se realiza por completo e, destarte, instiga a discussão sobre os limites à satisfação do

ser humano. Já para Ian Watt, em Mitos do individualismo moderno (1997, p. 19-21), a mais

completa e remota referência ao Fausto encontra-se na carta, datada de 1507, de um erudito

adversário deste, Johannes Tritheim, dirigida a um professor da Universidade de Heidelberg.

O autor dessa carta chamava o pretenso dr. Fausto de ‘vagabundo, falastrão e patife’, o qual

proclamava-se o “Fausto mais jovem”, bem como o “segundo Mago, salmista e adivinho”.

Com relação à primeira denominação, Watt expõe que talvez se tratasse de uma referência a

são Fausto (século V), que foi alvo de ataques de Santo Agostinho por causa de sua suposta

heresia maniquéia. Quanto ao outro título, “O segundo Mago”, Watt diz que fica clara a

alusão a Simão o Mago, ou mágico. Segundo Watt, a palavra “magia” deriva-se de Magi,

nome de uma antiga tribo dos Medas, famosos como adivinhos. Watt relata que no ocidente

eles são conhecidos graças aos três reis magos mencionados no Evangelho de são Mateus, os

quais, segundo indicações astrológicas foram capazes de prever o nascimento de Jesus. Watt

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ressalta também que na época de Fausto, “tanto os analfabetos quanto os letrados viam-se

como habitantes de um mundo em larga medida governado por forças espirituais invisíveis”.

A fama de Fausto concretizou-se em anônimas narrativas que relatavam o acordo entre

ele e o irônico demônio oriundo das lendas germânicas, Mefistófeles. Uma dessas narrativas

foi editada em Frankfurt, no ano de 1587, por Johann Spies sob o título que resumidamente

pode ser definido como História Trágica do Dr. Fausto, expondo o pacto de Fausto com o

espírito demoníaco, contrato assinado com o próprio sangue do doutor. Em 1592, o

dramaturgo Christopher Marlowe publica na Inglaterra A trágica história da vida e morte do

Dr. Fausto e, segundo Sérgio Buarque de Holanda (1996, p. 80), de todos os predecessores de

Goethe, esse é o único cuja obra subsistiu. Para Holanda, no conjunto, é pequena a diferença

entre a tragédia de Marlowe e a de Goethe: “Em ambas, o doutor vende a alma ao diabo, com

a condição deste lhe servir como escravo por certo tempo. Marlowe fixa esse tempo em vinte

e quatro anos, durante os quais o doutor possui um poder ilimitado sobre a terra, do qual

abusa em excesso”. No ano de 1637, a peça El mágico prodigioso, de Calderón de La Barca,

torna conhecida a lenda fáustica em terras espanholas. Entre 1773 e 1775 Goethe escreve o

fragmento Urfaust (primeira versão do Fausto), cujos originais foram destruídos, mas, como

lembra Christine Röhrig, uma cópia desses manuscritos, feita por uma amiga e admiradora do

escritor alemão, foi encontrada em 1887, pelo historiador literário Erich Schmidt, de quem

recebeu a denominação de Urfaust (Fausto original, que a tradutora, Röhrig, optou por

denominar “Fausto Zero”). Posteriormente, em 1808, Goethe publica a primeira parte de sua

célebre obra: Fausto. Uma tragédia e somente em 1832, postumamente, é editada uma

segunda parte. O Fausto de Goethe – que conta a história de um médico que estabelece um

pacto com o diabo – formula sobretudo o conflito de um homem dividido entre a vontade de

se elevar espiritualmente e a atração pelos prazeres mundanos. Então, o personagem que dá

nome à obra apesar de errar constantemente no decorrer da trama é redimido e salvo, por

nunca deixar de buscar um ideal, circunstância que o diferencia do protagonista de Marlowe

que sofre a condenação final acordada com o demônio. A temática medieval do mito fáustico

destaca-se ainda – talentosamente transformada – no Doutor Fausto (1947) de Thomas Mann

e no Grande sertão: veredas (1956) de João Guimarães Rosa.

Guimarães Rosa interessava-se pelos conhecimentos esotéricos, como podem

exemplificar as ilustrações do Grande sertão, bem como os dizeres de Riobaldo, que parecem

conter mensagens secretas, tornando-se assim elementos individualizadores da escritura

rosiana, concretizada nessa espécie de devaneio que é a fala do ex-jagunço tentando

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compreender o mundo, por meio da “álgebra mágica”, indeterminada e exata, que define o

universo poético de Rosa.

A dúvida constante de Riobaldo é sobre a efetivação do pacto. Ainda no início da

narrativa de sua própria história, quando conta as andanças sob o comando de Medeiro Vaz,

ele alude ao acordo diabólico, reportando ao ouvinte-doutor a conversa com um companheiro,

João Bugre, o qual lhe afiançara a condição pactária de Hermógenes.

– ... ‘O Hermógenes tem pauta... Ele se quis com o Capiroto...’ Eu ouvi aquilo demais. O pacto se diz – o senhor sabe. Bobéia. Ao que a pessoa vai, em meia-noite, a uma encruzilhada, e chama fortemente o Cujo – e espera. Se sendo, há – de que vem um pé-de-vento, sem razão, e arre se comparece uma porca com ninhada de pintos, se não for uma galinha puxando barrigada de leitões. Tudo errado, remedante, sem completação... O senhor imaginalmente percebe? O crespo – a gente se retém – então dá um cheiro de breu queimado. E o dito – o Côxo – toma espécie, se forma! Carece de se conservar coragem. Se assina o pacto. Se assina com sangue de pessoa. O pagar é a alma. Muito mais depois. O senhor vê, superstição parva? Estornadas!... ‘O Hermógenes tem pautas...’ Provei. Introduzi. Com ele ninguém podia? O Hermógenes – demônio. Sim só isto. Era ele mesmo”. (Rosa, 2006, p. 48)

Nesse excerto é estipulada a clássica formalidade do acordo fáustico: a assinatura com

o sangue do pactário. Nas interpretações simbólicas de certos povos o sangue é considerado

veículo da alma (Chevalier-Gheerbrant, 2008, p. 800). Desse modo, no contrato demoníaco já

encontra-se subscrito o preço do ajuste. Mas no pacto riobaldino não há sangue, não há

demônio, não há nada além da natureza e ainda que Riobaldo invoque Lúcifer, o chefe do

inferno não aparece, contradizendo o mito fáustico, no qual Mefistófeles, colaborador do

arcanjo caído, se faz presente. O próprio Riobaldo, no local do acerto, parece esvaecer-se em

meio à indeterminação do que deseja. Para assimilar melhor esse estado do personagem é

necessário rever a cena do pacto.

Sozinho, revirando as horas nas Veredas-Mortas, lugar elevado em meio à escuridão e

ao silêncio da noite, “rendido do avesso”, Riobaldo tomado de aflições clama pelo satanás dos

seus infernos, sem mesmo saber o que quer, quando então aparta-se de si, e do mundo, num

“buracão de tempo”, pleno de espera e revelação. Após o embotamento dos sentidos nessa

abertura para o desconhecido, com sede e frio, o jagunço desce pela terra embrejada sob a

garoa da madrugada para a suavidade dos buritis. Esse significativo alvorecer, clareado com o

“mermar da d’alva”, ou seja, pelo brilhante planeta Vênus na disposição matutina, a estrela da

manhã, também chamada pelos antigos romanos de Lúcifer (Vissière, 2008, p. 9), que surge

como luz para o conturbado jagunço, conforme ele precisa ao seu interlocutor:

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Foi orvalhando. O ermo do lugar ia virando visível, com o esboço no céu, no mermar da d’alva. As barras quebrando. Eu encostei na boca o chão, tinha derreado as forças comuns de meu corpo. Ao perto d’água, piorava aquele desleixo de frio. Abracei com uma árvore, um pé de breu-branco. Anta por ali tinha rebentado galhos, e estrumado. – ‘Posso me esconder de mim?...’ Soporado, fiquei permanecendo. O não sei quanto tempo foi que estive. Desentedi os cantos com que piam, os passarinhos na madrugança. Eu jazi mole no chato, no folhiço, feito se um morcegão caiana me tivesse chupado. Só levantei de lá foi com fome. Ao alembrável ainda avistei uma meleira de abelha aratim, no baixo do pau-de-vaca, o mel sumoso se escorria como uma mina d’água, pelo chão, no meio das folhas secas e verdes. Aquilo se arruinava, desperdiçado. (Rosa, 2006, p. 423-424)

Esse episódio que desencadeia o “pensar de novidades” do jagunço Riobaldo, permite

lembrar em relação ao “buracão de tempo”, que de uma fenda na cabeça de Zeus, deus da luz,

dos céus e dos raios, provocada por Hefesto, filho de Zeus e de Hera, sai Atena, a deusa da

inteligência, “[...] já adulta e armada, emitindo um grito de guerra que abalou a terra e o

próprio céu” (Kury, 2003, p. 49). Assim também, analogamente, emerge Riobaldo,

convertendo-se então em homem de ação e resoluções, com aversão à pasmaceira em que o

bando de jagunço na ocasião se encontrava e sonhando com o fim de fomes no desdeixo do

sertão. Em montaria nova, o cavalo Siruiz, sente-se “[...] leve, leve, feito de poder correr o

mundo ao redor” (Rosa, 2006, p. 433). Sonho fáustico? Segundo José Antonio Pasta Júnior, a

Riobaldo só o impossível interessa, circunstância que vincularia o Grande sertão com o tema

fáustico: “Não por acaso, o Grande sertão é, ele também, uma narrativa fáustica, cheia de

reminiscências goethianas e assombrada pela ideia do pacto demoníaco” (Pasta Júnior, 1999,

p. 69).

Fausto, de Goethe, busca o absoluto a fim de superar o desagrado que sua real

condição lhe oferece. Desse modo, firma a aliança com Mefistófeles, combinação que,

segundo Marcus Vinicius Mazzari, assume antes a forma de uma aposta, cujas insólitas

condições se explicitam na segunda cena “Quarto de trabalho”, da primeira parte do Fausto,

mas que só encontrará o seu desfecho no Fausto II, especificamente no quinto e último ato,

“Grande átrio do palácio”. Portanto, essas são as unidades de ação da peça goethiana, que

situam o protagonista respectivamente no “pequeno” e no “grande” mundo, de particular

interesse para esta dissertação que examina a aventura de Riobaldo à luz do drama fáustico.

Três cenas introduzem a tragédia goethiana: Dedicatória, Prólogo no teatro e Prólogo

no céu. Essa última apresenta uma perspectiva metafísica, cuja concepção, de acordo com

Mazzari, teve como modelo o teatro barroco espanhol do século XVII, sobretudo a peça El

gran teatro del mundo, de Calderón de La Barca. O Prólogo no céu expõe a disputa travada

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entre Deus e Mefistófeles por Fausto, o qual situa-se assim, como homem humano, entre o

céu e o inferno. Acreditando que o ser humano é intrinsecamente bom, o Altíssimo confia

que, mesmo errando em sua busca, Fausto encontrará a salvação eterna, enquanto que

Mefistófeles, descrente dessa acepção, presume que ele enveredará por seus caminhos. Com o

assédio concedido pelo Senhor, Mefistófeles entabula com Fausto o célebre trato: em troca de

prazeres ilimitados, o doutor cederá a alma ao demônio no momento em que, plenamente

satisfeito, possa dizer “Oh, pára! És tão formoso!”, cláusula decisiva da aposta diabólica, que

Fausto prontamente acata:

Que importam do outro mundo os embaraços? Faze primeiro este em pedaços, Surja o outro após, se assim quiser! Emana desta terra o meu contento, E este sol brilha ao meu tormento; Se deles me tornar isento, Aconteça o que der e vier. Nem me interessa ouvir, deveras, Se há, no Além, ódio, amor, estima, E se há também em tais esferas Algum ‘embaixo’ e algum ‘em cima’!

(Goethe, 2004, p. 167)

Fausto não invocara, explicitamente, Mefistófeles (divergindo assim de Riobaldo),

este se libertara do disfarce de cão negro, forma comumente associada à descrença e à ideia

do mal, sob o qual seguira pelas ruas da cidade o doutor e o seu fâmulo, Wagner, até o

gabinete de estudo em que trabalhavam. Fausto então é avisado pelos espíritos da presença de

um “lince infernal”, pois o cão assumira o aspecto monstruoso de um hipopótamo. Desse

modo, o doutor pede auxílio a Salamandra, a Ondina, ao Silfo e ao Gnomo, representantes dos

quatro elementos, respectivamente, Fogo, Água, Ar e Terra. É interessante observar a

simbologia do hipopótamo: para os egípcios, o animal, por causa de sua insaciabilidade, era

considerado como manifestação das forças negativas do mundo. Ademais, no Antigo

Testamento, o hipopótamo representa a força bruta que somente por Deus pode ser subjugada

(Chevalier-Gheerbrant, 2008, p. 493).

Após a aparição, Fausto procura intensificar a relação com Mefistófeles, chegando a

discutir com ele as condições do trato, efetivado num segundo encontro, no qual Mefisto

comparece paramentado de nobre, em “rubras vestes de veludo”, embora a pena de galo no

chapéu pontudo lhe desmascare a figura demoníaca. “Com sangue assinas, uma gota”, exige

Mefistófeles ao pactário, que então responde: “Pois bem, a farsa, então, se adota, já que te

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deixa contentado” (Goethe, 2004, p. 173). Enfatizando ainda o que objetiva, Fausto

acrescenta:

Não penso em alegrias, já to disse. Entrego-me ao delírio, ao mais cruciante gozo, Ao fértil dissabor como ao ódio amoroso. Meu peito, da ânsia do saber curado, A dor nenhuma fugirá do mundo, E o que a toda a humanidade é doado, Quero gozar no próprio Eu, a fundo, Com a alma lhe colher o vil e o mais perfeito, Juntar-lhe a dor e o bem-estar no peito, E, destarte, ao seu Ser ampliar meu próprio Ser, E, com ela, afinal, também eu perecer. (Goethe, 2004, p. 175)

Sem sofrer o dilema de ter que escolher entre o Bem e o Mal, Fausto aceita as

condições do seu demônio particular, Mefistófeles. Desse modo, vende a sua alma em troca

de mais sabedoria e poder. Entretanto, no Grande sertão, Riobaldo mantém-se entre Deus e o

diabo. Esse último, de múltiplas denominações personifica-se em alguns desafetos do

jagunço, como Hermógenes, Rasga-em-Baixo, Fancho-Bode e o Treciziano, este último assim

descrito:

Vi: ele – o chapéu que não quebrava bem, o punhal que sobressaía muito na cintura, o monho, o mudar das caras... Ele era o demo, de mim diante... O Demo!... Fez uma careta, que sei que brilhava. Era o Demo, por escarnir, próprio pessoa! (Rosa, 2006, p. 512)

Ademais, ciente de que “quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma

competência entrante do demônio” (Rosa, 2006, p. 10), Riobaldo, em um momento crítico de

sua jornada, desconfia que o demo é o próprio sertão: “Não pensei no que não queria pensar; e

certifiquei que isso era ideia falsa próxima, e, então, eu ia denunciar nome, dar a cita: ...

Satanão! Sujo!... e dele disse somente – S... – Sertão... Sertão...” (Rosa, 2006, p. 591).

Marco Aurélio Baggio diz que Riobaldo transita, exemplarmente, o itinerário do ser

imperfeito rumo “à sua possibilidade de maior completude e plena realização”. Sobre o

jagunço, Baggio expõe ainda:

Ele busca em si, em seus crespos e avessos, a energia demoníaca, que pulula visceral em seus internos. Convoca o demo. Conclama o diabo. Ascende Lúcifer. Assanha o Cão. Desafiado e enfrentado, de alguma forma misteriosa, o demônio, de fato, comparece, como aumento de poder e de

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energia – gã – que enxerta coragem bastante para capacitar Riobaldo a atravessar seus impasses. Com o diabo no corpo, endemoniado, Riobaldo assume a chefia do bando. Dá diretriz. Faz façanhas. Descomete-se. (Baggio, 1998, p. 214)

Riobaldo após o pacto agrega em si toda a ação, desencadeada, supostamente, pelos

poderes demoníacos, lembrando assim as condições do pacto efetuado entre Mefisto e Fausto.

Porém, conforme aponta Arroyo, “será lícito afirmar-se que Riobaldo não é nenhum Fausto

do sertão desde que vinculado à criação – melhor dito, recriação – de Goethe” (Arroyo, 1984,

p. 225). Essa vinculação, diz Arroyo, seria desfavorável à cultura popular e à tradição. O

ensaísta explica que a questão do pacto expõe a função catalisadora da memória popular, que

tornou oral o processo do pacto, inclusive dispensando a mecânica do acordo por escrito, já

que este é um recurso erudito. Mas, a busca, a procura de si mesmo por Riobaldo, é similar ao

que caracteriza a personalidade fáustica, sobretudo no que diz respeito à aspiração pelo

absoluto. Para Marshall Berman, humanista que investigou a sociedade e a cultura dos séculos

XIX e XX,

O Fausto começa num período cujo pensamento e sensibilidade os leitores do século XX reconhecem imediatamente como modernos, mas cujas condições materiais e sociais são ainda medievais, a obra termina em meio às contribuições espirituais e materiais de uma revolução industrial. Ele principia no recolhimento do quarto de um intelectual, no abstrato e isolado reino do pensamento, e acaba em meio a um imensurável reino de produção e troca, gerido por gigantescas corporações e complexas organizações, que o pensamento de Fausto ajuda a criar e que, por sua vez, lhe permitem criar outras mais. Na versão goethiana do tema do Fausto, o sujeito e objeto de transformação não é apenas o herói, mas o mundo inteiro. O Fausto de Goethe expressa e dramatiza o processo pelo qual, no fim do século XVIII e início do seguinte, um sistema mundial especificamente moderno vem à luz. (Berman, 2007, p. 52)

Na tragédia goethiana, Fausto procura dominar até a energia do próprio mar a fim de

submetê-lo aos ideais desenvolvimentistas, como uma negação da permanência, conforme

revela a frase de Mefistófeles: “eu sou o espírito que nega tudo”, caracterizando assim a

humanidade que procura “negar todo o existente com vistas ao novo”, como bem relata

Michael Jaeger no ensaio “A aposta de Fausto e o processo de modernidade”. O ativismo

fáustico, diz Jaeger, dentre um acervo de citações pode ser encontrado nos seguintes versos:

“Patenteia-se o homem na incessante ação”, “Ao homem apto, este mundo acomoda”, “No

avanço, encontre ele êxtase ou tormento, / Insatisfeito embora, hoje e a qualquer momento!”.

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Na segunda parte do Fausto, mais precisamente no quinto ato, cena “Grande Átrio do

Palácio”, as figuras espectrais dos lêmures começam a escavar a cova de seu proprietário –

Fausto – já centenário. Este, cego pela Apreensão, ouve o barulho das pás e supõe tratar-se do

avanço de sua obra colonizadora, como descrevem os 28 versos do discurso final do

personagem:

Do pé da serra forma um brejo o marco, Toda a área conquistada infecta; Drenar o apodrecido charco, Seria isso a obra máxima, completa. Espaço abro a milhões – lá a massa humana viva, Se não segura, ao menos livre e ativa. Fértil o campo, verde; homens, rebanhos, Povoando, prósperos, os sítios ganhos, Sob a colina que os sombreia e ampara, Que a multidão ativa-intrépida amontoara. Paradisíaco agro, ao centro e ao pé; Lá fora brame, então, até à beira a maré. E, se para invadi-la à força, lambe a terra, Comum esforço acode e a brecha aberta cerra. Sim! da razão isto é a suprema luz, A esse sentido, enfim, me entrego ardente: À liberdade e à vida só faz jus, Quem tem de conquistá-las diariamente. E assim, passam em luta e em destemor, Criança, adulto e ancião, seus anos de labor. Quisera eu ver tal povoamento novo, E em solo livre ver-me em meio a um livre povo. Sim, ao Momento então diria: Oh! pára enfim – és tão formoso! Jamais perecerá, de minha térrea via, Este vestígio portentoso! – Na ima presciência desse altíssimo contento, Vivo ora o máximo, único momento. (Goethe, 2007, p 981-983)

Muitas correlações podem ser feitas no que diz respeito às violentas transformações de

uma modernidade incipiente já expressa em Fausto. Uma perspectiva, segundo Willi Bolle,

pode ser evidenciada, em Grande sertão: veredas, no qual o pacto do protagonista, Riobaldo,

com o Diabo, possivelmente estaria relacionado também à falta de entendimento entre a

classe dominante e as classes populares no “contexto social latino-americano”. Willi Bolle

descreve o caminho da iniciação política de Riobaldo, ressaltando aspectos dos conflitos

sociais brasileiros retratados por Rosa, no seguinte quadro:

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1. A questão da propriedade é colocada em discussão em Grande sertão: veredas pelo ato do chefe mais antigo, Medeiro Vaz, de abolir a propriedade – ele põe fogo na sua fazenda –, enquanto o fazendeiro Ricardão é o defensor da ordem dos latifundiários. 2. O princípio da justiça é personificado pelo chefe Joca Ramiro, que quer que ela esteja ao alcance de todos e que os conflitos sejam resolvidos de forma não violenta – ao passo que o Hermógenes, ‘matador muito pontual’, encarna o princípio da violência e a lei do mais forte. 3. O problema social se coloca com a presença de um imenso contingente de pobres e miseráveis (de onde se originam também os jagunços), representado em sua forma extrema pelos catrumanos. Enquanto o latifundiário, ‘seô’ Habão é mostrado no papel de explorador dessa gente, Zé Bebelo aparece como o político que propõe a abolição da miséria em nome do ‘progresso’ – mas suas palavras acabam sendo desmentidas por suas ações. (Bolle, 2004, p. 159-160)

Já por um viés místico-cristão, no romance de Rosa, percebe-se que Riobaldo procura,

no relato ao senhor da cidade, atenuar a culpa de ter efetuado o trato diabólico, o que de certo

modo lembra a confissão edital de Maria Mutema: revelação penitencial dos pecados da

personagem. Segundo o postulado do filósofo escolástico Santo Anselmo, o pecado não

estipula um penhor com o demo, mas sim uma dívida com Deus. Anselmo buscou um

argumento “que permitisse demonstrar que Deus existe verdadeiramente”. Propôs então a

prova ontológica da existência de Deus, “o ser do qual não se pode pensar nada maior”

(Anselmo, 1979, p.102), pois se há a ideia de um ser perfeito, a perfeição absoluta existe, já

que para Anselmo o conceito ou a palavra carrega consigo um peso, um significado que vai

além da mera expressão verbal, sendo então a existência de Deus uma consequência lógica de

como Ele é definido. No que diz respeito à carga significativa da palavra, outra relação

associativa pode ser feita com Maria Mutema, que provoca a morte do seu confessor, Padre

Ponte, despejando-lhe no ouvido palavras venenosas. Riobaldo questiona a existência do

diabo por toda a narrativa, mas afirma que “Deus existe mesmo quando não há” (Rosa, 2006,

p. 61). Porém, o jagunço em suas contradições diz ainda: “É preciso de Deus existir a gente,

mais; e do demônio divertir a gente com sua nenhuma existência” (Rosa, 2006, p. 308). Uma

explicação para tal ambiguidade pode ser interpretada no seguinte trecho, que também expõe

o tom confessional do narrador:

É preciso negar o que o ‘Que-Diga’ existe. Que é que diz o farfal das folhas? Estes gerais enormes, em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão, as feias onças. O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem – que Ele é bondade adiante, quero dizer. O senhor escute o buritizal. E meu coração vem comigo. Agora, no que eu tive culpa e errei, o senhor vai me ouvir. (Rosa, 2006, p. 313)

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João Adolfo Hansen diz que a escritura de Rosa é a evidência de um saber dos signos,

desse modo é “produtora de efeitos de imaginário mitológico (como a (des)crença em Deus

ou no Diabo, sua invenção)”. Assim, para Hansen, a escritura de Rosa é um dispositivo que

transforma e transpõe os vários usos e imaginações petrificados do signo, submetendo então o

mitológico a uma derivação que o reconverte em multiplicidade também de efeitos míticos.

Ademais, explica Hansen:

Apoderando-se de certo imaginário – suponha-se a tradição fáustica ocidental, que circula em Dante, teatraliza-se em Marlowe, rebatendo-se em Milton e fantasmando em Blake, regredindo nos românticos e revivendo em Goethe e Mann – e, ainda, do imaginário do cangaceiro como fora-da-lei, exceção – Rosa os faz multiplicar-se, retraduzindo-os na boca do ex-jagunço Riobaldo Tatarana. Para explicar-se, Riobaldo lança mão de imaginário verossímil: o espiritismo de Kardec, o imaginário católico do poder e do recalcado como Diabo. Ao falar, submete-os a uma fratura constante, que simultaneamente desloca os limites explícitos da tradição e os reaglutina em novas sínteses parciais, pois cambiantes e concretas, expressas numa linguagem outra, a de um discurso indireto já anônimo, multiplicidade de falares emergindo numa fala singular. (Hansen, 2000, p. 72)

Hansen esclarece que, como a Divina Comédia, de Dante, Grande sertão: veredas é

uma narrativa teológico-política, pois o jogo dos senhores do sertão e a fidelidade irrestrita

dos jagunços a esses chefes e fazendeiros, ratifica o poder no sertão. Assim, a morte de Joca

Ramiro, figuração do divino, é traição e pecado, pois, elucida Hansen, a metáfora Diabo é

atenuada pelo triunfalismo de outra metáfora, Deus, “que orienta Riobaldo na via da purgação

e da ratificação de uma Nova Ordem sertaneja, exemplificada por Zé Bebelo, que introduz

Quelemém, o ideal espírita de Riobaldo” (Hansen, 2000, p. 169).

Para Hansen, o mito não é só conteúdo é “antes a sintaxe mesma da fala de Riobaldo”;

o que faz lembrar um outro texto de Guimarães Rosa, “Meu Tio, o Iauaretê”, de Estas

Estórias. Nesse conto, à semelhança do Grande sertão: veredas, destaca-se, primordialmente,

a fala do personagem principal, através de um monólogo relatado por meio de um discurso

direto que, na verdade, assemelha-se a um longo depoimento, ou uma conversa em que

perguntas e respostas revelam apenas a voz do narrador, em um contínuo responder-

perguntar, permanecendo o possível interlocutor oculto. No entanto, as perguntas

subentendidas sugerem que o herói-narrador está sendo interrogado. Assim, Guimarães Rosa

subverte a formalidade da língua no léxico, na morfologia e na sintaxe, como em Grande

sertão, e exibe no texto uma linguagem peculiar ao narrador-personagem (um matador de

onças), caracterizada também por vocábulos arcaicos, populares e terminações afetivas (como

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“joguinho” e “cachacinha”), além de palavras específicas ao ambiente indígena de onde

provém o protagonista da história. Conforme expõe Haroldo de Campos no ensaio “Meu tio, o

Iauaretê”, nesse conto Rosa empreende uma “revolução da palavra”. Ademais, “não é a

estória que cede o primeiro plano à palavra, mas a palavra que, ao irromper em primeiro

plano, configura o personagem e a ação, devolvendo a estória” (Campos, 1991, p. 575-576).

Essa inusitada composição literária surpreende não só pelo vocabulário como pelo

tema e valor poético. A obra explana o encontro de Tonho Tigreiro, matuto filho de branco

com índia, incumbido de “desonçar” um território vazio dos gerais, com um forasteiro que,

aparentemente, está perdido e procura abrigo na tapera do bugre. Este, motivado pela cachaça

do visitante, conta a sua história, na qual fala constantemente sobre as onças da região,

revelando um grande conhecimento sobre esse assunto. Então, gradativamente, o interlocutor

(e o leitor) vai pressentindo a transformação do narrador em onça, metamorfose que se dá

também ao nível da linguagem. Por fim, o índio tendo transgredido os costumes da sociedade

humana mergulha definitivamente no mundo natural, em que a palavra é então silenciada pela

mão do homem civilizado, pois o visitante, temendo o homem-onça, dispara um tiro de

revólver contra o Iauaretê, que aos poucos vai desfalecendo. Porém, a voz silenciada é tão

forte que ecoa na mente dos leitores em muitas reflexões, possibilitando transformações de

conceitos e percepções do próprio “homem humano”, como Rosa induz à reflexão no Grande

sertão.

No mito de Rosa, discorre Hansen, há uma intensa valorização dos loucos, dos débeis,

das crianças, dos seres constituídos de exceção, que a cultura desclassifica como

irrepresentáveis, “pois irresponsáveis, sem competência para falar” (Hansen, 2000, p. 65),

como bem exemplificam “A Menina de Lá”, de Primeiras Estórias, “O Recado do Morro”, de

Corpo de Baile ou o já citado “Meu Tio, o Iauaretê”, de Estas Estórias. Para Hansen, a

linguagem torna-se então, “encenação de um nada que se deixa aprisionar como coisa, como

mito, como Diabo, como loucura, como inquestionada positividade da fala” (Hansen, 2000, p.

67). Conforme ressalta Marcos Falleiros, em “A figura da grade”,

Guimarães Rosa, como um Quixote livresco, vai ao sertão para trazer o povo para o Céu, recolhendo e elaborando sua miséria com o olhar empático munido de ressonâncias místicas crentes das esperanças proverbiais do tipo quando – menos – se – espera – Deus – ajuda. O jogo formal que elabora esse diálogo aurático tem uma posição historicamente posterior, reativando a aura que Benjamin viu acabar desde que a obra de arte perdeu sua função ritualística. (Falleiros, 2002, p. 249)

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Marcos Falleiros, estudioso da obra de Graciliano Ramos, ao destacar esse Céu a que

Rosa conduz seus personagens, alude ao ensaio “Céu, inferno”, de Alfredo Bosi, texto que,

com propriedade, estabelece diferenças no enfoque literário entre Graciliano Ramos e

Guimarães Rosa. Nesse ensaio Bosi expõe a abordagem, desses dois escritores, de um mesmo

contexto social de vivências no meio agreste. Porém, em Graciliano Ramos predomina a

situação de necessidade do retirante (como se pode constatar em Vidas secas) permeada por

uma visão pessimista, na verdade uma visão realista, retrato do mundo rural e da condição

humana que o autor testemunhava. A crítica social de Graciliano Ramos, segundo se pode

perceber nos comentários de Bosi, não se restringe à opressão dos poderosos sobre os

desvalidos, mas soma-se à força da linguagem inacessível que, como o clima inóspito,

subjuga Fabiano, personagem de Vidas secas.

Alfredo Bosi esclarece que o olhar crítico de Graciliano o induz a ponderar sobre o

comportamento de Fabiano, o que provocaria um distanciamento entre o autor e o

personagem, apesar de Graciliano se condoer com a situação do povo por ele narrada. Essa é

uma característica que o diferenciará de Guimarães Rosa, sobretudo porque o autor alagoano

procura mostrar, de forma pungente, o homem como produto do meio em que vive, em que

chuva e seca alternam sonho e realidade, prevalecendo, porém, a consciência desse homem

sertanejo mudar o próprio destino.

Todavia, conforme Alfredo Bosi, os personagens de Guimarães Rosa, igualmente de

extrema carência, confiam no destino, por força tanto de uma religiosidade popular quanto de

uma vontade própria. Assim, a marcha de Fabiano é improfícua, já a travessia dos

personagens de Guimarães Rosa não é menos dura, contudo o desejo de cada um pode

concretizar as aspirações buscadas (como exemplifica Riobaldo), fato que proporcionaria ao

narrador se comprazer na felicidade alcançada. Desse modo, pode-se distinguir no texto de

Alfredo Bosi o Inferno, esboçado nas vidas secas de Graciliano Ramos, como privação da

esperança. Em Rosa, o Céu expõe-se como âncora dos sonhos.

Sob a perspectiva de Antonio Candido, que evidencia no ensaio “Literatura e

subdesenvolvimento” (de forma sucinta e precisa) como a arte literária percorre a América

Latina nos séculos XIX e XX, é possível, outrossim, fazer a correlação entre as obras de

Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Para o ensaísta a ficção de Graciliano suplanta o

regionalismo exótico de visão otimista e cheia de expectativa que caracteriza uma primeira

fase literária brasileira, pois em Graciliano predomina uma consciência crítica do

subdesenvolvimento e da exploração econômica, exemplificada na desigualdade de classes e

na luta pela sobrevivência que cala o vaqueiro Fabiano. É justamente sobre a natureza

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humana, o homem em sua totalidade conjugada em razão e emoção que está o foco da obra de

Graciliano Ramos.

A ficção de Guimarães Rosa, ainda sob o ponto de vista de Antonio Candido, marca

uma terceira fase, em que a consciência do subdesenvolvimento se faz de forma mais

acentuada ainda, transcendendo a ingenuidade do regionalismo pitoresco e a denúncia das

mazelas humanas do romance social ou regionalista de 30, deixando transparecer uma adesão

ao povo e às crenças populares e proporcionando uma dimensão universal aos enfoques

regionalistas, trazendo portanto inovação ao campo literário, como bem comprova o Grande

sertão: veredas.

A pluralidade significativa do Grande sertão deixa entrever no pacto fáustico de

Riobaldo a indeterminação de um desejo que parece compor sua travessia. Durante toda a

história Riobaldo busca soluções para os conflitos provenientes de sua própria condição

humana. Ele não procura o poder tentando obter o conhecimento absoluto, como Fausto, mas,

sobretudo, empenha-se em organizar o mundo misturado do sertão: “O que assenta justo é

cada um fugir do que bem não se pertence. Parar o bom longe do ruim, o são longo do doente,

o vivo longe do morto, o frio longe do quente, o rico longe do pobre” (Rosa, 2006, p. 389).

É importante ressaltar o anseio que determina o encontro de Riobaldo com o demo, na

procura pela solução de seu conflito existencial. Antes, porém, faço como Riobaldo, quando,

em determinado momento de sua narrativa, constrói uma retrospectiva desse relato e comenta

com o ouvinte-doutor:

Só sim? Ah, meu senhor, mas o que eu acho é que o senhor já sabe mesmo tudo – que tudo lhe fiei. Aqui eu podia pôr ponto. Para tirar o final, para conhecer o resto que falta, o que lhe basta, que menos mais, é pôr atenção no que contei, remexer vivo o que vim dizendo. Porque não narrei à-tôa: só apontação principal, ao que eu crer posso. (Rosa, 2006, p. 308-309)

Embora já abordado neste trabalho sob diversas interpretações, o campo significativo

do pacto não se esgota, pois são múltiplas as leituras oriundas do acordo diabólico, o qual,

principalmente, pode ser visto como forma poética, visto que a força maligna não é tema raro

na literatura. Dentro da corrente da História das Mentalidades e do Imaginário, o estudo de

Laura de Mello e Souza, O Diabo e a Terra de Santa Cruz traz perspectivas enriquecedoras

para esta pesquisa, como o excerto abaixo:

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No nível do saber erudito, a Baixa Idade Média assistira a uma demonização paulatina da existência, e um processo de externalização de Satanás em relação a Deus. No século XII, obras como o Elucidarium procuravam sistematizar e vulgarizar elementos demonológicos disseminados nos escritos cristãos desde os primórdios da Igreja. A Reforma protestante e as lutas religiosas do século XVI fortaleceram ainda mais a presença de Satã entre os homens. Na mesma época em que ‘Paris se via dominada por uma floresta de campanários cujo rumor piedoso não cessava’, Jean Wier assinalava a existência de 72 príncipes e 7.405.926 diabos, divididos em 111 legiões, cada um com 6.666 membros. Havia os ígneos, aéreos, terrestres, aquáticos, subterrâneos e lucífugos. Habitavam geleiras, metiam-se nos corpos de roedores, controlavam tempestades. (Souza, 1987, p. 137)

Num mundo não racionalizado, expõe a autora, tudo podia ser explicado, por meio de

forças sobrenaturais: “ou Deus, ou o Diabo. Nenhuma delas parecia anormal, e a mentalidade

popular aproximava uma de outra” (Souza, 1987, p. 137). Laura de Mello e Souza expõe

também que, conforme o cristianismo prevalecia sobre as reminiscências pagãs, bem como

sobre a religião folclorizada, os diabos da teologia cristã tornavam-se sobretudo tentadores e

inimigos de Deus, seduzindo as almas, arrancando-as de Deus e arrastando-as para o inferno.

A estudiosa expõe que no catecismo do jesuíta Canisius, o nome de Satã é citado 67 vezes,

enquanto o de Jesus o é apenas 63, numa demonstração de como, no pensamento erudito,

estabelecia-se a concepção da luta inevitável entre Deus e o Diabo. No universo da cultura

popular e da religiosidade sincrética, do Brasil Colônia, diz Laura “ora Deus levava a melhor,

ora o Diabo. Daí o dito popular de acender uma vela a Deus, outra ao Diabo” (Souza, 1987, p.

140), o que lembra a ambivalência de Riobaldo, na constante avaliação de Deus e “do

contrário Dele”.

Em obra posterior, Inferno Atlântico, Laura de Mello e Souza aprofunda a

investigação das religiosidades coloniais luso-brasileiras discutidas em O Diabo e a Terra de

Santa Cruz. No capítulo “Ambiguidade amorosa”, expõe que fontes escritas e de natureza

inquisitorial confirmam a ambiguidade entre divino e demoníaco. Relata então a história

vivenciada no século XVI por Madalena de La Cruz, religiosa espanhola reputada como santa,

cujo estado de graça, porém, encobria a natureza demoníaca da freira, que sendo presa

‘Confesó espontáneamente que había llevado a cabo todas sus acciones bajo la influencia de Satan a cuyo gobierno se había entregado en su infancia, anadiendo que tenia trato intimo, con él desde hacía más de cuarenta años’. Tinha apenas cinco anos de idade quando lhe aparecera pela primeira vez certa visão, tomando-a por um anjo da luz que, às vezes, aparecia-lhe também como Cristo crucificado, incitando-a a santidade, mas, aos dozes anos – tempo de puberdade –, a tal visão lhe declarou ser o diabo. Madalena

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pactuou com ele, que em troca prometeu ‘sustentarla por gran tiempo en grandes onrras’. (Souza, 1993, p. 135)

A dualidade entre o bem e o mal (que faz lembrar personagens rosianas como Maria

Mutema e a Benfazeja), e o emblemático tema do pacto, podem configurar uma reflexão

metafísica acerca da natureza antagônica do divino e do demoníaco.

Reatando a explanação sobre o anseio que determina o encontro de Riobaldo com o

demo nas Veredas Mortas é conveniente definir, filosoficamente, o significado da palavra

desejo, que pode caracterizar a busca de Riobaldo. Segundo André Comte-Sponville, um

primeiro sentido para essa palavra é “Potência de gozar ou de agir” (Comte-Sponville, 2003,

p. 151). Sponville adverte que o desejo não é carência, não obstante as ideias de Platão, em o

Banquete, e sim potência, potência de gozar e gozo em potência. Para Sponville o desejo é a

força, em cada um de nós, é o que nos move e nos comove. Assim, é a própria potência de

existir, expõe Sponville citando Espinosa, de sentir e de agir. Ainda discorrendo sobre o

significado do desejo para Espinosa, Sponville expõe a seguinte definição:

‘O desejo é a própria essência do homem, na medida em que é concebida como determinada a fazer algo por uma afeição qualquer dada nela’. É a forma humana do conato e, assim sendo, o princípio de ‘todos os esforços, impulsos, apetites e volições do homem, os quais variam de acordo com a disposição variável de um mesmo homem e se opõem tão bem uns aos outros que o homem é puxado em diversos sentidos e não sabe para onde se virar’. O desejo, para Espinosa também, é a única força motriz: é a força que somos e de que resultamos, que nos atravessa, que nos constitui, que nos anima. (Comte-Sponville, 2003, p. 152)

O desejo de Riobaldo em delimitar os espaços de Deus e do Diabo no sertão tem seu

clímax na cena do pacto, que se situa entre transpor o fracasso da primeira tentativa de Liso

do Sussuarão e a segunda, e vitoriosa, travessia da região desértica. Deserto que também é

sinônimo do vazio, do nada. Analogamente essas travessias expõem as características do

próprio sertão, enquanto representação da alma: “Sertão, – se diz –, o senhor querendo

procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem”

(Rosa, 2006, p. 381). Símbolo ambivalente, o deserto apresenta aspectos negativos e

positivos. No islamismo (Lexikon, 2004, p. 74) aparece frequentemente no sentido negativo

como lugar do extravio. Nos Upanixades, diz ainda o verbete do Dicionário de Símbolos, “é

encontrado às vezes como símbolo da unidade original indiferenciada, fora do mundo ilusório

de todos os seres”. Já na Bíblia, conforme Lexikon, o termo aparece relacionado com o

abandono e afastamento de Deus e ainda, como lugar habitado pelos demônios, mas é também

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O lugar onde Deus pode mostrar-se com especial intensidade (por exemplo, as colunas de fogo e de nuvem que guiaram o povo de Israel pelo deserto; João Batista que anunciou no deserto a vinda do Messias). Relacionado com as lendas dos eremitas, o deserto comporta, ao mesmo tempo, dois sentidos: ora como lugar da tentação do demônio etc. (por exemplo, Santo Antão), ora como lugar de meditação e da proximidade com Deus. (Lexikon, 2004, p. 74)

Outra conceituação do deserto, de Chevalier e Gheerbrant, expõe que a ambivalência

do símbolo é manifesta, a partir da simples imagem da solidão. Sendo assim, “É a

esterilidade, sem Deus. É a fecundidade, com Deus, mas devida a Deus só” (Chevalier-

Gheerbrant, 2008, p. 332).

A descrição de Riobaldo da primeira travessia sob o comando de Medeiro Vaz revela

“que o Liso do Sussuarão não concedia passagem a gente viva, era o raso pior havente, era

um escampo dos infernos” (Rosa, 2006, p. 34). O jagunço explica ainda ao seu ouvinte, como

era tal lugar:

Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso do Sussuarão, é o mais longe – prá lá, prá lá, nos ermos. Se emenda com si mesmo. Água não tem. Crer que quando a gente entesta com aquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta, sempre. Um é que dali não avança, espia só o começo, só. Ver o luar alumiando, mãe, e escutar como quantos gritos o vento se sabe sozinho, na cama daqueles desertos. Não tem excrementos. Não tem pássaros. (Rosa, 2006, p. 34)

Riobaldo narra ao doutor, que “pontual nos instantes de o raso se pisar”, um

companheiro, João Bugre, fala sobre o pacto: – ‘...O Hermógenes tem pauta... Ele se quis com

o Capiroto...” (Rosa, 2006, p. 48). Essa fala (já comentada páginas atrás) deixa explícita a

ligação da imagem, infernal, desértica com o leitmotiv “Viver é muito perigoso”, pois

desperta Riobaldo para a necessidade de angariar forças a fim de se igualar ao Hermógenes,

ao demônio, e, desse modo, discorre o ex-jagunço:

A gente viemos do inferno, nós todos – compadre meu Quelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstro-medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por um relance a graça de sua sustância alumiável, em as trevas de véspera para o Terceiro Dia. Senhor quer crer? Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dos outros, bom atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o que se come, é preciso de esforçar no meio, com fortes dôres, e até respirar custa dôr; e nenhum sossego não se tem. Se creio? Acho provável. Repenso no acampo da Macaúba da Jaíba, soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros – as ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando, furando os olhos, cortando línguas e orelhas, não economizando

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as crianças pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio vivas, na beira de estrago de sangues... E esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de nunca se esquecer do que está reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombam para lá, constante que morrem... Viver é muito perigoso. (Rosa, 2006, p. 49)

Contudo, após o pacto no vazio e silêncio das Veredas Mortas, no nada, Riobaldo

precisava fazer “extraordinárias cousas” para o começo de “concerto” do mundo. Arregimenta

seus “guerreiros” numa segunda travessia que se estabelece como meta existencial, mesmo

porque assim estaria realizando o plano de Diadorim, pois “a ideia de atravessar o Liso do

Sussuarão, ele Diadorim era que a Medeiro Vaz tinha aconselhado” (Rosa, 2006, p. 54).

Riobaldo explica ao seu interlocutor a ousadia desse empreendimento:

Porque, o que eu estava mandando, nem Medeiro Vaz mesmo não teria sido capaz de crer: eu queria tudo, sem nada! Aprofundar naquele raso perverso – o chão esturricado, solidão, chão aventêsma – mas sem preparativos nenhuns, nem cargueiros repletos de bom mantimento, nem bois tangidos para carneação, nem bogós de couro-cru derramando de cheios, nem tropas de jegues para carregar água. Para que eu carecia de tantos embaraços? Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente pode permanecer deitado em rede ou cama, e as enxadas saindo sozinhas para capinar roça, e as fôices, para colherem por si, e o carro indo por sua lei buscar a colheita, e tudo, o que não é o homem, é sua, dele, obediência? Isso, não pensei – mas meu coração pensava. (Rosa, 2006, p. 506)

A fala de Riobaldo teoriza a Idade de Ouro, numa referência a um mundo mítico, em

que os homens levariam uma vida semelhante à dos deuses, sem preocupações e privações:

onde imperaria a justiça e a boa fé (Kury, 2003, p. 207). Essa relação remete à primeira idade

dos versos de Ovídio, em Metamorfoses, Idade de Ouro na qual as flores sem gérmens

brotavam; nos rios corria o leite e das árvores era fruto o mel. Lembra ainda as Bucólicas, de

Virgílio, que expõe um futuro no qual a própria terra tudo produzirá, sem o solo necessitar da

enxada nem a vinha da foice, e da canga os touros serão libertos. Francis Utéza analisando

esse relato de Riobaldo expõe: “Teria, pois, o velho fazendeiro lido Ovídio e Virgílio? O

chefe jagunço provavelmente não, pois para ele esse mito ainda não havia sido traduzido em

discurso, mas integrado nas fontes mesmas de seu comportamento; ele sentiu intuitivamente,

não intelectualmente” (Utéza, 1994, p. 124), pois como bem explana Riobaldo: “Isso, não

pensei – mas meu coração pensava.” Assim, confiante, ele empreende a segunda travessia em

nove dias. Atrevimento desse modo explicado:

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Sobre o que eu era um homem, em sim, fantasia forra, tendo em nada aqueles perigos, capaz do caso. Para vencer vitória, aonde nenhum outro antes de mim tivesse! Respinguei dessas faíscas constantes. Eu, não: o cujo do orgulho, de mim, do impossível. (Rosa, 2006, p. 504-505)

Perdendo a conotação infernal, o Liso era então somente “um feio mundo, por si,

exagerado” (Rosa, 2006, p. 508). Ademais, nessa segunda jornada, tinha “de tudo”: reses,

veados gordos, abelhas, flores, paragens com plantas, água, “onde só faltava o buriti: palmeira

alalã – pelas veredas” (Rosa, 2006, p. 509). Mas, a despeito do êxito alcançado, Riobaldo não

o credita a sua própria capacidade, pois, diz o jagunço, “Se passou como se passou, nem refiro

que fosse difícil – ah; essa vez não podia ser! Sobrelégios? Tudo ajudou a gente, o caminho

mesmo se economizava” (Rosa, 2006, p. 508). A herança cultural expressa no “sobrelégio”,

espécie de misto de sobrecoisa com sortilégio, a que Riobaldo parece atribuir seu sucesso,

reforça a lembrança do pacto, ensombreando desse modo a luminosa jornada, conforme conta

ao doutor:

Assim achado, tudo, e o mais, sem sobranço nem desgosto, eu apalpei os cheios. O respeito que tinham por mim ia crescendo no bom entendido dos meus homens. Os jagunços meus, os riobaldos, raça de Urutú-Branco. Além! Mas, daí, um pensamento – que raro já era que ainda me vinha, de fugida, esse pensamento – então tive. O senhor sabe. O que me mortifica, de tanto nele falar, o senhor sabe. O demo! Que tanto me ajudasse, que quanto de mim ia tirar cobro? – ‘Deixa, no fim me ajeito...’ – que eu disse comigo. Triste engano. Do que não lembrei ou não conhecesse, que a bula dele é esta: aos poucos o senhor vai, crescendo e se esquecendo... (Rosa, 2006, p. 510)

“Pudesse eu rejeitar toda a feitiçaria / Desaprender os termos de magia” (Goethe,

2007, p. 951), diz Fausto, sugerindo assim um desejo de esquecimento (que analogamente

associo ao crescendo e esquecendo de Riobaldo). Desejo talvez inalcançável, diz Marcus

Vinicius Mazzari em nota explicativa ao texto de Goethe, posto que expresso no modo

condicional. Riobaldo também tenta esquecer o trato, esquecer o demo, esquecer o mal que

configura-se nas ambíguas figuras de um Treciziano, de um Fancho-Bode, de Hermógenes,

comparsas que se tornam inimigos. Mal que pode estar também na dualidade de

Diadorim/Deodorina, diabo e deus no sertão, de Riobaldo:

Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca doce pode de repente virar azangada – motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas – vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a

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outra, a mandioca-brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, o senhor já viu, por ver, a feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engolir por sua suja comodidade o mundo todo? E gavião, côrvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para adiante, rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas – que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo – que é só assim o significado dum azougue maligno – tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo. (Rosa, 2006, p. 11)

A ambiguidade da narrativa, dos personagens, do sertão, dispõe-se como elemento

estrutural no romance de Rosa: há jagunços-fazendeiros, como o Ricardão; fazendeiros

simpatizantes dos jagunços, como seô Ornelas e ex-jagunço fazendeiro, como o próprio

Riobaldo. Há Reinaldo-Diadorim e Diadorim-Deodorina. Há Veredas Mortas / Veredas

Tortas / Veredas Altas. Há Deus. Há o Diabo? “O Diabo existe e não existe?”, especula

Riobaldo no início do seu narrar, para posteriormente, quase ao final da sua história,

conjeturar:

Então, não sei se vendi? Digo ao senhor: meu medo é esse. Todos não vendem? Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma... Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor: então, a alma, a gente vende, só, é sem nenhum comprador... (Rosa, 2006, p. 485)

Riobaldo questiona a existência do diabo em múltiplos aspectos de sua realidade e

procura compreender o que subjaz a ela, pois, segundo João Adolfo Hansen,

O Diabo tem também função catártica, de explicar para Riobaldo a violência e a bestialidade e a bestice do sertão: os causos que relata, sempre neles inferindo O Ele, petrifica-os na imagem fantasmática do Mal, alienando-os nela ao mesmo tempo em que se fecha na sua auto-imagem de fazendeiro-dono-crente-em-Deus. Os causos, tão no limite, dão-se como desmesura do acontecimento: como o de Pedro Pindó, ou da matança dos cavalos na fazenda Os Tucanos, ou a maldade pura de Maria Mutema, ou o do Aleixo etc. É como se, vivendo a coisa absurdíssima que medusa e, bloco bruto de ser incorporal, fecha obsessivamente as portas da razão, fosse necessário congelá-la, exorcizá-la numa imagem ou nome cujos operadores disjuntivos são ‘pecado x salvação’. O contar de Riobaldo normaliza, assim, enquanto a interpreta na metáfora Diabo, a brutalidade bruta da vida sertaneja. (Hansen, 2000, p. 97)

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A barbárie leva o jagunço a cogitar possibilidades de resgatar o sertão, conforme

expõe ao doutor da cidade:

Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até à hora de cada uma morte cantar. Raciocinei isso com compadre meu Quelemém, e ele duvidou com cabeça: – ‘Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho...’ – ciente me respondeu. (Rosa, 2006, p. 58)

É interessante ainda observar que a cena do pacto expõe uma crescente afirmação de

Riobaldo na enfática repetição do pronome eu, como exemplificam as seguintes falas do

jagunço: “eu subi de lá, noitinha” / Eu caminhei para as Veredas-Mortas” / “E eu ia estudando

tudo” / “Eu fosse um homem novo em folha” / “Eu não ia temer” / “Eu era eu” / “E por isso

eu não tinha licença de não me ser” / E, o que era que eu queria” / “eu queria só tudo” / “Eu

queria ser mais do que eu” / “Ah, eu queria, eu podia” / “eu mais forte do que o Ele” / “eu, eu,

eu” / “eu estava bêbado de meu” / “‘Lúcifer! Lúcifer!...’ – ai eu bravei, desequilibrado” /

“Mas eu supri que ele tinha me ouvido” (Rosa, 2006, p. 418-422).

Esse Eu, a partir do momento do pacto, diz Antonio Candido, “é de certo modo

alienado em benefício do Nós, do grupo a que o indivíduo adere para ser livre no Sertão, e

que ele consegue levar ao cumprimento da tarefa de aniquilar os traidores, ‘os Judas’”

(Candido, 1991, p. 308). Outrossim, explana Candido:

Renunciando aos altos poderes que o elevaram por um instante acima da própria estatura, o homem do Sertão se retira na memória e tenta laboriosamente construir a sabedoria sobre a experiência vivida, porfiando, num esforço comovedor, em descobrir a lógica das coisas e dos sentimentos. “E me inventei neste gosto, de especular ideias”. Desliza, então, entre o real e o fantástico, misturados na prodigiosa invenção de Guimarães Rosa como lei da narrativa. E nós podemos ver que o real é ininteligível sem o fantástico, e que ao mesmo tempo este é o caminho para o real. Nesta grande obra combinam-se o mito e o logos, o mundo da fabricação lendária e o da interpretação racional, que disputam a mente de Riobaldo, nutrem a sua introspecção tateante e extravasam sobre o Sertão. (Candido, 1991, p. 309)

Riobaldo, na intenção de vencer os “Judas” e assim também satisfazer o desejo de

vingança de Diadorim, procura compactuar com o demônio. Porém, duvida da origem das

forças angariadas no suposto trato: “Deus ou o demo?”. Contudo, cedendo às arras, “alma e

palma, e desalma – Deus e o Demo”, empenha o bem e o mal, para, enfim, exclamar

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contundente: “Deus e o Demo – para o jagunço Riobaldo” (Rosa, 2006, p. 421).

Rememorando, o narrador exprime esse sentir:

A pé firmado. Eu esperava, eh! De dentro do resumo, e do mundo em maior, aquela crista eu repuxei, toda, aquela firmeza me revestiu: fôlego de fôlego de fôlego – da mais-força, de maior-coragem. A que vem tirada a mando de setenta e setentas distâncias do profundo mesmo da gente. (Rosa, 2006, p. 421-422)

Os múltiplos de sete, implicados nas “setenta e setentas distâncias”, induzem à ideia

de totalidade (Chevalier-Gheerbrant, 2008, p. 831), pois, nesse momento de afirmação,

Riobaldo em toda sua força de homem humano é Deus, é o Demo. Por sua vez, o silêncio que

responde à invocação de Riobaldo por Lúcifer é um indício de abertura a essa revelação.

Segundo as tradições (Chevalier-Gheerbrant, 2008, p. 834), antes da Criação houve um

silêncio e no final dos tempos haverá um silêncio. Nonadas? Conforme Heloísa Vilhena de

Araújo, a palavra “nonada”, que inicia o romance de Rosa, poderia “ser indicação de que o

mundo de Grande sertão: veredas estaria, numa imitação da Criação, sendo criado ex-nihilo”

(Araújo, 1996, p. 337).

Na paradoxal cena do pacto, Riobaldo constata que o diabo não existe, contudo supre

ter sido ouvido pelo “falso imaginado”, o qual, como que adquirindo as palavras todas do

jagunço, fecha “o arrocho do assunto”. O dicionário Houaiss expõe que a palavra adquirir,

dentre outras significações apresenta o sentido de “tornar-se dono de (algo), por compra,

troca, etc” (Houaiss, 2001, p. 16), bem como contém o significado de assumir. Assim, ou o

diabo apropria-se de Riobaldo ou este assume sua porção demoníaca tornando-se um pequeno

diabo ou (como para os antigos gregos) um pequeno deus. Porém, seguindo a acepção de

Comte-Sponville, veremos que Riobaldo não encarna o diabo – “O demônio principal ou

principial”, aquele que faz o mal pelo mal, pois esse é inumano, e o homem, como explica

Comte-Sponville, citando Kant, nunca faz o mal pelo mal, apenas por egoísmo, isto é, para o

seu próprio bem (também paradoxalmente, lembre-se aqui as histórias de Maria Mutema,

maldade pura, e da Benfazeja, maldade para o bem de outrem). De acordo com Comte-

Sponville, pode-se dizer do diabo “o que Stendhal dizia de Deus: sua única desculpa é que ele

não existe” (Comte-Sponville, 2003, p. 161). Desse modo, Riobaldo clamou pelo diabo

(“Lúcifer! Lúcifer!...”), mas parece ter ouvido o demônio, o seu próprio, o satanás dos seus

infernos.

Pressuposto o pacto, Riobaldo alcança “umas tranqüilidades”, associadas então à

imagem do rio que adentra a casa do pai. Casa que tanto pode simbolizar o cosmos, como o

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corpo humano a abrigar a alma, renovada, poeticamente, no fluir das águas. Ademais, as

palavras, “como cópias ou matrizes do pensamento” (Comte-Sponville, 2003, p. 436),

adquiridas pelo demo quebram o silêncio do nada e assim pequenas ideias, ou ruídos,

fortalecem o jagunço, que em uma tagarelice espirituosa após o acordo causa estranheza aos

companheiros: “– ‘Vai, tão falante, Tatarana? Quem te veja...’” (Rosa, 2006, p. 425).

Ainda narrando a celebração do contrato maligno, Riobaldo diz: “Vi as asas, arquei o

puxo do poder meu, naquele átimo” (Rosa, 2006, p. 422). Desse modo, num impulso para

transcender as limitações que o angustiam, o jagunço encara a força do seu próprio poder,

expressa na simbologia de espiritualização e de divindade das “asas”. Em meio ao vazio,

Riobaldo está cheio de poder. Nas Veredas Mortas, diz Francis Utéza, o jagunço “investido da

totalidade de um poder que ultrapassa sua individualidade, assume a ‘chefia’ ao materializar

progressivamente a Diké” (Utéza, 1994, p. 330). Revestindo-se do aspecto demoníaco, a partir

do pacto Riobaldo é força e decisão na busca por uma nova ordem no sertão.

Entretanto, é necessário enfatizar que o pacto diabólico tradicional na história de

Riobaldo é revisto e corrigido, conforme aponta Utéza, pois “já não se trata de propor a Satã

um acordo de tipo comercial – uma alma para a eternidade em troca da onipotência temporal

– mas de desafiar o Príncipe deste mundo para o escravizar, impondo-lhe a vontade do mais

corajoso dos jagunços, Riobaldo – Tatarana” (Utéza, 1994, p. 313). Riobaldo, com novo

ânimo adquirido no trato, impõe sua vontade no sertão, enquanto que Fausto no “pequeno”

como no “grande mundo” se submete aos caprichos de Mefistófeles. Contudo, ambos se

lançam à aventura e às pretensões de conquistas. Riobaldo parece não temer a força do Diabo,

mas sim a de Deus, que castiga dissimuladamente, como relata ao doutor:

O diabo é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! Me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza. (Rosa, 2006, p. 23)

Continuando na explanação desse sentimento, o jagunço conta a estória da faquinha

caída no tanque de barbatimão, cuja lâmina é roída:

A pois: um dia, num curtume, a faquinha minha que eu tinha caiu dentro de um tanque, só caldo de casca de curtir, barbatimão, angico, lá sei: – ‘Amanhã eu tiro...’ – falei, comigo. Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava. Ah, então, saiba: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido roído, quase por metade, por aquela aguinha escura, toda quieta. Deixei, para mais ver. Estala, espoleta! Sabe o que foi? Pois, nessa mesma da tarde,

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aí: da faquinha só se achava o cabo... O cabo – por não ser de frio metal, mas de chifre de galheiro. Aí está: Deus... Bem, o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me entende... (Rosa, 2006, p. 23)

Em Fausto o mal é personificado por Mefistófeles, já na obra de Rosa, conforme quer

acreditar o personagem-narrador o diabo não existe, mas o mal está presente e é o próprio

“homem humano”, por meio do qual o diabo mistura-se em tudo, como mostram as

descrições de diversos causos, por exemplo o de Aleixo, que, “só por graça rústica” (Rosa,

2006, p. 12), matou um desvalido velhinho. Outra história, a de Pedro Pindó, expõe que este e

sua mulher, a fim de repreenderem o filho deles, Valtêi, menino que tinha um “gostoso de

ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza” (Rosa, 2006, p. 13), acabam por

igualarem-se a ele no despropósito de suas ações. A malignidade ressalta-se também no

episódio da matança dos cavalos, pelos homens de Hermógenes, na fazenda dos Tucanos e,

sobretudo, há ainda a maldade pura, sem motivo nenhum, de Maria Mutema.

Segundo Kathrin Holzermayr Rosenfield no artigo “O pacto fáustico em Grande

sertão: veredas”, a cena do pacto é o ponto culminante de um longo processo de erosão dos

conceitos de ser e de natureza humana – erosão que vai se manifestando com precisão nas

páginas que antecedem o encontro de Riobaldo com o demo. De acordo com Rosenfield as

principais etapas desta erosão são:

a) a série dos causos que mostram com uma progressão dramática a natureza feroz, não suscetível de aperfeiçoamento, do homem escorregando livremente em direção a todo o tipo de monstruosidade e perversão; b) o confronto com o Hermógenes como personificação da propensão violenta e destruidora e como encarnação da ‘perfeição maléfica’; c) o encontro com os Catrumanos – tropa saturnal que presentifica de novo esta dimensão do sem-limite, da violência totalmente recalcitrante de fronteiras e formas, a ameaça amórfica do magma; d) o povo dos Sucrunianos em estado de decomposição física, povo de mortos-vivos roídos pela peste; e o encontro com a figura aparentemente anódina do ‘seo Habão’ que representa, no entanto, a violência, igualmente indomável, da ganância comercial, o antigo demônio Mamon, que aparece igualmente no amigo e duplo Hermógenes, Ricardão (chamado por Riobaldo, de ‘bruto comercial’, ‘somítico’, etc.). (Rosenfield, 2007, p. 248)

Rosenfield relata que toda a cena do pacto aponta para a busca de Riobaldo por “uma

receita, a norma dum caminho certo”. Entretanto, diz Rosenfield, “a razão faz desta propensão

para o conhecimento das regras e da ordem a causa da errança pelo mal”. Para a pesquisadora

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O atributo humano da razão dota o homem do desejo de conhecimento, levando assim a própria razão a uma necessária transgressão. O desregramento está consequentemente inscrito como momento negativo na própria racionalidade, a razão é causa e consequência da queda, causa e consequência da punição de Deus. Desta forma, a punição se perpetua no próprio desejo de conhecer, sendo que o momento logicamente primeiro da razão é o do movimento negativo, a passagem pelo conhecimento do mal. (Rosenfield, 2007, p. 249)

A análise de Rosenfield expõe que os episódios exemplificadores do mal, citados

parágrafos acima, aparecem na narrativa como espelhos refletindo facetas possíveis do

próprio Riobaldo, o qual acaba por perceber que ele mesmo é igual a esses homens humanos,

isto é, “um horror, um ser portador de morte e de anulação, um desejo-do-nada, perdido no

nada” (Rosenfield, 2007, p. 248). Sob esse aspecto, de acordo com Rosenfield, não sobra

quase nada do tema tradicional do pacto fáustico, que pressupõe um sujeito pleno de

determinação, pois o Riobaldo que entra na cena do pacto não sabe mais o que quer,

configurando, diz Rosenfield, o sumiço do sujeito, numa morte simbólica que é reforçada

pelas imagens do silêncio, do não-aparecer e do não-acontecer, as quais retratam “o absoluto

vácuo, a absoluta impossibilidade de cada um dirigir-se pela consciência, pela vontade, por

todos aqueles atributos que identificamos finalmente com a subjetividade” (Rosenfield, 2007,

p. 248). A vontade, a consciência e os objetivos são desencadeados após o encontro com o

demo nas Veredas Mortas, do qual Riobaldo renasce como Urutú Branco.

Com sensibilidade Rosa expõe nos epítetos de Riobaldo as características da trajetória

do jagunço: primeiramente ele é o Cerzidor, como também é Tatarana (lagarta de fogo),

nomes atribuídos por sua habilidade com as armas. Posteriormente, ao alcançar a chefia,

torna-se o Urutú Branco. Desse modo a lagarta transmuta-se em serpente, ascensão que

expressa uma renovação de vida. Na obra de Goethe são notáveis as transformações de

Mefistófeles, posto que este surge, dentre outras figurações, como estudante, conselheiro e

bufão da corte do rei. Ademais, o Diabo mostra-se inicialmente a Fausto como um cão negro,

forma costumeira atribuída ao mal, passando depois a aparentar um hipopótamo, para logo em

seguida atingir o tamanho de um elefante e, por fim, transformar-se em névoa, da qual surge

Mefistófeles, sob o aspecto de um estudante andarilho. Assim, voltando ao Grande sertão, as

denominações de Riobaldo aludem significativamente às mudanças do jagunço. Em “Meu

Tio, o Iauaretê”, já citado neste trabalho, a equiparação do personagem principal com a onça

induz à metamorfose, expressa sobretudo ao nível da linguagem. Na tragédia de Goethe,

porém, são visíveis as mutações sofridas pelo mentor de Fausto, prescindindo, portanto, de

comparações ou alusões.

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São também comparações, ou alusões, que conduzem esta pesquisa a um outro

silêncio presente na obra de Rosa, analisado por Marcos Falleiros, o silêncio de um

personagem ausente do Sertão de Riobaldo, isto é, o silêncio do personagem citadino,

configurado no ouvinte-doutor, que “quer ouvir-e-penetrar” esse sertão. O silêncio pleno, diz

Falleiros, é o significado pleno, pois aquele que ouve a história constrói o texto. Desse modo,

“o escritor se transforma em personagem onipresente: ele é o texto, ele é o livro”. Outrossim,

expõe Falleiros, o silêncio como traço formal forte determina a modernidade do romance,

pois, “o escritor, imerso na história como ouvinte, se subtrai do papel de narrador, fazendo

recuar a cena ao momento da própria narração ouvida, que ele transmite como texto”

(Falleiros, 1998, p. 170). Desse modo, o escritor, ouvinte,

Não simula a cena, mas, com limpeza moderna, desvenda seu lugar com a fissura de seu silêncio inquietante. Cria um romance rachado – com dois lados. Presente, impede a objetivação de seu mano Riobaldo como um narrador pleno. Ausente, revela a subjetividade ordenadora de seu ouvido fraternal. (Falleiros, 1998, p. 171)

Nas considerações finais do ensaio “A obra ouvinte”, Falleiros expõe que sob a forma

de pacto com “O-que-não-existe”, projeta-se, de forma travestida, a alienação do homem

contemporâneo. Contraditoriamente, diz ainda o crítico, “a raiz de ingenuidade, que arraiga o

herói romanesco ao mundo natural, pulsa emoção mística e mina com a incerteza aquilo que a

camada realista da reflexão do herói problemático quer afirmar” (Falleiros, 1998, p. 183).

Portanto, para Falleiros, a premissa “Existe é homem humano” submete-se a uma conclusão

inquieta, “com o complemento da incerteza e da travessia”. Travessia que, numa acepção de

transitoriedade, creio poder permitir uma aproximação com os versos finais do segundo

Fausto, nas enigmáticas palavras entoadas pelo Chorus Mysticus:

Tudo o que é efêmero é somente Preexistência; O Humano-Térreo-Insuficiente Aqui é essência; O Transcendente-Indefinível É fato aqui; O Feminil-Imperecível Nos ala a si. (Goethe, 2007, p. 1061-1065)

Em Fausto (como no romance de Rosa), são abundantes os paradoxos, ressaltados, por

exemplo, na estrofe acima que encena na tragédia um final pouco trágico. Helmut Galle

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discorrendo sobre o estilo do Fausto II considera também paradoxal a carga alegórica da obra

de Goethe que cria uma superestrutura para as figuras, suas ações e falas:

Não que as cenas careçam de concretude tão essencial para a estética de Goethe, que sempre parte do fenômeno particular para nele descobrir o seu aspecto genérico, a verdade geral inerente dos fenômenos. ‘Temos, no espelho colorido, a vida’, diz Fausto no início da sua segunda trajetória (4.727), parafraseando a epistemologia do autor. Essa base materialista e experiencial está presente no Fausto II, mas a dimensão alegórica parece dissolver a coerência da trama no primeiro plano. Trata-se, ainda, de referências veladas a uma visão do mundo que não pertence à bagagem cultural mais comum. Gerações de germanistas se ocuparam em separar os vários estratos de sentido, que se encontram aqui indissoluvelmente emaranhados: a construção do sujeito autônomo e criativo, uma visão da história ocidental, uma filosofia da natureza, uma estética conciliadora do clássico e do moderno, um extrato do progresso técnico, uma enciclopédia da mitologia antiga e um compêndio das ciências ocultas e naturais, para somente mencionar as camadas mais importantes da composição, exploradas até o momento. A mudança do ‘pequeno’ ao ‘grande mundo’ realizada pelo protagonista na segunda parte do Fausto implica que a perspectiva se desloca do subjetivo para o objetivo, como o autor já explicou em uma das conversas com Eckermann: ‘Na segunda parte não há quase nada de subjetivo, tudo aparece em um mundo superior, mais amplo, mais claro e menos passional; alguém que não tenha viajado pelo mundo e não passou por algumas experiências não o entenderá’. (Galle, 2007, p. 306)

A afirmação de Goethe, nas conversações com Eckermann, acerca da passagem do

subjetivo para o objetivo na segunda parte do Fausto corresponde a mudança da vontade

individual, representada pelas paixões de Fausto, para uma perspectiva da própria

humanidade. Perspectiva que para Fausto tem a ótica do capitalismo. A esse respeito, Haroldo

de Campos esclarece:

O velho pactário morre como sujeito histórico da burguesia (supostamente sub-rogada no gênero humano), enquanto Goethe já punha em dúvida essa equação, criticando-a ironicamente através da separação final (na cena do ‘Enterramento’) entre o ‘eidos imortal’ (a ‘enteléquia’) de Fausto e sua matéria terrestre. Mefisto opõe à memória do passado (dos ‘dias terrestres’ que Fausto sonha ver perenizados na lembrança das gentes) o elogio do ‘vazio eterno’ (das Ewig-Leere). Goethe só consegue resolver a contradição por uma solução teatral – a intervenção do amor divino, da graça providencial, que supera as normas e redime o pactário da danação. (Campos, 2005, p. 121)

Conforme Campos, num ensaio sobre a cena final do Fausto, Adorno expõe que a

qualidade peculiar da grandeza goethiana implica em senso do finito, isto é, de limitação a

superar, ao invés de uma relação imediata com o infinito. O bem geral então se realizaria

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unicamente através da finitude e da falibilidade da situação determinada. O pacto em Fausto

se resolve em desfavor de Mefistófeles, pois o personagem centenário é salvo pela

intervenção do amor divino. Uma instância mais alta (de acordo com a explanação de Campos

sobre a análise de Adorno) “põe termo ao permanente equilíbrio de crédito e débito, rompe o

ciclo de causa e efeito” (Campos, 2005, p. 124). Desse modo, o Diabo é vencido pelo Amor,

“negação da negação”. Segundo Campos, Adorno expõe a cena conclusiva do Fausto II como

transcendência do finito ao infinito através da mediação concreta da própria finitude. Assim,

Campos relata a explicação de Adorno sobre como Goethe tratou o velho motivo do demônio

enganado: o diabo é vencido pelo amor que toma conta dele, a “negação da negação”, como

expressa o enlevo erótico de Mefistófeles pelo coro angelical que arrebata a alma de Fausto.

As palavras de Mefisto perante os seres celestiais anunciadores da redenção aos que se

esforçam aspirando (“Quem aspirar, lutando, ao alvo, / À redenção traremos”) demonstram

esse ardor:

A fronte me arde, o peito, o corpo em fogo cruento, Um supra-demoníaco elemento! Pior do que do inferno o fogo mais tremendo! – Por isso aos ais viveis gemendo, Pobres amantes vós, que espreitais, desprezados, A bem-amada com pescoços deslocados!

(Goethe, 2008, p. 1009)

A atração de Mefisto pela legião celeste ressalta a androginia dos anjos e os expõe

como servidores da causa divina, que, contudo, agem como diabos:

Tratai-nos de malditos feiticeiros, Enquanto sois os bruxos verdadeiros, Pois seduzis vós homens e mulheres. – Maldita, incômoda aventura! É isso, do amor, a elementar essência? Meu corpo todo em brasas se tortura, Mal sinto, já, da nuca a incandescência. – De cá flutuais, de lá; baixai para o meu plano, As formas agitai de modo mais mundano; De fato, o aspecto austero em vós é lindo, Mas, quisera uma vez, tão só, vos ver sorrindo! Ser-me-ia um gosto eterno, nunca visto dantes. Digo: do modo pelo qual se olham amantes, Dos lábios é um jeitinho, tão somente. Alto marmanjo, és tu quem mais me agrada, Não te orna o ar sonso de padreco em nada, Olha para mim algo lascivamente! Podíeis sem desonra andar mais nus, aliás;

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As amplas vestes tão supra-decentes; Desviam-se – assim vistos, por detrás! – São os malandros por demais apetecentes!

(Goethe, 2008, p. 1015)

Os belos anjos adolescentes, relata Campos, fazem “Satã e seus sequazes padecer as

penas de amor”. Do amor perverso, “Como o que o fáustico Riobaldo padece por Diadorim no

Grande Sertão rosiano” (Campos, 2005, p. 162). Campos diz ainda que o céu fáustico mostra-

se como uma duplicação, desonerada de pecado, da trajetória terrena do pactário, a qual

mostra-se no final equivalente a uma programação do céu, por um plano de ação que equivale

aos anos de vida mortal do Fausto. Desse modo, para Campos “Antes do que a divinização do

homem (do filósofo) – meta de Hegel – teríamos aqui a finitização ao divino”. Portanto,

analisa Campos, como o Riobaldo rosiano, sendo que este se refere ao Demônio, o velho

Goethe parece dizer que “O céu não há. O que existe é o homem humano”.

Pudesse eu rejeitar toda a feitiçaria, Desaprender os termos de magia, Só homem ver-me, homem só, perante a Criação, Ser homem valeria a pena, então.

(Goethe, 2007, p. 951)

Esse aparente desejo de Fausto em libertar-se de Mefisto e, desse modo, por si próprio

conquistar, em sua trajetória, o contínuo aperfeiçoamento e ascensão aproxima-se da fala final

de Riobaldo no Grande Sertão, “Existe é homem humano”, já que procura afirmar na

condição humana a rejeição a toda e qualquer feitiçaria. A estrofe transcrita acima sucede os

versos em que as quatro mulheres grisalhas, Penúria, Insolvência, Privação e Apreensão

surgem para Fausto (Quinto ato, cena Meia-Noite). Dessas quatro alegorias destaca-se a

figura da Apreensão, a qual, segundo nota explicativa de Marcus Vinicius Mazzari ao Fausto

II, corresponde, no original, a Sorge, significando “preocupação” ou “cuidado”. Mazzari

esclarece que outra provável fonte para a concepção da cena Meia-Noite foi apontada por

Wolfgang Wittkowski no ensaio. “Goethe, Schopenhauer und Fausts Schulussvision”,

conforme Mazzari, “Goethe, Schopenhauer e a visão final de Fausto”, publicado em 1990 no

Goethe Yearbook, no qual os vultos alegóricos da Penúria, Apreensão e Privação remontariam

também à leitura da primeira parte de O mundo como vontade e representação de Artur

Schopenhauer. No capítulo 57 desta obra, explica Mazzari,

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Schopenhauer caracteriza a vontade de viver como ‘aspiração constante, sem finalidade e sem descanso’, a qual gera um sofrimento ontológico. ‘Os esforços ininterruptos para banir o sofrimento fazem apenas com que este abandone a sua aparência original de penúria (Mangel), privação (Not), preocupação (Sorge) com a conservação da vida. Se [os esforços humanos] lograrem, o que é muito difícil, recalcar o sofrimento sob esta aparência, ele logo se anuncia de volta sob mil outras figuras diversas, de acordo com a idade e as circunstâncias’. E se tais figuras voláteis e cambiantes não conseguem penetrar de imediato na ‘consciência humana’, a ‘substância da apreensão’ (Sorgestoff) nelas encarnada permanece à espreita ‘em sua região extrema [da consciência], como uma figura de névoa (Nebelgestalt) escura e despercebida’. (Goethe, 2007, p. 944)

Mazzari expõe que o enceguecimento de Fausto, provocado pela Apreensão, constitui

um dos pontos fortes da tragédia, pois o colonizador recusa-se a reconhecer o poder da “figura

de névoa”, reagindo à cegueira com a afirmação da “vontade de ação e da sua luz interior”.

Como relata Falleiros (citando Anatol Rosenfeld) em “A obra ouvinte”, no quadro

realista em que Riobaldo narra sua vida há um corte, uma fragmentação em dois mundos,

possibilitando uma analogia com a “desrealização” do humano na pintura moderna. Humano

que eliminado ou deformado na pintura também se decompõe no romance. Riobaldo mostra-

se, na análise de Falleiros, como o ser fragmentado, “que quer poder reencontrar na última

página, e restaurá-la para o mundo de cá, a velha frase de Protágoras: ‘Existe é homem

humano’” (Falleiros, 1998, p. 172). Assim, no Grande sertão de Rosa, “na periferia da

periferia do capitalismo”, há um mundo desalienado,

Ilhado pela estranha arte de uma restauração pós-moderna de tudo o que problematicamente se cindira na literatura ocidental desde D. Quixote: o romance reencontra o romanesco da cavalaria com o lirismo de uma ‘linguagem plena’, cujas formas não se expressam pela paródia, porque sua audição representa uma consciência inteiriça, para juntas, solidária e dialeticamente, negarem o mito do demoníaco e afirmarem o destino aberto da História: travessia. (Falleiros, 1998, p. 175)

A obra de Rosa encampa os gêneros lírico, épico e dramático, pois contém os traços

estilísticos fundamentais que caracterizam a Lírica, a Épica e a Dramática, conforme esses

gêneros são descritos por Rosenfeld em O teatro épico. No aspecto lírico destaca-se sobretudo

a manifestação dos sentimentos contidos na intimidade expressiva das vivências de Riobaldo,

cuja “alma cantante” abarca o mundo do sertão. O épico está presente na espontaneidade da

fala do personagem jagunço marcada pela oralidade de sua narrativa ao ouvinte-doutor, que

escuta as estórias que se passaram com o narrador, entremeada com os causos, com os quais

este procura exemplificar e dar veracidade ao seu relato, tanto no que diz respeito aos

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acontecimentos vivenciados por ele, quanto naqueles em que ele está a par. A Dramática, no

entanto, que segundo Rosenfeld pode ser considerada como o gênero que reúne a objetividade

e a distância da Épica e a subjetividade e a interioridade da Lírica, surge no romance por meio

da ação, que se deixa presenciar e não apenas ser narrada como fato passado. Entrelaçados no

Grande sertão, o drama, o épico e o lírico carregam tanto uma objetividade, oriunda da

interioridade do personagem, quanto uma subjetividade que se manifesta externada por ele.

No drama de Riobaldo, portanto, não se ouve a narração sobre uma ação, como na Épica, mas

presencia-se “a ação enquanto se vem originando atualmente, como expressão imediata de

sujeitos (como na Lírica)” (Rosenfeld, 2008, p. 29).

Na dramaticidade fáustica do Grande sertão, linguagem e realidade expõem o mito do

diabo como expressão cultural, permitindo assim à lírica escritura de Rosa pôr em discussão a

condição humana, exemplificada na épica trajetória de Riobaldo, ainda que, no mutismo

aparente do interlocutor, somente a voz do jagunço dê forma a esse especular. Algumas

informações de Marcus Vinicius Mazzari, na apresentação à segunda parte do Fausto,

reforçam a explanação de Helmut Galle acima citada e possibilitam uma aproximação com o

jagunço-narrador do romance de Rosa:

Numa das inúmeras e sempre extraordinárias Conversas com Goethe, Johann Peter Eckermann (1792-1854) registra sob a data de 17 de fevereiro de 1831, as seguintes palavras do poeta sobre os dois mundos configurados na tragédia: ‘a primeira parte é quase inteiramente subjetiva. Tudo adveio aí de um indivíduo mais perturbado e apaixonado num estado de semi-obscuridade que até pode fazer bem aos homens. Mas, na segunda parte, quase nada é subjetivo, aqui aparece um mundo mais elevado, mais largo e luminoso, menos apaixonado, e quem não tenha se movimentado um pouco por conta própria e vivenciado alguma coisa, não saberá o que fazer com ele. (Mazzari, 2007, p. 8)

Analogamente, após o pacto nas Veredas Mortas, Riobaldo parece transpor o limiar de

um pequeno mundo para um mundo “mais largo e luminoso”: um sertão-mundo.

Em Fausto (como também no Grande sertão), as referências históricas diluem-se e

dificultam uma identificação mais concreta, deixando, conforme Mazzari, ao processo de

recepção “a tarefa de criar imaginariamente as passagens entre determinadas etapas do enredo

dramático”. O Grande sertão não fornece explicações sobre a casuística diabólica

apresentada, assim como em Fausto não há elucidações quanto às questões colocadas na obra,

e a esse respeito Goethe escreveu: “‘Como a história do mundo e do homem, o último

problema solucionado sempre desvela um novo problema a ser solucionado’” (Mazzari, 2007,

p. 13). Algumas similaridades também unem Goethe e Rosa àquele, que de acordo com

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Benjamin, pode ser considerado como o paradigma do narrador tradicional, ou seja, o escritor

russo Nikolai Semionoviteh Leskov. A poeticidade de Rosa lembra esse grande poeta em

prosa, especialista da vida rural de sua pátria, o qual era portador de uma “imparcialidade

olímpica quase goethiana”, conforme relata Otto Maria Carpeaux, pois sua obra continha

igual simpatia tanto pelos pobres e humildes quanto pelos senhores, cujo poder estava

condenado a desaparecer. Protótipo do “marinheiro viajante”, da análise de Benjamin,

Leskov, que não era nem um senhor rural nem um intelectual, viajou por toda a Rússia,

descobrindo e imortalizando “Classes e camadas do povo russo que não aparecem em Gogol e

Turgeniev, nem em Tolstoi e Dostoiévski” (Carpeaux, 2008, p. 1641). A linguagem de

Leskov, “meio arcaica, meio gíria”, é enriquecida segundo Carpeaux, “com neologismos

deliciosos e uma sintaxe toda pessoal”. Ademais, diz ainda Carpeaux, Leskov “Dá só o enredo

nu, sem explicações psicológicas, assim como fizeram os narradores de histórias de todos os

tempos” (Carpeaux, 2008, p. 1641).

As Veredas Mortas, na verdade Veredas Altas, em que Riobaldo assume com

determinação o compromisso de exterminar Hermógenes, são, portanto, a estrada dos

fortalecedores impulsos demoníacos que encaminham o jagunço para o seu objetivo. “Erra o

homem enquanto a algo aspira” dizem os versos do Prólogo do Fausto, no qual Mefisto expõe

sua pretensão em conquistar o doutor, desejo a que o “Altíssimo” não se opõe, certo de que “o

homem de bem”, sabedor da trilha certa poderá ser resgatado à luz celestial. O contrato

maligno que Riobaldo supõe ser a origem do poder adquirido que o faz transcender a

condição de um “nadinha de nada” para a de “Chefe” é inspiração poética para Rosa, que usa

o mito literário do diabo para expor, em forma dramática, a contemplação do homem, o

jagunço Riobaldo, de sua vida, de suas convicções, do sertão.

Narrativa, prosa e poesia compactuam no Grande sertão: veredas para exprimir a

tarefa que Riobaldo busca cumprir, a qual, realizada, é fonte para as reflexões do ex-jagunço,

transformado no fim da vida em um pacato fazendeiro. O mito do encontro entre o “homem e

o Espírito do Mal”, emoldura a obra de Rosa, traduzindo alegórica e explicativamente

aspectos históricos, sociais e filosóficos. O princípio de negação, pertinente ao homem, que

embasa o Fausto de Goethe, traduz-se, na realidade sertaneja de Riobaldo, em expressão da

extraordinária aventura humana na eterna ânsia pela felicidade. Como Fausto, Riobaldo está

dividido entre o Bem e o Mal no afã do poder, mas desconfia que ele próprio é o senhor de si

mesmo, após a passagem pelas Veredas Mortas. O pacto assim é ascese e compromisso na

história desse homem que procura encontrar-se, forjando então, após o suposto acordo com o

demo, uma nova identidade social. Como o drama goethiano, o romance de Rosa questiona

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até onde vai a capacidade do homem para concretizar suas aspirações. Assim, o Grande

sertão especula sobre a interioridade humana e a busca por um aperfeiçoamento constante,

que o texto de Rosa, pleno de sutilezas, exterioriza em símbolos e imagens, viabilizando

ponderações acerca da condição humana. A intertextualidade que pode ser construída entre as

obras de Rosa e de Goethe, diz respeito ao que especifica Júlia Kristeva, citada por Massaud

Moisés:

‘Todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto’. Daí que ‘o texto literário se insere no conjunto dos textos: é uma escrita-réplica (junção ou negação) de uma outra (dos outros) textos [...]; a linguagem poética aparece como um diálogo de textos’. (Moisés, 2004, p. 243)

Por outros termos, diz Massaud Moisés citando ainda Kristeva, “o texto literário se

apresenta como um sistema de conexões múltiplas”, inferindo-se assim que “o significado

poético remete a significados discursivos outros, de modo que, no enunciado poético, se

podem ler vários outros discursos”. Essas considerações permitem observar as nuances que o

diabo adquire no Grande sertão, já que não se corporifica como no Fausto de Goethe, mas

reproduz simbolicamente o medo arraigado no homem sertanejo, cujas crenças expõem um

temor a Deus e ao Diabo. Assim, Riobaldo estabelece na imagem do demo a representação da

própria natureza humana, pois para ele “o diabo vige dentro do homem, os crespos do

homem” (Rosa, 2006, p. 10). Portanto, no texto de Rosa o diabo também parece ser reflexo

das tensões emocionais do ser humano. Leonardo Arroyo, após analisar o pacto no Grande

sertão, expõe que a grande pergunta de Riobaldo está “subentendida na sua dúvida através de

toda a sua narrativa: o Diabo existe?” (Arroyo, 1984, p. 233). Segundo o exegeta,

Vale dizer que, para Riobaldo, a presença do Diabo se inscreve numa tradição secular de enantiodromia a partir da responsabilidade humana pelo seu próprio destino, isto é, ‘passar para o lado oposto’ na lição de Carl Jung. Tem o homem, na aventura da vida, a opção clara ente o bem e o mal, enquanto categorias humanas de significação puramente vivencial, de comportamento, de justiça social ou de ‘justiça natural’ lembrada pelo então Cardeal Montini, ou seja, ‘aquela que está arraigada profundamente nos corações sempre desejosos de maior perfeição’. De modo que o maniqueísmo religioso dos dois princípios regendo o mundo e simbolizados em Deus e no Diabo subsistem nas atitudes de Riobaldo como pura e simples aspiração humana de que a cultura popular e a comovida história do homem apresentam exemplos admiráveis. Aristóteles subordinou na sua endemonística a noção de virtude à do bem, completada ‘pelo amor razoável de nós próprios, consistindo a felicidade no bem-estar, que dimana do bem-agir, de que resulta a satisfação suprema’. E ainda não percebemos a

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grandeza de tal pensamento! É assim que o Diabo existe, o que Riobaldo compreendeu ao se interrogar: ‘O Demo então era eu mesmo?’. (Arroyo, 1984, p.233)

Essa frase de Riobaldo, segundo Arroyo, não constitui novidade na vinculação mágica

do Diabo, pois o dualismo dramático da alma humana, em que subsistem o bem e o mal,

remontaria aos acádios e ao pensamento de Zoroastro, “donde surgiria afinal o maniqueísmo”.

Explanando sobre a historicidade do pacto com o Diabo, Arroyo expõe que antes de Goethe

Fausto já existia não só na área erudita, mas principalmente na área tradicional, “que

conservou a presença de um demiurgo, Fausto, desde a tradição de magia de Simão e de

Apolônio em tempos recuadíssimos” (Arroyo, 1984, p. 225). A tradição popular, segundo o

ensaísta, simplificou o mecanismo da venda da alma de Fausto ao Diabo, abdicando do

acordo através do papel escrito, bastando “apenas o apalavrado”. Conforme Arroyo, a lenda

escrita do Dr. Fausto, anonimamente publicada em Frankfurt no ano de 1587, teve, em 1599,

uma outra versão, de autoria de Jorge Rodolfo Widmann, sob cuja redação, no século XVIII,

passou para a área popular “com o aproveitamento de sua história em folha volante”. Ainda

para Arroyo,

Seria incorreto admitir-se que João Guimarães Rosa não conhecesse o Fausto, de Goethe, e demais estudos e lendas que cercam a figura do grande inquieto decaído, o Diabo. Com toda a certeza, porém, a estória da venda da alma ao Diabo, foi conhecida pelo autor, primeiramente, no âmbito da cultura popular e doméstica através dessas centenas de estórias do Demônio que povoam a infância dos meninos brasileiros e dos adultos de certo estágio cultural. Os resíduos do lastro cultural erudito deixam-se trair ao depois do pacto de Riobaldo nas Veredas-Mortas. Riobaldo, por exemplo, se surpreende com o silêncio do Diabo depois de um terrível desafio, pois ‘ele não existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado!’ O Diabo, contudo, foi lógico, se lembrarmos a afirmação de Léon Bloy, segundo a qual ‘ele escuta-nos num formidável silêncio...’. (Arroyo, 1984, p. 242)

O acordo com o Diabo deflagra a confiança de Riobaldo em si mesmo, mas, segundo o

jagunço, “O Diabo não há!” e “Existe é homem humano. Travessia”. Assim, ao final da sua

jornada Riobaldo não desfaz sua dúvida e desse modo, expõe Arroyo, o jagunço pode repetir

em relação ao Diabo a mesma queixa emitida por Jó em relação ao Senhor: “‘Fechou-me o

caminho por todos os lados e nem fugir me deixa’” (Arroyo, 1984, p. 245).

“O demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é

que ele toma conta de tudo”, expõe Riobaldo ao ouvinte-doutor, recordando sua trajetória e

procurando nela o sentido da vida, o que o leva a questionar: “Será que nós todos, as nossas

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almas já vendemos?”. E para essa reflexão o ex-jagunço narra a história de Davidão e

Faustino (homens do bando de Antônio Dó) em que um trato diabólico é apalavrado.

Davidão, “grado jagunço, bem remediado de posses”, com medo de morrer propõe dar dez

contos de réis a Faustino, “pobre dos mais pobres”, se este, chegada a hora de Davidão morrer

em combate, tomasse a sua vez. Faustino parecendo não crer no “poder do feitiço do

contrato”, aceitou e fechou o acordo. Mas, de todas as batalhas Davidão e Faustino saíam

ilesos, contrariando assim a tradição narrativa do pacto, já que Faustino não morre, e impondo

ainda uma descrença na figuração diabólica de Davidão. Tempos depois, Riobaldo narra o

acontecido para um rapaz da cidade, muito inteligente, o qual lhe sugere um final “sustante,

caprichado”, pois esse era um “assunto de valor, para se compor uma estória em livro” (Rosa,

2006, p. 85). No final proposto pelo moço citadino, Faustino quer revogar o trato, mas

Davidão não aceita, entrando assim os dois em luta corporal, que resulta na morte de

Faustino. Essa “continuação inventada” é muito apreciada por Riobaldo, pois, diz o jagunço,

“no real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam” (Rosa, 2006, p. 85). No

real – inventado – de Rosa, Davidão e Faustino deixam a jagunçagem e tornam-se vizinhos

donos de terras, como Riobaldo e parte dos seus jagunços. A metalinguagem da história de

Davidão e Faustino implica uma ficção da ficção expressa no romance de Rosa, palimpsesto

de múltiplos significados que evoca a tradição literária do homem pactário.

“Quem se me opôs com força tão tenaz, / Venceu o tempo, o ancião na areia jaz, / Pára

o relógio” (Goethe, 2007, p. 985). Essas palavras, proferidas por Mefistófeles no momento da

morte de Fausto (Quinto ato, cena “Grande átrio do palácio”) são precedidas pela última

aspiração do personagem centenário, em face da qual, conforme comenta Marcus Vinicius

Mazzari, Fausto “poderia pronunciar por fim as palavras fatídicas, acordadas com

Mefistófeles: ‘Oh, pára! És tão formoso’” (Goethe, 2007, p. 969). Diz Mazarri que, segundo

Erich Trunz, o termo ‘liberdade’ sobre o qual o colonizador insiste em seus últimos versos

deve ser compreendido no contexto específico do Quinto ato da tragédia. A palavra ‘livre’

(“Quisera eu ver tal povoamento novo / E em solo livre ver-me em meio a um livre povo”), de

acordo com Trunz, significaria livre de Penúria, Insolvência, Apreensão, Privação, “mas

também livre de magia. É a imagem do ser humano, como ele deve ser”. O último momento

de Fausto é ainda aspiração, “movimento em direção de algo”, esclarece Mazzari: O drama

fáustico, que de certo modo repete-se no Grande sertão, expõe-se alegoricamente no romance

de Rosa, dentre tantas acepções, como o drama humano em discernir a liberdade da vontade,

o livre-arbítrio, ou seja, a faculdade da escolha da vereda a seguir. Em Fausto, a Apreensão

domina o pactário e impossibilita-lhe o desejo de libertar-se da magia, como sugerem os

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versos em que o espectro refere-se a Fausto: “Deve ele ir-se? Deve vir? / Não lhe cabe

decidir; / Sobre aberta e chã vereia / meios passos cambaleia” (Goethe, 2007, p. 959).

A magia ou “sobrelégio” que proporciona a Riobaldo o poder sobre o sertão origina-se

do próprio homem, conclui o jagunço em seu especular, ao final do romance, que

analogamente à obra de Goethe induz a um questionamento sobre a condição humana.

“Travessia” é a palavra final do Grande sertão, seguida pela lemniscata, signo do infinito e do

equilíbrio das polaridades existenciais, como Vida e Morte, Bem e Mal, Deus e o Diabo. Na

obra de Goethe, “Finis” designa o desfecho da tragédia, cujos versos anteriores a essa palavra

declaram que “O Eterno-Feminino / Puxa-nos para cima”, aludindo assim a uma

transcendência da finitude humana. Transcendência que a arte de Rosa torna possível, com

suas verdades, muito extraordinárias.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foram muitas as perspectivas que ilustraram essa dissertação no que diz respeito ao

acordo luciferino presente em Grande sertão: veredas, mas em todas evidencia-se a poesia

que surge no âmbito do romance de Guimarães Rosa, descortinando, no sertão épico e lírico

articulado pelo tempo da memória, a angústia da condição humana. Congregando arcaísmos e

modernidade estética, num especial acervo léxico, Rosa possibilita a permuta de oralidade e

escritura como parecem exemplificar o “narrador” Riobaldo e o “escritor” ouvinte-doutor.

Os aspectos míticos, existenciais ou metafísicos ressaltados no texto rosiano

viabilizam uma interpretação social na correspondência com o contexto expressivo da vida

sertaneja, cuja severa realidade é amenizada, poeticamente, pelos rios e buritizais. Assim, o

sertão e as veredas estabelecem vínculos entre literatura e sociedade num discurso que,

mediando subjetividade e objetividade, exprime a realidade brasileira.

Em relação à representação do trato fáustico, sob cuja inspiração procurei examinar no

Grande sertão os conflitos existenciais que afligem a alma humana, a linguagem de Rosa

dispõe estratégias que deixam em suspense a efetividade desse acordo e mantém a dúvida de

Riobaldo acerca das forças supostamente adquiridas nas Veredas Mortas. É sobre essas forças

que o velho jagunço, ao contar sua história, procura refletir, compelido talvez pela premência

da morte. O pacto na obra de Rosa não conduz apenas ao mito de Fausto, mas a toda uma

simbologia literária em que o herói envolve-se em diversas aventuras no intuito de alcançar os

objetivos pretendidos. Não há, assim, um sentido único nessa história contada, nem resolução

para os problemas apresentados, mas há um incomensurável legado poético acerca dos

anseios na humana travessia.

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