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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ROBSON TEOTÔNIO DA SILVA A ‘PRISÃO SEM MUROS’ DA QUEER THEORY NOS CONTOS ‘DAMA DA NOITE’ e ‘O RAPAZ MAIS TRISTE DO MUNDO’ DE CAIO FERNANDO ABREU Natal Outubro, 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ROBSON TEOTÔNIO DA SILVA

A ‘PRISÃO SEM MUROS’ DA QUEER THEORY

NOS CONTOS ‘DAMA DA NOITE’ e ‘O RAPAZ MAIS TRISTE DO MUNDO’ DE

CAIO FERNANDO ABREU

Natal

Outubro, 2013

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ROBSON TEOTÔNIO DA SILVA

A ‘PRISÃO SEM MUROS’ DA QUEER THEORY

NOS CONTOS ‘DAMA DA NOITE’ e ‘O RAPAZ MAIS TRISTE DO MUNDO’ DE

CAIO FERNANDO ABREU

Dissertação apresentada à Universidade

Federal do Rio Norte, como requisito para a

obtenção do título de Mestre do Programa de

Pós-Graduação em estudos da Linguagem

(Literatura Comparada – Área de

Concentração: Poéticas da Modernidade e da

Pós-Modernidade).

Orientadora: Profa. Dra. Tânia Maria de

Araújo Lima.

Natal

Outubro, 2013

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A „PRISÃO SEM MUROS‟ DA QUEER THEORY

NOS CONTOS „DAMA DA NOITE‟ e „O RAPAZ MAIS TRISTE DO MUNDO‟ DE CAIO

FERNANDO ABREU

Mestrando: Robson Teotônio da Silva

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________

Profa. Dra. Tânia Maria de Araújo Lima

UFRN

_________________________________________

Prof. Dr. Lucrecio Araújo de Sá Júnior

UFRN

___________________________________________

Profa. Dra. Marta Aparecida Garcia Gonçalves

UFRN

__________________________________________

Profa. Dra. Renata Pimentel Teixeira

UFRPE

Defesa da Dissertação em 31/10/ 2013

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Tolerar a existência do outro, e permitir que

ele seja diferente, ainda é muito pouco.

Quando se tolera, apenas se concede. E essa

não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de um sobre o outro.

Deveríamos criar uma relação entre as

pessoas, da qual estivessem excluídas a

tolerância e a intolerância.

José Saramago

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Dedico este trabalho a todos os que, de alguma

forma, lutam pela inviolabilidade do direito à

igualdade, que todos têm, e que reconhecem,

na diversidade, a grandeza de cada indivíduo,

respeitando suas diferenças e aceitando-as,

com propósitos de construir um mundo

baseado na equidade de direitos para todos.

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AGRADECIMENTOS

No longo trajeto de nossas vidas deparamos com muitas situações, às vezes boas, outras

vezes más. No entanto, todas elas nos proporcionam valiosas experiências que levamos

conosco por toda a nossa existência. É por meio dessas pessoas que aprendemos a

valorizar cada momento ou instante vividos, em lugares diversos e com pessoas especiais.

Entre essas pessoas especiais estão aquelas que convivem conosco desde o início de nossas

vidas, tornando-se fundamentais pela força, atenção e, principalmente, pelo amor dedicado;

outras, porém, encontramos a partir de um determinado momento, oferecendo

companheirismo e amizade e outras mais, por vários outros motivos, como o auxílio,

ensinamentos. Algumas se perdem no caminho, por motivo de viagens, ou por se sentirem

melhor distantes de nós, outros se aproximam, ou se reaproximam e, assim, vão-se criando

novos laços, movimentando, constante e naturalmente, o impressionante ciclo da vida.

Por tudo isso, mesmo os mais distantes, não deixo de considerar importantes, por

possibilitarem esse movimento contínuo, por permitirem e propiciarem sentido à vida, bem

como todos os que ainda se encontram próximos a mim. A todos, dedico as próximas

páginas deste trabalho e o esforço que desprendi para sua elaboração.

Principalmente, às minhas mães do coração e de toda a vida, Maria Boa Ventura de

Oliveira, a quem tanto amo, e à inesquecível Luiza Boa Ventura de Oliveira (in

memoriam).

A toda a minha família, pelo suporte e atenção em muitos momentos.

Ao professor Antônio Eduardo de Oliveira, pela honra de tê-lo como orientador no início

desta jornada com as importantes contribuições, a confiança e a colaboração.

À professora Tânia Maria de Araújo Lima, por aceitar dar continuidade ao trabalho

iniciado pelo professor Antônio Eduardo, contribuindo, de forma esplendorosa, para a

conclusão desta dissertação.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, por tudo o que

me acrescentaram.

Ao professor Lucrécio Araújo de Sá Júnior, pela ajuda prestimosa e disponibilidade para

participar da minha banca examinadora.

Às professoras, Dra. Marta Aparecida Garcia Gonçalves e Dra. Renata Pimentel Teixeira,

que aceitaram compor minha banca examinadora.

A todos os que, de uma forma ou de outra, sempre estiveram ao meu lado.

E, principalmente, a Deus, por permitir que esse sonho se tornasse possível.

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SILVA, Robson Teotônio da. „A prisão sem muros‟ da Queer Theory nos contos „Dama da

noite‟ e „O rapaz mais triste do mundo‟. Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada –

Poética da Modernidade e da Pós-Modernidade ao Programa de Pós-Graduação em Estudos

da linguagem - Departamento de Letras da UFRN. Rio Grande do Norte, 2013. 85 fls. Digitas.

RESUMO

Nesta dissertação, analisa-se sob uma perspectiva comparatista a relação entre os contos: „A

Dama da noite‟ e „O rapaz mais triste do mundo‟, de Caio Fernando Abreu, com o intuito de

revelar, analisar, estabelecer diálogos sígnicos com a Queer Theory. Buscou-se, acima de

tudo, fazer uma desleitura pautada na contextualidade discursiva da literatura pós-moderna.

Objetivou-se, assim, justificar e esclarecer as inúmeras questões que surgem nas relações

emblemáticas de personagens que estão presentes no texto e no contexto cultural, histórico e

social. Destaca-se, ainda, que os enunciados de valor comparativo identificados nas obras,

dadas às singularidades de cada uma delas, não possibilitam classificá-las, apenas, como

„figuras de retórica‟ das quais a comparação pode ser citada como exemplo. Nesse caso, elas

servem para nortear os caminhos que possam levar a compreender melhor o paralelismo

criado entre o mundo de valores e adjetivos binários sugeridos pela sociedade e tão bem

retratados nas ideias e textos de Caio Fernando Abreu.

Palavras-chave: Caio Fernando Abreu. Teoria Queer. Alteridade. Identidade de Gênero.

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SILVA, Robson Teotônio da. „A prisão sem muros‟ da Queer Theory nos contos „Dama da

noite‟ e „O rapaz mais triste do mundo‟. Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada –

Poética da Modernidade e da Pós-Modernidade ao Programa de Pós-Graduação em Estudos

da linguagem - Departamento de Letras da UFRN. Rio Grande do Norte, 2013. 85 fls.

Digitadas.

ABSTRACT

In this dissertation, we analyze, in a comparative perspective, the link between the short

stories: „Dama da Noite‟ and „O Rapaz mais triste do mundo‟, of Caio Fernando Abreu. In

order to reveal, analyze and establish relevant dialogues with Queer Theory, it‟s important,

above all, make a misreading guided in the discursive contextuality of postmodern literature.

In order to justify and clarify the many issues that arises in the emblematic relationships of

characters that are present in the text and in the cultural context, historically and socially. It

also highlights the utterance comparative value identified in the works, given the peculiarities

of each one of them, not being possible to classify them as 'figures of language' with which

the comparison can be cited as an example. In this case, they serve to inspire the ways that

may lead us to a better understanding of the parallels created between a world of the binary

value and adjectives suggested by society and so well portrayed in the ideas and writings of

Caio Fernando Abreu.

Keywords: Caio Fernando Abreu. Queer Theory. Otherness. Gender Studies

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................

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1 A TEORIA QUEER EM CAIO FERNANDO ABREU............................................... 20

1.1 Pressupostos históricos e literários do final do Século XX........................................ 20

1.2 A reciprocidade do encontro dialógico inter-humano................................................. 24

1.3 Principais influências da crítica Pós-moderna/Pós-Estruturalista............................... 26

1.4 A teoria Queer............................................................................................................ 29

2 CAIO A OBRA COMO EXPERIÊNCIA COLETIVA REVELADA NA ESCRITA 36

2.1 Dama da Noite ............................................................................................................ 43

2.2 O rapaz mais triste do mundo......................................................................................

46

3 ABORDAGENS TEMÁTICAS DAS OBRAS............................................................. 51

3.1 Alteridade .................................................................................................................... 53

3.2 Estigmatização por não integração ao Status Quo....................................................... 58

3.3 Identidades de Gênero................................................................................................ 63

3.3.1 Sexualidade e reprodução........................................................................................ 66

3.3.2 Gênero x Sexualidade .............................................................................................

3.3.3 Os papeis de gênero nos contos: „Dama da noite‟ e „O rapaz mais triste

do mundo‟..............................................................................................................

69

69

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................

76

REFERÊNCIAS..................................................................................................... 86

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INTRODUÇÃO

O Pós-estruturalismo, muitas vezes, é confundido com o Pós-modernismo, o que se

configura como um grande equívoco, uma vez que, não se pode, simplesmente, reduzi-lo a

um conjunto de pressupostos compartilhados, a um método, a uma teoria, ou até mesmo, a

uma escola ou época histórica.

No entanto, mesmo não se tratando de um período histórico específico, não se pode

deixar de afirmar que, de algum modo, o Pós-estruturalismo apresenta uma continuação no

tempo e, também, uma transformação e transição do paradigma do estruturalismo,

configurando-se, muito mais, como resposta filosófica ao que se diz científico.

Por esse motivo, talvez, possa parecer melhor referir-se ao Pós-estruturalismo como

um movimento de pensamento, um sistema teórico composto por diferentes formas de prática

crítica, marcado pela modificação constante e profunda de paradigmas, cuja análise textual

deixa de ser formal e estilística, para se tornar mais ampla e condicionada ao texto e ao

contexto cultural.

Nele, os processos de significação contínuos e centrais, sugeridos pela proposta

anterior do estruturalismo, dão lugar à flexibilidade e à incerteza. Com isso, não se poderia

mais admitir falar de sistematização, pois, o Pós-estruturalismo rejeita qualquer tipo de

exemplo nesse sentido. Daí então, ele passa a considerar o processo de significação,

basicamente, como indeterminado e instável, passando a questionar os axiomas e

abandonando a ênfase que antes os considerava imutáveis e verdadeiros.

Tudo isso acontece em virtude dos novos contornos delineados pelos movimentos

sociais, culturais e de caráter fortemente literário, bastante marcados pelo hibridismo estético

dos gêneros literários, que passaram a privilegiar as pesquisas informais, pautadas, quase

sempre, em conflitos existenciais, políticos e comportamentais.

Como resultados dessa nova tendência, surgiram novas técnicas de comunicação e de

transmissão poética e literária, cuja força retórica passou a residir, sobretudo, na necessidade

de individualização das condições de vida, do culto ao eu e às felicidades privadas e

subjetivas, acarretadas pela individualização da sociedade.

Nesse período, que também foi denominado de pós-moderno, pós-canônico, pós-

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colonial, pós-marginal ou „pós-orgia‟, como preferiu chamar Baudrillard, “reporta-se a um

momento, no qual se exaltavam todos os modelos de representação e de anti-representação”

(BAUDRILLARD, 1992, p.9).

O pós-estruturalismo tornou, então, o sujeito livre, autônomo e autocentrado,

focalizado num mundo social constituído pela linguagem, que deixava de ser mera

representação para tornar-se parte integrante e central da definição e constituição da sua

realidade cultural.

E não é outro o sentido que Foucault atribuiu ao conceito de homem moderno de

Baudelaire. Ele discorre em sua obra „As palavras e as coisas‟ que as ciências humanas são,

em parte, projeções das ideias observadas no final do século XIX, quando passam a ser

tratadas do ponto de vista da descontinuidade, porque pressupõem a ideia de representação.

A representação, porém, não é, simplesmente, um objeto para as

consciências humanas, mas, como se acaba de ver, o próprio campo das

ciências humanas, e em toda a sua extensão; ela é o soco geral dessa forma

de saber, aquilo que a torna possível (FOUCAULT, 1987, p. 472).

Segundo o pensador referido, o ser humano (sujeito) não parece mais estar preso à

história:

Uma vez que ele fala, trabalha e vive, acha-se, no seu próprio ser,

inteiramente misturado às histórias que não lhe são nem subordinadas nem

homogêneas. Pela fragmentação do espaço por onde se estendia continuam

ente o saber clássico, pelo enrolamento de cada domínio, assim libertado,

sobre o seu próprio devir, o homem que surge no início do século XIX é um

ser „desistoricizado‟ (FOUCAULT, 1987, p. 478-479).

Talvez por esse motivo, a partir desse período, os textos de tessitura literária tragam

em suas configurações traços de monólogos narrativos com características urbanas, resultado

dos controles sociais normativos que arrefeçam a sociedade ao culto do consumismo,

individualismo e hedonismo, práticas cada vez mais ligadas à noção da existência humana e

baseadas na felicidade fugaz da subjetividade, em que o homem deixa de ser um simples

reflexo da imagem criada sobre ele e passa a refletir a imagem que será criada a partir dele

mesmo.

No Brasil, o abandono ao paradigma estruturalista dos estudos literários se deu de

forma tardia, somente em meados dos anos da década de 1980, com as discussões literárias

feministas, partindo de uma teoria de gênero resultante de abordagens interdisciplinares da

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Linguística, da Filosofia, da Sociologia, da Psicologia e da Psicanálise, todas baseadas na

produção de mulheres escritoras.

Posterior a isso, os críticos passaram a tentar buscar identificar, sem sucesso, uma

escrita caracteristicamente feminina, que marcasse a diferença da escrita dominantemente

masculina. Diante da impossibilidade da concretização de tal objetivo, os estudos literários de

gênero passaram, desde então e simplesmente, a observar as mulheres, não apenas como

escritoras, mas como leitoras e, também, personagens de autores, tanto masculinos como

femininos.

Consequentemente, os pesquisadores viram-se obrigados a ampliar a produção dos

discursos literários, levando-os a uma constante e gradativa transdisciplinaridade em suas

reflexões, abordando novas questões, tais como: origem de classe, etnia, nacionalidade e

orientação sexual.

Assim, o propósito maior das questões literárias passou a ser a „desconstrução‟ da

tradição literária, principalmente, aquela relacionada ao modelo masculino, heteronormativo,

cristão, burguês e de cultura predominantemente branca.

Diante de tudo isso, a contribuição de Jacques Derrida mostrou-se de extrema

importância para a construção das bases dos pilares do pensamento pós-estruturalista, pois as

propostas sugeridas pelo desconstrucionismo foram bem recebidas durante os anos da década

de 1970, tornando-se um novo modelo de análise e interpretação dos discursos literários.

Essa nova perspectiva proposta por Derrida combinou-se, em 1977, com os ideais da

chamada „esquerda‟ norteamericana, na qual o modelo ideológico da desconstrução gerou

novas ondas de movimentos e de bases teóricas, que funcionaram como fortes golpes na

sociedade daquela época.

Nesse mesmo período, surgiu nos Estados Unidos, na década de 1990, a Queer

Theory, também enfatizada nos estudos feministas da pesquisadora Judith Butler, sobre a

crítica estadunidense e diretamente relacionada aos Estudos Culturais e ao Pós-estruturalismo

francês, tendo como principais referências teóricas as ideias dos franceses Foucault e, mais

uma vez, Derrida.

Contudo, no final dos anos sessenta, a expressão Queer passou a se constituir como

forma de autoidentificação, uma maneira de expressar categorias de gêneros caracterizadas

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pela perspectiva de oposição e contestação, com intuito de questionar, problematizar e

procurar discutir o universo cultural de um grupo excluído de uma sociedade centralizadora e

heteronormativa.

Dentre suas concepções, destacou-se, principalmente, a inexistência de identidades de

gêneros fixos, capazes de determinar o que cada pessoa é, em relação a sua „conduta‟ sexual,

surgindo, assim, o termo pós-teoria estruturalista denominado Queer Theory.

Desde então, a teoria Queer passou a contar com a adesão e produção de inúmeros

intelectuais engajados a este crescente movimento que, em meados da década de 1990,

passaram a usar o termo para descrever trabalhos fundamentados em novas propostas e

perspectivas teóricas, atenuando, de forma significativa, o impacto ao status quo que o

antecedia e sem romper com a política de identidade da teoria, assumindo, ainda, um caráter

unificador e assimilador, que buscava a aceitação e a integração das mais variadas posições

„excludentes‟ do sujeito na sociedade.

Com isso, a Queer Theory propõe, entre outras coisas, explicitar e analisar os

processos de constituição social e cultural, a partir de uma perspectiva comprometida com os

grupos socialmente estigmatizados, buscando, dessa forma, compreender a formação das

identidades socioculturais, aceitando a ambiguidade, a multiplicidade e as diferenças, como

formas de pensar a cultura, o conhecimento, o poder e, pricipalmente, as relações sociais.

Ademais, teórica e metodologicamente, os estudos referentes a Queer Theory

ganharam notoriedade e importância em vários estudos e pesquisas, entre eles a Literatura

que, cada vez mais, procurava relacionar-se ao meio social no qual estava inserida, por propor

um novo modelo para as novas propostas pós-estruturalistas, entre elas a da heterogeneidade

cultural, que busca entender as diferentes realidades sociais por meio das novas formas de

criações literárias, aceitando as diferenças de todas as ordens e exigindo de todos um pouco

mais de alteridade e respeito ao diferente.

Entende-se, portanto, que grande parte desse cenário deve-se à filosofia pós-

estruturalista que intensificou a coexistência de valores, caracterizando-se, principalmente,

pela ruptura com o tradicional, que passou a considerar o pensamento dicotômico, bastante

problemático, como tema a ser problematizado pelas várias áreas dos saberes.

Consequentemente, em virtude dos novos contornos delineados por diversos

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movimentos sociais de caráter fortemente libertário, outras expressões ideológicas se

destacaram neste período, podendo-se citar, entre elas, a „Contracultura‟.

Diante disso, tornou-se cada vez mais justificada a necessidade de compreender como

as relações de conflitos sociais, baseados nos princípios da Queer Theory, estavam, cada vez

mais, presentes em obras literárias definidas como nova tendência literária pós-estruturalista.

Assim, com as crescentes discussões e produções em torno de novas propostas

ideológicas e diante da diversidade e multiplicidade temática promulgada pelos estudos

Queer¸ mostra-se claro e de fundamental importância o objetivo de encarar a diferença, não

apenas como uma „categoria‟ a ser analisada, mas também, como um problema a ser

enfrentado na concretude das relações institucionais, sociais e culturais, pois, entendida a

diferença, ora como alteridade ora como divisão, surge como aspecto importante a ser

refletido, especialmente pelo sujeito que a enfrenta, a possibilidade de que é preciso estar

sensibilizado ou atingido por ela, para poder compreendê-la.

Com isso, é possível encontrar, na reflexão filosófica, a ideia de que, “na procura de

uma ordem para o mundo, o predicado (o que é dito sobre uma coisa) foi confundido com o

atributo (o que uma coisa tem uma parte do que a coisa é)” (EIZIRIK & COMERLATO,

1995, p. 97). Isso significa que, para definir-se algo, precisa-se saber o que ele representa para

poder, enfim, relacioná-lo a outras coisas, na tentativa de explicitar suas distinções. Essa

reflexão também vale para as pessoas e é, portanto, a base do recorte da diferença, que

organiza, limita lugares, compõe ordens lógicas e dá significados.

Diante disso, justifica-se a necessidade e o propósito de compreender como as relações

de conflitos culturais atreladas aos princípios da Queer Theory têm estado, cada vez mais,

presentes nas obras literárias, definidas como nova tendência literária pós-estruturalista,

mesmo sendo, muitas vezes, duramente criticadas por apresentarem temáticas relacionadas a

subjetividades de gêneros, aspectos relacionados a questões de alteridade, entre outros mais,

que fragmentam as estruturas da verdade das condutas morais e éticas.

No Brasil, provavelmente por influência da Literatura pós-64, que procurava repelir as

tensões políticas e de domínio sociocultural impostas pela ditadura militar e se caracterizava,

principalmente, pela forte crítica a toda e qualquer forma de autoritarismo, Caio Fernando

Abreu juntamente com Clarice Lispector, Hilda Hilst, Glauco Mattoso, Torquato Neto, João

Antônio, entre outros, integraram o conjunto de escritores brasileiros preocupados com a

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questão de uma suposta estética „alternativa‟, ou seja, anticonvencional, antiditadura militar, e

por que não dizer „marginal‟.

A memória da ditadura militar brasileira se impõe como um problema

fundamental para a crítica literária. Em um país em que as heranças

conservadoras são monumentais, e as dificuldades para esclarecer o passado

são consolidadas e reforçadas, o papel de escritores, cineastas, músicos,

artistas plásticos, atores e dançarinos pode corresponder a uma necessidade

histórica. Enquanto instituições e arquivos ainda encerram mistérios

fundamentais sobre o passado recente, o pensamento criativo pode procurar

modos de mediar o contato da sociedade consigo mesma, trazendo

consciência responsável a respeito do que ocorreu (GINZBURG, 2007,

p. 43-44).

Como indica Jaime Ginzburg, na citação supracitada, os traumas vivenciados pela

sociedade, em todas as esferas culturais, concentraram-se, em grande parte, no período

militar, entre 1964 e 1985. Talvez por esse motivo, possa-se, facilmente, explicar as

motivações que levaram esses autores a escrever, denunciar e publicar obras capazes de

expressar suas angústias, anseios e experiências em muitos relatos literários, buscando, assim,

legitimar a condição de seres livres e singulares, muitas vezes marginalizados pelo

autoritarismo político, social e cultural do período.

Evidentemente, toda essa postura antiditadura militar por eles adotada, foi também,

fortemente influenciada pelas ideias progressistas propostas pelo movimento denominado

„Contracultura‟1, já citado anteriormente que se baseava, sobretudo, em defesa da liberdade de

expressão, pois, o ambiente cultural dos anos sessenta, tanto nos países europeus como

americanos e também no Brasil estavam marcados por um sentimento de crise de valores.

Assim, preocupada com este mundo em constantes transformações, a Literatura vem

tentando suscitar um interesse cada vez mais crescente, na comunicação cultural e

transcultural de valores, reafirmando inúmeras e constantes contribuições às diferentes

manifestações que ocorreram no universo cultural e literário da História do Brasil.

Dentre as inúmeras contribuições observadas nesse contínuo processo de mutação

cultural, ressalta-se, em particular, a participação de Caio Fernando Abreu, com obras que se

desenvolveram além do convencionalismo de qualquer ordem, destacadas por apresentarem

1 Contracultura recebe a seguinte definição de Larry Wizniewsky: “Produção artística (música, cinema, teatro,

etc) proveniente de estruturas marginalizadas da cultura que sobreviviam, desde o final dos anos 40. A

Contracultura influenciou decisivamente a produção artística no Brasil a partir dos anos 80, principalmente o

Cinema Novo, o Tropicalismo e chamada literatura marginal. (WIZNIEWSKY, Larry)

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uma escrita densa, forte e impactante, mas também com o objetivo de se impor diante do

modo de produção de contos e romances convencionais. Caio poderia ser compreendido, em

decorrência de tudo isso, como um representante de inventores dessa nova forma narrativa no

Brasil.

Nas obras do escritor, a questão principal estava sempre centrada no homem (sujeito),

muito mais do que no período ou geração que ele poderia representar. A suposta estética

„alternativa‟, ou mesmo „marginal‟, estava atrelada à questão do „abordamento‟ das fronteiras

de gêneros, tão comum à produção ficcional do autor, chegando a provocar uma discussão

abrangente sobre a nova forma de gênero a ser apresentada.

Nesse sentido, Caio passa a ser visto como uma espécie de pioneiro dessa nova forma

de narrar e fazer literatura. Ele começa, então, a idealizar personagens que, posteriormente, a

crítica diria fazerem parte da chamada escrita „pesada‟, em razão de abordar situações em que

os personagens estavam envolvidos com drogas, prisões, relações homoafetivas, ou mesmo,

em razão de apresentarem comportamentos não-convencionais.

A paranóia descrita nos cenários urbanos das obras do autor, juntamente com a forma

como se davam as relações humanas, retratadas entre seus personagens pareciam ser o que ele

considerava como mais lúcido, a oferecer aos leitores que pensavam numa literatura

questionadora de um mundo injusto e cada vez mais comum.

Utilizando a prosa como principal procedimento narrativo para suas criações literárias,

Caio passou a evidenciar temáticas próprias, que retratavam as experiências vivenciadas por

uma sociedade oprimida e marcada pela repressão, violência e censura, cujos personagens

caracterizavam-se, quase sempre, pelo desencanto e insatisfação com a realidade contextual

da época, que os tornava clandestinos em uma estrutura sociocultural baseada na dominação,

e essa criação é apresentada, muitas vezes, sob a ótica voltada à interioridade.

O que talvez resulte desses contos e produções, além da considerável inovação da

utilização de personagens marginalizados, principalmente, os inseridos na realidade das

relações homoafetivas, é a proposta de provocar uma discussão cultural sobre um mundo

paralelo, muitas vezes escondido e ignorado pela sociedade, por representar o „segredo‟ de

algo que jamais poderia ser revelado em público, apesar de sempre existir.

Claramente, a postura de Caio objetivava, entre outras coisas, provocar o debate em

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torno do preconceito, em torno de qualquer rejeição à representação do „diferente‟. Essa era

uma marca dele, não apenas diante da vida, mas também nas obras de sua autoria. Sobre a

literatura brasileira, considerada por muitos, até então, comportada e imutável, o autor em

estudo não poupou críticas, nem muito menos se mostrou neutro diante da real situação em

que ela se encontrava e afirmou ao Jornal „Movimento‟:

Uma literatura rica é uma literatura multidirecionada. Afinal, o que é tal

„realidade brasileira‟? É mais a Selva Amazonas, os sertões de Minas, os

pantanais matogrossenses, a fronteira com a Argentina, as metrópoles

alphavilleanas, as favelas cariocas? Há lugar para o trabalho de João

Antônio, cobrindo uma faixa dessa realidade – mas há lugar, também, para a

pesquisa formal de Nélida Piñon; como há lugar para a poesia simples de

Adélia Prado e os requintes do concretismo. A necessidade é de uma maior

abertura, não só por parte da crítica e da imprensa, como também dos

próprios escritores, em relação aos outros [...] Como dizia minha avó, não se

deve pedir pêssegos às pitangueiras (ABREU, 1976, p. 27).

Pode-se perceber claramente, nas afirmações proferidas por Caio, a indignação do

autor quanto às críticas advindas daqueles que não conheciam suas obras, ou mesmo não se

identificavam com as temáticas nelas contidas. Para ele, a maneira encontrada para a

construção de uma nova sociedade estava diretamente vinculada à superação de valores

arcaicos, tradicionais e conservadores, que aprisionavam a maturidade cultural brasileira.

Esses valores, quase sempre estavam vinculados à cultura da língua européia, trazidos

por colonizadores que tornaram a produção cultural e literária da América Latina um

simulacro, com objetivo de assemelhar o seu modelo único e ideal, que era a tradição literária

eurocêntrica.

O que o escritor e crítico da literatura brasileira, Silviano Santiago (2004), caracterizou

como forma de criação literária atrelada a valores „entre-lugar‟2, uma forma de arte

colonizada, que é sempre remetida a um modelo superior e que não tem originalidade -

presente em suas raízes genuínas - reconhecida com o devido valor, porque mantém o

permanente compromisso de se aproximar do modelo eurocêntrico.

Evitar o bilinguismo significa evitar o pluralismo religioso e significa

também impor o poder colonialista. Na álgebra do conquistador, a unidade é

a única medida que conta. Um só Deus, um só Rei, uma só Língua: o

verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a verdadeira Língua. [...] Esse

renascimento colonialista - produto reprimido de uma outra Renascença, a

2 O entre-lugar é uma estratégia de resistência que incorpora o global e o local, que busca solidariedades

transnacionais através do comparativismo para apreender nosso hibridismo (SANTIAGO, 1982, 19), fruto de

quebras de fronteiras culturais.

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que se realizava concomitantemente na Europa - à medida que avança

apropria o espaço sócio-cultural no Novo Mundo e o inscreve, pela

conversão, no contexto da civilização ocidental, atribuindo-lhe ainda o

estatuto familiar e social do primogênito. A América transforma-se em

cópia, simulacro que se quer mais e mais semelhante ao original, quando sua

originalidade não se encontraria na cópia do modelo original, mas em sua

origem, apagada completamente pelos conquistadores (SANTIAGO, 2004,

p. 14)

Logo, não se pode negar, contudo, que o próprio Caio dava pêssegos às pitangueiras,

ao tentar um „entre-lugar‟ na literatura e na sociedade brasileira, comprometido com a

realidade sociocultural. Apesar de tudo, entender, aceitar e, muitas vezes, concordar com tudo

o que foi escrito por ele em suas obras pode parecer um desafio.

No entanto, uma vez aceita essa condição, pode-se desfazer qualquer pretensão

conclusiva sobre suas reais pretensões textuais, pois talvez se tenha como objetivo principal

diante das temáticas inovadoras presentes nos contos objetos deste estudo, aceitar sem

preconceitos as ambivalências culturais do universo no qual o autor se encontrava inserido.

Assim, este trabalho, no âmbito dos estudos comparados, propõe analisar as temáticas

da alteridade, status quo e identidade de gênero, existentes no corpus literário dos contos

„Dama da noite‟ e „O rapaz mais triste do mundo‟, ambos presentes na obra „Os dragões não

conhecem o paraíso‟ de autoria de Caio (2010), buscando, assim, atrelar tais temas à proposta

literária da Queer Theory, na tentativa de ressaltar a importância da Literatura, como forma de

ilustração e complexificação da discussão dos pressupostos analíticos das manifestações

sociais, culturais e políticas.

Com o propósito de entender os resultados ou as consequências da conjunção entre

literatura e sociedade como „estruturas‟ complementares, este trabalho buscou propor, a partir

da análise das obras supracitadas, uma explicação argumentativa que possa justificar a

proposição paralela, dialética e temática analisada pela forte concepção e ênfase à Queer

Theory, tendo em vista a possibilidade que permite aos estudos comparados investigar um

mesmo problema em contextos literários distintos, através da análise comparativa e

contrastiva.

Nesse âmbito, em conformidade com tais colocações, o objetivo primordial desta

dissertação é comparar e confrontar e, assim, poder perceber proximidades e distanciamentos

entre as singularidades dos contos do autor, buscando destacar a necessidade de, não apenas,

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reconhecer a existência de eventuais semelhanças e/ou diferenças, mas também, de percebê-

las dentro de um mesmo continnum, ou seja, a partir de elementos fundamentais que ligam as

propostas aos mesmos vieses criticoliterários.

Para facilitar essa tarefa, no que diz respeito à metodologia, este trabalho busca

pontuar os aportes teóricos comparatistas, com o objetivo de transmitir com mais clareza,

questões relevantes dentro da temática da alteridade, status quo e identidade de gênero,

levando-se em conta as particularidades de cada texto como corpus desta dissertação.

Para tanto, este trabalho foi dividido em três capítulos. No primeiro, foram traçados os

pressupostos históricos e literários, na tentativa de contextualizar a literatura a partir do final

do século XX até as últimas décadas, fazendo uma apresentação das principais correntes

teóricas, marcadas pelo hibridismo estético dos novos gêneros literários, em oposição à

questão do cânone. Ainda nele, procurou-se elucidar a importância da Queer Theory no

processo dos estudos literários contemporâneos, privilegiando conceitos como transculturação

e multiculturalismo, enfatizados, principalmente, pela maneira de expressar categorias de

gêneros, caracterizadas pela perspectiva de oposição e contestação dos valores

heteronormativos.

Nesse sentido, cabe citar autores como: Judith Butler, Ella Shohat, Susan Sontag,

Stuart Hall, Fredric Jameson, Terry Eagleton entre outros, todos, críticos literários e ativistas

preocupados em enfocar a problemática questão pós-estruturalista de heterogeneidade cultural

nas relações sociais contemporâneas.

No segundo capítulo, foram apresentadas considerações importantes sobre Caio

Fernando Abreu, na tentativa de apresentar elementos presentes em suas obras, que possam

caracterizá-las dentro do contexto em que foram escritas, buscando, assim, comprovar a

legitimação de alguns valores hegemônicos do processo de construção e formação do texto,

com a contextualização histórica e social relacionada às características das obras. Tentou-se,

ainda, ressaltar alguns aspectos peculiares, não apenas à biografia de Caio Fernando Abreu,

mas também, ao contexto social no qual ele estava inserido, dando continuidade à

compreensão dos fatos que contribuíram para produção de suas obras, apresentando-se a

síntese das obras objeto de análise deste trabalho, produzidas como forma de elucidar

aspectos particulares presentes em ambos os contos „Dama da Noite‟ e „O Rapaz mais triste

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do mundo‟, acompanhada da descrição dos personagens e tomando como referência

características que revelam e identificam as particularidades de cada um deles.

Em se tratando do terceiro e último capítulo, foram apontadas as relações de

paralelismo temático entre os contos, recorrendo a uma abordagem comparativa de elementos

contidos em ambos os textos. E para finalizar, foram feitas algumas considerações referentes

aos capítulos anteriores e análises de símbolos usados por Caio Fernando Abreu, na

caracterização significativa de suas obras, que contou, ainda, com o liame comparativo

temático da alteridade, do status quo e da identidade de gêneros existentes nos dois contos.

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1 A TEORIA QUEER EM CAIO FERNANDO ABREU

1.1 Pressupostos históricos e literários do final do Século XX

Apesar de muitos teóricos afirmarem não existir um marco inicial para o período pós-

modernista, por não aceitarem que, definitivamente, foram abandonados os ideais do

pensamento moderno, ainda assim, pode-se dizer que houve certa ruptura com os laços que

prendiam, de alguma forma, a realidade atual a ele. Essa ruptura talvez não tenha mesmo um

marco específico, como muitos queriam, no entanto, ela se torna muito mais latente na

sociedade pós-guerra que, pouco a pouco, passou a buscar algo, a partir do fortalecimento de

sua identidade.

O homem, do final do século XX até o início deste século, mudou consideravelmente

o modo de pensar e ver o mundo, passando a reconhecer e a aceitar as variadas formas de

representações socioculturais presentes na sociedade da qual faz parte. Atualmente, como

resultado desse grande esforço, pode-se dizer que ele se tornou um ser de identidade híbrida,

vivendo sob o signo da pós-modernidade.

O sujeito pós-moderno, conceptualizado não tem uma identidade fixa,

essencial ou permanente. A identidade torna-se uma „celebração móvel‟:

formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais

somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam

(HALL, 2005, 12, 13).

Dentro dessa nova sociedade sugerida pelos ideais pós-modenos, o homem deixou de

fazer parte de um organismo „uno‟ e passou a ser projetado de forma fragmentada,

transformando-se em um híbrido cultural e sendo obrigado a assumir várias identidades

dentro de um ambiente totalmente provisório e variável, estando sujeito a formações e

transformações contínuas em relação às formas em que os sistemas culturais o

condicionavam.

Talvez, por esse motivo, seja possível afirmar que o movimento da pós-modernidade,

realmente tenha surgido das rupturas com a modernidade, que provocaram mudanças de

perspectivas nas artes, na literatura e, principalmente, nos valores socioculturais.

Tudo isso, somado ao simulacro, à erotização, à ausência de valores e ao

individualismo, considerados marcas de transformações do pensamento ocidental que levaram

o homem a começar a questionar sobre os valores, dentre os quais está a noção de centro e as

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culturas homogêneas, fazendo com que ele, considerado agora pós-moderno, pudesse adotar

um „simulacro do individualismo‟, pelo qual lhe fosse possível transitar entre dois pólos

distintos, o do „eu interior‟, que procura saber quem ele é e o exterior, relacionado à sociedade

à qual ele pertencia e que o fazia interagir com o meio no qual se encontrava inserido.

Consequentemente, em virtude disso e dos inúmeros questionamentos feitos ao

pensamento moderno/estruturalista e às culturas homogêneas, cresceu significativamente o

movimento „excêntrico‟ e a valorização dos grupos denominados „marginais‟. A partir daí, os

silenciados pelo cânone, como minorias étnicas e de gêneros, começam a questionar suas

posições em relação ao poder normatizador.

No final do século XX, em virtude desses novos contornos delineados pelo movimento

social de caráter fortemente literário, influenciados também pelo movimento da

„Contracultura‟, bastante marcado pelo hibridismo estético dos gêneros literários,

impulsionados principalmente, pela concepção de identidade, podem-se perceber algumas

transformações por influência desse descentramento, pois, em meados desse mesmo século,

partes dos escritos literários passaram a ser reabilitados sob a acepção de uma convenção

discursiva baseada na necessidade de responder a uma „expectativa‟, daquilo que o leitor

gostaria de ler.

O termo hibridismo, anteriormente empregado, passou a sugerir a ideia de uma

„modalidade mista‟, um tipo de transgressão aos modelos clássicos existentes, tornando

possível o surgimento de novos modelos e formas literárias que passariam a considerar as

pesquisas informais, baseadas em conflitos existenciais, políticos e comportamentais na

imitação da realidade sociocultural vivenciada naquele período.

Essa mudança de eixo, verificada principalmente em relação ao cânone, ultrapassou as

fronteiras das transformações essenciais do campo cultural, passando a refletir fortemente na

literatura. Isso de deu em função da fragmentação, também no âmbito social, que provocou

um descentramento do sujeito exigindo uma interpenetração dos discursos.

Com isso, a perspectiva da multiplicidade de pontos de vista, passou a desarticular-se

das estruturas binárias mutuamente excludentes, o sujeito agora deixava de ser, por

excelência, parte do próprio discurso e passava a representar vozes minoritárias deixadas até

então à margem do processo de construção cultural.

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As tendências multiculturalistas, intensificadas a partir da década de 1980, passaram a

promover o descentramento cultural, uma forma de desafio para os ideais das democracias

liberais, fortemente apoiadas nos princípios da igualdade, que buscavam respostas às

inúmeras e crescentes reivindicações, baseadas na etnia, na religião, na sexualidade, no

gênero ou em qualquer área de identificação cultural.

A questão do multiculturalismo extremamente complexa, entre as lutas pela afirmação

do direito à diferença e os processos de globalização, aumentaram as desigualdades e

excluíram cada vez mais aqueles que de várias maneiras já estavam à margem da sociedade.

Começou, então, a existir a preocupação com a valorização dos produtos culturais locais e sua

relação com as demais culturas, sem influências hegemônicas.

Sob a influência de uma nova concepção pós-moderna, surgiram novas técnicas de

comunicação e de transmissão poética e literária, cuja força retórica residia, sobretudo, na

necessidade da individualização das condições de vida, do culto ao „eu‟ e às felicidades

privadas e subjetivas, acarretadas pela individualização da sociedade. Disso resultou um

sentimento de „descontração‟, de autonomia e de abertura para as existências individuais. Foi

então que, a partir do final da década de 1970, a noção de pós-modernidade fez sua entrada no

universo intelectual, buscando qualificar a diversidade cultural das sociedades, antes ignorada.

Percebeu-se, com isso, que se estava, portanto de uma sociedade mais diversa, mais

facultativa, cada vez mais heterogênea. A partir daí, o neologismo pós-moderno passou a

salientar uma mudança de direção, uma reorganização em profundidade com o modo de

funcionamento social e cultural da sociedade. Iniciava-se, então, uma rápida expansão do

consumo e da comunicação de massa; o enfraquecimento das normas autoritárias e

disciplinares; e um surto de individualização.

O momento parecia sugerir a emancipação dos indivíduos em face dos papéis sociais

e das autoridades institucionais tradicionais, promovendo expectativas em torno de normas

sociais mais flexíveis, mais diversas e da ampliação de uma gama de opções pessoais.

Então, o ideal pós-moderno pareceu mostrar-se cada vez mais, envolto numa nova

forma de sedução, ligada à individualização das condições de vida e, nesse momento, o alívio

parecia substituído pelo fardo, o hedonismo recuava ante os temores e, com os traços de um

composto paradoxal de frivolidade e ansiedade, de euforia e vulnerabilidade desenhava-se a

imagem e a perspectiva de uma nova sociedade.

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Provavelmente, tenha sido por esses motivos que os textos de tessitura literária,

eminentemente pós-modernos, como os exemplos que foram objetos desse estudo, tragam em

suas configurações traços de um monólogo narrativo de características urbanas, resultado dos

controles sociais normativos que lançaram a sociedade ao culto do consumo, do

individualismo e do hedonismo, práticas cada vez mais ligadas à noção da existência humana

e baseadas na felicidade fugaz da subjetividade.

Por esta e outras razões, a crise de identidade do homem pós-moderno parece,

portanto, estar diretamente ligada à submissão a determinadas identidades impostas pelas

noções homogêneas de normatização cultural. E, independente de quaisquer que sejam as

razões, o resultado disto se vê na possibilidade de o homem ser visto como produto da

internacionalização das relações econômicas, inseridas em um amplo processo fragmentário,

no qual ele não consegue mais sentir-se representado no ambiente em que se encontra

inserido.

Assim, na constante necessidade de sentir-se representado, ele se volta para si,

buscando encontrar-se na perspectiva de conseguir estabelecer a relação de interação entre ele

(sujeito) e o meio do qual faz parte, como será observado nos exemplos dos personagens das

obras aqui analisadas, estando, cada um deles, devidamente inserido em seus contextos

literários específicos, podendo fomentar a discussão sobre a temática da alteridade, a ser

abordada no terceiro capítulo.

Logo, torna-se impossível, também, deixar de observar sob o viés da subjetividade, a

noção de homem, nas perspectivas do pensamento pós-moderno que parecem estar ligadas,

principalmente, na relação „sujeito/objeto‟, cujo conhecimento é resultado da razão e

consciência do indivíduo sobre sua própria existência, na qual a linguagem é usada como

instrumento e meio de expressar ideias, funcionando como essência de tudo.

Desse modo, a subjetividade passa a funcionar como forma de caracterizar a

possibilidade de o indivíduo solitário refletir a respeito de uma experiência vivida

restritamente à sua individualidade. Contudo, contrária a essa ideia e na perspectiva da

intersubjetividade, o conhecimento não depende mais, única e exclusivamente, da consciência

de existência de cada indivíduo, mas das outras pessoas.

Como bem disse Hegel (1957, p. 152), a intersubjetividade consiste em mostrar que

uma consciência só chega a ser propriamente consciência através do reconhecimento de outra

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consciência, ou seja, “eu só sou consciente da minha própria existência, a partir do momento

em que o outro consegue me ver como ser existente.” Desse modo, pode-se afirmar que,

segundo o pensamento hegeliano, “buscamos em nós mesmos o outro e os outros procuram

em nós a eles mesmos”, estabelecendo uma dependência entre ambos, parecendo que o sujeito

se completa no outro e, não apenas, em si mesmo.

Não se pode, porém, precipitar as conclusões, com base, exclusivamente, na linha do

pensamento hegeliano, pois não parece plenamente aceitável a ideia de que, para existir é

imprescindível e necessária a aceitação do outro, visto que os motivos são bem claros, uma

vez que valores de transcendência não podem ser substituídos por valores da simples

aceitação, pois a simultaneidade de tendências e a consequente falta de referências externas e

internas mais sólidas não podem gerar um vazio de identificações e de ideais capazes de

cumprir a função de integração ou reintegração, que deveria sustentar uma consistência, para

si e para o social, da autoimagem ou processo de autoconsciência.

Se assim fosse, seria indispensável aceitar que as consequências desse processo são

atitudes ligadas à desilusão, adotada pelo sujeito, que não considera mais o mundo como sua

morada, fazendo da realidade existente, uma instância normativa da realidade ideal, ou, não

podendo mudar, permaneceria imerso na ilusão, na simulação, característica maior do „eu‟

isolado, narcísico, infantil e excluído, caracterizando, nesse caso, os investimentos nos objetos

ou nos outros que se caracterizariam pelas idealizações ou aceitação por parte do outro. Dessa

forma, não haveria luta, confronto, alteridade.

1.2 A reciprocidade do encontro dialógico inter-humano

Como bem parece, a ideia agora não é mais fruto de projeção da mente, mas do uso da

palavra, numa determinada comunidade, em práticas coletivas, em que a relação interpessoal

ou intersubjetiva passa a ser produto da linguagem, vista agora não mais como um simples

instrumento, mas como uma prática linguística de uso comum.

Assim, a verdade não é subjetiva, pois não se forma nenhuma essência e não se

considera o agente conhecedor como sujeito (sub jectum = o que jaz dentro), cuja mente filtra

essências, e sim, como um ser vivente ou existente na linguagem, que só existe na ação

praticada em comunidade. Ou seja, não existe um eu isolado, mas somente o eu de uma

pessoa ou de outra. Isso parece definir a atitude do homem face ao mundo e ao outro. Os

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princípios da existência humana, então, passam a ser monológico e/ou dialógico,

respectivamente do „eu-isso‟ e/ou „eu-tu‟.

A relação dialógica „eu-tu‟ resguarda a alteridade e a individualidade dos

participantes. A presença passa a ser justamente o momento de reciprocidade. O „tu‟ se dá na

presença e não, na representação de um „eu‟. A relação é uma ação imediata. Quando o outro

é considerado um objeto do „meu‟ uso, torna-se um isso. Existe, então, uma relação

monológica, eu-isso.

O filósofo e escritor judeu de origem austríaca, Martin Buber conduz a uma reflexão

clara sobre a forma como as pessoas se relacionam com os outros e com o mundo. Em sua

obra „Eu e Tu‟, Buber tipifica as maneiras de o homem se relacionar com o homem e com o

mundo em duas atitudes: Eu-tu e Eu-Isso. Segundo o autor citado, o homem é um ser de

relação, visto que a relação lhe é essencial e o fundamento de sua existência. Para ele, “o

mundo é múltiplo para o homem e as atitudes que este pode tomar diante do mundo também

são múltiplas” (BUBER, 2001, p. 57).

A atitude é uma ação fundamental ou ontológica em decorrência da palavra

pronunciada. O Eu de uma pessoa é diferente do Eu da outra. Essa diferença não significa que

existem dois „Eus‟, mas que existem duas maneiras de o homem se relacionar com o mundo e

com o seus semelhantes, que se sucedem continuamente.

É importante destacar que o pensamento de Buber é norteado pela sua percepção de

transcendência. Sendo assim, para Buber (op.cit.), a ausência de um diálogo com o

transcendente, que atribua sentido e conduza a vida do homem, provoca a irresponsabilidade

para com o outro.

A reciprocidade é fundamental na relação Eu-Tu. Dela origina-se a responsabilidade

como resposta ao apelo dialógico. Nesse sentido, a responsabilidade ultrapassa o nível da

moral, para atingir um nível maior, sendo o nome ético da reciprocidade. Aqui o homem se

encontra aberto para voltar-se para o outro ente, aceitando-o como um Tu.

A relação Eu-Tu é primordial, pois é nela que o ser do homem surge na existência

autêntica no evento do encontro dialógico inter-humano, na responsabilidade de reciprocidade

que caracteriza todo o encontro. É em meio a essa relação que o homem encontra a esperança

de ser reconhecido e de reconhecer o outro como pessoa dotada de humanidade.

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1.3 Principais influências da crítica Pós-moderna/Pós-Estruturalista

A partir dos inúmeros e diferentes princípios advindos das proposta ideológicas

pós-estruturalistas, surgiram diversas correntes de pensamento que buscaram abranger todo o

vasto campo das discussões envolvendo o complexo universo das relações entre o homem e o

mundo e com os que fazem parte dele, sobretudo, aqueles preocupados com refletir

criticamente sobre os processos de produção de conhecimento e suas respectivas implicações

para a vida humana.

Assim, celebrando a diferença, o dissenso, a não-conformação, a contestação, o

pensamento crítico, o pluralismo e a crítica pós-moderna/pós-estruturalista começaram a

investigar as formas pelas quais a linguagem, os discursos, as identidades, as representações,

as narrativas, os conceitos e os paradigmas construíram verdadeiras estruturas sociais (de

valores, crenças, ideias, saberes e comportamento) capazes de determinar o que se deve julgar

como realidade, verdade, ou conhecimento, uma vez que esses nunca foram naturalmente

dados.

Por essa razão, talvez, a única exigência presente nessas novas propostas de

pensamento deveria ser pautada em perspectivas plurais, que compartilhassem o compromisso

com a reflexão crítica, tida como fundamental para o resgate da responsabilidade humana

sobre um mundo que, visivelmente, estava sendo construído socialmente a partir das

diferenças.

Consequentemente, conscientes da importância na reprodução das assimetrias e

desigualdades, sempre defendendo a ideia de que teoria e prática, não necessariamente nesta

ordem, estavam diretamente relacionadas, autores pós-modernos/pós-estruturalistas, tais como

Michel Foucault, Roland Barthes, Jacques Derrida, Julia Kristeva e outros contribuíram com

o processo de ruptura que o pensamento moderno possibilitou, ao problematizar os

significados pela valorização da instabilidade e da fragilidade dos processos de produção de

sentidos.

Isso porque, eles se propuseram a questionar duramente as chamadas teorias

dominantes para apontar como elas criavam situações em que a vida humana deixa de ser

valorizada para ser tratada como sendo mais uma das muitas „normas‟ estabelecidas por uma

camada dominante da sociedade. Por essa razão, seguramente pode-se afirmar que a

exploração da crítica pós-moderna/pós-estruturalista inicia-se com a influência desses

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pensadores, a começar pelo filósofo francês Michel Foucault, pensador de difícil classificação

e rotulagem que, devido ao vasto campo de interesses, acabaria reconhecido, sobretudo, como

um grande crítico da modernidade. Entre as diversas intenções dele, estaria querer entender as

condições históricas específicas da produção do conhecimento, interesse que não residia

simplesmente no conteúdo do conhecimento por si só, e sim em compreender a relação

orgânica entre os mecanismos de (re) produção e as práticas discursivas que o legitimavam.

Para ele, a produção do saber científico, ao constituir e consolidar as fronteiras de sua

área de conhecimento funcionaria como um discurso que busca se universalizar para receber

legitimação. Visto que, ao se tornar dominante, o discurso cria e fortalece posições

privilegiadas em relação à autorização do próprio saber, o que lhe confere o poder de criar

realidades, sujeitos e identidades, privilegiando uns e excluindo outros.

Segundo Foucault (1987), aqueles no topo das estruturas de poder procuram sempre

usar o saber para perpetuar a ordem que lhes assegura posições privilegiadas, enquanto

aqueles que aceitam os discursos da ordem estariam consentindo em ser dominados, pois

rejeitam a possibilidade de mudança e abdicam do potencial de transformação.

Assim como Foucault (1987), o também francês Derrida (2004) é outro pensador que

inspirou a crítica pós-moderna/pós-estruturalista, em especial na caracterização da realidade

como discurso em sua proposta de desconstrução. A tradição do pensamento filosófico

ocidental repousa sobre o recurso às dicotomias totalmente arbitrárias, visto que inexiste

correspondência natural entre os elementos que as compõem. Para ele, os significados não

seriam dados pela essência daquilo que se busca significar, mas por processos de

diferenciação entre os elementos formadores das dicotomias.

Outros escritores importantes neste período de inovadoras propostas do pensamento

são Roland Barthes (1982; 1993) e Julia Kristeva (2005, 1994), ambos enfatizavam a

intertextualidade do discurso, afirmando que o mundo não era algo pronto e acabado. Para

eles, a realidade, por ser produto da ação humana, seria um processo contínuo e aberto,

suscetível de idas e vindas, releituras e interpretações novas, o que impediria entendê-la

simplesmente como um produto fechado, uno, acabado e fixo.

Foi então que, inspiradas nos ideais de renovação do pensamento crítico e originadas

de uma forma ou de outra, a partir dos Estudos Culturais, novas teorias pós-modernas

passaram a priorizar as investigações sobre a construção social de identidades, na tentativa de

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classificá-las ou compreendê-las. Assim, em meados do século XX, quando problemáticas

surgidas fora da academia e, muitas vezes, em confronto com a dinâmica institucional sobre

discussões de refutação das distinções hierárquicas entre cultura erudita e popular, passaram a

enfatizar a experiência dos grupos sociais historicamente subalternizados e explorados.

Muitos foram os movimentos pleiteando sua identificação e representação dentro do

quadro cultural das reflexões de propostas de aceitabilidade social; as demandas feministas,

de imigrantes de ex-colônias, de movimentos negros e homossexuais passaram a impulsionar

empreendimentos científicos que começaram a questionar formas canônicas de compreender

as desigualdades sociais. Logo, estes movimentos conseguiram impulsionar e renovar os

Estudos Culturais, gerando subdivisões focadas em formas particulares de opressão, dentre as

quais podemos destacar os Estudos Pós-Coloniais e a Teoria Queer.

Com relação aos estudos Queer, Michael Warner (2000; 2003) observou, no início da

década de 1990, que o multiculturalismo quase sempre pressupunha uma organização étnica

da identidade, que representaria os estudos relacionados às etnias, às classes e aos gêneros

representando diferentes formas de opressão, por essa razão, a existência de movimentos

sociais identitários, contrários às estruturas sociais hegemônicas que criam sujeitos como

„normais‟ e „naturais‟ por meio da produção de outros de comportamentos „estranhos‟ ou

„patológicos‟.

A proposta queer mantém sua resistência aos regimes da suposta „normalidade‟, mas

reconhece a necessidade de uma epistemologia do objeto, baseada em investigações

interseccionais. Assim, a afinidade com os Estudos Pós-Coloniais é retomada por meio da

desnaturalização das narrativas de origem, das ideias de lar e nação. Por esse e outros

motivos, a Queer Theory foi usada como base teórica de investigação deste trabalho, com o

desafio de compreender e associar conceitos à tarefa de comparar temáticas pós-modernas das

obras aqui analisadas, atendendo ao objetivo específico de tentar explicar como implicações de

ordens cultural e social anunciam o conhecimento necessário, para fazer frente aos processos

normalizadores que justificam o uso das diferenças como marcadores de hierarquia e opressão,

presentes e claramente destacados nos contos „Dama da Noite‟ e „O rapaz mais triste do mundo‟,

de Caio Fernando Abreu.

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1.4 A Teoria Queer

O termo Queer, que dentre os muitos significados pode ser traduzido por estranho ou

excêntrico, foi também, por muito tempo, usado como adjetivo pejorativo dirigido a gays e

lésbicas, uma forma de insulto, que sinalizava como ato de discriminação àqueles a quem era

dirigido. Como afirma Mário César Lugarinho (2001, p. 36), “tenta dar conta nitidamente do

excêntrico em termo de gêneros à medida que parte do princípio de que a orientação sexual

difere da identidade sexual e da sua própria sexualidade biológica”. Guacira Lopes Louro em

seu „Um corpo estranho‟ conceitua o termo queer como:

Queer é tudo isso: estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da

sexualidade desviante – homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis,

drags. É o excêntrico que não deseja ser „integrado‟ e muito menos

„tolerado‟. Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o

quer como referência; um jeito de pensar e ser que desafia as normas

regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambigüidade, do

„entre lugares‟, do indecidível. Queer é um corpo estranho, que incomoda,

perturba, provoca e fascina. (LOURO, 2004, p. 7-8)

Contudo, no final dos anos sessenta, a expressão Queer passou a se constituir como

forma de autoidentificação, uma maneira de expressar categorias de gêneros caracterizados,

principalmente, pela perspectiva de oposição e contestação à existência de identidades de

gêneros fixos, que tentavam, e, ainda tentam determinar quem e o que somos em relação à

sexualidade.

No final dos anos 1960, os armários abertos e estudiosos de gays e lésbicas

que havia até então permanecido em silêncio a respeito de sua sexualidade

ou a presença da temática homossexual na literatura começaram a falar.

(RYAN, 1999, p.115).

Consequentemente, em função disso, e também, como resultado dos Estudos

Culturais e do Pós-estuturalismo francês, na década de 1990, nos Estados Unidos, surgia o

termo pós-estruturalista literário denominado Queer Theory, cujo objetivo consistia em

analisar, problematizar, transformar e motivar ações de uma minoria excluída da sociedade

centralizadora e de base heteronomativa, propondo-se a romper com os espaços fixos e finitos

da identidade, partindo do princípio de que a sexualidade não possui classificação baseada em

aspectos exclusivamente binários (homem/mulher, macho/fêmea).

Assim, em sintonia com outras mais teorias pós-estruturalistas, a Queer Theory passou

a questionar os binômios de identidade, o caráter unitário da subjetividade e, principalmente,

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influenciada por ideias liberais referentes à autonomia do indivíduo, iniciou a busca por

condições favoráveis para expor a discussão da produção literária e cultual de grupos sociais

tradicionalmente marginalizados e não reconhecidos pela cultura social dominante.

Isso, juntamente com as novas concepções resultado da ruptura com o estruturalismo,

trouxe ideias liberais referentes ao indivíduo e ao conceito de comunidade, baseadas no

princípio da uniformidade, exigindo, cada vez mais, a valorização de pontos antes não

previstos pela tradição crítica literária, como as identidades étnicas e religiosas, ou as

nacionalidades pós-coloniais, vindo a valorizar a realidade e os anseios de estudos locais e de

grupos sociais específicos.

Logo, as demandas feministas, de imigrantes de ex-colônias, de movimentos negros e

homossexuais impulsionariam empreendimentos científicos que colocaram em xeque as

formas canônicas de compreender as desigualdades sociais. Assim, em um movimento que os

impulsionou e renovou, os Estudos Culturais geraram subdivisões focadas em formas

particulares de opressão. Segundo Preciado (2007, p.383):

A crítica pós-colonial e queer respondem, em certo sentido, a

impossibilidade de o sujeito subalterno articular sua própria posição dentro

da análise da história do marxismo clássico. O lócus da construção da

subjetividade política parece ter-se deslocado das categorias tradicionais de

classe, trabalho e da divisão sexual do trabalho, para outras constelações

transversais como podem ser o corpo, a sexualidade, a raça, mas também a

nacionalidade, a língua, o estilo ou, inclusive, a linguagem.

Ainda que a Queer Theory costume ser associada ao estudo do desejo e da

sexualidade, nos últimos anos intensificaram-se as formas de estudos nesta linha, apontando

para a articulação de múltiplas diferenças nas práticas sociais. Daí interpretações

contemporâneas do queer, como uma resposta crítica a qualquer forma de imposição

sociocultural e modelos heteronormativos de identidade, vêm sendo, cada vez mais, aceitas e

associadas a esta teoria, resistindo à “americanização branca, hetero-gay e colonial do

mundo” (PRECIADO, 2007, p. 400).

Diante de tudo isso, a política queer passou a contar com adesão e produção de

inúmeros intelectuais engajados a esse inovador e crescente movimento, que em meados dos

anos noventa passaram a usar o termo para descrever trabalhos baseados em novas propostas

e perspectivas teóricas, atenuando de forma significativa o impacto ao status quo que o

antecedia, e sem romper com a política de identidade; assumindo um caráter unificador e

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assimilador que buscava a aceitação e a integração das mais variadas posições „excludentes‟

do sujeito na sociedade.

Com isso, os estudos queer passaram a constituir um corpus vasto e variado de

empreendimentos dispersos em várias áreas do conhecimento, tais como: Estudos Culturais,

Sociologia da Sexualidade, Antropologia Social, Educação, Filosofia, entre outras.

Atualmente, a Teoria queer vai além das teorias binárias; baseadas, exclusivamente,

na oposição biológica de determinação dos genêros entre homens e mulheres, uma vez que os

novos estudos passaram a englobar todos os demais grupos sociais, as chamadas minorias.

Pode-se, até, afirmar que ela, atualmente, propõe, entre outras coisas, explicitar e analisar os

processos de constituição social a partir de uma perspectiva comprometida com os grupos

socialmente estigmatizados, buscando compreender a formação de suas identidades sociais,

aceitando a ambiguidade, a multipliciade e as diferenças, como formas de pensar a cultura, o

conhecimento, o poder e, pricipalmente, as relações sociais.

Ademais, teórica e metodologicamente, os estudos queer surgiram basicamente de

várias investigações e pesquisas, em diversas áreas do conhecimento, entre elas na Literatura

que, cada vez mais, procura relacionar-se ao meio social no qual ela está inserida, como forma

de sugestão para novos modelos, baseados na proposta pós-estruturalista, de heterogeneidade

cultural, que busca entender as diferentes realidades sociais através das novas formas de

criações literárias.

Logo, perante esta proposta problemática envolvendo as discussões epistemológicas

sobre as questões queer, muitas foram as contribuições de importantes pensadores como,

Michel Foucault e Jacques Derrida, pois ambos discutiram e desmistificaram a hegemonia

heteronormativa, preceito herdado de uma visão patriarcal, centrada no princípio da produção

e reprodução.

Quando nascemos, chegamos a um cenário inventado previamente. Aqueles

que não se encaixam nas categorias estabelecidas são demonizados ou

tratados medicamente. Os teóricos queer, seguindo o trabalho de Foucault,

tentam questionar esta demonização, normalização e tratamento. A chave do

ativismo queer reside em puxar ao avesso as práticas de normalização

(MORRIS, 2005, p. 41).

O primeiro, em sua obra „História da Sexualidade‟ procurou desmitificar a ideia de

proibição a discussões envolvendo a sexualidade, tema antes exclusivo dos discursos

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científicos de aspectos normatizadores, como se pode observar em uma de suas afirmações,

no qual ele diz: "Fala prolixamente de seu próprio silêncio, obstina-se em detalhar o que não

diz; denuncia os poderes que exerce e promete libertar-se das leis que a fazem funcionar."

(FOUCAULT, 2005, p.14)

O texto aqui apresentado deixa clara a intenção de Foucault (op. cit.) de expor o tema

da sexualidade, antes restrito e proferido apenas nos discursos de conhecimento científico e,

estabelecido pela produção dos saberes dominantes, em que as identidades de gêneros eram

estabelecidas pelos aspectos da „natureza‟ humana, limitadas e classificadas, na lógica binária

do masculino e feminino, para passar a ser objeto de inúmeras possibilidades de reatualização

de significado, ligada a uma lógica de relação social, própria e independente, livre de qualquer

tipo de estigma normatizador.

Quanto à contribuição de Derrida (2004) para a Teoria Queer, esta pode ser resumida

pelo seu conceito de suplementaridade e sua perspectiva metodológica de desconstrução. A

suplementaridade, por estabelecer as diferenças como condição indispensável para a noção de

significado e organização por meio de uma dinâmica de presença e ausência, ou seja, o que

parece estar fora de um sistema já está dentro dele, pela própria ideia de „contrariedade‟. Em

outras palavras, a ideia de „ser‟ está diretamente relacionada à de „não ser‟ e, nesse caso, o

que é defendido como natural também pode ser considerado histórico.

Com base nesse princípio, para Derrida (op. cit.) a heterossexualidade precisa da

homossexualidade para sua própria definição, de forma que um homem homofóbico pode ser

definido, apenas, em oposição àquilo que ele não é: um homem gay. Esse procedimento

analítico mostra o implícito dicotômico, que seria denominado de desconstrução, estando

sempre, dentro de uma lógica binária e toda vez que se tenta quebrá-la, termina-se por

reescrevê-la em suas próprias bases. De forma simplificada, a ideia central da desconstrução

de Derrida é revelar o que não está revelado, ou seja, ler o texto de outra maneira.

Tanto as identidades de gênero quanto as identidades sexuais estão sempre em

construção, em transformação contínua, articulando-se com experiências cotidianas

atravessadas por influências e práticas ligadas ao pertencimento étnico, social, de classe, raça,

e outros. As reflexões de Derrida (op. cit.) muito se aproximam das considerações feitas sobre

a ideia de caracterização de concepção queer apresentadas por Foucault (2005, p.30), que diz:

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Não se deve fazer divisão binária entre o que se diz e o que não se diz; é

preciso tentar determinar as diferentes maneiras de não dizer, como são

distribuídos os que podem e não podem falar que tipo de discurso é

autorizado ou que forma de descrição é dirigida a uns e outros. Não existe

um só, mas muitos silêncios e são parte integrante das estratégias que

apóiam e atravessam os discursos

A partir das importantes contribuições anteriormente apresentadas, outros teóricos

como Eve K. Sedgwick (2009), David M. Halperin (1989), Judith Butler (2001) e Michael

Warner (2003) começaram a empreender análises sociais que retomavam a proposta de

Foucault, ao estudar a sexualidade como um dispositivo histórico do poder, que marca as

sociedades ocidentais modernas e se caracteriza pela inserção do sexo em sistemas de unidade

e regulação social.

Nas palavras do sociólogo Steven Seidman (2002), o queer seria o estudo "daqueles

conhecimentos e daquelas práticas sociais que organizam a sociedade como um todo,

sexualizando - heterossexualizando ou homossexualizando - corpos, desejos atos, identidades,

relações sociais, conhecimentos, cultura e instituições sociais" (SEIDMAN, 2002, p.13).

Logo, pode-se afirmar que os estudos queer sublinham a centralidade dos mecanismos

sociais relacionados à operação do binarismo (presença e ausência), em todas as suas esferas

como forma de organização da vida social contemporânea, dando mais atenção crítica a uma

política do conhecimento e da diferença. A Teoria Queer e, consequentemente, os Estudos

pós-estruturalistas são, portanto, resultados de teorias consideradas subalternas, que fazem

uma crítica dos discursos hegemônicos na cultura ocidental.3

A origem remonta às mudanças profundas de meados das século XX, quando

problemáticas surgidas fora da Academia e, muitas vezes, em confronto com a dinâmica

institucional que passara a reger as disciplinas, foram reconhecidas pelos Estudos Culturais

britânicos. Foram eles os primeiros a refutarem distinções hierárquicas que distinguiam

cultura erudita e popular e a proporem investigações sobre a experiência dos grupos sociais

historicamente subalternizados e explorados (MATTELART e NEVEU, 2004).

3 As teorias subalternas é resultado da terminologia criada por Antonio Gramsci para referir-se àqueles cuja voz

não é audível no sistema capitalista. Sua forma contemporânea foi popularizada a partir de um famoso artigo

de Gayatri Spivak intitulado Can the Subaltern Speak? (1985) que designava grupos sociais submetidos ao

domínio de uma potência estrangeira, cuja subordinação se mantinha mesmo após a descolonização.

Atualmente, com a disseminação do debate pós-colonial, passou a designar qualquer grupo que, submetido a

outro, adota uma postura hegemônica.

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Desse modo, os „Estudos subalternos‟ em oposição a certa corrente ortodoxa que se

tornava hegemônica, ao mesmo tempo em que deixava de responder às demandas de grupos

sociais de sua época, inicialmente operários, aos quais se somaram os imigrantes, negros,

mulheres e homossexuais, chegaram a impulsionar projetos científicos que passaram a

questionar formas canônicas de compreender as desigualdades sociais.

Logo, o diálogo entre a teoria queer e as propostas de organização social passaram a

apontar para uma síntese de enfoques teóricos originados dentro, mas também fora, da

normatização social tradicional do mundo ocidental, numa tentativa de articular teorias que

incidem sobre vários níveis da ordem social: o micro (relativo a agentes individuais e suas

interações), o médio (grupos, associações e movimentos sociais) e, em especial, o nível macro

ligado aos processos de diferenciação, estratificação e integração social. A atenção queer aos

processos de diferenciação e hierarquização passou a possibilitar a renovação de discussões

clássicas sobre a dinâmica da mudança e da reprodução das relações sociais.

Nesse sentido, a Queer Theory passou a mostrar que identidades são inscritas através

de experiências culturalmente construídas das relações sociais, de forma simplificada e

puramente explicativa, tendo as categorias de raça, cultura e sexualidade como eixo formador

e simultâneo de identidades hegemônicas e subalternas.

Desse modo, ela não retira mais o impulso crítico de uma oposição ou refutação social,

mas de uma área particular e/ou específica de investigação, apresentada por uma proposta

desafiadora, o desenvolvimento de uma análise da diferença constituída, mantida ou

dissipada. Trata-se então, de um objetivo científico que teria, também, implicações políticas,

pois permitiria compreender e contestar os processos sociais que utilizam as diferenças como

marcadores da hierarquia e da opressão.

No Brasil, segundo Mário César Lugarinho (2001), o abandono do paradigma

estruturalista dos estudos literários só se deu em meados dos anos da década de 1980, quando

se começou a discutir a produção literária feminina a partir de uma teoria de gêneros.

Foi justamente o jornalista Caio Fernando Abreu (2010), juntamente com outros

escritores brasileiros preocupados com a questão de uma suposta estética „alternativa‟, ou

seja, anticonvencional, impulsionados pela Literatura pós-64, caracterizada principalmente,

pela forte crítica a toda e qualquer forma de autoritarismo, que procuraram repelir as tensões

políticas e de domínio sociocultural impostas pela ditadura militar, de modo que,

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estilisticamente, diante da nova realidade enfrentada pela Literatura e pelas demais práticas

artísticas, tornou-se necessário criar um novo traçado estético compatível com o novo

contexto social, político e cultural.

Assim, a Queer Theory mostrou que identidades são inscritas através de experiências

culturalmente construídas em relações sociais e que o êxito de investigações que buscam

articular essas esferas dependerá do desenvolvimento de metodologias que, não apenas,

permitam estudar cada um dos componentes dos processos sociais de constituição das

identidades, mas, sobretudo, analisem as interdependências entre as categorias, de forma que

não resultem na soma de opressões.

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2 CAIO ‘A OBRA COMO EXPERIÊNCIA COLETIVA REVELADA NA ESCRITA’

Antecipadamente, vale salientar, que não se pretende fazer aqui qualquer tipo de

descrição biográfica sobre Caio Fernando Abreu (1948-1996). No entanto, considera-se

importante ressaltar alguns aspectos peculiares, não apenas à sua biografia, mas também, ao

contexto social no qual ele estava inserido, uma vez que as obras desse autor destacam bem o

caráter testemunhal em relação à sua geração, que teve como pano de fundo uma sociedade que

vivenciou períodos políticos conturbados, de repressão ditatorial, de surgimento de revoltas

populares e de constantes manifestações culturais, entre elas, o advento da Contracultura que, por

definição, buscava altercar valores centrais vigentes instituídos na cultura ocidental, tendo

influenciado bastante as produções de Caio (2010).

Grande parte do que se fala a respeito da contracultura no Brasil está diretamente

relacionado ao sentido crítico articulado por Caio (op. cit.), quanto à objetividade analítica.

Para ele, portanto, o mundo moderno estaria caracterizado pela intensificação de um extremo

paroxismo das situações de choque que terminam por produzir um novo tipo de percepção.

No caso específico da contracultura isso, consequentemente, resultaria na elaboração de dois

processos distintos, que Benjamin (1974) chama de erlebnis (experiência não transmissível de

forma integral) e erfahrung (experiência compartilhável). Em relação à esfera da erfahrung,

essas impressões que o psiquismo acumula na memória poderiam ser transmitidas

integralmente, de geração para geração, por via de um narrador integrado em seu saber,

exemplo do que ocorreria nas produções do autor aqui estudado.

Contudo, toda a experiência, por mais solipsista que possa parecer, é, ao mesmo

tempo, ativa e passiva, constituindo a unidade do dado e do interpretável. Com isso, o que se

poderia chamar aqui de contracultura compõe-se de uma comunicação, invenção, transmissão,

descoberta, produção e criação.

É importante ressaltar que, quando ao se aludir ao caráter testemunhal presente nos textos

literários de Caio (op. cit.), faz-se referência à representação do conjunto, correspondente aos

modelos sociais, que serviram para preencher vazios críticos e para conectar elementos da

realidade, antecipando criticamente resultados. Diante disso, pode-se, facilmente, perceber que,

na grande maioria dos textos do escritor, a contracultura é tematizada, partindo sempre de

duas vertentes: a da experiência coletiva, passível de transmissão e a da experiência

individual, apenas transmissível de forma fragmentada. A cada uma, corresponde um tipo de

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narrador que, ou adere à essência do que é narrado, ou representa esteticamente a

impossibilidade de transmissão de sua experiência.

O outro fator a ser considerado importante diz respeito à questão da historicidade

(referência a um tempo cronológico específico) que é, também, bastante forte nas narrativas

literárias do escritor gaúcho em estudo, pois todas parecem estar centradas nas influências

provocadas pelas mudanças geradas pela história e na recomposição de sua trajetória. Isso se

deu porque a literatura brasileira, no início dos anos da década de 1970, passou a ser vítima da

violência, da censura militar e política, parecendo estar muito mais preocupada em relatar o

irrelatável, não de forma propriamente explícita, pois estava muito mais vinculada

diretamente a uma estética contracultural, na qual se logrou instituir, nas estruturas de sua

representação literária, uma crítica a seus limites e carências, marcados pela transgressão,

bastante presente, não apenas nas obras do autor citado, mas também, em outros escritores

brasileiros, despertando, cada vez mais, a curiosidade e o interesse dos leitores para criações

literárias, ditas „alternativas‟, como afirma Cândido (2008, p. 19):

A legitimação da pluralidade acarreta o nascimento de textos indefiníveis:

[...] autobiografias com tonalidades e técnica de romance; narrativas que são

cenas de teatro; textos feitos com a jurisposição de recortes, documentos,

lembranças, reflexões de toda sorte.

Em termos de representação crítica, Caio (2010) parecia não pretender dizer a verdade

dos fatos, mas compartilhar suas narrativas como forma de denunciar uma realidade histórica,

baseada em suas convicções. Em clave representativa, a contracultura teria sido, então, um

modelo estético pautado na negação da própria cultura, um tipo de agressão ou confronto ao

status quo, na tentativa de provocar uma forma de reação, que não veio a ser concretizada.

Foi exatamente pelo pioneirismo em colocar sua própria experiência existencial

como ponte para o fluxo diacrônico, que Caio (op. cit.) se instituiu como autotestemunho da

trajetória contracultural, antecipando as causas de sua insolvência, mas também de sua

„escrevivência‟.4

Como muitos bem sabem, Caio é autor de uma produção literária que tem como

gênero predominante o conto, embora tenha escrito romances e peças teatrais. A diversidade e

a intertextualidade de suas obras aliam-se à plurissignificação dos textos contemporâneos que

4 Termo utilizado pela escritora negra contemporânea Conceição Evaristo, usado para ressignificar o eu-lírico da

poesia e os personagem na prosa.

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propõem uma reflexão acerca do ser, trabalhando com a introspecção dos personagens e com

um cenário de constantes transformações nas relações sociais e condutas morais.

No contexto literário brasileiro, Caio integra o conjunto de escritores que abordam

ficções de aspectos urbanos, que fazem parte de uma literatura produzida em um período

determinado, marcado pelos acontecimentos das décadas de sessenta e setenta, conhecidas

pelos críticos por Literatura pós-64 que se caracterizava, principalmente, pela crítica a toda e

qualquer forma de autoritarismo, poder, domínio e as consequentes desigualdades

socioculturais.

Dentre suas principais temáticas está presente a relação dos personagens com as

circunstâncias vivenciadas nas grandes cidades, centradas, principalmente, na vertente

intimista e do isolamento social consequente, provocando atitudes introspectivas que, muitas

vezes, propiciam o monólogo interior e o fluxo de consciência.

Numa primeira aproximação às obras do autor, percebe-se uma vasta variedade de

temas e assuntos que se revelam em inúmeras possibilidades de pesquisa e investigação

passíveis de serem abordadas. A constatação de que estudos sobre as obras de Caio Fernando

Abreu ainda estão por ser feitos, de certo modo, colabora com a quantidade de temas a serem

investigados, favorecendo, de algum modo, a possibilidade de um recorte que, ainda que

privilegie um olhar específico ou já investigado, pode dar continuidade a outras pesquisas,

sem prejuízo de outros temas também significativos.

Com isso, parece ficar claro o intuito deste trabalho de tentar vincular as questões

levantadas por Caio (2010) em suas obras, principalmente as presentes nas contos do corpus

aqui analisado, com o objetivo de relacioná-los ao retrato do homem contemporâneo.

Em contato com as obras desse extraordinário escritor gaúcho, podem-se, claramente,

perceber marcas de um diálogo intersubjetivo dos personagens, favorecendo, de algum modo,

a possibilidade de um recorte do próprio universo pessoal do autor.

Embora possa parecer impossível apontar marcas que evidenciem a funcionalidade

prática de suas narrativas e a problemática relação entre a elaboração estética e a sua própria

preocupação ética, marcada pelo fluxo de consciência e erigida com uma postura intimista,

baseada e experienciada em sua própria história de vida, traduzida por um descontentamento

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com as engrenagens que determinavam as relações sociais, as obras de Caio fundem-se e

dispersam-se no ponto exato em que enquadram os personagens ao mundo real.

Os contos, predominantemente escritos em primeira pessoa, oferecem ao narrador uma

posição privilegiada que evolui do entusiasmo inicial à escritura fortemente contestadora, que

se estrutura numa forma de dizer e articular experiências existenciais singulares que

funcionam como marca engajada em torno das representações da sensibilidade e dos vazios

deixados pela contracultura.

Assim, partindo da análise contextual de um mundo ocidental globalizado, em

processo de constantes e profundas transformações, tanto na esfera dos valores morais quanto

comportamentais, traços proeminentes da literatura pós-moderna, torna-se possível entender

as ideias e práticas contraculturais ou transgressivas, refletidas nas obras Caio Fernando

Abreu no âmbito de suas produções literárias.

Nelas são refletidas as intenção de registrar as inúmeras transformações por ele

vivenciadas, no auge dos traços proeminentes da influência da literatura pós-moderna, período

em que a presença do cânone era visto como um obstáculo a ser enfrentado por essa geração

da qual ele fazia parte, inclinada a ideais de uma nova consciência, baseada na contestação

radical e na ruptura de valores tradicionais.

Nesse sentido, Caio facilmente, poderia ser citado como pioneiro na forma de narrar

com sua linguagem particular e detalhista, esse novo universo literário marginalizado e,

muitas vezes, esquecido pelos cânones literários, trazendo, de forma clara e explícita, o modo

de apreensão da realidade em paralelo com a ficção, introduzindo uma nova condição, a de

autor „consciente‟, cujas obras são relatos da vida, partindo do „real‟ para o „ficcional‟.

Por esse motivo, as considerações supracitadas levam ao entendimento, com mais

propriedade, do conceito de autoficção, como sendo a constituição híbrida de aspectos

biográficos, influenciando o universo ficcional da literatura. No caso particular de Caio,

grande parte de sua inspiração é fruto da bagagem de suas próprias experiências pessoais.

A literatura não representa a realidade, mas a inventa de maneira que haja uma

vertente para a ficção e dela se reconheça o processo simbólico das relações humanas. Dessa

forma, o autor atribui vida a um narrador que será protótipo de boa parte da poética

introspectiva, cujo narrador captura os momentos reais em que, através de digressões,

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coaduna um cenário de ocorrências que estruturam um enredo entrecortado por vozes e

situações distintas, buscando retratar identidades imersas em conflitos construídos a partir das

suas inaptidões no lidar com os vários „eus‟. A função desse narrador, atordoado ante a

sensação de impotência do narrar, é constituir as formas de recuperar sua totalidade,

instituindo esteticamente o caos em busca da ordem.

Em quase todos os contos, o escritor aborda temas do tipo: o estranhamento, a solidão,

a dor e o sentimento de marginalização, todos mergulhados no espaço da pós-modernidade,

suas narrativas são representadas por seres degradados pelas drogas, paranóias, esquizofrenia,

desencanto, muita procura e muito desamparo, resultado de uma improvável confluência

cultural, proveniente do underground e do movimento hippie das experiências de uma

geração que sobrevivia reprimida e suscetível a um conjunto de forças que, ao unir-se e atuar

simultaneamente, davam lugar a um movimento que passou a ser conhecido como

contracultura.

A cidade é o cenário preferido para os personagens de Caio. Por se tratarem de

narrativas nas quais a temática social predomina, o espaço urbano serve como palco para a

interioridade das figuras humanas no universo das relações sociais e culturais. Por isso, a

literatura de tema urbano tende a aprofundar a análise da vida interior das personagens.

Assim, sua narrativa pode ser classificada como psicológica, porque enfatiza o prisma

intimista sob o qual os eventos externos são percebidos e estes, embora não deixem de ter

sentidos sociais, misturam-se aos problemas de uma subjetividade que se lança à angústia de

questionar tais eventos.

Quanto aos aspectos biográficos do autor, eles parecem presentes nas obras por

apresentarem aspirações e fracassos nas relações humanas, analisados sob os aspectos mais

profundos de suas consequencias. Nelas, a escrita é feita num estilo bem pessoal,

apresentando uma visão dramática, misturada ao lado cômico do mundo moderno, cujas

experiências são compatíveis com as criações, mas não como simples transcrição do

cotidiano, mas como relato de autoficção.

Caio tenta explicar, criticar, ou mesmo, resolver por meio de suas obras, as tensões

entre a realidade interior e realidade superficial satirizando a culpa liberal, o isolamento e a

monotonia da vida urbana moderna. Outro traço importante, pelo menos a respeito das obras

analisadas neste trabalho, diz respeito à classificação das obras como sendo produções de

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conteúdo considerado marginal, termo bastante usado para categorizar obras pós-modernas

voltadas à questão do sujeito e do valor subjetivo, que apresentavam multiplicidade temática

na poesia e na literatura. Nesse momento, o sujeito pós-moderno representava um elemento de

destaque e de representação de um todo, dentro da complexa estrutura que compõe a

sociedade. A intimidade pessoal passou a ser um valor que mudou de figura, passando a ser

objeto de interesse „universal‟.

Descrever a intimidade do homem comum, de forma poética ou literária passou a ser

um estilo característico do pós-modernismo, em que todos passam a ter sua representatividade

no mundo literário, com suas particularidades, caras, cores, variedades, marcadas pela

diversidade e, principalmente, com relação às questões de gênero em oposição à poesia e à

literatura heteronormativa, racial: etnopoesia, pós-colonial, pessoal, a autorreferência.

Em suas obras, Caio (op. cit.) nitidamente apresenta um sentimento melancólico,

resultado da perplexidade subjacente à percepção de sua própria experiência, revelada pela

impotência coletiva frente a um sistema social autoritário marcado pelo controle e pela

repressão social.

Nos casos específicos das obras fruto da análise desta dissertação, os campos literários

tematizados pelos conflitos vividos pelos personagens são marcados (apresentados no

panorama caracterizado) por questões referentes à relação do homem com o ambiente

circundante e consigo mesmo, abordando, entre outras questões, a diversidade, a

aceitabilidade social, a vertente existencial através da temática da solidão, da inadaptação do

sujeito ao próprio mundo, temas pós-modernistas de ficção configurada em ações narrativas

da vida urbana, outro importante traço característico das obras de Caio (2010).

Antes de tudo, julga-se importante ressaltar o cuidado de Caio em relação à escolha de

títulos, subtítulos, notas e epígrafes. Todos parecem representar importantes objetos de estudo

para a compreensão integral de suas narrativas. A própria ideia surgida com o advento da pós-

modernidade liga os temas ao contexto sociocultural do autor, como o declínio das grandes

teorias explicativas; a decadência dos valores e das instituições; a fragmentação; o

multiculturalismo e a identidade.

A obra de Caio (2010), além de tratar desses e de muitos outros temas, é também,

muito ilustrativa em relação a esse período. Um exemplo claro disso está presente na sua obra

„Os dragões não conhecem o paraíso’ (2010), livro no qual estão presentes os contos objeto

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deste estudo, que foi publicado quase ao final da década de 1980, bem no auge do niilismo

pós-moderno, contendo, em sua introdução, a afirmação do próprio autor quanto à

possibilidade de entender a obra como um:

Um romance desmontável, onde essas 13 peças talvez possam completar-se,

esclarecer-se, ampliar-se ou remeter-se de muitas maneiras umas às outras,

para formarem uma espécie de todo. Aparentemente fragmentado, mas de

algum modo – suponho – completo (ABREU, 2010, p. 8).

Com isso, mais uma vez, pôde-se constatar que Caio conseguiu ilustrar, de forma

clara, o mundo pós-moderno ao conceber um livro que, apesar de fragmentado, tenta oferecer

uma visão sobre o real que, de algum modo, apresente-se completa. E é, também, através de

análises fragmentárias que o presente trabalho pretende oferecer uma visão – se não integral,

ao menos vasta – dos contos „Dama da noite‟ e „O Rapaz mais triste do mundo‟.

Em diversos contos, incluindo os dois aqui analisados, Caio cria uma ambientação

dicotômica, alocando o narrador-personagem em um espaço de solidão, angústia e

desconforto. Tais contos se desenvolvem através do desejo de chegar a um espaço outro –

idealizado como fonte de libertação e abrigo – e, dessa forma, abolir o sentimento de

exclusão. É importante sinalizar que a chegada a esse plano ideal, geralmente, é permeada

pela busca do „outro‟, ou seja, pelo sentimento da alteridade.

Essas narrativas, normalmente, se encerram com a frustração da busca e, portanto,

com a permanência na situação de solidão e tristeza, agravada ainda, pela desilusão com a

possibilidade de fuga. Dentro desse contexto de aparências em „Os dragões não conhecem o

paraíso‟, é gerada uma série de reflexões sobre o tema, na tentativa de rever os valores que

oscilam entre essência e aparência. Essa é uma obra marcada por preocupações com a

condição do homem face ao tempo.

Assim, como já foi citado anteriormente, Caio incita o leitor na primeira nota do livro:

Se o leitor quiser, este pode ser um livro de contos. Um livro com 13

histórias independentes, girando sempre em torno de um mesmo tema: amor.

Amor e sexo, amor e morte, amor e abandono, amor e alegria, amor e

memória, amor e medo, amor e loucura. Mas se o leitor também quiser, este

pode ser uma espécie de romance-móbile. Um romance desmontável, onde

essas 13 peças talvez possam completar-se, esclarecer-se, ampliar-se ou

remeter-se de muitas maneiras umas às outras, para formarem uma espécie

de todo. Aparentemente fragmentado, mas de algum modo – suponho –

completo (ABREU, 2010, p.8).

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A literatura do autor aqui analisado, segundo ele mesmo, teria uma espécie de função

social,5 ou seja, buscar compreender mais claramente, por meio de suas obras, um pouco das

aflições e questionamentos existenciais. As temáticas por ele abordadas são exemplos claros,

de como suas narrativas estão vinculadas a um contexto histórico tão característico da

realidade existencial discutida no período da pós-modernidade, chamado também de pós-

modernismo, que pode ser reafirmado pelas condições de apreensão dos objetos culturais a

que o homem é submetido.

Com isso, parece ficar claro o intuito deste trabalho de tentar vincular as questões

levantadas por Caio (2010), em suas obras, principalmente as presentes nos contos analisados,

com o objetivo de relacioná-los ao retrato do homem contemporâneo. A seguir, apresenta-se

uma breve síntese dos contos para que possa entender melhor o que ora foi dito neste capítulo.

2.1 ‘Dama da Noite’

O conto „Dama da Noite‟, escrito por Caio Fernando Abreu, presente no livro „Os

Dragões não conhecem o paraíso‟ é mais uma, dentre as obras do autor, marcada por

elementos literários com abordagem de temática pós-moderna e, nesse caso especificamente,

com algumas características da Queer Theory.

Uma das particularidades do conto, que merece destaque, está na forma de narrar da

personagem que nomeia a si mesma como „Dama da noite‟. A forma livre e sincera de

expressar os pensamentos, emoções e angústias, usando um diálogo entre ela mesma e um

interlocutor a quem se dirige, chamando-o de boy ou „garotão‟, evidenciada por perguntas e

respostas implícitas no texto a ele dirigido, fortemente caracteriza-se pela narrativa na forma

de monólogo, que parece contribuir bastante na construção da própria personagem.

A história se passa em um bar, cenário que, para a protagonista, parece ser o lugar,

destinado aos preteridos pela sociedade e ambiente de socialização aos marginalizados,

"Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito roda-

gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar" (ABREU, 2010, p.

109).

5 Numa entrevista publicada em O Estado de São Paulo, Caio Fernando Abreu busca argumentos sobre o valor

da literatura no ambiente contemporâneo. In: PIVA (2001, p. 17).

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Na fala da personagem-título constantemente percebem-se traços de solidão e angústia

e, claramente visualiza-se o desconforto de não se fazer parte do universo social dos demais e

de ser acometida pelo sentimento da exclusão. No fluxo de consciência, relatado no decorrer

do texto, a Dama da Noite expressa todos os seus sentimentos, com o intuito de talvez revelar

a intenção do autor em criticar anacronicamente as relações entre sujeito e sociedade.

Em diversas passagens do conto, o uso da metáfora „roda‟, é usada frequentemente, na

tentativa de responder afirmativamente a uma interpelação e de estabelecer um sentido de

pertencimento a um grupo social de referência, sugerida pela personagem ao interlocutor,

como podemos constatar no fragmento seguinte:

A roda? Não sei se é você que escolhe, não. Olha bem pra mim – tenho cara

de quem escolheu alguma coisa na vida? Quando dei por mim, todo já tinha

decorado a tal palavrinha-chave e tava a mil, seu lugarzinho seguro, rodando

na roda. Menos eu, menos eu (ABREU, 2010, p. 112).

Como se pode ver, a fala da personagem título reproduz uma crítica em forma de

desabafo, desencadeada pela afirmação de que os controles sociais normativos arrefeceram e

que o individualismo e hedonismo continuaram conduzindo as existências individuais e as

felicidades privadas, excluindo aqueles que não fazem parte de um grupo seleto, discorrendo

sobre estar inserido nos padrões sociais estabelecidos ou estar fora deles.

Na frase: “a vida rolando por aí, feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui

parada, pateta, sentada no bar”, parece retratar com voracidade o sentimento que a acomete.

Nesse momento, a personagem expressa todo sentimento em relação ao fato de fazer parte da

sociedade e de ser descartável e/ou excluída das relações sociais.

Talvez isso venha justificar as várias afirmações antagônicas expressas pela

personagem principal, em diversas passagens da obra em que as mudanças de opiniões sobre

um mesmo assunto, parecem conduzi-la pelo conjunto de normas, regras e princípios

variáveis que regulam o comportamento, em conformidade com os interesses dos outros e do

resto da sociedade.

Exemplos dessa variação ideológica podem ser facilmente observados, nas passagens

em que, a princípio, ela parece acreditar e, em seguida, reafirma de forma contraditória a

afirmação anterior, como se pode perceber, claramente, na seguinte passagem:

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Aprendi que, se eu der detalhe, você vai sacar que tenho grana, e se eu tenho

grana você vai querer foder comigo só porque tenho grana. [...] Me diz

quanto custa? Me diz que eu pago. Pago bebida, comida, dormida. E pago

foda também, se for preciso. [...] Falso, eu tenho uns amigos, sim. Fodidos

que nem eu. Prefiro não andar com eles, me fazem mal. Gente da minha

idade, mesmo tipo de. Ia dizer problema, puro hábito: não tem problema.

Você sabe, um saco. Que nem espelho: eu olho pra cara fodida deles e tá lá

escrita a minha própria cara fodida, também, igualzinha à cara deles

(ABREU, 2010, p. 110-112).

Isso talvez se deva à convicção do julgamento de que a ideia do „certo‟ ou „ideal‟ está

no fato de que normas se apóiam no peso da opinião social, na convicção interior de cada um

e nas suas finalidades, cujo fator determinante e decisivo que orienta a conduta dos homens é,

em última análise, o interesse social e, numa sociedade de classes, os interesses de classes. A

opinião social de determinada classe ou povo sanciona alguns atos como sendo bons e morais,

condenando outros como maus e imorais.

Consciente ou inconscientemente, os homens sempre são, portanto, o fruto das

condições da vida imposta pela sociedade, isso é, dos conceitos por ela determinados como

„certos‟ e „errados‟, „bons‟ ou „maus‟ e, nesse caso específico do conto de Caio (2010), a

Dama da noite, por sua vez, relaciona-se de maneira passiva no contexto sociohistórico e

cultural no qual se insere, prendendo-se a uma geração que ficou no passado e lamentando

não poder fazer parte da geração atual.

A própria estilística utilizada por Caio (op. cit.) conduz ao desenvolvimento de um

tipo de cumplicidade com a protagonista, que conta suas desventuras num mundo onde

contrariar a lógica é sinônimo de exclusão. A Dama da noite é a própria imagem do

desencantamento e a roda sobre a qual ela tanto divaga é a imagem de uma vida que ela não

quis ou não pôde seguir, excluída de uma „sociedade modelo‟.

Ao longo da narrativa, a personagem título analisa as relações pessoais do contexto no

qual está inserida, baseada no movimento das pessoas ao seu redor e descrita sob a

perspectiva de quem não faz parte do movimento das relações sociais e culturais. Ela comenta

sobre a vontade de rodar na roda da vida, ao mesmo tempo em que expressa o desprezo que

sente por ela.

O próprio discurso sugere que existe uma dinâmica que rege todas as pessoas, ou ao

menos, deveria reger, e que os indivíduos que estão inseridos nessa lógica conseguem se

comunicar, ao passo que aqueles que se sentem estranhos ao modelo dominante se sentem

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apartados de todo o resto, desencontrados, sozinhos e impossibilitados de entrar na roda, no

mundo.

O amor também é abordado na obra, como possível de existir entre pessoas,

independente da classificação binária homem-mulher. No entanto, o autor enfatiza a diferença

entre a ideia de „Verdadeiro Amor‟ das experiências pautadas pelo interesse, pelo dinheiro e

pela efemeridade, numa metáfora de um caminho possível para uma mudança efetiva da

realidade que cerca cada pessoa, ainda que as condições se apresentem pouco favoráveis.

Enfim, em outras palavras, a obra é pautada na contestação à lógica da exclusão que,

em virtude de sua perpetuação, impõe padrões comportamentais para homens e mulheres e

que tem como agravantes o machismo, a homofobia e a intolerância.

2.3 ‘O rapaz mais triste do mundo’

O conto „O rapaz mais triste do mundo‟, também presente na obra de Caio (2010)‟Os

dragões não conhecem o paraíso‟, inicia-se com uma narrativa que descreve, de forma

detalhada, a caminhada de um homem solitário, pelas ruas noturnas de uma cidade urbana

(não identificada no texto) até um bar, cenário minuciosamente descrito no conto:

UM AQUÁRIO de águas sujas, à noite e a névoa da noite onde eles

navegam sem me ver, peixes cegos ignorantes de seu caminho inevitável em

direção um ao outro e a mim. Pleno inverno gelado, agosto e madrugada na

esquina da loja funerária eles navegam entre punks, mendigos, neons,

prostitutas e gemidos de sintetizador eletrônico - sons, algas, águas - soltos

no espaço que separa o bar maldito das trevas do parque, na cidade que não é

nem será mais a de um deles. Porque as cidades, como as pessoas ocasionais

e os apartamentos alugados, foram feitas para serem abandonadas - reflete,

enquanto navega (ABREU, 2010, p. 65).

O interesse do autor nos detalhes espaciais do lugar onde se passa a narrativa,

justifica-se, talvez, pela necessidade de se estabelecer um paralelo de caráter espaçotemporal,

entre os dois personagens principais, o homem de „quase quarenta‟ e o rapaz de „quase vinte‟,

na tentativa de caracterizar os ambientes distintos da realidade vivida por cada um deles, que

se encontram num espaço onde vivem ou viveram, rompendo, assim, o limite entre passado e

presente.

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Essas referências, no conto, podem ser facilmente verificadas nas passagens da página

seguinte:

Há muitas outras coisas que se poderia dizer sobre esse homem nesta noite

turva, neste bar onde agora entra, na cidade que um dia foi a dele. [...] O

estranhamento típico dos homens de quase quarenta anos vagando pelas

noites de cidades que, por terem deixado de ser as deles, tornaram-se

ainda mais desconhecidas que qualquer outra. [...] Há muitas outras coisas

que se poderia dizer sobre aquele rapaz nesta noite sombria, na cidade que

sempre foi a dele, neste bar onde agora está sentado à frente de um homem

inteiramente desconhecido [...] (ABREU, 2010, p. 66-68, grifos meus).

O bar, local público e de grande movimentação, onde os personagens interagem na

dinâmica narrativa do conto, desempenha um papel adverso da sua conotação principal, aqui

parecendo intensificar o vazio vivido pelos personagens, refletindo a solidão presente em cada

um deles, o que se revela no predomínio da função fática da linguagem quando o homem

dirige-se ao rapaz: “como é seu nome, qual o seu signo, quer outra cerveja, me dá um cigarro,

não tenho grana, eu pago, pode deixar, fazendo o quê, por aí, vendo o que pinta, vem sempre

aqui, faz tanto frio” (ABREU, 2010, 71).

De modo sucinto, o conto da narrativa em questão se resume ao seguinte: numa noite

fria de véspera do dia dos pais, um homem de cerca de quarenta anos, caminhando, chega a

um bar – um ambiente caracteristicamente urbano, cenário que parece sugerir uma certa

neutralidade sociocultural: aberto ao álcool, às drogas e ao sexo fácil. Lá chegando encontra

um jovem de aproximadamente vinte anos e ficam, ambos, numa situação em que tudo pode

acontecer entre eles, mas nada acontece, alimentando a expectativa do encontro, que pode

estender-se, tanto às duas personagens quanto ao narrador (na medida em que este se

presentifica, também, como observador, com uma visão relativamente limitada) e ao leitor.

E, a partir dessa expectativa, o homem mais velho revive as lembranças do passado,

vendo-se espelhado na rotina presente do jovem e este, por sua vez, vê seu futuro projetado no

homem de quase quarenta, numa espécie de espelho, „talvez rachado‟, como sugere o próprio

autor (ABREU, 2010, p. 70), na qual a vivência se dá, basicamente, no interior de cada um,

em um espaço e um tempo distintos, pois, concretamente, eles apenas tomam algumas

cervejas juntos e depois se despedem.

Após a aproximação entre os personagens principais, a despedida entre ambos,

ocasionada pelo fechamento do bar e chegada do dia, parece resultar nas experiências

subjetivas de cada um dos envolvidos na obra, principalmente, o leitor que parece ser

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induzido pelo narrador ativo e persuasivo, que faz crer que os dois personagens se encontram

em estado de estranhamento com o mundo, por não se enquadrarem nos estereótipos exigidos

de um mundo moderno culturalmente baseado em padrões normativos.

Isso, talvez, se deva ao fato de a narrativa destacar o cotidiano comum entre ambos os

personagens, de forma que não há nada que preceda nem suceda ao encontro descrito no bar.

Por essa razão, cria-se certo grau de envolvimento entre os dois homens, nesse local

aparentemente neutro e comum ao espaço urbano noturno e logo, a narrativa após o encontro

impõe um ritmo e regras determinadas aos personagens.

Entretanto, e mais importante do que isso, a própria expectativa de aproximação

gerada pelo conto dota de uma significação que privilegia o encontro, transformando esse

fragmento de tempo na vida das duas personagens em uma experiência significativa (e

dolorosa) para ambos. Tal experiência é, de fato, significativa, porque coloca em evidência o

vazio do universo em que o homem mais velho e o jovem se situam, além de manifestar o

deslocamento deles em relação a esse meio, que é tanto físico, quanto ideológico e cultural.

Nesse conto de Caio, pode-se destacar outro aspecto importante que é a forma como o

ato de narrar foi intensificado, como elemento estruturador da narrativa, ao longo de toda a

obra. Nela, o narrador apresenta-se como personagem ativo nos acontecimentos ocorridos no

conto, podendo-se, até, dizer que ele exercia o papel de um terceiro personagem, um narrador

homodiegético, que se impõe e participa das ações ocorridas no conto, com o objetivo, talvez,

de convidar o leitor a participar do contexto em que ele já se encontra inserido.

Os fatos por ele narrados, a conversa e o encontro entre os dois homens parecia

resultar num contato de caráter confessional e íntimo que, com o passar do tempo, vai

aumentando a intimidade entre ambos, o que, notoriamente, parece ser estimulado por esse

narrador-observador, que manipula, não somente a narrativa, como também o espaço através

das músicas que escolhe para tocar no juke-box, com o objetivo de aproximar os dois homens

de universos cronológicos tão distintos e contextos emocionais tão semelhantes.

O narrador desse conto se vê ante o desejo e a necessidade de enfrentar e assumir a

linguagem como única forma de expressão capaz de dar visibilidade aos sujeitos

representados na história narrada e, ainda, conferir um sentido à sua existência como narrador.

Mas, além disso, ele é também impelido a se deixar levar pelo jogo que ele mesmo inicia,

uma vez que não há, no conjunto de suas possibilidades de manifestação como voz narrativa,

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outro modo de existência capaz de sustentar, coerentemente, sua conformação individual,

como ser que se situa, ao mesmo tempo, numa posição privilegiada em relação ao narrado.

Pois, é ele quem conta a história e, como tal, a conduz, e como ser frágil, preso a uma

visão, às vezes, limitada do universo simples de personagem do sistema que passou a integrar,

confunde-se, muitas vezes, com as personagens e o ambiente sobre os quais fala e, mesmo

com o leitor, porque, ao dizer: “Eu sou os dois, eu sou os três, eu sou nós quatro. Esses dois

que se encontram esse três que espia e conta, esse quarto que escuta” (ABREU, 2010, p. 77).

Nesse conto, o leitor é levado, portanto, a desconfiar de tudo. Esse leitor, também

anônimo, urbanóide, com muitas características afins às das personagens que lê, é convidado

a constituir-se como parte final desse processo de experimentação, uma vez que, ao passar de

uma atitude passiva à atividade da narrativa, transfere-se do narrador-criador para o leitor do

conto, a experiência do (des) controle em relação à forma-criação do conto.

Nesse sentido, o narrador, já que não apresenta total controle sobre sua criação,

convida o leitor a auxiliá-lo na percepção e construção da narrativa. Isso pode ser facilmente

percebido no contato intenso e brutal do indivíduo com os objetos e os outros sujeitos, que

podem ser iguais ou mais fortes que ele, mas dificilmente são mais fracos ou se submetem a

ele. O leitor é tomado, pois, como mais uma peça no jogo com a linguagem da narrativa.

A própria impossibilidade de controle sobre o invento, por parte do narrador, ao longo

da narrativa, por exemplo, se deve ao fato de que as regras que regem a narrativa se alteram

na medida em que ela vai sendo contada – o livro, a escrita, a vida da

personagem/leitor/homem – acontece, se desenvolve, pois “dentro do círculo do jogo, as leis e

costumes da vida cotidiana perdem validade. Somos diferentes e fazemos coisas diferentes”

(HUIZINGA, 1971, p. 15). Ou seja, por mais que se tenha conhecimento de que o jogo (a

história) existe, é imprescindível contentar-se com a descoberta, porque, como as personagens

desse conto, não se encontram perspectivas, “uma vez que „eu‟ [protagonista, narrador, autor,

leitor, enfim aquele que se diz „eu‟] nasci nesse tempo em que tudo acabou; isso ele não diz,

mas eu escuto e o homem em frente dele também e o bar inteiro também” (ABREU, 2010, p.

73).

Dessa forma, observa-se que, em „O rapaz mais triste do mundo‟, a narrativa cumpre,

também, a função de estabelecer uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma

coisa que, nesse caso, é a subjetividade dos sujeitos e a atividade sobre o mundo instalado na

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própria ação de narrar, ainda que os envolvidos nesse processo não tenham plena consciência

daquilo que buscam. Esse é o resultado de um exercício, às vezes, explicitamente deliberado –

“Por enquanto, olham em volta” (ABREU, 2010, p. 69) – e, também, irônico, por deixar claro

que nada de surpreendente acontece.

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3 ABORDAGENS TEMÁTICAS DAS OBRAS

As relações entre literatura e sociedade se manifestam, tanto pela temática quanto pela

linguagem explorada por um texto, seja ele, lírico ou narrativo. Nas obras de Caio, não

poderia ser diferente; sua produção literária, considerada um exemplo representativo da

literatura brasileira contemporânea, é repleta de temas que permitem averiguar a „função‟ das

obras vinculada ao compromisso com a realidade.

Com „narrativas elípticas‟ que, essencialmente, sugerem ao invés de dizerem, Caio

explora características do homem e da sociedade contemporânea, que tem a metrópole, na

maioria das obras, como figura central para a atuação de identidades performáticas, expressão

usada por Edward Said, integrado por Teixeira Coelho6, de modo a representar, na ficção,

uma realidade perturbadora em que não há muitas possibilidades para solução dos problemas

enfrentados pelos sujeitos ou personagens que nascem das subjetividades.

Nesse sentido, o tom das suas narrativas é quase sempre pessimista, visto que elas não

apresentam perspectivas para solução ou amenização dos conflitos, mas ao contrário, tendem

a indicar uma proliferação deles, o que é intensificado pela ausência de um desfecho feliz para

os personagens.

Desse modo, em quase todos os seus escritos, seja claramente ou de forma velada, o

encontro com o outro parece refletir um pouco a constante de que toda e qualquer atividade

humana, fundamentalmente, se refere à dimensão da produção social da diferença, revelada na

autorreflexão do sujeito, como se vê nas passagens presentes nos contos, „O Rapaz mais triste

do mundo‟ e „Dama da noite‟, respectivamente transcritos a seguir:

[...] entre punks, mendigos, neons, prostitutas e gemidos de sintetizador

eletrônico – sons, algas, águas – soltos no espaço que separa o bar maldito

das trevas do bar na cidade que não é nem será mais a de um deles. Porque

as cidades, como as pessoas ocasionais e os apartamentos alugados, foram

feitas para serem abandonadas . [...] você nasceu dentro de um apartamento,

vendo tevê. Não sabe nada, fora essas coisas de vídeo, performance, high-

tech, punk, dark, computador, heavy metal e o caralho. Sabia que eu até

tenho mais pena de você e desses arrepiadinhos de preto do que de mim e

daqueles meus amigos fodidos? (ABREU,. 2010, p. 65;113).

6 COELHO, Teixeira. 1999, p. 203

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Talvez por este motivo, as “chaves” temáticas e conceitos abordados neste trabalho

(alteridade, status quo e identidade de gênero) presentes, também, em muitas outras de suas

narrativas, assumam aspectos excessivos do „ego humano‟, retratando a dificuldade humana

em reconhecer e conviver pacificamente com o diferente, o diversificado, resultando na

frustração vivenciada pelos personagens.

Ainda sobre a temática da exclusão, observe-se que a Dama enfatiza, em alguns

momentos da narrativa, que não teve possibilidade de escolha sobre pertencer, ou não, ao

„movimento da vida‟ – “Quando dei por mim, todo mundo já tinha decorado a palavrinha-

chave e tava a mil, em lugarzinho seguro, rodando na roda. Menos eu, menos eu” (ABREU,

112). O boy, em contrapartida, gira na roda, porque se identifica com os demais – “Todo esse

pessoal de preto e cabelo arrepiadinho sorri pra você porque você é igual a eles” (ABREU, p.

112)

Pode-se dizer que “Caio Fernando Abreu disfarça, escamoteia através de suas

personagens [...] a dor que deveras sente” (TELLES, 1992, p. 13), mas que, numa escrita

atualizada, encontra em suas obras uma saída de prazer e divertimento, que sustenta a

individualidade, tanto da instância que assume a escrita quanto dos seres que ele descreve.

E como, mesmo quando se é o rapaz mais triste do mundo, “tudo aos poucos vira dia,

e a vida – ah, a vida – pode ser medo e mel, quando você se entrega e vê, mesmo de longe”

(ABREU, 2010, p. 79), ou se tratando da Dama da noite, “eu quero mais do que posso

comprar. [...] Aquele um vai entrar um dia talvez por essa mesma porta, sem avisar.”

(ABREU, 2010, p. 117). Nota-se, nesse escrever-ler-viver, uma busca por alcançar algo que

foge ao alcance desse narrador, às demais personagens e ao próprio leitor, identificado com o

que lê, porém não é fácil ver bem o que é, por ser ambíguo, fragmentado e difuso, como são

as experiências humanas.

Assim, partindo desse ponto e considerando a afirmação de que, nem tudo é „o que

sou‟ e nem todos são „como sou‟, os aspectos interpessoais e intergrupais, representados

respectivamente pelo „eu‟ e o „outro‟ (que representam produtos de um duplo processo de

construção e exclusão social, cujo sistema de representação de dimensão singular e subjetiva

de cada um, passa a ser constituído e construído, por meio de aspectos sociais e culturais),

apresentam características peculiares nas narrativas criadas por Caio (2010) e muito bem

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representadas, em riquezas de detalhes e abordagens, pelos contos pesquisados para este

trabalho, e como se vê nas abordagens temáticas analisadas a seguir.

3.1 Alteridade

Para que se possa, inicialmente refletir sobre o tema da alteridade, é importante

esclarecer que se considera o conceito „alteridade‟ como o encontro com o outro, resultando

no reconhecimento desse outro como parte integrante de um conjunto que completa o „todo‟,

pois todos são importantes e devem saber reconhecer e aceitar os outros, respeitando-os e

procurando entender a relação dos indivíduos com os demais. Nesse sentido, a discussão em

torno dessa temática tem prestado relevantes contribuições na medida em que suas

investigações tratam de mostrar o outro como diferente, desvendando suas características e

especificidades.

Por esse motivo, parece importante destacar que à leitura do corpus analisado por este

trabalho se relacionam diretamente as questões de gênero sob a luz da Queer Theory, seja

pelo processo de reconhecimento, ou mesmo, de negação da alteridade. Na própria leitura

calcada pela comparação dos contos: „Dama da Noite‟ e „O rapaz mais triste do mundo‟,

pode-se, claramente, perceber que, em ambos, há essa relação de interação, seja entre os

personagens, autor e/ou leitores, pois, ao analisar ambos percebe-se a existência de um „eu‟

(sujeito) que só é possível via relações sociais, ainda que de forma singular, em que o

encontro com o outro, passa a ser entendido como alteridade, somente no momento da

interação.

Nesse caso, muito mais por meio do próprio discurso que parece desempenhar o papel

de nomear e atribuir valores capazes de produzir sujeitos subjetivos, diante de uma relação de

estranheza e/ou alteridade entre o „eu‟ e o „outro‟, do que pela própria relação de interação

social e cultural, cuja possibilidade ontológica de relação com o outro se dá quando o „eu‟

reconhece no „outro‟ o reflexo de si mesmo, levando-o à negação de sua própria identidade.

Afinal:

Se no passado o outro era de fato diferente, distante e compunha uma

realidade diversa daquela de meu mundo, hoje, o longe é perto e o outro é

também um mesmo, uma imagem do eu invertida no espelho, capaz de

confundir certezas, pois não se trata mais de outros povos, outras línguas,

outros costumes. O outro hoje é próximo e familiar, mas não

necessariamente é nosso conhecido (GUSMÃO, 1999, p. 44-45)

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Nos diálogos presentes nos contos de Caio, objetos de análise deste trabalho, o

discurso do „eu‟ (muitas vezes narrador) parece representar a verdade incontestável da

realidade, que se convenciona, a partir do lugar de quem fala, reservando para si o discurso da

verdade e deixando, consequentemente, relegado ao outro e, em alguns casos, a si mesmo, o

desconfortável lugar do diferente, remetendo-os às margens dos valores sociais estabelecidos,

como se pode verificar em algumas de suas passagens, presentes nos contos „Dama da Noite‟

e „O Rapaz mais triste do mundo‟, respectivamente:

[...] Deixa você passar dos trintas, trinta e cinco, ir chegando aos quarentas e

não se casar e nem ter esses monstros que eles chamam de filhos, casa

própria nem porra nenhuma. Acordar no meio da tarde, de ressaca, olhar sua

cara arrebentada no espelho. Sozinho em casa, sozinho na cidade, sozinho no

mundo [...]. Ele: esse homem de quase quarenta, começando a beber um

pouco demais, não muito, só o suficiente para acender a emoção cansada, e a

perder cabelo no alto da cabeça, não muito, mas o suficiente para algumas

piadas patéticas. Sobre esse espaço vazio de cabelos no alto da cabeça caem

gotas de sereno, cristais de névoa, e por baixo dele acontecem certos

pensamentos altos de noite, algum álcool e muita solidão [...] (ABREU,

2010, p. 111 e 65-66).

Percebe-se, em ambos os contos, que o fluxo de consciência presente no discurso de

cada um dos personagens-narradores contribui, de forma bastante decisiva, na construção de

imagens, deles mesmos e do mundo, que são focalizadas por ações de alteridade aos

respectivos enunciadores, segundo suas interações e por meio das quais se manifestam suas

convicções diferenciadas, conforme as contextualizações de suas falas.

Por esse prisma, acredita-se que a alteridade passa a implicar o desdobramento do

sujeito em suas posições discursivas, resultando num ponto de vista de uma pretensa

imutabilidade do sujeito, onde: “o sujeito da narração, pelo próprio ato da narração, dirige-se

a outro e é, em relação a esse outro, que a narração se estrutura” (KRISTEVA, 2005, p. 78)

Nos dois exemplos, a rejeição e rotulagem de um grupo em particular de indivíduos

desenvolvem-se porque determinadas características são retratadas de forma negativa,

resultante de preconceitos atribuídos a todos os indivíduos pertencentes àquele determinado

grupo. Assim, a condição de pertencer à faixa etária superior aos trintas anos, ser solteiro e

não constituir família permite a formação de uma realidade simplificada de estereótipos,

desconsiderando-se as características subjetivas de cada indivíduo, minimizando-as a meras

diferenças específicas e generalizadas entre os membros de um determinado grupo,

classificando os comportamentos sociais como atípicos, por se enquadrarem numa exceção.

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As leituras feita sob a óptica temática, por sua vez, incorrem de um modo geral, em

uma perspectiva que encerra a diferença em si mesma, segundo Jodelet (1998, p. 47-48),

posto que:

[...] ao designar o caráter do que é outro, a noção de alteridade é sempre

colocada em contraponto: „não eu‟ de um „eu‟, „outro‟ de um „mesmo‟,

destacando a alteridade como “produto de duplo processo de construção e de

exclusão social que, indissoluvelmente ligados como os dois lados duma

mesma folha, mantém sua unidade por meio dum sistema de representações.

Vê-se, portanto, que a autora defende que sua análise deve compreender, tanto o nível

interpessoal quanto o intergrupal. Isso remete um pouco, à ideia de Durkheim (1978) quando

diz que, uma sociedade, ao mesmo tempo em que é algo que o indivíduo deseja, é também

algo que lhe impõe regras, algo da ordem da autoridade.

Na verdade, o homem não é humano senão porque vive em sociedade. [...] É

a sociedade que nos lança fora de nós mesmos, que nos obriga a considerar

outros interesses que não os nossos, que nos ensina a dominar as paixões, os

instintos, e dar-lhes lei, ensinando-nos o sacrifício, a privação, a

subordinação os nossos fins individuais a outros mais elevados. Todo o

sistema de representação que mantém em nós a idéia e o sentimento da lei,

da disciplina interna ou externa, é instituído pela sociedade (DURKHEIM,

1978, p.45).

Certamente, pode-se dizer que tais sujeitos que se baseiam em conceitos próprios,

marcados por estereótipos, e são pontes para a disseminação do preconceito encontram

consonância em interesses do grupo dominante, utilizando artefatos ideológicos e difundindo

a imagem depreciativa do preconceito, no caso em questão, excluído e dominado, com o

objetivo de manter a ilusão do equilíbrio e da ordem vivida na ausência da diferença, em que

essa condição passa a ser consolidada no imaginário social, com sendo fato natural da

inferioridade social de certo grupo sobre outro.

Ainda a respeito de questões envolvendo o tema da alteridade, presente nos contos

„Dama da Noite‟ e „O Rapaz mais triste do mundo‟, respectivamente, podem-se destacar os

seguintes trechos:

[...] “Quem roda na roda fica contente. Quem não roda se fode. Que nem eu,

você acha que eu pareço muito fodida? Um pouco eu sei que sim. Mas fala a

verdade: muito? Falso, eu tenho uns amigos, sim. Fodidos que nem eu.

Prefiro não andar com eles, me fazem mal. [...] “E não sou eu quem decide,

são eles. Não se deve olhar quando olhar significaria debruçar-se sobre um

espelho talvez rachado. Que pode ferir, com seus cacos deformantes. Por

isso mesmo hesito [...] (ABREU, 2010, p. 112 e 70).

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Em ambos os fragmentos aqui transcritos, pode-se perceber que a possibilidade de

contato com o outro se apresenta de forma dicotômica, alocando os enunciadores numa

atmosfera de solidão e angústia, aparentemente percebida pela sensação de exclusão,

enfatizada, também, na afirmação da personagem título do conto „Dama da Noite‟, quando

diz: “Eu não sou igual a eles, eles sabem disso” (ABREU, 2010, p.112).

Percebe-se, assim, tanto no discurso da „Dama da noite‟, quanto do „Rapaz mais triste

do mundo‟, a situação de dualidades por eles vivenciada, cuja sensação de não fazer parte dos

padrões sociais, que garante aos indivíduos certo prestígio diante dos demais membros da

sociedade, reforça claramente suas posições à margem da sociedade e de seus prestígios.

Assim, a inalteridade praticada nas afirmações dos personagens parece estar

diretamente relacionada à questão da hegemonia do modelo social, estabelecido como forma

mais eficiente de dominação social, de controle ideológico, de exploração e exclusão, que

tornam as personagens semelhantes àqueles que as rejeitam, e a ação de estranheza é

resultante de uma indiferenciação, quando o „eu‟ vê os limites de „autoaceitação‟ se

esvanecerem frente ao outro.

Quando a personagem do conto „Dama da noite‟ afirma que os amigos estão „fodidos‟

como ela, ou mesmo, quando o personagem do „Rapaz mais triste do mundo‟ diz que “não se

deve olhar quando olhar significaria debruçar-se sobre um espelho talvez rachado,”

simplesmente, reforçam a ideia de que em ambos os discursos refletem a ideia de fracasso, já

enfatizada anteriormente por Jodelet (op. cit.), em sua citação sobre a alteridade de um „eu‟,

„outro‟ de um „mesmo‟.

Além disso, segundo essa autora, é importante compreender a análise da temática da

alteridade nos níveis interpessoal e intergrupal, isso porque a alteridade convoca a noção de

identidade tanto quanto a de pluralidade. Nesse caso, é importante observar como se configura

um dos primeiros mecanismos acionados pela identidade dominante, a falsa aceitação do

sujeito que ela mesma recrimina, ou a recusa do próprio indivíduo pela identidade que ele

representa.

Isso só ressalta a ideia de que é „na e pela alteridade‟ que a identidade das pessoas é

desenvolvida de maneira efetiva, pois só o „outro‟ é capaz de nos conferir uma „visão‟ de

singularidades que formularão o sentimento de individualidade, a ideia de aceitação ou

exclusão, seja esse sentimento pertencente a um indivíduo ou a um grupo.

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Esses dois exemplos, proferidos em afirmações presentes nas obras, podem ser

analisados como forma de autonegação, por parte dos enunciadores; e a percepção das

identidades se constrói como reflexos de espelho, em que a imagem do „não eu‟ é a mesma do

„eu‟, de possíveis formas de identidade ou semelhança com o outro, o que, de uma maneira

geral, recai na ação de inalteridade, evidenciada em suas posições na esfera da exclusão

social.

Nos dois casos, a não aceitação da própria condição do „eu‟ implica o surgimento do

„outro‟ do mesmo „eu‟, cuja função consiste na crítica e censura de si mesmo. Essa percepção

de aversão do „eu‟ na imagem refletida do „outro‟ só reforça a ideia de Kristeva, de que a

„estranheza‟ de si mesmo faz parte do psiquismo humano e, “a partir do outro, eu me

reconcilio como minha alteridade-estranheza” (KRISTEVA. 1994, p. 190).

Outra característica comum entre as obras, referente ao tema observada nesse estudo, é

a total consciência das personagens principais com a questão da exclusão social. Em ambas,

os protagonistas, por meio de aspectos aparentemente paradoxais implícitos em suas

afirmações, parecem se perceber não pertencentes aos estratos sociais privilegiados e por eles

preteridos da sociedade, ao mesmo tempo em que tentam justificar os motivos, pelos quais

buscam nela estarem inseridos.

No exemplo da „Dama da noite‟, no início do conto, a personagem título afirma que

gostaria de pertencer ao que ela chama de „roda da vida‟, olhando de fora, a cara cheia, louca

de vontade de estar lá, rodando junto com eles nessa roda idiota. Todavia, no último parágrafo

do conto, a fragilidade da personagem é denunciada em sua afirmação, que diz:

[...] Dá minha jaqueta, boy, que faz um puta frio lá fora e quando chega essa

hora da noite eu me desencanto. Viro outra vez aquilo que sou todo dia,

fechada sozinha perdida no meu quarto, longe da roda e de tudo uma criança

assustada [...] (ABREU, 2010, p. 118).

O mesmo ocorre no conto o „Rapaz mais triste do mundo‟, quando já no fim da noite,

antes de sair do bar, o narrador homodiegético afirma: “quero mais um uísque, outra carreira.

Tudo aos poucos vira dia e a vida – ah, a vida – pode ser medo e mel quando você se entrega

e vê, mesmo de longe” (ABREU, 2010, p. 79).

Os fragmentos citados mostram-se bastante compreensíveis, uma vez que, na condição

de inalteridade imposta aos personagens, retratam o isolamento deles das relações sociais com

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o mundo. Nesse contexto, observa-se a noção de alteridade sendo utilizada, por muitos, como

forma de acesso a determinados grupos, caso contrário, isso só seria possível mediante

adequação aos padrões normativos por estes estabelecidos, sendo, pois, e de algum modo,

marcados por alguma diferença, muitos podem abandonar o convívio social em que se

encontram, por serem considerados ameaças à ordem estabelecida no padrão que se entende

por „normal‟.

Levando-se em consideração essa condição imposta pela alteridade, torna-se

impossível pensar a subjetividade sem o outro, visto que o outro „nos arranca

permanentemente de nós mesmos‟. Assim a alteridade (e seus efeitos), embora invisível, é

real. A natureza humana é, essencialmente, produção de diferença.

Nesse sentido, a dimensão invisível da alteridade é o que extrapola a identidade - essa

unidade provisória na qual nos reconhecemos -, dimensão em que estamos dissolvidos nos

fluxos e na qual se operam permanentemente novas composições que, a partir de certo limiar,

provocam turbulência e transformações irreversíveis no atual contorno da subjetividade.

Percebe-se, portanto, que, em ambas as obras, estereótipos particulares da sociedade

são usados como meio de contestação à discriminação, à repressão ou ao preconceito, levando

o autor a assumir um compromisso social voltado à defesa da prática da ação de alteridade.

3.2 Estigmatização por não integração ao Status Quo

A expressão Status quo representa a ideia latina: in statu quo res erant ante bellum,

que quer dizer, “no mesmo estado em que se encontrava antes.” Desse modo, ao utilizar-se o

termo status quo, refere-se à condição ou estado atual das coisas, em relação às já pré-

estabelecidas.

Como as obras analisadas neste trabalho são frutos de um autor brasileiro, de uma

geração que vivenciou os duros golpes da ditadura militar e que, mesmo assim, dentro desse

contexto, conseguiu transformar a literatura brasileira com sua discussão, conscientização e

crítica sobre o sistema implementado, relacionando-o às questões sociais, aos modos de

funcionamento de poder e ao autoritarismo, não se pode deixar de considerar fundamental e

de inevitável importância a abordagem relativa ao status quo, nas análises dos estudos

literários dos contos de sua autoria e, principalmente, nos aqui presentes.

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Na realidade, Caio sempre esteve preocupado em criticar e denunciar os problemas da

sociedade e dos indivíduos inseridos no contexto de opressão; por meio de metáforas,

linguagens e imagens inusitadas, simbologias e ambiguidades, ele conseguiu denunciar e

apresentar, através da articulação desses elementos, a construção do mundo interior e exterior

de personagens, caracterizados pela falta de perspectiva.

Nos textos percebe-se claramente sua intenção de denunciar o sistema repressor da

ditadura militar no Brasil, responsável pela privação dos sonhos, ideais e esperanças de

liberdade, mesmo sem expor esse pensamento, de forma explícita. Neles, o escritor, valendo-

se de metáforas e personagens representados por indivíduos de perfis opostos aos exigidos

pela sociedade tradicional, homens e mulheres fragmentados e destituídos de identidade,

rompe com o status quo dominante, pois desmitifica a visão de identidade una, denunciando,

assim, a fragmentação do indivíduo.

Com isso, o ato de não integração ao status quo, criado pelos jogos de linguagem,

explorados através de diálogos e monólogos captando os detalhes da expressão humana, de

indivíduos excluídos, marginalizados, fragmentados e sem identidade, caracteriza os traços de

sua especificidade literária: “conciliar, através do discurso, uma visão de mundo catastrófica

e anti-utópica, decorrente da repressão política e dos consequentes desequilíbrios sociais, a

uma outra de natureza psicanalítica” (MASINA, 1998, p. 174).

Suas obras abordam temáticas geralmente relacionadas às questões sociais, culturais e

de gênero e estão diretamente relacionadas ao processo de socialização, pautado na própria

idiossincrasia (maneira de ver, sentir e reagir peculiar a cada pessoa), em um contexto na qual

as condições normativas estabelecidas pela sociedade vêm se impondo às necessidades

individuais, que se apresentam como indispensáveis para explicar a adequação do ser

(personagem) ao universo social das obras aqui analisadas, pois ambas apresentam cenários

perfeitos para a efetiva concretização de construção da ideia proposta pelo conceito do status

quo.

Aline Bizello (2006) considera que os textos de Caio (2010) são uma espécie de

denúncia ao sistema repressor, responsável pela privação de sonhos, ideais e esperança de

liberdade, embora não descreva de forma explícita a ditadura militar no Brasil. O escritor,

com suas personagens, agride o status quo dominante, pois apresenta indivíduos de perfis

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opostos aos exigidos pela sociedade tradicional, homens e mulheres fragmentados e

destituídos de identidade una, denunciando, assim, a fragmentação do indivíduo.

No caso do conto „Dama da Noite‟, por exemplo: a palavra „roda‟ repetida inúmeras

vezes no decorrer da obra é usada como metáfora, uma forma de representação da sociedade

em suas várias mudanças de concepções e valores construídos ao longo dos tempos.

Entretanto, a dominação e a manutenção do poder exercida por um determinado grupo, em

posição de domínio em relação aos demais, parece não acompanhar a „transmutação

ideológica‟, representada pelos movimentos circulares sugeridos pela metáfora da „roda‟,

caracterizando, dessa forma, a impossibilidade de rompimento com o status quo estabelecido

naquela situação contextual.

Também no conto „O rapaz mais triste do mundo‟, o „aquário‟ serve para descrever o

cenário particular e delimitado por paredes de vidros, que sugere um espaço sem saída e nulo

de esperanças, aprisionando os personagens a um ambiente de exclusão. Nos dois exemplos,

portanto, podem-se estabelecer a estigmatização de não integração ao status quo.

Tudo isso parece sugerir o funcionamento das regras de normatização do convívio

social, em que a hegemonia das classes dominantes consegue obrigar uma classe social

subordinada a renunciar sua própria identidade, como forma de manter o Status quo. Toma-

se como exemplo disso um fragmento retido do conto Dama da Noite:

[...] é assim que as coisas são: ca-pi-ta-lis-tas em letras góticas de neon.

Mulher pirada e meio coroa que nem eu tem mais é que ser roubada por um

garotinho como você. Só pra deixar de ser burra caindo outra vez nessa

armadilha de sexo (ABREU, 2010, p. 116).

Como se pode perceber no excerto acima, fica bastante clara a intenção do autor em

criticar valores burgueses que tentam manter o status quo, os quais vinculam a imagem do

homem a uma mercadoria isenta de sentimentos mais nobres, que o valorizem pelo que ele é,

e não pelo que tem. Isso mostra claramente que as rupturas com os modos tradicionais de

composição social, verificadas nas obras de Caio, representam antagonismos, em suas

narrativas, muitas vezes fragmentadas e lacunares, densas e complexas.

O autor mostra aspectos do contexto social de valores, condutas e ideologias próprias

dos períodos autoritários e de sociedades conservadoras, principalmente ao questionar

ideologias e posições preconceituosas marcadas por um pensamento conservador.

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As obras mostram a mediocridade e o preconceito de uma sociedade voltada para o

culto aos valores tradicionais, convidando o leitor a fazer parte das narrativas e a tomar

posição críticorreflexiva contrária em relação ao contexto e a posturas assumidas pela classe

dominante.

Em se tratando do conto „O rapaz mais triste do mundo‟, a sensação de fracasso e de

ilusões perdidas que perpassa a leitura de sua narrativa aguça a questão da autopercepção

negativa às experiências vivenciadas pelo personagem de „quase quarenta‟, claramente

perceptível nos discursos que evidenciam situações vividas e uma consciência em relação à

dificuldade de reversão do status quo, capaz de denunciar um sistema repressor responsável

pela privação de sonhos, ideais e esperança de indivíduos destituídos de identidades roubadas

pelo tempo cronológico (idades), enclausurados no mundo de angústia, solidão e vazio

existencial, como se pode observar no fragmento seguinte:

[...] homens solitários não têm idade. Embora gelados, tontos de álcool,

hirtos de frio, lúcido dessa solidão que persegue feito sina os homens sem

passado nem futuro, nem mulher ou amigo, família nem bens – eles não se

olham (ABREU, 2010, p. 70).

Nitidamente, pode-se observar no excerto do fragmento anterior a caracterização por

parte do homem (personagem) como aquele que contraria o estereótipo de homem,

mantenedor da família, nos moldes estabelecidos pela sociedade heteronormativa.

Outra passagem na obra que também se remete à concepção do Status quo, reforçando

a crítica ao capitalismo, simulacro da sociedade presente no conto, é relatada na fala da

personagem-título „Dama da Noite‟, quando afirma:

[...] Essa roda girando, girando sem parar. Olha bem: quem roda nela? As

mocinhas que querem casar, os mocinhos a fim de grana pra comprar um

carro, os executivozinhos a fim de poder e dólares, os casais de saco cheio

um do outro, mas segurando umas. Estar fora da roda é não segurar

nenhuma, não querer nada. Feito eu: não seguro picas, não quero ninguém.

Nem você. Quero não, boy. Se eu quiser, posso ter. Afinal, trata-se apenas de

um cheque a menos no talão, mais barato que um par de sapatos. Mas eu

quero mais é aquilo que não posso comprar [...] (ABREU, 2010, p. 117).

No fragmento citado, a ideia de poder fazer parte da roda parece vincular a sensação

de felicidade às normas vigentes de manutenção de uma estabilidade social, determinada por

objetivos comuns de uma esfera social dominante, aquela que estabelece critérios próprios de

seleção de seus membros, baseando-se, principalmente, numa estrutura que coisifica o

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homem, transformando-o em um objeto impulsionado pelo desejo de que o sistema não seja

mudado.

O desejo de girar na roda, fazer parte dela e da sociedade elitista, baseada na lógica do

divertimento de manter a ordem, acompanhada da constante necessidade da felicidade de

supremacia social, evidencia a submissão estabelecida pelo Status quo.

Estar na roda é ser aceito e aceitar o que já está estabelecido, num mundo de

dissolução de valores e de enfraquecimento pessoal; é não permitir mudanças, mantendo a

condição ou estado atual das coisas.

Coincidentemente, a mesma evidência de submissão às condições expostas pela ideia

do status quo é, também, claramente percebida no conto „O rapaz mais triste do mundo‟, no

qual se observa a heteroafetividade como sendo socialmente legitimada, uma vez que não há

uma verdade absoluta sobre qual seria o gênero caracterizador da homoafetividade, visto que,

existe uma infinita variação sobre as relações sexuais afetivas entre pessoas do mesmo sexo.

[...] Eu quero ler poesia, eu nunca tive um amigo, eu nunca recebi uma carta.

Fico caminhando à noite pelos bares, eu tenho medo de dormir, eu tenho

medo de acordar, acabo jogando sinuca a madrugada toda e indo dormir

quando o sol já está acordando e eu completamente bêbado. Eu nasci neste

tempo em que tudo acabou, eu não tenho futuro, não acredito em nada – isso

ele não diz, mas eu escuto, e o homem em frente dele também, e o bar inteiro

também. (ABREU, 2010, p. 73).

Em comparação com o outro conto em análise de Caio, é possível verificar, ainda, a

proximidade semântica entre o esperar por algo que nunca chega e a própria ideia expressa

pelo movimento da roda gigante, citada inúmeras vezes no conto „Dama da Noite‟. Ambas

estão associadas a ações e/ou movimentos cíclicos e contínuos, incapazes de provocar

mudanças.

O substantivo „roda‟ e o verbo „esperar‟, respectivamente presentes nas obras de Caio,

são representações de uma vida imutável e estática, em que as mudanças não são possíveis,

garantido, assim, o caráter insubversivo imposto pelo status quo.

Contudo, ambos os contos escritos por Caio, de certa forma, parecem contrariar a ideia

imposta pela definição do status quo, visto que não só neles como em outros nota-se a

contribuição do autor na intenção de interpretar as condições de indivíduos inseridos numa

atmosfera de rejeição apresentada em narrativas não vinculadas aos modelos convencionais de

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conotação heteronormativa, que insistem em ignorar o universo de personagens invisíveis ou

até então interditos e censurados, apesar de a maioria dos textos reproduzirem a frustração de

uma geração urbana e reprimida.

3.3 Identidades de Gênero

A sociedade moderna, em seu amplo e constante processo de mudança, cada vez mais

vem desprendendo-se de modelos estáticos, homogêneos e unificados baseados em padrões e

referências sociais axiomáticas, muito presentes também, no campo da identidade.

Para Stuart Hall (2005), as „identidades‟ que durante muito tempo tentaram estabilizar

o mundo social, pautando-se na imagem de um sujeito uno, coerente e imutável, agora

parecem não se reconhecerem diante de seus próprios reflexos, ocasionando, assim, a

chamada „crise de identidade‟, motivada, talvez, pela desestabilização dos valores

socioculturais vinculados às estruturas tradicionais.

Sobre esse assunto, Katherine Woodward (2007) acrescenta a complexidade da vida

moderna que exige assumir-se, cada vez mais, diferentes identidades que, muitas vezes, se

encontram em tensão e conflito quanto aquilo que é exigido de uma identidade social. Diante

disso, inúmeras foram as mudanças nas estruturas da sociedade moderna, no final do século

XX, na qual os conceitos de identidade e sujeito sofreram mudanças em decorrência da

grande diversidade cultural. Na verdade, a problemática envolvendo a identidade somente se

torna uma questão a ser debatida e analisada, justamente por ela se encontrar em crise, pois

segundo o crítico cultural Kobena Mercer (1990, p.43): “A identidade somente se torna uma

questão quando está em crise, quando algo que se supõem como fixo, coerente e estável é

deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza”.

Com o processo natural de transformações ocorrido na modernidade, muitas são as

concepções surgidas para tentar explicar a questão da identidade, no entanto, talvez uma das

que podem ser usadas como forma de refletir a crescente complexidade do mundo moderno,

seja a denominada concepção sociológica, segundo a qual o sujeito não é um ser autônomo e

autossuficiente, mas um mero sujeito formado da relação com „outros seres importantes para

ele‟. Segundo essa concepção: a identidade só poderia ser formada na „interação‟ entre o „eu‟

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(sujeito) e a sociedade. Assim, a identidade passa a existir na relação entre o „interior‟ e o

„exterior‟ do mundo pessoal e do mundo público.

Relacionado a esse princípio, está o fato de que se projetam em „nós mesmos‟

identidades culturais e coletivas, internalizando-as, juntamente com seus significados e

valores, na tentativa de torná-las parte de „nós‟, contribuindo, dessa forma, para que as

características subjetivas cedam lugar aos princípios ideológicos e objetivos do mundo social

e cultural ao qual se pertence.

A identidade, assim, associa o sujeito à estrutura, estabilizando-o ao mundo cultural,

do qual ele é parte integrante, tornando-o reciprocamente unificado e previsível.

Considerando-se as inúmeras culturas existentes no mundo pós-moderno, pode-se dizer que a

identidade passa a ser fragmentada e múltipla, muitas vezes contraditória ou não resolvida,

dependendo do contexto do qual ela faz parte.

Esse tipo de identidade atribuída ao sujeito pós-moderno desatribui a ele o caráter fixo,

essencial e permanente. A identidade passa, então, a ser uma „celebração móvel‟: formada e

transformada continuamente em relação às formas pelas quais as pessoas são representadas ou

interpeladas nos sistemas culturais que as rodeiam (HALL, 2005).

Nesse caso, o sujeito assume identidades distintas em diferentes momentos, as quais

não são devidamente reconhecidas ou necessariamente definidas pelo próprio „eu‟ (sujeito),

demonstrando-se incoerente. David Harvey (1989, p.12) discorre sobre a modernidade não

apenas como “um rompimento impiedoso com toda e qualquer condição precedente”, mas

como “caracterizada por um processo sem-fim de rupturas e fragmentações internas no seu

próprio interior.”

Aproveitando a oportunidade e recorrendo às palavras de Anatol Rosenfeld, segundo o

qual a “aparência da realidade não renega seu caráter de aparência” (ROSENFELD, 1985, p.

16), é por meio das personagens, de suas caracterizações, escolhas e comportamentos que se

procura entender a relação entre identidade, estigma e exclusão social nos contos de Caio (op.

cit.).

O modo como Caio (2010) „falsifica a vida‟ no papel, filtrando aspectos da realidade,

de seu contexto historicossocial para convertê-los em arte, em literatura, mostra que todo

indivíduo é um ser social, uma personagem, dando a impressão ao leitor de que também é um

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“uma celebração móvel, formada e transformada continuamente em relação às formas pelas

quais somos representados ou interpelados nos sistemas sociais que nos rodeiam” (HALL,

2005, p. 13).

Um exemplo claro a respeito da identidade indefinida, incoerente e confusa dos

sujeitos pós-modernos está claramente presente na fala da personagem título do conto „Dama

da Noite‟:

[...] Deixa você passar dos trinta, trinta e cinco, ir chegando aos quarenta e

não casar e nem ter esses monstros que eles chamam de filhos, casa própria

nem porra nenhuma. Acorda no meio da tarde, de ressaca, olhar sua cara

arrebentada no espelho. Sozinho em casa, sozinho na cidade, sozinho no

mundo (ABREU, 2010, p. 111).

Por se tratar de uma narrativa no formato de monólogo, dando credibilidade ao

depoimento da personagem-título, a „Dama da noite‟, se apresenta como alguém que possui

uma identidade de gênero feminina. Apesar dela também sugerir ser chamada assim, devido

ao nome recebido pelos frequentadores do bar: “Dama da noite, todos me chamam e nem

sabem que durmo o dia inteiro.” Isso faz atentar para o fato de que é ela quem define suas

semelhanças com o termo e é também ela que transgride a intenção de quem a apelidou,

ampliando o leque de similaridades entre ela e o apelido imposto.

Diante disso, fica a dúvida da indefinição de sua real identidade que passa a ser

questionada, quando observado no momento de sua narração, de sua experiência de vida,

destacada pelo substantivo masculino „sozinho‟ utilizado em seu desabafo com o jovem boy a

quem se reportava, sugerindo, dessa forma, a indefinição de sua real identidade.

Com isso, observa-se que a sociedade se configura como uma extensa rede de relações

sociais protagonizadas e mantidas pelos diferentes grupos que nela se encontram cada qual

com suas características singulares, uma vez que, vivendo dentro de limites territoriais e

simbólicos, compartilham linguagens, leis, crenças e valores.

A sociedade representada nos contos de Caio é vista como uma sociedade desigual e

preconceituosa, mas que „aceita‟ – em maior ou menor grau – as diferenças a fim de manter

uma imagem de ordem e de equilíbrio, excluindo os que não se enquadram às normas

idealizadas para a vida social.

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3.3.1 Sexualidade e reprodução

Na cultura ocidental, costuma-se associar a ideia de sexualidade à de gênero, como se

a definição de uma dependesse da outra. Isso talvez possa vir a justificar o porquê de se

classificar indivíduos que mantêm relações sexuais e/ou afetivas com outros do mesmo sexo

como „homossexuais‟, uma categoria que remete imediatamente, no imaginário ocidental, à

ideia de doença, perversão ou anormalidade, semelhante à associação feita ao uso do termo

Queer.

Isso porque, para a maior parte das pessoas na cultura atual, a heterossexualidade, ou

seja, a atração erótica entre indivíduos de sexos distintos é vista como algo „instintivo‟,

considerado „natural‟ ou „normal‟ da espécie humana, com vistas à autoperpetuação pela

reprodução.

Nesse caso, sexo e reprodução são, portanto, vistos nas sociedades ocidentais como

intrinsecamente relacionados entre si, pois se considera a reprodução como envolvendo

apenas os dois indivíduos de sexos diferentes, que se relacionaram sexualmente, com o

objetivo exclusivo de dar continuidade à espécie.

No entanto, com o surgimento das „novas técnicas de reprodução‟ desenvolvidas pela

ciência, no final do século XX, a crença de que a reprodução era um „dom de Deus‟, ou regra

divina a ser seguida, fruto do intercurso sexual natural entre um homem e uma mulher, foi

duramente abalada pela concepção inovadora apresentada pela ciência que desvinculava,

portanto, a sexualidade da reprodução.

Diante desse novo contexto conceitual, inicia-se um novo debate sobre

„heterossexualidade‟, baseado, não mais, na necessidade da reprodução da espécie humana,

mas no desejo sexual como característica masculina e feminina, a busca pelo prazer,

principalmente, quando se trata do prazer feminino, antes visto como perigoso e patológico

praticado com um único objetivo, o de procriar.

Com isso, os desejos e prazeres sexuais passaram a ser vistos pelos sujeitos de várias

maneiras. Nessa nova perspectiva, identidades sexuais foram construídas pelo modo como os

sujeitos lidam com sua sexualidade ou pela forma como se relacionam com parceiros/as do

sexo oposto, do mesmo sexo, ou de ambos os sexos. Ainda nesse sentido, ou de modo

semelhante, os sujeitos construíram suas identidades de gênero, identificando-se social e

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historicamente como masculinos ou femininos. Obviamente, as identidades sexuais e de

gênero, embora associadas, são diferentes:

Sujeitos masculinos ou femininos podem ser heterossexuais, homossexuais,

bissexuais [sadomasoquistas, pedófilos, zoófilos, etc.] (e, ao mesmo tempo,

eles também podem ser negros, brancos, ou índios, ricos ou pobres etc.). O

que importa aqui considerar é que – tanto na dinâmica do gênero como na

dinâmica da sexualidade – as identidades são sempre construídas, elas não

são dadas ou acabadas num determinado momento (LOURO, 1997, p. 27).

Tanto as identidades de gênero quanto as identidades sexuais estão sempre em

construção, em transformação contínua, articulando-se com experiências cotidianas

atravessadas por influências e práticas ligadas ao pertencimento étnico, social, de classe, raça,

e outros. De acordo com Britzman (1996, p. 74, apud LOURO 1997, p. 27),

[...] nenhuma identidade sexual – mesmo a mais normativa – é automática,

autêntica, facilmente assumida; nenhuma identidade sexual existe sem

negociação ou construção. Não existe, de um lado, uma identidade

heterossexual lá fora, pronta, acabada, esperando para ser assumida e, de

outro, uma identidade homossexual instável, que deve se virar sozinha. Em

vez disso, toda identidade sexual é um constructo instável, mutável e volátil,

uma relação social contraditória e não finalizada (grifos da autora).

Por volta do final da década de 1960, mais especificamente, a partir do ano de 1968, se

constituíram e se fortaleceram movimentos contemporâneos em defesa dos direitos das

mulheres, dos homossexuais, dos negros, dos estudantes, e de outras categorias. Nesse

período, algumas articulações foram estabelecidas entre teoria feminista e teorizações pós-

estruturalistas. Essas articulações mantêm pontos de convergências ao mesmo tempo em que

apresentam pontos de divergências, sendo algumas ideias assumidas por um grupo de teóricas

feministas e rejeitadas por outras. Desse modo:

Expressando-se de formas diversas, por vezes aparentemente independentes,

feminista s e pós-estruturalistas compartilham das críticas aos sistemas

explicativos globais da sociedade; apontam limitações ou incompletudes nas

formas de organização e compreensão do social abraçadas pelas esquerdas;

problematizam os modos convencionais de produção e divulgação do que é

admitido como ciência; questionam a concepção de um poder central e

unificado regendo o todo social, etc (LOURO, 1997, p. 29).

Os teóricos pós-estruturalistas propõem a desconstrução das dicotomias argumentando

que, nesse jogo de duplicidade, os polos são plurais, fraturados e divididos internamente e que

um pólo contém o outro e vice-versa, o que contribui com a criação de uma estratégia

subversiva para o pensamento contemporâneo sobre a rigidez dos gêneros. Isso significa que

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o pólo masculino contém o feminino e este, o masculino. Pode-se pensar, também, no sentido

de que não existe somente um homem, mas diversos homens que diferem entre si em muitos

aspectos.

Quebrado o status quo da vinculação da sexualidade à reprodução e agora, admitida a

prática sexual, na tentativa incessante do prazer, independe de como era alcançado, não

cabiam mais as argumentações infundadas, impostas pelas regras „heteronormativas‟ de que

as práticas sexuais só poderiam ser consideradas adequadas e próprias à espécie humana,

quando praticadas por indivíduos de sexos opostos.

As novas concepções sexuais e as novas alternativas para à reprodução humana

reveladas pela ciência deram início, nos anos da década de 1960, ao período de grande

questionamento sobre a sexualidade. Entre os inúmeros movimentos sociais que despontaram

nesse período, dois destacaram-se particularmente, o movimento feminista e o movimento

gay, porque ambos passaram a questionar as relações afetivossexuais no âmbito das relações

íntimas do espaço privado.

As lutas desses dois movimentos alcançam tamanha importância, que chegaram

também, a ser discutidos dentro do universo acadêmico e isso se deu, principalmente, por dois

motivos: porque a Universidade sempre representou um lugar de produção de conhecimento

fortemente influenciada pelas lutas sociais e porque se iniciou, então, um movimento, no

interior de diferentes disciplinas, em busca de se encontrar o lugar das mulheres e das

minorias, até então invisíveis no universo acadêmico, mas que faziam parte dos núcleos

intelectuais.

Curiosamente, o campo de estudos que, atualmente, chama-se, no Brasil, de gênero ou

relações de gênero, surgiu nos anos 1970-1980, em torno da problemática da condição

feminina. Os primeiros estudos iniciaram-se com a tese defendida por Heleieth Saffioti no

final dos anos 1960 intitulada „A mulher na sociedade de classes‟, que tinha como

preocupação principal entender a opressão sofrida pela mulher nas sociedades patriarcais.

Um dos livros que influenciou muito a autora citada, ligada ao marxismo, foi o de

Engels (2002) chamado: „A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado‟, no qual

ele defende que a mulher foi a primeira propriedade privada do homem, transformando as

relações sociais, inicialmente sob o domínio do matriarcado (ou seja, do poder das mulheres),

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para o patriarcado, que seria o poder dos homens. Datam desse período, inúmeros estudos

preocupados com as mulheres em situação de dupla opressão, de classe e de sexo.

Curiosamente, as propostas com as quais se organizaram as obras de Caio foram

justamente as representadas pela trajetória, também de dupla opressão, de classe e sexo, só

que, nesse caso, a preocupação era com o sujeito homoerótico na sociedade brasileira. Esse

fato resultou na multiplicação dos estudos críticos sobre o assunto, especialmente nas últimas

décadas do século XX, motivados pelas correntes do pós-estruturalismo, sobretudo o

feminismo.

3.3.2 Gênero x Sexualidade

Ao contrário do senso comum, atualmente, algumas vertentes científicas já

compreendem a distinção entre gênero (social, cultural) e sexo (biológico), como sendo uma

questão de identidade e não um transtorno, pois de deve distinguir identidade de gênero de

práticas afetivossexuais, visto que sexualidade é apenas uma das variáveis que configuram a

identidade de gênero em concomitância com outras coisas, como os papéis de gênero e o

significado social da reprodução.

De uma forma simplificada, pode-se dizer que sexo é uma categoria que ilustra a

diferença biológica entre homens e mulheres; que gênero é um conceito que remete à

construção cultural coletiva dos atributos de masculinidade e feminilidade (que nomeamos de

papéis sexuais); que identidade de gênero é uma categoria pertinente para pensar o lugar do

indivíduo no interior de uma cultura determinada e que sexualidade é um conceito

contemporâneo para se referir ao campo das práticas e dos sentimentos ligados à atividade

sexual dos indivíduos.

3.3.3 Os papeis de gênero nos contos: ‘Dama da noite’ e ‘O rapaz mais triste do

mundo’

Nas narrativas escritas por Caio (2010), temáticas consideradas tabus sempre

estiveram presentes, nos contos a „Dama da Noite‟ e „O rapaz mais triste do mundo‟ não

poderia ser diferente. Em ambas são abordadas as identidades de gênero, tema considerado

polêmico e pouco discutido em composições de outros escritores da literatura brasileira.

Apesar disso, embora muitos não queiram considerá-lo como um escritor engajado na causa

gay, suas narrativas, principalmente as aqui analisadas, revelam traços de homoerotismo que

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podem ser analisados à luz da Queer Theory, principalmente, os que sugerem a ideia de

gênero.

No caso do conto „O rapaz mais triste do mundo‟, o homoerotismo funciona de modo

a desautomatizar o olhar sobre a banalidade da vida cotidiana das duas personagens

envolvidas, conferindo uma importância maior à forma como essa relação se dá entre o

homem mais velho, o narrador, e o homem mais novo, do que aos possíveis conteúdos que

funcionam como substrato narrativo, no caso, uma possível motivação homoerótica entre as

duas personagens que se encontram no bar. Note-se que:

[...] subitamente os dois se compõem – esse homem de impermeável cinza,

aquele rapaz de casaco preto, juntos na mesma mesa – e sem que eu esteja

prevenido, [...], de repente eles se olham bem dentro e fundo dos olhos um

do outro. [...] Eles se reconhecem, finalmente eles aceitam se reconhecer.

Eles acendem os cigarros amarrotados um do outro com segurança e certa

ternura, ainda tímida. Eles dividem delicadamente uma cerveja em comum.

Eles se contemplam com distância, precisão, método, ordem, disciplina. Sem

surpresa nem desejo, porque esse rapaz de casaco preto, barba irregular e

algumas espinhas não seria o homem que aquele homem de espaço vazio no

alto da cabeça desejaria, se desejasse outros homens, e talvez deseje. Nem o

oposto: aquele rapaz, mesmo sendo quem sabe capaz de tais ousadias, não

desejaria esse homem através da palma da mão inventando loucuras no

silêncio de seu quarto, certamente cheio que mal acabo de passar, quando é

cedo demais para saber se deseja, fatalmente, outro igual. Quem sabe sim.

Mas este homem, aquele rapaz - não. É de outra forma que tudo acontece

(ABREU, 2010, p. 71-72).

Na obra „Dama da noite‟, entretanto, as definições dos papéis de gênero dos

personagens criados por Caio são ocultados pela inovação estetico-literária, descrita na

composição da personagem título. Nele, a narrativa feita na forma de um monólogo, possui

uma personagem principal que se autodenomina „Dama da Noite‟, impossibilitando

objetivamente identificar, ao certo, o gênero ao qual pertence. Por essa razão, ela passa a

representar a própria imagem do desencantamento e a roda sobre a qual ela tanto divaga

repassa a imagem de uma vida na qual ela não quis ou não pôde se integrar. Consolida-se,

assim, como exemplo de contestação à ordem vigente e aos padrões excludentes da época, que

deram voz a personagens marginais, excluídos pelo conservadorismo cultural do período e pela

sociedade, trazendo-os para o centro da discussão, numa espécie de „protagonismo do diferente‟.

Após essa condição de abertura, as novas propostas de estudos e críticas literárias, as

questões envolvendo a sexualidade e identidades de gênero, nesse caso, passaram a ser

assuntos cada vez mais explorados, como se verifica após as leituras dos contos, uma vez que,

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em várias oportunidades, os personagens sugerem seres com limitações e que todos, em certo

momento da vida contemporânea, procuram como escape seguir suas inclinações em direção a

esses instintos para apaziguar as múltiplas frustrações, mesmo que todas essas satisfações

desemboquem na imaginação.

Dessa forma, seja fazendo uso de metáforas, intertextualizações, referências sugeridas, o

resultado é uma reflexão sobre as sensações e experiências que o mundo contemporâneo

proporciona aos indivíduos, principalmente, aos que divergem do padrão comportamental

hegemônico, ou socialmente legitimado.

Pode-se afirmar, com segurança, que a leitura das obras de Caio, aqui analisadas, traz à

tona a contradição do sistema em que se vive que transmite a ideia de indivíduos livres para a

realização de sonhos e objetivos, ao mesmo tempo em que impõe um modelo a ser seguido e

limites a serem respeitados. Personagens como os aqui descritos constituem-se como parte

excluída da „sociedade-modelo‟, exemplo visto com relação às questões de gênero, como o

observado no conto „Dama da noite‟.

[...] Esse furinho de veado no queixo, esse olhinho verde me olhando assim

que nem eu fosse a Isabella Rosselline levando porrada e gostando e pedindo

eat me eat me, escrota e deslumbrante. Essa tortura que você está sentido não

é porre, não. É vertigem do pecado, meu bem, tortura do veneno. O que você

vai contar amanhã na escola, hein? (ABREU, 2010, p.115).

Como é possível perceber, no fragmento anteriormente citado, a narradora

personagem-título quase corrói a própria estabilidade do jovem ouvinte que, até aquele

momento, se sentia apenas como um indivíduo com todas as convivências harmônicas, que

deve estabelecer alguém com o meio em que vive, visto que, sendo sua escrita marcada pela

busca da diferença, em espaços comuns ao diferente, como os dos cenários das obras – um bar

e um aquário, que são também o lugar da identidade, por apresentarem, ambos, a ideia de

diversidade. Sua escrita parece buscar o lugar incomum, invulgar, utilizando a mesma ideia de

lugar comum ao diferente, como mostram os cenários onde se passam as obras aqui

analisadas.

Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí

feito roda gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada

no bar [...]. Um aquário de águas sujas, a noite e névoa da noite onde eles

navegam sem me ver, peixes cegos e ignorantes de seu caminho inevitável

em direção um ao outro a mim [...] (ABREU, 2010, p. 109; 65).

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Com base nisso, pode-se, claramente, perceber as obras de Caio como um lugar onde a

temática da identidade de gênero é posta claramente em discussão. E é nesse contexto

conflitante, em torno da questão envolvendo o universo de partes das minorias (do diferente)

que reside o traço que se considera como queer, na escrita do autor. Esse traço é marcante em

suas obras, principalmente, por mesclar elementos de ordem social e elementos de ordem

estética, numa ruptura com a escrita tradicional. As paixões e os desejos humanos em suas

composições são sempre realizados no espaço social, por isso, Caio usou cenários urbanos,

como os descritos anteriormente.

Contudo, para ele, parece que nenhuma sociedade é capaz de satisfazer plenamente

todos os desejos e anseios humanos, pois, muitas vezes, eles são sufocados e reprimidos por

normas de conduta e comportamento, estabelecidas por uma classe que se sobrepõe às

atitudes dos demais.

Nos exemplos a seguir retirados dos contos: „Dama da Noite‟ e „O Rapaz mais triste

do mundo‟, respectivamente, isso fica bastante claro: [...]Você tem um passe para a roda-

gigante, uma senha, um código, sei lá. [...] Mas eu fico sempre de fora [...] Eles se

contemplam com distância, precisão, método, ordem, disciplina. Sem surpresa nem desejo [...]

(ABREU, 2010, p. 109 e 72).

Como se pode perceber nos fragmentos citados no parágrafo anterior, a questão das

diferenças, principalmente as relacionadas à identidade de gênero abordada por Caio,

aparecem em algum momento, em suas produções sobre a questão específica das minorias no

campo da sexualidade. Essas minorias incluem-se em uma categoria identificável, um sujeito

psicológico, social e cultural, em estado de sujeição ou de oposição a uma categoria

dominante.

Talvez, inspirado pelo princípio de que a “verdadeira liberdade está em criar seus

próprios problemas” (DELEUZE, 1999, p. 9), Caio defenda o ato de colocar novos

problemas, ou seja, de inventá-los, como questão primordial da literatura, como instrumento

de modificação sociocultural. Não se pode esquecer que o movimento social pelos direitos das

minorias sexuais no Brasil se articulou inicialmente em São Paulo, no exato momento em que

amplos setores sociais se mobilizavam na luta pela democracia e pela liberdade de expressão

nas décadas de setenta e oitenta.

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No final da ditadura militar, período em que os movimentos sociais lutavam pelos

direitos democráticos básicos e pela responsabilização do Estado pelos serviços de acesso

universal, já se lutava por políticas específicas que possibilitassem aos setores sociais

fragilizados pelo preconceito o acesso àqueles direitos democráticos básicos e àquelas

políticas universais.

Nesse caso, possivelmente Caio tenha pensado as minorias sexuais e de gênero na

perspectiva da inserção aos debates sociais e culturais sugeridos por suas produções

literárias, pois, quando ele aborda na Literatura questões sobre às diferenças, como as das

consideradas minorias, principalmente as relacionadas às questões homoafetivas, ele está

deixando de desvincular a ideia de categoria social vitimizada, para a condição de tema a ser

problematizado como movimento de criação de outros modos de vida.

Assim, é interessante atentar ainda que a abordagem do tema referente à categoria de

gênero, vinculado a Queer Theory, é importante na luta do reconhecimento das minorias –

simplesmente por não apontar o gênero como exercício de poder sobre os corpos, mas como

a possibilidade de deslocamentos de gêneros, ou seja, de resistir à normalização dos corpos

de „dentro‟ do discurso de gênero, produzindo outros corpos e, não apenas, o masculino e o

feminino sugeridos pela „heteronormatividade‟.

O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos

no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se

cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma

classe natural do ser. A genealogia política das ontologias de gênero, em

sendo bem sucedida, desconstruiria a aparência substantiva do gênero,

desmembrando-a em seus atos constitutivos, e explicaria e localizaria

esses atos no interior das estruturas compulsórias criadas pelas várias

forças que policiam a aparência social de gênero (BUTLER, 2008, p. 59).

Embora o discurso heteronormativo de gênero esteja sempre tentando passar a ideia de

uma imutabilidade, de uma quase essência de gênero, a qual se cristaliza no tempo para

produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural do ser, a teoria queer aponta,

não para um binarismo de gênero, mas para uma proliferação e dispersão de gêneros.

Dessa forma, para os teóricos queer, as problemáticas das minorias sexuais são, antes

de tudo, questões de gênero, com precedentes para disseminação, tanto da crítica feminista

quanto homoafetiva das discussões literárias, como contextualiza Eagleton (2008, p. 308):

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Surgiu uma nova geração de estudantes e teóricos da literatura, fascinada

pela sexualidade, mas entediada diante da questão de classe social,

entusiasmada com a cultura popular mas ignorante da história do trabalho,

cativada pela alteridade exótica mas apenas vagamente familiarizada com o

funcionamento do imperialismo.

Especialmente no Brasil, esse fenômeno coincide com a difusão dos contos de Caio

(2010), que se tornou objeto especialmente recorrente da atenção por parte de uma crítica

atenta às questões homoeróticas. Deve-se destacar que certos aspectos favoreceram a

importância do tema sobre as representações homoeróticas na literatura brasileira, nas

narrativas de Caio, podendo-se destacar, principalmente, a abertura política na década de 1990

e o próprio esgotamento das leituras sobre o contexto das classes sociais.

Para compreender o desenvolvimento dessa temática nas obras do autor aqui

analisado, faz-se necessário retomar sua obra, não apenas para verificar a presença de

personagens cuja configuração narrativa lhes atribua traços homossexuais, mas,

principalmente, para verificar como o homoerotismo se atrela a outros temas constituindo

complexos temáticos, tais como: alteridade e status quo, ambos já citados neste estudo.

Num tipo de contestação à ordem vigente e aos padrões excludentes da época, Caio

procurou dar voz a personagens marginais, excluídos pelo conservadorismo do governo desse

período e pela sociedade, trazendo-os para o centro da discussão, numa espécie de

„protagonismo do diferente‟.

Tal mudança de perspectiva foi ampliada consideravelmente, graças às questões

relacionadas ao homoerotismo de suas obras literárias, permitindo uma maior visibilidade a

autores cujas obras enfatizavam a marginalidade ou a inserção problemática de personagens

na sociedade. Seja fazendo uso de metáforas, intertextualizações, referências sugeridas, o

resultado é uma reflexão sobre as sensações e experiências que o mundo contemporâneo

proporciona aos indivíduos, principalmente, aos que divergem do padrão comportamental

hegemônico, ou socialmente legitimado.

A leitura da obra traz à tona a contradição do sistema em que se vive, que alega que os

indivíduos são livres para a realização de sonhos e objetivos, ao mesmo tempo em que impõe

um modelo a ser seguido e limites a serem respeitados. Isso torna notória a luta individual dos

personagens na tentativa de acomodar sentimentos e realizações dentro do mundo narrativo

por ele criado. Caio descreve, nitidamente, o fundamento através do qual seus personagens

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foram criados e tornaram-se bastante vulneráveis do ponto de vista da criação, diante de um

mundo que se move rapidamente para outra dimensão do real, em que o sexo, os sonhos, a

história e o poder passaram a criar uma desconcertante sensação de engano.

[...] Estar fora da roda é não segurar nenhuma, não querer nada. [...] Nem

você. Quero não boy. Se eu quiser, posso ter. Afinal, trata-se apenas de um

cheque a menos no talão, mais barato que um par de sapatos. Mas eu quero

mais é aquilo que não posso comprar. [...] Aquele que vai entrar um dia

talvez por essa porta, sem avisar. Diferente dessa gente toda. [...]. Eles se

ignoram. Porque pressentem que – Eu invento, sou Senhor do meu invento

absurdo e estupidamente real, porque vou vivendo nas veias agora, enquanto

invento – se cederem à solidão um do outro, não sobrará mais espaço algum

para fugas como alguma trepada da bêbada com alguém de quem não se

lembrará o rosto dois dias depois [...] (ABREU, 2010, p. 117 e 70).

Em ambos os contos a disposição temática presente no primeiro se repete no segundo,

enquanto o universo das personagens de Caio, a natureza e o próprio mundo se encontram

esvaziados de significado e propósito. Por essa razão, as suas personagens estão sempre

sozinhas, mesmo na presença de outros, vivendo uma série de situações existenciais (todas, de

algum modo, relacionadas com a homossexualidade): a insegurança, a angústia, a depressão, a

vergonha, a esperança, a solidariedade e o amor, diante das quais tentam dar sentido às suas

próprias vidas, em um universo igualmente distante e indiferente.

Solitários, os personagens vivenciam um sentimento de isolamento enquanto lutam

para dar sentido às suas vidas. Pode-se, então, afirmar que em um mundo onde tudo é falso,

vazio e sem sentido, Caio conseguiu dramatizar histórias que podem representar as vastas

identidades de gêneros existentes em um mundo absurdo, onde, através do erotismo, suas

personagens transmitem suas experiências e o sexo se confunde com o estar vivo e as

emoções se sobrepõem a todas as formas de alienação, violência, tristezas, mortes e

preconceitos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

É inegável a relevância da sexualidade na sociedade ocidental. Mais que uma parte

reprodutiva ou natural, o sexo existe, principalmente, como discurso, como informação, como

imagem, como afirma o próprio Caio (2010, p. 115), em trecho do conto „A Dama da noite‟:

[...] Mas anota aí pro teu futuro cair na real: essa sede, ninguém mata. Sexo é

na cabeça: você não consegue nunca. Sexo é só na imaginação. Você goza

com aquilo que imagina que te dá gozo, não com uma pessoa real, entendeu?

Você goza sempre com o que tá na sua cabeça, não com o que tem na cama.

Sexo é mentira, sexo é loucura, sexo é sozinho, boy.

A argumentação que aqui se fez pertinente, além de desencadear algumas reflexões

acerca dos contos „A Dama da Noite‟ e „O rapaz mais Triste do Mundo‟, ambos de autoria de

Caio Fernando Abreu, presentes na obra „Os dragões não conhecem o paraíso‟, teve ainda

como objetivo principal destacar e analisar três diferentes temáticas: a alteridade, o status quo

e a identidades de gênero, todas conexas à teoria Queer, procurando entender similitudes entre

tais temas, dentro dos contos do autor. Partindo-se do referencial teórico e do procedimento

metodológico comparatista, foram analisados os conceitos e temas, verificando-se elementos

intertextuais e suas influências no contexto das obras.

Para tanto, tornou-se essencial, para a proposta teórica deste trabalho, resgatar a

influência de transformações conceituais, ao longo do percurso histórico do conhecimento e

da literatura, como se discorreu no primeiro capítulo, ao abordar os pressupostos históricos e

literários do final do século XX.

Apesar de não ter sido possível abranger todas as temáticas existentes, possíveis de

associação à teoria queer, considerada como uma das principais transformações conceituais

ocorridas no final do século XX analisaram-se apenas as três já citadas, tendo em vista as suas

visíveis compatibilidades com a proposta comparativa entre os contos. Nesse sentido, foi

possível estabelecer pontos de contato e elementos de ligação entre os temas neles presentes.

Um dos motivos pelos quais o conceito queer, foi usado como elemento de

investigação deste trabalho leva em conta, principalmente, a análise crítica da desconstrução

realizada por autores pós-estruturalistas como Foucault e Derrida, conforme já expressamos à

página trinta e um.

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Os outros são frutos de sua sintonia com teorias pós-estruturalistas, pós-modernas e

pós-feministas, já que questionam os binômios de identidade, o caráter unitário da

subjetividade e, principalmente, as ideias liberais referentes à autonomia do indivíduo e ao

conceito de comunidade com base no princípio da uniformidade. Princípio este que, quando

convertido em norma, pode transformar-se em instrumento passível de mascarar diferenças

materiais e culturais. Segundo Eagleton (2008, p. 27), o termo pós-moderno refere-se ao:

[...] movimento de pensamento contemporâneo que rejeita totalidades,

valores universais, grandes narrativas históricas, sólidos fundamentos para a

existência humana e a possibilidade de conhecimento objetivo. O pós-

modernismo é cético a respeito de verdade, unidade e progresso, opõe-se ao

que vê como elitismo na cultura, tende ao relativismo cultural e celebra o

pluralismo, a descontinuidade e a heterogeneidade.

Dessa forma, sem pretender desenvolver uma discussão sobre a questão exclusiva da

pós-modernidade, o interesse maior neste estudo foi o de relacionar os temas presentes no

corpus dos contos com seus respectivos contextos, apresentando situações e condições que

fogem aos cânones da modernidade e se aproximam da proposta ideológica sugerida pela

teoria queer, visto que este espírito considerado ativista e provocador empresta à teoria queer

abrangência que congrega os indivíduos marginalizados ou rechaçados pela sexualidade

convencional, cujo elemento marginal está plenamente presente no espaço da cidade, como

uma espécie de refúgio da solidão extremada, tema que também permeia todo o corpus dos

contos.

No entanto, a ideia do „marginal‟, sugerida pela proposta queer, pode ser vista como

fator positivo, pois proclama uma identidade de minorias sexuais que estão em desacordo com

o dominante, o legítimo, o normativo. Atualmente, as chamadas minorias sexuais estão muito

mais visíveis e, consequentemente, torna-se mais explicita e acirrada a luta entre elas e os

grupos conservadores.

A dominação que lhe é atribuída parece, contudo, bastante imprópria. De acordo com

Butler (2002), na sua crítica à natureza dualista da oposição sexo/gênero, ser homem ou ser

mulher é uma construção cultural, resultado de normas que estruturam as práticas sociais e

operam sobre nossos corpos de maneira incisiva e potente.

Entretanto, o pensar em minorias remete a um estado sociológico e cultural de

exploração ou sujeição, concretizado pelos personagens das obras a partir da ideia de permitir

sermos afetados pelos outros, pela vida e, principalmente, pela diferença, pois diferentemente

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do discurso identitário que constrói uma imagem de minoria relativa a uma categoria social, a

imagem de representação dessa minoria aponta para o fato de que as questões ligadas à

homossexualidade, ou ao negro, ou à mulher e outras categorias menosprezadas, não dizem

respeito, apenas aos homoafetivos, mas à sociedade inteira, pois informam sobre a criação de

outras possibilidades de experiência sexual e afetiva, outros modos de existência.

Nessa perspectiva, a construção da ideia de comum (semelhante), tão ameaçada pelas

tendências fascistas do mundo contemporâneo, é forjada na diferença, contrariando a clássica

noção de comunidade, no pensamento moderno, que enfatiza a comunidade entre iguais, os

laços de pertencimento comuns e a ideia de harmonia e paraíso, que elaboram a imagem de

um agrupamento composto por forças e intensidades díspares que, por isso, produziriam a

sensação de alteridade, cuja diferença seria entendida, não como mera diversidade de

indivíduos ou de identidades, mas como força de produção de novos modos de existência.

Talvez por esse motivo, Caio tenha construído, nos seus contos, personagens

conscientes de banalidades mundanas, em que o vazio e a solidão passam a ser motivos

suficientes para gerar sujeitos melancólicos que se mostram frágeis e fragmentados pelas

exigências impostas pelas culturas urbanas e pela sociedade.

Caio faz um retrato do Brasil contemporâneo, onde os personagens são seres solitários,

que têm, em comum, a marginalidade da sociedade. Nos discursos transparecem as

contradições e os conceitos das realidades vivenciadas (individual e social, externa e interna).

São personagens que estão em busca de satisfação, mesmo que momentânea, desse

sentimento que, na pós-modernidade, é vivenciado fugazmente como ao consumir qualquer

produto. Com isso, é possível fazer uma reflexão de como estão os sentimentos do homem

contemporâneo.

A partir da publicação de Os dragões não conhecem o paraíso (1988), a

crítica parece abandonar aquela imagem de Caio como representante do

projeto existencial de um grupo social, determinado historicamente, e

identifica na obra do autor uma perspectiva mais abrangente. Assim, o olhar

da crítica incide basicamente sobre as personagens, pois refletem o homem

da atualidade, originário de desiguais experiências sociais, mas com algo em

comum com seus semelhantes: a solidão e o vazio das grandes cidades

(LEAL, 2001, p. 46).

Assim, se a noção tradicional de comunidade pressupõe a ideia de um paraíso social

em que todos são aceitos apesar de suas diferenças, o título da obra no qual se encontram os

contos, „Os dragões não conhecem o paraíso‟ parece descrever a representação conflituosa

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dessa possibilidade harmoniosa de seres considerados bizarros e estranhos, representados pela

figura do „dragão‟, podendo fazer parte de um mundo idealizado como perfeito, representado

pela imagem do „paraíso‟.

Esta imagem, associada a esse ser mitológico que pode ser definido como sem nome

ou sexo, em muitos momentos assume a função de preencher o espaço com um

comportamento extravagante e cheio de julgamentos diante da existência, interpretado como

parte de qualquer um dos personagens, como alguém convictamente consciente do que é e que

vive a realidade que supostamente deseja e, como máxima de descrição, está preso à

perspectiva da solidão, numa narrativa de devaneios, ilusões, desilusões, construções e

desconstruções, de personagens que, por fim, são a representação conflituosa do homem do

fim do século XX.

Os dragões não querem ser aceitos. Eles fogem do paraíso, esse paraíso que

nós, as pessoas banais, inventamos – como eu inventava uma beleza de

artifícios para esperá-lo e prendê-lo para sempre junto a mim. Os dragões

não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito e nada dói nem cintila

ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica falsidade. Seu paraíso é o

conflito, nunca a harmonia (CHAPLIN, 1999, p. 155 e 156).

Com base nos contos de Caio, é possível fazer uma reflexão de como estão os

sentimentos do homem contemporâneo. As ilusões são criadas para, apenas, contentar e poder

sentir um pouco de segurança, de felicidade num tempo tão cheio de incertezas.

No conto „O rapaz mais triste do mundo‟, usam-se como referenciais as concepções

que, nessa narrativa, podem ajudar a desvelar o universo simbólico e intimista dos processos

de composição do conto, visto que, assim como a „Dama da Noite‟, é também narrado na

forma de monólogo.

Nele, os personagens situam-se num espaço noturno, local em que eles se encontram.

Lá, são vigiados por mais uma personagem, o que narra o encontro. Num “aquário de águas

sujas” (ABREU, 2010, p. 65), atmosfera nebulosa, tem-se a noção de conjunto inicial de

Barthes (1993). A metáfora inicial, o aquário, é um recurso que revela o universo no qual se

escondem dores e amarguras descritas pelo narrador, que descreve as ações dos personagens,

e que, em alguns momentos, funde-se com eles.

O desenrolar da narrativa depende do fluxo de percepções que o narrador tem da

atmosfera noturna ali descrita: “à noite e a névoa da noite onde eles navegam sem me ver,

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peixes cegos ignorantes de seu caminho inevitável em direção um ao outro e a mim.”

(ABREU, 2010, p. 65). Ele, o narrador, coloca-se como personagem integrante desse espaço,

estruturado simbolicamente para revelar ao leitor o que de mais intimista há no universo

descrito.

Caio compõe as imagens de uma atmosfera que, além de nebulosa, tem a pretensão de

situar o leitor num espaço noturno, lugar onde são vistos diversos tipos humanos, que se

escondem em espaços marginais de uma noite fria:

Pleno inverno gelado, agosto e madrugada na esquina da loja funerária, eles

navegam entre punks, mendigos, neons, prostitutas e gemidos de sintetizador

eletrônico - sons, algas, águas – soltos no espaço que separa o bar maldito

das trevas do parque, na cidade que não é nem será mais a de um deles.

(ABREU, 2010, p. 57)

Ele usa personagens que não possuem nome, assim como tantos outros descritos em

suas obras e, principalmente, em „Os dragões não conhecem o paraíso‟, representando assim,

talvez, uma geração já conformada com os limites do aquário, o bar, meio no qual se tem

certeza das completudes que não serão alcançadas junto aos seres que navegam nele. O

homem de quase quarenta anos, ser de papel um tanto enigmático, não possui passado,

segundo a visão do narrador, e isso pode ser encarado como tentativa de resgate dos que

sofreram o apagamento na geração a qual representam, como se os homens que ainda

navegam pela noite pudessem não ter construído alguma história significativa e isso, aos

olhos de quem vê o mundo na perspectiva dos formatados pela estrutura social; é assim

descrito pelo narrador:

Há muitas outras coisas que se poderia dizer sobre esse homem nesta noite

turva, neste bar onde agora entra na cidade que um dia foi a dele. Mas

parado aqui, no fundo do mesmo bar em que ele entra, sem passado, porque

não têm passado os homens de quase quarenta anos que caminham sozinhos

pelas madrugadas – todas essas coisas um tanto vagas, um tanto tolas, são

tudo o que posso dizer sobre ele (ABREU, 2010, p. 66).

Outro personagem, o que dá nome a este conto, „o rapaz mais triste do mundo‟, é um

rapaz de quase vinte anos, também sem nome, mas com significação mais evidente, pois

reflete a tristeza de um jovem já sem espaço para solucionar os próprios conflitos. O rapaz,

diferente do homem maduro, é possuidor de ingenuidade, visto que não viveu o suficiente

para perceber „as águas turvas desse aquário‟. Ele mergulha nos limites do bar:

Um rapaz de quase vinte anos, bebendo um pouco demais, não muito, como

costumam beber esses rapazes de quase vinte anos que ainda desconhecem

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os limites e os perigos do jogo, com algumas espinhas, não muitas, sobras de

adolescência espalhadas pelo rosto muito branco, entre fios dispersos. [...]

“Por sentido, embora seja certamente verdadeiro que tais metáforas

inventivas tendem a tornar-se metáforas mortas com a repetição (RICOEUR,

1976, p. 64).

Em „O rapaz mais triste do mundo‟, o espelho, imagem que se empenha em remeter à

temática do lago em que Narciso se debruça, anuncia os perigos de querer se aprofundar na

imagem do outro. O símbolo de paraíso, o ambiente aquático, torna-se no conto espaço de

caos que não consegue recompor nenhuma parte fragmentada das personagens. Já no conto

„Dama da Noite‟, que se inicia, também, na forma de monólogo, em que o personagem-

narrador diz: “como se estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito

roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar” (ABREU,

2010, p. 109).

Pode-se observar a manifestação da amargura, do descontentamento, como

possibilidade de participar do convívio social. A „Dama da Noite‟ pode ser descrita como um

exemplo de quem se sente excluída, justamente por sentir-se fora de qualquer formatação, de

qualquer padrão estabelecido pelo status quo sociocultural aceitável. Uma personagem, que

não apresentava definição de gênero, com muita experiência do que é a vida noturna e

conhecedora de todos os códigos de sobrevivência na cultura underground:

Dama da noite, todos me chamam e nem sabem que durmo o dia inteiro. Não

suporto luz, também nunca tenho nada pra fazer... Dama da noite, eles falam,

eu sei. Quando não falam coisa mais escrota, porque dama da noite é até

bonito, eu acho. Aquela flor de cheiro enjoativo que só cheira de noite sabe

qual? Sabe porra: você nasceu dentro de um apartamento, vendo tevê. Não

sabe nada, fora essas coisas de vídeo, performance, high-tech, punk, dark,

computador, heavy-metal e o caralho (ABREU, 2010, p. 110).

A personagem representa o descentramento de um „eu‟ que vê o mundo com a

marginalidade estampada no rosto. Nessas muitas órbitas desordenadas, existentes na ruptura

cultural que constitui, também, o conflito dessa narrativa, ela representa um componente de

minorias que vivem na noite, como meio de fuga aos padrões preestabelecidos pela sociedade.

A „Dama da noite‟ é o reflexo do que pode representar o amor nos ambientes

metropolitanos. Junto à capacidade de amar, a concepção de beleza completamente

influenciada pela supervalorização de uma estética pouco preocupada com a diversidade

humana ali existente. Desse modo, a protagonista é uma estratégia estética utilizada para

personificar ideias de um modelo que foge à lógica dominante.

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Disso resulta um dos temas pós-modernos, a incerteza – instabilidade de viver na

marginalidade, na qual não existem proteção ou certezas, pois as instituições que lhe davam

respostas – a família, a religião e a estrutura social – já não têm mais respostas, deixando

todos os sujeitos inseguros. Assim, partindo de uma percepção de que os conceitos pré-

estabelecidos se desmistificam, as pessoas pensam o mundo sem maiores limites. E, nos

contos de Caio são construídos personagens que se tornaram símbolos da ruptura iniciada

com o modernismo, símbolos da cultura pós-moderna.

Diante disso, Caio, indubitavelmente, pode ser considerado um dos maiores expoentes

da literatura de temática homoerótica no Brasil, das décadas de 1970 a 1990. Segundo

críticos, embora a história da homotextualidade na literatura brasileira ainda careça de mais

detalhamento, é possível situar sua emergência durante o período do pós-moderno, pois,

somente depois de dada maior visibilidade à questão homossexual na sociedade como um

todo, é que passaram a ser mais centrais nas narrativas as identidades homoeróticas,

“paisagens entre a melancolia e a alegria possível, a deriva sexual e o temor da Aids, a solidão

e a ternura, a desterritorialização e a busca de novos tipos de relações” (LOPES, 2002, p.

140). Uma vez que a literatura está indissociavelmente ligada ao momento histórico e à

cultura em que foi produzida, não se deve perder de vista que ela dialoga com o pensamento

social, seja no reforço ou no questionamento, na ressignificação, de ideologias, preconceitos e

estereótipos.

Dessa forma, o discurso literário é também político, não se devendo encará-lo

inocentemente. Assim, esta dissertação debruçou-se sobre a forma como a representação

literária dos personagens de Caio Fernando Abreu, principalmente os presentes no corpus de

análise de trabalho, numa discussão sobre a identidade sexual, suas implicações e limitações.

Mais ainda, como se pode pensar e repensar política e socialmente essa questão, isso é, de que

modo a literatura de Caio, por meio do enfoque afetivo dos personagens, pode reatualizar a

experiência homoerótica, problematizando as divisões estanques entre homo e

heterossexualidade. Isso se tornou possível, pois, como bem destaca Leal (2002), a obra de

Caio é caracterizada por um:

Texto do descentramento, do estranhamento do mundo, do eu, da vida, numa

realidade em que tudo o que é sólido se desmancha no ar. Sendo a matéria

primeira com que é feita essa obra, a preocupação existencial, possibilitando

defini-la como uma reflexão, literária, ficcional, sobre o que vem a ser estar-

no-mundo, é fundamental perceber que ela é feita "de fora", por um olhar

que Sexualidades em questionamento Mariana de Moura Coelho se encontra

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"à margem", que optou por ali estar. A relação de proximidade e

distanciamento que caracteriza a forma da interação do estrangeiro é

constituída pela escolha da inquietude, por uma opção existencial, mas

também política, histórica, sexual, ideológica (LEAL, 2002, 78).

Nesse sentido, a fim de analisar narrativas marcadas pelo descontentamento e

estranhamento do mundo, a Queer Theory foi escolhida como principal referencial teórico,

pois permite contemplar os personagens de Caio e suas práticas homoeróticas, sem se prender

à questão identitária e, mais ainda, criticando suas armadilhas e apresentando uma proposta

ideologicamente cultural menos limitada do que a sugerida por movimentos identitários.

Assim, a obra de Caio, na medida em que não se foca em identidades sexuais bem

definidas na representação dos personagens que desempenham práticas homoeróticas, mas em

suas vivências afetivas, íntimas e existenciais, revela um caráter político bastante interessante.

Para tanto, buscou-se a fundamentação nas noções teóricas de autores como Michel Foucault,

Jacques Derrida, Stuart Hall, Judith Butler, entre outros. Ainda que nem todos estejam

vinculados à Queer Theory, especificamente, todos se fizeram necessários no

desenvolvimento de uma argumentação que dialoga com os seus pressupostos.

Com tudo isso e levando em conta as inúmeras exclusões por meio das quais o cânone

literário, em alguns casos, foi ou ainda é formado, esta dissertação não pretendeu, apenas e

simplesmente, exaltar a obra de Caio Fernando Abreu pela visibilidade que proporcionou à

temática homoerótica. Mais que isso, ela pretendeu apresentar, ou melhor, dizendo, situar sua

literatura politicamente, atentando para as nuances mais democráticas, o quanto possível, na

discussão dessa questão, na medida em que se encaram criticamente os diversos discursos

políticos em torno das identidades.

O corpus aqui analisado, os contos „Dama da Noite‟ e „O Rapaz mais triste do mundo‟

de Caio (2010), foi devidamente escolhido por apresentar, em suas narrativas, personagens

que estavam diretamente ligados às questões temáticas anteriormente citadas neste trabalho, e

por apresentarem uma discussão sobre questões relacionadas à identidade, gerando um

vínculo direto aos demais temas que, juntos, mostravam-se pertinentes às questões tratadas

pelas concepções dos estudos Queer, por meio de sua representação, de suas características,

mais do que pelas situações vivenciadas, pelos enredos em si.

Outra observação pertinente, que se deve levar em conta neste momento de conclusão

do trabalho, diz respeito ao foco teórico principal tratado na discussão das práticas

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homoeróticas exclusivamente masculinas. É preciso justificar que não se pretendeu aqui

invisibilizar o homoerotismo feminino, uma vez que ele também se faz presente em obras do

escritor, como na obra “Onde andará Dulce Veiga?”

Entretanto, vai além dos objetivos desta dissertação um aprofundamento maior nessa

questão, apesar de ser igualmente interessante sob o ponto de vista teórico, uma vez que os

personagens dos contos analisados apresentavam características de gênero masculino, embora

não se possa afirmar, ao certo, o gênero da personagem título „Dama da noite‟.

Logo, esta dissertação objetivou esclarecer e buscar respostas que justificassem as

questões ligadas à categoria identificatória, isso é, tal como é entendida atualmente,

levando a uma discussão sobre a identidade da linguagem e da lógica binária e hierarquizada

sobre as quais se fundamentam, tocante ainda às perspectivas dos pontos temáticos da

alteridade e do status quo, usando como base teórica, mais especificamente, a teoria queer.

Como foi possível observar, em ambos os contos aqui analisados, foram feitos recortes

e limitações em favor da afirmação e da coesão de grupos sociais que, com razão, almejavam

maior respeito e aceitabilidade ou, por outro lado, o direito a afirmar sua diferença em relação

ao resto da sociedade. Nas narrativas, entre seus principais objetivos, estava a

problematização da exclusão daqueles que não se encaixavam ao modelo normatizador e que,

com ele, não se identificavam. Eram esses os casos dos personagens centrais das narrativas.

Nesse sentido, recorreu-se a Queer Theory a fim de melhor descrever essa experiência

no tocante às noções de identidades, status quo e alteridade, todos usados como uma forma de

crítica da identidade e da forma política do peso imbuído naqueles que desempenham práticas

sexuais estigmatizadas.

A Queer Theory e os temas discorridos nesta dissertação não foram usados

simplesmente com intuito de analisar as razões da opressão das sexualidades marginalizadas e

buscar formas de superá-las, mas como forma de analisar e compreender particularidades

entre as obras ante a relação das identidades existentes, buscando romper o status quo do

binarismo sobre o qual se fundavam práticas normalizadoras que garantem sua reprodução e

perpetuação.

Do ponto de vista político, e também cultural, a Queer Theory se coloca como

subversiva, mas, ao mesmo tempo, efêmera. É o preço que impõe a instabilidade da

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linguagem que forma as identidades e permite a existência e, principalmente, a prática da

alteridade nas questões relacionadas, principalmente, nesse caso às questões de identidade de

gênero. É importante ressaltar que o corpus dos contos aqui analisados, como objetos de

comparação do universo literário do autor Caio Fernando Abreu, representam ainda, parte da

reprodução histórica em que foram escritos, enfatizando o contexto cultural à época em que

foram produzidos e a visão de mundo que eles repassaram ao público leitor sobre as

perspectivas do escritor.

Acredita-se, ainda, não ter esgotado, de forma alguma, a proposta de pesquisa aqui

apresentada, pois nenhum texto ou escrita sobre ele, segundo Júlia Kristeva (2005), está

totalmente finalizado. Assim, esta dissertação, parafraseando a autora citada, deve apenas ser

vista como parte de uma investigação, repleta de citações e com contribuição de outros textos

e autores, com intuito de colaborar e buscar incentivar novas pesquisas sejam elas sobre este

ou outros temas e autores.

Espera-se, portanto, de alguma forma ter contribuído com o enriquecimento dos

estudos sobre a Queer Theory e os temas a ela relacionados que, na visão do autor deste

trabalho dissertativo, ainda parecem estar relegados a um estado de pouca relevância dos

estudos literários, inclusive os relacionados à Literatura Comparada propriamente dita.

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