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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM
ROBSON TEOTÔNIO DA SILVA
A ‘PRISÃO SEM MUROS’ DA QUEER THEORY
NOS CONTOS ‘DAMA DA NOITE’ e ‘O RAPAZ MAIS TRISTE DO MUNDO’ DE
CAIO FERNANDO ABREU
Natal
Outubro, 2013
ROBSON TEOTÔNIO DA SILVA
A ‘PRISÃO SEM MUROS’ DA QUEER THEORY
NOS CONTOS ‘DAMA DA NOITE’ e ‘O RAPAZ MAIS TRISTE DO MUNDO’ DE
CAIO FERNANDO ABREU
Dissertação apresentada à Universidade
Federal do Rio Norte, como requisito para a
obtenção do título de Mestre do Programa de
Pós-Graduação em estudos da Linguagem
(Literatura Comparada – Área de
Concentração: Poéticas da Modernidade e da
Pós-Modernidade).
Orientadora: Profa. Dra. Tânia Maria de
Araújo Lima.
Natal
Outubro, 2013
A „PRISÃO SEM MUROS‟ DA QUEER THEORY
NOS CONTOS „DAMA DA NOITE‟ e „O RAPAZ MAIS TRISTE DO MUNDO‟ DE CAIO
FERNANDO ABREU
Mestrando: Robson Teotônio da Silva
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Profa. Dra. Tânia Maria de Araújo Lima
UFRN
_________________________________________
Prof. Dr. Lucrecio Araújo de Sá Júnior
UFRN
___________________________________________
Profa. Dra. Marta Aparecida Garcia Gonçalves
UFRN
__________________________________________
Profa. Dra. Renata Pimentel Teixeira
UFRPE
Defesa da Dissertação em 31/10/ 2013
Tolerar a existência do outro, e permitir que
ele seja diferente, ainda é muito pouco.
Quando se tolera, apenas se concede. E essa
não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de um sobre o outro.
Deveríamos criar uma relação entre as
pessoas, da qual estivessem excluídas a
tolerância e a intolerância.
José Saramago
Dedico este trabalho a todos os que, de alguma
forma, lutam pela inviolabilidade do direito à
igualdade, que todos têm, e que reconhecem,
na diversidade, a grandeza de cada indivíduo,
respeitando suas diferenças e aceitando-as,
com propósitos de construir um mundo
baseado na equidade de direitos para todos.
AGRADECIMENTOS
No longo trajeto de nossas vidas deparamos com muitas situações, às vezes boas, outras
vezes más. No entanto, todas elas nos proporcionam valiosas experiências que levamos
conosco por toda a nossa existência. É por meio dessas pessoas que aprendemos a
valorizar cada momento ou instante vividos, em lugares diversos e com pessoas especiais.
Entre essas pessoas especiais estão aquelas que convivem conosco desde o início de nossas
vidas, tornando-se fundamentais pela força, atenção e, principalmente, pelo amor dedicado;
outras, porém, encontramos a partir de um determinado momento, oferecendo
companheirismo e amizade e outras mais, por vários outros motivos, como o auxílio,
ensinamentos. Algumas se perdem no caminho, por motivo de viagens, ou por se sentirem
melhor distantes de nós, outros se aproximam, ou se reaproximam e, assim, vão-se criando
novos laços, movimentando, constante e naturalmente, o impressionante ciclo da vida.
Por tudo isso, mesmo os mais distantes, não deixo de considerar importantes, por
possibilitarem esse movimento contínuo, por permitirem e propiciarem sentido à vida, bem
como todos os que ainda se encontram próximos a mim. A todos, dedico as próximas
páginas deste trabalho e o esforço que desprendi para sua elaboração.
Principalmente, às minhas mães do coração e de toda a vida, Maria Boa Ventura de
Oliveira, a quem tanto amo, e à inesquecível Luiza Boa Ventura de Oliveira (in
memoriam).
A toda a minha família, pelo suporte e atenção em muitos momentos.
Ao professor Antônio Eduardo de Oliveira, pela honra de tê-lo como orientador no início
desta jornada com as importantes contribuições, a confiança e a colaboração.
À professora Tânia Maria de Araújo Lima, por aceitar dar continuidade ao trabalho
iniciado pelo professor Antônio Eduardo, contribuindo, de forma esplendorosa, para a
conclusão desta dissertação.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, por tudo o que
me acrescentaram.
Ao professor Lucrécio Araújo de Sá Júnior, pela ajuda prestimosa e disponibilidade para
participar da minha banca examinadora.
Às professoras, Dra. Marta Aparecida Garcia Gonçalves e Dra. Renata Pimentel Teixeira,
que aceitaram compor minha banca examinadora.
A todos os que, de uma forma ou de outra, sempre estiveram ao meu lado.
E, principalmente, a Deus, por permitir que esse sonho se tornasse possível.
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SILVA, Robson Teotônio da. „A prisão sem muros‟ da Queer Theory nos contos „Dama da
noite‟ e „O rapaz mais triste do mundo‟. Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada –
Poética da Modernidade e da Pós-Modernidade ao Programa de Pós-Graduação em Estudos
da linguagem - Departamento de Letras da UFRN. Rio Grande do Norte, 2013. 85 fls. Digitas.
RESUMO
Nesta dissertação, analisa-se sob uma perspectiva comparatista a relação entre os contos: „A
Dama da noite‟ e „O rapaz mais triste do mundo‟, de Caio Fernando Abreu, com o intuito de
revelar, analisar, estabelecer diálogos sígnicos com a Queer Theory. Buscou-se, acima de
tudo, fazer uma desleitura pautada na contextualidade discursiva da literatura pós-moderna.
Objetivou-se, assim, justificar e esclarecer as inúmeras questões que surgem nas relações
emblemáticas de personagens que estão presentes no texto e no contexto cultural, histórico e
social. Destaca-se, ainda, que os enunciados de valor comparativo identificados nas obras,
dadas às singularidades de cada uma delas, não possibilitam classificá-las, apenas, como
„figuras de retórica‟ das quais a comparação pode ser citada como exemplo. Nesse caso, elas
servem para nortear os caminhos que possam levar a compreender melhor o paralelismo
criado entre o mundo de valores e adjetivos binários sugeridos pela sociedade e tão bem
retratados nas ideias e textos de Caio Fernando Abreu.
Palavras-chave: Caio Fernando Abreu. Teoria Queer. Alteridade. Identidade de Gênero.
SILVA, Robson Teotônio da. „A prisão sem muros‟ da Queer Theory nos contos „Dama da
noite‟ e „O rapaz mais triste do mundo‟. Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada –
Poética da Modernidade e da Pós-Modernidade ao Programa de Pós-Graduação em Estudos
da linguagem - Departamento de Letras da UFRN. Rio Grande do Norte, 2013. 85 fls.
Digitadas.
ABSTRACT
In this dissertation, we analyze, in a comparative perspective, the link between the short
stories: „Dama da Noite‟ and „O Rapaz mais triste do mundo‟, of Caio Fernando Abreu. In
order to reveal, analyze and establish relevant dialogues with Queer Theory, it‟s important,
above all, make a misreading guided in the discursive contextuality of postmodern literature.
In order to justify and clarify the many issues that arises in the emblematic relationships of
characters that are present in the text and in the cultural context, historically and socially. It
also highlights the utterance comparative value identified in the works, given the peculiarities
of each one of them, not being possible to classify them as 'figures of language' with which
the comparison can be cited as an example. In this case, they serve to inspire the ways that
may lead us to a better understanding of the parallels created between a world of the binary
value and adjectives suggested by society and so well portrayed in the ideas and writings of
Caio Fernando Abreu.
Keywords: Caio Fernando Abreu. Queer Theory. Otherness. Gender Studies
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................
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1 A TEORIA QUEER EM CAIO FERNANDO ABREU............................................... 20
1.1 Pressupostos históricos e literários do final do Século XX........................................ 20
1.2 A reciprocidade do encontro dialógico inter-humano................................................. 24
1.3 Principais influências da crítica Pós-moderna/Pós-Estruturalista............................... 26
1.4 A teoria Queer............................................................................................................ 29
2 CAIO A OBRA COMO EXPERIÊNCIA COLETIVA REVELADA NA ESCRITA 36
2.1 Dama da Noite ............................................................................................................ 43
2.2 O rapaz mais triste do mundo......................................................................................
46
3 ABORDAGENS TEMÁTICAS DAS OBRAS............................................................. 51
3.1 Alteridade .................................................................................................................... 53
3.2 Estigmatização por não integração ao Status Quo....................................................... 58
3.3 Identidades de Gênero................................................................................................ 63
3.3.1 Sexualidade e reprodução........................................................................................ 66
3.3.2 Gênero x Sexualidade .............................................................................................
3.3.3 Os papeis de gênero nos contos: „Dama da noite‟ e „O rapaz mais triste
do mundo‟..............................................................................................................
69
69
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................
76
REFERÊNCIAS..................................................................................................... 86
INTRODUÇÃO
O Pós-estruturalismo, muitas vezes, é confundido com o Pós-modernismo, o que se
configura como um grande equívoco, uma vez que, não se pode, simplesmente, reduzi-lo a
um conjunto de pressupostos compartilhados, a um método, a uma teoria, ou até mesmo, a
uma escola ou época histórica.
No entanto, mesmo não se tratando de um período histórico específico, não se pode
deixar de afirmar que, de algum modo, o Pós-estruturalismo apresenta uma continuação no
tempo e, também, uma transformação e transição do paradigma do estruturalismo,
configurando-se, muito mais, como resposta filosófica ao que se diz científico.
Por esse motivo, talvez, possa parecer melhor referir-se ao Pós-estruturalismo como
um movimento de pensamento, um sistema teórico composto por diferentes formas de prática
crítica, marcado pela modificação constante e profunda de paradigmas, cuja análise textual
deixa de ser formal e estilística, para se tornar mais ampla e condicionada ao texto e ao
contexto cultural.
Nele, os processos de significação contínuos e centrais, sugeridos pela proposta
anterior do estruturalismo, dão lugar à flexibilidade e à incerteza. Com isso, não se poderia
mais admitir falar de sistematização, pois, o Pós-estruturalismo rejeita qualquer tipo de
exemplo nesse sentido. Daí então, ele passa a considerar o processo de significação,
basicamente, como indeterminado e instável, passando a questionar os axiomas e
abandonando a ênfase que antes os considerava imutáveis e verdadeiros.
Tudo isso acontece em virtude dos novos contornos delineados pelos movimentos
sociais, culturais e de caráter fortemente literário, bastante marcados pelo hibridismo estético
dos gêneros literários, que passaram a privilegiar as pesquisas informais, pautadas, quase
sempre, em conflitos existenciais, políticos e comportamentais.
Como resultados dessa nova tendência, surgiram novas técnicas de comunicação e de
transmissão poética e literária, cuja força retórica passou a residir, sobretudo, na necessidade
de individualização das condições de vida, do culto ao eu e às felicidades privadas e
subjetivas, acarretadas pela individualização da sociedade.
Nesse período, que também foi denominado de pós-moderno, pós-canônico, pós-
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colonial, pós-marginal ou „pós-orgia‟, como preferiu chamar Baudrillard, “reporta-se a um
momento, no qual se exaltavam todos os modelos de representação e de anti-representação”
(BAUDRILLARD, 1992, p.9).
O pós-estruturalismo tornou, então, o sujeito livre, autônomo e autocentrado,
focalizado num mundo social constituído pela linguagem, que deixava de ser mera
representação para tornar-se parte integrante e central da definição e constituição da sua
realidade cultural.
E não é outro o sentido que Foucault atribuiu ao conceito de homem moderno de
Baudelaire. Ele discorre em sua obra „As palavras e as coisas‟ que as ciências humanas são,
em parte, projeções das ideias observadas no final do século XIX, quando passam a ser
tratadas do ponto de vista da descontinuidade, porque pressupõem a ideia de representação.
A representação, porém, não é, simplesmente, um objeto para as
consciências humanas, mas, como se acaba de ver, o próprio campo das
ciências humanas, e em toda a sua extensão; ela é o soco geral dessa forma
de saber, aquilo que a torna possível (FOUCAULT, 1987, p. 472).
Segundo o pensador referido, o ser humano (sujeito) não parece mais estar preso à
história:
Uma vez que ele fala, trabalha e vive, acha-se, no seu próprio ser,
inteiramente misturado às histórias que não lhe são nem subordinadas nem
homogêneas. Pela fragmentação do espaço por onde se estendia continuam
ente o saber clássico, pelo enrolamento de cada domínio, assim libertado,
sobre o seu próprio devir, o homem que surge no início do século XIX é um
ser „desistoricizado‟ (FOUCAULT, 1987, p. 478-479).
Talvez por esse motivo, a partir desse período, os textos de tessitura literária tragam
em suas configurações traços de monólogos narrativos com características urbanas, resultado
dos controles sociais normativos que arrefeçam a sociedade ao culto do consumismo,
individualismo e hedonismo, práticas cada vez mais ligadas à noção da existência humana e
baseadas na felicidade fugaz da subjetividade, em que o homem deixa de ser um simples
reflexo da imagem criada sobre ele e passa a refletir a imagem que será criada a partir dele
mesmo.
No Brasil, o abandono ao paradigma estruturalista dos estudos literários se deu de
forma tardia, somente em meados dos anos da década de 1980, com as discussões literárias
feministas, partindo de uma teoria de gênero resultante de abordagens interdisciplinares da
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Linguística, da Filosofia, da Sociologia, da Psicologia e da Psicanálise, todas baseadas na
produção de mulheres escritoras.
Posterior a isso, os críticos passaram a tentar buscar identificar, sem sucesso, uma
escrita caracteristicamente feminina, que marcasse a diferença da escrita dominantemente
masculina. Diante da impossibilidade da concretização de tal objetivo, os estudos literários de
gênero passaram, desde então e simplesmente, a observar as mulheres, não apenas como
escritoras, mas como leitoras e, também, personagens de autores, tanto masculinos como
femininos.
Consequentemente, os pesquisadores viram-se obrigados a ampliar a produção dos
discursos literários, levando-os a uma constante e gradativa transdisciplinaridade em suas
reflexões, abordando novas questões, tais como: origem de classe, etnia, nacionalidade e
orientação sexual.
Assim, o propósito maior das questões literárias passou a ser a „desconstrução‟ da
tradição literária, principalmente, aquela relacionada ao modelo masculino, heteronormativo,
cristão, burguês e de cultura predominantemente branca.
Diante de tudo isso, a contribuição de Jacques Derrida mostrou-se de extrema
importância para a construção das bases dos pilares do pensamento pós-estruturalista, pois as
propostas sugeridas pelo desconstrucionismo foram bem recebidas durante os anos da década
de 1970, tornando-se um novo modelo de análise e interpretação dos discursos literários.
Essa nova perspectiva proposta por Derrida combinou-se, em 1977, com os ideais da
chamada „esquerda‟ norteamericana, na qual o modelo ideológico da desconstrução gerou
novas ondas de movimentos e de bases teóricas, que funcionaram como fortes golpes na
sociedade daquela época.
Nesse mesmo período, surgiu nos Estados Unidos, na década de 1990, a Queer
Theory, também enfatizada nos estudos feministas da pesquisadora Judith Butler, sobre a
crítica estadunidense e diretamente relacionada aos Estudos Culturais e ao Pós-estruturalismo
francês, tendo como principais referências teóricas as ideias dos franceses Foucault e, mais
uma vez, Derrida.
Contudo, no final dos anos sessenta, a expressão Queer passou a se constituir como
forma de autoidentificação, uma maneira de expressar categorias de gêneros caracterizadas
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pela perspectiva de oposição e contestação, com intuito de questionar, problematizar e
procurar discutir o universo cultural de um grupo excluído de uma sociedade centralizadora e
heteronormativa.
Dentre suas concepções, destacou-se, principalmente, a inexistência de identidades de
gêneros fixos, capazes de determinar o que cada pessoa é, em relação a sua „conduta‟ sexual,
surgindo, assim, o termo pós-teoria estruturalista denominado Queer Theory.
Desde então, a teoria Queer passou a contar com a adesão e produção de inúmeros
intelectuais engajados a este crescente movimento que, em meados da década de 1990,
passaram a usar o termo para descrever trabalhos fundamentados em novas propostas e
perspectivas teóricas, atenuando, de forma significativa, o impacto ao status quo que o
antecedia e sem romper com a política de identidade da teoria, assumindo, ainda, um caráter
unificador e assimilador, que buscava a aceitação e a integração das mais variadas posições
„excludentes‟ do sujeito na sociedade.
Com isso, a Queer Theory propõe, entre outras coisas, explicitar e analisar os
processos de constituição social e cultural, a partir de uma perspectiva comprometida com os
grupos socialmente estigmatizados, buscando, dessa forma, compreender a formação das
identidades socioculturais, aceitando a ambiguidade, a multiplicidade e as diferenças, como
formas de pensar a cultura, o conhecimento, o poder e, pricipalmente, as relações sociais.
Ademais, teórica e metodologicamente, os estudos referentes a Queer Theory
ganharam notoriedade e importância em vários estudos e pesquisas, entre eles a Literatura
que, cada vez mais, procurava relacionar-se ao meio social no qual estava inserida, por propor
um novo modelo para as novas propostas pós-estruturalistas, entre elas a da heterogeneidade
cultural, que busca entender as diferentes realidades sociais por meio das novas formas de
criações literárias, aceitando as diferenças de todas as ordens e exigindo de todos um pouco
mais de alteridade e respeito ao diferente.
Entende-se, portanto, que grande parte desse cenário deve-se à filosofia pós-
estruturalista que intensificou a coexistência de valores, caracterizando-se, principalmente,
pela ruptura com o tradicional, que passou a considerar o pensamento dicotômico, bastante
problemático, como tema a ser problematizado pelas várias áreas dos saberes.
Consequentemente, em virtude dos novos contornos delineados por diversos
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movimentos sociais de caráter fortemente libertário, outras expressões ideológicas se
destacaram neste período, podendo-se citar, entre elas, a „Contracultura‟.
Diante disso, tornou-se cada vez mais justificada a necessidade de compreender como
as relações de conflitos sociais, baseados nos princípios da Queer Theory, estavam, cada vez
mais, presentes em obras literárias definidas como nova tendência literária pós-estruturalista.
Assim, com as crescentes discussões e produções em torno de novas propostas
ideológicas e diante da diversidade e multiplicidade temática promulgada pelos estudos
Queer¸ mostra-se claro e de fundamental importância o objetivo de encarar a diferença, não
apenas como uma „categoria‟ a ser analisada, mas também, como um problema a ser
enfrentado na concretude das relações institucionais, sociais e culturais, pois, entendida a
diferença, ora como alteridade ora como divisão, surge como aspecto importante a ser
refletido, especialmente pelo sujeito que a enfrenta, a possibilidade de que é preciso estar
sensibilizado ou atingido por ela, para poder compreendê-la.
Com isso, é possível encontrar, na reflexão filosófica, a ideia de que, “na procura de
uma ordem para o mundo, o predicado (o que é dito sobre uma coisa) foi confundido com o
atributo (o que uma coisa tem uma parte do que a coisa é)” (EIZIRIK & COMERLATO,
1995, p. 97). Isso significa que, para definir-se algo, precisa-se saber o que ele representa para
poder, enfim, relacioná-lo a outras coisas, na tentativa de explicitar suas distinções. Essa
reflexão também vale para as pessoas e é, portanto, a base do recorte da diferença, que
organiza, limita lugares, compõe ordens lógicas e dá significados.
Diante disso, justifica-se a necessidade e o propósito de compreender como as relações
de conflitos culturais atreladas aos princípios da Queer Theory têm estado, cada vez mais,
presentes nas obras literárias, definidas como nova tendência literária pós-estruturalista,
mesmo sendo, muitas vezes, duramente criticadas por apresentarem temáticas relacionadas a
subjetividades de gêneros, aspectos relacionados a questões de alteridade, entre outros mais,
que fragmentam as estruturas da verdade das condutas morais e éticas.
No Brasil, provavelmente por influência da Literatura pós-64, que procurava repelir as
tensões políticas e de domínio sociocultural impostas pela ditadura militar e se caracterizava,
principalmente, pela forte crítica a toda e qualquer forma de autoritarismo, Caio Fernando
Abreu juntamente com Clarice Lispector, Hilda Hilst, Glauco Mattoso, Torquato Neto, João
Antônio, entre outros, integraram o conjunto de escritores brasileiros preocupados com a
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questão de uma suposta estética „alternativa‟, ou seja, anticonvencional, antiditadura militar, e
por que não dizer „marginal‟.
A memória da ditadura militar brasileira se impõe como um problema
fundamental para a crítica literária. Em um país em que as heranças
conservadoras são monumentais, e as dificuldades para esclarecer o passado
são consolidadas e reforçadas, o papel de escritores, cineastas, músicos,
artistas plásticos, atores e dançarinos pode corresponder a uma necessidade
histórica. Enquanto instituições e arquivos ainda encerram mistérios
fundamentais sobre o passado recente, o pensamento criativo pode procurar
modos de mediar o contato da sociedade consigo mesma, trazendo
consciência responsável a respeito do que ocorreu (GINZBURG, 2007,
p. 43-44).
Como indica Jaime Ginzburg, na citação supracitada, os traumas vivenciados pela
sociedade, em todas as esferas culturais, concentraram-se, em grande parte, no período
militar, entre 1964 e 1985. Talvez por esse motivo, possa-se, facilmente, explicar as
motivações que levaram esses autores a escrever, denunciar e publicar obras capazes de
expressar suas angústias, anseios e experiências em muitos relatos literários, buscando, assim,
legitimar a condição de seres livres e singulares, muitas vezes marginalizados pelo
autoritarismo político, social e cultural do período.
Evidentemente, toda essa postura antiditadura militar por eles adotada, foi também,
fortemente influenciada pelas ideias progressistas propostas pelo movimento denominado
„Contracultura‟1, já citado anteriormente que se baseava, sobretudo, em defesa da liberdade de
expressão, pois, o ambiente cultural dos anos sessenta, tanto nos países europeus como
americanos e também no Brasil estavam marcados por um sentimento de crise de valores.
Assim, preocupada com este mundo em constantes transformações, a Literatura vem
tentando suscitar um interesse cada vez mais crescente, na comunicação cultural e
transcultural de valores, reafirmando inúmeras e constantes contribuições às diferentes
manifestações que ocorreram no universo cultural e literário da História do Brasil.
Dentre as inúmeras contribuições observadas nesse contínuo processo de mutação
cultural, ressalta-se, em particular, a participação de Caio Fernando Abreu, com obras que se
desenvolveram além do convencionalismo de qualquer ordem, destacadas por apresentarem
1 Contracultura recebe a seguinte definição de Larry Wizniewsky: “Produção artística (música, cinema, teatro,
etc) proveniente de estruturas marginalizadas da cultura que sobreviviam, desde o final dos anos 40. A
Contracultura influenciou decisivamente a produção artística no Brasil a partir dos anos 80, principalmente o
Cinema Novo, o Tropicalismo e chamada literatura marginal. (WIZNIEWSKY, Larry)
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uma escrita densa, forte e impactante, mas também com o objetivo de se impor diante do
modo de produção de contos e romances convencionais. Caio poderia ser compreendido, em
decorrência de tudo isso, como um representante de inventores dessa nova forma narrativa no
Brasil.
Nas obras do escritor, a questão principal estava sempre centrada no homem (sujeito),
muito mais do que no período ou geração que ele poderia representar. A suposta estética
„alternativa‟, ou mesmo „marginal‟, estava atrelada à questão do „abordamento‟ das fronteiras
de gêneros, tão comum à produção ficcional do autor, chegando a provocar uma discussão
abrangente sobre a nova forma de gênero a ser apresentada.
Nesse sentido, Caio passa a ser visto como uma espécie de pioneiro dessa nova forma
de narrar e fazer literatura. Ele começa, então, a idealizar personagens que, posteriormente, a
crítica diria fazerem parte da chamada escrita „pesada‟, em razão de abordar situações em que
os personagens estavam envolvidos com drogas, prisões, relações homoafetivas, ou mesmo,
em razão de apresentarem comportamentos não-convencionais.
A paranóia descrita nos cenários urbanos das obras do autor, juntamente com a forma
como se davam as relações humanas, retratadas entre seus personagens pareciam ser o que ele
considerava como mais lúcido, a oferecer aos leitores que pensavam numa literatura
questionadora de um mundo injusto e cada vez mais comum.
Utilizando a prosa como principal procedimento narrativo para suas criações literárias,
Caio passou a evidenciar temáticas próprias, que retratavam as experiências vivenciadas por
uma sociedade oprimida e marcada pela repressão, violência e censura, cujos personagens
caracterizavam-se, quase sempre, pelo desencanto e insatisfação com a realidade contextual
da época, que os tornava clandestinos em uma estrutura sociocultural baseada na dominação,
e essa criação é apresentada, muitas vezes, sob a ótica voltada à interioridade.
O que talvez resulte desses contos e produções, além da considerável inovação da
utilização de personagens marginalizados, principalmente, os inseridos na realidade das
relações homoafetivas, é a proposta de provocar uma discussão cultural sobre um mundo
paralelo, muitas vezes escondido e ignorado pela sociedade, por representar o „segredo‟ de
algo que jamais poderia ser revelado em público, apesar de sempre existir.
Claramente, a postura de Caio objetivava, entre outras coisas, provocar o debate em
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torno do preconceito, em torno de qualquer rejeição à representação do „diferente‟. Essa era
uma marca dele, não apenas diante da vida, mas também nas obras de sua autoria. Sobre a
literatura brasileira, considerada por muitos, até então, comportada e imutável, o autor em
estudo não poupou críticas, nem muito menos se mostrou neutro diante da real situação em
que ela se encontrava e afirmou ao Jornal „Movimento‟:
Uma literatura rica é uma literatura multidirecionada. Afinal, o que é tal
„realidade brasileira‟? É mais a Selva Amazonas, os sertões de Minas, os
pantanais matogrossenses, a fronteira com a Argentina, as metrópoles
alphavilleanas, as favelas cariocas? Há lugar para o trabalho de João
Antônio, cobrindo uma faixa dessa realidade – mas há lugar, também, para a
pesquisa formal de Nélida Piñon; como há lugar para a poesia simples de
Adélia Prado e os requintes do concretismo. A necessidade é de uma maior
abertura, não só por parte da crítica e da imprensa, como também dos
próprios escritores, em relação aos outros [...] Como dizia minha avó, não se
deve pedir pêssegos às pitangueiras (ABREU, 1976, p. 27).
Pode-se perceber claramente, nas afirmações proferidas por Caio, a indignação do
autor quanto às críticas advindas daqueles que não conheciam suas obras, ou mesmo não se
identificavam com as temáticas nelas contidas. Para ele, a maneira encontrada para a
construção de uma nova sociedade estava diretamente vinculada à superação de valores
arcaicos, tradicionais e conservadores, que aprisionavam a maturidade cultural brasileira.
Esses valores, quase sempre estavam vinculados à cultura da língua européia, trazidos
por colonizadores que tornaram a produção cultural e literária da América Latina um
simulacro, com objetivo de assemelhar o seu modelo único e ideal, que era a tradição literária
eurocêntrica.
O que o escritor e crítico da literatura brasileira, Silviano Santiago (2004), caracterizou
como forma de criação literária atrelada a valores „entre-lugar‟2, uma forma de arte
colonizada, que é sempre remetida a um modelo superior e que não tem originalidade -
presente em suas raízes genuínas - reconhecida com o devido valor, porque mantém o
permanente compromisso de se aproximar do modelo eurocêntrico.
Evitar o bilinguismo significa evitar o pluralismo religioso e significa
também impor o poder colonialista. Na álgebra do conquistador, a unidade é
a única medida que conta. Um só Deus, um só Rei, uma só Língua: o
verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a verdadeira Língua. [...] Esse
renascimento colonialista - produto reprimido de uma outra Renascença, a
2 O entre-lugar é uma estratégia de resistência que incorpora o global e o local, que busca solidariedades
transnacionais através do comparativismo para apreender nosso hibridismo (SANTIAGO, 1982, 19), fruto de
quebras de fronteiras culturais.
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que se realizava concomitantemente na Europa - à medida que avança
apropria o espaço sócio-cultural no Novo Mundo e o inscreve, pela
conversão, no contexto da civilização ocidental, atribuindo-lhe ainda o
estatuto familiar e social do primogênito. A América transforma-se em
cópia, simulacro que se quer mais e mais semelhante ao original, quando sua
originalidade não se encontraria na cópia do modelo original, mas em sua
origem, apagada completamente pelos conquistadores (SANTIAGO, 2004,
p. 14)
Logo, não se pode negar, contudo, que o próprio Caio dava pêssegos às pitangueiras,
ao tentar um „entre-lugar‟ na literatura e na sociedade brasileira, comprometido com a
realidade sociocultural. Apesar de tudo, entender, aceitar e, muitas vezes, concordar com tudo
o que foi escrito por ele em suas obras pode parecer um desafio.
No entanto, uma vez aceita essa condição, pode-se desfazer qualquer pretensão
conclusiva sobre suas reais pretensões textuais, pois talvez se tenha como objetivo principal
diante das temáticas inovadoras presentes nos contos objetos deste estudo, aceitar sem
preconceitos as ambivalências culturais do universo no qual o autor se encontrava inserido.
Assim, este trabalho, no âmbito dos estudos comparados, propõe analisar as temáticas
da alteridade, status quo e identidade de gênero, existentes no corpus literário dos contos
„Dama da noite‟ e „O rapaz mais triste do mundo‟, ambos presentes na obra „Os dragões não
conhecem o paraíso‟ de autoria de Caio (2010), buscando, assim, atrelar tais temas à proposta
literária da Queer Theory, na tentativa de ressaltar a importância da Literatura, como forma de
ilustração e complexificação da discussão dos pressupostos analíticos das manifestações
sociais, culturais e políticas.
Com o propósito de entender os resultados ou as consequências da conjunção entre
literatura e sociedade como „estruturas‟ complementares, este trabalho buscou propor, a partir
da análise das obras supracitadas, uma explicação argumentativa que possa justificar a
proposição paralela, dialética e temática analisada pela forte concepção e ênfase à Queer
Theory, tendo em vista a possibilidade que permite aos estudos comparados investigar um
mesmo problema em contextos literários distintos, através da análise comparativa e
contrastiva.
Nesse âmbito, em conformidade com tais colocações, o objetivo primordial desta
dissertação é comparar e confrontar e, assim, poder perceber proximidades e distanciamentos
entre as singularidades dos contos do autor, buscando destacar a necessidade de, não apenas,
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reconhecer a existência de eventuais semelhanças e/ou diferenças, mas também, de percebê-
las dentro de um mesmo continnum, ou seja, a partir de elementos fundamentais que ligam as
propostas aos mesmos vieses criticoliterários.
Para facilitar essa tarefa, no que diz respeito à metodologia, este trabalho busca
pontuar os aportes teóricos comparatistas, com o objetivo de transmitir com mais clareza,
questões relevantes dentro da temática da alteridade, status quo e identidade de gênero,
levando-se em conta as particularidades de cada texto como corpus desta dissertação.
Para tanto, este trabalho foi dividido em três capítulos. No primeiro, foram traçados os
pressupostos históricos e literários, na tentativa de contextualizar a literatura a partir do final
do século XX até as últimas décadas, fazendo uma apresentação das principais correntes
teóricas, marcadas pelo hibridismo estético dos novos gêneros literários, em oposição à
questão do cânone. Ainda nele, procurou-se elucidar a importância da Queer Theory no
processo dos estudos literários contemporâneos, privilegiando conceitos como transculturação
e multiculturalismo, enfatizados, principalmente, pela maneira de expressar categorias de
gêneros, caracterizadas pela perspectiva de oposição e contestação dos valores
heteronormativos.
Nesse sentido, cabe citar autores como: Judith Butler, Ella Shohat, Susan Sontag,
Stuart Hall, Fredric Jameson, Terry Eagleton entre outros, todos, críticos literários e ativistas
preocupados em enfocar a problemática questão pós-estruturalista de heterogeneidade cultural
nas relações sociais contemporâneas.
No segundo capítulo, foram apresentadas considerações importantes sobre Caio
Fernando Abreu, na tentativa de apresentar elementos presentes em suas obras, que possam
caracterizá-las dentro do contexto em que foram escritas, buscando, assim, comprovar a
legitimação de alguns valores hegemônicos do processo de construção e formação do texto,
com a contextualização histórica e social relacionada às características das obras. Tentou-se,
ainda, ressaltar alguns aspectos peculiares, não apenas à biografia de Caio Fernando Abreu,
mas também, ao contexto social no qual ele estava inserido, dando continuidade à
compreensão dos fatos que contribuíram para produção de suas obras, apresentando-se a
síntese das obras objeto de análise deste trabalho, produzidas como forma de elucidar
aspectos particulares presentes em ambos os contos „Dama da Noite‟ e „O Rapaz mais triste
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do mundo‟, acompanhada da descrição dos personagens e tomando como referência
características que revelam e identificam as particularidades de cada um deles.
Em se tratando do terceiro e último capítulo, foram apontadas as relações de
paralelismo temático entre os contos, recorrendo a uma abordagem comparativa de elementos
contidos em ambos os textos. E para finalizar, foram feitas algumas considerações referentes
aos capítulos anteriores e análises de símbolos usados por Caio Fernando Abreu, na
caracterização significativa de suas obras, que contou, ainda, com o liame comparativo
temático da alteridade, do status quo e da identidade de gêneros existentes nos dois contos.
1 A TEORIA QUEER EM CAIO FERNANDO ABREU
1.1 Pressupostos históricos e literários do final do Século XX
Apesar de muitos teóricos afirmarem não existir um marco inicial para o período pós-
modernista, por não aceitarem que, definitivamente, foram abandonados os ideais do
pensamento moderno, ainda assim, pode-se dizer que houve certa ruptura com os laços que
prendiam, de alguma forma, a realidade atual a ele. Essa ruptura talvez não tenha mesmo um
marco específico, como muitos queriam, no entanto, ela se torna muito mais latente na
sociedade pós-guerra que, pouco a pouco, passou a buscar algo, a partir do fortalecimento de
sua identidade.
O homem, do final do século XX até o início deste século, mudou consideravelmente
o modo de pensar e ver o mundo, passando a reconhecer e a aceitar as variadas formas de
representações socioculturais presentes na sociedade da qual faz parte. Atualmente, como
resultado desse grande esforço, pode-se dizer que ele se tornou um ser de identidade híbrida,
vivendo sob o signo da pós-modernidade.
O sujeito pós-moderno, conceptualizado não tem uma identidade fixa,
essencial ou permanente. A identidade torna-se uma „celebração móvel‟:
formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam
(HALL, 2005, 12, 13).
Dentro dessa nova sociedade sugerida pelos ideais pós-modenos, o homem deixou de
fazer parte de um organismo „uno‟ e passou a ser projetado de forma fragmentada,
transformando-se em um híbrido cultural e sendo obrigado a assumir várias identidades
dentro de um ambiente totalmente provisório e variável, estando sujeito a formações e
transformações contínuas em relação às formas em que os sistemas culturais o
condicionavam.
Talvez, por esse motivo, seja possível afirmar que o movimento da pós-modernidade,
realmente tenha surgido das rupturas com a modernidade, que provocaram mudanças de
perspectivas nas artes, na literatura e, principalmente, nos valores socioculturais.
Tudo isso, somado ao simulacro, à erotização, à ausência de valores e ao
individualismo, considerados marcas de transformações do pensamento ocidental que levaram
o homem a começar a questionar sobre os valores, dentre os quais está a noção de centro e as
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culturas homogêneas, fazendo com que ele, considerado agora pós-moderno, pudesse adotar
um „simulacro do individualismo‟, pelo qual lhe fosse possível transitar entre dois pólos
distintos, o do „eu interior‟, que procura saber quem ele é e o exterior, relacionado à sociedade
à qual ele pertencia e que o fazia interagir com o meio no qual se encontrava inserido.
Consequentemente, em virtude disso e dos inúmeros questionamentos feitos ao
pensamento moderno/estruturalista e às culturas homogêneas, cresceu significativamente o
movimento „excêntrico‟ e a valorização dos grupos denominados „marginais‟. A partir daí, os
silenciados pelo cânone, como minorias étnicas e de gêneros, começam a questionar suas
posições em relação ao poder normatizador.
No final do século XX, em virtude desses novos contornos delineados pelo movimento
social de caráter fortemente literário, influenciados também pelo movimento da
„Contracultura‟, bastante marcado pelo hibridismo estético dos gêneros literários,
impulsionados principalmente, pela concepção de identidade, podem-se perceber algumas
transformações por influência desse descentramento, pois, em meados desse mesmo século,
partes dos escritos literários passaram a ser reabilitados sob a acepção de uma convenção
discursiva baseada na necessidade de responder a uma „expectativa‟, daquilo que o leitor
gostaria de ler.
O termo hibridismo, anteriormente empregado, passou a sugerir a ideia de uma
„modalidade mista‟, um tipo de transgressão aos modelos clássicos existentes, tornando
possível o surgimento de novos modelos e formas literárias que passariam a considerar as
pesquisas informais, baseadas em conflitos existenciais, políticos e comportamentais na
imitação da realidade sociocultural vivenciada naquele período.
Essa mudança de eixo, verificada principalmente em relação ao cânone, ultrapassou as
fronteiras das transformações essenciais do campo cultural, passando a refletir fortemente na
literatura. Isso de deu em função da fragmentação, também no âmbito social, que provocou
um descentramento do sujeito exigindo uma interpenetração dos discursos.
Com isso, a perspectiva da multiplicidade de pontos de vista, passou a desarticular-se
das estruturas binárias mutuamente excludentes, o sujeito agora deixava de ser, por
excelência, parte do próprio discurso e passava a representar vozes minoritárias deixadas até
então à margem do processo de construção cultural.
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As tendências multiculturalistas, intensificadas a partir da década de 1980, passaram a
promover o descentramento cultural, uma forma de desafio para os ideais das democracias
liberais, fortemente apoiadas nos princípios da igualdade, que buscavam respostas às
inúmeras e crescentes reivindicações, baseadas na etnia, na religião, na sexualidade, no
gênero ou em qualquer área de identificação cultural.
A questão do multiculturalismo extremamente complexa, entre as lutas pela afirmação
do direito à diferença e os processos de globalização, aumentaram as desigualdades e
excluíram cada vez mais aqueles que de várias maneiras já estavam à margem da sociedade.
Começou, então, a existir a preocupação com a valorização dos produtos culturais locais e sua
relação com as demais culturas, sem influências hegemônicas.
Sob a influência de uma nova concepção pós-moderna, surgiram novas técnicas de
comunicação e de transmissão poética e literária, cuja força retórica residia, sobretudo, na
necessidade da individualização das condições de vida, do culto ao „eu‟ e às felicidades
privadas e subjetivas, acarretadas pela individualização da sociedade. Disso resultou um
sentimento de „descontração‟, de autonomia e de abertura para as existências individuais. Foi
então que, a partir do final da década de 1970, a noção de pós-modernidade fez sua entrada no
universo intelectual, buscando qualificar a diversidade cultural das sociedades, antes ignorada.
Percebeu-se, com isso, que se estava, portanto de uma sociedade mais diversa, mais
facultativa, cada vez mais heterogênea. A partir daí, o neologismo pós-moderno passou a
salientar uma mudança de direção, uma reorganização em profundidade com o modo de
funcionamento social e cultural da sociedade. Iniciava-se, então, uma rápida expansão do
consumo e da comunicação de massa; o enfraquecimento das normas autoritárias e
disciplinares; e um surto de individualização.
O momento parecia sugerir a emancipação dos indivíduos em face dos papéis sociais
e das autoridades institucionais tradicionais, promovendo expectativas em torno de normas
sociais mais flexíveis, mais diversas e da ampliação de uma gama de opções pessoais.
Então, o ideal pós-moderno pareceu mostrar-se cada vez mais, envolto numa nova
forma de sedução, ligada à individualização das condições de vida e, nesse momento, o alívio
parecia substituído pelo fardo, o hedonismo recuava ante os temores e, com os traços de um
composto paradoxal de frivolidade e ansiedade, de euforia e vulnerabilidade desenhava-se a
imagem e a perspectiva de uma nova sociedade.
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Provavelmente, tenha sido por esses motivos que os textos de tessitura literária,
eminentemente pós-modernos, como os exemplos que foram objetos desse estudo, tragam em
suas configurações traços de um monólogo narrativo de características urbanas, resultado dos
controles sociais normativos que lançaram a sociedade ao culto do consumo, do
individualismo e do hedonismo, práticas cada vez mais ligadas à noção da existência humana
e baseadas na felicidade fugaz da subjetividade.
Por esta e outras razões, a crise de identidade do homem pós-moderno parece,
portanto, estar diretamente ligada à submissão a determinadas identidades impostas pelas
noções homogêneas de normatização cultural. E, independente de quaisquer que sejam as
razões, o resultado disto se vê na possibilidade de o homem ser visto como produto da
internacionalização das relações econômicas, inseridas em um amplo processo fragmentário,
no qual ele não consegue mais sentir-se representado no ambiente em que se encontra
inserido.
Assim, na constante necessidade de sentir-se representado, ele se volta para si,
buscando encontrar-se na perspectiva de conseguir estabelecer a relação de interação entre ele
(sujeito) e o meio do qual faz parte, como será observado nos exemplos dos personagens das
obras aqui analisadas, estando, cada um deles, devidamente inserido em seus contextos
literários específicos, podendo fomentar a discussão sobre a temática da alteridade, a ser
abordada no terceiro capítulo.
Logo, torna-se impossível, também, deixar de observar sob o viés da subjetividade, a
noção de homem, nas perspectivas do pensamento pós-moderno que parecem estar ligadas,
principalmente, na relação „sujeito/objeto‟, cujo conhecimento é resultado da razão e
consciência do indivíduo sobre sua própria existência, na qual a linguagem é usada como
instrumento e meio de expressar ideias, funcionando como essência de tudo.
Desse modo, a subjetividade passa a funcionar como forma de caracterizar a
possibilidade de o indivíduo solitário refletir a respeito de uma experiência vivida
restritamente à sua individualidade. Contudo, contrária a essa ideia e na perspectiva da
intersubjetividade, o conhecimento não depende mais, única e exclusivamente, da consciência
de existência de cada indivíduo, mas das outras pessoas.
Como bem disse Hegel (1957, p. 152), a intersubjetividade consiste em mostrar que
uma consciência só chega a ser propriamente consciência através do reconhecimento de outra
24
consciência, ou seja, “eu só sou consciente da minha própria existência, a partir do momento
em que o outro consegue me ver como ser existente.” Desse modo, pode-se afirmar que,
segundo o pensamento hegeliano, “buscamos em nós mesmos o outro e os outros procuram
em nós a eles mesmos”, estabelecendo uma dependência entre ambos, parecendo que o sujeito
se completa no outro e, não apenas, em si mesmo.
Não se pode, porém, precipitar as conclusões, com base, exclusivamente, na linha do
pensamento hegeliano, pois não parece plenamente aceitável a ideia de que, para existir é
imprescindível e necessária a aceitação do outro, visto que os motivos são bem claros, uma
vez que valores de transcendência não podem ser substituídos por valores da simples
aceitação, pois a simultaneidade de tendências e a consequente falta de referências externas e
internas mais sólidas não podem gerar um vazio de identificações e de ideais capazes de
cumprir a função de integração ou reintegração, que deveria sustentar uma consistência, para
si e para o social, da autoimagem ou processo de autoconsciência.
Se assim fosse, seria indispensável aceitar que as consequências desse processo são
atitudes ligadas à desilusão, adotada pelo sujeito, que não considera mais o mundo como sua
morada, fazendo da realidade existente, uma instância normativa da realidade ideal, ou, não
podendo mudar, permaneceria imerso na ilusão, na simulação, característica maior do „eu‟
isolado, narcísico, infantil e excluído, caracterizando, nesse caso, os investimentos nos objetos
ou nos outros que se caracterizariam pelas idealizações ou aceitação por parte do outro. Dessa
forma, não haveria luta, confronto, alteridade.
1.2 A reciprocidade do encontro dialógico inter-humano
Como bem parece, a ideia agora não é mais fruto de projeção da mente, mas do uso da
palavra, numa determinada comunidade, em práticas coletivas, em que a relação interpessoal
ou intersubjetiva passa a ser produto da linguagem, vista agora não mais como um simples
instrumento, mas como uma prática linguística de uso comum.
Assim, a verdade não é subjetiva, pois não se forma nenhuma essência e não se
considera o agente conhecedor como sujeito (sub jectum = o que jaz dentro), cuja mente filtra
essências, e sim, como um ser vivente ou existente na linguagem, que só existe na ação
praticada em comunidade. Ou seja, não existe um eu isolado, mas somente o eu de uma
pessoa ou de outra. Isso parece definir a atitude do homem face ao mundo e ao outro. Os
25
princípios da existência humana, então, passam a ser monológico e/ou dialógico,
respectivamente do „eu-isso‟ e/ou „eu-tu‟.
A relação dialógica „eu-tu‟ resguarda a alteridade e a individualidade dos
participantes. A presença passa a ser justamente o momento de reciprocidade. O „tu‟ se dá na
presença e não, na representação de um „eu‟. A relação é uma ação imediata. Quando o outro
é considerado um objeto do „meu‟ uso, torna-se um isso. Existe, então, uma relação
monológica, eu-isso.
O filósofo e escritor judeu de origem austríaca, Martin Buber conduz a uma reflexão
clara sobre a forma como as pessoas se relacionam com os outros e com o mundo. Em sua
obra „Eu e Tu‟, Buber tipifica as maneiras de o homem se relacionar com o homem e com o
mundo em duas atitudes: Eu-tu e Eu-Isso. Segundo o autor citado, o homem é um ser de
relação, visto que a relação lhe é essencial e o fundamento de sua existência. Para ele, “o
mundo é múltiplo para o homem e as atitudes que este pode tomar diante do mundo também
são múltiplas” (BUBER, 2001, p. 57).
A atitude é uma ação fundamental ou ontológica em decorrência da palavra
pronunciada. O Eu de uma pessoa é diferente do Eu da outra. Essa diferença não significa que
existem dois „Eus‟, mas que existem duas maneiras de o homem se relacionar com o mundo e
com o seus semelhantes, que se sucedem continuamente.
É importante destacar que o pensamento de Buber é norteado pela sua percepção de
transcendência. Sendo assim, para Buber (op.cit.), a ausência de um diálogo com o
transcendente, que atribua sentido e conduza a vida do homem, provoca a irresponsabilidade
para com o outro.
A reciprocidade é fundamental na relação Eu-Tu. Dela origina-se a responsabilidade
como resposta ao apelo dialógico. Nesse sentido, a responsabilidade ultrapassa o nível da
moral, para atingir um nível maior, sendo o nome ético da reciprocidade. Aqui o homem se
encontra aberto para voltar-se para o outro ente, aceitando-o como um Tu.
A relação Eu-Tu é primordial, pois é nela que o ser do homem surge na existência
autêntica no evento do encontro dialógico inter-humano, na responsabilidade de reciprocidade
que caracteriza todo o encontro. É em meio a essa relação que o homem encontra a esperança
de ser reconhecido e de reconhecer o outro como pessoa dotada de humanidade.
26
1.3 Principais influências da crítica Pós-moderna/Pós-Estruturalista
A partir dos inúmeros e diferentes princípios advindos das proposta ideológicas
pós-estruturalistas, surgiram diversas correntes de pensamento que buscaram abranger todo o
vasto campo das discussões envolvendo o complexo universo das relações entre o homem e o
mundo e com os que fazem parte dele, sobretudo, aqueles preocupados com refletir
criticamente sobre os processos de produção de conhecimento e suas respectivas implicações
para a vida humana.
Assim, celebrando a diferença, o dissenso, a não-conformação, a contestação, o
pensamento crítico, o pluralismo e a crítica pós-moderna/pós-estruturalista começaram a
investigar as formas pelas quais a linguagem, os discursos, as identidades, as representações,
as narrativas, os conceitos e os paradigmas construíram verdadeiras estruturas sociais (de
valores, crenças, ideias, saberes e comportamento) capazes de determinar o que se deve julgar
como realidade, verdade, ou conhecimento, uma vez que esses nunca foram naturalmente
dados.
Por essa razão, talvez, a única exigência presente nessas novas propostas de
pensamento deveria ser pautada em perspectivas plurais, que compartilhassem o compromisso
com a reflexão crítica, tida como fundamental para o resgate da responsabilidade humana
sobre um mundo que, visivelmente, estava sendo construído socialmente a partir das
diferenças.
Consequentemente, conscientes da importância na reprodução das assimetrias e
desigualdades, sempre defendendo a ideia de que teoria e prática, não necessariamente nesta
ordem, estavam diretamente relacionadas, autores pós-modernos/pós-estruturalistas, tais como
Michel Foucault, Roland Barthes, Jacques Derrida, Julia Kristeva e outros contribuíram com
o processo de ruptura que o pensamento moderno possibilitou, ao problematizar os
significados pela valorização da instabilidade e da fragilidade dos processos de produção de
sentidos.
Isso porque, eles se propuseram a questionar duramente as chamadas teorias
dominantes para apontar como elas criavam situações em que a vida humana deixa de ser
valorizada para ser tratada como sendo mais uma das muitas „normas‟ estabelecidas por uma
camada dominante da sociedade. Por essa razão, seguramente pode-se afirmar que a
exploração da crítica pós-moderna/pós-estruturalista inicia-se com a influência desses
27
pensadores, a começar pelo filósofo francês Michel Foucault, pensador de difícil classificação
e rotulagem que, devido ao vasto campo de interesses, acabaria reconhecido, sobretudo, como
um grande crítico da modernidade. Entre as diversas intenções dele, estaria querer entender as
condições históricas específicas da produção do conhecimento, interesse que não residia
simplesmente no conteúdo do conhecimento por si só, e sim em compreender a relação
orgânica entre os mecanismos de (re) produção e as práticas discursivas que o legitimavam.
Para ele, a produção do saber científico, ao constituir e consolidar as fronteiras de sua
área de conhecimento funcionaria como um discurso que busca se universalizar para receber
legitimação. Visto que, ao se tornar dominante, o discurso cria e fortalece posições
privilegiadas em relação à autorização do próprio saber, o que lhe confere o poder de criar
realidades, sujeitos e identidades, privilegiando uns e excluindo outros.
Segundo Foucault (1987), aqueles no topo das estruturas de poder procuram sempre
usar o saber para perpetuar a ordem que lhes assegura posições privilegiadas, enquanto
aqueles que aceitam os discursos da ordem estariam consentindo em ser dominados, pois
rejeitam a possibilidade de mudança e abdicam do potencial de transformação.
Assim como Foucault (1987), o também francês Derrida (2004) é outro pensador que
inspirou a crítica pós-moderna/pós-estruturalista, em especial na caracterização da realidade
como discurso em sua proposta de desconstrução. A tradição do pensamento filosófico
ocidental repousa sobre o recurso às dicotomias totalmente arbitrárias, visto que inexiste
correspondência natural entre os elementos que as compõem. Para ele, os significados não
seriam dados pela essência daquilo que se busca significar, mas por processos de
diferenciação entre os elementos formadores das dicotomias.
Outros escritores importantes neste período de inovadoras propostas do pensamento
são Roland Barthes (1982; 1993) e Julia Kristeva (2005, 1994), ambos enfatizavam a
intertextualidade do discurso, afirmando que o mundo não era algo pronto e acabado. Para
eles, a realidade, por ser produto da ação humana, seria um processo contínuo e aberto,
suscetível de idas e vindas, releituras e interpretações novas, o que impediria entendê-la
simplesmente como um produto fechado, uno, acabado e fixo.
Foi então que, inspiradas nos ideais de renovação do pensamento crítico e originadas
de uma forma ou de outra, a partir dos Estudos Culturais, novas teorias pós-modernas
passaram a priorizar as investigações sobre a construção social de identidades, na tentativa de
28
classificá-las ou compreendê-las. Assim, em meados do século XX, quando problemáticas
surgidas fora da academia e, muitas vezes, em confronto com a dinâmica institucional sobre
discussões de refutação das distinções hierárquicas entre cultura erudita e popular, passaram a
enfatizar a experiência dos grupos sociais historicamente subalternizados e explorados.
Muitos foram os movimentos pleiteando sua identificação e representação dentro do
quadro cultural das reflexões de propostas de aceitabilidade social; as demandas feministas,
de imigrantes de ex-colônias, de movimentos negros e homossexuais passaram a impulsionar
empreendimentos científicos que começaram a questionar formas canônicas de compreender
as desigualdades sociais. Logo, estes movimentos conseguiram impulsionar e renovar os
Estudos Culturais, gerando subdivisões focadas em formas particulares de opressão, dentre as
quais podemos destacar os Estudos Pós-Coloniais e a Teoria Queer.
Com relação aos estudos Queer, Michael Warner (2000; 2003) observou, no início da
década de 1990, que o multiculturalismo quase sempre pressupunha uma organização étnica
da identidade, que representaria os estudos relacionados às etnias, às classes e aos gêneros
representando diferentes formas de opressão, por essa razão, a existência de movimentos
sociais identitários, contrários às estruturas sociais hegemônicas que criam sujeitos como
„normais‟ e „naturais‟ por meio da produção de outros de comportamentos „estranhos‟ ou
„patológicos‟.
A proposta queer mantém sua resistência aos regimes da suposta „normalidade‟, mas
reconhece a necessidade de uma epistemologia do objeto, baseada em investigações
interseccionais. Assim, a afinidade com os Estudos Pós-Coloniais é retomada por meio da
desnaturalização das narrativas de origem, das ideias de lar e nação. Por esse e outros
motivos, a Queer Theory foi usada como base teórica de investigação deste trabalho, com o
desafio de compreender e associar conceitos à tarefa de comparar temáticas pós-modernas das
obras aqui analisadas, atendendo ao objetivo específico de tentar explicar como implicações de
ordens cultural e social anunciam o conhecimento necessário, para fazer frente aos processos
normalizadores que justificam o uso das diferenças como marcadores de hierarquia e opressão,
presentes e claramente destacados nos contos „Dama da Noite‟ e „O rapaz mais triste do mundo‟,
de Caio Fernando Abreu.
29
1.4 A Teoria Queer
O termo Queer, que dentre os muitos significados pode ser traduzido por estranho ou
excêntrico, foi também, por muito tempo, usado como adjetivo pejorativo dirigido a gays e
lésbicas, uma forma de insulto, que sinalizava como ato de discriminação àqueles a quem era
dirigido. Como afirma Mário César Lugarinho (2001, p. 36), “tenta dar conta nitidamente do
excêntrico em termo de gêneros à medida que parte do princípio de que a orientação sexual
difere da identidade sexual e da sua própria sexualidade biológica”. Guacira Lopes Louro em
seu „Um corpo estranho‟ conceitua o termo queer como:
Queer é tudo isso: estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da
sexualidade desviante – homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis,
drags. É o excêntrico que não deseja ser „integrado‟ e muito menos
„tolerado‟. Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o
quer como referência; um jeito de pensar e ser que desafia as normas
regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambigüidade, do
„entre lugares‟, do indecidível. Queer é um corpo estranho, que incomoda,
perturba, provoca e fascina. (LOURO, 2004, p. 7-8)
Contudo, no final dos anos sessenta, a expressão Queer passou a se constituir como
forma de autoidentificação, uma maneira de expressar categorias de gêneros caracterizados,
principalmente, pela perspectiva de oposição e contestação à existência de identidades de
gêneros fixos, que tentavam, e, ainda tentam determinar quem e o que somos em relação à
sexualidade.
No final dos anos 1960, os armários abertos e estudiosos de gays e lésbicas
que havia até então permanecido em silêncio a respeito de sua sexualidade
ou a presença da temática homossexual na literatura começaram a falar.
(RYAN, 1999, p.115).
Consequentemente, em função disso, e também, como resultado dos Estudos
Culturais e do Pós-estuturalismo francês, na década de 1990, nos Estados Unidos, surgia o
termo pós-estruturalista literário denominado Queer Theory, cujo objetivo consistia em
analisar, problematizar, transformar e motivar ações de uma minoria excluída da sociedade
centralizadora e de base heteronomativa, propondo-se a romper com os espaços fixos e finitos
da identidade, partindo do princípio de que a sexualidade não possui classificação baseada em
aspectos exclusivamente binários (homem/mulher, macho/fêmea).
Assim, em sintonia com outras mais teorias pós-estruturalistas, a Queer Theory passou
a questionar os binômios de identidade, o caráter unitário da subjetividade e, principalmente,
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influenciada por ideias liberais referentes à autonomia do indivíduo, iniciou a busca por
condições favoráveis para expor a discussão da produção literária e cultual de grupos sociais
tradicionalmente marginalizados e não reconhecidos pela cultura social dominante.
Isso, juntamente com as novas concepções resultado da ruptura com o estruturalismo,
trouxe ideias liberais referentes ao indivíduo e ao conceito de comunidade, baseadas no
princípio da uniformidade, exigindo, cada vez mais, a valorização de pontos antes não
previstos pela tradição crítica literária, como as identidades étnicas e religiosas, ou as
nacionalidades pós-coloniais, vindo a valorizar a realidade e os anseios de estudos locais e de
grupos sociais específicos.
Logo, as demandas feministas, de imigrantes de ex-colônias, de movimentos negros e
homossexuais impulsionariam empreendimentos científicos que colocaram em xeque as
formas canônicas de compreender as desigualdades sociais. Assim, em um movimento que os
impulsionou e renovou, os Estudos Culturais geraram subdivisões focadas em formas
particulares de opressão. Segundo Preciado (2007, p.383):
A crítica pós-colonial e queer respondem, em certo sentido, a
impossibilidade de o sujeito subalterno articular sua própria posição dentro
da análise da história do marxismo clássico. O lócus da construção da
subjetividade política parece ter-se deslocado das categorias tradicionais de
classe, trabalho e da divisão sexual do trabalho, para outras constelações
transversais como podem ser o corpo, a sexualidade, a raça, mas também a
nacionalidade, a língua, o estilo ou, inclusive, a linguagem.
Ainda que a Queer Theory costume ser associada ao estudo do desejo e da
sexualidade, nos últimos anos intensificaram-se as formas de estudos nesta linha, apontando
para a articulação de múltiplas diferenças nas práticas sociais. Daí interpretações
contemporâneas do queer, como uma resposta crítica a qualquer forma de imposição
sociocultural e modelos heteronormativos de identidade, vêm sendo, cada vez mais, aceitas e
associadas a esta teoria, resistindo à “americanização branca, hetero-gay e colonial do
mundo” (PRECIADO, 2007, p. 400).
Diante de tudo isso, a política queer passou a contar com adesão e produção de
inúmeros intelectuais engajados a esse inovador e crescente movimento, que em meados dos
anos noventa passaram a usar o termo para descrever trabalhos baseados em novas propostas
e perspectivas teóricas, atenuando de forma significativa o impacto ao status quo que o
antecedia, e sem romper com a política de identidade; assumindo um caráter unificador e
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assimilador que buscava a aceitação e a integração das mais variadas posições „excludentes‟
do sujeito na sociedade.
Com isso, os estudos queer passaram a constituir um corpus vasto e variado de
empreendimentos dispersos em várias áreas do conhecimento, tais como: Estudos Culturais,
Sociologia da Sexualidade, Antropologia Social, Educação, Filosofia, entre outras.
Atualmente, a Teoria queer vai além das teorias binárias; baseadas, exclusivamente,
na oposição biológica de determinação dos genêros entre homens e mulheres, uma vez que os
novos estudos passaram a englobar todos os demais grupos sociais, as chamadas minorias.
Pode-se, até, afirmar que ela, atualmente, propõe, entre outras coisas, explicitar e analisar os
processos de constituição social a partir de uma perspectiva comprometida com os grupos
socialmente estigmatizados, buscando compreender a formação de suas identidades sociais,
aceitando a ambiguidade, a multipliciade e as diferenças, como formas de pensar a cultura, o
conhecimento, o poder e, pricipalmente, as relações sociais.
Ademais, teórica e metodologicamente, os estudos queer surgiram basicamente de
várias investigações e pesquisas, em diversas áreas do conhecimento, entre elas na Literatura
que, cada vez mais, procura relacionar-se ao meio social no qual ela está inserida, como forma
de sugestão para novos modelos, baseados na proposta pós-estruturalista, de heterogeneidade
cultural, que busca entender as diferentes realidades sociais através das novas formas de
criações literárias.
Logo, perante esta proposta problemática envolvendo as discussões epistemológicas
sobre as questões queer, muitas foram as contribuições de importantes pensadores como,
Michel Foucault e Jacques Derrida, pois ambos discutiram e desmistificaram a hegemonia
heteronormativa, preceito herdado de uma visão patriarcal, centrada no princípio da produção
e reprodução.
Quando nascemos, chegamos a um cenário inventado previamente. Aqueles
que não se encaixam nas categorias estabelecidas são demonizados ou
tratados medicamente. Os teóricos queer, seguindo o trabalho de Foucault,
tentam questionar esta demonização, normalização e tratamento. A chave do
ativismo queer reside em puxar ao avesso as práticas de normalização
(MORRIS, 2005, p. 41).
O primeiro, em sua obra „História da Sexualidade‟ procurou desmitificar a ideia de
proibição a discussões envolvendo a sexualidade, tema antes exclusivo dos discursos
32
científicos de aspectos normatizadores, como se pode observar em uma de suas afirmações,
no qual ele diz: "Fala prolixamente de seu próprio silêncio, obstina-se em detalhar o que não
diz; denuncia os poderes que exerce e promete libertar-se das leis que a fazem funcionar."
(FOUCAULT, 2005, p.14)
O texto aqui apresentado deixa clara a intenção de Foucault (op. cit.) de expor o tema
da sexualidade, antes restrito e proferido apenas nos discursos de conhecimento científico e,
estabelecido pela produção dos saberes dominantes, em que as identidades de gêneros eram
estabelecidas pelos aspectos da „natureza‟ humana, limitadas e classificadas, na lógica binária
do masculino e feminino, para passar a ser objeto de inúmeras possibilidades de reatualização
de significado, ligada a uma lógica de relação social, própria e independente, livre de qualquer
tipo de estigma normatizador.
Quanto à contribuição de Derrida (2004) para a Teoria Queer, esta pode ser resumida
pelo seu conceito de suplementaridade e sua perspectiva metodológica de desconstrução. A
suplementaridade, por estabelecer as diferenças como condição indispensável para a noção de
significado e organização por meio de uma dinâmica de presença e ausência, ou seja, o que
parece estar fora de um sistema já está dentro dele, pela própria ideia de „contrariedade‟. Em
outras palavras, a ideia de „ser‟ está diretamente relacionada à de „não ser‟ e, nesse caso, o
que é defendido como natural também pode ser considerado histórico.
Com base nesse princípio, para Derrida (op. cit.) a heterossexualidade precisa da
homossexualidade para sua própria definição, de forma que um homem homofóbico pode ser
definido, apenas, em oposição àquilo que ele não é: um homem gay. Esse procedimento
analítico mostra o implícito dicotômico, que seria denominado de desconstrução, estando
sempre, dentro de uma lógica binária e toda vez que se tenta quebrá-la, termina-se por
reescrevê-la em suas próprias bases. De forma simplificada, a ideia central da desconstrução
de Derrida é revelar o que não está revelado, ou seja, ler o texto de outra maneira.
Tanto as identidades de gênero quanto as identidades sexuais estão sempre em
construção, em transformação contínua, articulando-se com experiências cotidianas
atravessadas por influências e práticas ligadas ao pertencimento étnico, social, de classe, raça,
e outros. As reflexões de Derrida (op. cit.) muito se aproximam das considerações feitas sobre
a ideia de caracterização de concepção queer apresentadas por Foucault (2005, p.30), que diz:
33
Não se deve fazer divisão binária entre o que se diz e o que não se diz; é
preciso tentar determinar as diferentes maneiras de não dizer, como são
distribuídos os que podem e não podem falar que tipo de discurso é
autorizado ou que forma de descrição é dirigida a uns e outros. Não existe
um só, mas muitos silêncios e são parte integrante das estratégias que
apóiam e atravessam os discursos
A partir das importantes contribuições anteriormente apresentadas, outros teóricos
como Eve K. Sedgwick (2009), David M. Halperin (1989), Judith Butler (2001) e Michael
Warner (2003) começaram a empreender análises sociais que retomavam a proposta de
Foucault, ao estudar a sexualidade como um dispositivo histórico do poder, que marca as
sociedades ocidentais modernas e se caracteriza pela inserção do sexo em sistemas de unidade
e regulação social.
Nas palavras do sociólogo Steven Seidman (2002), o queer seria o estudo "daqueles
conhecimentos e daquelas práticas sociais que organizam a sociedade como um todo,
sexualizando - heterossexualizando ou homossexualizando - corpos, desejos atos, identidades,
relações sociais, conhecimentos, cultura e instituições sociais" (SEIDMAN, 2002, p.13).
Logo, pode-se afirmar que os estudos queer sublinham a centralidade dos mecanismos
sociais relacionados à operação do binarismo (presença e ausência), em todas as suas esferas
como forma de organização da vida social contemporânea, dando mais atenção crítica a uma
política do conhecimento e da diferença. A Teoria Queer e, consequentemente, os Estudos
pós-estruturalistas são, portanto, resultados de teorias consideradas subalternas, que fazem
uma crítica dos discursos hegemônicos na cultura ocidental.3
A origem remonta às mudanças profundas de meados das século XX, quando
problemáticas surgidas fora da Academia e, muitas vezes, em confronto com a dinâmica
institucional que passara a reger as disciplinas, foram reconhecidas pelos Estudos Culturais
britânicos. Foram eles os primeiros a refutarem distinções hierárquicas que distinguiam
cultura erudita e popular e a proporem investigações sobre a experiência dos grupos sociais
historicamente subalternizados e explorados (MATTELART e NEVEU, 2004).
3 As teorias subalternas é resultado da terminologia criada por Antonio Gramsci para referir-se àqueles cuja voz
não é audível no sistema capitalista. Sua forma contemporânea foi popularizada a partir de um famoso artigo
de Gayatri Spivak intitulado Can the Subaltern Speak? (1985) que designava grupos sociais submetidos ao
domínio de uma potência estrangeira, cuja subordinação se mantinha mesmo após a descolonização.
Atualmente, com a disseminação do debate pós-colonial, passou a designar qualquer grupo que, submetido a
outro, adota uma postura hegemônica.
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Desse modo, os „Estudos subalternos‟ em oposição a certa corrente ortodoxa que se
tornava hegemônica, ao mesmo tempo em que deixava de responder às demandas de grupos
sociais de sua época, inicialmente operários, aos quais se somaram os imigrantes, negros,
mulheres e homossexuais, chegaram a impulsionar projetos científicos que passaram a
questionar formas canônicas de compreender as desigualdades sociais.
Logo, o diálogo entre a teoria queer e as propostas de organização social passaram a
apontar para uma síntese de enfoques teóricos originados dentro, mas também fora, da
normatização social tradicional do mundo ocidental, numa tentativa de articular teorias que
incidem sobre vários níveis da ordem social: o micro (relativo a agentes individuais e suas
interações), o médio (grupos, associações e movimentos sociais) e, em especial, o nível macro
ligado aos processos de diferenciação, estratificação e integração social. A atenção queer aos
processos de diferenciação e hierarquização passou a possibilitar a renovação de discussões
clássicas sobre a dinâmica da mudança e da reprodução das relações sociais.
Nesse sentido, a Queer Theory passou a mostrar que identidades são inscritas através
de experiências culturalmente construídas das relações sociais, de forma simplificada e
puramente explicativa, tendo as categorias de raça, cultura e sexualidade como eixo formador
e simultâneo de identidades hegemônicas e subalternas.
Desse modo, ela não retira mais o impulso crítico de uma oposição ou refutação social,
mas de uma área particular e/ou específica de investigação, apresentada por uma proposta
desafiadora, o desenvolvimento de uma análise da diferença constituída, mantida ou
dissipada. Trata-se então, de um objetivo científico que teria, também, implicações políticas,
pois permitiria compreender e contestar os processos sociais que utilizam as diferenças como
marcadores da hierarquia e da opressão.
No Brasil, segundo Mário César Lugarinho (2001), o abandono do paradigma
estruturalista dos estudos literários só se deu em meados dos anos da década de 1980, quando
se começou a discutir a produção literária feminina a partir de uma teoria de gêneros.
Foi justamente o jornalista Caio Fernando Abreu (2010), juntamente com outros
escritores brasileiros preocupados com a questão de uma suposta estética „alternativa‟, ou
seja, anticonvencional, impulsionados pela Literatura pós-64, caracterizada principalmente,
pela forte crítica a toda e qualquer forma de autoritarismo, que procuraram repelir as tensões
políticas e de domínio sociocultural impostas pela ditadura militar, de modo que,
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estilisticamente, diante da nova realidade enfrentada pela Literatura e pelas demais práticas
artísticas, tornou-se necessário criar um novo traçado estético compatível com o novo
contexto social, político e cultural.
Assim, a Queer Theory mostrou que identidades são inscritas através de experiências
culturalmente construídas em relações sociais e que o êxito de investigações que buscam
articular essas esferas dependerá do desenvolvimento de metodologias que, não apenas,
permitam estudar cada um dos componentes dos processos sociais de constituição das
identidades, mas, sobretudo, analisem as interdependências entre as categorias, de forma que
não resultem na soma de opressões.
2 CAIO ‘A OBRA COMO EXPERIÊNCIA COLETIVA REVELADA NA ESCRITA’
Antecipadamente, vale salientar, que não se pretende fazer aqui qualquer tipo de
descrição biográfica sobre Caio Fernando Abreu (1948-1996). No entanto, considera-se
importante ressaltar alguns aspectos peculiares, não apenas à sua biografia, mas também, ao
contexto social no qual ele estava inserido, uma vez que as obras desse autor destacam bem o
caráter testemunhal em relação à sua geração, que teve como pano de fundo uma sociedade que
vivenciou períodos políticos conturbados, de repressão ditatorial, de surgimento de revoltas
populares e de constantes manifestações culturais, entre elas, o advento da Contracultura que, por
definição, buscava altercar valores centrais vigentes instituídos na cultura ocidental, tendo
influenciado bastante as produções de Caio (2010).
Grande parte do que se fala a respeito da contracultura no Brasil está diretamente
relacionado ao sentido crítico articulado por Caio (op. cit.), quanto à objetividade analítica.
Para ele, portanto, o mundo moderno estaria caracterizado pela intensificação de um extremo
paroxismo das situações de choque que terminam por produzir um novo tipo de percepção.
No caso específico da contracultura isso, consequentemente, resultaria na elaboração de dois
processos distintos, que Benjamin (1974) chama de erlebnis (experiência não transmissível de
forma integral) e erfahrung (experiência compartilhável). Em relação à esfera da erfahrung,
essas impressões que o psiquismo acumula na memória poderiam ser transmitidas
integralmente, de geração para geração, por via de um narrador integrado em seu saber,
exemplo do que ocorreria nas produções do autor aqui estudado.
Contudo, toda a experiência, por mais solipsista que possa parecer, é, ao mesmo
tempo, ativa e passiva, constituindo a unidade do dado e do interpretável. Com isso, o que se
poderia chamar aqui de contracultura compõe-se de uma comunicação, invenção, transmissão,
descoberta, produção e criação.
É importante ressaltar que, quando ao se aludir ao caráter testemunhal presente nos textos
literários de Caio (op. cit.), faz-se referência à representação do conjunto, correspondente aos
modelos sociais, que serviram para preencher vazios críticos e para conectar elementos da
realidade, antecipando criticamente resultados. Diante disso, pode-se, facilmente, perceber que,
na grande maioria dos textos do escritor, a contracultura é tematizada, partindo sempre de
duas vertentes: a da experiência coletiva, passível de transmissão e a da experiência
individual, apenas transmissível de forma fragmentada. A cada uma, corresponde um tipo de
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narrador que, ou adere à essência do que é narrado, ou representa esteticamente a
impossibilidade de transmissão de sua experiência.
O outro fator a ser considerado importante diz respeito à questão da historicidade
(referência a um tempo cronológico específico) que é, também, bastante forte nas narrativas
literárias do escritor gaúcho em estudo, pois todas parecem estar centradas nas influências
provocadas pelas mudanças geradas pela história e na recomposição de sua trajetória. Isso se
deu porque a literatura brasileira, no início dos anos da década de 1970, passou a ser vítima da
violência, da censura militar e política, parecendo estar muito mais preocupada em relatar o
irrelatável, não de forma propriamente explícita, pois estava muito mais vinculada
diretamente a uma estética contracultural, na qual se logrou instituir, nas estruturas de sua
representação literária, uma crítica a seus limites e carências, marcados pela transgressão,
bastante presente, não apenas nas obras do autor citado, mas também, em outros escritores
brasileiros, despertando, cada vez mais, a curiosidade e o interesse dos leitores para criações
literárias, ditas „alternativas‟, como afirma Cândido (2008, p. 19):
A legitimação da pluralidade acarreta o nascimento de textos indefiníveis:
[...] autobiografias com tonalidades e técnica de romance; narrativas que são
cenas de teatro; textos feitos com a jurisposição de recortes, documentos,
lembranças, reflexões de toda sorte.
Em termos de representação crítica, Caio (2010) parecia não pretender dizer a verdade
dos fatos, mas compartilhar suas narrativas como forma de denunciar uma realidade histórica,
baseada em suas convicções. Em clave representativa, a contracultura teria sido, então, um
modelo estético pautado na negação da própria cultura, um tipo de agressão ou confronto ao
status quo, na tentativa de provocar uma forma de reação, que não veio a ser concretizada.
Foi exatamente pelo pioneirismo em colocar sua própria experiência existencial
como ponte para o fluxo diacrônico, que Caio (op. cit.) se instituiu como autotestemunho da
trajetória contracultural, antecipando as causas de sua insolvência, mas também de sua
„escrevivência‟.4
Como muitos bem sabem, Caio é autor de uma produção literária que tem como
gênero predominante o conto, embora tenha escrito romances e peças teatrais. A diversidade e
a intertextualidade de suas obras aliam-se à plurissignificação dos textos contemporâneos que
4 Termo utilizado pela escritora negra contemporânea Conceição Evaristo, usado para ressignificar o eu-lírico da
poesia e os personagem na prosa.
38
propõem uma reflexão acerca do ser, trabalhando com a introspecção dos personagens e com
um cenário de constantes transformações nas relações sociais e condutas morais.
No contexto literário brasileiro, Caio integra o conjunto de escritores que abordam
ficções de aspectos urbanos, que fazem parte de uma literatura produzida em um período
determinado, marcado pelos acontecimentos das décadas de sessenta e setenta, conhecidas
pelos críticos por Literatura pós-64 que se caracterizava, principalmente, pela crítica a toda e
qualquer forma de autoritarismo, poder, domínio e as consequentes desigualdades
socioculturais.
Dentre suas principais temáticas está presente a relação dos personagens com as
circunstâncias vivenciadas nas grandes cidades, centradas, principalmente, na vertente
intimista e do isolamento social consequente, provocando atitudes introspectivas que, muitas
vezes, propiciam o monólogo interior e o fluxo de consciência.
Numa primeira aproximação às obras do autor, percebe-se uma vasta variedade de
temas e assuntos que se revelam em inúmeras possibilidades de pesquisa e investigação
passíveis de serem abordadas. A constatação de que estudos sobre as obras de Caio Fernando
Abreu ainda estão por ser feitos, de certo modo, colabora com a quantidade de temas a serem
investigados, favorecendo, de algum modo, a possibilidade de um recorte que, ainda que
privilegie um olhar específico ou já investigado, pode dar continuidade a outras pesquisas,
sem prejuízo de outros temas também significativos.
Com isso, parece ficar claro o intuito deste trabalho de tentar vincular as questões
levantadas por Caio (2010) em suas obras, principalmente as presentes nas contos do corpus
aqui analisado, com o objetivo de relacioná-los ao retrato do homem contemporâneo.
Em contato com as obras desse extraordinário escritor gaúcho, podem-se, claramente,
perceber marcas de um diálogo intersubjetivo dos personagens, favorecendo, de algum modo,
a possibilidade de um recorte do próprio universo pessoal do autor.
Embora possa parecer impossível apontar marcas que evidenciem a funcionalidade
prática de suas narrativas e a problemática relação entre a elaboração estética e a sua própria
preocupação ética, marcada pelo fluxo de consciência e erigida com uma postura intimista,
baseada e experienciada em sua própria história de vida, traduzida por um descontentamento
39
com as engrenagens que determinavam as relações sociais, as obras de Caio fundem-se e
dispersam-se no ponto exato em que enquadram os personagens ao mundo real.
Os contos, predominantemente escritos em primeira pessoa, oferecem ao narrador uma
posição privilegiada que evolui do entusiasmo inicial à escritura fortemente contestadora, que
se estrutura numa forma de dizer e articular experiências existenciais singulares que
funcionam como marca engajada em torno das representações da sensibilidade e dos vazios
deixados pela contracultura.
Assim, partindo da análise contextual de um mundo ocidental globalizado, em
processo de constantes e profundas transformações, tanto na esfera dos valores morais quanto
comportamentais, traços proeminentes da literatura pós-moderna, torna-se possível entender
as ideias e práticas contraculturais ou transgressivas, refletidas nas obras Caio Fernando
Abreu no âmbito de suas produções literárias.
Nelas são refletidas as intenção de registrar as inúmeras transformações por ele
vivenciadas, no auge dos traços proeminentes da influência da literatura pós-moderna, período
em que a presença do cânone era visto como um obstáculo a ser enfrentado por essa geração
da qual ele fazia parte, inclinada a ideais de uma nova consciência, baseada na contestação
radical e na ruptura de valores tradicionais.
Nesse sentido, Caio facilmente, poderia ser citado como pioneiro na forma de narrar
com sua linguagem particular e detalhista, esse novo universo literário marginalizado e,
muitas vezes, esquecido pelos cânones literários, trazendo, de forma clara e explícita, o modo
de apreensão da realidade em paralelo com a ficção, introduzindo uma nova condição, a de
autor „consciente‟, cujas obras são relatos da vida, partindo do „real‟ para o „ficcional‟.
Por esse motivo, as considerações supracitadas levam ao entendimento, com mais
propriedade, do conceito de autoficção, como sendo a constituição híbrida de aspectos
biográficos, influenciando o universo ficcional da literatura. No caso particular de Caio,
grande parte de sua inspiração é fruto da bagagem de suas próprias experiências pessoais.
A literatura não representa a realidade, mas a inventa de maneira que haja uma
vertente para a ficção e dela se reconheça o processo simbólico das relações humanas. Dessa
forma, o autor atribui vida a um narrador que será protótipo de boa parte da poética
introspectiva, cujo narrador captura os momentos reais em que, através de digressões,
40
coaduna um cenário de ocorrências que estruturam um enredo entrecortado por vozes e
situações distintas, buscando retratar identidades imersas em conflitos construídos a partir das
suas inaptidões no lidar com os vários „eus‟. A função desse narrador, atordoado ante a
sensação de impotência do narrar, é constituir as formas de recuperar sua totalidade,
instituindo esteticamente o caos em busca da ordem.
Em quase todos os contos, o escritor aborda temas do tipo: o estranhamento, a solidão,
a dor e o sentimento de marginalização, todos mergulhados no espaço da pós-modernidade,
suas narrativas são representadas por seres degradados pelas drogas, paranóias, esquizofrenia,
desencanto, muita procura e muito desamparo, resultado de uma improvável confluência
cultural, proveniente do underground e do movimento hippie das experiências de uma
geração que sobrevivia reprimida e suscetível a um conjunto de forças que, ao unir-se e atuar
simultaneamente, davam lugar a um movimento que passou a ser conhecido como
contracultura.
A cidade é o cenário preferido para os personagens de Caio. Por se tratarem de
narrativas nas quais a temática social predomina, o espaço urbano serve como palco para a
interioridade das figuras humanas no universo das relações sociais e culturais. Por isso, a
literatura de tema urbano tende a aprofundar a análise da vida interior das personagens.
Assim, sua narrativa pode ser classificada como psicológica, porque enfatiza o prisma
intimista sob o qual os eventos externos são percebidos e estes, embora não deixem de ter
sentidos sociais, misturam-se aos problemas de uma subjetividade que se lança à angústia de
questionar tais eventos.
Quanto aos aspectos biográficos do autor, eles parecem presentes nas obras por
apresentarem aspirações e fracassos nas relações humanas, analisados sob os aspectos mais
profundos de suas consequencias. Nelas, a escrita é feita num estilo bem pessoal,
apresentando uma visão dramática, misturada ao lado cômico do mundo moderno, cujas
experiências são compatíveis com as criações, mas não como simples transcrição do
cotidiano, mas como relato de autoficção.
Caio tenta explicar, criticar, ou mesmo, resolver por meio de suas obras, as tensões
entre a realidade interior e realidade superficial satirizando a culpa liberal, o isolamento e a
monotonia da vida urbana moderna. Outro traço importante, pelo menos a respeito das obras
analisadas neste trabalho, diz respeito à classificação das obras como sendo produções de
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conteúdo considerado marginal, termo bastante usado para categorizar obras pós-modernas
voltadas à questão do sujeito e do valor subjetivo, que apresentavam multiplicidade temática
na poesia e na literatura. Nesse momento, o sujeito pós-moderno representava um elemento de
destaque e de representação de um todo, dentro da complexa estrutura que compõe a
sociedade. A intimidade pessoal passou a ser um valor que mudou de figura, passando a ser
objeto de interesse „universal‟.
Descrever a intimidade do homem comum, de forma poética ou literária passou a ser
um estilo característico do pós-modernismo, em que todos passam a ter sua representatividade
no mundo literário, com suas particularidades, caras, cores, variedades, marcadas pela
diversidade e, principalmente, com relação às questões de gênero em oposição à poesia e à
literatura heteronormativa, racial: etnopoesia, pós-colonial, pessoal, a autorreferência.
Em suas obras, Caio (op. cit.) nitidamente apresenta um sentimento melancólico,
resultado da perplexidade subjacente à percepção de sua própria experiência, revelada pela
impotência coletiva frente a um sistema social autoritário marcado pelo controle e pela
repressão social.
Nos casos específicos das obras fruto da análise desta dissertação, os campos literários
tematizados pelos conflitos vividos pelos personagens são marcados (apresentados no
panorama caracterizado) por questões referentes à relação do homem com o ambiente
circundante e consigo mesmo, abordando, entre outras questões, a diversidade, a
aceitabilidade social, a vertente existencial através da temática da solidão, da inadaptação do
sujeito ao próprio mundo, temas pós-modernistas de ficção configurada em ações narrativas
da vida urbana, outro importante traço característico das obras de Caio (2010).
Antes de tudo, julga-se importante ressaltar o cuidado de Caio em relação à escolha de
títulos, subtítulos, notas e epígrafes. Todos parecem representar importantes objetos de estudo
para a compreensão integral de suas narrativas. A própria ideia surgida com o advento da pós-
modernidade liga os temas ao contexto sociocultural do autor, como o declínio das grandes
teorias explicativas; a decadência dos valores e das instituições; a fragmentação; o
multiculturalismo e a identidade.
A obra de Caio (2010), além de tratar desses e de muitos outros temas, é também,
muito ilustrativa em relação a esse período. Um exemplo claro disso está presente na sua obra
„Os dragões não conhecem o paraíso’ (2010), livro no qual estão presentes os contos objeto
42
deste estudo, que foi publicado quase ao final da década de 1980, bem no auge do niilismo
pós-moderno, contendo, em sua introdução, a afirmação do próprio autor quanto à
possibilidade de entender a obra como um:
Um romance desmontável, onde essas 13 peças talvez possam completar-se,
esclarecer-se, ampliar-se ou remeter-se de muitas maneiras umas às outras,
para formarem uma espécie de todo. Aparentemente fragmentado, mas de
algum modo – suponho – completo (ABREU, 2010, p. 8).
Com isso, mais uma vez, pôde-se constatar que Caio conseguiu ilustrar, de forma
clara, o mundo pós-moderno ao conceber um livro que, apesar de fragmentado, tenta oferecer
uma visão sobre o real que, de algum modo, apresente-se completa. E é, também, através de
análises fragmentárias que o presente trabalho pretende oferecer uma visão – se não integral,
ao menos vasta – dos contos „Dama da noite‟ e „O Rapaz mais triste do mundo‟.
Em diversos contos, incluindo os dois aqui analisados, Caio cria uma ambientação
dicotômica, alocando o narrador-personagem em um espaço de solidão, angústia e
desconforto. Tais contos se desenvolvem através do desejo de chegar a um espaço outro –
idealizado como fonte de libertação e abrigo – e, dessa forma, abolir o sentimento de
exclusão. É importante sinalizar que a chegada a esse plano ideal, geralmente, é permeada
pela busca do „outro‟, ou seja, pelo sentimento da alteridade.
Essas narrativas, normalmente, se encerram com a frustração da busca e, portanto,
com a permanência na situação de solidão e tristeza, agravada ainda, pela desilusão com a
possibilidade de fuga. Dentro desse contexto de aparências em „Os dragões não conhecem o
paraíso‟, é gerada uma série de reflexões sobre o tema, na tentativa de rever os valores que
oscilam entre essência e aparência. Essa é uma obra marcada por preocupações com a
condição do homem face ao tempo.
Assim, como já foi citado anteriormente, Caio incita o leitor na primeira nota do livro:
Se o leitor quiser, este pode ser um livro de contos. Um livro com 13
histórias independentes, girando sempre em torno de um mesmo tema: amor.
Amor e sexo, amor e morte, amor e abandono, amor e alegria, amor e
memória, amor e medo, amor e loucura. Mas se o leitor também quiser, este
pode ser uma espécie de romance-móbile. Um romance desmontável, onde
essas 13 peças talvez possam completar-se, esclarecer-se, ampliar-se ou
remeter-se de muitas maneiras umas às outras, para formarem uma espécie
de todo. Aparentemente fragmentado, mas de algum modo – suponho –
completo (ABREU, 2010, p.8).
43
A literatura do autor aqui analisado, segundo ele mesmo, teria uma espécie de função
social,5 ou seja, buscar compreender mais claramente, por meio de suas obras, um pouco das
aflições e questionamentos existenciais. As temáticas por ele abordadas são exemplos claros,
de como suas narrativas estão vinculadas a um contexto histórico tão característico da
realidade existencial discutida no período da pós-modernidade, chamado também de pós-
modernismo, que pode ser reafirmado pelas condições de apreensão dos objetos culturais a
que o homem é submetido.
Com isso, parece ficar claro o intuito deste trabalho de tentar vincular as questões
levantadas por Caio (2010), em suas obras, principalmente as presentes nos contos analisados,
com o objetivo de relacioná-los ao retrato do homem contemporâneo. A seguir, apresenta-se
uma breve síntese dos contos para que possa entender melhor o que ora foi dito neste capítulo.
2.1 ‘Dama da Noite’
O conto „Dama da Noite‟, escrito por Caio Fernando Abreu, presente no livro „Os
Dragões não conhecem o paraíso‟ é mais uma, dentre as obras do autor, marcada por
elementos literários com abordagem de temática pós-moderna e, nesse caso especificamente,
com algumas características da Queer Theory.
Uma das particularidades do conto, que merece destaque, está na forma de narrar da
personagem que nomeia a si mesma como „Dama da noite‟. A forma livre e sincera de
expressar os pensamentos, emoções e angústias, usando um diálogo entre ela mesma e um
interlocutor a quem se dirige, chamando-o de boy ou „garotão‟, evidenciada por perguntas e
respostas implícitas no texto a ele dirigido, fortemente caracteriza-se pela narrativa na forma
de monólogo, que parece contribuir bastante na construção da própria personagem.
A história se passa em um bar, cenário que, para a protagonista, parece ser o lugar,
destinado aos preteridos pela sociedade e ambiente de socialização aos marginalizados,
"Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito roda-
gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar" (ABREU, 2010, p.
109).
5 Numa entrevista publicada em O Estado de São Paulo, Caio Fernando Abreu busca argumentos sobre o valor
da literatura no ambiente contemporâneo. In: PIVA (2001, p. 17).
44
Na fala da personagem-título constantemente percebem-se traços de solidão e angústia
e, claramente visualiza-se o desconforto de não se fazer parte do universo social dos demais e
de ser acometida pelo sentimento da exclusão. No fluxo de consciência, relatado no decorrer
do texto, a Dama da Noite expressa todos os seus sentimentos, com o intuito de talvez revelar
a intenção do autor em criticar anacronicamente as relações entre sujeito e sociedade.
Em diversas passagens do conto, o uso da metáfora „roda‟, é usada frequentemente, na
tentativa de responder afirmativamente a uma interpelação e de estabelecer um sentido de
pertencimento a um grupo social de referência, sugerida pela personagem ao interlocutor,
como podemos constatar no fragmento seguinte:
A roda? Não sei se é você que escolhe, não. Olha bem pra mim – tenho cara
de quem escolheu alguma coisa na vida? Quando dei por mim, todo já tinha
decorado a tal palavrinha-chave e tava a mil, seu lugarzinho seguro, rodando
na roda. Menos eu, menos eu (ABREU, 2010, p. 112).
Como se pode ver, a fala da personagem título reproduz uma crítica em forma de
desabafo, desencadeada pela afirmação de que os controles sociais normativos arrefeceram e
que o individualismo e hedonismo continuaram conduzindo as existências individuais e as
felicidades privadas, excluindo aqueles que não fazem parte de um grupo seleto, discorrendo
sobre estar inserido nos padrões sociais estabelecidos ou estar fora deles.
Na frase: “a vida rolando por aí, feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui
parada, pateta, sentada no bar”, parece retratar com voracidade o sentimento que a acomete.
Nesse momento, a personagem expressa todo sentimento em relação ao fato de fazer parte da
sociedade e de ser descartável e/ou excluída das relações sociais.
Talvez isso venha justificar as várias afirmações antagônicas expressas pela
personagem principal, em diversas passagens da obra em que as mudanças de opiniões sobre
um mesmo assunto, parecem conduzi-la pelo conjunto de normas, regras e princípios
variáveis que regulam o comportamento, em conformidade com os interesses dos outros e do
resto da sociedade.
Exemplos dessa variação ideológica podem ser facilmente observados, nas passagens
em que, a princípio, ela parece acreditar e, em seguida, reafirma de forma contraditória a
afirmação anterior, como se pode perceber, claramente, na seguinte passagem:
45
Aprendi que, se eu der detalhe, você vai sacar que tenho grana, e se eu tenho
grana você vai querer foder comigo só porque tenho grana. [...] Me diz
quanto custa? Me diz que eu pago. Pago bebida, comida, dormida. E pago
foda também, se for preciso. [...] Falso, eu tenho uns amigos, sim. Fodidos
que nem eu. Prefiro não andar com eles, me fazem mal. Gente da minha
idade, mesmo tipo de. Ia dizer problema, puro hábito: não tem problema.
Você sabe, um saco. Que nem espelho: eu olho pra cara fodida deles e tá lá
escrita a minha própria cara fodida, também, igualzinha à cara deles
(ABREU, 2010, p. 110-112).
Isso talvez se deva à convicção do julgamento de que a ideia do „certo‟ ou „ideal‟ está
no fato de que normas se apóiam no peso da opinião social, na convicção interior de cada um
e nas suas finalidades, cujo fator determinante e decisivo que orienta a conduta dos homens é,
em última análise, o interesse social e, numa sociedade de classes, os interesses de classes. A
opinião social de determinada classe ou povo sanciona alguns atos como sendo bons e morais,
condenando outros como maus e imorais.
Consciente ou inconscientemente, os homens sempre são, portanto, o fruto das
condições da vida imposta pela sociedade, isso é, dos conceitos por ela determinados como
„certos‟ e „errados‟, „bons‟ ou „maus‟ e, nesse caso específico do conto de Caio (2010), a
Dama da noite, por sua vez, relaciona-se de maneira passiva no contexto sociohistórico e
cultural no qual se insere, prendendo-se a uma geração que ficou no passado e lamentando
não poder fazer parte da geração atual.
A própria estilística utilizada por Caio (op. cit.) conduz ao desenvolvimento de um
tipo de cumplicidade com a protagonista, que conta suas desventuras num mundo onde
contrariar a lógica é sinônimo de exclusão. A Dama da noite é a própria imagem do
desencantamento e a roda sobre a qual ela tanto divaga é a imagem de uma vida que ela não
quis ou não pôde seguir, excluída de uma „sociedade modelo‟.
Ao longo da narrativa, a personagem título analisa as relações pessoais do contexto no
qual está inserida, baseada no movimento das pessoas ao seu redor e descrita sob a
perspectiva de quem não faz parte do movimento das relações sociais e culturais. Ela comenta
sobre a vontade de rodar na roda da vida, ao mesmo tempo em que expressa o desprezo que
sente por ela.
O próprio discurso sugere que existe uma dinâmica que rege todas as pessoas, ou ao
menos, deveria reger, e que os indivíduos que estão inseridos nessa lógica conseguem se
comunicar, ao passo que aqueles que se sentem estranhos ao modelo dominante se sentem
46
apartados de todo o resto, desencontrados, sozinhos e impossibilitados de entrar na roda, no
mundo.
O amor também é abordado na obra, como possível de existir entre pessoas,
independente da classificação binária homem-mulher. No entanto, o autor enfatiza a diferença
entre a ideia de „Verdadeiro Amor‟ das experiências pautadas pelo interesse, pelo dinheiro e
pela efemeridade, numa metáfora de um caminho possível para uma mudança efetiva da
realidade que cerca cada pessoa, ainda que as condições se apresentem pouco favoráveis.
Enfim, em outras palavras, a obra é pautada na contestação à lógica da exclusão que,
em virtude de sua perpetuação, impõe padrões comportamentais para homens e mulheres e
que tem como agravantes o machismo, a homofobia e a intolerância.
2.3 ‘O rapaz mais triste do mundo’
O conto „O rapaz mais triste do mundo‟, também presente na obra de Caio (2010)‟Os
dragões não conhecem o paraíso‟, inicia-se com uma narrativa que descreve, de forma
detalhada, a caminhada de um homem solitário, pelas ruas noturnas de uma cidade urbana
(não identificada no texto) até um bar, cenário minuciosamente descrito no conto:
UM AQUÁRIO de águas sujas, à noite e a névoa da noite onde eles
navegam sem me ver, peixes cegos ignorantes de seu caminho inevitável em
direção um ao outro e a mim. Pleno inverno gelado, agosto e madrugada na
esquina da loja funerária eles navegam entre punks, mendigos, neons,
prostitutas e gemidos de sintetizador eletrônico - sons, algas, águas - soltos
no espaço que separa o bar maldito das trevas do parque, na cidade que não é
nem será mais a de um deles. Porque as cidades, como as pessoas ocasionais
e os apartamentos alugados, foram feitas para serem abandonadas - reflete,
enquanto navega (ABREU, 2010, p. 65).
O interesse do autor nos detalhes espaciais do lugar onde se passa a narrativa,
justifica-se, talvez, pela necessidade de se estabelecer um paralelo de caráter espaçotemporal,
entre os dois personagens principais, o homem de „quase quarenta‟ e o rapaz de „quase vinte‟,
na tentativa de caracterizar os ambientes distintos da realidade vivida por cada um deles, que
se encontram num espaço onde vivem ou viveram, rompendo, assim, o limite entre passado e
presente.
47
Essas referências, no conto, podem ser facilmente verificadas nas passagens da página
seguinte:
Há muitas outras coisas que se poderia dizer sobre esse homem nesta noite
turva, neste bar onde agora entra, na cidade que um dia foi a dele. [...] O
estranhamento típico dos homens de quase quarenta anos vagando pelas
noites de cidades que, por terem deixado de ser as deles, tornaram-se
ainda mais desconhecidas que qualquer outra. [...] Há muitas outras coisas
que se poderia dizer sobre aquele rapaz nesta noite sombria, na cidade que
sempre foi a dele, neste bar onde agora está sentado à frente de um homem
inteiramente desconhecido [...] (ABREU, 2010, p. 66-68, grifos meus).
O bar, local público e de grande movimentação, onde os personagens interagem na
dinâmica narrativa do conto, desempenha um papel adverso da sua conotação principal, aqui
parecendo intensificar o vazio vivido pelos personagens, refletindo a solidão presente em cada
um deles, o que se revela no predomínio da função fática da linguagem quando o homem
dirige-se ao rapaz: “como é seu nome, qual o seu signo, quer outra cerveja, me dá um cigarro,
não tenho grana, eu pago, pode deixar, fazendo o quê, por aí, vendo o que pinta, vem sempre
aqui, faz tanto frio” (ABREU, 2010, 71).
De modo sucinto, o conto da narrativa em questão se resume ao seguinte: numa noite
fria de véspera do dia dos pais, um homem de cerca de quarenta anos, caminhando, chega a
um bar – um ambiente caracteristicamente urbano, cenário que parece sugerir uma certa
neutralidade sociocultural: aberto ao álcool, às drogas e ao sexo fácil. Lá chegando encontra
um jovem de aproximadamente vinte anos e ficam, ambos, numa situação em que tudo pode
acontecer entre eles, mas nada acontece, alimentando a expectativa do encontro, que pode
estender-se, tanto às duas personagens quanto ao narrador (na medida em que este se
presentifica, também, como observador, com uma visão relativamente limitada) e ao leitor.
E, a partir dessa expectativa, o homem mais velho revive as lembranças do passado,
vendo-se espelhado na rotina presente do jovem e este, por sua vez, vê seu futuro projetado no
homem de quase quarenta, numa espécie de espelho, „talvez rachado‟, como sugere o próprio
autor (ABREU, 2010, p. 70), na qual a vivência se dá, basicamente, no interior de cada um,
em um espaço e um tempo distintos, pois, concretamente, eles apenas tomam algumas
cervejas juntos e depois se despedem.
Após a aproximação entre os personagens principais, a despedida entre ambos,
ocasionada pelo fechamento do bar e chegada do dia, parece resultar nas experiências
subjetivas de cada um dos envolvidos na obra, principalmente, o leitor que parece ser
48
induzido pelo narrador ativo e persuasivo, que faz crer que os dois personagens se encontram
em estado de estranhamento com o mundo, por não se enquadrarem nos estereótipos exigidos
de um mundo moderno culturalmente baseado em padrões normativos.
Isso, talvez, se deva ao fato de a narrativa destacar o cotidiano comum entre ambos os
personagens, de forma que não há nada que preceda nem suceda ao encontro descrito no bar.
Por essa razão, cria-se certo grau de envolvimento entre os dois homens, nesse local
aparentemente neutro e comum ao espaço urbano noturno e logo, a narrativa após o encontro
impõe um ritmo e regras determinadas aos personagens.
Entretanto, e mais importante do que isso, a própria expectativa de aproximação
gerada pelo conto dota de uma significação que privilegia o encontro, transformando esse
fragmento de tempo na vida das duas personagens em uma experiência significativa (e
dolorosa) para ambos. Tal experiência é, de fato, significativa, porque coloca em evidência o
vazio do universo em que o homem mais velho e o jovem se situam, além de manifestar o
deslocamento deles em relação a esse meio, que é tanto físico, quanto ideológico e cultural.
Nesse conto de Caio, pode-se destacar outro aspecto importante que é a forma como o
ato de narrar foi intensificado, como elemento estruturador da narrativa, ao longo de toda a
obra. Nela, o narrador apresenta-se como personagem ativo nos acontecimentos ocorridos no
conto, podendo-se, até, dizer que ele exercia o papel de um terceiro personagem, um narrador
homodiegético, que se impõe e participa das ações ocorridas no conto, com o objetivo, talvez,
de convidar o leitor a participar do contexto em que ele já se encontra inserido.
Os fatos por ele narrados, a conversa e o encontro entre os dois homens parecia
resultar num contato de caráter confessional e íntimo que, com o passar do tempo, vai
aumentando a intimidade entre ambos, o que, notoriamente, parece ser estimulado por esse
narrador-observador, que manipula, não somente a narrativa, como também o espaço através
das músicas que escolhe para tocar no juke-box, com o objetivo de aproximar os dois homens
de universos cronológicos tão distintos e contextos emocionais tão semelhantes.
O narrador desse conto se vê ante o desejo e a necessidade de enfrentar e assumir a
linguagem como única forma de expressão capaz de dar visibilidade aos sujeitos
representados na história narrada e, ainda, conferir um sentido à sua existência como narrador.
Mas, além disso, ele é também impelido a se deixar levar pelo jogo que ele mesmo inicia,
uma vez que não há, no conjunto de suas possibilidades de manifestação como voz narrativa,
49
outro modo de existência capaz de sustentar, coerentemente, sua conformação individual,
como ser que se situa, ao mesmo tempo, numa posição privilegiada em relação ao narrado.
Pois, é ele quem conta a história e, como tal, a conduz, e como ser frágil, preso a uma
visão, às vezes, limitada do universo simples de personagem do sistema que passou a integrar,
confunde-se, muitas vezes, com as personagens e o ambiente sobre os quais fala e, mesmo
com o leitor, porque, ao dizer: “Eu sou os dois, eu sou os três, eu sou nós quatro. Esses dois
que se encontram esse três que espia e conta, esse quarto que escuta” (ABREU, 2010, p. 77).
Nesse conto, o leitor é levado, portanto, a desconfiar de tudo. Esse leitor, também
anônimo, urbanóide, com muitas características afins às das personagens que lê, é convidado
a constituir-se como parte final desse processo de experimentação, uma vez que, ao passar de
uma atitude passiva à atividade da narrativa, transfere-se do narrador-criador para o leitor do
conto, a experiência do (des) controle em relação à forma-criação do conto.
Nesse sentido, o narrador, já que não apresenta total controle sobre sua criação,
convida o leitor a auxiliá-lo na percepção e construção da narrativa. Isso pode ser facilmente
percebido no contato intenso e brutal do indivíduo com os objetos e os outros sujeitos, que
podem ser iguais ou mais fortes que ele, mas dificilmente são mais fracos ou se submetem a
ele. O leitor é tomado, pois, como mais uma peça no jogo com a linguagem da narrativa.
A própria impossibilidade de controle sobre o invento, por parte do narrador, ao longo
da narrativa, por exemplo, se deve ao fato de que as regras que regem a narrativa se alteram
na medida em que ela vai sendo contada – o livro, a escrita, a vida da
personagem/leitor/homem – acontece, se desenvolve, pois “dentro do círculo do jogo, as leis e
costumes da vida cotidiana perdem validade. Somos diferentes e fazemos coisas diferentes”
(HUIZINGA, 1971, p. 15). Ou seja, por mais que se tenha conhecimento de que o jogo (a
história) existe, é imprescindível contentar-se com a descoberta, porque, como as personagens
desse conto, não se encontram perspectivas, “uma vez que „eu‟ [protagonista, narrador, autor,
leitor, enfim aquele que se diz „eu‟] nasci nesse tempo em que tudo acabou; isso ele não diz,
mas eu escuto e o homem em frente dele também e o bar inteiro também” (ABREU, 2010, p.
73).
Dessa forma, observa-se que, em „O rapaz mais triste do mundo‟, a narrativa cumpre,
também, a função de estabelecer uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma
coisa que, nesse caso, é a subjetividade dos sujeitos e a atividade sobre o mundo instalado na
50
própria ação de narrar, ainda que os envolvidos nesse processo não tenham plena consciência
daquilo que buscam. Esse é o resultado de um exercício, às vezes, explicitamente deliberado –
“Por enquanto, olham em volta” (ABREU, 2010, p. 69) – e, também, irônico, por deixar claro
que nada de surpreendente acontece.
3 ABORDAGENS TEMÁTICAS DAS OBRAS
As relações entre literatura e sociedade se manifestam, tanto pela temática quanto pela
linguagem explorada por um texto, seja ele, lírico ou narrativo. Nas obras de Caio, não
poderia ser diferente; sua produção literária, considerada um exemplo representativo da
literatura brasileira contemporânea, é repleta de temas que permitem averiguar a „função‟ das
obras vinculada ao compromisso com a realidade.
Com „narrativas elípticas‟ que, essencialmente, sugerem ao invés de dizerem, Caio
explora características do homem e da sociedade contemporânea, que tem a metrópole, na
maioria das obras, como figura central para a atuação de identidades performáticas, expressão
usada por Edward Said, integrado por Teixeira Coelho6, de modo a representar, na ficção,
uma realidade perturbadora em que não há muitas possibilidades para solução dos problemas
enfrentados pelos sujeitos ou personagens que nascem das subjetividades.
Nesse sentido, o tom das suas narrativas é quase sempre pessimista, visto que elas não
apresentam perspectivas para solução ou amenização dos conflitos, mas ao contrário, tendem
a indicar uma proliferação deles, o que é intensificado pela ausência de um desfecho feliz para
os personagens.
Desse modo, em quase todos os seus escritos, seja claramente ou de forma velada, o
encontro com o outro parece refletir um pouco a constante de que toda e qualquer atividade
humana, fundamentalmente, se refere à dimensão da produção social da diferença, revelada na
autorreflexão do sujeito, como se vê nas passagens presentes nos contos, „O Rapaz mais triste
do mundo‟ e „Dama da noite‟, respectivamente transcritos a seguir:
[...] entre punks, mendigos, neons, prostitutas e gemidos de sintetizador
eletrônico – sons, algas, águas – soltos no espaço que separa o bar maldito
das trevas do bar na cidade que não é nem será mais a de um deles. Porque
as cidades, como as pessoas ocasionais e os apartamentos alugados, foram
feitas para serem abandonadas . [...] você nasceu dentro de um apartamento,
vendo tevê. Não sabe nada, fora essas coisas de vídeo, performance, high-
tech, punk, dark, computador, heavy metal e o caralho. Sabia que eu até
tenho mais pena de você e desses arrepiadinhos de preto do que de mim e
daqueles meus amigos fodidos? (ABREU,. 2010, p. 65;113).
6 COELHO, Teixeira. 1999, p. 203
52
Talvez por este motivo, as “chaves” temáticas e conceitos abordados neste trabalho
(alteridade, status quo e identidade de gênero) presentes, também, em muitas outras de suas
narrativas, assumam aspectos excessivos do „ego humano‟, retratando a dificuldade humana
em reconhecer e conviver pacificamente com o diferente, o diversificado, resultando na
frustração vivenciada pelos personagens.
Ainda sobre a temática da exclusão, observe-se que a Dama enfatiza, em alguns
momentos da narrativa, que não teve possibilidade de escolha sobre pertencer, ou não, ao
„movimento da vida‟ – “Quando dei por mim, todo mundo já tinha decorado a palavrinha-
chave e tava a mil, em lugarzinho seguro, rodando na roda. Menos eu, menos eu” (ABREU,
112). O boy, em contrapartida, gira na roda, porque se identifica com os demais – “Todo esse
pessoal de preto e cabelo arrepiadinho sorri pra você porque você é igual a eles” (ABREU, p.
112)
Pode-se dizer que “Caio Fernando Abreu disfarça, escamoteia através de suas
personagens [...] a dor que deveras sente” (TELLES, 1992, p. 13), mas que, numa escrita
atualizada, encontra em suas obras uma saída de prazer e divertimento, que sustenta a
individualidade, tanto da instância que assume a escrita quanto dos seres que ele descreve.
E como, mesmo quando se é o rapaz mais triste do mundo, “tudo aos poucos vira dia,
e a vida – ah, a vida – pode ser medo e mel, quando você se entrega e vê, mesmo de longe”
(ABREU, 2010, p. 79), ou se tratando da Dama da noite, “eu quero mais do que posso
comprar. [...] Aquele um vai entrar um dia talvez por essa mesma porta, sem avisar.”
(ABREU, 2010, p. 117). Nota-se, nesse escrever-ler-viver, uma busca por alcançar algo que
foge ao alcance desse narrador, às demais personagens e ao próprio leitor, identificado com o
que lê, porém não é fácil ver bem o que é, por ser ambíguo, fragmentado e difuso, como são
as experiências humanas.
Assim, partindo desse ponto e considerando a afirmação de que, nem tudo é „o que
sou‟ e nem todos são „como sou‟, os aspectos interpessoais e intergrupais, representados
respectivamente pelo „eu‟ e o „outro‟ (que representam produtos de um duplo processo de
construção e exclusão social, cujo sistema de representação de dimensão singular e subjetiva
de cada um, passa a ser constituído e construído, por meio de aspectos sociais e culturais),
apresentam características peculiares nas narrativas criadas por Caio (2010) e muito bem
53
representadas, em riquezas de detalhes e abordagens, pelos contos pesquisados para este
trabalho, e como se vê nas abordagens temáticas analisadas a seguir.
3.1 Alteridade
Para que se possa, inicialmente refletir sobre o tema da alteridade, é importante
esclarecer que se considera o conceito „alteridade‟ como o encontro com o outro, resultando
no reconhecimento desse outro como parte integrante de um conjunto que completa o „todo‟,
pois todos são importantes e devem saber reconhecer e aceitar os outros, respeitando-os e
procurando entender a relação dos indivíduos com os demais. Nesse sentido, a discussão em
torno dessa temática tem prestado relevantes contribuições na medida em que suas
investigações tratam de mostrar o outro como diferente, desvendando suas características e
especificidades.
Por esse motivo, parece importante destacar que à leitura do corpus analisado por este
trabalho se relacionam diretamente as questões de gênero sob a luz da Queer Theory, seja
pelo processo de reconhecimento, ou mesmo, de negação da alteridade. Na própria leitura
calcada pela comparação dos contos: „Dama da Noite‟ e „O rapaz mais triste do mundo‟,
pode-se, claramente, perceber que, em ambos, há essa relação de interação, seja entre os
personagens, autor e/ou leitores, pois, ao analisar ambos percebe-se a existência de um „eu‟
(sujeito) que só é possível via relações sociais, ainda que de forma singular, em que o
encontro com o outro, passa a ser entendido como alteridade, somente no momento da
interação.
Nesse caso, muito mais por meio do próprio discurso que parece desempenhar o papel
de nomear e atribuir valores capazes de produzir sujeitos subjetivos, diante de uma relação de
estranheza e/ou alteridade entre o „eu‟ e o „outro‟, do que pela própria relação de interação
social e cultural, cuja possibilidade ontológica de relação com o outro se dá quando o „eu‟
reconhece no „outro‟ o reflexo de si mesmo, levando-o à negação de sua própria identidade.
Afinal:
Se no passado o outro era de fato diferente, distante e compunha uma
realidade diversa daquela de meu mundo, hoje, o longe é perto e o outro é
também um mesmo, uma imagem do eu invertida no espelho, capaz de
confundir certezas, pois não se trata mais de outros povos, outras línguas,
outros costumes. O outro hoje é próximo e familiar, mas não
necessariamente é nosso conhecido (GUSMÃO, 1999, p. 44-45)
54
Nos diálogos presentes nos contos de Caio, objetos de análise deste trabalho, o
discurso do „eu‟ (muitas vezes narrador) parece representar a verdade incontestável da
realidade, que se convenciona, a partir do lugar de quem fala, reservando para si o discurso da
verdade e deixando, consequentemente, relegado ao outro e, em alguns casos, a si mesmo, o
desconfortável lugar do diferente, remetendo-os às margens dos valores sociais estabelecidos,
como se pode verificar em algumas de suas passagens, presentes nos contos „Dama da Noite‟
e „O Rapaz mais triste do mundo‟, respectivamente:
[...] Deixa você passar dos trintas, trinta e cinco, ir chegando aos quarentas e
não se casar e nem ter esses monstros que eles chamam de filhos, casa
própria nem porra nenhuma. Acordar no meio da tarde, de ressaca, olhar sua
cara arrebentada no espelho. Sozinho em casa, sozinho na cidade, sozinho no
mundo [...]. Ele: esse homem de quase quarenta, começando a beber um
pouco demais, não muito, só o suficiente para acender a emoção cansada, e a
perder cabelo no alto da cabeça, não muito, mas o suficiente para algumas
piadas patéticas. Sobre esse espaço vazio de cabelos no alto da cabeça caem
gotas de sereno, cristais de névoa, e por baixo dele acontecem certos
pensamentos altos de noite, algum álcool e muita solidão [...] (ABREU,
2010, p. 111 e 65-66).
Percebe-se, em ambos os contos, que o fluxo de consciência presente no discurso de
cada um dos personagens-narradores contribui, de forma bastante decisiva, na construção de
imagens, deles mesmos e do mundo, que são focalizadas por ações de alteridade aos
respectivos enunciadores, segundo suas interações e por meio das quais se manifestam suas
convicções diferenciadas, conforme as contextualizações de suas falas.
Por esse prisma, acredita-se que a alteridade passa a implicar o desdobramento do
sujeito em suas posições discursivas, resultando num ponto de vista de uma pretensa
imutabilidade do sujeito, onde: “o sujeito da narração, pelo próprio ato da narração, dirige-se
a outro e é, em relação a esse outro, que a narração se estrutura” (KRISTEVA, 2005, p. 78)
Nos dois exemplos, a rejeição e rotulagem de um grupo em particular de indivíduos
desenvolvem-se porque determinadas características são retratadas de forma negativa,
resultante de preconceitos atribuídos a todos os indivíduos pertencentes àquele determinado
grupo. Assim, a condição de pertencer à faixa etária superior aos trintas anos, ser solteiro e
não constituir família permite a formação de uma realidade simplificada de estereótipos,
desconsiderando-se as características subjetivas de cada indivíduo, minimizando-as a meras
diferenças específicas e generalizadas entre os membros de um determinado grupo,
classificando os comportamentos sociais como atípicos, por se enquadrarem numa exceção.
55
As leituras feita sob a óptica temática, por sua vez, incorrem de um modo geral, em
uma perspectiva que encerra a diferença em si mesma, segundo Jodelet (1998, p. 47-48),
posto que:
[...] ao designar o caráter do que é outro, a noção de alteridade é sempre
colocada em contraponto: „não eu‟ de um „eu‟, „outro‟ de um „mesmo‟,
destacando a alteridade como “produto de duplo processo de construção e de
exclusão social que, indissoluvelmente ligados como os dois lados duma
mesma folha, mantém sua unidade por meio dum sistema de representações.
Vê-se, portanto, que a autora defende que sua análise deve compreender, tanto o nível
interpessoal quanto o intergrupal. Isso remete um pouco, à ideia de Durkheim (1978) quando
diz que, uma sociedade, ao mesmo tempo em que é algo que o indivíduo deseja, é também
algo que lhe impõe regras, algo da ordem da autoridade.
Na verdade, o homem não é humano senão porque vive em sociedade. [...] É
a sociedade que nos lança fora de nós mesmos, que nos obriga a considerar
outros interesses que não os nossos, que nos ensina a dominar as paixões, os
instintos, e dar-lhes lei, ensinando-nos o sacrifício, a privação, a
subordinação os nossos fins individuais a outros mais elevados. Todo o
sistema de representação que mantém em nós a idéia e o sentimento da lei,
da disciplina interna ou externa, é instituído pela sociedade (DURKHEIM,
1978, p.45).
Certamente, pode-se dizer que tais sujeitos que se baseiam em conceitos próprios,
marcados por estereótipos, e são pontes para a disseminação do preconceito encontram
consonância em interesses do grupo dominante, utilizando artefatos ideológicos e difundindo
a imagem depreciativa do preconceito, no caso em questão, excluído e dominado, com o
objetivo de manter a ilusão do equilíbrio e da ordem vivida na ausência da diferença, em que
essa condição passa a ser consolidada no imaginário social, com sendo fato natural da
inferioridade social de certo grupo sobre outro.
Ainda a respeito de questões envolvendo o tema da alteridade, presente nos contos
„Dama da Noite‟ e „O Rapaz mais triste do mundo‟, respectivamente, podem-se destacar os
seguintes trechos:
[...] “Quem roda na roda fica contente. Quem não roda se fode. Que nem eu,
você acha que eu pareço muito fodida? Um pouco eu sei que sim. Mas fala a
verdade: muito? Falso, eu tenho uns amigos, sim. Fodidos que nem eu.
Prefiro não andar com eles, me fazem mal. [...] “E não sou eu quem decide,
são eles. Não se deve olhar quando olhar significaria debruçar-se sobre um
espelho talvez rachado. Que pode ferir, com seus cacos deformantes. Por
isso mesmo hesito [...] (ABREU, 2010, p. 112 e 70).
56
Em ambos os fragmentos aqui transcritos, pode-se perceber que a possibilidade de
contato com o outro se apresenta de forma dicotômica, alocando os enunciadores numa
atmosfera de solidão e angústia, aparentemente percebida pela sensação de exclusão,
enfatizada, também, na afirmação da personagem título do conto „Dama da Noite‟, quando
diz: “Eu não sou igual a eles, eles sabem disso” (ABREU, 2010, p.112).
Percebe-se, assim, tanto no discurso da „Dama da noite‟, quanto do „Rapaz mais triste
do mundo‟, a situação de dualidades por eles vivenciada, cuja sensação de não fazer parte dos
padrões sociais, que garante aos indivíduos certo prestígio diante dos demais membros da
sociedade, reforça claramente suas posições à margem da sociedade e de seus prestígios.
Assim, a inalteridade praticada nas afirmações dos personagens parece estar
diretamente relacionada à questão da hegemonia do modelo social, estabelecido como forma
mais eficiente de dominação social, de controle ideológico, de exploração e exclusão, que
tornam as personagens semelhantes àqueles que as rejeitam, e a ação de estranheza é
resultante de uma indiferenciação, quando o „eu‟ vê os limites de „autoaceitação‟ se
esvanecerem frente ao outro.
Quando a personagem do conto „Dama da noite‟ afirma que os amigos estão „fodidos‟
como ela, ou mesmo, quando o personagem do „Rapaz mais triste do mundo‟ diz que “não se
deve olhar quando olhar significaria debruçar-se sobre um espelho talvez rachado,”
simplesmente, reforçam a ideia de que em ambos os discursos refletem a ideia de fracasso, já
enfatizada anteriormente por Jodelet (op. cit.), em sua citação sobre a alteridade de um „eu‟,
„outro‟ de um „mesmo‟.
Além disso, segundo essa autora, é importante compreender a análise da temática da
alteridade nos níveis interpessoal e intergrupal, isso porque a alteridade convoca a noção de
identidade tanto quanto a de pluralidade. Nesse caso, é importante observar como se configura
um dos primeiros mecanismos acionados pela identidade dominante, a falsa aceitação do
sujeito que ela mesma recrimina, ou a recusa do próprio indivíduo pela identidade que ele
representa.
Isso só ressalta a ideia de que é „na e pela alteridade‟ que a identidade das pessoas é
desenvolvida de maneira efetiva, pois só o „outro‟ é capaz de nos conferir uma „visão‟ de
singularidades que formularão o sentimento de individualidade, a ideia de aceitação ou
exclusão, seja esse sentimento pertencente a um indivíduo ou a um grupo.
57
Esses dois exemplos, proferidos em afirmações presentes nas obras, podem ser
analisados como forma de autonegação, por parte dos enunciadores; e a percepção das
identidades se constrói como reflexos de espelho, em que a imagem do „não eu‟ é a mesma do
„eu‟, de possíveis formas de identidade ou semelhança com o outro, o que, de uma maneira
geral, recai na ação de inalteridade, evidenciada em suas posições na esfera da exclusão
social.
Nos dois casos, a não aceitação da própria condição do „eu‟ implica o surgimento do
„outro‟ do mesmo „eu‟, cuja função consiste na crítica e censura de si mesmo. Essa percepção
de aversão do „eu‟ na imagem refletida do „outro‟ só reforça a ideia de Kristeva, de que a
„estranheza‟ de si mesmo faz parte do psiquismo humano e, “a partir do outro, eu me
reconcilio como minha alteridade-estranheza” (KRISTEVA. 1994, p. 190).
Outra característica comum entre as obras, referente ao tema observada nesse estudo, é
a total consciência das personagens principais com a questão da exclusão social. Em ambas,
os protagonistas, por meio de aspectos aparentemente paradoxais implícitos em suas
afirmações, parecem se perceber não pertencentes aos estratos sociais privilegiados e por eles
preteridos da sociedade, ao mesmo tempo em que tentam justificar os motivos, pelos quais
buscam nela estarem inseridos.
No exemplo da „Dama da noite‟, no início do conto, a personagem título afirma que
gostaria de pertencer ao que ela chama de „roda da vida‟, olhando de fora, a cara cheia, louca
de vontade de estar lá, rodando junto com eles nessa roda idiota. Todavia, no último parágrafo
do conto, a fragilidade da personagem é denunciada em sua afirmação, que diz:
[...] Dá minha jaqueta, boy, que faz um puta frio lá fora e quando chega essa
hora da noite eu me desencanto. Viro outra vez aquilo que sou todo dia,
fechada sozinha perdida no meu quarto, longe da roda e de tudo uma criança
assustada [...] (ABREU, 2010, p. 118).
O mesmo ocorre no conto o „Rapaz mais triste do mundo‟, quando já no fim da noite,
antes de sair do bar, o narrador homodiegético afirma: “quero mais um uísque, outra carreira.
Tudo aos poucos vira dia e a vida – ah, a vida – pode ser medo e mel quando você se entrega
e vê, mesmo de longe” (ABREU, 2010, p. 79).
Os fragmentos citados mostram-se bastante compreensíveis, uma vez que, na condição
de inalteridade imposta aos personagens, retratam o isolamento deles das relações sociais com
58
o mundo. Nesse contexto, observa-se a noção de alteridade sendo utilizada, por muitos, como
forma de acesso a determinados grupos, caso contrário, isso só seria possível mediante
adequação aos padrões normativos por estes estabelecidos, sendo, pois, e de algum modo,
marcados por alguma diferença, muitos podem abandonar o convívio social em que se
encontram, por serem considerados ameaças à ordem estabelecida no padrão que se entende
por „normal‟.
Levando-se em consideração essa condição imposta pela alteridade, torna-se
impossível pensar a subjetividade sem o outro, visto que o outro „nos arranca
permanentemente de nós mesmos‟. Assim a alteridade (e seus efeitos), embora invisível, é
real. A natureza humana é, essencialmente, produção de diferença.
Nesse sentido, a dimensão invisível da alteridade é o que extrapola a identidade - essa
unidade provisória na qual nos reconhecemos -, dimensão em que estamos dissolvidos nos
fluxos e na qual se operam permanentemente novas composições que, a partir de certo limiar,
provocam turbulência e transformações irreversíveis no atual contorno da subjetividade.
Percebe-se, portanto, que, em ambas as obras, estereótipos particulares da sociedade
são usados como meio de contestação à discriminação, à repressão ou ao preconceito, levando
o autor a assumir um compromisso social voltado à defesa da prática da ação de alteridade.
3.2 Estigmatização por não integração ao Status Quo
A expressão Status quo representa a ideia latina: in statu quo res erant ante bellum,
que quer dizer, “no mesmo estado em que se encontrava antes.” Desse modo, ao utilizar-se o
termo status quo, refere-se à condição ou estado atual das coisas, em relação às já pré-
estabelecidas.
Como as obras analisadas neste trabalho são frutos de um autor brasileiro, de uma
geração que vivenciou os duros golpes da ditadura militar e que, mesmo assim, dentro desse
contexto, conseguiu transformar a literatura brasileira com sua discussão, conscientização e
crítica sobre o sistema implementado, relacionando-o às questões sociais, aos modos de
funcionamento de poder e ao autoritarismo, não se pode deixar de considerar fundamental e
de inevitável importância a abordagem relativa ao status quo, nas análises dos estudos
literários dos contos de sua autoria e, principalmente, nos aqui presentes.
59
Na realidade, Caio sempre esteve preocupado em criticar e denunciar os problemas da
sociedade e dos indivíduos inseridos no contexto de opressão; por meio de metáforas,
linguagens e imagens inusitadas, simbologias e ambiguidades, ele conseguiu denunciar e
apresentar, através da articulação desses elementos, a construção do mundo interior e exterior
de personagens, caracterizados pela falta de perspectiva.
Nos textos percebe-se claramente sua intenção de denunciar o sistema repressor da
ditadura militar no Brasil, responsável pela privação dos sonhos, ideais e esperanças de
liberdade, mesmo sem expor esse pensamento, de forma explícita. Neles, o escritor, valendo-
se de metáforas e personagens representados por indivíduos de perfis opostos aos exigidos
pela sociedade tradicional, homens e mulheres fragmentados e destituídos de identidade,
rompe com o status quo dominante, pois desmitifica a visão de identidade una, denunciando,
assim, a fragmentação do indivíduo.
Com isso, o ato de não integração ao status quo, criado pelos jogos de linguagem,
explorados através de diálogos e monólogos captando os detalhes da expressão humana, de
indivíduos excluídos, marginalizados, fragmentados e sem identidade, caracteriza os traços de
sua especificidade literária: “conciliar, através do discurso, uma visão de mundo catastrófica
e anti-utópica, decorrente da repressão política e dos consequentes desequilíbrios sociais, a
uma outra de natureza psicanalítica” (MASINA, 1998, p. 174).
Suas obras abordam temáticas geralmente relacionadas às questões sociais, culturais e
de gênero e estão diretamente relacionadas ao processo de socialização, pautado na própria
idiossincrasia (maneira de ver, sentir e reagir peculiar a cada pessoa), em um contexto na qual
as condições normativas estabelecidas pela sociedade vêm se impondo às necessidades
individuais, que se apresentam como indispensáveis para explicar a adequação do ser
(personagem) ao universo social das obras aqui analisadas, pois ambas apresentam cenários
perfeitos para a efetiva concretização de construção da ideia proposta pelo conceito do status
quo.
Aline Bizello (2006) considera que os textos de Caio (2010) são uma espécie de
denúncia ao sistema repressor, responsável pela privação de sonhos, ideais e esperança de
liberdade, embora não descreva de forma explícita a ditadura militar no Brasil. O escritor,
com suas personagens, agride o status quo dominante, pois apresenta indivíduos de perfis
60
opostos aos exigidos pela sociedade tradicional, homens e mulheres fragmentados e
destituídos de identidade una, denunciando, assim, a fragmentação do indivíduo.
No caso do conto „Dama da Noite‟, por exemplo: a palavra „roda‟ repetida inúmeras
vezes no decorrer da obra é usada como metáfora, uma forma de representação da sociedade
em suas várias mudanças de concepções e valores construídos ao longo dos tempos.
Entretanto, a dominação e a manutenção do poder exercida por um determinado grupo, em
posição de domínio em relação aos demais, parece não acompanhar a „transmutação
ideológica‟, representada pelos movimentos circulares sugeridos pela metáfora da „roda‟,
caracterizando, dessa forma, a impossibilidade de rompimento com o status quo estabelecido
naquela situação contextual.
Também no conto „O rapaz mais triste do mundo‟, o „aquário‟ serve para descrever o
cenário particular e delimitado por paredes de vidros, que sugere um espaço sem saída e nulo
de esperanças, aprisionando os personagens a um ambiente de exclusão. Nos dois exemplos,
portanto, podem-se estabelecer a estigmatização de não integração ao status quo.
Tudo isso parece sugerir o funcionamento das regras de normatização do convívio
social, em que a hegemonia das classes dominantes consegue obrigar uma classe social
subordinada a renunciar sua própria identidade, como forma de manter o Status quo. Toma-
se como exemplo disso um fragmento retido do conto Dama da Noite:
[...] é assim que as coisas são: ca-pi-ta-lis-tas em letras góticas de neon.
Mulher pirada e meio coroa que nem eu tem mais é que ser roubada por um
garotinho como você. Só pra deixar de ser burra caindo outra vez nessa
armadilha de sexo (ABREU, 2010, p. 116).
Como se pode perceber no excerto acima, fica bastante clara a intenção do autor em
criticar valores burgueses que tentam manter o status quo, os quais vinculam a imagem do
homem a uma mercadoria isenta de sentimentos mais nobres, que o valorizem pelo que ele é,
e não pelo que tem. Isso mostra claramente que as rupturas com os modos tradicionais de
composição social, verificadas nas obras de Caio, representam antagonismos, em suas
narrativas, muitas vezes fragmentadas e lacunares, densas e complexas.
O autor mostra aspectos do contexto social de valores, condutas e ideologias próprias
dos períodos autoritários e de sociedades conservadoras, principalmente ao questionar
ideologias e posições preconceituosas marcadas por um pensamento conservador.
61
As obras mostram a mediocridade e o preconceito de uma sociedade voltada para o
culto aos valores tradicionais, convidando o leitor a fazer parte das narrativas e a tomar
posição críticorreflexiva contrária em relação ao contexto e a posturas assumidas pela classe
dominante.
Em se tratando do conto „O rapaz mais triste do mundo‟, a sensação de fracasso e de
ilusões perdidas que perpassa a leitura de sua narrativa aguça a questão da autopercepção
negativa às experiências vivenciadas pelo personagem de „quase quarenta‟, claramente
perceptível nos discursos que evidenciam situações vividas e uma consciência em relação à
dificuldade de reversão do status quo, capaz de denunciar um sistema repressor responsável
pela privação de sonhos, ideais e esperança de indivíduos destituídos de identidades roubadas
pelo tempo cronológico (idades), enclausurados no mundo de angústia, solidão e vazio
existencial, como se pode observar no fragmento seguinte:
[...] homens solitários não têm idade. Embora gelados, tontos de álcool,
hirtos de frio, lúcido dessa solidão que persegue feito sina os homens sem
passado nem futuro, nem mulher ou amigo, família nem bens – eles não se
olham (ABREU, 2010, p. 70).
Nitidamente, pode-se observar no excerto do fragmento anterior a caracterização por
parte do homem (personagem) como aquele que contraria o estereótipo de homem,
mantenedor da família, nos moldes estabelecidos pela sociedade heteronormativa.
Outra passagem na obra que também se remete à concepção do Status quo, reforçando
a crítica ao capitalismo, simulacro da sociedade presente no conto, é relatada na fala da
personagem-título „Dama da Noite‟, quando afirma:
[...] Essa roda girando, girando sem parar. Olha bem: quem roda nela? As
mocinhas que querem casar, os mocinhos a fim de grana pra comprar um
carro, os executivozinhos a fim de poder e dólares, os casais de saco cheio
um do outro, mas segurando umas. Estar fora da roda é não segurar
nenhuma, não querer nada. Feito eu: não seguro picas, não quero ninguém.
Nem você. Quero não, boy. Se eu quiser, posso ter. Afinal, trata-se apenas de
um cheque a menos no talão, mais barato que um par de sapatos. Mas eu
quero mais é aquilo que não posso comprar [...] (ABREU, 2010, p. 117).
No fragmento citado, a ideia de poder fazer parte da roda parece vincular a sensação
de felicidade às normas vigentes de manutenção de uma estabilidade social, determinada por
objetivos comuns de uma esfera social dominante, aquela que estabelece critérios próprios de
seleção de seus membros, baseando-se, principalmente, numa estrutura que coisifica o
62
homem, transformando-o em um objeto impulsionado pelo desejo de que o sistema não seja
mudado.
O desejo de girar na roda, fazer parte dela e da sociedade elitista, baseada na lógica do
divertimento de manter a ordem, acompanhada da constante necessidade da felicidade de
supremacia social, evidencia a submissão estabelecida pelo Status quo.
Estar na roda é ser aceito e aceitar o que já está estabelecido, num mundo de
dissolução de valores e de enfraquecimento pessoal; é não permitir mudanças, mantendo a
condição ou estado atual das coisas.
Coincidentemente, a mesma evidência de submissão às condições expostas pela ideia
do status quo é, também, claramente percebida no conto „O rapaz mais triste do mundo‟, no
qual se observa a heteroafetividade como sendo socialmente legitimada, uma vez que não há
uma verdade absoluta sobre qual seria o gênero caracterizador da homoafetividade, visto que,
existe uma infinita variação sobre as relações sexuais afetivas entre pessoas do mesmo sexo.
[...] Eu quero ler poesia, eu nunca tive um amigo, eu nunca recebi uma carta.
Fico caminhando à noite pelos bares, eu tenho medo de dormir, eu tenho
medo de acordar, acabo jogando sinuca a madrugada toda e indo dormir
quando o sol já está acordando e eu completamente bêbado. Eu nasci neste
tempo em que tudo acabou, eu não tenho futuro, não acredito em nada – isso
ele não diz, mas eu escuto, e o homem em frente dele também, e o bar inteiro
também. (ABREU, 2010, p. 73).
Em comparação com o outro conto em análise de Caio, é possível verificar, ainda, a
proximidade semântica entre o esperar por algo que nunca chega e a própria ideia expressa
pelo movimento da roda gigante, citada inúmeras vezes no conto „Dama da Noite‟. Ambas
estão associadas a ações e/ou movimentos cíclicos e contínuos, incapazes de provocar
mudanças.
O substantivo „roda‟ e o verbo „esperar‟, respectivamente presentes nas obras de Caio,
são representações de uma vida imutável e estática, em que as mudanças não são possíveis,
garantido, assim, o caráter insubversivo imposto pelo status quo.
Contudo, ambos os contos escritos por Caio, de certa forma, parecem contrariar a ideia
imposta pela definição do status quo, visto que não só neles como em outros nota-se a
contribuição do autor na intenção de interpretar as condições de indivíduos inseridos numa
atmosfera de rejeição apresentada em narrativas não vinculadas aos modelos convencionais de
63
conotação heteronormativa, que insistem em ignorar o universo de personagens invisíveis ou
até então interditos e censurados, apesar de a maioria dos textos reproduzirem a frustração de
uma geração urbana e reprimida.
3.3 Identidades de Gênero
A sociedade moderna, em seu amplo e constante processo de mudança, cada vez mais
vem desprendendo-se de modelos estáticos, homogêneos e unificados baseados em padrões e
referências sociais axiomáticas, muito presentes também, no campo da identidade.
Para Stuart Hall (2005), as „identidades‟ que durante muito tempo tentaram estabilizar
o mundo social, pautando-se na imagem de um sujeito uno, coerente e imutável, agora
parecem não se reconhecerem diante de seus próprios reflexos, ocasionando, assim, a
chamada „crise de identidade‟, motivada, talvez, pela desestabilização dos valores
socioculturais vinculados às estruturas tradicionais.
Sobre esse assunto, Katherine Woodward (2007) acrescenta a complexidade da vida
moderna que exige assumir-se, cada vez mais, diferentes identidades que, muitas vezes, se
encontram em tensão e conflito quanto aquilo que é exigido de uma identidade social. Diante
disso, inúmeras foram as mudanças nas estruturas da sociedade moderna, no final do século
XX, na qual os conceitos de identidade e sujeito sofreram mudanças em decorrência da
grande diversidade cultural. Na verdade, a problemática envolvendo a identidade somente se
torna uma questão a ser debatida e analisada, justamente por ela se encontrar em crise, pois
segundo o crítico cultural Kobena Mercer (1990, p.43): “A identidade somente se torna uma
questão quando está em crise, quando algo que se supõem como fixo, coerente e estável é
deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza”.
Com o processo natural de transformações ocorrido na modernidade, muitas são as
concepções surgidas para tentar explicar a questão da identidade, no entanto, talvez uma das
que podem ser usadas como forma de refletir a crescente complexidade do mundo moderno,
seja a denominada concepção sociológica, segundo a qual o sujeito não é um ser autônomo e
autossuficiente, mas um mero sujeito formado da relação com „outros seres importantes para
ele‟. Segundo essa concepção: a identidade só poderia ser formada na „interação‟ entre o „eu‟
64
(sujeito) e a sociedade. Assim, a identidade passa a existir na relação entre o „interior‟ e o
„exterior‟ do mundo pessoal e do mundo público.
Relacionado a esse princípio, está o fato de que se projetam em „nós mesmos‟
identidades culturais e coletivas, internalizando-as, juntamente com seus significados e
valores, na tentativa de torná-las parte de „nós‟, contribuindo, dessa forma, para que as
características subjetivas cedam lugar aos princípios ideológicos e objetivos do mundo social
e cultural ao qual se pertence.
A identidade, assim, associa o sujeito à estrutura, estabilizando-o ao mundo cultural,
do qual ele é parte integrante, tornando-o reciprocamente unificado e previsível.
Considerando-se as inúmeras culturas existentes no mundo pós-moderno, pode-se dizer que a
identidade passa a ser fragmentada e múltipla, muitas vezes contraditória ou não resolvida,
dependendo do contexto do qual ela faz parte.
Esse tipo de identidade atribuída ao sujeito pós-moderno desatribui a ele o caráter fixo,
essencial e permanente. A identidade passa, então, a ser uma „celebração móvel‟: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais as pessoas são representadas ou
interpeladas nos sistemas culturais que as rodeiam (HALL, 2005).
Nesse caso, o sujeito assume identidades distintas em diferentes momentos, as quais
não são devidamente reconhecidas ou necessariamente definidas pelo próprio „eu‟ (sujeito),
demonstrando-se incoerente. David Harvey (1989, p.12) discorre sobre a modernidade não
apenas como “um rompimento impiedoso com toda e qualquer condição precedente”, mas
como “caracterizada por um processo sem-fim de rupturas e fragmentações internas no seu
próprio interior.”
Aproveitando a oportunidade e recorrendo às palavras de Anatol Rosenfeld, segundo o
qual a “aparência da realidade não renega seu caráter de aparência” (ROSENFELD, 1985, p.
16), é por meio das personagens, de suas caracterizações, escolhas e comportamentos que se
procura entender a relação entre identidade, estigma e exclusão social nos contos de Caio (op.
cit.).
O modo como Caio (2010) „falsifica a vida‟ no papel, filtrando aspectos da realidade,
de seu contexto historicossocial para convertê-los em arte, em literatura, mostra que todo
indivíduo é um ser social, uma personagem, dando a impressão ao leitor de que também é um
65
“uma celebração móvel, formada e transformada continuamente em relação às formas pelas
quais somos representados ou interpelados nos sistemas sociais que nos rodeiam” (HALL,
2005, p. 13).
Um exemplo claro a respeito da identidade indefinida, incoerente e confusa dos
sujeitos pós-modernos está claramente presente na fala da personagem título do conto „Dama
da Noite‟:
[...] Deixa você passar dos trinta, trinta e cinco, ir chegando aos quarenta e
não casar e nem ter esses monstros que eles chamam de filhos, casa própria
nem porra nenhuma. Acorda no meio da tarde, de ressaca, olhar sua cara
arrebentada no espelho. Sozinho em casa, sozinho na cidade, sozinho no
mundo (ABREU, 2010, p. 111).
Por se tratar de uma narrativa no formato de monólogo, dando credibilidade ao
depoimento da personagem-título, a „Dama da noite‟, se apresenta como alguém que possui
uma identidade de gênero feminina. Apesar dela também sugerir ser chamada assim, devido
ao nome recebido pelos frequentadores do bar: “Dama da noite, todos me chamam e nem
sabem que durmo o dia inteiro.” Isso faz atentar para o fato de que é ela quem define suas
semelhanças com o termo e é também ela que transgride a intenção de quem a apelidou,
ampliando o leque de similaridades entre ela e o apelido imposto.
Diante disso, fica a dúvida da indefinição de sua real identidade que passa a ser
questionada, quando observado no momento de sua narração, de sua experiência de vida,
destacada pelo substantivo masculino „sozinho‟ utilizado em seu desabafo com o jovem boy a
quem se reportava, sugerindo, dessa forma, a indefinição de sua real identidade.
Com isso, observa-se que a sociedade se configura como uma extensa rede de relações
sociais protagonizadas e mantidas pelos diferentes grupos que nela se encontram cada qual
com suas características singulares, uma vez que, vivendo dentro de limites territoriais e
simbólicos, compartilham linguagens, leis, crenças e valores.
A sociedade representada nos contos de Caio é vista como uma sociedade desigual e
preconceituosa, mas que „aceita‟ – em maior ou menor grau – as diferenças a fim de manter
uma imagem de ordem e de equilíbrio, excluindo os que não se enquadram às normas
idealizadas para a vida social.
66
3.3.1 Sexualidade e reprodução
Na cultura ocidental, costuma-se associar a ideia de sexualidade à de gênero, como se
a definição de uma dependesse da outra. Isso talvez possa vir a justificar o porquê de se
classificar indivíduos que mantêm relações sexuais e/ou afetivas com outros do mesmo sexo
como „homossexuais‟, uma categoria que remete imediatamente, no imaginário ocidental, à
ideia de doença, perversão ou anormalidade, semelhante à associação feita ao uso do termo
Queer.
Isso porque, para a maior parte das pessoas na cultura atual, a heterossexualidade, ou
seja, a atração erótica entre indivíduos de sexos distintos é vista como algo „instintivo‟,
considerado „natural‟ ou „normal‟ da espécie humana, com vistas à autoperpetuação pela
reprodução.
Nesse caso, sexo e reprodução são, portanto, vistos nas sociedades ocidentais como
intrinsecamente relacionados entre si, pois se considera a reprodução como envolvendo
apenas os dois indivíduos de sexos diferentes, que se relacionaram sexualmente, com o
objetivo exclusivo de dar continuidade à espécie.
No entanto, com o surgimento das „novas técnicas de reprodução‟ desenvolvidas pela
ciência, no final do século XX, a crença de que a reprodução era um „dom de Deus‟, ou regra
divina a ser seguida, fruto do intercurso sexual natural entre um homem e uma mulher, foi
duramente abalada pela concepção inovadora apresentada pela ciência que desvinculava,
portanto, a sexualidade da reprodução.
Diante desse novo contexto conceitual, inicia-se um novo debate sobre
„heterossexualidade‟, baseado, não mais, na necessidade da reprodução da espécie humana,
mas no desejo sexual como característica masculina e feminina, a busca pelo prazer,
principalmente, quando se trata do prazer feminino, antes visto como perigoso e patológico
praticado com um único objetivo, o de procriar.
Com isso, os desejos e prazeres sexuais passaram a ser vistos pelos sujeitos de várias
maneiras. Nessa nova perspectiva, identidades sexuais foram construídas pelo modo como os
sujeitos lidam com sua sexualidade ou pela forma como se relacionam com parceiros/as do
sexo oposto, do mesmo sexo, ou de ambos os sexos. Ainda nesse sentido, ou de modo
semelhante, os sujeitos construíram suas identidades de gênero, identificando-se social e
67
historicamente como masculinos ou femininos. Obviamente, as identidades sexuais e de
gênero, embora associadas, são diferentes:
Sujeitos masculinos ou femininos podem ser heterossexuais, homossexuais,
bissexuais [sadomasoquistas, pedófilos, zoófilos, etc.] (e, ao mesmo tempo,
eles também podem ser negros, brancos, ou índios, ricos ou pobres etc.). O
que importa aqui considerar é que – tanto na dinâmica do gênero como na
dinâmica da sexualidade – as identidades são sempre construídas, elas não
são dadas ou acabadas num determinado momento (LOURO, 1997, p. 27).
Tanto as identidades de gênero quanto as identidades sexuais estão sempre em
construção, em transformação contínua, articulando-se com experiências cotidianas
atravessadas por influências e práticas ligadas ao pertencimento étnico, social, de classe, raça,
e outros. De acordo com Britzman (1996, p. 74, apud LOURO 1997, p. 27),
[...] nenhuma identidade sexual – mesmo a mais normativa – é automática,
autêntica, facilmente assumida; nenhuma identidade sexual existe sem
negociação ou construção. Não existe, de um lado, uma identidade
heterossexual lá fora, pronta, acabada, esperando para ser assumida e, de
outro, uma identidade homossexual instável, que deve se virar sozinha. Em
vez disso, toda identidade sexual é um constructo instável, mutável e volátil,
uma relação social contraditória e não finalizada (grifos da autora).
Por volta do final da década de 1960, mais especificamente, a partir do ano de 1968, se
constituíram e se fortaleceram movimentos contemporâneos em defesa dos direitos das
mulheres, dos homossexuais, dos negros, dos estudantes, e de outras categorias. Nesse
período, algumas articulações foram estabelecidas entre teoria feminista e teorizações pós-
estruturalistas. Essas articulações mantêm pontos de convergências ao mesmo tempo em que
apresentam pontos de divergências, sendo algumas ideias assumidas por um grupo de teóricas
feministas e rejeitadas por outras. Desse modo:
Expressando-se de formas diversas, por vezes aparentemente independentes,
feminista s e pós-estruturalistas compartilham das críticas aos sistemas
explicativos globais da sociedade; apontam limitações ou incompletudes nas
formas de organização e compreensão do social abraçadas pelas esquerdas;
problematizam os modos convencionais de produção e divulgação do que é
admitido como ciência; questionam a concepção de um poder central e
unificado regendo o todo social, etc (LOURO, 1997, p. 29).
Os teóricos pós-estruturalistas propõem a desconstrução das dicotomias argumentando
que, nesse jogo de duplicidade, os polos são plurais, fraturados e divididos internamente e que
um pólo contém o outro e vice-versa, o que contribui com a criação de uma estratégia
subversiva para o pensamento contemporâneo sobre a rigidez dos gêneros. Isso significa que
68
o pólo masculino contém o feminino e este, o masculino. Pode-se pensar, também, no sentido
de que não existe somente um homem, mas diversos homens que diferem entre si em muitos
aspectos.
Quebrado o status quo da vinculação da sexualidade à reprodução e agora, admitida a
prática sexual, na tentativa incessante do prazer, independe de como era alcançado, não
cabiam mais as argumentações infundadas, impostas pelas regras „heteronormativas‟ de que
as práticas sexuais só poderiam ser consideradas adequadas e próprias à espécie humana,
quando praticadas por indivíduos de sexos opostos.
As novas concepções sexuais e as novas alternativas para à reprodução humana
reveladas pela ciência deram início, nos anos da década de 1960, ao período de grande
questionamento sobre a sexualidade. Entre os inúmeros movimentos sociais que despontaram
nesse período, dois destacaram-se particularmente, o movimento feminista e o movimento
gay, porque ambos passaram a questionar as relações afetivossexuais no âmbito das relações
íntimas do espaço privado.
As lutas desses dois movimentos alcançam tamanha importância, que chegaram
também, a ser discutidos dentro do universo acadêmico e isso se deu, principalmente, por dois
motivos: porque a Universidade sempre representou um lugar de produção de conhecimento
fortemente influenciada pelas lutas sociais e porque se iniciou, então, um movimento, no
interior de diferentes disciplinas, em busca de se encontrar o lugar das mulheres e das
minorias, até então invisíveis no universo acadêmico, mas que faziam parte dos núcleos
intelectuais.
Curiosamente, o campo de estudos que, atualmente, chama-se, no Brasil, de gênero ou
relações de gênero, surgiu nos anos 1970-1980, em torno da problemática da condição
feminina. Os primeiros estudos iniciaram-se com a tese defendida por Heleieth Saffioti no
final dos anos 1960 intitulada „A mulher na sociedade de classes‟, que tinha como
preocupação principal entender a opressão sofrida pela mulher nas sociedades patriarcais.
Um dos livros que influenciou muito a autora citada, ligada ao marxismo, foi o de
Engels (2002) chamado: „A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado‟, no qual
ele defende que a mulher foi a primeira propriedade privada do homem, transformando as
relações sociais, inicialmente sob o domínio do matriarcado (ou seja, do poder das mulheres),
69
para o patriarcado, que seria o poder dos homens. Datam desse período, inúmeros estudos
preocupados com as mulheres em situação de dupla opressão, de classe e de sexo.
Curiosamente, as propostas com as quais se organizaram as obras de Caio foram
justamente as representadas pela trajetória, também de dupla opressão, de classe e sexo, só
que, nesse caso, a preocupação era com o sujeito homoerótico na sociedade brasileira. Esse
fato resultou na multiplicação dos estudos críticos sobre o assunto, especialmente nas últimas
décadas do século XX, motivados pelas correntes do pós-estruturalismo, sobretudo o
feminismo.
3.3.2 Gênero x Sexualidade
Ao contrário do senso comum, atualmente, algumas vertentes científicas já
compreendem a distinção entre gênero (social, cultural) e sexo (biológico), como sendo uma
questão de identidade e não um transtorno, pois de deve distinguir identidade de gênero de
práticas afetivossexuais, visto que sexualidade é apenas uma das variáveis que configuram a
identidade de gênero em concomitância com outras coisas, como os papéis de gênero e o
significado social da reprodução.
De uma forma simplificada, pode-se dizer que sexo é uma categoria que ilustra a
diferença biológica entre homens e mulheres; que gênero é um conceito que remete à
construção cultural coletiva dos atributos de masculinidade e feminilidade (que nomeamos de
papéis sexuais); que identidade de gênero é uma categoria pertinente para pensar o lugar do
indivíduo no interior de uma cultura determinada e que sexualidade é um conceito
contemporâneo para se referir ao campo das práticas e dos sentimentos ligados à atividade
sexual dos indivíduos.
3.3.3 Os papeis de gênero nos contos: ‘Dama da noite’ e ‘O rapaz mais triste do
mundo’
Nas narrativas escritas por Caio (2010), temáticas consideradas tabus sempre
estiveram presentes, nos contos a „Dama da Noite‟ e „O rapaz mais triste do mundo‟ não
poderia ser diferente. Em ambas são abordadas as identidades de gênero, tema considerado
polêmico e pouco discutido em composições de outros escritores da literatura brasileira.
Apesar disso, embora muitos não queiram considerá-lo como um escritor engajado na causa
gay, suas narrativas, principalmente as aqui analisadas, revelam traços de homoerotismo que
70
podem ser analisados à luz da Queer Theory, principalmente, os que sugerem a ideia de
gênero.
No caso do conto „O rapaz mais triste do mundo‟, o homoerotismo funciona de modo
a desautomatizar o olhar sobre a banalidade da vida cotidiana das duas personagens
envolvidas, conferindo uma importância maior à forma como essa relação se dá entre o
homem mais velho, o narrador, e o homem mais novo, do que aos possíveis conteúdos que
funcionam como substrato narrativo, no caso, uma possível motivação homoerótica entre as
duas personagens que se encontram no bar. Note-se que:
[...] subitamente os dois se compõem – esse homem de impermeável cinza,
aquele rapaz de casaco preto, juntos na mesma mesa – e sem que eu esteja
prevenido, [...], de repente eles se olham bem dentro e fundo dos olhos um
do outro. [...] Eles se reconhecem, finalmente eles aceitam se reconhecer.
Eles acendem os cigarros amarrotados um do outro com segurança e certa
ternura, ainda tímida. Eles dividem delicadamente uma cerveja em comum.
Eles se contemplam com distância, precisão, método, ordem, disciplina. Sem
surpresa nem desejo, porque esse rapaz de casaco preto, barba irregular e
algumas espinhas não seria o homem que aquele homem de espaço vazio no
alto da cabeça desejaria, se desejasse outros homens, e talvez deseje. Nem o
oposto: aquele rapaz, mesmo sendo quem sabe capaz de tais ousadias, não
desejaria esse homem através da palma da mão inventando loucuras no
silêncio de seu quarto, certamente cheio que mal acabo de passar, quando é
cedo demais para saber se deseja, fatalmente, outro igual. Quem sabe sim.
Mas este homem, aquele rapaz - não. É de outra forma que tudo acontece
(ABREU, 2010, p. 71-72).
Na obra „Dama da noite‟, entretanto, as definições dos papéis de gênero dos
personagens criados por Caio são ocultados pela inovação estetico-literária, descrita na
composição da personagem título. Nele, a narrativa feita na forma de um monólogo, possui
uma personagem principal que se autodenomina „Dama da Noite‟, impossibilitando
objetivamente identificar, ao certo, o gênero ao qual pertence. Por essa razão, ela passa a
representar a própria imagem do desencantamento e a roda sobre a qual ela tanto divaga
repassa a imagem de uma vida na qual ela não quis ou não pôde se integrar. Consolida-se,
assim, como exemplo de contestação à ordem vigente e aos padrões excludentes da época, que
deram voz a personagens marginais, excluídos pelo conservadorismo cultural do período e pela
sociedade, trazendo-os para o centro da discussão, numa espécie de „protagonismo do diferente‟.
Após essa condição de abertura, as novas propostas de estudos e críticas literárias, as
questões envolvendo a sexualidade e identidades de gênero, nesse caso, passaram a ser
assuntos cada vez mais explorados, como se verifica após as leituras dos contos, uma vez que,
71
em várias oportunidades, os personagens sugerem seres com limitações e que todos, em certo
momento da vida contemporânea, procuram como escape seguir suas inclinações em direção a
esses instintos para apaziguar as múltiplas frustrações, mesmo que todas essas satisfações
desemboquem na imaginação.
Dessa forma, seja fazendo uso de metáforas, intertextualizações, referências sugeridas, o
resultado é uma reflexão sobre as sensações e experiências que o mundo contemporâneo
proporciona aos indivíduos, principalmente, aos que divergem do padrão comportamental
hegemônico, ou socialmente legitimado.
Pode-se afirmar, com segurança, que a leitura das obras de Caio, aqui analisadas, traz à
tona a contradição do sistema em que se vive que transmite a ideia de indivíduos livres para a
realização de sonhos e objetivos, ao mesmo tempo em que impõe um modelo a ser seguido e
limites a serem respeitados. Personagens como os aqui descritos constituem-se como parte
excluída da „sociedade-modelo‟, exemplo visto com relação às questões de gênero, como o
observado no conto „Dama da noite‟.
[...] Esse furinho de veado no queixo, esse olhinho verde me olhando assim
que nem eu fosse a Isabella Rosselline levando porrada e gostando e pedindo
eat me eat me, escrota e deslumbrante. Essa tortura que você está sentido não
é porre, não. É vertigem do pecado, meu bem, tortura do veneno. O que você
vai contar amanhã na escola, hein? (ABREU, 2010, p.115).
Como é possível perceber, no fragmento anteriormente citado, a narradora
personagem-título quase corrói a própria estabilidade do jovem ouvinte que, até aquele
momento, se sentia apenas como um indivíduo com todas as convivências harmônicas, que
deve estabelecer alguém com o meio em que vive, visto que, sendo sua escrita marcada pela
busca da diferença, em espaços comuns ao diferente, como os dos cenários das obras – um bar
e um aquário, que são também o lugar da identidade, por apresentarem, ambos, a ideia de
diversidade. Sua escrita parece buscar o lugar incomum, invulgar, utilizando a mesma ideia de
lugar comum ao diferente, como mostram os cenários onde se passam as obras aqui
analisadas.
Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí
feito roda gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada
no bar [...]. Um aquário de águas sujas, a noite e névoa da noite onde eles
navegam sem me ver, peixes cegos e ignorantes de seu caminho inevitável
em direção um ao outro a mim [...] (ABREU, 2010, p. 109; 65).
72
Com base nisso, pode-se, claramente, perceber as obras de Caio como um lugar onde a
temática da identidade de gênero é posta claramente em discussão. E é nesse contexto
conflitante, em torno da questão envolvendo o universo de partes das minorias (do diferente)
que reside o traço que se considera como queer, na escrita do autor. Esse traço é marcante em
suas obras, principalmente, por mesclar elementos de ordem social e elementos de ordem
estética, numa ruptura com a escrita tradicional. As paixões e os desejos humanos em suas
composições são sempre realizados no espaço social, por isso, Caio usou cenários urbanos,
como os descritos anteriormente.
Contudo, para ele, parece que nenhuma sociedade é capaz de satisfazer plenamente
todos os desejos e anseios humanos, pois, muitas vezes, eles são sufocados e reprimidos por
normas de conduta e comportamento, estabelecidas por uma classe que se sobrepõe às
atitudes dos demais.
Nos exemplos a seguir retirados dos contos: „Dama da Noite‟ e „O Rapaz mais triste
do mundo‟, respectivamente, isso fica bastante claro: [...]Você tem um passe para a roda-
gigante, uma senha, um código, sei lá. [...] Mas eu fico sempre de fora [...] Eles se
contemplam com distância, precisão, método, ordem, disciplina. Sem surpresa nem desejo [...]
(ABREU, 2010, p. 109 e 72).
Como se pode perceber nos fragmentos citados no parágrafo anterior, a questão das
diferenças, principalmente as relacionadas à identidade de gênero abordada por Caio,
aparecem em algum momento, em suas produções sobre a questão específica das minorias no
campo da sexualidade. Essas minorias incluem-se em uma categoria identificável, um sujeito
psicológico, social e cultural, em estado de sujeição ou de oposição a uma categoria
dominante.
Talvez, inspirado pelo princípio de que a “verdadeira liberdade está em criar seus
próprios problemas” (DELEUZE, 1999, p. 9), Caio defenda o ato de colocar novos
problemas, ou seja, de inventá-los, como questão primordial da literatura, como instrumento
de modificação sociocultural. Não se pode esquecer que o movimento social pelos direitos das
minorias sexuais no Brasil se articulou inicialmente em São Paulo, no exato momento em que
amplos setores sociais se mobilizavam na luta pela democracia e pela liberdade de expressão
nas décadas de setenta e oitenta.
73
No final da ditadura militar, período em que os movimentos sociais lutavam pelos
direitos democráticos básicos e pela responsabilização do Estado pelos serviços de acesso
universal, já se lutava por políticas específicas que possibilitassem aos setores sociais
fragilizados pelo preconceito o acesso àqueles direitos democráticos básicos e àquelas
políticas universais.
Nesse caso, possivelmente Caio tenha pensado as minorias sexuais e de gênero na
perspectiva da inserção aos debates sociais e culturais sugeridos por suas produções
literárias, pois, quando ele aborda na Literatura questões sobre às diferenças, como as das
consideradas minorias, principalmente as relacionadas às questões homoafetivas, ele está
deixando de desvincular a ideia de categoria social vitimizada, para a condição de tema a ser
problematizado como movimento de criação de outros modos de vida.
Assim, é interessante atentar ainda que a abordagem do tema referente à categoria de
gênero, vinculado a Queer Theory, é importante na luta do reconhecimento das minorias –
simplesmente por não apontar o gênero como exercício de poder sobre os corpos, mas como
a possibilidade de deslocamentos de gêneros, ou seja, de resistir à normalização dos corpos
de „dentro‟ do discurso de gênero, produzindo outros corpos e, não apenas, o masculino e o
feminino sugeridos pela „heteronormatividade‟.
O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos
no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se
cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma
classe natural do ser. A genealogia política das ontologias de gênero, em
sendo bem sucedida, desconstruiria a aparência substantiva do gênero,
desmembrando-a em seus atos constitutivos, e explicaria e localizaria
esses atos no interior das estruturas compulsórias criadas pelas várias
forças que policiam a aparência social de gênero (BUTLER, 2008, p. 59).
Embora o discurso heteronormativo de gênero esteja sempre tentando passar a ideia de
uma imutabilidade, de uma quase essência de gênero, a qual se cristaliza no tempo para
produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural do ser, a teoria queer aponta,
não para um binarismo de gênero, mas para uma proliferação e dispersão de gêneros.
Dessa forma, para os teóricos queer, as problemáticas das minorias sexuais são, antes
de tudo, questões de gênero, com precedentes para disseminação, tanto da crítica feminista
quanto homoafetiva das discussões literárias, como contextualiza Eagleton (2008, p. 308):
74
Surgiu uma nova geração de estudantes e teóricos da literatura, fascinada
pela sexualidade, mas entediada diante da questão de classe social,
entusiasmada com a cultura popular mas ignorante da história do trabalho,
cativada pela alteridade exótica mas apenas vagamente familiarizada com o
funcionamento do imperialismo.
Especialmente no Brasil, esse fenômeno coincide com a difusão dos contos de Caio
(2010), que se tornou objeto especialmente recorrente da atenção por parte de uma crítica
atenta às questões homoeróticas. Deve-se destacar que certos aspectos favoreceram a
importância do tema sobre as representações homoeróticas na literatura brasileira, nas
narrativas de Caio, podendo-se destacar, principalmente, a abertura política na década de 1990
e o próprio esgotamento das leituras sobre o contexto das classes sociais.
Para compreender o desenvolvimento dessa temática nas obras do autor aqui
analisado, faz-se necessário retomar sua obra, não apenas para verificar a presença de
personagens cuja configuração narrativa lhes atribua traços homossexuais, mas,
principalmente, para verificar como o homoerotismo se atrela a outros temas constituindo
complexos temáticos, tais como: alteridade e status quo, ambos já citados neste estudo.
Num tipo de contestação à ordem vigente e aos padrões excludentes da época, Caio
procurou dar voz a personagens marginais, excluídos pelo conservadorismo do governo desse
período e pela sociedade, trazendo-os para o centro da discussão, numa espécie de
„protagonismo do diferente‟.
Tal mudança de perspectiva foi ampliada consideravelmente, graças às questões
relacionadas ao homoerotismo de suas obras literárias, permitindo uma maior visibilidade a
autores cujas obras enfatizavam a marginalidade ou a inserção problemática de personagens
na sociedade. Seja fazendo uso de metáforas, intertextualizações, referências sugeridas, o
resultado é uma reflexão sobre as sensações e experiências que o mundo contemporâneo
proporciona aos indivíduos, principalmente, aos que divergem do padrão comportamental
hegemônico, ou socialmente legitimado.
A leitura da obra traz à tona a contradição do sistema em que se vive, que alega que os
indivíduos são livres para a realização de sonhos e objetivos, ao mesmo tempo em que impõe
um modelo a ser seguido e limites a serem respeitados. Isso torna notória a luta individual dos
personagens na tentativa de acomodar sentimentos e realizações dentro do mundo narrativo
por ele criado. Caio descreve, nitidamente, o fundamento através do qual seus personagens
75
foram criados e tornaram-se bastante vulneráveis do ponto de vista da criação, diante de um
mundo que se move rapidamente para outra dimensão do real, em que o sexo, os sonhos, a
história e o poder passaram a criar uma desconcertante sensação de engano.
[...] Estar fora da roda é não segurar nenhuma, não querer nada. [...] Nem
você. Quero não boy. Se eu quiser, posso ter. Afinal, trata-se apenas de um
cheque a menos no talão, mais barato que um par de sapatos. Mas eu quero
mais é aquilo que não posso comprar. [...] Aquele que vai entrar um dia
talvez por essa porta, sem avisar. Diferente dessa gente toda. [...]. Eles se
ignoram. Porque pressentem que – Eu invento, sou Senhor do meu invento
absurdo e estupidamente real, porque vou vivendo nas veias agora, enquanto
invento – se cederem à solidão um do outro, não sobrará mais espaço algum
para fugas como alguma trepada da bêbada com alguém de quem não se
lembrará o rosto dois dias depois [...] (ABREU, 2010, p. 117 e 70).
Em ambos os contos a disposição temática presente no primeiro se repete no segundo,
enquanto o universo das personagens de Caio, a natureza e o próprio mundo se encontram
esvaziados de significado e propósito. Por essa razão, as suas personagens estão sempre
sozinhas, mesmo na presença de outros, vivendo uma série de situações existenciais (todas, de
algum modo, relacionadas com a homossexualidade): a insegurança, a angústia, a depressão, a
vergonha, a esperança, a solidariedade e o amor, diante das quais tentam dar sentido às suas
próprias vidas, em um universo igualmente distante e indiferente.
Solitários, os personagens vivenciam um sentimento de isolamento enquanto lutam
para dar sentido às suas vidas. Pode-se, então, afirmar que em um mundo onde tudo é falso,
vazio e sem sentido, Caio conseguiu dramatizar histórias que podem representar as vastas
identidades de gêneros existentes em um mundo absurdo, onde, através do erotismo, suas
personagens transmitem suas experiências e o sexo se confunde com o estar vivo e as
emoções se sobrepõem a todas as formas de alienação, violência, tristezas, mortes e
preconceitos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É inegável a relevância da sexualidade na sociedade ocidental. Mais que uma parte
reprodutiva ou natural, o sexo existe, principalmente, como discurso, como informação, como
imagem, como afirma o próprio Caio (2010, p. 115), em trecho do conto „A Dama da noite‟:
[...] Mas anota aí pro teu futuro cair na real: essa sede, ninguém mata. Sexo é
na cabeça: você não consegue nunca. Sexo é só na imaginação. Você goza
com aquilo que imagina que te dá gozo, não com uma pessoa real, entendeu?
Você goza sempre com o que tá na sua cabeça, não com o que tem na cama.
Sexo é mentira, sexo é loucura, sexo é sozinho, boy.
A argumentação que aqui se fez pertinente, além de desencadear algumas reflexões
acerca dos contos „A Dama da Noite‟ e „O rapaz mais Triste do Mundo‟, ambos de autoria de
Caio Fernando Abreu, presentes na obra „Os dragões não conhecem o paraíso‟, teve ainda
como objetivo principal destacar e analisar três diferentes temáticas: a alteridade, o status quo
e a identidades de gênero, todas conexas à teoria Queer, procurando entender similitudes entre
tais temas, dentro dos contos do autor. Partindo-se do referencial teórico e do procedimento
metodológico comparatista, foram analisados os conceitos e temas, verificando-se elementos
intertextuais e suas influências no contexto das obras.
Para tanto, tornou-se essencial, para a proposta teórica deste trabalho, resgatar a
influência de transformações conceituais, ao longo do percurso histórico do conhecimento e
da literatura, como se discorreu no primeiro capítulo, ao abordar os pressupostos históricos e
literários do final do século XX.
Apesar de não ter sido possível abranger todas as temáticas existentes, possíveis de
associação à teoria queer, considerada como uma das principais transformações conceituais
ocorridas no final do século XX analisaram-se apenas as três já citadas, tendo em vista as suas
visíveis compatibilidades com a proposta comparativa entre os contos. Nesse sentido, foi
possível estabelecer pontos de contato e elementos de ligação entre os temas neles presentes.
Um dos motivos pelos quais o conceito queer, foi usado como elemento de
investigação deste trabalho leva em conta, principalmente, a análise crítica da desconstrução
realizada por autores pós-estruturalistas como Foucault e Derrida, conforme já expressamos à
página trinta e um.
77
Os outros são frutos de sua sintonia com teorias pós-estruturalistas, pós-modernas e
pós-feministas, já que questionam os binômios de identidade, o caráter unitário da
subjetividade e, principalmente, as ideias liberais referentes à autonomia do indivíduo e ao
conceito de comunidade com base no princípio da uniformidade. Princípio este que, quando
convertido em norma, pode transformar-se em instrumento passível de mascarar diferenças
materiais e culturais. Segundo Eagleton (2008, p. 27), o termo pós-moderno refere-se ao:
[...] movimento de pensamento contemporâneo que rejeita totalidades,
valores universais, grandes narrativas históricas, sólidos fundamentos para a
existência humana e a possibilidade de conhecimento objetivo. O pós-
modernismo é cético a respeito de verdade, unidade e progresso, opõe-se ao
que vê como elitismo na cultura, tende ao relativismo cultural e celebra o
pluralismo, a descontinuidade e a heterogeneidade.
Dessa forma, sem pretender desenvolver uma discussão sobre a questão exclusiva da
pós-modernidade, o interesse maior neste estudo foi o de relacionar os temas presentes no
corpus dos contos com seus respectivos contextos, apresentando situações e condições que
fogem aos cânones da modernidade e se aproximam da proposta ideológica sugerida pela
teoria queer, visto que este espírito considerado ativista e provocador empresta à teoria queer
abrangência que congrega os indivíduos marginalizados ou rechaçados pela sexualidade
convencional, cujo elemento marginal está plenamente presente no espaço da cidade, como
uma espécie de refúgio da solidão extremada, tema que também permeia todo o corpus dos
contos.
No entanto, a ideia do „marginal‟, sugerida pela proposta queer, pode ser vista como
fator positivo, pois proclama uma identidade de minorias sexuais que estão em desacordo com
o dominante, o legítimo, o normativo. Atualmente, as chamadas minorias sexuais estão muito
mais visíveis e, consequentemente, torna-se mais explicita e acirrada a luta entre elas e os
grupos conservadores.
A dominação que lhe é atribuída parece, contudo, bastante imprópria. De acordo com
Butler (2002), na sua crítica à natureza dualista da oposição sexo/gênero, ser homem ou ser
mulher é uma construção cultural, resultado de normas que estruturam as práticas sociais e
operam sobre nossos corpos de maneira incisiva e potente.
Entretanto, o pensar em minorias remete a um estado sociológico e cultural de
exploração ou sujeição, concretizado pelos personagens das obras a partir da ideia de permitir
sermos afetados pelos outros, pela vida e, principalmente, pela diferença, pois diferentemente
78
do discurso identitário que constrói uma imagem de minoria relativa a uma categoria social, a
imagem de representação dessa minoria aponta para o fato de que as questões ligadas à
homossexualidade, ou ao negro, ou à mulher e outras categorias menosprezadas, não dizem
respeito, apenas aos homoafetivos, mas à sociedade inteira, pois informam sobre a criação de
outras possibilidades de experiência sexual e afetiva, outros modos de existência.
Nessa perspectiva, a construção da ideia de comum (semelhante), tão ameaçada pelas
tendências fascistas do mundo contemporâneo, é forjada na diferença, contrariando a clássica
noção de comunidade, no pensamento moderno, que enfatiza a comunidade entre iguais, os
laços de pertencimento comuns e a ideia de harmonia e paraíso, que elaboram a imagem de
um agrupamento composto por forças e intensidades díspares que, por isso, produziriam a
sensação de alteridade, cuja diferença seria entendida, não como mera diversidade de
indivíduos ou de identidades, mas como força de produção de novos modos de existência.
Talvez por esse motivo, Caio tenha construído, nos seus contos, personagens
conscientes de banalidades mundanas, em que o vazio e a solidão passam a ser motivos
suficientes para gerar sujeitos melancólicos que se mostram frágeis e fragmentados pelas
exigências impostas pelas culturas urbanas e pela sociedade.
Caio faz um retrato do Brasil contemporâneo, onde os personagens são seres solitários,
que têm, em comum, a marginalidade da sociedade. Nos discursos transparecem as
contradições e os conceitos das realidades vivenciadas (individual e social, externa e interna).
São personagens que estão em busca de satisfação, mesmo que momentânea, desse
sentimento que, na pós-modernidade, é vivenciado fugazmente como ao consumir qualquer
produto. Com isso, é possível fazer uma reflexão de como estão os sentimentos do homem
contemporâneo.
A partir da publicação de Os dragões não conhecem o paraíso (1988), a
crítica parece abandonar aquela imagem de Caio como representante do
projeto existencial de um grupo social, determinado historicamente, e
identifica na obra do autor uma perspectiva mais abrangente. Assim, o olhar
da crítica incide basicamente sobre as personagens, pois refletem o homem
da atualidade, originário de desiguais experiências sociais, mas com algo em
comum com seus semelhantes: a solidão e o vazio das grandes cidades
(LEAL, 2001, p. 46).
Assim, se a noção tradicional de comunidade pressupõe a ideia de um paraíso social
em que todos são aceitos apesar de suas diferenças, o título da obra no qual se encontram os
contos, „Os dragões não conhecem o paraíso‟ parece descrever a representação conflituosa
79
dessa possibilidade harmoniosa de seres considerados bizarros e estranhos, representados pela
figura do „dragão‟, podendo fazer parte de um mundo idealizado como perfeito, representado
pela imagem do „paraíso‟.
Esta imagem, associada a esse ser mitológico que pode ser definido como sem nome
ou sexo, em muitos momentos assume a função de preencher o espaço com um
comportamento extravagante e cheio de julgamentos diante da existência, interpretado como
parte de qualquer um dos personagens, como alguém convictamente consciente do que é e que
vive a realidade que supostamente deseja e, como máxima de descrição, está preso à
perspectiva da solidão, numa narrativa de devaneios, ilusões, desilusões, construções e
desconstruções, de personagens que, por fim, são a representação conflituosa do homem do
fim do século XX.
Os dragões não querem ser aceitos. Eles fogem do paraíso, esse paraíso que
nós, as pessoas banais, inventamos – como eu inventava uma beleza de
artifícios para esperá-lo e prendê-lo para sempre junto a mim. Os dragões
não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito e nada dói nem cintila
ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica falsidade. Seu paraíso é o
conflito, nunca a harmonia (CHAPLIN, 1999, p. 155 e 156).
Com base nos contos de Caio, é possível fazer uma reflexão de como estão os
sentimentos do homem contemporâneo. As ilusões são criadas para, apenas, contentar e poder
sentir um pouco de segurança, de felicidade num tempo tão cheio de incertezas.
No conto „O rapaz mais triste do mundo‟, usam-se como referenciais as concepções
que, nessa narrativa, podem ajudar a desvelar o universo simbólico e intimista dos processos
de composição do conto, visto que, assim como a „Dama da Noite‟, é também narrado na
forma de monólogo.
Nele, os personagens situam-se num espaço noturno, local em que eles se encontram.
Lá, são vigiados por mais uma personagem, o que narra o encontro. Num “aquário de águas
sujas” (ABREU, 2010, p. 65), atmosfera nebulosa, tem-se a noção de conjunto inicial de
Barthes (1993). A metáfora inicial, o aquário, é um recurso que revela o universo no qual se
escondem dores e amarguras descritas pelo narrador, que descreve as ações dos personagens,
e que, em alguns momentos, funde-se com eles.
O desenrolar da narrativa depende do fluxo de percepções que o narrador tem da
atmosfera noturna ali descrita: “à noite e a névoa da noite onde eles navegam sem me ver,
80
peixes cegos ignorantes de seu caminho inevitável em direção um ao outro e a mim.”
(ABREU, 2010, p. 65). Ele, o narrador, coloca-se como personagem integrante desse espaço,
estruturado simbolicamente para revelar ao leitor o que de mais intimista há no universo
descrito.
Caio compõe as imagens de uma atmosfera que, além de nebulosa, tem a pretensão de
situar o leitor num espaço noturno, lugar onde são vistos diversos tipos humanos, que se
escondem em espaços marginais de uma noite fria:
Pleno inverno gelado, agosto e madrugada na esquina da loja funerária, eles
navegam entre punks, mendigos, neons, prostitutas e gemidos de sintetizador
eletrônico - sons, algas, águas – soltos no espaço que separa o bar maldito
das trevas do parque, na cidade que não é nem será mais a de um deles.
(ABREU, 2010, p. 57)
Ele usa personagens que não possuem nome, assim como tantos outros descritos em
suas obras e, principalmente, em „Os dragões não conhecem o paraíso‟, representando assim,
talvez, uma geração já conformada com os limites do aquário, o bar, meio no qual se tem
certeza das completudes que não serão alcançadas junto aos seres que navegam nele. O
homem de quase quarenta anos, ser de papel um tanto enigmático, não possui passado,
segundo a visão do narrador, e isso pode ser encarado como tentativa de resgate dos que
sofreram o apagamento na geração a qual representam, como se os homens que ainda
navegam pela noite pudessem não ter construído alguma história significativa e isso, aos
olhos de quem vê o mundo na perspectiva dos formatados pela estrutura social; é assim
descrito pelo narrador:
Há muitas outras coisas que se poderia dizer sobre esse homem nesta noite
turva, neste bar onde agora entra na cidade que um dia foi a dele. Mas
parado aqui, no fundo do mesmo bar em que ele entra, sem passado, porque
não têm passado os homens de quase quarenta anos que caminham sozinhos
pelas madrugadas – todas essas coisas um tanto vagas, um tanto tolas, são
tudo o que posso dizer sobre ele (ABREU, 2010, p. 66).
Outro personagem, o que dá nome a este conto, „o rapaz mais triste do mundo‟, é um
rapaz de quase vinte anos, também sem nome, mas com significação mais evidente, pois
reflete a tristeza de um jovem já sem espaço para solucionar os próprios conflitos. O rapaz,
diferente do homem maduro, é possuidor de ingenuidade, visto que não viveu o suficiente
para perceber „as águas turvas desse aquário‟. Ele mergulha nos limites do bar:
Um rapaz de quase vinte anos, bebendo um pouco demais, não muito, como
costumam beber esses rapazes de quase vinte anos que ainda desconhecem
81
os limites e os perigos do jogo, com algumas espinhas, não muitas, sobras de
adolescência espalhadas pelo rosto muito branco, entre fios dispersos. [...]
“Por sentido, embora seja certamente verdadeiro que tais metáforas
inventivas tendem a tornar-se metáforas mortas com a repetição (RICOEUR,
1976, p. 64).
Em „O rapaz mais triste do mundo‟, o espelho, imagem que se empenha em remeter à
temática do lago em que Narciso se debruça, anuncia os perigos de querer se aprofundar na
imagem do outro. O símbolo de paraíso, o ambiente aquático, torna-se no conto espaço de
caos que não consegue recompor nenhuma parte fragmentada das personagens. Já no conto
„Dama da Noite‟, que se inicia, também, na forma de monólogo, em que o personagem-
narrador diz: “como se estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito
roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar” (ABREU,
2010, p. 109).
Pode-se observar a manifestação da amargura, do descontentamento, como
possibilidade de participar do convívio social. A „Dama da Noite‟ pode ser descrita como um
exemplo de quem se sente excluída, justamente por sentir-se fora de qualquer formatação, de
qualquer padrão estabelecido pelo status quo sociocultural aceitável. Uma personagem, que
não apresentava definição de gênero, com muita experiência do que é a vida noturna e
conhecedora de todos os códigos de sobrevivência na cultura underground:
Dama da noite, todos me chamam e nem sabem que durmo o dia inteiro. Não
suporto luz, também nunca tenho nada pra fazer... Dama da noite, eles falam,
eu sei. Quando não falam coisa mais escrota, porque dama da noite é até
bonito, eu acho. Aquela flor de cheiro enjoativo que só cheira de noite sabe
qual? Sabe porra: você nasceu dentro de um apartamento, vendo tevê. Não
sabe nada, fora essas coisas de vídeo, performance, high-tech, punk, dark,
computador, heavy-metal e o caralho (ABREU, 2010, p. 110).
A personagem representa o descentramento de um „eu‟ que vê o mundo com a
marginalidade estampada no rosto. Nessas muitas órbitas desordenadas, existentes na ruptura
cultural que constitui, também, o conflito dessa narrativa, ela representa um componente de
minorias que vivem na noite, como meio de fuga aos padrões preestabelecidos pela sociedade.
A „Dama da noite‟ é o reflexo do que pode representar o amor nos ambientes
metropolitanos. Junto à capacidade de amar, a concepção de beleza completamente
influenciada pela supervalorização de uma estética pouco preocupada com a diversidade
humana ali existente. Desse modo, a protagonista é uma estratégia estética utilizada para
personificar ideias de um modelo que foge à lógica dominante.
82
Disso resulta um dos temas pós-modernos, a incerteza – instabilidade de viver na
marginalidade, na qual não existem proteção ou certezas, pois as instituições que lhe davam
respostas – a família, a religião e a estrutura social – já não têm mais respostas, deixando
todos os sujeitos inseguros. Assim, partindo de uma percepção de que os conceitos pré-
estabelecidos se desmistificam, as pessoas pensam o mundo sem maiores limites. E, nos
contos de Caio são construídos personagens que se tornaram símbolos da ruptura iniciada
com o modernismo, símbolos da cultura pós-moderna.
Diante disso, Caio, indubitavelmente, pode ser considerado um dos maiores expoentes
da literatura de temática homoerótica no Brasil, das décadas de 1970 a 1990. Segundo
críticos, embora a história da homotextualidade na literatura brasileira ainda careça de mais
detalhamento, é possível situar sua emergência durante o período do pós-moderno, pois,
somente depois de dada maior visibilidade à questão homossexual na sociedade como um
todo, é que passaram a ser mais centrais nas narrativas as identidades homoeróticas,
“paisagens entre a melancolia e a alegria possível, a deriva sexual e o temor da Aids, a solidão
e a ternura, a desterritorialização e a busca de novos tipos de relações” (LOPES, 2002, p.
140). Uma vez que a literatura está indissociavelmente ligada ao momento histórico e à
cultura em que foi produzida, não se deve perder de vista que ela dialoga com o pensamento
social, seja no reforço ou no questionamento, na ressignificação, de ideologias, preconceitos e
estereótipos.
Dessa forma, o discurso literário é também político, não se devendo encará-lo
inocentemente. Assim, esta dissertação debruçou-se sobre a forma como a representação
literária dos personagens de Caio Fernando Abreu, principalmente os presentes no corpus de
análise de trabalho, numa discussão sobre a identidade sexual, suas implicações e limitações.
Mais ainda, como se pode pensar e repensar política e socialmente essa questão, isso é, de que
modo a literatura de Caio, por meio do enfoque afetivo dos personagens, pode reatualizar a
experiência homoerótica, problematizando as divisões estanques entre homo e
heterossexualidade. Isso se tornou possível, pois, como bem destaca Leal (2002), a obra de
Caio é caracterizada por um:
Texto do descentramento, do estranhamento do mundo, do eu, da vida, numa
realidade em que tudo o que é sólido se desmancha no ar. Sendo a matéria
primeira com que é feita essa obra, a preocupação existencial, possibilitando
defini-la como uma reflexão, literária, ficcional, sobre o que vem a ser estar-
no-mundo, é fundamental perceber que ela é feita "de fora", por um olhar
que Sexualidades em questionamento Mariana de Moura Coelho se encontra
83
"à margem", que optou por ali estar. A relação de proximidade e
distanciamento que caracteriza a forma da interação do estrangeiro é
constituída pela escolha da inquietude, por uma opção existencial, mas
também política, histórica, sexual, ideológica (LEAL, 2002, 78).
Nesse sentido, a fim de analisar narrativas marcadas pelo descontentamento e
estranhamento do mundo, a Queer Theory foi escolhida como principal referencial teórico,
pois permite contemplar os personagens de Caio e suas práticas homoeróticas, sem se prender
à questão identitária e, mais ainda, criticando suas armadilhas e apresentando uma proposta
ideologicamente cultural menos limitada do que a sugerida por movimentos identitários.
Assim, a obra de Caio, na medida em que não se foca em identidades sexuais bem
definidas na representação dos personagens que desempenham práticas homoeróticas, mas em
suas vivências afetivas, íntimas e existenciais, revela um caráter político bastante interessante.
Para tanto, buscou-se a fundamentação nas noções teóricas de autores como Michel Foucault,
Jacques Derrida, Stuart Hall, Judith Butler, entre outros. Ainda que nem todos estejam
vinculados à Queer Theory, especificamente, todos se fizeram necessários no
desenvolvimento de uma argumentação que dialoga com os seus pressupostos.
Com tudo isso e levando em conta as inúmeras exclusões por meio das quais o cânone
literário, em alguns casos, foi ou ainda é formado, esta dissertação não pretendeu, apenas e
simplesmente, exaltar a obra de Caio Fernando Abreu pela visibilidade que proporcionou à
temática homoerótica. Mais que isso, ela pretendeu apresentar, ou melhor, dizendo, situar sua
literatura politicamente, atentando para as nuances mais democráticas, o quanto possível, na
discussão dessa questão, na medida em que se encaram criticamente os diversos discursos
políticos em torno das identidades.
O corpus aqui analisado, os contos „Dama da Noite‟ e „O Rapaz mais triste do mundo‟
de Caio (2010), foi devidamente escolhido por apresentar, em suas narrativas, personagens
que estavam diretamente ligados às questões temáticas anteriormente citadas neste trabalho, e
por apresentarem uma discussão sobre questões relacionadas à identidade, gerando um
vínculo direto aos demais temas que, juntos, mostravam-se pertinentes às questões tratadas
pelas concepções dos estudos Queer, por meio de sua representação, de suas características,
mais do que pelas situações vivenciadas, pelos enredos em si.
Outra observação pertinente, que se deve levar em conta neste momento de conclusão
do trabalho, diz respeito ao foco teórico principal tratado na discussão das práticas
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homoeróticas exclusivamente masculinas. É preciso justificar que não se pretendeu aqui
invisibilizar o homoerotismo feminino, uma vez que ele também se faz presente em obras do
escritor, como na obra “Onde andará Dulce Veiga?”
Entretanto, vai além dos objetivos desta dissertação um aprofundamento maior nessa
questão, apesar de ser igualmente interessante sob o ponto de vista teórico, uma vez que os
personagens dos contos analisados apresentavam características de gênero masculino, embora
não se possa afirmar, ao certo, o gênero da personagem título „Dama da noite‟.
Logo, esta dissertação objetivou esclarecer e buscar respostas que justificassem as
questões ligadas à categoria identificatória, isso é, tal como é entendida atualmente,
levando a uma discussão sobre a identidade da linguagem e da lógica binária e hierarquizada
sobre as quais se fundamentam, tocante ainda às perspectivas dos pontos temáticos da
alteridade e do status quo, usando como base teórica, mais especificamente, a teoria queer.
Como foi possível observar, em ambos os contos aqui analisados, foram feitos recortes
e limitações em favor da afirmação e da coesão de grupos sociais que, com razão, almejavam
maior respeito e aceitabilidade ou, por outro lado, o direito a afirmar sua diferença em relação
ao resto da sociedade. Nas narrativas, entre seus principais objetivos, estava a
problematização da exclusão daqueles que não se encaixavam ao modelo normatizador e que,
com ele, não se identificavam. Eram esses os casos dos personagens centrais das narrativas.
Nesse sentido, recorreu-se a Queer Theory a fim de melhor descrever essa experiência
no tocante às noções de identidades, status quo e alteridade, todos usados como uma forma de
crítica da identidade e da forma política do peso imbuído naqueles que desempenham práticas
sexuais estigmatizadas.
A Queer Theory e os temas discorridos nesta dissertação não foram usados
simplesmente com intuito de analisar as razões da opressão das sexualidades marginalizadas e
buscar formas de superá-las, mas como forma de analisar e compreender particularidades
entre as obras ante a relação das identidades existentes, buscando romper o status quo do
binarismo sobre o qual se fundavam práticas normalizadoras que garantem sua reprodução e
perpetuação.
Do ponto de vista político, e também cultural, a Queer Theory se coloca como
subversiva, mas, ao mesmo tempo, efêmera. É o preço que impõe a instabilidade da
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linguagem que forma as identidades e permite a existência e, principalmente, a prática da
alteridade nas questões relacionadas, principalmente, nesse caso às questões de identidade de
gênero. É importante ressaltar que o corpus dos contos aqui analisados, como objetos de
comparação do universo literário do autor Caio Fernando Abreu, representam ainda, parte da
reprodução histórica em que foram escritos, enfatizando o contexto cultural à época em que
foram produzidos e a visão de mundo que eles repassaram ao público leitor sobre as
perspectivas do escritor.
Acredita-se, ainda, não ter esgotado, de forma alguma, a proposta de pesquisa aqui
apresentada, pois nenhum texto ou escrita sobre ele, segundo Júlia Kristeva (2005), está
totalmente finalizado. Assim, esta dissertação, parafraseando a autora citada, deve apenas ser
vista como parte de uma investigação, repleta de citações e com contribuição de outros textos
e autores, com intuito de colaborar e buscar incentivar novas pesquisas sejam elas sobre este
ou outros temas e autores.
Espera-se, portanto, de alguma forma ter contribuído com o enriquecimento dos
estudos sobre a Queer Theory e os temas a ela relacionados que, na visão do autor deste
trabalho dissertativo, ainda parecem estar relegados a um estado de pouca relevância dos
estudos literários, inclusive os relacionados à Literatura Comparada propriamente dita.
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