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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
ESTER CAVALCANTI DA SILVA ARAÚJO
A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE LEITOR EM MEMÓRIAS DE LEITURA
NATAL – RN 2013
ESTER CAVALCANTI DA SILVA ARAÚJO
A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE LEITOR EM MEMÓRIAS DE LEITURA
Orientadora: Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves.
NATAL – RN 2013
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação de Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de concentração: Linguística Aplicada.
Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Araújo, Ester Cavalcanti da Silva. A construção da imagem de leitor em memórias de leitura / Ester
Cavalcanti da Silva Araújo. – 2013. 000 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de Letras. Programa de Pós Graduação em Estudos da Linguagem, 2013.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria da Penha Casado Alves. 1. Leitura. 2. Professores. 3. Educação permanente. I. Alves, Maria da
Penha Casado. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BSE-CCHLA CDU 028
ESTER CAVALCANTI DA SILVA ARAÚJO
A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE LEITOR EM MEMÓRIAS DE LEITURA
Aprovada em ____ de ________ de 2013
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________ Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves (Orientadora)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
__________________________________________________________ Profa. Dra. Araceli Sobreira Benevides (Examinador Externo)
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
___________________________________________________________ Profa. Dra. Tatyana Mabel Nobre Barbosa (Examinador Interno)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação de Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de concentração: Linguística Aplicada.
À minha mãe e ao meu pai (in memorian), amores preciosos. À minha eterna princesa, minha filha, e ao meu amado esposo, participantes e incentivadores da minha caminhada da vida.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, por ter me dado força e coragem nesses
dois últimos anos para seguir adiante, mesmo com todas as agruras da vida.
Durante esse período, pensei muitas vezes que não conseguiria concluir este
trabalho, pois no período de escrita perdi uma das pessoas que mais amo nesta
vida, meu painho Damião Amaro da Silva, e sem ele a caminhada da vida se tornou
mais dura, mais difícil. Agradeço à minha amada mãe, Vastir Cavalcanti da Silva,
pelo amor, pelo consolo, pelos ensinamentos da vida e por ser minha amiga.
Ao meu amado esposo, Renato Samuel Barbosa de Araújo, meu amigo de
todas as horas, que tem me ajudado com muito amor, carinho e paciência a seguir
nessa jornada da vida, pelo seu companheirismo, incentivo, orientações e apoio.
Sem a sua colaboração, eu não teria chegado até aqui. À minha princesa, Renata
Sophia Cavalcanti Araújo, pelo amor, carinho e por ser uma filha maravilhosa. Foi
por sua causa que cheguei até aqui. Quando olho para você, vejo a mão de Deus,
vejo um milagre da vida, e isso me motiva a prosseguir, a lutar por dias melhores.
Aos meus familiares que direta ou indiretamente contribuíram nessa
caminhada: Danielle Cavalcanti da Silva Borja, Marizinha Alves de Souza e tia Neide
Cavalcanti, principalmente. Aos meus irmãos, Neide Cavalcanti da Silva Santos,
Daniel Cavalcanti da Silva e Dário Cavalcanti da Silva.
Aos meus amigos, Danielle de Paula, Janaína Moreno, Breno, Willame Sales,
Fernanda Moura, Carmela, RhenaRaize, KássiaKamila Moura, Renata Moraes,
Angélica Albuquerque, Rosa e Japonaíra, pelo apoio, incentivo, colaboração, ombro
amigo, amor e carinho.
À professora Maria da Penha Casado Alves, que tem me encaminhado para o
mundo da pesquisa científica desde a graduação. Com ela, aprendi sobre pesquisa,
teorias e, também, sobre a vida, com as suas atitudes de extrema humanidade e
respeito pelo outro. Agradeço por sua paciência, por sua palavra amiga e por sua
generosidade.
Às professoras Tatyana Mabel Nobre Barbosa e Araceli Sobreira Benevides
por aceitarem a participar da banca examinadora e por contribuírem com as suas
considerações a respeito da dissertação.
Às professoras Tatyana Mabel Nobre Barbosa eClaudianny Amorim Noronha,
coordenadoras institucionais do projeto “Leitura/escrita: recortes inter e
multidisciplinares no ensino da matemática e da língua portuguesa”�
(Capes/OBEDUC – PPGED/PPGEL/PPGECNM – DPEC/DLET/DMAT) –, pela
oportunidade de participar deste projeto.
RESUMO
Neste trabalho, analisamos as “memórias de leitura” de professores de língua materna, produzidas em contexto de formação continuada. Tivemos como objetivo compreender o modo como cada sujeito construiu a sua imagem de leitor. Nossa abordagem teórica sobre a construção da imagem de si foi fundamentada na concepção de ethos discursivo, percebendo-o com Charaudeau (2006) como algo construído no entrecruzamento de olhares (de si e do outro). Para compreender o modo como cada professor construiu a sua imagem de leitor nesse entrecruzamento de olhares (de si e do outro), baseamo-nos nas contribuições de Bakhtin (2003, 2010b) sobre o olhar exotópico ou o olhar distanciado/olhar externo. Portanto, na análise, procuramos flagrar o olhar exotópico dos professores sobre si, nas várias fases da sua formação de leitor, e, a partir do nosso olhar exotópico de pesquisadora, demos um acabamento provisório na imagem de leitor que os professores construíram de si. Para a análise, adotamos outros pressupostos teóricos, quais sejam: sobre gêneros discursivos, tema, composição e estilo, enunciado e vozes sociais, baseamos-nos em Bakhtin (1997, 2003, 2010a, 2010b); sobre a noção de ethos discursivo nos ancoramos nos estudos realizados por Maingueneau (2008a, 2008b); sobre a leitura, adotamos os referenciais teóricos de Rojo (2005, 2008, 2009a, 2009b, 2009c, 2009d), Garcez (2002), Freire (2008) e Silva Neto (2007). Pelo fato de o gênero discursivo “memórias de leitura” fazer remissão à temática memória e estar relacionado ao contexto de formação de professores, respaldamo-nos teoricamente em Aragão (1992) e Nóvoa (2007). Situada na área da Linguística Aplicada, a pesquisa se alinha à abordagem qualitativo-interpretativista de base sócio-histórica. Por fim, a partir da análise do corpus, dos dados que emergiram dos enunciados, concluímos afirmando que os leitores construíram imagens de si de leitores ativos, de leituras valorizadas e desvalorizadas pela cultura oficial.
Palavras-chave: Leitura. Gêneros discursivos. Ethos discursivo.
ABSTRACT
In this work, we analyzed reading memories of mother language teachers in continuing education context. Our objective was to understand how each individual has built his/her reader image. Our theoretical approach to the construction of self-image was based on the concept of discursive ethos, understanding it with Charaudeau (2006) as something constructed in the intersection of glances (of the self and the other). To understand how each teacher has built his/her reader image in that intertwining of glances (of the self and the other) we are on the contributions of Bakhtin (2003, 2010b) on exotopic glance or distant/external glance. Therefore, in the analysis, we tried to capture the exotopic glance of the teachers about themselves in the various stages of their reader formation and from our exotopic look of researcher; we gave provisional finish of the reader image that teachers built of themselves. For the analysis, we adopted other theoretical assumptions: about genres, theme, composition and style, statement and social voices we based on Bakhtin (1997, 2003, 2010a, 2010b); on the notion of the discursive ethos we anchored in studies conducted by Maingueneau (2008a, 2008b); about reading, we adopted the theoretical references of Rojo (2005, 2008, 2009a, 2009b, 2009c, 2009d), Garcez (2002), Freire (2008) and Silva Neto (2007). For the discursive genre reading memories makes reference to the theme memory as well as is related to the context of teacher training, the study was supported in Aragão (1992) and Nóvoa's (2007) theory. Situated in the area of Applied Linguistics, the research aligns with qualitative-interpretative approach of socio-historical basis. Finally, from the analysis of the corpus, data that emerged from the findings, we conclude by stating that readers have created images of themselves as active readers, readers interested in both readings, the ones respected and the ones unappreciated by the official culture.
Keywords: Reading. Discursive genres. Discursive ethos.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................... 11
1.1 JUSTIFICATIVA ......................................................................................... 16
1.2 QUESTÕES DE PESQUISA ...................................................................... 17
1.3 OBJETIVOS ............................................................................................... 17
1.3.1 Objetivo geral.................................................................................................. 17
1.3.2 Objetivos específicos ..................................................................................... 18
1.4 ESTRUTURA DO TRABALHO .................................................................. 18
2 ESTADO DA ARTE....................................................................................... 19
3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA .................................................................... 22
3.1 GÊNEROS DISCURSIVOS ....................................................................... 23
3.2 O TEMA, A COMPOSIÇÃO E O ESTILO DOS GÊNEROS DISCURSIVOS25
3.3 O ENUNCIADO CONCRETO: A UNIDADE REAL DA COMUNICAÇÃO
DISCURSIVA ................................................................................................... 31
3.4 AS VOZES SOCIAIS E AS RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE ELAS ...... 37
3.5 O OLHAR EXOTÓPICO: O OLHAR EXTERNO/DISTANCIADO ............... 43
3.6 O CONCEITO DE ETHOS DE ARISTÓTELES E O CONCEITO DE ETHOS
DISCURSIVO DE DOMINIQUE MAINGUENEAU: DA PERSPECTIVA DA
PERSUASÃO À DA ADESÃO DOS SUJEITOS A UM CERTO DISCURSO ... 46
3.7 A LEITURA EM PERSPECTIVA DIALÓGICA ............................................ 51
4 O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DO GÊNERO DISCURSIVO “MEMÓRIAS DE LEITURA” .................................................................................................. 64
5 METODOLOGIA ........................................................................................ 71
5.1 SOBRE O CORPUS .................................................................................. 75
5.2 PERFIL DOS SUJEITOS-COLABORADORES DA PESQUISA ................ 76
5.3 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE ............................................................. 76
5.4 CRITÉRIOS UTILIZADOS PARA A SELEÇÃO DO CORPUS ................... 77
6 ANÁLISE DOS DADOS: A CONSTRUÇÃO ARQUITETÔNICA DAS
“MEMÓRIAS DE LEITURA” ............................................................................ 78
6.1 O TEMA, O ESTILO E A COMPOSIÇÃO DOS ENUNCIADOS ................. 78
6.1.1 O tema dos enunciados ................................................................................. 78
6.1.2 O estilo nos enunciados ................................................................................ 86
6.1.3 A composição dos enunciados ..................................................................... 94
6.2 AS VOZES SOCIAIS SOBRE LEITURA QUE EMERGIRAM DAS “MEMÓRIAS
DE LEITURA” ................................................................................................... 98
6.2.1 As vozes sociais sobre leitura que emergiram do enunciado 1................. 98
6.2.2 As vozes sociais sobre leitura que emergiram do enunciado 2............... 104
6.2.3 As vozes sociais sobre leitura que emergiram do enunciado 3............... 112
6.3 Os ethe de leitor construídos nas “memórias de leitura” .......................... 117
6.3.1 Os ethe de leitor construídos no enunciado 1 ........................................... 118
6.3.2 Os ethe de leitor construídos no enunciado 2 ........................................... 124
6.3.3 Os ethe de leitor construídos no enunciado 3 ........................................... 127
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 133
REFERÊNCIAS .............................................................................................. 136
ANEXOS ........................................................................................................ 141
11
1 INTRODUÇÃO
O nosso interesse pelo estudo do gênero discursivo “memórias de leitura”
ocorreu, inicialmente, na nossa formação inicial, no curso de Letras da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte.
Iniciamos o estudo de tal gênero discursivo no período em que participamos
como monitora da disciplina “Leitura e produção de textos I”. Uma das nossas
atribuições, nessa função, era a de publicar artigos em eventos científicos.
A escolha por esse gênero discursivo para construir os artigos científicos foi
feita por meio da sugestão da nossa orientadora de monitoria, Profa. Dra. Maria da
Penha Casado Alves. Ela possuía um acervo documental composto pelo gênero
discursivo “memórias de leitura”, que foi produzido por uma turma de alunos de um
curso de formação continuada, na UFRN.
Nos artigos que produzimos nesse período, direcionamos o nosso olhar para
a temática “leitura” – já bastante discutida, mas ainda com muitas lacunas a serem
preenchidas –, o que suscitou em nós inquietações diversas, como, por exemplo,
com relação ao discurso propagado por alguns grupos da sociedade sobre a “crise
da leitura” no Brasil, os quais afirmam que o “brasileiro não lê”. Entendemos que
esses discursos estão atrelados diretamente a algumas falas de determinados
segmentos da sociedade, que ressoam ao longo do tempo e que têm como
consequência um ensino de leitura e escrita preconceituoso, segregador, de
exclusão social.
Em relação à discussão sobre a “crise da leitura”, Abreu (2003, p. 42) afirma:
Pensa-se que o bom leitor é um devorador ávido de alta literatura, é alguém que transita com facilidade pela produção intelectual de ponta, que tem os livros como elemento fundamental de sua concepção de mundo. Quem partilha dessa imagem de leitor não se animará muito com casas cheias de cartilhas e livros didáticos, com multidões de leitores de Bíblia na mão.
É com base na perspectiva de leitor de “livros que formam a tradição erudita
nacional e internacional” (ROJO, 2009d, p. 50), leitura privilegiada pela escola, que
12
diversos programas/sistemas de avaliação, possivelmente, concluem que os alunos
avaliados não leem, a partir do que diversos segmentos da sociedade constroem o
discurso da “crise da leitura” no Brasil. A realidade da leitura no Brasil é outra,
conforme mostra a autora. A leitura no cotidiano de muitos brasileiros é composta
por textos privilegiados ou não pela escola e pela sociedade, porém, os
programas/sistemas de avaliação parecem esperar que haja somente uma prática
da leitura privilegiada pela escola e pela sociedade.
Sobre o discurso de que “o brasileiro não lê”, Marucci (2009, p. 184), em sua
pesquisa de doutorado, mostra de quais lugares ele provém:
Mas quais seriam os processos de produção que suportam os discursos de que “o brasileiro não lê”? Esta pesquisa relacionou alguns discursos que sustentam esses processos de produção, como o discurso sobre o brasileiro, o discurso neoliberal, o discurso da escolarização e o discurso jurídico. Cada um desses lugares de produção de sentido afeta o que se diz sobre a leitura no Brasil.
Destacamos, assim, um desses lugares de produção de sentido: o discurso
neoliberal, que foi por um longo tempo ─ e atualmente ainda ressoam suas ações ─
um forte propagador da exclusão social, apontando a leitura de livros como único
meio, único instrumento para definir um sujeito leitor. Conforme concluiu Marucci
(2009, p. 182) em sua pesquisa,
Na região de sentidos em que se inscreve a leitura, o discurso neoliberal ocupa seu lugar, representado pelo mercado de livros, que, por um lado, colabora para a leitura, ao apoiar projetos e programas de incentivo, por outro, leva sua parte dos lucros quando consegue elevar o número de “consumidores de livros”, ou promover “mega-feiras-bienais do livro” de dois em dois anos.
Portanto, o sistema político neoliberal, representado pelo mercado de livros, é
um forte propagador do falso discurso de que o “brasileiro não lê”, utilizando-o para
garantir o seu lucro. O sistema político citado faz uso de projetos e programas para
promover o incentivo à leitura (de livros), no entanto, o seu único objetivo é o de
13
lucrar com a venda de livros. É a partir do segmento político que o restante dos
grupos sociais, como, por exemplo, as escolas ─ que são controlados pelo
segmento político ─, (re)criam e colocam em prática seus discursos, entre eles, o de
que “o brasileiro não lê”.
Algumas ações têm sido promovidas a partir de teorias que pesquisadores da
área da linguagem utilizam para ampliar o conceito de leitura e de leitor, as quais
têm o objetivo de democratizar a leitura, indo de encontro ao conceito de
alfabetização. Dentre elas, Marucci (2009, p. 184-185) apresenta a seguinte:
[...] apesar da crença em que o brasileiro não é leitor, outras formas de conceber o ato de ler ganharam espaço. As correntes de prática de inserção às letras, que têm sido chamadas Letramento, a nosso ver, configuram um acontecimento discursivo, já que trazem uma outra maneira de conceber a leitura, que promove a ampliação dessa prática, no sentido de democratizá-la e de valorizar diversos materiais de leitura. O Letramento constitui uma ruptura com o mesmo, e convive com a tradição de se alfabetizar, na qual se inscreve a afirmação de que “ler é decodificar sinais gráficos”.
Portanto, o Letramento1, contrário aos programas de alfabetização ─ que
têm como objetivo a decodificação de sinais gráficos e que possuem,
historicamente, o livro como objeto para a decodificação ─, pretende democratizar a
escrita e a leitura, valorizando, para tanto, diversos materiais de leitura, além do
livro.
Mafra (2003, p. 1), em um estudo sobre as práticas de leituras não escolarizadas (romances de banca, animes, textos de autoajuda etc.), afirma:
Em “Literatura, dentro, fora e à revelia da escola” (MAFRA, 2003), o então professor de Língua Portuguesa de ensino fundamental e médio de Minas e do Estado do Rio detectava, não obstante, o desinteresse dos alunos pelos textos escolares tradicionais, a presença nas conversas e mochilas daqueles alunos – tidos como mal ou não leitores – de práticas de leitura desprezadas e/ou rechaçadas pela escola, na forma de literatura de massa: best-sellers, romances de banca etc.
1 Compreendemos a importância dos estudos do Letramento, porém, neste trabalho, não iremos entrar em detalhes sobre a teoria. Para mais detalhes, conferir Rojo (2009c).
14
Compreendemos que essa realidade é comum em todos os estados do
Brasil. Talvez isso ocorra porque os alunos não conseguem ver uma relação entre
os textos escolares tradicionais e a sua realidade social, com as suas práticas de
leitura e escrita do cotidiano. Ademais, no dia a dia, fora da escola, estão imersos
em práticas de leitura desprezadas por ela, como, por exemplo: best-sellers,
romances de banca, revistas etc. Assim, entendemos que os alunos leem, sim, só
não o que as instituições escolares esperam que eles leiam.
Sobre a leitura no espaço escolar, Marucci (2009, p. 185) afirma que
[...] o discurso da escolarização, muitas vezes, enforma a atividade de leitura, reduzindo-a ao espaço escolar e afastando-a de se tornar prática cultural naturalizada. A escola sustenta que somente algumas obras devem ser lidas por seu valor “inconteste”. Enquanto rejeitar a participação da cultura de leitura provinda da comunidade escolar o distanciamento entre o brasileiro e a leitura permanecerá.
O problema do privilégio da leitura de textos literários valorizados pela cultura
oficial dentro do espaço escolar, relacionado ao ensino da gramática normativa, é
um ponto fundamental para compreendermos as prováveis causas de insucesso
escolar no Brasil ─ no que se refere à leitura e à escrita de textos ─, pois o texto
literário valorizado pela cultura oficial é, frequentemente, utilizado na escola como
um meio para o ensino das normas gramaticais da variedade da língua padrão, da
norma culta; o texto literário valorizado pela cultura oficial é considerado pela escola
como modelo de escrita, em detrimento de uma enorme variedade de textos que
circulam na sociedade e que também são importantes para a formação do aluno,
para que ele possa agir na sociedade. Ademais, entendemos que é importante a
escola levar em consideração a leitura para além dos muros escolares, das salas de
aula, não se restringindo às obras valorizadas pela cultura oficial, de livros literários,
pois os alunos são sujeitos sociais que têm as suas singularidades, seus gostos de
leitura e necessidades que devem ser respeitados para que o discurso de que os
“brasileiros não leem” ─ livros valorizados pela cultura oficial ─ não exerça mais
influência na definição de projetos/programas de leitura e, consequentemente, em
resultados estatísticos (negativos) da educação brasileira, no que concerne à leitura.
15
Rojo (2009a), em um estudo sobre as prováveis causas do insucesso escolar
no Brasil no século XXI, utilizou dados que mostram as capacidades de leitura,
escrita e letramentos escolares dos alunos brasileiros avaliados em exames, entre
eles, PISA, ENEM e SAEB. Concluiu, então, que os resultados são negativos, que
configuram, em geral, problemas e que
isso vem demonstrar que a escola ─ tanto pública como privada, neste caso ─ parece estar ensinando mais regras, normas e obediência a padrões linguísticos que o uso flexível e relacional de conceitos, a interpretação crítica e posicionada sobre fatos e opiniões, a capacidade de defender posições e de protagonizar soluções, apesar de a “nova” LDB já ter doze anos (ROJO, 2009a, p. 33).
Em pleno século XXI, é frustrante ver que o ensino de leitura e escrita é
pautado prioritariamente (ou unicamente) em regras, normas e obediência a padrões
linguísticos. Enquanto isso, na vida cotidiana, as práticas sociais exigem dos alunos,
sujeitos-cidadãos, capacidades e competências para além das normas linguísticas
bem como posicionamentos, opiniões e soluções sobre fatos concretos, os quais a
escola e as instituições de ensino superior estão, por motivos diversos, sonegando.
Rojo (2009a, p. 35-36), ainda, faz uma reflexão a respeito da ineficácia das
práticas didáticas:
Para além de nossa experiência cotidiana das salas de aula e da impressão de desinteresse, desânimo e resistência dos alunos das camadas populares em relação a propostas de ensino e letramento oferecidas pelas práticas escolares, resultados concretos e mensuráveis como esses configuram um quadro de ineficácia das práticas didáticas que nos leva a perguntar: como alunos de relativamente longa duração de escolaridade puderam desenvolver capacidades leitoras tão limitadas? A que práticas de leitura e propostas de letramento estiveram submetidos por cerca de dez anos? A que textos e gêneros tiveram acesso? Trata-se de ineficácia das propostas? De desinteresse e enfado dos alunos? De ambos? Que fazer para constituir letramentos mais compatíveis com a cidadania protagonista?
16
Nesse fragmento, a autora mostra que o desinteresse, o desânimo e a
resistência dos alunos das camadas populares estão relacionados às propostas de
ensino e letramento oferecidas pelas práticas escolares, propostas estas que estão
desvinculadas das suas necessidades cotidianas, da sua realidade social. Por fim,
Rojo (2009a) questiona aspectos importantes acerca da prática de leitura em sala de
aula, os quais dizem respeito a uma realidade atual e comum, em todo o território
brasileiro, sobre a qual todo docente de língua materna deveria refletir.
Portanto, neste trabalho, tentamos amenizar as nossas inquietações
relacionadas às práticas de ensino-aprendizagem de leitura por meio de um
determinado grupo de sujeitos, em um determinado espaço e em um determinado
tempo. Por fim, em concordância com Benevides (2005), afirmamos que
[...] pretendemos olhar as práticas de leitura dos/as alunos/as, numa perspectiva despida de preconceitos e de uma postura elitista, que só entende a leitura a partir de textos pré-selecionados ou escolhidos como clássicos ou modelos. Com isso, procuramos as práticas silenciadas, ocultadas ou pertencentes ao senso comum.
É com esse olhar que pretendemos nos posicionar no tocante às práticas de
leitura dos/as alunos/as neste trabalho.
1.1 JUSTIFICATIVA
O gênero discursivo que selecionamos para a pesquisa foi “memórias de
leitura”, que tem sido uma fonte para a investigação de aspectos relacionados à
leitura de discentes e sobre questões discursivas diversas.
Optamos pelas “memórias de leitura” porque compreendemos que estas se
constituem como um meio eficaz de os docentes refletirem a respeito das suas
práticas de sala de aula. Ademais, o momento atual de mudanças ─ sociais,
econômicas, tecnológicas, no comportamento dos discentes, nos gostos dos
discentes bem como na exigência de um sujeito mais ativo na sociedade ─ requer
um docente atualizado com as novas teorias que balizam a sua prática educacional,
17
e esse gênero pode propiciar a ele uma reflexão e possíveis mudanças em sua
prática de sala de aula.
Já em relação ao estudo do ethos discursivo, neste trabalho, consideramos
como relevante, pois os ethe2 discursivos que emergiram podem proporcionar aos
docentes ─ possíveis leitores desta pesquisa ─ uma reflexão sobre a sua prática de
formação de leitores e sobre a sua própria formação de leitor, percebendo que
existem variados leitores e, inclusive, que eles se encaixam em um ou mais dos ethe
discursivos de leitor que emergiram na análise, o que proporciona uma reflexão
sobre a sua prática de ensino de leitura.
Portanto, com este trabalho, pretendemos contribuir com reflexões teóricas a
respeito da leitura, do gênero discursivo “memórias de leitura” e, também, do ethos
discursivo.
1.2 QUESTÕES DE PESQUISA
Como foram construídas as “memórias de leitura” nos aspectos
composicionais, temáticos e estilísticos?
Que vozes sociais emergiram no processo de escrita sobre suas experiências
de leitura?
Que marcas linguístico-discursivas foram mobilizadas na escrita sobre o
percurso de leitura para a construção do ethos discursivo de leitor?
1.3 OBJETIVOS
1.3.1 Objetivo geral
Compreender o modo como cada sujeito construiu a sua imagem de leitor nas
“memórias de leitura” produzidas no “Curso de Especialização em Língua
2 Termo referente ao plural de ethos.
18
Portuguesa: Leitura, Produção de Textos e Gramática”, da UFRN, realizado no ano
de 2007.
1.3.2 Objetivos específicos
Delinear os aspectos composicionais, temáticos e estilísticos do gênero
discursivo “memórias de leitura”.
Identificar as vozes sociais que se relacionam para a formação de leitor.
Explicitar, com base nas marcas linguístico-discursivas, o modo como
cada sujeito construiu a sua imagem de leitor.
1.4 ESTRUTURA DO TRABALHO
Este trabalho encontra-se organizado em sete capítulos. A introdução
apresenta algumas questões referentes ao ensino de língua materna,
especificamente ao ensino de leitura. Está dividida em três seções: a justificativa da
escolha das “memórias de leitura” para a realização da pesquisa, as questões de
pesquisa e os objetivos da pesquisa.
O capítulo 2 apresenta o estado da arte dos temas “memórias de leitura”, que
foi o enunciado que selecionamos para esta pesquisa, e ethos discursivo.
O capítulo 3 expõe a fundamentação teórica que serviu de base para o
diálogo na análise. Está dividido em sete seções: gêneros discursivos; o tema, a
composição e o estilo dos gêneros discursivos; o enunciado concreto: a unidade real
da comunicação discursiva; as vozes sociais e as relações dialógicas entre elas; o
olhar exotópico: o olhar externo/distanciado; o conceito de ethos de Aristóteles e o
conceito de ethos de Dominique Maingueneau: da perspectiva da persuasão à da
adesão dos sujeitos a um certo discurso, que fizemos uma relação com o conceito
de exotopia; e a leitura em perspectiva dialógica.
O capítulo 4 destaca o contexto sócio-histórico do gênero discursivo
“memórias de leitura”.
19
O capítulo 5 traz a metodologia da pesquisa. Está dividido em quatro seções:
sobre o corpus; perfil dos sujeitos colaboradores da pesquisa; procedimentos de
análise; e critérios utilizados para a seleção do corpus.
O capítulo 6 apresenta a análise realizada, em que as questões de pesquisa
foram integralmente, embora provisoriamente, respondidas.
O capítulo 7 conclui a dissertação, mostrando a reflexão sobre o ensino-
aprendizagem de língua materna e destacando a formação de leitura a partir da
compreensão das categorias que emergiram dos enunciados dos leitores.
Afirmamos, assim, que essa organização do trabalho foi construída mediante
muitas leituras, escritas, reescritas e apagamentos necessários para alcançarmos o
objetivo deste trabalho, o qual, provisoriamente, foi bem-sucedido.
2 ESTADO DA ARTE
20
Docentes da graduação e da pós-graduação, de áreas diversas do
conhecimento, têm adotado alguns gêneros discursivos na sua prática de ensino em
sala de aula, com fins variados, como memória, autobiografia, história de vida,
memorial, entre outros. É notório, dentre eles, o uso de memoriais de leitura ou, com
outra nomenclatura, de “memórias de leitura”. Tais trabalhos têm suscitado interesse
em pesquisadores das mais diversas áreas e bases teórico-metodológicas.
Embora não trate do gênero discursivo “memórias de leitura”, destacamos
inicialmente um dos estudos pioneiros no Brasil com base na temática memória, que
desencadeou uma série de outras pesquisas sobre gêneros discursivos diversos,
realizado por Bosi (1994) e intitulado Memória e sociedade: lembranças de velhos. A
seguir, iremos apresentar alguns trabalhos que versam sobre “memórias de leitura”.
Benevides (2008) realizou um estudo utilizando o gênero discursivo memorial
de leitura, em 2002, com uma turma de formação inicial do 6º período do curso de
Letras da UERN. O trabalho tinha o objetivo de analisar os memoriais, observando o
percurso de leitura dos alunos e refletindo sobre o modo como esses sujeitos se
tornaram leitores. Constatamos que tal estudo teve a finalidade de “[...] conhecer o
que é dito sobre essas leituras e como são experenciadas para perceber quais os
caminhos que o/a professor/a-formador/a pode tomar para a preparação de uma
prática reflexiva da atividade de ler [...]” (BENEVIDES, 2008, p. 90). A autora
defende que esses futuros docentes deveriam ter uma formação de leituras
diversas, podendo “ler para compreender, refletir, assumir novas posturas; ler para
dialogar, ensinar, encenar, recitar, rememorar; ler para ensinar a ler, provocar,
resistir, etc.” (BENEVIDES, 2008, p. 101).
Outro estudo a respeito do gênero discursivo “memórias de leitura” foi
realizado por Barreiros (2007), com duas turmas do 1º e 4º anos da UNIOESTE, em
Cascavel/PR. Os dados analisados foram coletados por meio de depoimentos sobre
práticas e preferências de leitura no curso de Letras, em 2007, no início do ano
letivo. Para analisar as memórias, a pesquisadora utilizou os pressupostos teóricos
da Análise do Discurso (AD). De acordo com ela,
esse procedimento vem sendo realizado no primeiro ano do curso de Letras há dois anos com o objetivo de compreender se as
21
representações e memórias de leitura trazidas pelos acadêmicos para o primeiro ano do curso de Letras interferem (ou não) no processo de formação em leitura no curso superior. Para o quarto ano, nossos objetivos estão voltados, especialmente, para as referências sobre o papel da universidade – Curso de Letras – na formação do leitor/docente (BARREIROS, 2007, p. 1).
Nesse estudo, a autora buscou relacionar a prática de leitura dos acadêmicos
antes do ingresso na universidade, durante o processo de formação, verificando se
essas leituras anteriores interferiam, ou não, na prática da leitura no curso superior,
e no quarto ano da turma, refletindo sobre o papel da universidade na formação
desses alunos.
Um terceiro estudo sobre “memórias de leitura” foi desenvolvido por um grupo
de pesquisadoras da área de Educação, juntamente com pesquisadores da área de
Linguística Aplicada: Ana Lúcia Guedes Pinto, Geisa Genaro Gomes e Leila Cristina
Borges (2008), que integram um projeto de pesquisa denominado “Formação do
professor: processos de retextualização e práticas de letramento”. A pesquisa foi
realizada com estudantes de Pedagogia e tinha como objetivo refletir sobre seus
percursos como sujeitos leitores. Segundo os autores, “a metodologia segue os
pressupostos da História Oral e dos estudos das ciências da linguagem” (GUEDES-
PINTO; BORGES; GOMES, 2008, p. 74).
Em relação aos estudos sobre ethos discursivo, destacamos um livro que tem
como título Ethos discursivo, organizado pelas pesquisadoras Motta e Salgado
(2008). Essa obra apresenta vários trabalhos, de autores diferentes, com reflexões
diversas, embora todos tratem do ethos discursivo.
Nos estudos a respeito do ethos discursivo, também verificamos o artigo de
Trouche (2010), que faz uma correlação com o gênero discursivo carta do leitor.
Segundo a autora, esse trabalho tem como objetivo abordar o ethos discursivo sob o
ponto de vista da encenação discursiva no gênero carta de leitor, seguindo os
pressupostos teóricos de Charaudeau (2006), com apoio nos princípios da
linguística da enunciação de Koch (2012), relacionados às questões de construção
do ethos, focalizadas por Maingueneau (2008a). O estudo foi realizado com uma
“carta de leitor” do jornal O Globo, publicada na seção fixa “Dos leitores”.
Outro trabalho que pesquisamos sobre ethos discursivo foi uma dissertação
em que o autor (CRISTÓVÃO, 2010) teve como objetivo observar práticas
22
identitárias de professores de espanhol a partir de uma abordagem discursiva,
fundamentada pela noção de ethos discursivo baseada nos estudos de
Maingueneau. Na pesquisa, é proposta uma perspectiva de análise que relaciona
conceitos da Análise do Discurso de linha francesa (AD) e dos Estudos Culturais, o
que dá ao trabalho um caráter interdisciplinar.
Por último, fazemos referência a um estudo que Maingueneau (2010, p. 47)
realizou acerca do ethos discursivo, correlacionando-o a sites de relacionamento.
Nesse trabalho, o autor analisou como as pessoas que participam desses sites
faziam a apresentação de si, afirmando que o ethos se manifesta em quatro planos:
1) “através do pseudônimo que cada anunciante deve adotar”;
2) “como ethos dito: o anunciante pode, de fato, dar informações sobre si
mesmo que contribuirão para ativar o seu ethos não discursivo”;
3) “como o ethos propriamente discursivo, mostrado, é construído pelo
destinatário a partir de índices que são dados pela enunciação” e;
4) “como o ethos é construído a partir da ou das fotos do anunciante”.
No decorrer da pesquisa, ao formularmos o estado da arte, percebemos
trabalhos bastante expressivos voltados para as temáticas “memórias de leitura” e
“ethos discursivo”, os quais podem contribuir para a reflexão tanto do percurso de
leitor, questões relacionadas à leitura, quanto para compreendermos o processo de
construção da imagem de si.
3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
23
Para a realização deste trabalho, recorremos aos referenciais teóricos de
gêneros discursivos, enunciado, vozes sociais e olhar exotópico, baseados em
Bakhtin (1997, 2003, 2010a, 2010b); para a concepção de leitura nos voltamos aos
estudos de Garcez (2002), Freire (2008) e Rojo (2009a), que compartilham da visão
de que a leitura vai além da decodificação; para a leitura em sala de aula, adotamos
a visão, principalmente, de Silva Neto (2007), que defende uma leitura de textos
variados em sala de aula. Na formulação teórica de “memórias de leitura”,
respaldamo-nos em Aragão (1992), que faz um estudo histórico sobre as memórias,
e Nóvoa (2007), que trata de dispositivos que procuram rememorar as práticas dos
professores através de várias estratégias (narrativas orais, relatos escritos etc.).
Além dos referenciais teóricos citados, adotamos outros que foram basilares para
atingirmos os nossos objetivos nesta pesquisa, quais sejam: a noção de ethos
discursivo apresentada por Maingueneau (2008a, 2008b) e Charaudeau (2006) e as
formulações teóricas de Bakhtin (2003, 2010b) sobre o olhar exotópico. Por fim,
afirmamos que compreendemos ethos discursivo, concordando com Charaudeau
(2006), como algo construído no cruzamento de olhares e, para ampliar essa visão,
utilizamos as postulações feitas por Bakhtin (2003, 2010b) sobre o olhar exotópico
ou o olhar distanciado.
3.1 GÊNEROS DISCURSIVOS
O filósofo russo Mikhail Bakhtin (2003, 2010b), ao refletir sobre a linguagem e
seu uso, renovou o conceito de gêneros do discurso, trazendo novos
direcionamentos para os estudos linguístico-discursivos. Estudavam-se antes os
gêneros literários, os gêneros retóricos (jurídicos, políticos) e os gêneros discursivos
do cotidiano (principalmente as réplicas do diálogo cotidiano). Porém, os gêneros
literários eram analisados, desde a Antiguidade, de acordo com Bakhtin (2010b, p.
263), sob a perspectiva artístico-literária e não como “determinados tipos de
enunciados, que são diferentes de outros tipos mas têm com estes uma natureza
verbal (linguística) comum”. Ele afirma que os gêneros retóricos, também desde a
Antiguidade, tinham uma relação com a natureza verbal desses gêneros enquanto
enunciados, que levava em consideração o ouvinte e sua influência sobre o
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enunciado. Os gêneros discursivos do cotidiano eram estudados sob a perspectiva
da linguística geral, como um diálogo simples, sem considerar os autores dos
enunciados, seus posicionamentos axiológicos, ideológicos, o papel ativo do outro
no processo de comunicação discursiva, entre outros aspectos contemplados nos
enunciados pelo filósofo russo.
O autor russo, ao construir a sua teoria sobre os gêneros do discurso, explica:
Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana [...]. O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo de linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2010b, p. 262, grifos do autor).
Na sua teoria, a linguagem tem um papel fundamental. Ele inicia esse
fragmento relacionando o uso da linguagem aos diversos campos da atividade
humana, até apresentar o conceito de gêneros do discurso. Ressalta que os três
elementos do enunciado, “o conteúdo temático”, “o estilo” e “a construção
composicional”, estão diretamente e na mesma proporção ligados ao enunciado e
são determinados pela especificidade de cada campo da comunicação. Conclui
conceituando o que são os gêneros do discurso: “tipos relativamente estáveis de
enunciados”.
Sobre a riqueza e a variedade dos gêneros do discurso, o autor afirma:
[...] são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo. Cabe salientar em especial a extrema
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heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos) [...]. (BAKHTIN, 2010b, p. 262).
Portanto, compreendemos que os gêneros do discurso são tão variados que
não temos como enumerar. Eles crescem em número na medida em que
determinados campos da comunicação discursiva se complexificam.
O autor mostra, ainda, que os gêneros do discurso são divididos em primário
e secundário, apresentando a diferença entre eles:
Os gêneros discursivos secundários (complexos – romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) – artístico, científico, sociopolítico, etc. No processo de formação eles incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata (BAKHTIN, 2010b, p. 263).
A diferença entre os gêneros do discurso secundários e primários, conforme o
autor, é que o primeiro é mais complexo, está ligado a atividades culturais mais
complexas, e aparece, geralmente, na modalidade escrita; já o segundo é mais
simples, sendo formado “nas condições da comunicação discursiva imediata”. O
autor mostra como os gêneros secundários são formados, por exemplo, romances,
dramas, pesquisas científicas e os grandes gêneros publicísticos: no processo de
convívio cultural mais complexo, como o científico, sociopolítico e artístico ─ “eles
incorporam e reelaboram diversos gêneros primários”, ou seja, eles são formados
por vários gêneros primários.
A seguir, iremos apresentar os três elementos que estão diretamente ligados
ao todo do enunciado: o conteúdo temático (o tema), a construção composicional e o
estilo.
3.2 O TEMA, A COMPOSIÇÃO E O ESTILO DOS GÊNEROS DISCURSIVOS
26
O tema do enunciado/da enunciação é um termo sujeito a dúvidas, pois
muitas vezes se confunde com o tema de uma obra de arte
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010a, p. 133) ou o assunto tratado em um enunciado,
por exemplo. Em seus estudos sobre a língua, Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 133)
apresentam a definição de tema:
Um sentido definido e único, uma significação unitária, é uma propriedade que pertence a cada enunciação como um todo. Vamos chamar o sentido da enunciação completa o seu tema. O tema deve ser único. Caso contrário, não teríamos nenhuma base para definir a enunciação. O tema da enunciação é na verdade, assim como a própria enunciação, individual e não reiterável.
A partir dessa definição, podemos compreender que em cada
enunciado/enunciação existe um tema que é único, individual, irrepetível,
diferentemente do assunto, por exemplo, que pode ser repetido em
enunciados/enunciações diferentes. Na sequência, Bakhtin/Volochínov (2010a, p.
133) mostram como o tema se apresenta:
Ele se apresenta como a expressão de uma situação histórica concreta que deu origem à enunciação. A enunciação: “Que horas são?” tem um sentido diferente cada vez que é usada e também, consequentemente, na nossa terminologia, um outro tema, que depende da situação histórica concreta (histórica, numa escala microscópica) em que é pronunciada e da qual constitui na verdade um elemento.
Compreendemos, então, que o tema é condicionado a uma situação histórica
concreta, a um contexto histórico. Por isso, um mesmo enunciado concreto ou uma
mesma enunciação completa, pronunciado(a) em momentos diversos, ganha
sentidos diferentes e, em consequência, apresenta temas diferentes, pois não temos
como concretizar um enunciado/uma enunciação da mesma forma em situações
distintas, mesmo que ele(a) seja pronunciado(a) por um mesmo sujeito. O exemplo
nos mostra que o tema pode ser depreendido de uma oração, desde que ela se
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apresente como um enunciado concreto/uma enunciação completa, isto é, seja fruto
de uma situação histórica concreta, pronunciada por algum sujeito.
Para Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 133-134),
[...] o tema da enunciação é determinado não só pelas formas linguísticas que entram na composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as entoações), mas igualmente pelos elementos não verbais da situação. Se perdermos de vista os elementos da situação, estaremos tampouco aptos a compreender a enunciação como se perdêssemos suas palavras mais importantes. O tema da enunciação é concreto, tão concreto como o instante histórico ao qual ela pertence. Somente a enunciação tomada em toda a sua amplitude concreta, como fenômeno histórico, possui um tema. Isto é o que se entende por tema da enunciação.
Nesse excerto, compreendemos que o tema do enunciado
concreto/enunciação completa é depreendido não somente por meio das formas
linguísticas, mas, também, pelo contexto extraverbal que “[...] compreende o
compartilhamento pelos interlocutores do horizonte espaço-temporal, do
conhecimento da situação e de avaliações e julgamentos” (GEGE, 2009, p. 99).
Ao tratar sobre o tema em conexão com o problema da compreensão,
Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 136-137) afirmam que “qualquer tipo genuíno de
compreensão deve ser ativo, deve conter já o germe de uma resposta. Só a
compreensão ativa nos permite apreender o tema [...]”.
Em relação ao estilo, Bakhtin (2010b) compreende que o estilo individual é
construído a partir de, no mínimo, duas consciências: eu-outro, mesmo que o “outro”
seja a consciência do próprio sujeito, como podemos ver no exemplo em que
Bakhtin (1997, p. 75) cita a personagem Raskólnikov, a qual trava um diálogo
consigo mesma (“o monólogo interior dialogado”), como se conversasse com outra
pessoa. Mesmo assim, seu discurso interior está cheio de palavras, enunciados de
“outros”, pois o consciente e o discurso interior são formados socialmente pela
pluralidade de vozes. Portanto, apesar de o estilo individual ser construído dessa
forma, pela alteridade, ele é singular, pois cada sujeito é único, irrepetível.
Bakhtin (2010b, p. 265), ao realizar o estudo sobre os gêneros do discurso,
trouxe para a discussão a questão do estilo, afirmando, inicialmente:
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Todo estilo está indissoluvelmente ligado ao enunciado e às formas típicas de enunciados, ou seja, aos gêneros do discurso. Todo enunciado ─ oral e escrito, primário e secundário e também em qualquer campo da comunicação discursiva [...] ─ é individual e por isso pode refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve), isto é, pode ter estilo individual.
Portanto, para compreender o estudo bakhtiniano acerca de estilo, é
necessário o entendimento de que o estilo não se dissocia do gênero do discurso,
aquele é um dos componentes deste, em qualquer esfera da comunicação
discursiva, no gênero oral ou escrito, ou, ainda, primário ou secundário, podendo
ter como característica o posicionamento individual do falante/escrevente.
Compreendemos também que o auditório do falante define o seu estilo.
Nesse sentido, concordamos com o filósofo russo quando ele afirma que “o mundo
interior e a reflexão de cada indivíduo têm um auditório social próprio bem
estabelecido, em cuja atmosfera se constrói suas deduções interiores, suas
motivações, apreciações, etc.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010a, p. 117).
Porém, não é em todos os gêneros do discurso que o estilo individual se
manifesta, conforme o autor chama a atenção:
Entretanto, nem todos os gêneros são igualmente propícios a tal reflexo da individualidade do falante na linguagem do enunciado, ou seja, ao estilo individual. Na imensa maioria dos gêneros discursivos (exceto nos artísticos-literários), o estilo individual não faz parte do plano do enunciado, não serve como um objetivo seu, mas é, por assim dizer, um epifenômeno do enunciado, seu produto complementar (BAKHTIN, 2010b, p. 265).
Após informar que nem todo gênero discursivo é propício à emergência do
estilo individual, o autor apresenta os gêneros do discurso mais favoráveis a essa
ocorrência:
Os gêneros mais favoráveis da literatura de ficção: aqui o estilo individual integra diretamente o próprio edifício do enunciado, é um
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dos seus objetivos principais (contudo, no âmbito da literatura de ficção, os diferentes gêneros são diferentes possibilidades para a expressão da individualidade da linguagem através de diferentes aspectos da individualidade) (BAKHTIN, 2010b, p. 265).
Ele declara que os gêneros mais propícios para a presença do estilo
individual são os da literatura de ficção, campo de investigação que muito apreciava
e utilizou em seus estudos para tratar de questões relacionadas à linguagem, em
sua concepção dialógica. Porém, esse traço de individualidade pode ser observado
em gêneros discursivos diversos, pois, além de estudos de gêneros discursivos
pertencentes ao campo da literatura, Bakhtin contemplou os estudos de outros
gêneros do discurso, não literários, que circulam nas variadas esferas da sociedade.
A seguir, apresenta os gêneros do discurso menos propícios para a expressão da
individualidade da linguagem:
As condições menos propícias para o reflexo da individualidade na linguagem estão presentes naqueles gêneros do discurso que requerem uma forma padronizada, por exemplo, em muitas modalidades de documentos oficiais, de ordens militares [...] (BAKHTIN, 2010b, p. 265).
Nesses documentos oficiais, o efeito de individualidade é menos propício
porque a sua construção composicional, o seu conteúdo temático, geralmente, são
fixos, rígidos, não havendo, dessa forma, espaço para marcas de individualidade,
diferentemente de outros gêneros do discurso, pertencentes tanto às camadas
literárias quanto às camadas não literárias, que não têm uma estrutura fixa, rígida,
portanto, são mais propícios à presença das marcas de individualidade.
Além do estilo individual, Bakhtin (2010b, p. 266) estudou o estilo funcional,
ou seja, o estilo do gênero do discurso de determinadas esferas da atividade
humana e da comunicação, conforme afirma:
A relação orgânica e indissolúvel do estilo com o gênero se revela nitidamente também na questão dos estilos de linguagem ou funcionais. No fundo, os estilos de linguagem ou funcionais não são
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outra coisa senão estilos de gênero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicação. Em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às condições específicas de dado campo; é a esses gêneros que correspondem determinados estilos. Uma determinada função (científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo, geram determinados gêneros.
Esse estilo é condicionado por alguns fatores, como enfatiza o filósofo:
“determinada função (científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e
determinadas condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo”.
Portanto, quando construímos enunciados, os concretizamos por meio de gêneros e,
de acordo com os nossos objetivos, utilizamos determinados gêneros, que são
próprios de cada campo discursivo.
Os gêneros do discurso, de acordo com Bakhtin (2010b, p. 262), são “tipos
relativamente estáveis de enunciados”, pois são passíveis de renovações,
mudanças. Nesse sentido, “[...] à medida que se desenvolve e se complexifica um
determinado campo” (BAKHTIN, 2010b, p. 262), os usuários da língua vão fixando
as suas particularidades nos gêneros. Bakhtin (2010b, p. 268) afirma:
Em cada época de evolução da linguagem literária, o tom é dado por determinados gêneros do discurso, e não só gêneros secundários (literários, publicísticos, científicos), mas também primários (determinados tipos de diálogo oral- de salão, íntimo, de círculo, familiar-cotidiano, sociopolítico, filosófico, etc.). Toda ampliação da linguagem literária à custa das diversas camadas extraliterárias da língua nacional está intimamente ligada à penetração da linguagem literária em todos os gêneros (literários, científicos, publicísticos, de conversação, etc.), em maior ou menor grau, também dos novos procedimentos de gênero de construção do todo discursivo, do seu acabamento, da inclusão do ouvinte ou parceiro, etc., o que acarreta uma reconstrução e uma renovação mais ou menos substancial dos gêneros do discurso. A passagem do estilo de um gênero para outro não só modifica o som do estilo nas condições do gênero que não lhe é próprio como destrói ou renova tal gênero.
Desse modo, quando o estilo de um gênero penetra em outro, ocorrem
mudanças de ordens diversas: eles podem ser reconstruídos, renovados, estando
31
em constante modificação. Em relação às modificações dos gêneros, Alves (2008, p.
139-140), em concordância com Bakhtin (2010b), afirma que
[...] os gêneros apresentam um caráter sócio-histórico, uma vez que estão diretamente relacionados a diferentes situações sociais. Dado esse caráter, os gêneros não são estáticos, imutáveis ou formas desprovidas de dinamicidade. Relativamente estáveis, eles mudam com as práticas sociais, alteram-se com a aplicação de novos procedimentos de organização e de acabamento do todo verbal e de uma modificação do lugar atribuído ao ouvinte.
Portanto, é devido ao fato de os gêneros apresentarem, na sua essência, um
caráter sócio-histórico e cultural e serem expostos a diferentes situações
comunicativas que eles se caracterizam como formas passíveis de mudanças, pois,
como afirmam Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 118), “a situação e os participantes
mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação”.
3.3 O ENUNCIADO CONCRETO: A UNIDADE REAL DA COMUNICAÇÃO DISCURSIVA
A discussão sobre enunciado (unidade real da comunicação discursiva) é
apresentada por Bakhtin/ Volochínov (2010a) e Bakhtin (2010b) a partir dos seus
estudos críticos sobre a denominada corrente filosófico-linguística “objetivismo
abstrato”.
No centro dos estudos de Bakhtin/ Volochínov (2010a) está a linguagem, na
perspectiva dialógica ─ seja ela pensada como língua, seja como
discurso/linguagem ─, em suas várias manifestações nas relações humanas, voltada
para os contextos histórico-social e cultural. Nesse sentido, o filósofo apresenta a
sua posição em relação à língua e à linguagem, que se diferencia da do pensamento
filosófico-linguístico do objetivismo abstrato. O representante maior desse
pensamento filosófico-linguístico foi Ferdinand de Saussure, conforme afirmam
Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 86): “A chamada escola de Genebra, com Ferdinand
32
de Saussure, mostra-se como a mais brilhante expressão do objetivismo abstrato em
nosso tempo”.
Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 87) mostram que Saussure, em seus estudos,
parte do princípio da tríplice distinção: le langage (a linguagem), la langue (a língua)
e la parole (a fala), em que a língua e a fala são os elementos constitutivos da
linguagem ─ “compreendida como a totalidade (sem exceção) de todas as
manifestações ─ físicas, fisiológicas e psíquicas ─ que entram em jogo na
comunicação linguística”, importando para ele o estudo da língua. Segundo
Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 85, grifo dos autores), essa orientação de estudo está
nas raízes do racionalismo dos séculos XVII e XVIII:
É preciso procurar as raízes desta orientação no racionalismo dos séculos XVII e XVIII. Tais raízes mergulham no solo fértil do cartesianismo. Foi Leibniz quem exprimiu, pela primeira vez, estas ideias de forma clara, na sua teoria da gramática universal. A ideia de uma língua convencional, arbitrária, é característica de toda corrente racionalista, bem como o paralelo estabelecido entre o código linguístico e o código matemático. Ao espírito orientado para a matemática, dos racionalistas, o que interessa não é a relação do signo com a realidade por ele refletida ou com o indivíduo que o engendra, mas a relação de signo para signo no interior de um sistema fechado, e não obstante aceito e integrado. Em outras palavras, só lhes interessa a lógica interna do próprio sistema de signos, este é considerado, assim como na lógica, independentemente por completo das significações ideológicas que a ele se ligam.
Os autores mostram as raízes da orientação dos estudos saussureanos: “no
racionalismo dos séculos XVII e XVIII. Tais raízes mergulham no solo fértil do
cartesianismo”; criticam a escolha de Saussure, pois foi baseada em um sistema
fechado, puramente racional, orientado para o estudo matemático, que não
contempla o contexto do uso da língua e os variados sujeitos-usuários dela;
ademais, “só lhes interessa a lógica interna do próprio sistema de signos”, deixando
de lado a ideologia, privilegiando a lógica. Portanto, para Bakhtin/Volochínov
(2010a), o signo é por natureza ideológico e indissociável de um contexto histórico-
social-cultural e da relação social de interação entre os sujeitos na comunicação
verbal. Sobre tal discussão, eles afirmam que
33
[...] o que falta à linguística contemporânea é uma abordagem da enunciação em si. Sua análise não ultrapassa a segmentação em constituintes imediatos. E, no entanto, as unidades reais da cadeia verbal são as enunciações. Mas, justamente, para estudar as formas dessas unidades, convém não separá-las do curso histórico das enunciações. Enquanto um todo, a enunciação só se realiza no curso da comunicação verbal, pois o todo é determinado pelos seus limites, que se configuram pelos pontos de contato de uma determinada enunciação com o meio extraverbal e verbal (isto é, as outras enunciações) (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010a, p. 129).
Já em outro estudo empreendido por Bakhtin (2010b), a respeito do
enunciado, a discussão gira em torno da distinção entre enunciado e oração
gramatical. Para o referido autor, o estudo do enunciado parte do princípio de que no
processo da comunicação discursiva é necessário reconhecer o papel ativo do
“outro”, enquanto que na oração gramatical o “outro” é apagado, silenciado,
desconhece o papel ativo do “outro”.
Bakhtin (2010b, p. 272-273) faz críticas aos estudos que se baseiam na
oração gramatical para descrever uma língua e moldar o seu uso:
O ouvinte com sua compreensão passiva, que é representado como parceiro do falante nos desenhos esquemáticos das linguísticas gerais, não corresponde ao participante real da comunicação discursiva. Aquilo que o esquema representa é apenas um momento abstrato do ato pleno e real da compreensão ativamente responsiva, que gera a resposta (a que precisamente visa o falante). […] Como resultado, o esquema deforma o quadro real da comunicação discursiva, suprimindo dela precisamente os momentos mais substanciais. Desse modo, o papel ativo do outro no processo de comunicação discursiva sai extremamente enfraquecido.
Nesse trecho, percebemos que as críticas partem dos seus estudos sobre a
corrente filosófico-linguística denominada de objetivismo abstrato, que se diferencia
da concepção dialógica da linguagem, empreendida por ele. Nessa última
perspectiva, a língua é compreendida como signo ideológico e o sujeito como
indivíduo falante, respondente, posicionado, diferentemente da concepção de
objetivismo abstrato, que vê a língua como um sistema neutro, desprovido de
conteúdo ideológico, em que uma mesma palavra utilizada em variados contextos
34
terá sempre um único significado. Mostra que o sujeito/ouvinte nos desenhos
esquemáticos das linguísticas gerais é passivo, não corresponde ao participante da
unidade real da comunicação discursiva, o que ocorre, certamente, porque “[…] se é
indefinido e vago o que dividem e decompõem em unidades da língua, nestas
também se introduzem a indefinição e a confusão” (BAKHTIN, 2010b, p. 274).
O autor mostra outro problema das linguísticas gerais: a vagueza da
decomposição das orações em unidades mínimas e de forma descontextualizada da
realidade do sujeito participante da sua construção, afirmando que
[…] o discurso só pode existir de fato na forma de enunciações concretas de determinados falantes, sujeitos do discurso. O discurso sempre está fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma não pode existir. O falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente responsiva. O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, precisamente delimitada da alternância dos sujeitos do discurso, a qual termina com a transmissão da palavra ao outro, por mais silencioso seja o “dixi” percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante terminou (BAKHTIN, 2010b, p. 274-275).
O filósofo russo mostra que o discurso somente pode existir na forma de
enunciações concretas de determinados falantes. Inclui, ainda, na sua perspectiva, o
sujeito na sua posição ativa responsiva, além de apresentar a perspectiva “clássica
de comunicação discursiva”, que é o diálogo, configurado na alternância dos sujeitos
no discurso ─ denominados por Bakhtin (2010b, p. 275) de “parceiros do diálogo” ─,
pois todo discurso pressupõe uma resposta, mesmo que esta seja em forma de
silêncio, o que indica que o falante concluiu o diálogo ou está se preparando para
responder.
Para Bakhtin (2003, p. 300),
o falante não é um Adão, e por isso o próprio objeto do seu discurso se torna inevitavelmente um palco de encontro com opiniões de interlocutores imediatos (na conversa ou na discussão sobre algum acontecimento do dia a dia) ou com pontos de vista, visões de mundo, correntes, teorias, etc. (no campo da comunicação cultural). Uma visão de mundo, uma corrente, um ponto de vista, uma opinião
35
sempre têm uma expressão verbalizada. Tudo isso é discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal), e este não pode deixar de refletir-se no enunciado. O enunciado está voltado não só para o seu objeto, mas também para o discurso do outro sobre ele.
Dessa forma, o autor nos informa que, na perspectiva dialógica do discurso,
além da existência da opinião do falante/escrevente em relação ao seu objeto
discursivo, há pontos de vista de interlocutores imediatos sobre o seu objeto de
discurso, que são configurados como discurso do outro, refletindo-se no enunciado.
Um traço essencial, constitutivo do enunciado, de acordo com Bakhtin (2003),
é o direcionamento do enunciado a alguém, o seu endereçamento. A respeito de tal
traço, ele afirma:
À diferença das unidades significativas da língua ─ palavras e orações ─, que são impessoais, de ninguém e a ninguém estão endereçadas, o enunciado tem autor [...] e destinatário. Esse destinatário pode ser um participante-interlocutor direto do diálogo cotidiano, pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo especial da comunicação cultural, pode ser um público mais ou menos diferenciado, um povo, os contemporâneos, os correligionários, os adversários e inimigos, o subordinado, o chefe, um inferior, um superior, uma pessoa íntima, um estranho, etc. [...] (BAKHTIN, 2003, p. 301).
Nesse fragmento, ele faz uma diferenciação básica entre as características
das unidades significativas da língua (palavras e orações) e o enunciado. Enquanto
as palavras e as orações apresentam a característica da impessoalidade ─ não têm
autor, nem destinatário ─, o enunciado, ao contrário, possui autor e destinatário.
Em outro fragmento, ainda sobre o destinatário, Bakhtin (2003, p. 302, grifo
do autor) apresenta seu ponto de vista:
Ao falar, sempre levo em conta o fundo aperceptível da percepção do meu discurso pelo destinatário: até que ponto ele está a par da situação, dispõe de conhecimentos especiais de um dado campo cultural da comunicação; levo em conta as suas concepções e convicções, os seus preconceitos (do meu ponto de vista), as suas simpatias e antipatias – tudo isso irá determinar a ativa compreensão responsiva do meu enunciado por ele. Essa consideração irá
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determinar também a escolha do gênero do enunciado e a escolha dos procedimentos composicionais e, por último, dos meios linguísticos, isto é, o estilo do enunciado.
Para ele, o destinatário é um elemento fundamental na construção de todo
enunciado, de qualquer esfera da comunicação discursiva. O autor fala/escreve o
seu enunciado de maneira tal que o seu destinatário possa ter uma compreensão
responsiva. Além disso, o destinatário influencia a escolha do gênero do discurso, os
procedimentos composicionais e o estilo do enunciado que o autor fará para colocar
em prática e alcançar os seus objetivos no seu projeto de dizer algo a alguém.
Conforme Bakhtin (2010b), os três fatores definidores do enunciado são: a
exauribilidade do objeto e do sentido; o projeto de discurso ou vontade de discurso
do falante; e as formas típicas composicionais e de gênero do acabamento.
O primeiro fator diz respeito ao que é possível dizer no momento que alguém
produz um texto, são os limites da conclusibilidade. O segundo está diretamente
ligado ao primeiro pela conclusibilidade, diz respeito à vontade discursiva do falante
e esta irá determinar o todo do enunciado, desde o volume até a escolha do gênero
discursivo. Por fim, o terceiro fator trata das escolhas dos gêneros discursivos que
fazemos para construirmos nossos enunciados.
Bakhtin (2010b, p. 282) afirma que “a vontade discursiva do falante se realiza
antes de tudo na escolha de um certo gênero do discurso” e ressalta que “falamos
apenas através de determinados gêneros de discurso, isto é, todos os nossos
enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do
todo”.
Outra questão importante relacionada ao enunciado é sobre a análise
estilística. Bakhtin (2010b, p. 306) ressalta:
A análise estilística, que abrange todos os aspectos do estilo, só é possível como análise de um enunciado pleno e só naquela cadeia da comunicação discursiva da qual esse enunciado é um elo inseparável.
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Dessa forma, somente é possível fazer uma análise estilística se for
considerado o enunciado pleno, pois quando se analisa uma oração isolada, fora de
um contexto, se perdem muitas informações que podem alterar a análise.
A seguir, iremos apresentar alguns enfoques para a compreensão das vozes
sociais no discurso.
3.4 AS VOZES SOCIAIS E AS RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE ELAS
A unicidade do sujeito, construída por meio da alteridade, e o signo ideológico
são questões fundamentais para a compreensão da constituição das vozes no
enunciado, segundo estudos de Bakhtin. Vale ressaltar que essas questões não
foram contempladas na teoria linguística de Saussure, que concebia a língua como
um signo estável, homogêneo, abstrato, neutro e como um fenômeno social.
Ademais, Saussure rejeitou o estudo da fala porque a compreendia como um objeto
instável, um ato individual, efêmero, condicionado à vontade do indivíduo.
Sinteticamente, ele explica a sua visão de língua e fala: “Separando-se a língua da
fala, separa-se ao mesmo tempo: em primeiro lugar, o que é social do que é
individual; em segundo lugar, o que é essencial do que é acessório e relativamente
acidental” (SAUSSURE apud BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010a, p. 89).
Bakhtin/Volochínov (2010a), ao analisarem tais postulações, tecem críticas ao
pensamento do linguista em relação à língua e à fala e apresentam a concepção de
língua como um fato social, como signo ideológico, concreto, cuja função é atender
às necessidades de comunicação dos sujeitos, em contexto determinado, que leva
em consideração os aspectos espaço-temporais. Diante disso, eles afirmam que
[...] toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010a, p. 117).
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Ampliando o conceito de palavra, Bakhtin/ Volochínov (2010a) argumentam
que a palavra veicula a ideologia e define a língua, conforme ressalta Yaguello
(2010), como expressão das relações e lutas sociais, veiculando e sofrendo o efeito
dessa luta, ou seja, a palavra não é neutra, ela é por natureza ideológica.
A interação do eu com o outro é um fenômeno determinante para a
compreensão das noções empreendidas pelo filósofo russo, pois os sujeitos, em sua
totalidade, são construídos na relação social, por meio da interação eu/outro,
portanto, a sua linguagem, em todas as modalidades, estará carregada da
especificidade da relação social, conforme argumenta Bakhtin (2010b, p. 350):
É extraordinariamente aguda a sensação do seu e do outro na palavra, no estilo, nos matizes e meandros mais sutis do estilo, na entonação, no gesto verbalizado, no gesto corporal (mímico), na expressão dos olhos, do rosto, das mãos, de toda a aparência física, no modo de conduzir o próprio corpo. O acanhamento, a presunção, o atrevimento, a desfaçatez (Snieguirióv), a afetação, a denguice (o corpo se torce e dá voltas na presença do outro), etc. Em tudo através do que o homem se exprime exteriormente (e, por conseguinte, para o outro) ─ do corpo à palavra ─ ocorre uma tensa interação do eu com o outro: luta entre os dois (luta honesta ou impostura mútua), equilíbrio, harmonia (como ideal), desconhecimento ingênuo de um a respeito do outro, ignorância mútua deliberada, desafio, não reconhecimento (o homem do subsolo, que “não dá atenção”, etc.), etc. Repetimos que essa luta ocorre em tudo através do que o homem se exprime (revela-se) exteriormente (para os outros): do corpo à palavra, inclusive à última, à palavra confessional (BAKHTIN, 2010b, p. 350).
Diante do exposto, não há como negar o caráter social, tanto da língua quanto
da fala, uma vez que ambas, assim como a totalidade do homem, são resultados
das construções sociais, na interação eu/outro. A luta à qual o autor se refere está
relacionada ao travamento de ideias, de ideologias, da relação das vozes do eu e do
outro.
Bakhtin (1997, p. 182-183, grifo do autor) mostra que na linguagem, enquanto
objeto da linguística, não pode haver relações dialógicas:
Na linguagem, enquanto objeto da linguística não há e nem pode haver quaisquer relações dialógicas: estas são impossíveis entre os
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elementos no sistema da língua (por exemplo, entre as palavras no dicionário, entre os morfemas, etc.) ou entre os elementos do “texto”, num enfoque rigorosamente linguístico deste. Elas tampouco podem existir entre as unidades de um nível nem entre as unidades de diversos níveis. Não podem existir, evidentemente, entre as unidades sintáticas, por exemplo, entre as orações vistas de uma perspectiva rigorosamente linguística. Não pode haver relações dialógicas tampouco entre os textos, vistos também sob uma perspectiva rigorosamente linguística. Qualquer confronto puramente linguístico ou grupamento de quaisquer textos abstrai forçosamente todas as relações dialógicas entre eles enquanto enunciados integrais. [...] a linguística estuda a “linguagem” propriamente dita com sua lógica específica na sua generalidade, como algo que torna possível a comunicação dialógica, pois ela abstrai consequentemente as relações propriamente dialógicas. Essas relações se situam no campo do discurso, pois este é por natureza dialógico [...].
Portanto, isso ocorre devido ao fato de a linguística ter como base o estudo
puramente linguístico ─ da unidade mínima da língua ao texto ─ e não levar em
conta aspectos extralinguísticos, como os sujeitos participantes do discurso,
marcados por suas vozes sociais, suas posições axiológicas, que são fundamentais
para a ocorrência das relações dialógicas.
O autor continua a sua crítica ao pensamento da linguística pura em relação à
linguagem, afirmando:
As relações dialógicas são irredutíveis às relações lógicas ou às concreto-semânticas, que por si mesmas carecem de momento dialógico. Devem personificar-se na linguagem, torna-se enunciados, converte-se em posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles possam surgir relações dialógicas (BAKHTIN, 1997, p. 183, grifo do autor).
Nesse trecho, o filósofo russo, ao tratar das relações dialógicas, deixa claro
que estas somente ocorrem quando há “posições de diferentes sujeitos expressas
na linguagem para que entre eles possam surgir relações dialógicas” (BAKHTIN,
1997, p. 183). Nesse sentido, Faraco (2006, p. 64) confirma que as relações
dialógicas são
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[...] relações entre índices sociais de valor – que [...] constituem, no conceitual do Círculo de Bakhtin, parte inerente de todo enunciado, entendido este não como unidade da língua, mas como unidade da interação social; não como um complexo de relações entre palavras, mas como um complexo de relações entre pessoas socialmente organizadas.
O autor russo cita dois exemplos de como as relações dialógicas podem
ocorrer, levando em conta as relações lógicas ou concreto-semânticas:
“A vida é boa”. “A vida não é boa”. Estamos diante de dois juízos revestidos de determinada forma lógica e em conteúdo concreto-semântico (juízos filosóficos acerca do valor da vida) definido. Entre esses juízos há certa relação lógica: um é a negação do outro. Mas entre eles não há nem pode haver quaisquer relações dialógicas, eles não discutem absolutamente entre si (embora possam propiciar matéria concreta e fundamento lógico para a discussão). “A vida é boa”. “A vida é boa”. Estamos diante de dois juízos absolutamente idênticos, em essência, diante de um único juízo, escrito (ou pronunciado) por duas vezes, mas esse “dois” se refere apenas à materialização da palavra e não ao próprio juízo. É verdade que aqui podemos falar de relação lógica de identidade entre dois juízos. Mas se esse juízo puder expressar-se em duas enunciações, de dois diferentes sujeitos, entre elas surgirão relações dialógicas (acordo, confirmação) (BAKHTIN, 1997, p. 183-184, grifo do autor).
Nesses dois exemplos, observamos que o autor não nega a importância da
relação lógica ou concreto-semântica nos enunciados. No entanto, mostra que, da
forma como os exemplos se apresentam, não existem informações suficientes para
que ocorram relações dialógicas. Da maneira que os exemplos foram escritos, não
há informação alguma da presença dos sujeitos (que devem ser no mínimo dois ─
mesmo que esses dois sujeitos sejam: o indivíduo e a sua consciência, como nos
modelos de diálogo interior) para delimitar o enunciado de um e o enunciado do
outro ─ e, consequentemente, seus posicionamentos. Portanto, nesses exemplos,
não se trata de enunciados, e, sim, simplesmente, de frases soltas. Porém, elas
podem tornar-se enunciados e entre eles surgir relações dialógicas, desde que se
tenha a nítida percepção de enunciados de diferentes sujeitos num dado contexto
social ─ em forma de embate, de acordo, de desacordo, de adesão, de
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questionamento, de confirmação etc., pois “o Círculo de Bakhtin entende as relações
dialógicas como espaços de tensão entre enunciados” (FARACO, 2006, p. 67).
Ampliando a discussão no que concerne às relações lógicas e concreto-
semânticas, Bakhtin (1997, p. 184, grifo do autor) declara:
As relações dialógicas são absolutamente impossíveis sem relações lógicas e concreto-semânticas, mas são irredutíveis a estas e têm especificidade própria. Para se tornarem dialógicas, as relações lógicas e concreto-semânticas devem [...] materializar-se, ou seja, devem passar a outro campo da existência, devem tornar-se discurso, ou seja, enunciado, e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja posição ela expressa.
Nesses trechos, o autor, mais uma vez, esclarece sobre a importância das
relações lógicas e concreto-semântica nas relações dialógicas, mas confirma que
somente a presença dessas duas características não é suficiente para a ocorrência
das relações dialógicas no discurso. Outra importante informação nessa discussão
diz respeito ao discurso/enunciado: para que as relações lógicas e concreto-
semântica se tornem dialógicas é necessário que elas se tornem, segundo o autor,
“discurso, ou seja, enunciado, e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja
posição ela expressa”. Ainda nessa perspectiva, nas palavras de Faraco (2006, p.
64, grifo do autor), compreende-se:
Para haver relações dialógicas, é preciso que qualquer material linguístico (ou de qualquer outra materialidade semiótica) tenha entrado na esfera do discurso, tenha sido transformado num enunciado, tenha fixado a posição de um sujeito social. Só assim é possível responder (em sentido amplo e não apenas empírico do termo), isto é, fazer réplicas ao dito, confrontar posições, dar acolhida fervorosa à palavra do outro, confirmá-la ou rejeitá-la, buscar-lhe um sentido profundo, ampliá-la. Em suma, estabelecer com a palavra de outrem relações de sentido de determinada espécie, isto é, relações que geram significação responsivamente a partir do encontro de posições avaliativas.
Já, em relação ao autor, Bakhtin (1997, p. 184) expõe que
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[...] todo enunciado tem uma espécie de autor, que no próprio enunciado escutamos como o seu criador. Podemos não saber absolutamente nada sobre o autor real, como ele existe fora do enunciado. As formas dessa autoria real podem ser muito diversas. Uma obra qualquer pode ser produto de um trabalho de equipe, pode ser interpretada como trabalho hereditário de várias gerações, etc., e apesar de tudo, sentimos nela uma vontade criativa única, uma posição determinada diante da qual se pode reagir dialogicamente. A relação dialógica personifica toda enunciação à qual ela reage.
Portanto, para que ocorram relações dialógicas no discurso, é necessária
a presença de um autor, nas diversas formas em que o filósofo russo mostrou no
trecho citado, o qual apresenta uma posição axiológica para que, a partir dela,
outros sujeitos possam “reagir dialogicamente”, ou seja, responder axiologicamente
com outros enunciados.
Bakhtin (1997, p. 184) afirma que as relações dialógicas são possíveis não
apenas entre enunciados integrais, mostrando outras formas em que podem ocorrer
as relações dialógicas:
As relações dialógicas são possíveis não apenas entre enunciações integrais (relativamente), mas o enfoque dialógico é possível a qualquer parte significante do enunciado, inclusive a uma palavra isolada, caso esta não seja interpretada como palavra impessoal da língua, mas como signo da posição semântica de um outro, como representante do enunciado de um outro, ou seja, se ouvimos nela a voz do outro. Por isso, as relações dialógicas podem penetrar no âmago do enunciado, inclusive no íntimo de uma palavra isolada se nela se chocam dialogicamente duas vozes (o microdiálogo de que já tivemos a oportunidade de falar). Por outro lado, as relações dialógicas são possíveis também entre os estilos de linguagem, os dialetos sociais, etc., desde que eles sejam entendidos como certas posições semânticas, como uma espécie de cosmovisão da linguagem, isto é, numa abordagem não mais linguística.
Dessa forma, as relações dialógicas podem acontecer tanto em uma palavra
isolada ─ desde que ela não seja interpretada como uma forma abstrata da língua,
neutra, monológica, como nos esquemas de Saussure ─ quanto em um enunciado
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integral, e isso é possível se em ambos os casos se chocarem dialogicamente, no
mínimo, duas vozes. Por fim, o autor amplia a questão das relações dialógicas para
os campos de estilos de linguagem, dialetos sociais, entre outros, numa abordagem
não mais linguística, e, sim, discursiva, dialógica.
A seguir, trataremos do conceito bakhtiniano de exotopia.
3.5 O OLHAR EXOTÓPICO: O OLHAR EXTERNO/DISTANCIADO
O conceito bakhtiniano de exotopia ─ que significa “lugar exterior”, “olhar
externo” ─ está presente em toda a sua obra, relacionando-se diretamente às
discussões do eu e do outro, que estão fundamentados no princípio da alteridade.
Bakhtin (2010b), em seus estudos sobre o olhar exotópico, abordou as questões da
atividade estética e da atividade da pesquisa em Ciências Humanas. Nesta seção,
iremos abordar o olhar exotópico na atividade estética e no capítulo da metodologia
retomaremos esse conceito na perspectiva da atividade da pesquisa em Ciências
Humanas.
De acordo com o autor, um sujeito com o olhar distanciado, o olhar externo (o
olhar exotópico), é dotado de um excedente de visão ─ que somente esse
distanciamento, esse olhar de fora, proporciona. É exclusivamente devido a esse
excedente de visão que o sujeito possui que ele é autorizado a dar o acabamento
estético ao outro.
Entretanto, ocorre uma problemática quando o sujeito vê a sua imagem
externa ─ no espelho, no retrato ou em um quadro, por exemplo ─ e tenta dar um
acabamento de si. Em relação a essa problemática, Bakhtin (2010b, p. 28, grifo do
autor) argumenta:
[...] é fácil verificarmos que o resultado inicial dessa tentativa será o seguinte: minha imagem visualmente expressa começa, em tons vacilantes, a definir-se ao lado de minha pessoa vivenciada por dentro, destaca-se apenas levemente da minha autossensação interna em um sentido adiante de mim e desvia-se um pouco para um lado, como um baixo-relevo, separa-se do plano da autossensação interna sem desligar-se plenamente dela; é como se eu me desdobrasse um pouco, mas não me desintegrasse
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definitivamente: o cordão umbilical da autossensação irá ligar minha imagem externa ao meu vivenciamento interior de mim mesmo. É necessário algum novo esforço para me imaginar a mim mesmo nitidamente en face, desligar-me por completo de minha autossensação interior; conseguindo isto, somos afetados em nossa imagem externa por algum vazio original, por algo imaginário e um estado de solidão um tanto terrível dessa imagem.
Isso ocorre porque não temos para a imagem externa, de acordo com Bakhtin
(2010b, p. 28),
[...] um enfoque volitivo-emocional à altura, capaz de vivificá-la e incluí-la axiologicamente na unidade exterior do mundo plástico-pictural. Todas as minhas reações volitivo-emocionais, que apreendem e organizam a expressividade externa do outro ─ admiração, amor, ternura, piedade, inimizade, ódio, etc. – estão orientadas para o mundo adiante de mim; não se aplicam diretamente a mim mesmo na forma em que eu me vivencio de dentro; eu organizo meu eu interior ─ que tem vontade, ama, sente, vê, e conhece ─ de dentro, em categorias de valores totalmente diferentes e que não se aplicam de modo imediato à minha expressividade externa. No entanto, minha autossensação interna e a vida para mim permanecem no meu eu [...].
Esse processo de tentar ver a si mesmo, na imagem externa, como se o eu
estivesse diante de si mesmo não é possível, pois, como o filósofo russo declarou no
trecho citado, “minha autossensação interna e a vida para mim permanecem no meu
eu”, ou seja, não se exteriorizam.
Um exemplo do contemplar a imagem externa é a contemplação de si no
espelho, conforme indica Bakhtin (2010b, p. 30-31):
Contemplar a mim mesmo no espelho é um caso inteiramente específico de visão da minha imagem externa. Tudo indica que neste caso vemos a nós mesmos de forma imediata. Mas não é assim; permanecemos dentro de nós mesmos e vemos apenas o nosso reflexo, que não pode tornar-se elemento imediato da nossa visão e vivenciamentos do mundo: vemos o reflexo da nossa imagem externa, mas não a nós mesmos em nossa imagem externa; a imagem externa não nos envolve ao todo, estamos diante e não dentro do espelho; o espelho só pode fornecer o material para a auto-objetivação, e ademais um material não genuíno. De fato, nossa
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situação diante do espelho sempre é meio falsa: como não dispomos de um enfoque de nós mesmos de fora, também nesse caso nos compenetramos de um outro possível e indefinido, com cuja ajuda tentamos encontrar uma posição axiológica em relação a nós mesmos [...].
Como podemos observar, nem mesmo a nossa imagem refletida no espelho é
capaz de nos dar um acabamento, porque ela é somente a nossa imagem externa,
que, conforme ressalta o autor, “não nos envolve ao todo, estamos diante e não
dentro do espelho”, ou seja, tudo que me é interno continua interno, não sendo
possível alcançar, perceber ou externar no espelho. Então, como não conseguimos
ver o real, concreto eu interior no espelho, compenetramo-nos em um outro possível
e indefinido, para, a partir dele e com a sua ajuda, tentarmos encontrar uma posição
axiológica, dessa forma, tornando-nos um outro (possível) em relação a nós
mesmos.
Faraco (2008, p. 43) afirma que “nunca estamos sozinhos frente ao espelho:
um segundo participante está sempre implicado no evento da autocontemplação”;
esse segundo participante é o “outro possível”. Em relação a essa discussão, o autor
explica:
É ingênuo pensar [...] que no ato de olhar-se no espelho há uma fusão, uma coincidência do extrínseco com o intrínseco. O que ocorre, de fato, é que, quando me olho no espelho, em meus olhos olham olhos alheios; quando me olho no espelho não vejo o mundo com meus próprios olhos e desde o meu interior; vejo a mim mesmo com os olhos do mundo ─ estou possuído pelo outro (FARACO, 2008, p. 43).
Alves (2010b) lembra que, de acordo com Bakhtin (2010b), somente como
Narciso é que contemplo o meu reflexo na água e a imagem externa integra
totalmente o horizonte concreto de minha visão.
Ao tratar da imagem externa da ação e a sua relação externa com os objetos,
Bakhtin (2010b, p. 42) afirma que
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a imagem externa da ação e a sua manifesta relação externa com os objetos do mundo exterior nunca são dadas ao próprio agente, e se irrompem na consciência atuante acabam se tornando inevitavelmente um obstáculo, um ponto morto da ação. As principais características plástico-picturais da ação externa ─ epítetos, metáforas, comparações, etc. ─ nunca se realizam na autoconsciência do agente e nunca coincide com a verdade interior do objetivo, do sentido da ação. Todas as características artísticas transferem a ação para o outro plano, para outro contexto axiológico, no qual o sentido e o objetivo da ação se tornam imanentes ao acontecimento da sua realização, tornam-se apenas um elemento que assimila a expressividade externa da ação, isto é, elas transferem a ação do horizonte do agente para o horizonte do contemplador distanciado.
Numa obra de arte, por exemplo, o seu acabamento não está dado, nem é
dado pelo artista (autor-criador), agente que a pintou, o acabamento é feito pelos
sujeitos que a contemplam. Assim também aconteceu na análise do corpus deste
trabalho, já que o acabamento provisório foi dado pela pesquisadora.
A seguir, iremos tratar do conceito de ethos discursivo.
3.6 O CONCEITO DE ETHOS DE ARISTÓTELES E O CONCEITO DE ETHOS DISCURSIVO DE DOMINIQUE MAINGUENEAU: DA PERSPECTIVA DA PERSUASÃO À DA ADESÃO DOS SUJEITOS A UM CERTO DISCURSO
O ethos é uma temática discutida desde a antiguidade. Ela foi utilizada,
primeiro, pelo filósofo Aristóteles, que coloca o ethos como parte de sua tríade,
composta também pelo logos e pelo pathos como meio de prova. Nessa época, a
concepção de ethos era apresentada como: designadora das virtudes morais que
garantiam credibilidade ao orador. Atualmente, o ethos, segundo Eggs (apud EGGS,
2008, p. 30, grifos do autor),
[...] está ─ com exceção dos trabalhos de Dominique Maingueneau ─ praticamente ausente da pesquisa atual em linguística, em pragmática e em teoria da argumentação. [...] os vestígios do ethos estão realmente presentes na pesquisa moderna, frequentemente escondidos, ou melhor, rechaçados para outras problemáticas ─ seja como condição de sinceridade, na teoria dos atos de linguagem de Searle, como princípio de cooperação ou como máximas
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conversacionais em Grice, seja como máximas de educação, de modéstia ou de generosidade, em Leech e em outros autores. Basta ler as passagens sobre “a adaptação do orador a seu auditório” ou sobre “a pessoa e seus atos” ou sobre “o discurso como ato do orador”, em Perelman, para se dar conta de que o ethos está sempre presente como realidade problemática de todo discurso humano.
Eggs (2008) mostra a realidade atual da apresentação do ethos em diferentes
correntes teóricas: em forma de vestígios, escondidos, rechaçados. Apresenta os
autores que tratam o ethos dessa forma, quais sejam: Searle, Grice, Leech,
Perelman, entre outros. Porém, ressaltamos que, neste trabalho, nos interessa
somente a teoria de ethos discursivo de Maingueneau (2008b) e Charaudeau
(2006), que comungam a mesma visão. A seguir, iremos abordar algumas premissas
do ethos aristotélico e do ethos de Maingueneau (2008b), seguidos de autores que
acrescentam questões pertinentes aos princípios teóricos de ethos abordados pelos
últimos dois autores citados.
O ethos, segundo Aristóteles (apud MAINGUENEAU, 2008b), está ligado à
noção de justiça e verdade. Então, para persuadir o auditório, para mostrar uma
imagem positiva de si mesmo, o orador pode se valer de três qualidades: prudência
(a phronesis), virtude (a aretè) e benevolência (a eunoia).
A noção de ethos apresentada por Aristóteles é chamada de ethos retórico,
havendo outras concepções, como a da Pragmática, representada por Ducrot (apud
MAINGUENEAU, 2006), e a da Análise do Discurso, com os estudos de Dominique
Maingueneau.
Ducrot (apud MAINGUENEAU, 2006) afirma que o ethos não é o elogio que o
orador faz sobre si mesmo, pois isso poderia chocar o público, mas a aparência que
lhe conferem o ritmo, a entonação, a escolha das palavras, os argumentos, sendo,
na qualidade da fonte da enunciação, revestido de determinadas características que,
por ação reflexa, tornam essa enunciação aceitável ou não.
Barthes (apud MAINGUENEAU, 2008a, p. 70) define o ethos chamando a
atenção para a sua característica essencial: “São os traços do caráter que o orador
deve mostrar ao auditório (pouco importa sua sinceridade) para causar boa
impressão. [...] O orador enuncia uma informação e, ao mesmo tempo, ele diz: eu
sou isto, eu não sou aquilo”. Ainda nessa perspectiva (da sinceridade do orador),
Charaudeau (2006, p. 116) afirma que
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[...] todo sujeito que fala pode jogar com máscaras, ocultando o que ele é pelo que diz, e, ao mesmo tempo, o interpretamos como se o que ele dissesse devesse necessariamente coincidir com o que ele é. Há uma espécie de desejo de essencialização, tanto por parte do locutor quanto da do interlocutor, nessa busca de sentido do discurso.
Portanto, ao analisarmos, interpretarmos um ethos que o orador constrói ao
produzir um enunciado sobre si, a sua sinceridade pouco importa, até porque é
quase impossível depreender a sinceridade do orador em um discurso, pois,
conforme Charaudeau (2006, p. 116) afirma, “todo sujeito pode jogar com máscaras,
ocultando o que ele é pelo que diz”, em prol do seu objetivo, que é fazer com que
um maior número de pessoas concorde com sua fala. Podemos perceber essa
realidade muito claramente nos discursos dos políticos, na época da campanha
eleitoral, em que tentam parecer o mais sincero possível ─ mesmo que seja através
de máscaras ─ para garantirem um maior número de votos, pois o povo sente a
necessidade disso.
Maingueneau (2008b, p. 17) apresenta a sua perspectiva de ethos discursivo,
que, inclusive, é a que adotamos neste trabalho:
A perspectiva que defendo ultrapassa em muito o domínio da argumentação. Para além da persuasão por meio de argumentos, essa noção de ethos permite refletir sobre o processo mais geral de adesão dos sujeitos a um certo discurso.
A perspectiva de ethos que Maingueneau (2008b) defende, denominada de
ethos discursivo, apesar de ser bem diferente da perspectiva da retórica antiga ─
pois ultrapassa a persuasão, indo em direção à adesão ─, não é infiel “às linhas de
força da concepção aristotélica” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 17).
O autor, ao tratar da retórica tradicional, antiga, afirma:
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A retórica tradicional ligou estreitamente o ethos à eloquência, à oralidade em situação de fala pública (assembleia, tribunal...), mas cremos que, em vez de reservá-la para a oralidade, solene ou não, é preferível alargar seu alcance, abarcando todo tipo de texto, tanto os orais como os escritos. Todo texto escrito, mesmo que o negue, tem uma “vocalidade” que pode se manifestar numa multiplicidade de “tons”, estando eles, por sua vez, associados a uma caracterização do corpo do enunciador (e, bem entendido, não do corpo do locutor extradiscursivo), a um “fiador”, construído pelo destinatário a partir de índices liberados na enunciação (MAINGUENEAU, 2008b, p. 17).
Ele mostra que a sua perspectiva de ethos discursivo abarca todo tipo de
texto, tanto os orais quanto os escritos, diferentemente da perspectiva da retórica
antiga, que estava ligada à oralidade. Afirma que todo texto tem um “fiador”, que é
construído pelo destinatário na enunciação.
Ainda em relação à sua perspectiva de ethos discursivo, acrescenta à
discussão a questão do “fiador”:
Com essa perspectiva, optamos, então, por uma concepção “encarnada” do ethos [...]. Esse ethos recobre não só a dimensão verbal, mas também o conjunto de determinações físicas e psíquicas ligados ao “fiador” pelas representações coletivas estereotípicas. Assim, atribui-se a ele um “caráter” e uma “corporalidade”, cujos graus de precisão variam segundo os textos. O “caráter” corresponde a um feixe de traços psicológicos. Quanto à “corporalidade”, ela está associada a uma compleição física e a uma maneira de vestir-se. Mais além, o ethos implica uma maneira de se mover no espaço social, uma disciplina tácita do corpo apreendida através de um comportamento. O destinatário a identifica apoiando-se num conjunto difuso de representações sociais avaliadas positiva ou negativamente, em estereótipos que a enunciação contribui para confrontar ou transformar: o velho sábio, o jovem executivo dinâmico, a mocinha romântica... (MAINGUENEAU, 2008b, p. 18).
Maingueneau (2008b) optou por uma concepção “encarnada” do ethos
discursivo, recobrindo, além da dimensão verbal, o conjunto de determinações
físicas e psíquicas ligados ao “fiador” por meio de representações coletivas
estereotípicas. Ao fiador, é atribuído um “caráter” e uma “corporalidade”. O primeiro
termo corresponde a um feixe de traços psicológicos e o segundo, além de estar
50
associado aos traços físicos, à maneira de se vestir, está ligado a representações
sociais avaliadas positiva ou negativamente.
O autor apresenta, ainda, a forma como o leitor, o intérprete, se apropria do
ethos discursivo que o fiador constrói:
Propus designar com o termo “incorporação” a maneira como o intérprete ─ audiência ou leitor ─ se apropria desse ethos. Convocando de maneira pouco ortodoxa a etimologia, podemos fazer render essa “incorporação” sob três registros: ─ a enunciação da obra confere uma “corporalidade” ao fiador, ela lhe dá corpo; ─ o destinatário incorpora, assimila um conjunto de esquemas que correspondem a uma maneira específica de se remeter ao mundo habitando seu próprio corpo; ─ essas duas primeiras incorporações permitem a constituição de um corpo da comunidade imaginária dos que aderem ao mesmo discurso (MAINGUENEAU, 2008b, p. 18).
Portanto, esses três registros são uma amostra, pistas para o leitor
depreender, apropriar-se do ethos discursivo construído pelo escritor do texto.
O autor mostra que o ethos de um discurso resulta da interação de diversas
instâncias, tais como:
[...] ethos pré-discursivo, ethos discursivo (ethos mostrado), mas também os fragmentos do texto nos quais o enunciador evoca sua própria enunciação (ethos dito) ─ diretamente (“é um amigo que lhes fala”) ou indiretamente, por meio de metáforas ou de alusões a outras cenas de fala, por exemplo. A distinção entre ethos dito e mostrado se inscreve nos extremos de uma linha contínua, uma vez que é impossível definir uma fronteira nítida entre o “dito” sugerido e o puramente “mostrado” pela enunciação. O ethos efetivo, construído por tal ou qual destinatário, resulta da interação dessas diversas instâncias (MAINGUENEAU, 2008b, p. 18-19, grifo do autor).
O autor revela que há uma relação entre a imagem construída antes do
evento e outra no momento do evento, criando um ethos pré-discursivo e outro
discursivo. Ele apresenta a distinção entre o ethos mostrado e o ethos dito ─ que
são derivações do ethos discursivo. Porém, vale ressaltar que as fronteiras entre
51
esses dois não são nítidas. Já o ethos efetivo é o resultado da interação dessas
diversas instâncias.
Charaudeau (2006, p. 115), alinhado ao pensamento de Maingueneau
(2008b) sobre ethos discursivo, acrescenta que
o ethos relaciona-se ao cruzamento de olhares: olhar do outro sobre aquele que fala, olhar daquele que fala sobre a maneira como ele pensa que o outro o vê. Ora, para construir a imagem do sujeito que fala, esse outro se apoia ao mesmo tempo nos dados preexistentes ao discurso ─ o que sabe a priori do locutor ─ e nos dados trazidos pelo próprio ato de linguagem.
Portanto, é no cruzamento de olhares ─ do outro sobre quem fala e daquele
que fala sobre a maneira como ele pensa que o outro o vê ─ que é construído o
ethos discursivo.
Na próxima seção, abordaremos a leitura na perspectiva dialógica.
3.7 A LEITURA EM PERSPECTIVA DIALÓGICA
Neste trabalho, compreendemos a leitura de texto sob a perspectiva
dialógica, a qual será explicitada mais adiante. Essa perspectiva encontra-se
baseada nos estudos de Bakhtin/Volochínov (2010a) e Bakhtin (2010b) sobre a
concepção dialógica da linguagem. Entendemos que, nessa concepção, a
linguagem se constitui como lugar de interação.
Rojo (2009b), em um estudo sobre o ensino de língua materna, realizou um
apanhado histórico das concepções de leitura mais utilizadas em sala de aula,
desde o início da segunda metade do século XX aos dias atuais. Nesse sentido, ela
afirma que,
[...] no início da segunda metade do século XX, ler era visto – de maneira simplista – apenas como um processo perceptual e associativo de decodificação de grafemas (escrita) em fonemas (fala), para se acessar o significado do texto. Nesta perspectiva,
52
aprender a ler encontrava-se altamente equacionado à alfabetização (ROJO, 2009b, p. 75-76).
Portanto, apesar de ser uma concepção um tanto simplista, o seu uso em
sala de aula, na educação básica, ainda é privilegiado, talvez, por ser a forma mais
fácil de ensinar e/ou, até mesmo, por causa da falta de formação continuada do
professor, que não percebe que, mesmo sendo essa uma forma válida de ensino,
existem outras concepções que ampliam o ensino de língua materna, por exemplo, a
concepção dialógica/interacional, que veremos mais adiante. Entendemos que, na
perspectiva de decodificação, o sujeito é silenciado, é passivo, não precisa
interpretar, compreender o que está escrito, é um mero decodificador.
Com o passar do tempo e o desenvolvimento das pesquisas linguísticas,
segundo Rojo (2009b, p. 79, grifo do autor),
[...] passou-se a ver o ato de ler como uma interação entre o leitor e o autor. O texto deixava pistas da intenção e dos significados do autor e era um mediador desta parceria interacional. Para captar estas intenções e sentidos, conhecimentos sobre práticas e regras sociais eram requeridos.
Nessa concepção, o ato de ler é entendido como interação entre o leitor e o
autor, mediados pelo texto. A pergunta mais comum feita pelo professor, em sala de
aula, era (é): “o que o autor quis dizer?”. O sujeito-leitor não tinha (tem) uma
participação ativa, como na concepção de leitura dialógica. Ele era (é) um sujeito-
leitor passivo, pois sua função era (é) tentar “captar” o que o autor queria (quer)
dizer no texto e isso era (é) feito por meio de “pistas” que o autor deixava (deixa) no
texto. A língua, nessa perspectiva, é considerada neutra, diferentemente da
concepção dialógica da linguagem, que compreende que a língua é, por natureza,
ideológica.
A autora mostra outra concepção mais recente ─ e enfatizamos que é a
concepção de leitura que assumimos neste trabalho ─, que tem sido divulgada nos
documentos oficiais da educação brasileira, em livros didáticos, entre outros
documentos que orientam o ensino de língua materna em sala de aula. A autora
mostra que isso ocorreu
53
[...] a partir dos anos 1990, a leitura tem sido vista como um ato de colocar em relação um discurso (texto) com outros discursos anteriores a ele, emaranhados nele e posteriores a ele, como possibilidade infinita de réplica, gerando novos discursos/textos (ROJO, 2009b, p. 79, grifo do autor).
Compreendemos que a concepção de leitura dialógica/interacional está
associada diretamente ao pensamento filosófico de Bakhtin (2010b) sobre a
concepção dialógica da linguagem:
Os enunciados não são indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mesmos; uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros [...]. Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta” no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta. [...] cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados [...] (BAKHTIN, 2010b, p. 297).
Ressaltamos alguns aspectos ─ importantes para a compreensão da
perspectiva da leitura dialógica/interacional ─ contemplados pelo filósofo russo, tais
como: a língua, que por natureza é ideológica e indissociável do contexto histórico-
social-cultural, ou seja, o texto é um construto histórico-social-cultural revestido de
ideologias, posicionamentos valorados do autor/falante; e a construção de sentido
do texto, que ocorre por meio do encontro dos posicionamentos valorados, das
ideologias, da interação do autor/falante e do leitor/ouvinte. É importante
compreender que os sujeitos envolvidos na atividade de leitura são participantes
ativos na comunicação e interação verbal e fazem parte do processo de construção
de sentido do texto, os quais são sempre responsivos, posicionados
axiologicamente. Nesse quadro, em concordância com Gege (2009, p. 64),
entendemos que “viver é tomar posições continuamente, é enquadrar-se em um
sistema de valores e, do interior dele, responder axiologicamente”.
54
Então, concebemos que em um texto/enunciado concreto o escritor/falante
não é o único que constrói os sentidos do texto, uma vez que o leitor/ouvinte tem
participação ativa, responsiva, tem voz. É no encontro das subjetividades do
autor/falante e do leitor/ouvinte, na interação verbal, que os sujeitos-leitores
constroem a produção de sentido do texto, pois as informações contidas no texto
não são dados prontos e acabados do autor. Cada leitor/ouvinte, com suas
singularidades, seu olhar exotópico, seu excedente de visão, dará o acabamento
temporário, provisório, ao texto, no ato da leitura.
Portanto, concordamos com Rojo (2005, p. 207), quando declara que o
ensino
[...] no campo da compreensão e da leitura ─ decorrentemente, da formação do leitor ─, trata-se mais de despertar a réplica ativa e a flexibilidade dos sentidos na polissemia dos signos, que de ensinar o aluno a reconhecer, localizar e repetir os significados dos textos [...] (ROJO, 2005, p. 207).
É nessa direção que entendemos que os professores de língua portuguesa
devem se basear para a prática de ensino de leitura, pois, dessa forma, podem
proporcionar ao aluno a oportunidade de se transformar, sair da posição de um
sujeito passivo para tornar-se um sujeito ativo, agente.
Como sabemos, a concepção de leitura que os professores escolhem para a
sua prática de ensino em sala de aula está diretamente relacionada à sua escolha
teórica da concepção de linguagem, que se apresenta de forma variada.
Observamos que há teóricos que compreendem a leitura como um processo de
decodificação; alguns, como processo interacional; e outros, como um processo
complexo de decodificação e interação. A partir da concepção de leitura assumida
por Garcez (2002, p. 23), depreendemos a sua concepção de linguagem:
A leitura é um processo complexo e abrangente de decodificação de signos e de compreensão e intelecção do mundo que faz rigorosas exigências ao cérebro, à memória e à emoção. Lida com a capacidade simbólica e com a habilidade de interação mediada pela palavra. É um trabalho que envolve signos, frases, sentenças, argumentos, provas formais e informais, objetivos, interações, ações
55
e motivações. Envolve especificamente elementos da linguagem, mas também os da experiência de vida dos indivíduos.
A partir do que foi exposto, entendemos que a teoria de linguagem assumida
pela autora é uma mistura da concepção de leitura como processo de decodificação
com a concepção de leitura interacional, em que ocorre a interação entre as
subjetividades do leitor e do autor, por este expressar sua subjetividade no momento
de produção e o texto retê-la, para que se contraste com a subjetividade do leitor.
A concepção de leitura de Paulo Freire (2008) é baseada no intercâmbio
entre texto e contexto. Ele defende que a leitura do texto escrito é precedida pela
leitura do mundo. O autor afirma que a leitura não se limita à simples decodificação
de signos, mas que se expande para, a partir dela, melhorar a leitura que se faz do
mundo. Dessa forma, a leitura é tida como libertação e meio de expandir horizontes,
uma vez que ela é uma porta para decifrar o mundo.
Entendemos que a escolha da concepção de língua/linguagem que o
professor de língua portuguesa faz para a sua prática de ensino em sala de aula é
de extrema importância, uma vez que ela será o seu balizador de ensino de leitura e
de escrita. Além disso, é ela que indicará se o professor agirá de modo excludente
ou de forma inclusiva com os seus alunos.
O ensino de língua portuguesa – língua/linguagem, leitura e escrita – nas
escolas de ensino básico é pautado, principalmente, por um dos métodos
tradicionais da linguística: o pensamento filosófico-linguístico, “objetivismo abstrato”,
que teve como um dos representantes Ferdinand de Saussure. Por muito tempo,
nas universidades, esse pensamento filosófico-linguístico vigorou privilegiadamente
na formação inicial e continuada de professores de língua materna. Assim, ainda
que ao longo do tempo tenham surgido outros estudos linguísticos que
complementam ou mesmo que se contrapõem, em parte ou completamente, a esse
pensamento filosófico-linguístico, há uma forte resistência de complementação ou de
mudança teórica por parte dos professores de língua portuguesa (linguistas), pois,
conforme afirmam Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 146): “O linguista sente-se mais à
vontade quando opera no centro de uma unidade frasal. Quanto mais ele se
aproxima das fronteiras do discurso, da enunciação completa, menos segura é a sua
posição”.
56
Apesar dessa resistência, o ensino de língua portuguesa por meio dos
gêneros discursivos/textos tem ganhado cada vez mais destaque – ainda que muitas
vezes sejam utilizados somente como pretexto para o ensino puro das normas da
língua padrão.
Geraldi (apud SUASSUNA; MELO; COELHO, 2006), do ponto de vista
metodológico, propõe, a partir de três eixos teóricos ─ concepção de linguagem
como interação, as variedades linguísticas e as teorias do texto/discurso ─, um
ensino de língua através de três práticas articuladas, que são: a leitura, a produção
de textos e a análise linguística, entendidas da seguinte forma:
a) leitura ─ como um trabalho de compreensão dos sentidos de um
texto, que corporifica o dizer de um sujeito de linguagem; b) produção de textos ─ como a expressão da subjetividade de um
autor, registro de uma certa compreensão ou visão de mundo para o outro;
c) análise linguística ─ como um trabalho de reflexão sobre os modos de funcionamento dos recursos expressivos da língua, em cujo centro estariam o texto e suas operações de construção (GERALDI apud SUASSUNA; MELO; COELHO, p. 229).
Afirmamos que essa metodologia, alinhada ao pensamento bakhtiniano de
língua/linguagem, é muito atual e produtiva e deveria ser seguida pelos professores
de língua materna.
Compreendemos que o ensino de língua materna por meio de gêneros
discursivos – a enunciação completa, o enunciado concreto – é uma das formas
mais eficazes e dinâmicas, na atualidade. No entanto, essa é uma realidade que
ainda está muito no âmbito da teoria e os profissionais da área de linguagem estão
se adaptando a esse direcionamento, orientação de documentos oficiais de ensino,
como veremos adiante, por exemplo, nos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais)
de língua portuguesa. A esperança, com esse modelo de ensino, é que os alunos-
cidadãos possam vivenciar as variadas práticas sociais por meio da leitura e da
escrita de textos diversos, que circulam nas mais diversas esferas da sociedade,
bem como possam tomar decisões, conscientes das consequências, nos âmbitos
escolar, político, de trabalho, familiar, entre outras esferas de atividade humana.
57
Os PCN3 de língua portuguesa, um dos documentos oficiais que tratam do
ensino de língua portuguesa, têm como uma das orientações a prática de ensino de
língua materna por meio do texto, dos gêneros do discurso, embora haja discussões,
críticas, pesquisas científicas sobre o modo como esse tema é abordado nesse
documento.
Martins (2008, p. 1) critica a forma como esse documento foi elaborado e
afirma que chegou “às escolas como parâmetro advindo das instâncias
administrativas, e não proposta previamente discutida, mesmo que de forma mínima,
entre os professores”. Assim, provocou dúvidas entre os professores sobre as
questões teóricas diversas tratadas no documento e o modo como colocá-las em
prática. A autora mostra, de maneira crítica, como os gêneros do discurso são
praticados atualmente nas escolas:
[...] a concepção de gêneros do discurso hoje praticada nas escolas é resultado de uma série de transformações, incluindo-se nelas o casamento com práticas pedagógicas bastante tradicionais. Lembremos, no entanto, que não são os professores os únicos responsáveis por essa bricolagem: ela vem se dando com a interferência de instâncias administrativas (MARTINS, 2008, p. 5-6).
Entendemos que para tentar solucionar, em parte, esse problema é
imprescindível que os professores ─ principalmente os que concluíram a formação
inicial há bastante tempo e ainda não realizaram uma formação continuada que as
universidades oferecem. Nesses cursos, geralmente, são apresentadas as teorias
de linguagem mais atuais e, então, os professores de língua materna podem refletir
a respeito das suas práticas de ensino em sala de aula e, se necessário, modificá-
las. Ademais, as Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de Letras regulamentam:
[...] O profissional de Letras deverá, ainda, estar compromissado com a ética, com a responsabilidade social e educacional, e com as consequências de sua atuação no mundo do trabalho. Finalmente, deverá ampliar o senso crítico necessário para compreender a importância da busca permanente da educação continuada e do desenvolvimento profissional (BRASIL, 2001, p. 30-31).
3 Para uma visão mais detalhada sobre essa questão, ver Rojo (2008).
58
Portanto, o professor de língua portuguesa deve compreender que para atuar
na sua área de trabalho é preciso compromisso, o qual envolve a percepção da
necessidade de se atualizar constantemente, pois a área educacional está sempre
se modificando, devido à evolução da sociedade e das demandas que os
sujeitos/alunos têm para agir no mundo.
No que se refere ao ensino de leitura em sala de aula, observamos que o
livro sempre esteve atrelado à história da leitura, isto é, sempre esteve associado à
elite, como podemos ver em Fischer (2006, p. 206):
Em quase toda a Europa, do século XV ao XVIII, a maioria dos leitores de livros era composta por médicos, nobres, ricos comerciantes e integrantes do clero, assim como na Idade Média. Negociantes, artesãos e comerciantes comuns às vezes liam, ainda que com imperfeição. Estes quase sempre preferiam livretos de baladas e contos, livros de horas baratos e os livros elementares que seus filhos talvez usassem nas escolas locais, se houvesse alguma. Podia-se contar nos dedos o número de pequenos proprietários rurais, camponeses e operários que soubessem ler. Possuir e ler um livro de verdade [...] era privilégio dos ricos e daqueles de elevado status social. A cultura da leitura de livros solidificou a divisão entre as classes sociais, destacando e apoiando os poucos que ainda controlavam os muitos.
Observamos, a partir do que foi dito acima, que poucas mudanças ocorreram
na história da leitura, especificamente da leitura de livros, que era reconhecida como
o meio mais importante de acesso ao conhecimento, na sociedade culta. Assim
como nos séculos que o autor destacou, atualmente ainda impera o ranço da
dominação da elite sobre a população menos privilegiada por meio da leitura de
livros, particularmente de obras clássicas da literatura universal, que leva à
diferenciação entre o verdadeiro leitor e o não leitor. É certo que, na
contemporaneidade, as classes trabalhadoras têm mais acesso à escolarização, à
aprendizagem da leitura (embora o ensino tenha como objetivo, geralmente, a
decodificação), aos livros, porém, assim como nos períodos destacados pelo autor,
atualmente a população, mesmo tendo acesso às obras clássicas da literatura
59
universal, prefere ler livros mais baratos, muitos denominados de best-sellers,
encontrados em bancas de revista, considerados leitura desvalorizada pela cultura
oficial. Talvez isso continue ocorrendo pelo fato de os livros, denominados best-
sellers, serem mais baratos, de fácil acesso e leitura, e a leitura de obras clássicas
da literatura universal continuar sendo mitificada como difícil, destinada para os
poucos favorecidos economicamente.
Destacamos, nessa discussão, uma questão em relação à leitura que vem
sendo discutida já por muito tempo: “a crise da leitura no Brasil”, que foi construída
pela sociedade, ao perceber que, principalmente, as crianças e os jovens não liam
livros como antes. Sobre essa questão, Theodoro da Silva (1986, p. 61-62)
assevera:
Quando falamos em crise do livro e da leitura no Brasil, devemos deixar bem claro que se trata de uma crise no seio da classe trabalhadora, que indiscutivelmente representa a maioria da nossa população. E por que essa classe não tem acesso ao livro? Minha resposta é a seguinte: não é interessante que o hábito da leitura seja democraticamente incentivado e implantado à medida que pode levar ao questionamento do regime de privilégios, próprio das sociedades de classes. [...] relembro que o analfabeto boia-fria sempre foi sinônimo de mão de obra facilmente explorada e o semianalfabeto, o “inocente útil” em período de eleições.
Com base na citação, compreendemos que a “crise da leitura no Brasil”
sempre esteve diretamente relacionada à leitura de livros, em tempos passados e no
presente. É importante também lembrar que essa “crise”, discutida pelo autor, na
década de 80 do século XX, era(é) inerente à classe trabalhadora, aos menos
favorecidos economicamente, que não tinham(têm) condições financeiras de adquirir
livros impressos. Sem dúvida, o trabalhador brasileiro é o mais afetado por essa
“crise”. Entretanto, observamos que a “crise da leitura” está associada a um mito
criado pelas elites, o de que um “bom leitor” é aquele que se dedica à leitura de
obras clássicas da literatura universal, em detrimento de textos variados que
circulam nas diversas esferas da sociedade. Portanto, se esse é o parâmetro (ou o
principal) para distinguir os sujeitos como leitores e não leitores, realmente existe
uma “crise da leitura” em todas as classes sociais.
60
Contudo, entendemos que essa concepção de leitura também é uma forma
de opressão, pois privilegia somente um tipo de leitura, como se fosse a mais
correta, a mais útil para lutar contra os domínios dos dominadores/elites, que, por
sua vez, não têm interesse que os trabalhadores leiam (textos variados que
despertem a consciência reivindicatória) para não questionarem os privilégios das
elites e, consequentemente, reivindicarem os seus direitos. Então, é necessário
entender que as obras clássicas da literatura universal são muito importantes para a
nossa cultura geral, no entanto não é a única fonte de texto que pode ser utilizada
em sala de aula, nas aulas de leitura e escrita, as quais, muitas vezes, são utilizadas
somente como pretexto para ensinar regras gramaticais. Ademais, as obras
clássicas da literatura universal não devem ser consideradas como única fonte para
medir o nível de leitura dos alunos. É necessária a compreensão de que, para os
sujeitos se tornarem leitores proficientes, é imprescindível a prática da leitura de
textos diversos, de gêneros discursivos variados que circulem nas diversas esferas
da sociedade; e de que eles consigam depreender os sentidos do texto construídos
na interação verbal a partir do ativamento de conhecimentos4.
Outro mito construído pela sociedade é o de que para escrever bem é
necessário ser um bom leitor das obras valorizadas pela cultura oficial, as quais
devem servir como modelo, conforme afirma Lajolo (1991, p. 57):
Outra forma de exemplaridade desempenhada pelo texto é sua dimensão de repositório de ocorrências linguísticas que seguem à risca as normas gramaticais cultas. Rui Barbosa, Euclides da Cunha, Vieira e até Machado de Assis costumam ser as vítimas preferidas dos que veem no texto pretexto para sapecar na criançada regências, colocações e concordâncias em desuso. E, de vítima, estes autores transformaram-se em algozes: castigam professores e alunos, fazendo-os deter-se em normas intrincadíssimas e de aplicabilidade bastante discutível.
Com base nessa discussão, questionamos: qual a concepção (ou
concepções) de leitura e escrita que os professores têm se baseado para a sua
prática de ensino em sala de aula: a escrita de codificação e a leitura de
decodificação (que ainda são privilegiadas nas salas de aula)? Compreendemos que 4 Para mais detalhes, conferir Koch e Elias (2012).
61
se os professores se basearem somente nessas concepções de leitura e escrita, na
sua prática de ensino, o intuito de libertação do povo dos poderes dominadores das
elites (THEODORO DA SILVA, 1986) estará fadado ao fracasso, pois o ensino
somente desse tipo de leitura e escrita é uma forma de perpetuar a dominação,
porque não é exigida do leitor uma leitura reflexiva, crítica. Assim, “por conta desta
concepção equivocada a escola vem produzindo grande quantidade de ‘leitores’
capazes de decodificar qualquer texto, mas com enormes dificuldades para
compreender o que tentam ler” (BRASIL, 1998, p. 42).
Na contemporaneidade, com o crescente acesso às novas tecnologias da
informação e da comunicação, a forma de ver a leitura tem se modificado, havendo
modos diferentes de realizar uma leitura, por exemplo, por meio da internet. Os
alunos podem não ter um repertório de leitura de livros impressos ─ aqueles que
formam a tradição erudita nacional e internacional, os que os professores e as
instituições de ensino impõem ─, mas leem, muito, variados gêneros discursivos
pela internet. Entendemos que essa forma de realizar leituras de textos diversos
vem provocando uma ruptura do controle da hierarquização da leitura entre as
classes sociais ─ as classes de trabalhadores e as elites ─, pois a maioria da
população (independentemente da classe social) tem acesso à internet. Sendo
assim, resta às instituições de ensino e aos professores tomarem consciência da
importância dessa forma de ensino e aderirem a essa prática de ensino em sala de
aula, que deve ter como finalidade a formação de cidadãos, para que estes possam
agir no mundo. Nessa perspectiva, Moita Lopes e Rojo (apud ROJO, 2008, p. 91,
grifo do autor) defendem:
Ensinar a usar e a entender como a linguagem funciona no mundo atual é tarefa crucial da escola na construção da cidadania, a menos que queiramos deixar grande parte da população no mundo do face a face excluída das benesses do mundo contemporâneo das comunicações rápidas, da tecnoinformação e da possibilidade de se expor e fazer escolhas entre discursos contrastantes sobre a vida social.
Em sala de aula, no ensino de leitura, sabemos que o ensino de leitura
literária é prioritário. Nessa perspectiva, Silva Neto (2007, p. 27) propõe uma
discussão sobre o lugar da literatura na aula de língua portuguesa em face dos
62
apelos das novas e variadas opções de leitura circulante na contemporaneidade,
que “têm alargado e desafiado os conceitos hegemônicos do cânone literário,
nacional e internacional”. As novas opções de leitura a que o autor se refere são as
oferecidas pelo mercado gráfico de arte, lazer e entretenimento, sobretudo as
opções de leitura na internet, tendo a escola esse desafio para enfrentar, pois não
pode desconsiderar essa realidade.
Uma das questões que o autor trata refere-se ao lugar da literatura na escola.
Ele afirma que o texto literário deveria ser mais um dentre as variadas modalidades
de textos orais e escritos a serem ensinados, na contemporaneidade, e não mais,
somente, “o texto exemplar da língua e da cultura letrada, como ainda insistem, em
certos segmentos da Academia, algumas vozes guardiãs ciosas do preciosismo
literário” (SILVA NETO, 2007, p. 30).
O autor lança duas questões para reflexão: a primeira é sobre o que se
entende por literatura atualmente e a segunda é sobre a questão do prazer, “como
meio e fim dos incentivos à leitura” (SILVA NETO, 2007, p. 32). Faz críticas a essas
questões e às práticas pedagógicas no ensino fundamental e médio, que ainda é
pautado na historiografia, nos critérios das escolas literárias e dos estilos de época.
Entendemos que ler “envolve diversos procedimentos e capacidades
(perceptuais, motoras, cognitivas, afetivas, sociais, discursivas, linguísticas), todas
dependentes da situação e das finalidades de leitura [...]” (ROJO, 2009a, p. 75).
As finalidades e objetivos de leitura são variados e, de acordo com Solé
(1998, p. 22):
O leque de objetivos e finalidades que faz com que o leitor se situe perante um texto é amplo e variado: devanear, preencher um momento de lazer e desfrutar; procurar uma informação concreta; seguir uma pauta ou instruções para realizar uma determinada atividade; informar sobre um determinado fato; confirmar ou refutar um conhecimento prévio; aplicar a informação obtida com a leitura de um texto na realização de um trabalho, etc.
Todas essas finalidades e objetivos de leitura são definidos de acordo com as
necessidades do leitor. Se o leitor precisa ler para relaxar, a leitura mais apropriada
é a de devaneio, de prazer, geralmente encontrada em livros de literatura, revistas,
63
sites da internet, entre outros meios. Porém, se ele tem de realizar um trabalho, ele
lerá textos, livros não literários, apropriados para a sua área do conhecimento.
Silva Neto (2007) ressalta a importância do ensino de leitura baseado nos
documentos oficiais: LDB e PCN. O autor critica o ensino de leitura voltado para o
vestibular, lembra que a formação de professores constitui um fator crucial nessa
problemática e afirma que a pesquisa na área de leitura já apresenta sinais
positivos, embora ainda incipientes.
O autor, ao tratar das formas de ensino do texto e das atividades de leitura,
afirma que o modo como essas temáticas são abordadas depende da concepção
teórica que o professor adota para pautar a sua prática docente. E, ainda, orienta os
“amantes e defensores da literatura” sobre a importância do uso das tecnologias da
hipermídia no ensino de leitura para jovens.
Por fim, compreendemos que o ensino da leitura é uma temática bastante
complexa e as discussões acerca desse tema passam pelas mais variadas correntes
teórico-metodológicas, tanto no campo da Linguística quanto no da Literatura.
Porém, cabe ao professor de língua portuguesa estudar, pesquisar, assumir uma
concepção teórico-metodológica, ou mais de uma, para balizar a sua prática de
ensino da leitura; entender que a sua prática de ensino deve estar diretamente
relacionada às práticas do cotidiano dos alunos, das suas demandas; bem como
compreender a necessidade do uso das tecnologias da hipermídia no ensino da
leitura, literária e/ou não literária, contribuindo de forma inclusiva para a formação
dos alunos-cidadãos.
64
4 O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DO GÊNERO DISCURSIVO “MEMÓRIAS DE LEITURA”
Nesta pesquisa, compreendemos as “memórias de leitura”, que fazem parte
do corpus deste trabalho, como gêneros do discurso, os quais, para Bakhtin (2010b,
p. 262), são tipos relativamente estáveis de enunciados. São relativamente estáveis
porque “eles mudam com as práticas sociais, alteram-se com a aplicação de novos
procedimentos de organização e de acabamento do todo verbal e de uma
modificação do lugar atribuído ao ouvinte” (ALVES, 2008, p. 139-140). Portanto,
neste capítulo, iremos apresentar o contexto histórico do que hoje denominamos
gênero do discurso “memórias de leitura”.
Aragão (1992, p. 2) afirma que, atualmente, a palavra memória recobre um
largo campo semântico, sendo então:
1. A faculdade biológica que consiste em conservar, reconhecer, reproduzir ou evocar acontecimentos ou experiências passadas ou vividas: “A memória é uma qualidade que não é muito desenvolvida em certos animais”. 2. Um tipo de memória específica: “Ele tem uma boa memória visual”. 3. A memória considerada como um lugar onde imagens, percepções e conhecimentos são estocados: “Minha memória está repleta de lembranças”. 4. A totalidade do que foi guardado, quase sinônimo de História: “A Memória de um povo, ou de um país”. 5. Um acontecimento, uma imagem, uma impressão que volta ao espírito: “Uma das minhas mais antigas memórias”; “Ele estava absorvido em suas memórias”. 6. Comemoração: “Em memória de alguém”. 7. Obra de cunho autobiográfico: “Memórias”.
Compreendemos que a definição de memórias do item sete é a que mais se
aproxima do material utilizado para compor o corpus desta pesquisa, pois são
enunciados de cunho autobiográfico, em que os autores narraram suas “memórias
de leitura”.
Aragão (1992, p. 2) mostra como surgiu o termo memórias na esfera da
literatura, no século XVII:
65
Durante muito tempo, não existiu, em termos de literatura, um termo preciso para designar um certo gênero específico de narrativa, cujo assunto escolhido a colocava entre a história e a crônica pessoal. Só a partir do século XVII é que o termo memórias será utilizado, recobrindo, primeiramente, textos de historiadores ou de pessoas que não eram profissionais de literatura: memórias de parlamentares, de militares, de nobres, de religiosos. Posteriormente, “memórias” vai recobrir textos apresentados como sendo narrativas autobiográficas: memórias de cortesãos, de damas galantes etc. A parte antes dedicada à história cede lugar à descrição de experiências pessoais. Neste caso, a ilustração de uma vida privada, misturada aos acontecimentos, interessa mais pelo seu lado anedótico do que por sua fidelidade aos fatos reais.
No século XVII, inicialmente, o termo memória foi utilizado para narrativas nas
quais os assuntos circulavam entre a história e a crônica pessoal. Depois, foi
utilizado para definir textos que apresentavam narrativas autobiográficas,
desvinculadas da esfera literária e associadas à esfera social, estando, nesse
segundo momento, mais relacionado ao lado anedótico da narrativa dos fatos da
vida privada. Já nos séculos XVIII, XIX e XX, a autora mostra que o termo memória
foi modificado:
No século XVIII nasce o romance memorialístico, obras de ficção, que inundam o mercado literário, principalmente da França e da Inglaterra. Já nos séculos XIX e XX, o termo “memórias”, apesar de ainda comparecer para designar um certo tipo de obras de cunho histórico e autobiográfico, vai aos poucos sendo substituído pelo de “autobiografia” (ARAGÃO, 1992, p. 3).
Com o passar do tempo, o termo memórias foi modificado para autobiografia;
enquanto o primeiro se referia a obras de ficção, o segundo estava relacionado a
obras de cunho histórico e autobiográfico, aproximando-se de fatos reais vividos por
alguém. Observamos que até o século XVIII as memórias estavam diretamente
ligadas à esfera literária e que mais tarde passaram a circular, além da esfera
literária, em outros âmbitos de atividade humana ─ ora denominadas de memórias,
ora de autobiografia ─, por exemplo, as memórias que compuseram o corpus deste
66
trabalho, que foram denominadas de “memórias de leitura”, estão relacionadas à
esfera educacional.
Na sequência, Aragão (1992, p. 3) apresenta o que o termo memórias
significa na atualidade:
Hoje em dia costumamos chamar de “memórias” de um personagem a narrativa feita por ele mesmo dos acontecimentos de sua vida, com uma insistência sobre os acontecimentos objetivos, mais do que sobre o vivido subjetivo. Mas a linha de demarcação entre memórias e autobiografia não é clara, uma vez que se torna bastante difícil separar os dois tipos de estratégia narrativa.
Então, afirmamos que as narrativas que fazem parte do corpus desta
pesquisa se alinham a essa atual definição de memórias. As “memórias de leitura”
foram narradas por sujeitos que escreveram sobre as suas experiências de leitura.
Aragão (1992, p. 3) mostra como ocorre o processo da escrita da memória:
Na elaboração literária de uma vida, o autor realiza um incessante diálogo entre o passado e o presente, colocando em cena a elaboração de seu ser pessoal, na procura das significações contidas nos fatos passados. Diríamos que o memorialista faz uma segunda leitura do tempo vivido ou... perdido.
Dessa forma, entendemos que na construção do gênero discursivo “memórias
de leitura” o autor realiza um diálogo entre o passado e o presente com o objetivo de
(re)lembrar o seu percurso de leitor, as leituras que realizou, se a sua experiência
com o mundo da leitura foi positiva ou negativa, se foi negativa (re)lembrar por qual
motivo isso ocorreu; ainda, como professor de língua materna, (re)pensar sobre a
sua prática de ensino de leitura em sala de aula para não promover um ensino que
traga resultados negativos, no presente ou no futuro, para os seus alunos.
A autora chama a atenção para o processo de construção de textos que
narram sobre história de vida:
67
Quando lemos uma história de vida, devemos estar sempre conscientes de que o autor nos conta apenas uma parte de sua história, que escolhe os fatos de maneira a nos apresentar uma certa imagem elaborada de si. O confronto entre o passado de um indivíduo e sua verbalização, a busca da diferença entre o que o narrador diz que fez ou sentiu e o que ele realmente realizou está no centro da problemática deste tipo de escritura. Mas a tarefa do crítico literário não é verificar a veracidade do que foi narrado, mas sim de como se deu essa passagem para a narratividade, e de que modo se construiu um discurso que passa a ter vida própria, independentemente da comprovação da realidade ou da veracidade dos acontecimentos narrados. A narrativa de vida não se prende à descrição exata dos fatos. Ela obedece, isso sim, à exigência de fidelidade a si mesmo, segundo a ordem dos valores reveladores do sentido de uma vida, na plenitude de sua permanente atualidade (ARAGÃO, 1992, p. 4).
Portanto, ao analisarmos as “memórias de leitura”, o nosso olhar enquanto
pesquisadora não se voltou para tentar compreender se o que o sujeito narrou sobre
a sua experiência de leitura é verdadeiro ou não. Ademais, temos consciência e
concordamos com a autora quando trata das escolhas que o autor faz para narrar
uma história de vida, escolhendo os fatos de maneira a nos apresentar uma certa
imagem elaborada de si.
Sobre os benefícios da prática da escrita de memórias e autobiografia, a
autora comenta:
Segundo Georges Gusdorf, em Mémoire et Personne, memórias e autobiografias têm um objetivo reformador, um caráter criador e edificante, em busca de uma verdade “como expressão do ser íntimo, à semelhança não mais das coisas, mas da pessoa”. Em outras palavras, aquele que se expõe por escrito não o faz imparcialmente. O projeto de se autoconhecer, de passar do não saber ao saber, de fazer nascer a luz sobre a sua própria identidade, invoca a intenção, quem sabe, de uma mudança para melhor da situação geral do homem no mundo. Através de sua própria experiência e da clareza de sua análise, essa mudança poderá se estender a outras vidas (GUSDORF apud ARAGÃO, 1992, p. 4).
No caso da escrita das “memórias de leitura”, o sujeito, quando escreve
acerca da sua experiência de leitura, posiciona-se, aprende mais sobre si e, se
necessário, pode buscar mudanças para a sua vida. Se o texto for escrito por um
68
professor de leitura, ele terá a oportunidade de (re)avaliar a sua prática de ensino e,
se necessário, modificá-la.
Nóvoa (2007, p. 24) aborda os “[...] dispositivos que procuram rememorar as
práticas dos professores, através de estratégias várias (narrativas orais, relatos
escritos, etc.)”, como fonte de reflexão no seu percurso de aprendizagem/ensino. O
autor do texto citado acima faz uma referência ao escritor Pierre Dominicé (apud
NÓVOA, 2007, p. 24), que trata da prática educativa:
A vida é o lugar da educação e a história de vida o terreno no qual se constrói a formação. Por isso, a prática da educação define o espaço de toda a reflexão teórica. O trabalho do investigador e dos participantes num grupo biográfico não é da mesma natureza, na medida em que ele possui mais instrumentos de análise e uma maior experiência de investigação. Mas trata-se do mesmo objeto de trabalho. Dito doutro modo, o saber sobre a formação provém da própria reflexão daqueles que se formam. É possível especular sobre a formação e propor orientações teóricas ou fórmulas pedagógicas que não estão em relação com os contextos organizacionais ou pessoais. No entanto, a análise dos processos de formação, entendidos numa perspectiva de aprendizagem de mudança, não se pode fazer sem uma referência explícita ao modo como um adulto viveu as situações concretas do seu próprio percurso educativo (DOMINICÉ apud NÓVOA, 2007, p. 24).
No trecho citado, Dominicé discute o processo de formação de docentes e
enfatiza que a rememoração pode ser utilizada como estratégia para a reflexão do
ensino adotado por tais sujeitos. Assim, por meio da rememoração de como se deu
a sua aprendizagem, pode traçar mudanças no seu repertório de educador.
Ainda se tratando da rememoração de vida dos docentes, através de textos
autobiográficos, Nóvoa (2007, p. 81) afirma:
Para muitos de nós, a ideia de ocupar parte do nosso tempo a escrever a autobiografia pareceria a entrega a uma satisfação e a um luxo. De qualquer modo, sobre que episódios da vida quotidiana do professor valeria a pena escrever? Decerto que haverá poucos professores que reivindiquem o conhecimento de enredos nas suas vidas e, mesmo para aqueles que o possam fazer, seria de somenos importância explorá-los. Poucos professores diriam ter tempo, ou para identificar tais enredos, ou para passar ao papel (uma perspectiva ainda menos motivadora). Contudo, para os professores
69
que pegam na caneta, geralmente a pedido de um investigador que deseja surpreender as suas perspectivas para ulterior estudo fenomenológico ou de um formador de professores que reconheça o valor de uma tal investigação relativamente ao desenvolvimento pessoal e profissional, a caminhada torna-se “uma viagem de descoberta” (Henry Miller), que, embora cheia de incerteza e desconforto, é tão divertida e educativa como desafiadora.
Ao incentivar a produção da autobiografia para professores como um recurso
de “investigação” da sua vida docente, o autor nos mostra que esse processo pode
levar a um desenvolvimento pessoal e profissional. Ele, ainda, comenta a respeito
dos argumentos de alguns professores, ao questionarem sobre ocupar parte do seu
tempo em fazer tal constituição de vida. Portanto, compreendemos que esse
processo de “investigação” deveria ser seguido por todos os profissionais da
educação, visando a uma reflexão da sua prática de ensino e modificando o que for
necessário, para se tornar um formador comprometido com a qualidade da
educação.
Concluímos afirmando que, neste trabalho, compreendemos memória como
um gênero discursivo e, em concordância com Alves (2008, p. 139-140),
entendemos que
[...] os gêneros não são estáticos, imutáveis ou formas desprovidas de dinamicidade. Relativamente estáveis, eles mudam com as práticas sociais, alteram-se com a aplicação de novos procedimentos de organização e de acabamento do todo verbal e de uma modificação do lugar atribuído ao ouvinte.
Portanto, foi o que aconteceu com o gênero discursivo memória, que
selecionamos para a composição do corpus desta pesquisa, pois esse termo
inicialmente foi utilizado na esfera literária, como vimos no início deste capítulo,
sendo, hoje, utilizado em esferas diversas. No caso dos textos, representantes do
gênero discursivo “memórias de leitura”, que selecionamos para o corpus deste
trabalho, foram escritos no contexto educacional, então, a sua composição e o seu
endereçamento, provavelmente, estão adequados ao contexto educacional,
conforme veremos na análise. Ainda, entendemos que o gênero discursivo
70
“memórias de leitura” pode ser um instrumento eficaz em cursos de formação inicial
ou continuada de professores, tendo em vista que possibilita aos professores a
reflexão sobre a sua prática de ensino.
71
5 METODOLOGIA
Nesse capítulo, apresentaremos a metodologia que elegemos para a
construção desta dissertação.
Situada na Linguística Aplicada, a pesquisa se alinha à abordagem
qualitativo-interpretativista de base sócio-histórica. Nesse cenário, constitui um
encontro entre sujeitos integrais, os quais são marcados por centros de valores.
A partir de Freitas (2007), aproximamos o pensamento bakhtiniano dessa
orientação metodológica. O conceito de diálogo nos parece categoria fundamental
para compreender as relações intersubjetivas. Segundo a autora, “essa abordagem
[a qualitativa] consegue opor aos limites estreitos da objetividade uma visão humana
do conhecimento” (FREITAS, 2007, p. 26). Espera-se, portanto, do pesquisador uma
atitude responsivo-axiológica em relação ao sujeito expressivo e falante (BAKHTIN,
2010b, p. 395, grifo do autor) a ser compreendido, por se tratar de um encontro entre
vozes que refletem refratadamente a realidade.
A pesquisa em Linguística Aplicada, inicialmente, tinha como foco de estudo a
área de ensino-aprendizagem de línguas, a qual, segundo Moita Lopes (2009, p.
12), ainda tem grande repercussão.
Essa área teve início devido os avanços da Linguística como ciência no
século XX, que, de acordo com Moita Lopes (2009, p. 12), se constituiu como
aplicação da Linguística ao ensino de língua estrangeira, como estudo científico do
ensino de línguas estrangeiras e tradução.
Porém, essa realidade modificou-se e os estudos científicos da Linguística
Aplicada foram ampliados para os contextos de ensino-aprendizagem de língua
materna, tendo como característica fundamental a interdisciplinaridade, denominada
por Moita Lopes (2009) de “indisciplinaridade”.
Moita Lopes (2004, p. 165), ainda sobre a interdisciplinaridade na Linguística
Aplicada, afirma:
O que acredito estar acontecendo na produção do conhecimento é a compreensão de que uma única disciplina não pode dar conta de um mundo social mestiço, fragmentado, contraditório e contingente como acho que Gruzinski (2001) diria: “pode uma disciplina sozinha dar
72
conta da questão das mestiçagens? Para fazer isso, ‘ciências nômades’, que circulam do folclore à antropologia, da comunicação à história da arte, seriam necessárias” (p. 44). É esse mesmo tipo de pensamento mestiço ou nomadismo que seria útil em nosso campo. As teorias por meio das quais construímos o mundo mudaram e, portanto, devem mudar nossas abordagens de compreendê-lo teórica e metodologicamente, ao nos localizarmos nas fronteiras onde várias áreas de investigação se encontram.
O autor amplia a discussão sobre a interdisciplinaridade e afirma que uma
única disciplina não pode dar conta de um mundo social mestiço, fragmentado,
contraditório e contingente, por isso a necessidade de os linguistas aplicados, ao se
localizarem nas fronteiras, lançarem mão da interdisciplinaridade.
Em relação ao pesquisador na Linguística Aplicada, Moita Lopes (2004, p.
166) declara:
Sou de opinião que a procura por verdades separadas do sujeito-pesquisador que guiou o positivismo é ainda a crença norteadora de muita pesquisa nas Ciências Sociais e Humanas, mesmo daquelas de cunho qualitativo. E isso tem sido assim em muitas pesquisas no campo de estudos da linguagem.
O autor emite sua opinião criticando algumas pesquisas, de cunho qualitativo,
que estão inseridas na Linguística Aplicada, as quais ainda procuram verdades
separadas do sujeito-pesquisador, silenciando-o. Ademais,
Não contemplam o fato de o pesquisador estar sempre posicionado no mundo e imbricado no conhecimento que produz. Assim, “o conhecimento nada tem de objetivo ou definitivo, pois ele depende do poder e da história” (SEMPRINI, 1999, p. 166); depende do pesquisador e de como ele constrói o conhecimento que produz. O pesquisador tem corpo, raça, desejo, classe social, gênero etc., enfim, tem história: não há mais espaço para uma racionalidade descorporificada (HOOKS, 1994). A racionalidade é marcada pela história do pesquisador (MOITA LOPES, 2004, p. 166).
73
O sujeito a que o autor se refere é o sujeito do paradigma positivista, do
século XIX. Nesse período, as ciências humanas e as Ciências Sociais eram
marginalizadas e a forma de ganharem visibilidade foi se adequarem ao positivismo;
dessa forma, marcaram a morte do sujeito, coisificaram o sujeito. Diferentemente do
sujeito desse período, o sujeito da Linguística Aplicada é posicionado, participativo
da pesquisa.
Moreira e Caleffe (2008, p. 60), ao tratarem do paradigma interpretativo,
afirmam:
Da mesma forma que o positivismo, o paradigma interpretativo tem profundas raízes históricas que emergiram com muita força no século dezenove como uma reação crítica ao positivismo. Uma figura influente nessa reação foi Wilhelm Dilthey, que argumentou que, enquanto as ciências naturais lidavam com uma série de objetos inanimados que podiam ser vistos como existindo fora de nós, isso não poderia acontecer de forma alguma nas ciências sociais. O enfoque das ciências sociais deveria ser nos produtos da mente humana, incluindo subjetividade, interesses, emoções e valores.
Os autores mostram que o paradigma interpretativo surgiu no século XIX
como uma reação ao positivismo. Apresentam o filósofo Wilhelm Dilthey como o
responsável por influenciar essa reação e argumentar que as ciências naturais
lidavam com uma série de objetos inanimados ─ “o sistema é objetificado (sem
sujeito)” (BAKHTIN, 2010b, p. 407) ─ e que isso não poderia ocorrer nas Ciências
Sociais. Ainda alertam:
Os pesquisadores interpretativos não podem se sentir inclinados para as abordagens da ciência natural para entender o mundo social, uma vez que os seres humanos são animais que pensam, são conscientes, possuem sentimentos e usam a linguagem e os símbolos (MOREIRA; CALEFFE, 2008, p. 60).
Igualmente à Linguística Aplicada, no paradigma interpretativista os
pesquisadores, chamados pelos autores de pesquisadores interpretativos, não
devem utilizar o paradigma positivismo, da ciência natural, que lida com objetos
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inanimados. Na Linguística Aplicada, deve-se considerar que os pesquisadores e os
sujeitos que contribuem na pesquisa são seres humanos, possuem sentimentos e
usam a linguagem e os símbolos. Bakhtin (2010b, p. 319), ao se referir ao problema
do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas, afirma que “o texto
é o dado (realidade) primário e o ponto de partida de qualquer disciplina nas ciências
humanas”, mas “o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante”
(BAKHTIN, 2010b, p. 395, grifo do autor), ou seja, “o objeto real é o homem social
(inserido na sociedade), que fala e exprime a si mesmo por outros meios”
(BAKHTIN, 2010b, p. 319).
Em relação à perspectiva sócio-histórica, Freitas (2007) apresenta algumas
características que a constituem, quais sejam:
A fonte dos dados é o texto (contexto) no qual o acontecimento emerge, focalizando o particular enquanto instância de uma totalidade social. Procura-se, portanto, compreender os sujeitos envolvidos na investigação para, através deles, compreender também o seu contexto. As questões formuladas para a pesquisa não são estabelecidas a partir da operacionalização de variáveis, mas se orientam para a compreensão dos fenômenos em toda a sua complexidade e em seu acontecer histórico. Isto é, não se cria artificialmente uma situação para ser pesquisada, mas vai-se ao encontro da situação no seu acontecer, no seu processo de desenvolvimento. O processo de coleta de dados caracteriza-se pela ênfase na compreensão, valendo-se da arte da descrição que deve ser complementada, porém, pela explicação dos fenômenos em estudo, procurando as possíveis relações dos eventos investigados numa integração do individual com o social. A ênfase da atividade do pesquisador situa-se no processo de transformação e mudança em que se desenrolam os fenômenos humanos, procurando reconstruir a história de sua origem e de seu desenvolvimento. O pesquisador é um dos principais instrumentos da pesquisa porque, sendo parte integrante da investigação, sua compreensão se constrói a partir do lugar sócio-histórico no qual se situa e depende das relações intersubjetivas que estabelece com os sujeitos com quem pesquisa. O critério que se busca numa pesquisa não é a precisão do conhecimento, mas a profundidade da penetração e a participação ativa tanto do investigador quanto do investigado. Disso resulta que pesquisador e pesquisado têm oportunidade para refletir, aprender e ressignificar no processo de pesquisa (FREITAS, 2007, p. 27-28).
75
Portanto, esse é um caminho que pode ser percorrido como uma forma de
produzir conhecimento no campo das Ciências Humanas. Por conseguinte,
aproximamos Bakhtin (2010b) da abordagem sócio-histórica, considerando a
pesquisa como uma relação entre sujeitos, numa perspectiva dialógica, interacional,
que leva em conta o pesquisador e o pesquisado como sujeitos que têm voz, são
situados em um lugar sócio-histórico, sendo desse lugar que eles falam, que
assumem uma posição axiológica.
Por fim, abordamos outro conceito de Bakhtin (2003, 2010b), que está
relacionado a essa metodologia, que é o olhar exotópico, já abordado no capítulo
teórico, na seção 3.5. Porém, aqui, ressaltaremos o valor da exotopia do
pesquisador. Na análise do corpus, tentamos flagrar o olhar exotópico do aluno
sobre si mesmo, no que concerne à sua formação como leitor. Então, com o meu
olhar exotópico de pesquisadora e a partir da minha posição axiológica (crenças,
valores, posicionamentos etc.), com o meu excedente de visão, darei o acabamento
provisório à imagem que os alunos construíram de si, enquanto leitores, pois, em
concordância com Bakhtin (2010b, p. 22), compreendemos que “O que vejo
predominantemente no outro em mim mesmo só o outro vê”.
5.1 SOBRE O CORPUS
As “memórias de leitura” que formam o corpus deste trabalho foram
construídas por alunos do “Curso de Especialização em Língua Portuguesa: Leitura,
Produção de Textos e Gramática”, na disciplina “Teorias e ensino da leitura”, na
UFRN, realizado no ano de 2007.
Na disciplina citada, a professora solicitou a produção de um texto e orientou
como deveria ser escrito. Então, a partir desses textos, selecionamos o corpus deste
trabalho. Para uma melhor compreensão da construção dos textos, a seguir,
transcreveremos o enunciado da atividade:
76
Você está sendo solicitado a recuperar suas memórias de leitura como uma das atividades desta disciplina. Nas suas memórias, deve predominar a sequência narrativa. No seu texto, focalize o momento em que você aprendeu a ler, o que lia, como lia, se liam para você, seus gostos, sua maturidade leitora e suas atuais preferências de leitura. O texto produzido irá compor o seu portfólio da disciplina.
5.2 PERFIL DOS SUJEITOS-COLABORADORES DA PESQUISA
Os sujeitos que escreveram as “memórias de leitura” exercem
predominantemente a docência; trabalham em escolas públicas; são docentes do
sexo feminino e masculino. A maioria já tem bastante experiência – alguns da
prática docente em língua portuguesa, língua estrangeira, e outros na área de
pedagogia, no ensino básico. Porém, para esta pesquisa, selecionamos somente
textos de docentes de língua portuguesa.
5.3 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE
Inicialmente, afirmamos que, neste trabalho, compreendemos cada memória
de leitura como um enunciado concreto, conforme estudos bakhtinianos
apresentados no capítulo teórico sobre enunciado.
Para a análise do corpus, selecionamos textos representantes do gênero
discursivo “memórias de leitura”, que foram escritos por alunos participantes de um
curso de especialização de língua portuguesa, na UFRN.
Para definirmos o corpus, fizemos leituras minuciosas dos textos. Inicialmente
tínhamos 50 textos e depois de algumas ações, como veremos na seção 5.4,
decidimos selecionar 3 textos para a análise.
Na análise, para preservar a identidade dos autores das “memórias de
leitura”, decidimos nomeá-los de leitor 1, leitor 2 e leitor 3.
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A definição das categorias de análise foi realizada com base na leitura do
corpus, juntamente com a leitura do referencial teórico base, definido para a
pesquisa, conforme falamos na introdução.
5.4 CRITÉRIOS UTILIZADOS PARA A SELEÇÃO DO CORPUS
Para a seleção do corpus, empreendemos a ação de leituras minuciosas dos
enunciados “memórias de leitura”, sendo utilizados os seguintes critérios:
Temporal: textos produzidos no ano de 2007.
Habilitação profissional dos professores: professores de língua
materna.
“memórias de leitura” narradas desde a infância até a fase atual da
escrita dessas memórias.
No primeiro momento, lemos várias vezes todas as “memórias de leitura”, no
total de 50. Depois, observamos quais delas faziam referência à formação de língua
portuguesa. Das 50 memórias, de acordo com esse critério, selecionamos 36.
Em outro momento, verificamos, dentre as 36 memórias, quais delas faziam
referência às “memórias de leitura” desde a infância até a fase adulta. Então, das 36
memórias, selecionamos 19.
Por fim, das 19 memórias, escolhemos aleatoriamente 3 para compor o
corpus deste trabalho.
78
6 ANÁLISE DOS DADOS: A CONSTRUÇÃO ARQUITETÔNICA DAS “MEMÓRIAS DE LEITURA”
Nesse capítulo, analisamos os enunciados de forma a responder as
questões de pesquisa que propusemos neste trabalho. Ressaltamos que
respondemos as questões a partir das categorias que emergiram dos enunciados.
Esse capítulo está dividido em três seções. Na primeira, analisamos o tema,
o estilo e os aspectos composicionais dos enunciados representativos do gênero
discursivo “memórias de leitura”. Na segunda, investigamos as vozes sociais que
emergiram dos enunciados e que constituíram as vozes dos sujeitos que
construíram as “memórias de leitura”. Por fim, na terceira seção, analisamos os ethe
discursivos de leitor que emergiram dos enunciados.
Ressaltamos que, neste trabalho, a nossa intenção não é esgotar a análise
sobre as questões apresentadas acima acerca do gênero “memórias de leitura”, mas
fazer uma análise de determinadas “memórias de leitura”, produzidas em um
determinado tempo, em um dado lugar, por determinados sujeitos, com o objetivo de
responder (provisoriamente) as questões de pesquisa, visando uma contribuição
para o ensino de leitura a partir do meu olhar exotópico de pesquisadora, tendo em
vista que, com o meu excedente de visão, apresentei um acabamento provisório aos
enunciados.
A seguir, iniciaremos a análise do corpus.
6.1 O TEMA, O ESTILO E A COMPOSIÇÃO DOS ENUNCIADOS
6.1.1 O tema dos enunciados
No enunciado 1, depreendemos como tema “a narrativa das “memórias de
leitura” de um leitor tardio e que se tornou um leitor ativo, acima da média, que
privilegiou a leitura de obras literárias prestigiadas pela cultura oficial”. O
desdobramento desse tema, no enunciado 1, culmina na enumeração de livros e
revistas lidos e na citação de nomes de autores de livros.
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É possível perceber o início da construção do tema do enunciado1 a partir
do título que o autor deu ao texto: “memórias de um leitor tardio”, marcado por meio
dos itens lexicais “memórias” e “leitor tardio”, que indica um início de experiência de
leitura depois do tempo esperado pela esfera escolar, que é entre o ensino
fundamental e o ensino médio.
No texto, o autor afirma:
A década de 90 foi de rupturas para mim, com minha entrada no curso de Letras da UFRN e, consequentemente, a verdadeira descoberta da leitura. Nunca havia lido tanta literatura em minha vida! Creio que mais de 180 livros em quatro anos de curso. Comecei com alguns contos durante a disciplina de Teoria da literatura I. Uma espécie de ensaio para o que viria pela frente. Serviram, pois, de aperitivo.
Nesse trecho, o leitor 1 mostra o período que ele considera que iniciou a sua
experiência de leitura, sua “verdadeira descoberta da leitura”, que foi na década de
1990, com a sua entrada no curso de Letras, da UFRN. Ainda afirma quantos livros
acredita ter lido durante o curso: 180 livros. Na depreensão do tema do enunciado 1,
essas informações foram essenciais.
Outra informação preciosa para entendermos o tema foi a numerosa citação
de autores, no decorrer do texto, que o leitor 1 diz ter lido, por exemplo, na
graduação:
[...] Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Drummond, Fernando Pessoa, Shakespeare, José Lins do Rego, Cecília Meireles, Dante Alighieri, Florbela Espanca, Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo, Rubem Fonseca, Lima Barreto, Manuel Bandeira, Fernando Sabino [...].
Faz mais citações:
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Jorge Amado, Bernardo Guimarães, Camilo Castelo Branco, Raul Pompéia, Lygia Fagundes Telles, Manuel Antônio de Almeida, Gustavo Flaubert, José de Alencar, Homero, José Américo de Almeida, Graça Aranha, Clarice Lispector, Mário de Sá-Carneiro, Franklin Távora, Goethe, Martins Pena, Gil Vicente, Artur Azevedo, Júlio Ribeiro, Franz Kafka, Álvares de Azevedo, Jean Paul-Sartre. Para não dizer que fiquei só de prosa, li verso a verso Cesário Verde, Antero de Quental, Gregório de Matos Guerra, Silva Alvarenga, João Cabral de Melo Neto, Tomás Antônio Gonzaga, Luís de Camões, Basílio da Gama, Cruz e Souza, Bento Teixeira, Castro Alves, Zila Mamede, Mário Quintana... Ufa! E, de quebra, dois livros de sermões selecionados do Pe. Antônio Vieira.
Esses autores citados foram lidos depois do término da graduação. Isso
prova que ele não leu por obrigação, mas sim por livre escolha. Portanto, foi a partir
dessas informações, dentre outras encontradas na íntegra no enunciado 1, do anexo
1, que compreendemos que ele se tornou um leitor ativo.
O tema do enunciado 2 que depreendemos, depois de várias leituras, foi “a
narrativa das “memórias de leitura” de um leitor de leituras diversas, mas que
priorizou a leitura literária”. Podemos observar o desdobramento dessa temática no
enunciado 2, em que, inicialmente, o leitor 2 diz:
A primeira recordação que tenho de leitura é de minha “cartilha” onde aprendi a ler. Chama-se “O sonho de Talita”, nome que durante muito tempo quis que fosse o meu.
O primeiro contato com a leitura que o leitor 2 diz ter tido foi por meio da
“cartilha”, que foi por muito tempo na educação brasileira um instrumento de ensino
de leitura, como aponta Abreu (2003, p. 43), na introdução:
Pensa-se que o bom leitor é um devorador ávido de alta literatura, é alguém que transita com facilidade pela produção intelectual de ponta, que tem os livros como elemento fundamental de sua concepção de mundo. Quem partilha dessa imagem de leitor não se
81
animará muito com casas cheias de cartilhas e livros didáticos, com multidões de leitores de Bíblia na mão.
Depois, o leitor 2 mostra outras leituras que realizou no seu percurso de
leitor:
Aos seis anos de idade, segundo meus pais, comecei a ler e papai passou a comprar gibis para que eu lesse, também comprava uns livrinhos que não tinham o que ler, era para serem pintados, e eu adorava colori-los. Aos dez anos, na minha festa de aniversário, recebi de minha madrinha um livro que continha vários contos de fadas. Nunca esqueci disso, pois ganhei um concurso de redação na quarta série por produzir um texto e sei que essa leitura foi fundamental para a produção do texto solicitado pela professora.
O leitor 2 mostra outras leituras que realizou:
Na minha adolescência lia Júlia e Sabrina todos os dias, e mamãe reclamava muito, pois sempre que me procurava eu estava lendo e não cumpria meus afazeres domésticos.
Nesse trecho, observamos a citação da leitura literária de uma revista de
romance de banca de revistas que o leitor realizou. Mais adiante, o leitor 2 apresenta
outras leituras literárias:
No meu ginásio li um único livro, Don Quixote e fiquei encantada. A professora pediu que fizéssemos uma representação de trechos da obra e foi um sucesso.
O leitor 2 mostra o livro literário como único livro que leu durante o ginásio (o
atual ensino médio): Dom Quixote, que faz parte da lista de livros considerados
82
valorizados pela cultura oficial. O leitor 2 continua a sua lista de leituras
experienciadas:
[...] líamos várias obras, sempre de acordo com a Escola Literária que estávamos estudando. Foi quando li várias obras como: Sinhá Moça, O moço loiro, Senhora, Cinco minutos, A viuvinha, Navio Negreiro, O homem e o mar e outras que já nem me lembro mais. Já no terceiro ano a leitura inicial foi “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Quase não consegui terminar de ler, pois as duas primeiras partes do livro eram bastante difíceis e só gostei quando cheguei à terceira parte. Depois quando já estava na universidade acabei relendo Os Sertões e não achei tão ruim como da primeira vez. Li também O Quinze, Vidas Secas e a Bagaceira, todos no terceiro ano.
As leituras citadas acima foram realizadas pelo leitor 2 no ensino médio, no
segundo e terceiro ano. Observamos que as leituras citadas fazem parte das obras
literárias valorizadas pela cultura oficial, privilegiadas pela escola. Em concordância
com a crítica de Silva Neto (2007, p. 30) sobre a priorização desse tipo de ensino de
leitura, compreendemos que eles são modelos de “texto exemplar da língua e da
cultura letrada, como ainda insistem, em certos segmentos da Academia, algumas
vozes guardiãs ciosas do preciosismo literário”.
Em outro momento da sua vida de estudante, mostra as suas experiências
de leitura:
Quando cheguei na UFRN tive contato com outras leituras, li Iracema, O guarani e Ubirajara para realizar um trabalho e gostei bastante. Recordo-me também de ter lido Os de Macatuba, a pedido do professor Humberto. Foi a primeira obra que li de um autor do Rio Grande do Norte. Lia muitas apostilhas, umas interessantes, outras nem tanto.
Nesse trecho, compreendemos que a experiência de leitura do leitor 2
ocorreu com leituras diversas: literárias, apostilas ─ que provavelmente eram
compostas de textos teóricos. Ainda em relação à diversidade das leituras realizadas
83
pelo leitor 2, observamos a citação de uma leitura que era(é) comum aos
professores de língua portuguesa:
Ao começar a ensinar descobri que tinha que estudar a gramática, pois naquela época ou se sabia a gramática normativa ou não se era bom professor de Língua Portuguesa. Passei a estudá-la com perseverança, pois morria de medo de não saber responder aos alunos ou ficar insegura perante uma classe repleta de crianças prontas para me desafiar.
Por fim, o leitor narra as suas leituras na fase da escrita das “memórias de
leitura”:
Hoje leio bem menos do que gostaria, pois o tempo é muito pouco e quando não estou ministrando aulas as estou preparando ou corrigindo as atividades feitas. Procuro ler jornais e revistas, até para informar-me dos acontecimentos. A última leitura que fiz foi O caçador de pipas, pois tenho conseguido ler os textos recomendados na pós-graduação. Espero que agora possa ter uma folga para ler alguma coisa nova e sem compromisso, acho que essa seja a melhor leitura, mesmo que muitas vezes não seja tão proveitosa para enriquecer meus conhecimentos. Gosto de ler sem ter dia e hora para terminar, na praia, dormir e acordar para continuar a leitura, sem preocupações.
Nesse trecho e em outros citados acima, compreendemos que o leitor 2,
apesar de experienciar leituras diversas, prefere, prioriza a leitura literária, de
deleite.
No enunciado 3, a temática que depreendemos foi “a narrativa das
“memórias de leitura” de um leitor que teve uma experiência negativa de leitura na
escola, mas positiva na esfera familiar e na universidade”. Podemos observar essas
questões no decorrer da narrativa. Inicialmente, ele diz:
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Durante o primeiro e o segundo grau não lembro de ter lido por obrigação nem tampouco de frequentar biblioteca. Existia uma, mas era um lugar onde ninguém entrava. Não foi, portanto, na escola que me apaixonei pelos livros.
O leitor 3 mostra que a sua experiência de leitura, no que hoje são
denominados de ensino fundamental e médio, ocorreu de forma negativa e conclui
esse trecho afirmando que não foi na escola que se apaixonou pelos livros ─ objeto
símbolo universal de leitura, como se não existissem outras formas de experienciar a
leitura.
Em outra parte do enunciado, o leitor 3 afirma:
Nesse exercício gratificante de fazer emergir um tempo que consegui guardar e que agora ressurge, lembro ter vivenciado as minhas primeiras experiências de leitura através do universo dos quadrinhos, que com a sua linguagem gráfica e todos aqueles recursos usados para dinamizar as histórias e definir as emoções das personagens muito me encantava.
O leitor 3 relembrou que as suas primeiras experiências de leitura ocorreram
por meio da leitura de quadrinhos, também conhecidos como gibis. Ele dissociou
esse tipo de leitura das leituras prestigiadas pela esfera escolar, até porque diz que
não teve nenhuma experiência de leitura na escola.
Porém, já em outra fase da sua vida, mostra a influência positiva da esfera
familiar no seu percurso de leitor:
O tempo foi passando, a adolescência chegando e surgiu o desejo de novas leituras. Por influência de minha avó materna, fui despertando para a leitura de romances. Ela lia apaixonadamente e a partir daí manifestou-se o desejo de penetrar também naquele mundo que a embevecia e cujo encanto eu também terminava participando. Diante desse despertar para a leitura de romances lembro muito bem o primeiro que li, foi Pássaros Feridos de Mecellouch
85
Colleen, best-seller da época, que tratava da história do padre que se apaixonara por uma menina. Envolvi-me com a trama, viajava na história. Depois veio Se houver amanhã de Sidney Sheldon, que falava a respeito de uma moça que trabalhava em um banco e foi acusada de roubo, foi presa, cumpriu pena e quando saiu passou a fazer o que nunca tinha feito: roubar. Essa história me fez refletir um pouco a respeito dessa situação. Desde então, comecei a despertar para um mundo de viagens inusitadas, surpreendentes e prazerosas. Mergulhava na leitura que me conduzia a universos fantásticos, viajava conduzida pela imaginação a lugares nunca antes visitados. Um mundo novo magicamente foi aberto e penetrei no fascinante mundo dos livros.
A pessoa da sua família que o incentivou nessa fase foi a sua avó materna,
que lia romances. A partir dessa influência familiar, ele passou a lê romances best-
sellers da época, leitura desprezada pela esfera escolar.
Depois, as pessoas que influenciaram o leitor 3 na sua experiência de leitura
foram seus filhos, como podemos observar no trecho abaixo:
Meus filhos foram crescendo e, através deles, passei a realizar leituras que não fiz na época “devida”. Conheci Bagdá com Aladim, fui à terra do nunca com Peter Pan, refleti a respeito da mentira com Pinóquio e, assim, através deles, fui participando daquele mundo mágico. Percorri caminhos desconhecidos que só a leitura me possibilitaria trilhar. Meus filhos fizeram-me sonhar e desejar saber mais, pois a leitura me permitia vislumbrar outras perspectivas além do meu cotidiano. Sem me perceber eles iam interferindo na minha formação enquanto leitora, pois participando da formação deles li: Sonho de uma noite de verão, Pequeno Príncipe, Odisséia, As mil e uma noites, depois as obras clássicas da literatura brasileira, e a partir daí fui cada vez mais me interessando pela leitura.
Portanto, foi no período escolar dos seus filhos que o leitor 3 experienciou
leituras que, para ele, eram para ter sido vivenciadas na época em que estava na
escola, porém não foi o que aconteceu. É importante observar que, até esse
86
momento, as leituras que o leitor 3 citou são da esfera literária, que tem como
objetivo “sonhar”, “viajar”, uma leitura de deleite.
No decorrer da narrativa, o leitor 3 faz referência a um momento importante
da sua experiência de leitor:
Seduzida pela leitura resolvi estudar e enfrentei o meu primeiro vestibular para o curso de Letras e contrariando todas as expectativas passei. Os livros abriram-me as portas. Novas leituras, até então desconhecidas, surgiram, onde não apenas lia por prazer, mas com responsabilidade, com disciplina. Através da literatura somada à leitura de textos teóricos passei a ter acesso a uma leitura considerada mais complexa, que exigia repertório, releituras para que pudesse atingir um patamar de exigências e, assim, realizar uma leitura mais completa. Passei a ter contato com Eça de Queiroz em O crime do Padre Amaro, onde o mesmo focaliza criticamente a igreja e o celibato clerical; Incidente em Antares, de Érico Veríssimo; Capitães de Areia, com Pedro Bala pelas ladeiras da Bahia, de Jorge Amado; O quinze, de Rachel de Queiroz; Vidas Secas, de Graciliano Ramos [...].
Na universidade, a sua experiência de leitor foi também positiva. O leitor 3
diz que, na graduação, além de literatura, leu textos teóricos. Portanto, concluímos
afirmando que o tema do gênero “memórias de leitura” é “a narrativa das memórias
de leitura”. As temáticas de cada enunciado são as atualizações do tema geral,
citado acima, que foram depreendidas a partir da leitura integral dos enunciados.
Assim, como Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 133) ensinam, “[...] Vamos chamar o
sentido da enunciação completa o seu tema. O tema deve ser único. O tema da
enunciação é na verdade, assim como a própria enunciação, individual e não
reiterável”. Então, foi dessa forma que depreendemos o tema de cada enunciado.
6.1.2 O estilo nos enunciados
87
Os três enunciados fazem parte da esfera educacional e apresentam
especificidades próprias dessa esfera, portanto demonstram características em
comum, no que diz respeito ao estilo funcional, embora cada enunciado particular
apresente características próprias de cada escritor dos enunciados, que diz respeito
ao estilo individual.
No que diz respeito ao estilo funcional do gênero discursivo “memórias de
leitura”, observamos que ele advém do gênero discursivo “memórias”, sobre o qual
Aragão (1992) fez um estudo, apresentado no capítulo quatro. Ela mostra que
historicamente, no início, as memórias eram próprias da esfera literária, da literatura
de ficção, mas no decorrer do tempo variaram entre a esfera literária, a histórica e a
autobiografia. De acordo com a esfera de circulação, esse gênero apresentava
características diferentes e se modificava, como aponta Bakhtin (2010b, p. 268)
sobre as mudanças de um gênero para outro: “A passagem do estilo de um gênero
para outro não só modifica o som do estilo nas condições do gênero que não lhe é
próprio como destrói ou renova tal gênero”.
Portanto, entendemos que o gênero discursivo “memórias de leitura” foi
renovado, pois passou de um estilo literário, da esfera literária, para um estilo
autobiográfico, da esfera educacional, portanto absorveu características tanto da
esfera literária quanto da esfera educacional.
Já o estilo individual é evidenciado nas escolhas lexicais, semânticas,
morfológicas que os leitores fizeram para construírem seus enunciados. No seu
projeto de dizer, os autores levaram em consideração o destinatário, como mostra
Bakhtin (2003, p. 302):
Ao falar, sempre levo em conta o fundo aperceptível da percepção do meu discurso pelo destinatário: até que ponto ele está a par da situação, dispõe de conhecimentos especiais de um dado campo cultural da comunicação; levo em conta as suas concepções e convicções, os seus preconceitos (do meu ponto de vista), as suas simpatias e antipatias – tudo isso irá determinar a ativa compreensão responsiva do meu enunciado por ele. Essa consideração irá determinar também a escolha do gênero do enunciado e a escolha dos procedimentos composicionais e, por último, dos meios linguísticos, isto é, o estilo do enunciado.
88
Para Bakhtin (2003), o destinatário é um elemento fundamental na construção
de todo enunciado, de qualquer esfera da comunicação discursiva. O autor fala e
escreve o seu enunciado de maneira tal que o seu destinatário possa ter uma
compreensão ativa, responsiva do seu enunciado. Além disso, o destinatário
influencia a escolha do gênero do discurso, os procedimentos composicionais e o
estilo do enunciado que o autor usará para colocar em prática e alcançar os seus
objetivos no seu projeto de dizer algo a alguém. No caso das “memórias de leitura”,
que fazem parte do corpus deste trabalho, o destinatário imediato era a professora
que ministrou a disciplina.
Observamos que as escolhas lexicais que o leitor 1 fez mostram o seu
posicionamento de prestígio sobre a leitura literária valorizada pela cultura oficial,
por exemplo, o léxico “pasmem”, para influenciar a atitude de surpresa, espanto do
leitor ao perceber que o leitor 1 leu O Guarani, de José de Alencar, no ensino
fundamental, pois não era de costume, nessa fase, os alunos lerem livros da
literatura valorizada pela cultura oficial. O léxico “rupturas” e a expressão “a verdadeira descoberta da leitura” foram utilizados para marcar o início da leitura
de livros literários, na fase da formação inicial, valorizados pela instituição
educacional universidade. Utiliza o ponto de exclamação para dar o tom de euforia
por ter lido muitos livros literários: “Nunca havia lido tanta literatura em minha vida!”. Além dessas expressões, utiliza outras típicas da linguagem informal, da
oralidade, por exemplo, Zás!, Puts!, Ora bolas! , Ufa!, Santa inocência! Essas
expressões deram um tom de informalidade ao enunciado, ademais foram utilizadas,
também, para dar um tom de insatisfação, de crítica, de alívio.
As expressões “Desculpe-me, caro leitor”; “O leitor incomodado que deite essas memórias fora, ou, então que seja complacente e faça-me vistas grossas para minha falta de jeito”; “Sei que já disse isso, não precisa me
tachar de prolixo, de repetitivo, caro leitor, tenha paciência”; “Já lhe disse, se lhe pareço enfadonho, deite estas páginas fora!” mostram um diálogo com o
leitor, a quem transmite pedidos de desculpas, ironias, sarcasmos nas afirmações.
Esse modo de escrever do leitor 1 é muito parecido com o estilo do autor Machado
de Assis (2000, p. 115), quando escreve, por exemplo, em Dom Casmurro, no
capítulo 45:
89
Abane a cabeça, leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já o não obrigou a isso antes; tudo é possível. Mas, se o não fez antes e só agora, fio que torne a pegar do livro e que o abra na mesma página, sem crer por isso na veracidade do autor.
Compreendemos, então, que, pelo fato de o gênero discursivo, secundário,
“memórias de leitura” ter sua gênese na esfera literária ─ conforme fala Aragão
(1992) sobre memórias, no capítulo quatro ─ e ainda conter características próprias
dessa esfera, propicia ao escritor essa liberdade de escrita, que se aproxima da
escrita literária, nesse caso, do modelo de escrita machadiano.
Para narrar as sua “memórias de leitura”, o leitor 2 imprimiu o seu estilo
individual de escrita, pois esse gênero discursivo não segue uma forma padronizada,
é um gênero mais livre que possibilita a impressão do estilo individual do autor.
Nessa perspectiva, observamos que o leitor 2, para organizar a sequência
do enunciado, utilizou alguns recursos da língua (grifados por nós), tais como os
sequenciadores temporais, para marcar fases da sua vida em que experienciou a
leitura:
1) Aos seis anos de idade, segundo meus pais, comecei a ler e papai passou a comprar gibis para que eu lesse, também comprava uns livrinhos que não tinham o que ler, era para serem pintados, e eu adorava colori-los.
2) Aos dez anos, na minha festa de aniversário, recebi de minha madrinha um livro que continha vários contos de fadas. Nunca esqueci disso, pois ganhei um concurso de redação na quarta série por produzir um texto e sei que essa leitura foi fundamental para a produção do texto solicitado pela professora.
3) Na minha adolescência lia Júlia e Sabrina todos os dias, e mamãe reclamava muito, pois sempre que me procurava eu estava lendo e não cumpria meus afazeres domésticos.
4) No meu ginásio li um único livro, Don Quixote e fiquei encantada. A professora pediu que fizéssemos uma representação de trechos da obra e foi um sucesso.
90
5) O segundo e o terceiro ano do Ensino Médio já morava em Pedro Velho, cidade do interior, cerca de cem quilômetros de Natal. Tive a mesma professora de Língua Portuguesa nas duas séries, chamava-se Ana Maria e ainda era estudante universitária. Ela Fazia uma ciranda, onde líamos várias obras, sempre de acordo com a Escola Literária que estávamos estudando.
6) Quando cheguei na UFRN tive contato com outras leituras, li Iracema, O guarani e Ubirajara para realizar um trabalho e gostei bastante. 7) Ao começar a ensinar descobri que tinha que estudar a gramática, pois naquela época ou se sabia a gramática normativa ou não se era bom professor de Língua Portuguesa.
8) Hoje leio bem menos do que gostaria, pois o tempo é muito pouco e quando não estou ministrando aulas as estou preparando ou corrigindo as atividades feitas.
Os sequenciadores temporais marcados acima situam o tempo, as fases nas
quais o leitor 2 vivenciou os momentos mais marcantes da sua experiência de
leitura.
No decorrer da narrativa, o leitor 2 expressa os seus sentimentos sobre a
prática da leitura ─ por meio de escolhas lexicais e expressões (grifadas por nós) ─,
ora mostra satisfação inicial, ora essa satisfação foi construída:
1) Aos seis anos de idade, segundo meus pais, comecei a ler e papai passou a comprar gibis para que eu lesse, também comprava uns livrinhos que não tinham o que ler, era para serem pintados, e eu adorava colori-los. 2) Aos dez anos, na minha festa de aniversário, recebi de minha madrinha um livro que continha vários contos de fadas. Nunca esqueci disso [...]. 3) No meu ginásio li um único livro, Don Quixote e fiquei encantada [...]. 4) [...] tive uma professora que se chamava Eny [...] quando eu subia no ônibus para ir ao colégio, ela já estava
91
sentada e sempre lendo algum livro. Era uma cena invejável. 5) Já no terceiro ano a leitura inicial foi “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Quase não consegui terminar de ler, pois as duas primeiras partes do livro eram bastante difíceis e só gostei quando cheguei à terceira parte. 6) Quando cheguei na UFRN tive contato com outras leituras, li Iracema, O guarani e Ubirajara para realizar um trabalho e gostei bastante.
Nos exemplos 1, 2, 3, 4 e 6, as escolhas lexicais e as expressões marcadas
demostram uma experiência positiva de leitura, já, no exemplo 5, a expressão
marcada mostra uma experiência de leitura em que o gosto foi amadurecendo com o
andamento da leitura da obra, que é uma atitude recorrente entre alunos que se
deparam com obras mais complexas, geralmente obras da literatura, valorizadas
pela cultura oficial.
Por fim, observamos que o leitor 2 se posiciona sobre a leitura (grifado por
nós):
Espero que agora possa ter uma folga para ler alguma coisa nova e sem compromisso, acho que essa seja a melhor leitura [...].
Podemos perceber o seu posicionamento sobre a leitura pela expressão
marcada no trecho do enunciado 2, ou seja, ele compreende a prática da leitura sem
compromisso, privilegia a leitura de deleite, o que pode ser, ao mesmo tempo, um
sinal positivo e/ou negativo. É positivo porque prova que o professor lê e gosta de
ler, embora lhe falte tempo para se dedicar à leitura por prazer, pois associa esse
tipo de leitura à evasão e, para isso, é necessário um ambiente propício a essa
evasão, à fuga da realidade. É negativo porque compreendemos que a experiência
de leitura do professor influencia a sua prática de ensino e como a sua experiência
positiva de leitura foi sempre associada à leitura por prazer da literatura de ficção,
então, pode ser que ele privilegie na sua prática de ensino de língua portuguesa o
92
ensino de leitura por prazer, em detrimento de outros tipos de leitura com objetivos
diversificados, que são de igual importância para a prática social dos alunos. Nessa
perspectiva, Solé (1998, p. 22), conforme apresentamos na seção 3.7, mostra que
as finalidades e objetivos de leitura são variados:
O leque de objetivos e finalidades que faz com que o leitor se situe perante um texto é amplo e variado: devanear, preencher um momento de lazer e desfrutar; procurar uma informação concreta; seguir uma pauta ou instruções para realizar uma determinada atividade; informar sobre um determinado fato; confirmar ou refutar um conhecimento prévio; aplicar a informação obtida com a leitura de um texto na realização de um trabalho, etc.
Entendemos, então, que a leitura em sala de aula deve ser ampliada. Além
do ensino da leitura literária deve-se trazer gêneros discursivos diversos, que
atendam as necessidades das práticas sociais dos alunos, para além dos muros da
escola, como indicam os PCN de língua portuguesa. Ampliando essa questão para o
ensino da linguagem, concordamos com Moita Lopes e Rojo (apud ROJO, 2008, p.
91, grifo dos autores), quando afirmam:
Ensinar a usar e a entender como a linguagem funciona no mundo atual é tarefa crucial da escola na construção da cidadania, a menos que queiramos deixar grande parte da população no mundo do face a face, excluída das benesses do mundo contemporâneo das comunicações rápidas, da tecnoinformação e da possibilidade de se expor e fazer escolhas entre discursos contrastantes sobre a vida social.
O leitor 3, ao falar da sua experiência de leitor, mostra alguns
posicionamentos sobre a leitura (grifados por nós):
1) Durante o primeiro e o segundo grau não lembro de ter lido por obrigação nem tampouco de frequentar biblioteca. Existia uma, mas era um lugar onde ninguém entrava. Não foi portanto, na escola que me apaixonei pelos livros.
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2) [...] lembro ter vivenciado as minhas primeiras experiências de leitura através do universo dos quadrinhos, que com a sua linguagem gráfica e todos aqueles recursos usados para dinamizar as histórias e definir as emoções das personagens muito me encantava. 3) Por influência de minha avó materna, fui despertando para a leitura de romances. 4) Diante desse despertar para a leitura de romances lembro muito bem o primeiro que li, foi Pássaros Feridos de Mecellouch Colleen, best-seller da época, que tratava da história do padre que se apaixonara por uma menina. Envolvi-me com a trama, viajava na história. 5) As horas passavam depressa, não havia outro remédio senão fechar o livro, mesmo diante de tanta curiosidade com o que ia acontecer. A leitura fazia-me deslocar da rotina cotidiana para o mundo da fantasia. 6) li: Sonho de uma noite de verão, Pequeno Príncipe, Odisséia, As mil e uma noites, depois as obras clássicas da literatura brasileira, e a partir daí fui cada vez mais me interessando pela leitura. 7) Seduzida pela leitura resolvi estudar e enfrentei o meu primeiro vestibular para o curso de Letras [...]. Novas leituras, até então desconhecidas, surgiram, onde não apenas lia por prazer, mas com responsabilidade, com disciplina. 8) E, assim, foi a minha trajetória como leitora, onde concluí que a leitura é uma viagem, onde temos sempre o desejo de ir mais longe, basta apenas abrir um livro e mergulhar na magia da palavra.
No exemplo 1, a expressão que o leitor 3 utilizou deixa marcado que a sua
experiência de leitura na escola não foi positiva. Nos exemplos 2, 4, 5 e 8, denuncia
a sua concepção prioritária de leitura: a leitura por prazer, de viagem, todavia, no
exemplo 7, indica, por meio da expressão marcada, que não lia apenas por prazer,
mas com responsabilidade. Porém, no exemplo 8, o leitor 3 retoma a sua concepção
de leitura que sobressai no enunciado 3, a concepção de que a leitura é uma
viagem, a leitura de prazer. Ainda, no exemplo 7, observamos o tom de leitura como
sedução e foi por causa dessa sedução pela leitura que optou pelo curso de Letras.
94
Por fim, compreendemos que o estilo individual do leitor 1 é mais evidente
do que o estilo dos leitores 2 e 3. O estilo individual do leitor 1 é bastante crítico,
ácido, irônico, ao falar das suas “memórias de leitura”, aproximando-se da escrita
literária de Machado de Assis, conforme mostramos na análise.
6.1.3 A composição dos enunciados
O enunciado 1, no que diz respeito ao aspecto composicional, traz uma
divisão em etapas da infância, adolescência e fase adulta e, por vezes, apresenta
uma divisão pela fase da escolarização, tendo como título: “memórias de um leitor
tardio”. Foi construído com um total de 14 páginas e 33 parágrafos, muitos destes
são longos e apresentam uma sintaxe complexa. No topo das páginas, do lado
direito, o autor colocou o seu sobrenome em caixa alta, seguido pelas iniciais do seu
nome, sendo esse modelo característico de modelos de páginas de livros científicos,
por exemplo. As numerações das páginas estão na base das páginas, do lado
direito. Observamos que as “memórias de leitura” são constituídas por enunciados
verbais. O autor apresenta em alguns momentos imagens de livros e revistas que
afirma ter lido, dispostos no texto na proporção que são citados; outras imagens
apresentadas são capas de discos de vinil da década de 1980, a cópia de uma
página de um livro com dedicatória e um autógrafo do escritor Fernando Sabino. Por
fim, conclui com a sua assinatura digital, cujo enunciado integral está no anexo 1
deste trabalho.
No enunciado 1, o autor, ao escrever sobre as suas leituras, utilizou a
sequência narrativa como predominante, porém verificamos a presença de outras
sequências, por exemplo, a dialogal, explicativa e descritiva.
Passemos agora a verificar as escolhas lexicais que entram na composição
do enunciado. Para tal análise, selecionamos alguns trechos, nos quais grifamos
alguns termos do enunciado 1:
1) Não sei se devo atribuir apenas à escola o fato de ter aprendido a ler. O que guardo na memória, já um tanto embotada, sobre o meu contato inicial com as primeiras
95
letras foi a interferência do meu pai, que me pedia para repetir algumas frases dos diálogos de livrescos de bangue-bangue. Puts! Eram livrinhos de bolso intitulados Estefania, Chumbo Grosso e Colt 45. 2) [...] lembro que a descoberta da música, principalmente as letras de protesto do rock nacional dos anos 80, supriu, na medida do possível, a ausência de leituras regulares. Copiava as letras dos LPs dos colegas mais abastados da escola. Levava para casa aqueles discos emprestados e gravava fitas cassetes. Não havia esse papo de som apurado dos CDs como na atualidade. Ter uma fita BASF ou TDK para ouvir o som das bandas preferidas já era o máximo! Ainda me lembro, como se fosse hoje, do prazer em copiar as letras de bandas como Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Capital Inicial, Plebe Rude, entre outras. Esse contato cultural com tais letras que escancaravam os problemas sociais de nosso país me ajudava a sair do marasmo cotidiano familiar, sem perspectivas plausíveis de ascensão social.
No que diz respeito ao léxico empregado no enunciado 1, observamos a
recorrência, por exemplo, aos termos ler, memória, lembro, para construir a
narrativa sobre as “memórias de leitura”, como podemos ver nos trechos 1e 2 acima.
Quanto às formas verbais, percebemos que os tipos mais comuns de verbos nesse
enunciado estão no pretérito: foi, pedia, eram, supriu, copiava, levava, ajudava,
retirados dos trechos citados acima, que foram utilizados para contar fatos passados
ocorridos no percurso de leitura do leitor. Outra questão importante que
depreendemos do enunciado 1 é que ele foi escrito em primeira pessoa, podemos,
portanto, recuperar essa informação por meio de pronomes e de verbos do
enunciado: meu, sei, guardo, lembro, copiava, levava, ajudava.
O enunciado 2 foi construído por etapas, às vezes, pela fase da idade,
outras vezes, pela fase da escolarização, não havendo título. Ele é composto por
cinco páginas e onze parágrafos. No decorrer da narrativa, aparecem algumas
imagens de livros que o leitor 2 diz ter lido e de um texto que ele fez quando era
criança. No enunciado 2, o autor, ao escrever sobre as suas leituras, utilizou a
sequência narrativa como predominante.
96
A seguir, verificaremos as formas linguísticas que entram na composição do
enunciado 2. Para tal análise, selecionamos alguns trechos do enunciado 2 (grifados
por nós):
1) A primeira recordação que tenho de leitura é de minha “cartilha” onde aprendi a ler. Chama-se “O sonho de Talita”, nome que durante muito tempo quis que fosse o meu. Ficava imaginando o quanto seria importante se tivesse um livro com meu nome. Lembro-me também que papai era um leitor assíduo, comprava jornais todos os dias e os lia, também gostava de ler revistas e uns livrinhos que carregava no bolso com histórias de bangue-bangue. 2) No meu ginásio li um único livro, Don Quixote e fiquei encantada. A professora pediu que fizéssemos uma representação de trechos da obra e foi um sucesso. Cada grupo fez sua peça teatral e eu participei como a dona de uma hospedaria onde Don Quixote e Sancho Pança ficaram hospedados.
No que diz respeito ao léxico empregado no enunciado 2, observamos a
recorrência, por exemplo, aos termos ler, livro, lembro e leitor, para construir a
narrativa sobre as “memórias de leitura”, como podemos ver nos trechos 1e 2 acima.
Quanto às formas verbais, percebemos que os tipos mais comuns de verbos nesse
enunciado estão no pretérito, assim como no enunciado 1: ficava, era, comprava,
gostava, carregava, fiquei, pediu, foi, fez, participei, ficaram, retirados dos
trechos citados acima, que foram utilizados para contar fatos passados que
ocorreram no percurso de leitura do leitor 2. Outra questão importante que
depreendemos do enunciado 2 é que ele foi escrito em primeira pessoa, podemos,
portanto, recuperar essa informação por meio de pronomes e de verbos do
enunciado: minha, eu, tenho, aprendi, li, fiquei.
Já o enunciado 3, assim como os enunciados 1 e 2, apresenta uma
sequência da experiência leitora do leitor 3, conforme etapa das fases da idade e
também etapa da escolarização. Não tem título e é composto por três páginas, nove
parágrafos e, diferentemente dos enunciados 1 e 2, não apresenta imagens. No
97
enunciado 3, o autor, ao escrever sobre as suas leituras, utilizou a sequência
narrativa como predominante, assim como ocorreu nos enunciados 1 e 2.
Por fim, verificaremos as formas linguísticas que entram na composição do
enunciado 3. Para a análise, selecionamos alguns trechos do enunciado 3 (grifados
por nós):
1) Nasci e vivi minha infância e início de adolescência numa cidade interiorana do RN onde não havia escola destinada a crianças antes dos sete anos. No interior, naquele tempo, não era fácil encontrar livros e o material didático da escola era precário, mas, na condição de estudante, sempre cumpria com as tarefas exigidas cotidianamente em sala de aula. Sempre gostei de estudar, mas a escola não me traz lembranças aprazíveis de leitura, pois os professores não a incorporavam ao universo do ensino. Algo que deveria fazer parte deste universo mantinha-se à parte. Tinha que aprender longe do lúdico e de forma descontextualizada, não havendo, assim, contribuição para estimular o gosto pela leitura.
2) Seduzida pela leitura resolvi estudar e enfrentei o meu primeiro vestibular para o curso de Letras e contrariando todas as expectativas passei. Os livros abriram-me as portas. Novas leituras, até então desconhecidas, surgiram, onde não apenas lia por prazer, mas com responsabilidade, com disciplina.
No que diz respeito ao léxico empregado no enunciado 3, observamos a
recorrência, por exemplo, aos termos livros, escola e leitura, para construir a
narrativa sobre as “memórias de leitura”, como podemos ver nos trechos 1e 2 acima.
Quanto às formas verbais, percebemos que os tipos mais comuns de verbos nesse
enunciado estão no pretérito, assim como no enunciado 1 e 2, por exemplo, nasci, vivi, era, cumpria, tinha, enfrentei, passei, surgiram, lia, gostei, retirados dos
trechos citados acima, que foram utilizados para contar fatos passados que
ocorreram no percurso de leitura do leitor 3. Outra questão importante que
depreendemos do enunciado 3 é que ele foi escrito em primeira pessoa, podemos,
98
portanto, recuperar essa informação por meio de verbos do enunciado: nasci, vivi,
cumpria, gostei, tinha, deveria, enfrentei e passei.
Entendemos, então, que todas as escolhas lexicais que os leitores 1, 2, e 3
fizeram para a construção das “memórias de leitura” foram adequadas para a
narração de fatos que ocorreram no passado, ou seja, adequadas ao gênero
“memórias de leitura”. Portanto, como o gênero é memória de leituras, então, o
verbo utilizado fica no passado, pois os olhos dos leitores estão voltados para o
passado.
6.2 AS VOZES SOCIAIS SOBRE LEITURA QUE EMERGIRAM DAS “MEMÓRIAS DE LEITURA”
Para Bakhtin (1997), não pode haver relações dialógicas na linguagem,
enquanto objeto da lingüística. Qualquer confronto puramente linguístico ou
grupamento de quaisquer textos abstrai forçosamente todas as relações dialógicas
entre eles enquanto enunciados integrais; portanto, é necessário que existam
enunciados integrais, concretos, autores, criadores e que expressem os seus
posicionamentos axiológicos frente a algum tema para que possam ocorrer relações
dialógicas.
Dessa forma, compreendemos que é necessário que existam, no mínimo,
duas enunciações de dois diferentes sujeitos, para que, entre elas, ocorram relações
dialógicas (acordo, confirmação, desacordo, negação, negociação). Afirmamos,
então, que, na nossa análise, entendemos os gêneros discursivos “memórias de
leitura” como enunciados integrais, concretos construídos por diferentes sujeitos,
autores, que expressam os seus posicionamentos sobre leitura.
Nos enunciados “memórias de leitura”, identificamos várias vozes sociais de
diferentes esferas da sociedade, tais como: família, escola e universidade, que,
inter-relacionadas, contribuíram para a formação da voz social de leitor dos sujeitos-
pesquisados neste trabalho.
6.2.1 As vozes sociais sobre leitura que emergiram do enunciado 1
99
No enunciado 1, as vozes sociais que emergiram, que se posicionaram
sobre a leitura, são de várias instâncias, esferas da sociedade: familiar, escola e
universidade.
A voz social da esfera familiar aparece por meio do pai, por quem o leitor 1
afirma ter sido influenciado no seu processo inicial de formação de leitor:
O que guardo na memória, já um tanto embotada, sobre o meu contato inicial com as primeiras letras foi a interferência do meu pai, que me pedia para repetir algumas frases dos diálogos de livrescos de bangue-bangue. Puts! Eram livrinhos de bolso intitulados Estefania, Chumbo Grosso e Colt 45.
Nesse trecho do texto, o leitor 1 mostra a influência do seu pai no seu
contato inicial com a leitura, que ocorreu por meio da repetição de algumas frases
dos livros que ele denominou de “bangue-bangue”, “livrinhos de bolso intitulados
Estefania, Chumbo Grosso e Colt 45”. Portanto, a voz social que sobressai nesse
exemplo é a voz da esfera familiar, a voz da leitura de livros desvalorizados pela
cultura oficial.
Ainda na esfera familiar, influenciado pela tia, ouve outra voz, a da leitura de
quadrinhos, desvalorizada pela cultura oficial. Ouve, também, a voz da esfera
escolar, a da leitura valorizada pela cultura oficial:
Os anos da infância iam se passando e, já um pouco grandinho, andei lendo alguns paradidáticos da 7ª ou 8ª séries, como, por exemplo, Menino de Asas, creio que de Homero Homem; A ilha perdida, de Maria José Dupré; e até, pasmem, O Guarani de José de Alencar. Pensando bem, acho que não terminei essas leituras. Eram-me mais interessantes os gibis do Tio Patinhas, do Batman, do Zé Carioca, e coisas do gênero, presenteados pela minha tia, que havia feito o magistério e era professora do “Jardim”.
100
O leitor 1, quando cursava o ensino fundamental, leu alguns paradidáticos:
Menino de Asas, A ilha perdida, O Guarani; nesse caso, ouve-se a voz da esfera
escolar, a voz da leitura valorizada pela escola. No entanto, ele diz ter se
interessado mais pela leitura de gibis: os gibis do Tio Patinhas, do Batman, do Zé
Carioca, que foram presenteados por sua tia ,que era professora. Já nesse momento
a voz que emergiu do enunciado foi a voz da leitura que a escola desvaloriza.
Portanto, ocorre aqui o travamento de vozes sociais, em que a voz da leitura que a
escola desvaloriza sobressai; sendo essa voz reativa à imposição das leituras
escolares, no período que esse leitor cursou o ensino fundamental. Sendo assim,
observamos que na fase da infância e da adolescência a voz da esfera familiar foi
quem mais influenciou o leitor 1; desse modo, foi a voz da leitura desvalorizada pela
escola que esse leitor aderiu e que se tornou parte da sua voz.
Porém, em outro período, já no curso de formação inicial de Letras, o leitor 1
mostra interesse pela leitura literária, em uma disciplina que cursou:
[...] depois de Eça de Queirós conheci, ora em prosa, ora em verso, nomes como os de Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Graciliano Ramos, Guimarães Rocha, Drummond, Fernando Pessoa, Shakespeare, José Lins do Rego, Cecília Meireles, Dante Alighieri, Florbela Espanca, Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo, Rubem Fonseca, Lima Barreto, Manuel Bandeira, Fernando Sabino [...]. Então, não fiquei satisfeito e fui conhecer também o que contavam as histórias de Jorge Amado, Bernardo Guimarães, Camilo Castelo Branco, Raul Pompéia, Lygia Fagundes Telles, Manuel Antônio de Almeida, Gustavo Flaubert, José de Alencar, Homero, José Américo de Almeida, Graça Aranha, Clarice Lispector, Mário de Sá-Carneiro, Franklin Távora, Goethe, Martins Pena, Gil Vicente, Artur de Azevedo, Júlio Ribeiro, Franz Kafka, Álvares de Azevedo, Jean Paul-Sartre. Para não dizer que fiquei só de prosa, li verso a verso Cesário Verde, Antero de Quental, Gregório de Matos Guerra, Silva Alvarenga, João Cabral de Melo Neto, Tomás Antônio Gonzaga, Luís de Camões, Basílio da Gama, Cruz e Souza, Bento Teixeira, Castro Alves, Zilá Mamede, Mário Quintana... Ufa! E, de quebra, dos livros de sermões selecionados do Pe. Antônio Vieira.
101
Nesse fragmento, observamos que os autores citados fazem parte de uma
lista de autores nacionais e internacionais valorizados pela cultura oficial e que
algumas instituições de ensino, por exemplo, a universidade, espera que os alunos
leiam. Portanto, o posicionamento do leitor 1, nessa fase da sua vida, foi de
concordância com a prática da leitura valorizada pela cultura oficial e pela
universidade. Nesse seu posicionamento, ouve-se a voz da instituição na qual ele
estudou: a universidade, que defende, geralmente e prioritariamente, a prática da
leitura de textos literários valorizados pela cultura oficial, considerando-os como “o
texto exemplar da língua e da cultura letrada, como ainda insistem, em certos
segmentos da academia, algumas vozes guardiãs ciosas do preciosismo literário”
(SILVA NETO, 2007, p. 30).
Em um curso de pós-graduação, de psicopedagogia, o leitor 1 se interessou
por leituras técnicas:
Ainda nesse mesmo ano, busquei novos horizontes, e a ciência psicopedagógica me fez ver que eu era capaz de ler livros técnicos com prazer – o que não havia conseguido durante minha graduação em Letras. Buscando conhecer como o mundo psíquico influencia na aprendizagem do ser humano, pude então ler Sigmund Freud. Confesso que sempre tive a curiosidade de saber por que ele explicava tudo. Fiquei satisfeito com o que li dele e sobre ele. Destaco Totem e tabu; O futuro de uma ilusão; e O mal-estar na civilização. Todos ótimos. Donald Winicott, Lacan, Vygotsky, Piaget, Francisco Dolto, Alícia Fernández (maior nome da psicopedagogia na América do Sul) e Beatriz Scoz, encheram minhas estantes e renovaram minhas leituras. Já a psicopedagoga Nádia Bossa e a psicopedagoga e psicanalista Leda Barone, duas autoras eminentes da psicopedagogia brasileira – com as quais tive o prazer de estudar – encheram-me os olhos em suas aulas. Como uma coisa puxa a outra, resolvi não só ler o que era recomendado durante o curso. Parti, então, para as escolhas próprias. Foi assim que conheci o legado de grandes mestres da educação e da pedagogia brasileira: Paulo Freire, Moacir Gadotti, Luís Carlos Libâneo, Cipriano Luckesi, Lima Alencastro Veiga, Selma Garrido Pimenta, Dermeval Saviani, foram alguns nomes que guardo com gratidão pelos livros que li e pelos ensinamentos que obtive.
102
As leituras técnicas que o leitor 1 passou a fazer estão relacionadas à sua
prática de ensino. Mais uma vez, a voz social da instituição educacional
“universidade” está presente na voz desse leitor.
Já em outro curso de pós-graduação, o leitor 1 descreve as leituras que
realizou:
Entre 2005 e 2006, estabeleci “contatos imediatos de 3º grau” com a professora Penha, da UFRN, num curso de capacitação de professores de língua materna. Fiquei entusiasmado com as notícias alvissareiras que ela trazia do front acadêmico: haveria um curso de especialização em língua portuguesa. [...] Quase dois anos depois, chegou, então, o início do curso. Pronto! Desde então minhas leituras mudaram de endereço: Irandé Antunes, Marcos Bagno, Mário Perini, Maria Marta Pereira Schere, Mario Eduardo Martelotta, Rosa Virgínia e Silva, Maria Aparecida Lino Paulikonis, Eni Orlandi, Maria Helena de Moura Neves, Rodolfo Ilari, Stella Maris Bortoni-Ricardo, José Luís Fiorin, Ingedore Kock, Sirio Possenti, João Wanderley Geraldi, Luíz Carlos Travaglia, Maurizio Gnerre, Lucília Garcez, Dominique Maingueneau, Inez Sautchuck, Alcir Pécora, Angela Kleiman, Patrick Charedeau, entre outros. Essa turminha tem sido minha leitura de cabeceira e de todos os momentos de ócio. Contudo, paralelamente a todos eles, ainda consulto as gramáticas de um Bechara, de um Celso Cunha e – por que não? – um Napoleão.
Alguns dos autores citados fazem parte de um grupo social que reflete sobre
a língua/linguagem em suas várias modalidades de registro e que traz o sujeito para
a cena discursiva. Já outros fazem parte de um grupo social que valoriza a
tradicional visão de ensino de língua, por meio da gramática tradicional e seus
referentes autores. Portanto, observamos nesse momento que há um embate de
vozes sociais, chocando dialogicamente duas vozes: renovação x tradição, sendo a
primeira pouco valorizada pela universidade, pelas escolas, pela cultura oficial, e a
segunda valorizada por essas instituições. Para alguns profissionais da educação,
essas vozes são excludentes e, para outros, são complementares. Nesse fragmento,
o leitor 1 se posiciona favorável, concordando com as duas vozes sociais.
103
No final do enunciado do leitor 1, ele se posiciona em relação à leitura, no
momento da escrita das suas “memórias de leitura”:
Bem, então lá se foram, nesses catorze anos de ledor, 411 livros lidos e vividos. Às vezes me pergunto sobre o que fazer quando não houver mais o que realmente ler; se devo me contentar com qualquer coisa insípida e inodora. Para essa pergunta retórica, caro leitor perspicaz, dou-te a resposta: Quando a indesejada das leituras chegar (não sei se dura ou caroável), talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga para ela: - Alô, iniludível! Conheces o verbete chamado releitura? Aí, então, o meu dia será bom, pode até a noite descer – com toda a solidão do mundo e seus sortilégios. Encontrar-me-á na poltrona, a meia luz, relendo Machado, Drummond ou Bandeira, ou simplesmente passeando os olhos pelas minhas estantes, sempre tão arrumadas, com cada livro em seu lugar.
O seu posicionamento em relação à leitura é de concordância com a leitura
valorizada pela maioria das instituições de ensino e pela cultura oficial; portanto, a
sua voz é a da leitura valorizada. Essa voz é claramente perceptível quando ele
conversa com o leitor do seu texto e traz para o enunciado escritores valorizados
pela cultura oficial: “Encontrar-me-á na poltrona, a meia luz, relendo Machado,
Drummond ou Bandeira”.
Portanto, compreendemos que na fase da infância e adolescência a voz, o
posicionamento em relação à leitura do leitor 1 que sobressaiu, foi a voz, o
posicionamento favorável à leitura não valorizada pela escola. Já na fase adulta, na
fase da sua formação inicial, ele concorda com os discursos sobre a leitura
valorizada pela cultura oficial, presente nas vozes da professora de literatura e da
instituição universidade, e a sua voz, o seu posicionamento axiológico sobre leitura
passam a ser determinados por essas vozes. No primeiro curso de pós-graduação,
a voz da instituição “universidade” determinou a voz de leituras técnicas valorizadas
do leitor 1. No segundo curso de pós-graduação, o leitor 1 negociou, concordou com
as duas vozes sociais sobre o ensino de língua materna. Ao final da escrita das
104
memórias, ele ressalta o seu posicionamento sobre a leitura literária e, mais uma
vez, é prioritária a voz da leitura valorizada socialmente.
6.2.2 As vozes sociais sobre leitura que emergiram do enunciado 2
No início do enunciado 2, o autor mostra as pessoas que influenciaram o seu
percurso de leitor:
[...] papai era um leitor assíduo, comprava jornais todos os dias e os lia, também gostava de ler revistas e uns livrinhos que carregava no bolso com histórias de bangue-bangue. Mas não recordo de leituras feitas por ele ou por mamãe: Contavam histórias, algumas eram relatos de suas infâncias e muitas delas eram para que tivesse medo de ir a rua, falar com estranhos, receber objetos de estranhos e coisas desse tipo. Às vezes, perguntava o que tinha naqueles livrinhos e ele dizia que eram histórias para pessoas adultas. Isso sempre despertava curiosidade em mim, e um dia quando já sabia ler, li um livrinho daqueles, mas não gostei, nem cheguei a concluir a leitura, realmente não era coisa para criança. Aos quatro anos de idade comecei a estudar no jardim de infância, era uma escola particular e embora tenha muitas fotos dessa época, não me lembro dessa passagem. Aos seis anos de idade, segundo meus pais, comecei a ler e papai passou a comprar gibis para que eu lesse, também comprava uns livrinhos que não tinham o que ler, era para serem pintados, e eu adorava colori-los.
Nesse trecho do texto, observamos que as pessoas que influenciaram o leitor
2, na construção do seu percurso inicial de leitor, foram o seu pai e a sua mãe. A
lembrança que o leitor 2 guarda do seu contato com a leitura na infância é de relatos
dos seus pais sobre a infância deles, com o intuito de educar. O seu pai lia livros de
bangue-bangue e dizia não ser apropriado para crianças, mas por causa da
curiosidade um dia o leitor 2 decidiu ler e não gostou. O leitor 2 não guarda muitas
lembranças das suas leituras na infância e tem o auxílio dos pais para recordar esse
período, por exemplo, quando completou seis anos de idade, segundo relato dos
105
seus pais, começou a ler e seu pai começou a comprar gibis e livros para colorir,
livros compostos somente pela linguagem visual. Nesse relato, observamos que a
voz social da esfera familiar influenciou a voz social do leitor e que, a partir do relato,
compreendemos que a voz que sobressai é a voz da leitura desvalorizada pela
cultura oficial, a voz da leitura de quadrinhos, de gibis.
Nesse trecho, o leitor 2 conta a sua experiência de leitura aos dez anos de
idade:
Aos dez anos, na minha festa de aniversário, recebi de minha madrinha um livro que continha vários contos de fadas. Nunca esqueci disso, pois ganhei um concurso de redação na quarta série por produzir um texto e sei que essa leitura foi fundamental para a produção do texto solicitado pela professora.
Entre o trecho anterior e esse atual, observamos que houve um silenciamento
do leitor 2 sobre a sua experiência de leitura, que ocorreu entre os seis e os dez
anos de idade, período em que já estava na escola. Já ao completar dez anos de
idade, o leitor 2 narra, com bastante entusiasmo, sobre um livro com vários contos
de fadas que ganhou da sua madrinha. Então, compreendemos que a voz social,
nessa fase, que influenciou o leitor 2, no seu percurso de leitor, foi a sua madrinha,
ou seja, a voz da esfera familiar, a voz da leitura valorizada pela cultura oficial.
No decorrer do texto, o leitor 2 ainda fala sobre a sua experiência de leitura na
infância:
Também tenho a lembrança de que nessa época recebi como prêmio um livro que se chama “O menino do dedo verde”. Até hoje o guardo e minhas filhas também leram depois de saber como o ganhei. Na época, papai soube que havia estreado uma peça teatral que se chamava “Tistu, o menino do dedo verde” e fomos assistir. Foi a primeira vez que fui ao teatro.
106
O leitor 2 lembrou que, aos dez anos de idade, ganhou como prêmio um livro,
que remete aos livros denominados de literatura infantil, valorizados pela escola. A
voz que sobressai nesse trecho é a voz da esfera escolar, a voz da leitura valorizada
pela cultura oficial.
Ao narrar sobre a sua experiência de leitura, na fase da adolescência, o leitor
2 mostrou a sua preferência de leitura nessa época:
Na minha adolescência lia Júlia e Sabrina todos os dias, e mamãe reclamava muito, pois sempre que me procurava eu estava lendo e não cumpria meus afazeres domésticos. Era uma maratona ter que esconder os livros e, tantos ela encontrasse, como os escondia, dizendo que aquilo só servia para eu viver sonhando pelos cantos, apaixonada pelos rapazes que nunca existiriam. Era mais difícil escondê-los do que comprá-los, pois guardava o dinheiro do lanche para adquiri-los. Depois começamos a trocar entre amigas os livros, o que facilitava, pois assim não os guardávamos em casa e sempre tínhamos algo novo para ler, embora todas as histórias fossem iguais, o que na época não achava. A cada história era um novo romance e uma nova aventura.
A leitura predileta do leitor 2, na fase da adolescência, foi a leitura de revistas
vendidas, na época, em bancas de revistas: Júlia e Sabrina, consideradas, na
época, como inapropriadas para adolescentes e por causa disso era uma leitura
proibida por sua mãe. Porém, isso não impediu que o leitor 2 lesse tais livros, ao
contrário, a proibição fez com que ele tivesse mais vontade de lê-los. O leitor 2,
impulsionado pelo forte desejo de experienciar o prazer da leitura desses livros,
deixava de lanchar para juntar dinheiro e comprar tais livros e suas amigas faziam o
mesmo, que depois trocavam umas com as outras. Portanto, a voz da leitura que
apreendemos nesse trecho é a voz da leitura literária desvalorizada pela cultura
oficial.
Ainda se referindo à fase da adolescência, o leitor 2 fala sobre sua
experiência de leitura:
107
No meu ginásio li um único livro, Don Quixote e fiquei encantada. A professora pediu que fizéssemos uma representação de trechos da obra e foi um sucesso. Cada grupo fez sua peça teatral e eu participei como a dona de uma hospedaria onde Don Quixote e Sancho Pança ficaram hospedados.
O leitor 2 fala sobre a sua experiência de leitura no ginásio, que hoje é
denominado ensino fundamental. Ele lembra que leu a obra Dom Quixote e a partir
dessa leitura a professora pediu que fizessem uma peça teatral. Nesse trecho do
texto, a voz social que sobressai é a voz da esfera escolar, a voz da leitura
valorizada pela cultura oficial. Ressaltamos que o leitor 2 parece fazer uma distinção
das leituras que realizou na adolescência entre leitura não escolar e leitura escolar e
ainda relaciona essa leituras ao prazer de ler. Observamos esse fato no trecho
anterior e no citado acima. No trecho anterior, o leitor 2 parece se referir à leitura
não escolar, a leitura por prazer quando cita a experiência da leitura das revistas
Júlia e Sabrina. No trecho acima, o leitor 2 se refere à leitura experienciada por
prazer, na escola, como única leitura realizada no ensino fundamental, associando a
leitura literária valorizada pela cultura oficial como única fonte de leitura na escola.
Porém, entendemos que o texto literário deveria ser mais um, dentre as variadas
modalidades de textos orais e escritos a serem ensinados na escola e não mais,
somente, “o texto exemplar da língua e da cultura letrada, como ainda insistem, em
certos segmentos da Academia, algumas vozes guardiãs ciosas do preciosismo
literário” (SILVA NETO, 2007, p. 30).
Sobre a fase de leitura no ensino médio, o leitor 2 diz:
Quando cursei o primeiro ano do Ensino Médio, ainda morava no Rio de Janeiro e estudava num colégio chamado Mendes de Morais, localizado na Ilha do Governador. Lá tive uma professora que se chamava Eny e nunca esqueci seu rosto. Ela era alta, uma senhora de seus cinquenta anos de idade, muito educada, bonita, o cabelo bem arrumado, bem vestida e que, várias vezes, quando eu subia no ônibus para ir ao colégio, ela já estava sentada e sempre lendo algum livro. Era uma cena invejável, pois nunca consegui ler num ônibus, pois fico tonta. Durante o ano ela nos mandou ler algumas obras, sempre livros de
108
poemas e também tínhamos que recitá-los em sala. Era muito difícil, mas tínhamos que memorizar os poemas e depois apresentá-los para toda a turma. No final do ano ela realizou conosco um sarau que foi muito bom, pois não tínhamos mais como ficar inibidos, já éramos todos conhecidos.
A pessoa que influenciou o leitor 2, nessa fase, foi uma professora, que o
marcou com imagens fortes de momentos de leitura, por exemplo, quando estava no
ônibus e via sempre a professora lendo algum livro. Durante o período do primeiro
ano, no ensino médio, essa professora orientou a leitura de alguns livros de poesia.
O leitor 2 lembra da dificuldade de ter que decorar os poemas que a professora
prescrevia para recitar em sala de aula. Nesse trecho, o autor não associa a leitura
de poemas ao prazer de ler, como vimos nos dois trechos citados anteriormente,
mas como algo obrigatório. Compreendemos, então, que a voz que se sobressai
nessa fase é a voz da leitura literária valorizada pela cultura oficial, a voz da esfera
escolar.
Ainda sobre a experiência de leitura no ensino médio, o leitor 2 diz:
O segundo e o terceiro ano do Ensino Médio já morava em Pedro Velho, cidade do interior, cerca de cem quilômetros de Natal. Tive a mesma professora de Língua Portuguesa nas duas séries, chamava-se Ana Maria e ainda era estudante universitária. Ela fazia uma ciranda, onde líamos várias obras, sempre de acordo com a Escola Literária que estávamos estudando. Foi quando li várias obras, como: Sinhá Moça, O moço loiro, Senhora, Cinco minutos, A viuvinha, Navio Negreiro, O homem e o mar e outras que já nem me lembro mais. Já no terceiro ano a leitura inicial foi Os Sertões, de Euclides da Cunha. Quase não consegui terminar de ler, pois as duas primeiras partes do livro eram bastante difíceis e só gostei quando cheguei à terceira parte. Depois quando já estava na universidade acabei relendo Os Sertões e não achei tão ruim como da primeira vez. Li também O Quinze, Vidas Secas e A Bagaceira, todos no terceiro ano.
109
No segundo e no terceiro ano do ensino médio, o leitor 2 teve contato com
várias obras consideradas como “texto exemplar da língua e da cultura letrada”
(SILVA NETO, 2007, p. 30) por alguns segmentos da sociedade. O leitor 2 diz que,
para a prática de leitura no segundo ano do ensino médio, era feita uma ciranda em
que todos os alunos liam. Essas leituras eram realizadas de acordo com a escola
literária que eles estavam estudando. Sobre esse aspecto, Silva Neto (2007)
apresenta críticas, por exemplo, às práticas pedagógicas nos ensinos fundamental e
médio, que ainda são pautadas na historiografia, nos critérios das escolas literárias e
nos estilos de época. Os alunos liam as obras prescritas pela professora e, no
terceiro ano, ele afirma que leu, entre outras, Os Sertões, de Euclides da Cunha, e
que somente tomou gosto pela leitura desse livro quando já estava na universidade,
período em que o leu novamente. Nesse trecho, depreendemos a voz da esfera
escolar, a voz da leitura valorizada pela escola.
O leitor 2 também apresenta as leituras que realizou na universidade:
Quando cheguei na UFRN tive contato com outras leituras, li Iracema, O guarani e Ubirajara para realizar um trabalho e gostei bastante. Recordo-me também de ter lido Os de Macatuba a pedido do professor Humberto. Foi a primeira obra que li de um autor do Rio Grande do Norte. Lia muitas apostilhas, umas interessantes, outras nem tanto. Não me recordo de ter comprado um único livro, pois eram caros e não era um costume entre os alunos da época, assim como hoje também não o é.
Na universidade, o leitor 2 teve contato com outras obras da literatura, que
formam a tradição erudita nacional, os quais ele diz ter gostado de ler. Iracema, O
guarani e Ubirajara foram os livros que ele leu no início do curso de Letras com o
objetivo de realizar um trabalho, sendo esse um dos objetivos na leitura de um texto,
os quais apresentamos na seção 3.7, de acordo com Solé (1998, p. 22): “[...] aplicar
a informação obtida com a leitura de um texto na realização de um trabalho, etc.”.
Nesse período, realizou também a leitura de apostilas, tendo gostado somente de
algumas, em um posicionamento previsível, uma vez que as apostilas, geralmente,
são compostas por textos teóricos que não têm como objetivo principal proporcionar
prazer na leitura, e sim informar sobre algo; por vezes, configura-se como uma
110
leitura dura, mas necessária. No final do trecho, ele diz que na universidade não
comprou nenhum livro, pois eram muito caros. Segundo Marucci (2009), conforme
discutido na introdução deste trabalho, por muito tempo, o livro vem sendo um objeto
utilizado, por algumas esferas da sociedade, como a única fonte de leitura que
determina se o sujeito é um leitor ou não. É usado, também, para disseminar o
discurso de que o “brasileiro não lê”. Então, como a maioria dos brasileiros não
possui condições financeiras para comprar livros, pois são caros, passam a ser
considerados não leitores. Porém, o exemplo desse leitor prova que esse discurso
está mais para ser considerado uma falácia, tendo em vista que, apesar de não ter
comprado livros, ele se mostra um leitor ativo nesse período.
O leitor 2 lembra da sua experiência de leitura no início da sua prática de
ensino de língua materna:
Ao começar a ensinar, descobri que tinha que estudar a gramática, pois naquela época ou se sabia a gramática normativa ou não se era bom professor de Língua Portuguesa. Passei a estudá-la com perseverança, pois morria de medo de não saber responder aos alunos ou ficar insegura perante uma classe repleta de crianças prontas para me desafiar.
Nessa fase, o leitor 2 sentiu a necessidade de estudar a gramática, pois no
período em que ele começou a ensinar a gramática normativa era o objeto principal
de ensino de língua materna, em detrimento do ensino de textos variados, da
“[...]interpretação crítica e posicionada sobre fatos e opiniões, a capacidade de
defender posições e de protagonizar soluções[...]” (ROJO, 2009a, p. 33).
No curso de pós-graduação, ao escrever tais memórias, o leitor 2 afirma:
Hoje leio bem menos do que gostaria, pois o tempo é muito pouco e quando não estou ministrando as aulas estou preparando ou corrigindo as atividades feitas. Procuro ler jornais e revistas, até para informar-me dos acontecimentos. A última leitura que fiz foi O caçador de pipas, pois tenho conseguido ler os textos recomendados na pós-graduação. Espero que agora possa ter uma folga
111
para ler alguma coisa nova e sem compromisso, acho que essa seja a melhor leitura, mesmo que muitas vezes não seja tão proveitosa para enriquecer meus conhecimentos. Gosto de ler sem ter dia e hora para terminar, na praia, dormir e acordar para continuar a leitura, sem preocupações.
O leitor 2, ao falar sobre as suas últimas experiências de leitura, afirma que
não tem muito tempo para ler, pois lhe sobra pouco tempo para esse “prazer”. Ele lê
com o objetivo de se “informar sobre um determinado fato”, configurando-se um dos
objetivos contemplados por Solé (1998), apresentados na seção 3.7 deste trabalho.
Os materiais que ele mais utiliza para alcançar tal objetivo são revistas e jornais.
Porém, ele deixa claro que a verdadeira leitura é aquela sem compromisso, sem
preocupações, a leitura de devaneio, por exemplo, o livro O caçador de pipas foi a
sua última leitura. Portanto, nesse trecho, sobressai-se a voz do autor do texto, a
voz da leitura da literatura desprezada pela cultura oficial, a voz da cultura não
oficial.
Nessa análise, observamos que a leitura com a finalidade de “[...] devanear,
preencher um momento de lazer e desfrutar [...]”, conforme apresenta Solé (1998)
na introdução, é a concepção de leitura principal que tem regido a prática de leitura
do leitor 2 desde a fase da infância até a fase da escrita das “memórias de leitura”,
em uma pós-graduação. Silva Neto (2007, p. 32) mostra que a prática da leitura,
prioritária em sala de aula, está relacionada ao prazer, “como meio e fim dos
incentivos à leitura”. Segundo nosso entendimento, isso se configura um problema,
pois, como mostramos na introdução com base em Solé (1998), o leque de objetivos
e finalidades que faz com que o leitor se situe perante um texto é amplo e variado,
não se limitando ao prazer de ler. Quanto a essa questão, os professores de língua
materna devem, na sua prática de ensino de leitura, levar em consideração esse
fator, pois vivemos em um mundo no qual a todo tempo os sujeitos precisam tomar
decisões e se posicionar perante alguma questão. Desse modo, ao trabalhar
somente com textos literários, em uma prática que visa apenas o prazer da leitura,
os professores estarão agindo de maneira ingênua, deixando assim de formar
sujeitos autônomos. Portanto, faz-se necessária uma prática de ensino de leitura
que vise o sujeito-cidadão, o aluno em toda a sua amplitude social e histórica, que o
112
faça participante da vida social, não apenas um mero contemplador, como no
modelo de leitura que se volta, prioritariamente, para o deleite.
6.2.3 As vozes sociais sobre leitura que emergiram do enunciado 3
O leitor 3 lembra da sua experiência de leitura na fase da infância e início da
adolescência:
Nasci e vivi minha infância e início de adolescência numa cidade interiorana do RN onde não havia escola destinada a crianças antes dos sete anos. No interior, naquele tempo, não era fácil encontrar livros e o material didático da escola era precário, mas, na condição de estudante, sempre cumpria com as tarefas exigidas cotidianamente em sala de aula. Sempre gostei de estudar, mas a escola não me traz lembranças aprazíveis de leitura, pois os professores não a incorporavam ao universo do ensino. Algo que deveria fazer parte deste universo mantinha-se à parte. Tinha que aprender longe do lúdico e de forma descontextualizada, não havendo, assim, contribuição para estimular o gosto pela leitura. Durante o primeiro e o segundo grau não lembro de ter lido por obrigação nem tampouco de frequentar biblioteca. Existia uma, mas era um lugar onde ninguém entrava. Não foi, portanto, na escola que me apaixonei pelos livros.
No início do enunciado, o leitor 3 deixa marcado que nessa fase o seu contato
inicial com a leitura não acorreu de forma positiva e que, portanto, não foi na escola
que ele se apaixonou pelos livros. Primeiramente, porque no lugar onde morava não
existiam escolas para alunos com menos de sete anos de idade e, em segundo
lugar, não era fácil encontrar livros. Apesar disso, ele diz que sempre gostou de
estudar. Lembra que quando cursou o ensino médio não leu por obrigação, ou seja,
não recebeu orientação dos professores sobre quais textos deveria ler, e ressalta
que não frequentou a biblioteca, a qual até existia, mas ninguém entrava.
Da fase da infância, lembra a sua leitura predileta:
113
[...] lembro ter vivenciado as minhas primeiras experiências de leitura através do universo dos quadrinhos, que, com a sua linguagem gráfica e todos aqueles recursos usados para dinamizar as histórias e definir as emoções das personagens, muito me encantava.
Nesse trecho, observamos que a leitura de quadrinhos, na fase da infância,
marcaram o leitor 3 de forma positiva no seu contato inicial com a leitura.
Lembramos que esse tipo de material de leitura foi comum também nas experiências
de leitura do leitor 1 e do leitor 2, como podemos ver nos trechos iniciais do
enunciado 1 e do enunciado 2. Portanto, compreendemos que nesse trecho emerge
a voz da leitura desvalorizada pela cultura oficial.
No relato sobre a experiência de leitura na adolescência, o leitor 3 mostra o
que ocorreu:
O tempo foi passando, a adolescência chegando e surgiu o desejo de novas leituras. Por influência de minha avó materna, fui despertando para a leitura de romances. Ela lia apaixonadamente e a partir daí manifestou-se o desejo de penetrar também naquele mundo que a embevecia e cujo encanto eu também terminava participando. Diante desse despertar para a leitura de romances, lembro muito bem o primeiro que li, foi Pássaros Feridos, de Mecellouch Colleen, best-seller da época, que tratava da história do padre que se apaixonara por uma menina. Envolvi-me com a trama, viajava na história. Depois veio Se houver amanhã, de Sidney Sheldon, que falava a respeito de uma moça que trabalhava em um banco e foi acusada de roubo, foi presa, cumpriu pena e quando saiu passou a fazer o que nunca tinha feito: roubar. Essa história me fez refletir um pouco a respeito dessa situação. Desde então, comecei a despertar para um mundo de viagens inusitadas, surpreendentes e prazerosas. Mergulhava na leitura que me conduzia a universos fantásticos, viajava conduzida pela imaginação a lugares nunca antes visitados. Um mundo novo magicamente foi aberto e penetrei no fascinante mundo dos livros.
114
Nesse relato, o leitor 3 mostra que a sua experiência de leitura, na fase da
adolescência, ocorreu de forma positiva, porém não foi na escola, mas sob a
influência de um membro de sua família: a avó materna, que lia romances. A
imagem do modo apaixonado com que a sua avó realizava as leituras dos romances
acabou influenciando o leitor 3. Assim, sua leitura predileta, nessa fase, passou a
ser a de romances, denominados de best-sellers à época. Aqui, emergiu a voz da
esfera familiar, a voz da leitura de livros desvalorizados pela cultura oficial.
A seguir, o leitor 3 apresenta como ocorreu a sua experiência de leitura na
fase adulta:
Ao terminar o segundo grau casei, tive dois filhos: Junior e Daniele, lindos bebês que passaram a ser a minha vida e muito contribuíram com a minha formação como leitora. Aos três anos começaram a estudar e passei a ter a manhã “livre”. Esse tempo logo se tornou insuficiente, pois, depois de cumprir com as obrigações, poucas horas sobravam para minhas leituras. Dividia-me entre a leitura e as tarefas de casa. As horas passavam depressa, não havia outro remédio senão fechar o livro, mesmo diante de tanta curiosidade com o que ia acontecer. A leitura fazia-me deslocar da rotina cotidiana para o mundo da fantasia. Meus filhos foram crescendo e, através deles, passei a realizar leituras que não fiz na época “devida”. Conheci Bagdá com Aladim, fui à terra do nunca com Peter Pan, refleti a respeito da mentira com Pinóquio e, assim, através deles, fui participando daquele mundo mágico. Percorri caminhos desconhecidos que só a leitura me possibilitaria trilhar. Meus filhos fizeram-me sonhar e desejar saber mais, pois a leitura me permitia vislumbrar outras perspectivas além do meu cotidiano. Sem perceber eles iam interferindo na minha formação enquanto leitora, pois, participando da formação deles, li: Sonho de uma noite de verão, Pequeno Príncipe, Odisseia, As mil e uma noites, depois as obras clássicas da literatura brasileira, e a partir daí fui cada vez mais me interessando pela leitura.
Nessa fase, casada e com dois filhos, o leitor 3 mostra que os seus filhos
influenciaram na sua experiência de leitura, nas suas escolhas de leituras, apesar do
pouco tempo que lhe sobrava para ler, devido às atividades domésticas que ele
cumpria. Mostra uma perspectiva de leitura de prazer, de obras variadas, que vão da
115
literatura denominada infantil, passando por romances desvalorizados pela cultura
oficial até romances valorizados pela cultura não oficial. Nesse trecho, duas vozes
emergiram: a voz da cultura oficial e a voz da cultura não oficial, convivendo
pacificamente.
A seguir, o leitor 3 mostra como se deu a sua experiência de leitura no curso
de Letras:
Seduzida pela leitura resolvi estudar e enfrentei o meu primeiro vestibular para o curso de Letras e, contrariando todas as expectativas, passei. Os livros abriram-me as portas. Novas leituras, até então desconhecidas, surgiram, onde não apenas lia por prazer, mas com responsabilidade, com disciplina. Através da literatura, somada à leitura de textos teóricos, passei a ter acesso a uma leitura considerada mais complexa, que exigia repertório, releituras para que pudesse atingir um patamar de exigências e, assim, realizar uma leitura mais completa. Passei a ter contato com Eça de Queiroz em O crime do Padre Amaro, onde o mesmo focaliza criticamente a igreja e o celibato clerical; Incidente em Antares, de Érico Veríssimo; Capitães de Areia, com Pedro Bala pelas ladeiras da Bahia, de Jorge Amado; O quinze, de Rachel de Queiroz; Vidas Secas, de Graciliano Ramos, onde aquela família de retirantes na qual homem e animal eram tão semelhantes tocou-me bastante; e tantos outros. Diante dessas novas leituras, uma que me causou impacto, pela sua complexidade, foi Macunaíma, a obra-prima de Mário de Andrade, onde Macunaíma, através do seu caráter, atribui aos brasileiros adjetivos como: preguiçoso, mentiroso, povo sem nenhum caráter; é um texto, segundo Mário de Andrade, carregado de “segunda intenção”. E, assim, através dessa leitura, me via a repensar leituras anteriores, se, também, apresentavam alguma segunda intenção. Tornei-me uma leitora mais crítica.
O leitor 3, no início do texto, mostra que as suas leituras no curso de Letras
não se limitaram somente à leitura “por prazer”, pois ele lia “com responsabilidade”,
“com disciplina”, atribuindo esses dois termos à leitura de literatura somados à leitura
de textos teóricos, mostrando que entende as várias finalidades da leitura. Depois,
apresenta uma lista de obras e autores, pertencentes à literatura valorizada pela
cultura oficial, que leu durante o curso e conclui afirmando que, devido à experiência
116
de tais leituras, tornou-se uma “leitora mais crítica”. Então, nesse trecho se sobressai
a voz da esfera educacional, a voz da leitura valorizada pela cultura oficial.
Por fim, o leitor 3 reflete acerca da sua formação acadêmica e da sua
responsabilidade profissional como professor de leitura:
A formação acadêmica levou-me a refletir sobre o lado político-social brasileiro, procurar fazer análise crítica de algumas situações, posicionar-me como cidadã, alguém consciente da sua cota de participação social, passando a valorizar-se mais. E, assim, foi a minha trajetória como leitora, onde concluí que a leitura é uma viagem, onde temos sempre o desejo de ir mais longe, basta apenas abrir um livro e mergulhar na magia da palavra. Agora, de volta deste rápido encontro com minhas leituras, me vejo a refletir sobre o meu presente, a minha responsabilidade como profissional, mediadora da formação de novos leitores.
Ele mostra que a formação acadêmica contribuiu na sua formação de
cidadão, passando a ser um sujeito posicionado, consciente. Enxerga a leitura como
uma “viagem” e associa esse tipo de leitura a leitura de livros. Portanto, a voz que se
sobressaiu, no decorrer e no final do texto, ressaltada por seu autor, foi a voz da
leitura de livros, advinda das diversas esferas da sociedade. Ao final do texto,
mostra-se um profissional preocupado com a sua responsabilidade de formador de
novos leitores. Compreendemos que esse sentimento de preocupação com a prática
de ensino de leitura deveria ser partilhado por todos os profissionais de Letras, além
de ter consciência de alguns compromissos que eles devem assumir na sua prática
de ensino, como apontam as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Letras:
[...] O profissional de Letras deverá, ainda, estar compromissado com a ética, com a responsabilidade social e educacional, e com as consequências de sua atuação no mundo do trabalho. Finalmente, deverá ampliar o senso crítico necessário para compreender a importância da busca permanente da educação continuada e do desenvolvimento profissional (BRASIL, 2001, p. 30-31).
117
Por fim, observamos que as vozes sociais que emergiram dos três
enunciados foram as da leitura valorizada pela cultura oficial e as da leitura não
valorizada pela cultura oficial.
Essas duas vozes foram presentes nos discursos dos três leitores, embora
em momentos diferentes. Destacamos que o período em que os três leitores
cursaram a formação inicial é referente àquele em que a voz social da leitura
valorizada pela cultura oficial se sobressaiu. Em outros momentos das experiências
de leitura dos leitores, houve variação entre a leitura valorizada pela cultura oficial e
a leitura não valorizada pela cultura oficial.
6.3 OS ETHE DE LEITOR CONSTRUÍDOS NAS “MEMÓRIAS DE LEITURA”
Para a depreensão e compreensão dos ethe discursivos de leitor que
emergiram nas análises, observamos as marcas linguístico-discursivas que os
leitores mobilizaram na escrita a respeito dos seus percursos de leitura. A
compreensão ocorreu a partir do cruzamento de olhares, em que tentamos flagrar o
olhar do sujeito sobre si mesmo em um momento distante e do meu olhar exotópico,
posicionado, responsivo, enquanto pesquisadora. Então, a análise se deu a partir
desse entrecruzamento de olhares. Nesse sentido, de acordo com Charaudeau
(2006, p. 115, grifo do autor),
O ethos relaciona-se ao cruzamento de olhares: olhar do outro sobre aquele que fala, olhar daquele que fala sobre a maneira como ele pensa que o outro o vê. Ora, para construir a imagem do sujeito que fala, esse outro se apoia ao mesmo tempo nos dados preexistentes ao discurso ─ o que sabe a priori do locutor ─ e nos dados trazidos pelo próprio ato de linguagem.
A priori, sabemos que os locutores são professores de língua portuguesa, os
quais, no momento da escrita, estavam participando de um curso de especialização
nessa mesma área. Essas duas informações já são de grande relevância,
principalmente a segunda, pois eles se mostram profissionais preocupados com a
118
sua prática de ensino de língua portuguesa, construindo uma imagem prévia de
professores comprometidos, responsáveis.
Maingueneau (2008b, p. 18), em relação à perspectiva de ethos discursivo,
apresentada na seção 3.6, revela a sua concepção de ethos:
Com essa perspectiva, optamos, então, por uma concepção “encarnada” do ethos [...]. Esse ethos recobre não só a dimensão verbal, mas também o conjunto de determinações físicas e psíquicas ligados ao “fiador” pelas representações coletivas estereotípicas. Assim, atribui-se a ele um “caráter” e uma “corporalidade”, cujos graus de precisão variam segundo os textos. O “caráter” corresponde a um feixe de traços psicológicos. Quanto à “corporalidade”, ela está associada a uma compleição física e a uma maneira de vestir-se. Mais além, o ethos implica uma maneira de se mover no espaço social, uma disciplina tácita do corpo apreendida através de um comportamento. O destinatário a identifica apoiando-se num conjunto difuso de representações sociais avaliadas positiva ou negativamente, em estereótipos que a enunciação contribui para confrontar ou transformar: o velho sábio, o jovem executivo dinâmico, a mocinha romântica...
Nessa perspectiva, compreendemos que o “fiador” ─ neste trabalho, os
professores de língua portuguesa ─ é estereotipado pela sociedade quase sempre
como um sujeito não leitor, dito de outra forma, o ethos pré-discursivo é de sujeito
não leitor, portanto, é avaliado negativamente. Porém, na análise dos enunciados,
iremos verificar se essa avaliação se confirma ou não.
6.3.1 Os ethe de leitor construídos no enunciado 1
No início do texto, ao falar sobre sua iniciação no mundo da leitura, o leitor 1
assume um tom crítico e inicia a sua construção de imagem de leitor:
Certamente que meu pai nunca manifestou inclinações para pedagogo, mas lembro que o que lhe dava prazer em me ver “ler” era ver as caras de “sem noção” dos meus dois primos, um pouco mais velhos que eu, em
119
“desvantagem intelectual”. Os coitados mal juntavam as sílabas quando meu pai oferecia-lhes trechos do mesmo livro. Disfarçavam o sorriso amarelo e saíam envergonhados por estarem aquém das expectativas de “leitores em formação”. Era uma espécie de competição de leitura não declarada. Apesar de não haver as formalidades de medalhas e pódio, larguei na frente. Creio que esse foi o meu pontapé inicial no mundo da leitura aos cinco anos.
Nesse trecho, a partir das expressões que marcamos, compreendemos que o
leitor 1 quis construir uma imagem de leitor iniciante acima da média, já que seus
primos, mais velhos que ele, ainda não sabiam ler.
O leitor 1 ainda apresenta as suas leituras na fase da infância,:
Os anos da infância iam se passando e, já um pouco grandinho, andei lendo alguns paradidáticos da 7ª ou 8ª séries, como, por exemplo, Menino de Asas, creio que de Homero Homem; A ilha perdida, de Maria José Dupré; e até, pasmem, O guarani, de José de Alencar.
A expressão que selecionamos, “e até, pasmem”, reforça a construção da
imagem de leitor acima da média que o leitor 1 construiu ao mostrar que, apesar da
idade, muito novo, leu um clássico da literatura brasileira, fato incomum para um
aluno do ensino fundamental, pois esse tipo de leitura era (é) realizada somente no
ensino médio.
O leitor 1 fala a respeito de sua entrada para o curso de Letras:
A década de 90 foi de rupturas para mim, com minha entrada no curso de Letras da UFRN e, consequentemente, a verdadeira descoberta da leitura. Nunca havia lido tanta literatura em minha vida! Creio que mais de 180 livros em quatro anos de curso. Comecei com alguns contos durante a disciplina de Teoria da Literatura I. Uma espécie de ensaio para o que viria pela frente. Serviram, pois, de aperitivo.
120
Nesse trecho, o leitor 1, a partir das suas escolhas de discurso e dos léxicos
que marcamos, mostra-se um leitor entusiasmado, pois, segundo ele, foi uma
verdadeira descoberta da leitura, associando-a à leitura literária. Adianta, por meio
das escolhas lexicais “ensaio” e “aperitivo”, como se sucederam as suas
experiências de leitura no decorrer dos anos seguintes.
Ainda no curso de Letras, o leitor 1 apresenta a lista de autores que leu (grifos
nossos):
Basta só dizer que depois de Eça de Queirós conheci, ora em prosa, ora em verso, nomes como os de Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Drummond, Fernando Pessoa, Shakespeare, José Lins do Rego, Cecília Meireles, Dante Alighieri, Florbela Espanca, Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo, Rubem Fonseca, Lima Barreto, Manuel Bandeira, Fernando Sabino, com quem tive contato por carta, com direito a receber de presente seu primeiro romance, O encontro marcado, numa edição especial com capa dura, autografado e com dedicatória!
Nessa lista, observamos que só constam nomes de autores valorizados
socialmente. O leitor 1 chama a atenção para um presente que recebeu do autor
Fernando Sabino, com quem teve contato por cartas. Ele colocou no enunciado a
imagem da página do romance que tinha a dedicatória, a qual pode ser vista no
Anexo 1. Portanto, ao citar a lista de autores que fazem parte do cânone da literatura
nacional e internacional, entendemos que o leitor 1 quer construir um ethos de leitor
de leituras valorizadas pela cultura oficial, reforçando-o ao mostrar a imagem da
dedicatória do livro que ele ganhou de um autor que faz parte da lista.
O leitor 1 continua a lista de autores que leu (grifos nossos):
Então, não fiquei satisfeito e fui conhecer também o que contavam as histórias de Jorge Amado, Bernardo Guimarães, Camilo Castelo Branco, Raul Pompeia, Lygia Fagundes Telles, Manuel Antônio de Almeida, Gustavo Flaubert, José de Alencar, Homero, José Américo de Almeida, Graça Aranha, Clarice Lispector, Mário de Sá-
121
Carneiro, Franklin Távora, Goethe, Martins Pena, Gil Vicente, Artur Azevedo, Júlio Ribeiro, Franz Kafka, Álvares de Azevedo, Jean Paul-Sartre. Para não dizer que fiquei só de prosa, li verso a verso Cesário Verde, Antero de Quental, Gregório de Matos Guerra, Silva Alvarenga, João Cabral de Melo Neto, Tomás Antônio Gonzaga, Luís de Camões, Basílio da Gama, Cruz e Souza, Bento Teixeira, Castro Alves, Zila Mamede, Mário Quintana... Ufa! E, de quebra, dois livros de sermões selecionados do Pe. Antônio Vieira.
Essa lista de autores ainda faz parte do repertório de leitura do leitor 1 na
graduação. Ele segue apresentando autores de obras de literatura privilegiada pela
escola. Dessa forma, entendemos que o leitor 1 quer se mostrar um leitor de
literatura socialmente valorizada.
O leitor 1 revela as leituras que realizou depois que terminou a graduação:
Já bem encaminhado literariamente, resolvi, por volta de 2001, ler filosofia. Conheci, então, os escritos de Platão, o pensamento socrático, o super-homem de Nietzsche, mas atravanquei o meu percurso na complexidade do pensamento de Sören Kiekegard. Para desanuviar a nebulosa filosófica que pairou sobre minha cabeça, vi mais aplicabilidade da filosofia em minha vida nas páginas de Mais Platão, menos Prozac, de Lou Marinoff – um livro que ensina, através do método PEACE, a resolver problemas do cotidiano pelo pensamento e atitudes filosóficos. Esse também acabei emprestando para quem precisava pôr ordem no caos diário.
Na expressão marcada no início do fragmento, o leitor 1 constrói uma imagem
de leitor já bastante experiente na leitura literária e que, portanto, resolveu ler
filosofia. Então, apresenta uma lista de nomes de filósofos, marcados no fragmento
acima. O fato de citar autores de área diferente dos anteriores, que eram da
literatura, possivelmente, indica que o leitor 1 deseja ser visto como um leitor
eclético.
Depois, começou a ler, de forma independente, obras da Psicopedagogia
(grifos nossos):
122
Como uma coisa puxa a outra, resolvi não só ler o que era recomendado durante o curso. Parti, então, para as escolhas próprias. Foi assim que conheci o legado de grandes mestres da educação e da pedagogia brasileira: Paulo Freire, Moacir Gadotti, Luís Carlos Libâneo, Cipriano Luckesi, Ilma Alencastro Veiga, Selma Garrido Pimenta, Dermeval Saviani foram alguns nomes que guardo com gratidão pelos livros que li e pelos ensinamentos que obtive.
O leitor 1, nesse seu relato, mostra-se um leitor independente, pois escolhe o
que quer ler, apresentando mais uma lista de autores, marcados no fragmento.
No decorrer da narrativa, o leitor 1 fala sobre as leituras que realizou no curso
de especialização em língua portuguesa (grifos nossos):
Quase dois anos depois, chegou, então, o início do curso. Pronto! Desde então minhas leituras mudaram de endereço: Irandé Antunes, Marcos Bagno, Mário Perini, Maria Marta Pereira Schere, Mario Eduardo Martelotta, Rosa Virgínia e Silva, Maria Aparecida Lino Paulikonis, Eni Orlandi, Maria Helena de Moura Neves, Rodolfo Ilari, Stella Maris Bortoni-Ricardo, José Luís Fiorin, Ingedore Kock, Sírio Possenti, João Wanderley Geraldi, Luíz Carlos Travaglia, Maurizio Gnerre, Lucília Garcez, Dominique Maingueneau, Inez Sautchuck, Alcir Pécora, Angela Kleiman, Patrick Charedeau, entre outros. Essa turminha tem sido minha leitura de cabeceira e de todos os momentos de ócio. Contudo, paralelamente a todos eles, ainda consulto as gramáticas de um Bechara, de um Celso Cunha e – por que não? – um Napoleão. Claro que todas as ressalvas necessárias sobre o que eles concebem ser uma língua.
No fragmento acima, o leitor 1 mostra, através da expressão “minhas leituras
mudaram de endereço”, que ele passou a ler autores de gramática e da área da
linguística, leituras diferentes das que ele já havia realizado, como mostramos nos
fragmentos anteriores. Apresenta mais uma lista de autores que leu, dentre eles,
123
destaca os de gramáticas: Bechara, Celso Cunha e Napoleão, posicionando-se
favorável, em parte, ao seu ensino. Então, ao chamar a atenção para a mudança de
leituras e ao citar os autores que leu na especialização, entendemos que o leitor 1
quer se mostrar eclético.
No final do enunciado, o leitor 1 faz uma reflexão da sua trajetória como leitor:
Bem, então lá se foram, nesses catorze anos de ledor, 411 livros lidos e vividos. Às vezes me pergunto sobre o que fazer quando não houver mais o que realmente ler; se devo me contentar com qualquer coisa insípida e inodora. Para essa pergunta retórica, caro leitor perspicaz, dou-te a resposta: Quando a indesejada das leituras chegar (não sei se dura ou caroável), talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga para ela: – Alô, iniludível! Conheces o verbete chamado releitura? Aí, então, o meu dia será bom, pode até a noite descer – com toda a solidão do mundo e seus sortilégios. Encontrar-me-á na poltrona, à meia luz, relendo Machado, Drummond ou Bandeira, ou simplesmente passeando os olhos pelas minhas estantes, sempre tão arrumadas, com cada livro em seu lugar.
Nessa reflexão, o leitor 1 contabiliza a quantidade de livros que leu em
catorze anos: 411 livros. Se dividirmos essa quantidade pelo tempo que ele afirma
ter lido, verificamos uma média de 29 livros lidos por ano e de 2 livros lidos por mês. Além da citação a respeito da grande quantidade de livros lidos, o leitor 1
conversa com o leitor do seu texto sobre o momento em que não tiver mais o que
ler. Nesse sentido, compreendemos que ele deseja ser visto como um leitor maduro.
Constrói uma imagem de leitor acima da média, visto que, provavelmente, uma
pequena quantidade de pessoas leu ou lerá esse número de livros no tempo em que
ele leu. Observamos que, no final do fragmento, ele cita autores que gostaria de
reler, os quais escreveram livros que formam a tradição erudita nacional (ROJO,
2009). Portanto, quer construir uma imagem de leitor erudito, de leituras valorizadas
pela cultura oficial.
Enfim, compreendemos que o ethos pré-discursivo do professor de língua
portuguesa, de sujeito não leitor, nesse enunciado, não se confirma. O leitor 1,
124
apesar das atividades da docência, consegue manter uma prática de leitura bastante
ativa. Percebemos, também, que o leitor 1 passou a se considerar um “verdadeiro
leitor” somente quando chegou à universidade; se vê como leitor de leituras diversas
ao citar livros e autores de várias áreas do conhecimento e como um leitor acima da
média ao ressaltar a quantidade de livros lidos. Nós entendemos que o leitor 1
deseja construir uma imagem de leitor de leituras diversas, mas, principalmente,
uma imagem de leitor de leituras literárias valorizadas socialmente. Podemos
observar esse fato quando ele cita, em todo o texto, prioritariamente, nomes de
autores de livros literários privilegiados pela cultura oficial, além de construir uma
imagem de leitor acima da média, pela quantidade de livros que afirma ter lido.
6.3.2 Os ethe de leitor construídos no enunciado 2
O leitor 2 inicia o seu enunciado falando sobre o início do seu contato com a
leitura (grifos nossos):
Aos seis anos de idade, segundo meus pais, comecei a ler e papai passou a comprar gibis para que eu lesse, também comprava uns livrinhos que não tinham o que ler, era para serem pintados, e eu adorava colori-los.
Nesse trecho, o leitor 2 mostra que começou a ler com seis anos, idade
considerada normal para o início de leitura, e que os seus primeiros contatos com a
leitura ocorreram por meio de gibis e livros para serem pintados, materiais comuns
nessa fase. Portanto, entendemos que o leitor 2 revela uma prática de leitura fora
das leituras oficiais, à revelia da escola.
O leitor 2 fala a respeito da sua experiência de leitura na fase da adolescência
(grifo nosso):
125
Na minha adolescência lia Júlia e Sabrina todos os dias, e mamãe reclamava muito, pois sempre que me procurava eu estava lendo e não cumpria meus afazeres domésticos.
A leitura predileta do leitor 2, nessa fase, fora do espaço escolar, era a de
romances vendidos em bancas de revistas, os quais fizeram muito sucesso entre as
adolescentes e jovens na década de 1980. Esse tipo de leitura é considerada uma
leitura desvalorizada pela escola, não fazendo parte da lista de livros que essa
instituição espera que os alunos leiam, no entanto, fazia muito sucesso entre as
adolescentes. Ao citar tais leituras, o leitor 2 mostra-se um leitor de literatura à
revelia da escola (MAFRA, 2003). De acordo com Mafra (2003), em um dos seus
estudos, citado na introdução deste trabalho, os alunos participantes da sua
pesquisa que mostraram desinteresse pelos textos escolares tradicionais geralmente
conversavam e tinham nas suas mochilas romances de banca, ou seja, eram
leitores, só não liam de acordo com a expectativa da escola. Marucci (2009, p. 185,
grifos nossos) afirma que, por causa do discurso que a escola sustenta, de que
somente algumas obras devem ser lidas, e “enquanto a escola rejeitar a
participação da cultura de leitura provinda da comunidade escolar, o distanciamento
entre o brasileiro e a leitura permanecerá”.
O leitor 2 mostra outro momento da sua vida e uma experiência distinta de
leitor (grifos nossos):
Já no terceiro ano a leitura inicial foi Os Sertões, de Euclides da Cunha. Quase não consegui terminar de ler, pois as duas primeiras partes do livro eram bastante difíceis e só gostei quando cheguei à terceira parte. Depois quando já estava na universidade acabei relendo Os Sertões e não achei tão ruim como da primeira vez. Li também O Quinze, Vidas Secas e A Bagaceira, todos no terceiro ano.
Foi no terceiro ano, do atual ensino médio, que o leitor 2 afirma ter lido a obra
literária Os Sertões, de Euclides da Cunha, a qual quase não conseguiu ler, pois a
considerou de difícil leitura. Porém, já na universidade, a leu novamente e não teve o
126
mesmo sentimento negativo da primeira vez. Isso provavelmente ocorreu porque, na
universidade, já estava mais amadurecido e leu com outro olhar. Nesse fragmento,
além de citar o livro de Euclides da Cunha, faz referência a outras obras literárias
que fazem parte da lista de obras valorizadas pela escola. Assim, entendemos que o
leitor 2, ao narrar tais leituras, deseja ser visto como um leitor de leitura valorizada
pela escola.
Na continuação da tessitura da sua experiência de leitor, o leitor 2 mostra a
fase da leitura na universidade (grifos nossos):
Quando cheguei na UFRN, tive contato com outras leituras, li Iracema, O guarani e Ubirajara para realizar um trabalho e gostei bastante. Recordo-me também de ter lido Os de Macatuba a pedido do professor Humberto. Foi a primeira obra que li de um autor do Rio Grande do Norte. Lia muitas apostilhas, umas interessantes, outras nem tanto.
O leitor 2 apresenta as leituras que realizou na universidade: leituras literárias
prestigiadas pela sociedade e leitura de apostilas. Compreendemos, portanto, que o
leitor 2, nesse trecho, procurou mostrar-se um leitor eclético. Observamos que, ao
final do trecho, o leitor 2 colocou a imagem do livro Os de Macatuba, possivelmente,
para reforçar, provando que realmente o leu.
O leitor 2 também revela a sua experiência de leitura quando começou a
ensinar (grifo nosso):
Ao começar a ensinar descobri que tinha que estudar a gramática, pois naquela época ou se sabia a gramática normativa ou não se era bom professor de Língua Portuguesa. Passei a estudá-la com perseverança, pois morria de medo de não saber responder aos alunos ou ficar insegura perante uma classe repleta de crianças prontas para me desafiar.
A leitura que também fez parte do repertório do leitor 2 foi a gramática ─
instrumento bastante utilizado, embora, muitas vezes, no ensino de língua materna,
127
de forma equivocada ─ assim como no repertório do leitor 1, reforçando a imagem
que quer construir de leitor eclético.
Por fim, apresenta as leituras que tem realizado na atualidade (no momento
da escrita das memórias) (grifos nossos):
Hoje leio bem menos do que gostaria, pois o tempo é muito pouco e quando não estou ministrando aulas as estou preparando ou corrigindo as atividades feitas. Procuro ler jornais e revistas, até para informar-me dos acontecimentos. A última leitura que fiz foi O caçador de pipas, pois tenho conseguido ler os textos recomendados na pós-graduação. Espero que agora possa ter uma folga para ler alguma coisa nova e sem compromisso, acho que essa seja a melhor leitura, mesmo que muitas vezes não seja tão proveitosa para enriquecer meus conhecimentos. Gosto de ler sem ter dia e hora para terminar, na praia, dormir e acordar para continuar a leitura, sem preocupações.
O leitor 2 mantém uma prática de leitura, apesar do pouco tempo que lhe
resta por causa das suas responsabilidades como docente, embora desejasse mais
tempo para se dedicar à leitura por prazer. Apresenta as leituras que faz: jornais,
revistas e livros. O leitor 2, dessa forma, tenta construir uma imagem de leitor ativo e
eclético, mas que privilegia a leitura literária.
Por fim, compreendemos que o ethos pré-discursivo do professor de língua
portuguesa, de sujeito não leitor, não se confirma nesse enunciado. O leitor 2,
apesar do pouco tempo de que dispõe por causa das atividades da docência,
consegue ler. Notamos, também, que o leitor 2, assim como o leitor 1, se considera
um leitor de leituras diversas. A esse respeito, nós entendemos que o leitor 2 deseja
construir uma imagem de leitor de leituras diversas, mas prefere as leituras literárias:
as leituras valorizadas ou não pela cultura oficial.
6.3.3 Os ethe de leitor construídos no enunciado 3
128
No enunciado 3, o leitor 3 mostra como ocorreu o começo da sua experiência
leitora (grifo nosso):
Nesse exercício gratificante de fazer emergir um tempo que consegui guardar e que agora ressurge, lembro ter vivenciado as minhas primeiras experiências de leitura através do universo dos quadrinhos, que, com a sua linguagem gráfica e todos aqueles recursos usados para dinamizar as histórias e definir as emoções das personagens, muito me encantava.
A sua experiência de leitor inicial se deu por meio de quadrinhos, conhecidos
também por gibis, da mesma forma que ocorreu com o leitor 2. O leitor 3 fala com
muito entusiasmo sobre a sua experiência de leitura nessa fase. Constrói, então,
uma imagem de leitor de leitura desprezada pela escola.
Na fase da adolescência, as leituras do leitor 3 mudaram (grifos nossos):
O tempo foi passando, a adolescência chegando e surgiu o desejo de novas leituras. Por influência de minha avó materna, fui despertando para a leitura de romances. Ela lia apaixonadamente e a partir daí manifestou-se o desejo de penetrar também naquele mundo que a embevecia e cujo encanto eu também terminava participando. Diante desse despertar para a leitura de romances, lembro muito bem o primeiro que li, foi Pássaros Feridos, de Mecellouch Colleen, best-seller da época, que tratava da história do padre que se apaixonara por uma menina. Envolvi-me com a trama, viajava na história. Depois veio Se houver amanhã, de Sidney Sheldon, que falava a respeito de uma moça que trabalhava em um banco e foi acusada de roubo, foi presa, cumpriu pena e quando saiu passou a fazer o que nunca tinha feito: roubar.
A leitura do leitor 3 mudou de revista em quadrinhos para livros considerados
best-seller. É interessante observamos que o mesmo fato ocorreu com o leitor 2.
Então, ao citar tais leituras, o leitor 3 se mostra um leitor de literatura à revelia da
escola (MAFRA, 2003), a qual lhe proporcionava muito prazer.
129
Na fase da universidade, o leitor 3 passou a ter contato com a leitura literária
valorizada pela cultura oficial (grifos nossos):
Através da literatura, somada à leitura de textos teóricos, passei a ter acesso a uma leitura considerada mais complexa, que exigia repertório, releituras para que pudesse atingir um patamar de exigências e, assim, realizar uma leitura mais completa. Passei a ter contato com Eça de Queiroz em O crime do Padre Amaro, onde o mesmo focaliza criticamente a igreja e o celibato clerical; Incidente em Antares, de Érico Veríssimo; Capitães de Areia, com Pedro Bala pelas ladeiras da Bahia, de Jorge Amado; O quinze, de Rachel de Queiroz; Vidas Secas, de Graciliano Ramos, onde aquela família de retirantes na qual homem e animal eram tão semelhantes tocou-me bastante; e tantos outros.
No início do fragmento, o leitor 3 afirma que passou a ter acesso a uma leitura
mais complexa, associando esse fato aos textos literários, somado aos textos
teóricos, demonstrando um amadurecimento na prática da leitura. Lista, ainda, os
autores que leu nesse período, marcados no fragmento, os quais se configuram
como valorizados pela cultura oficial. Portanto, compreendemos que, ao se mostrar
um leitor amadurecido e ao citar os autores que leu, o leitor 3 tenta construir uma
imagem de leitor de leitura valorizada pela cultura oficial.
O leitor 3 faz uma reflexão a respeito de suas novas leituras (grifos nossos):
Diante dessas novas leituras, uma que causou-me impacto, pela sua complexidade, foi Macunaíma, a obra-prima de Mário de Andrade, onde Macunaíma, através do seu caráter, atribui aos brasileiros adjetivos como: preguiçoso, mentiroso, povo sem nenhum caráter, é um texto, segundo Mário de Andrade, carregado de “segunda intenção”. E, assim, através dessa leitura, me via a repensar leituras anteriores, se, também, apresentavam alguma segunda intenção. Tornei-me uma leitora mais crítica.
130
Afirma que, a partir da leitura de Macunaíma, de Mário de Andrade, tornou-se
uma leitora mais crítica. Logo, compreendemos que, ao citar a obra de Mário de
Andrade, considerado um autor da tradição erudita nacional, o leitor 3 desejou
construir uma imagem de leitor de literatura valorizada pela cultura oficial, erudito e
crítico.
No final do enunciado 3, o leitor 3 reflete acerca da sua formação acadêmica
(grifos nossos):
A formação acadêmica levou-me a refletir sobre o lado político-social brasileiro, procurar fazer análise crítica de algumas situações, posicionar-me como cidadã, alguém consciente da sua cota de participação social, passando a valorizar-se mais. E, assim, foi a minha trajetória como leitora, onde concluí que a leitura é uma viagem, onde temos sempre o desejo de ir mais longe, basta apenas abrir um livro e mergulhar na magia da palavra.
Quando o leitor 3 fala da sua formação acadêmica, compreendemos que ele
se refere principalmente às leituras que realizou, as quais fizeram com que se
tornasse um cidadão reflexivo, crítico e até se valorizasse mais. No final do
fragmento, o leitor 3 retoma e reforça o seu posicionamento privilegiado sobre a
leitura literária de livros, com a finalidade de obter prazer. Dessa forma,
compreendemos que o leitor 3, ao tecer tais afirmações, deseja se mostrar um leitor
reflexivo, crítico, bem como ser visto como um leitor de literatura literária, ou seja,
um leitor eclético.
Em relação ao ethos pré-discursivo construído pelo imaginário social do
professor de língua portuguesa, de sujeito não leitor, nesse enunciado não se
confirma, apesar de o leitor 3 não deixar essa informação tão explícita. O leitor 3 se
vê como um leitor crítico, um leitor de leituras diversas, assim como os leitores 1 e 2.
Porém, nós compreendemos que o leitor 3 constrói uma imagem de leitor de leituras
diversas, no entanto prefere a leitura literária, tanto a leitura literária valorizada
quanto a não valorizada socialmente.
Ao realizarmos a análise de cada enunciado, alguns ethe discursivos de leitor
emergiram. No enunciado 1, os ethe discursivos de leitor que emergiram foram os
131
de leitor acima da média, na infância; de leitor entusiasmado e leitor de leituras
valorizadas pela cultura oficial, na graduação; de leitor eclético, independente,
depois que terminou a graduação; de leitor eclético, na especialização; e de leitor de literatura valorizada pela cultura oficial, em uma reflexão no momento da
escrita da memória sobre a sua trajetória de leitor. No enunciado 2, os ethe
discursivos de leitor que surgiram foram os de leitor de leitura desvalorizada pela cultura oficial, na infância; de leitor de literatura à revelia da escola, portanto, desvalorizada pela cultura oficial, na adolescência; de leitor de leituras desvalorizadas pela escola, ou seja, desvalorizada pela cultura oficial, na fase
escolar; de leitor eclético, na universidade; e de leitor eclético, mas que privilegia
a leitura literária, no momento atual (da escrita da memória). Já no enunciado 3, os
ethe discursivos de leitor que emergiram foram os de leitor de leitura desprezada pela escola, ou seja, pela cultura oficial, na infância; de leitor de literatura à
revelia da escola, ou seja, desvalorizada pela cultura oficial, na adolescência; e
de leitor de literatura valorizada pela cultura oficial, na universidade.
Portanto, concluímos afirmando que cada leitor teve uma experiência única de
leitura, todos se mostraram leitores ativos. Embora cada um tenha a sua própria
história de leituras, o processo de formação é parecido; por exemplo, em algum
momento da trajetória de leitor, eles leram textos considerados valorizados pela
cultura oficial ─ é bem nítido na fase da graduação do leitor 1 e do leitor 3 ─ e em
outros momentos leram textos desvalorizados pela cultura oficial ─ no caso do leitor
2 e do leitor 3 na fase da adolescência. Os exemplos desses leitores provam que os
alunos leem, sim, e alguns deles, bastante, mas são leituras diversificadas, não
somente o que a cultura oficial, o que a escola e a universidade esperam que eles
leiam. Destacamos o papel da família na experiência de leitura dos leitores 1, 2 e 3,
pois foi por meio de algum familiar que os três iniciaram as suas experiências de
leitura de forma positiva.
133
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegamos ao final deste trabalho que, certamente, enriqueceu muito a nossa
trajetória como professora de língua portuguesa. A partir da leitura dos textos
teóricos, da leitura e das releituras das “memórias de leitura” e das reflexões sobre
as análises realizadas, muitos conceitos que eu tinha em relação à leitura, ao ensino
de leitura e aos leitores foram mudados e muitos (pré)conceitos foram anulados.
Entendemos que cada aluno tem a sua trajetória de vida, com experiências e leituras
únicas. Compreendemos que não existe um molde para formar leitores, mas, sim,
perspectivas teórico-metodológicas que podem auxiliá-los a se tornarem leitores-
cidadãos, agindo no mundo com autonomia. Então, cabe às instituições de ensino e
aos professores de língua materna realizarem esse projeto.
Neste trabalho, ao escutarmos o que os leitores tinham a nos dizer,
percebemos que, ao construírem suas narrativas, seus enunciados, imprimiram um
estilo individual, único. Assim, no modo de se expressarem, na construção do seu
discurso e nas escolhas lexicais, os leitores mostraram os seus posicionamentos
sobre a leitura. Observamos que os alunos se posicionaram como favoráveis tanto à
prática da leitura desvalorizada pela cultura oficial quanto à prática da leitura
valorizada pela cultura oficial.
Ao escutarmos as vozes sociais dos leitores, os seus posicionamentos sobre
a leitura, observamos que nas suas vozes ressoavam outras vozes sociais provindas
de várias esferas sociais, por exemplo, da esfera familiar, da esfera escolar e da
esfera universitária, a qual, por sinal, foi a que mais influenciou nas escolhas das
leituras. Isso demonstra que o modo como os professores praticam o ensino de
língua/linguagem, leitura e escrita – e aí deixam as marcas das suas concepções e
perspectivas sobre essas temáticas – influenciará no percurso de aprendizagem de
seus alunos. Ademais, existe um aspecto que não pode ser descartado, o qual diz
respeito ao fato de que possíveis alunos, dos ensinos básico e superior, serão
professores – de língua portuguesa, literatura ou linguística. Desse modo, a
influência dos seus professores poderá ser tão forte que possivelmente o aluno irá
perpetuar, reproduzir o seu modo de ensinar.
134
Compreendemos que o professor de língua/linguagem, leitura e escrita é
constituído pela alteridade, por vozes várias e, nessas vozes, ele deve encontrar a
sua voz, o seu lugar, a sua unicidade, a sua singularidade, pois cada professor é
responsável por seus próprios atos. A universidade e os professores dessa
instituição apresentam um leque de teorias sobre a língua/linguagem, leitura aos
alunos, cabendo aos discentes dos cursos de formação inicial e/ou formação
continuada escolherem a(s) teoria(s) que possa(m) proporcionar aos seus alunos um
ensino eficaz e dinâmico, atendendo às suas demandas e às necessidades sociais
do cotidiano; que eles possam se tornar leitores, escritores autônomos, cidadãos no
seu sentido pleno, conscientes dos seus direitos e deveres; que saibam tomar
decisões acertadas, nas várias esferas da sociedade – política, educacional,
trabalho, familiar –, por meio de um olhar crítico, tendo consciência das
consequências das suas escolhas, uma vez que são os únicos responsável por elas.
Na análise dos ethe discursivos de leitor, nos enunciados, emergiram, por
exemplo, ethe de leitor de leitura desvalorizada pela cultura oficial, ethe de leitor de
leitura valorizada pela cultura oficial e ethe de leitor eclético. Embora vivenciadas em
períodos diferentes da vida de cada leitor, essas leituras fizeram parte do repertório
dos três leitores. Entendemos que esses três leitores ora se posicionam como
alunos ─ porque narram sobre a sua trajetória de leitura, na fase de estudante ─ ora
como professores de língua portuguesa ─ porque também narram sobre a sua
trajetória de leitura, como professor ─, portanto, mostram que tanto os alunos de
ensino básico e superior quanto os professores de língua portuguesa são leitores
ativos, o que os diferencia é que alguns leem mais do que outros e preferem um tipo
de leitura em detrimento de outras.
Portanto, o discurso de que o “brasileiro não lê” não vale para esses três
sujeitos, ou para qualquer outro, de acordo com nosso entendimento.
Compreendemos que, atualmente, os alunos leem muito devido à facilidade e ao
largo acesso à internet. São variados os tipos de leitura, desde jogos a livros virtuais,
os quais fazem dos sujeitos, leitores, até os livros impressos.
Entendemos que as instituições de ensino ─ tanto básico quanto superior ─ e
a profissão de professor, de todas as áreas do conhecimento, existem para atender
às necessidades sociais do seu público, qual seja, os alunos. Portanto, as
instituições de ensino e os professores devem estar atentos para trabalharem no
objetivo de oferecer um ensino de qualidade. Na área específica de
135
língua/linguagem, compreendemos e defendemos o ensino de leitura e escrita por
meio do gênero discursivo, o enunciado pleno, pois entendemos que falamos ─ tanto
na modalidade escrita quanto na oral ─ por meio de gêneros diversos.
Por fim, esperamos que este trabalho contribua para a pesquisa e a
discussão despida de preconceitos sobre o ensino de leitura e a formação de
leitores. Poderá servir de base também para estudos futuros que levem em conta as
práticas sociais de leitura.
136
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143
ANEXO I: “MEMÓRIAS DE LEITURA” 1
MEMÓRIAS DE UM LEITOR TARDIO
Não sei se devo atribuir apenas à escola o fato de ter aprendido a ler. O que
guardo na memória, já um tanto embotada, sobre o meu contato inicial com as
primeiras letras foi a interferência do meu pai, que me pedia para repetir algumas
frases dos diálogos de livrescos de bangue-bangue. Puts! Eram livrinhos de bolso
intitulados Estefania, Chumbo Grosso e Colt 45. Pelos títulos, podem-se imaginar as
mensagens de paz, amor e solidariedade difundidas nesse tipo de literatura.
Certamente que meu pai nunca manifestou inclinações para pedagogo, mas lembro
que o que lhe dava prazer em me ver “ler” era ver as caras de “sem noção” dos
meus dois primos, um pouco mais velhos que eu, em “desvantagem intelectual”. Os
coitados mal juntavam as sílabas quando meu pai oferecia-lhes trechos do mesmo
livro. Disfarçavam o sorriso amarelo e saíam envergonhados por estarem aquém das
expectativas de “leitores em formação”. Era uma espécie de competição de leitura
não declarada. Apesar de não haver as formalidades de medalhas e pódio, larguei
na frente. Creio que esse foi o meu pontapé inicial no mundo da leitura, aos cinco
anos. Sei também que não era a leitura mais recomendada para as nossas mentes
pueris, mas era o que tínhamos em casa. Fora isso, não faço ideia do que li nas
séries iniciais, em meados dos anos 70.
Os anos da infância iam se passando e, já um pouco grandinho, andei lendo
alguns paradidáticos da 7ª ou 8ª séries, como, por exemplo, Menino de Asas, creio
que de Homero Homem; A ilha perdida, de Maria José Dupré; e até, pasmem, O
guarani, de José de Alencar. Pensando bem, acho que não terminei essas leituras.
Eram-me mais interessantes os gibis do Tio Patinhas, do Batman, do Zé Carioca, e
coisas do gênero, presenteados pela minha tia, que havia feito o magistério e era
professora do “Jardim”.
144
Lembro que nessa época eu já manifestava uma inclinação para o desenho
de personagens de HQs. Nessa espécie de sublimação, eu tentava, através do
desenho, aproximar esses heróis, e seus mundos repletos de aventuras, do meu
universo particular – tão desprovido de magia e encanto. Não duraram muito esses
anos de desenhista mirim, pois logo vieram as paixões da adolescência, e com elas
passei a prestar atenção em outras formas, principalmente as curvilíneas.
Minha família foi sempre desprovida de gente com ares de intelectual. Todos
procuraram profissões mais práticas, que não exigissem leitura nem tampouco forçar
as ideias. Não consigo ter na memória a lembrança de alguém lendo para mim. Do
contrário, algum parente ou livro teriam me marcado.
Mesmo sem ter tal pretensão, fui o primeiro neto a ter um diploma
universitário. Bem, pelo menos do lado da família mais plebeia. Como já mencionei,
meus antecedentes traçaram outras rotas, outros caminhos, e nenhum deles sequer
flertou com as veredas universitárias. Esse distanciamento do mundo acadêmico
certamente influenciou a minha infância e adolescência pobres de leitura. Não havia
um espelho na família. Hoje sabemos da importância dos filhos verem que seus pais
também são leitores. Não havia também livros propriamente literários em casa, nem
nas casas dos parentes mais próximos. Os livros de bolso de faroeste que meu pai
lia não foram suficientes para me transformar em um leitor. Apesar disso, aprendi a
gostar de assistir, por influência dele, aos filmes do velho oeste. O poder das
imagens já falava mais forte naquela época.
Não havia o hábito de comprar outros livros específicos para minha faixa
etária. Geralmente, o salário era destinado à manutenção das despesas básicas da
casa. Livros mesmo só os manuais didáticos exigidos pela escola privada na qual eu
estudava. Não os culpo pela falha. Hoje vejo meus alunos da rede pública serem
também desapercebidos de um ambiente familiar que priorize a cultura letrada tanto
quanto a minha família nas décadas de 70 e 80. Parece-me que não mudou muita
coisa. Tanto é que, nas minhas recomendações de leitura, nenhum se habilita em
comprar os livros indicados. Vão todos correndo disputar os exemplares na
145
biblioteca da escola. Os anos se passaram, mas a vida continua difícil para quem é
pobre. Infelizmente, comprar livro ainda é supérfluo para quem veio da plebe.
Desculpe-me, caro leitor, pela ausência de eufemismos. Como se trata de um
registro de minhas memórias, concedo-me o direito de não ser politicamente correto
e não polir meu vernáculo. Prefiro dar nome aos bois. O leitor incomodado que deite
essas memórias fora, ou, então que seja complacente e faça-me vistas grossas para
minha falta de jeito. Quando me é possível, aprumo as palavras. Quando o que
escrevo parece carente de sinceridade, rasgo fora a página inverossímil, digo o que
penso em duas ou três canetadas e pronto: lá se foi! Aliás, deleto o trecho ordinário
e volto a teclar fidedignamente.
Bem, como eu ia dizendo, minha tenra idade foi marcada por meia dúzia de
livros. Alguns esperaram ser lidos integralmente até hoje. Sei que já disse isso, não
precisa me tachar de prolixo, de repetitivo, caro leitor, tenha paciência. Se volto a
insistir nesse assunto, é que por certo achei importante para o desenrolar da minha
escritura, ora bolas! Já lhe disse, se lhe pareço enfadonho, deite estas páginas fora!
Bem, como eu dizia, talvez por receio de voltar imageticamente ao túnel do tempo,
nunca revisitei tais livros. Lembro também que nem a leitura obrigatória do vestibular
me fez despertar para o mundo mágico da leitura literária. Livros, aulas, provas,
vestibulares – na minha adolescência, essas coisas soavam apenas como uma
famigerada imposição do mundo adulto. Eu e outros pares queríamos mesmo era
namorar, jogar bola, descobrir outros prazeres. Sonhávamos com a maioridade e
seus benefícios, como, por exemplo, tirar a carteira de habilitação.
Entretanto, foi difícil e demorado chegar aos 18 anos. Excetuando o futebol
nos campinhos de areia, com traves de pedra de paralelepípedo, as outras coisas
eram apenas sonhos longínquos. Tempos difíceis, de vacas magras. Mas éramos
meio bobos mesmo. Nossas mentes não acompanhavam o crescimento de nossos
corpos. Éramos púberes plebeus, ingênuos e quixotescos. No ápice de nossa
onipotência, pensávamos que podíamos ter uma Magda Cotroff ou uma Isadora
Ribeiro aos nossos pés. Santa inocência!
146
Por falar em quixotescos, lembro que a descoberta da música, principalmente
as letras de protesto do rock nacional dos anos 80, supriu, na medida do possível, a
ausência de leituras regulares. Copiava as letras dos LPs dos colegas mais
abastados da escola. Levava para casa aqueles discos emprestados e gravava fitas
cassetes. Não havia esse papo de som apurado dos CDs como na atualidade. Ter
uma fita BASF ou TDK para ouvir o som das bandas preferidas já era o máximo!
Ainda me lembro, como se fosse hoje, do prazer em copiar as letras de bandas
como Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Capital Inicial, Plebe Rude, entre
outras. Esse contato cultural com tais letras que escancaravam os problemas sociais
de nosso país me ajudava a sair do marasmo cotidiano familiar, sem perspectivas
plausíveis de ascensão social.
Bem, a audição das músicas e a análise tosca e juvenil das letras me
inseriam num mundo de ideologias. Além disso, sonhava também em ter minha
própria banda e ser o mais novo pop star tupiniquim. Santa inocência!
Sei que ora plagiava, ora parafraseava essas letras em minhas redações
escolares – mesmo sem saber o que eram tecnicamente um plágio e uma paráfrase.
Bastava-me ter em meu repertório musical alguma letra que falasse sobre o mesmo
tema sugerido pela professora, e... zás! Não pensava duas vezes em ornamentar
minhas redações com o rock de protesto dos meus oráculos das guitarras. E, “de
quebra”, ainda ficava com os elogios rasgados da professora só para mim. Nada de
dividir os créditos do meu texto com os meus heróis das palavras certas. Assim
foram minhas “leituras” dos anos 80.
A década de 90 foi de rupturas para mim, com minha entrada no curso de
Letras da UFRN e, consequentemente, a verdadeira descoberta da leitura. Nunca
havia lido tanta literatura em minha vida! Creio que mais de 180 livros em quatro
anos de curso. Comecei com alguns contos durante a disciplina de Teoria da
literatura I. Uma espécie de ensaio para o que viria pela frente. Serviram, pois, de
147
aperitivo. O estopim se deu na disciplina de Literatura Portuguesa II, ministrada pela
professora Constância Duarte. Travei um duelo com o Padre Amaro para saber que
crime ele havia cometido. Nesse embate, não só descobri a razão do título como o
universo encantador dos livros literários. Meu primeiro afeto por esse livro foi
construído primeiramente pelos desenhos da capa, constavam vários personagens
envolvidos nessa trama. Trata-se da coleção Série Bom Livro, da Editora Ática. Nos
anos 90 ela ganhou um novo visual, um acabamento mais atrativo, bem diferente
das capas pretas e páginas amareladas dos anos 80. Pois bem, lembro do
semblante preocupado de Amaro, em destaque na capa, rodeado de outros
personagens que mais pareciam a causa de seu tormento. Esse ar apreensivo me
instigou a descobrir quais seriam os seus porquês. Tudo bem que ler tal obra fazia
parte de um trabalho acadêmico, mas, mesmo sendo uma leitura obrigatória para
pagar aqueles créditos, deixou em mim marcas indeléveis. Basta só dizer que
depois de Eça de Queirós conheci, ora em prosa, ora em verso, nomes como os de
Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa,
Drummond, Fernando Pessoa, Shakespeare, José Lins do Rego, Cecília Meireles,
Dante Alighieri, Florbela Espanca, Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo, Rubem
Fonseca, Lima Barreto, Manuel Bandeira, Fernando Sabino, com quem tive contato
por carta, com direito a receber de presente seu primeiro romance, O encontro
marcado, numa edição especial com capa dura, autografado e com dedicatória!
148
Fiquei “me achando!” Que outro letrando teria um livro de um grande escritor,
com direito a autógrafo e dedicatória, por aquelas paragens? Provavelmente
ninguém. Na época, pelo menos, não apareceu um vivente sequer para me mostrar
um presente tão especial como um livro daqueles. Li-o e depois o emprestei a
contragosto; contudo, por sorte, tive-o de volta.
Isso me motivou ainda mais a devorar a literatura luso-brasileira,
principalmente. Para mim, professor de literatura tem que conhecer as obras das
149
quais irá comentar. É pura hipocrisia falar de livros aos seus alunos e motivá-los a
ler sem antes ter feito tais leituras na íntegra. Entretanto, sabemos que isso ocorre,
não só na educação básica como também nas universidades.
Então, não fiquei satisfeito e fui conhecer também o que contavam as
histórias de Jorge Amado, Bernardo Guimarães, Camilo Castelo Branco, Raul
Pompéia, Lygia Fagundes Telles, Manuel Antônio de Almeida, Gustavo Flaubert,
José de Alencar, Homero, José Américo de Almeida, Graça Aranha, Clarice
Lispector, Mário de Sá-Carneiro, Franklin Távora, Goethe, Martins Pena, Gil Vicente,
Artur Azevedo, Júlio Ribeiro, Franz Kafka, Álvares de Azevedo, Jean Paul-Sartre.
Para não dizer que fiquei só de prosa, li verso a verso Cesário Verde, Antero de
Quental, Gregório de Matos Guerra, Silva Alvarenga, João Cabral de Melo Neto,
Tomás Antônio Gonzaga, Luís de Camões, Basílio da Gama, Cruz e Souza, Bento
Teixeira, Castro Alves, Zila Mamede, Mário Quintana... Ufa! E, de quebra, dois livros
de sermões selecionados do Pe. Antônio Vieira.
Bem, talvez tenha esquecido um ou outro autor, mas basicamente foi esse o
meu percurso literário no curso de Letras e nos onze anos seguintes.
Já bem encaminhado literariamente, resolvi, por volta de 2001, ler filosofia.
Conheci, então, os escritos de Platão, o pensamento socrático, o super-homem de
Nietzsche, mas atravanquei o meu percurso na complexidade do pensamento de
Sören Kiekegard. Para desanuviar a nebulosa filosófica que pairou sobre minha
cabeça, vi mais aplicabilidade da filosofia em minha vida nas páginas de Mais
Platão, menos Prozac, de Lou Marinoff – um livro que ensina, através do método
PEACE, a resolver problemas do cotidiano pelo pensamento e atitudes filosóficos.
Esse também acabei emprestando para quem precisava pôr ordem no caos diário.
Felizmente devolveram-no.
Ainda nesse mesmo ano, busquei novos horizontes, e a ciência
psicopedagógica me fez ver que eu era capaz de ler livros técnicos com prazer – o
que não havia conseguido durante minha graduação em Letras. Buscando conhecer
150
como o mundo psíquico influencia na aprendizagem do ser humano, pude então ler
Sigmund Freud. Confesso que sempre tive a curiosidade de saber por que ele
explicava tudo. Fiquei satisfeito com o que li dele e sobre ele. Destaco entre as
obras freudianas: Totem e tabu; O futuro de uma ilusão; e O mal-estar na civilização.
Todos ótimos.
Donald Winicott, Lacan, Vygotsky, Piaget, Françoise Dolto, Alicia Fernández
(maior nome da psicopedagogia na América do Sul) e Beatriz Scoz encheram
minhas estantes e renovaram minhas leituras. Já a psicopedagoga Nádia Bossa e a
psicopedagoga e psicanalista Leda Barone, duas autoras eminentes da
psicopedagogia brasileira – com as quais tive o prazer de estudar –, encheram-me
os olhos em suas aulas.
Hoje, nessa fluidez em que o tempo nos atropela, mesmo passados apenas
quatro anos, folheio esses livros com ares um tanto quanto nostálgicos. Parece que
já faz tanto tempo, pelo menos na minha cabeça. Quiçá o fato de não estar atuando
clinicamente ou nas instituições me deixe mais distante daqueles anos de
efervescência psicopedagógica. Eis na próxima página as lembranças das
dedicatórias dessas célebres professoras em seus livros.
151
O período de 2001 a 2004 foi de intenso aprendizado sobre a psique humana,
tanto na teoria – nas leituras sobre psicanálise, psicopedagogia, psicomotricidade e
152
psicologia – como na prática: atendendo um paciente com dificuldades de
aprendizagem, durante meu estágio clínico. Cresci muito e mudei um bocado como
professor, mormente no tocante a compreender mais os alunos e suas dificuldades
cognitivas e afetivas. Quem sabe um dia eu monto o meu consultório...
Como uma coisa puxa a outra, resolvi não só ler o que era recomendado
durante o curso. Parti, então, para as escolhas próprias. Foi assim que conheci o
legado de grandes mestres da educação e da pedagogia brasileira: Paulo Freire,
Moacir Gadotti, Luís Carlos Libâneo, Cipriano Luckesi, Ilma Alencastro Veiga, Selma
Garrido Pimenta, Dermeval Saviani foram alguns nomes que guardo com gratidão
pelos livros que li e pelos ensinamentos que obtive.
Para ficar ainda mais antenado sobre a educação no mundo, fui saber o que
diziam os livros desse tão falado Phillipe Perrenoud. Li quase todos e gostei muito.
Apesar de saber que muita coisa precisa mudar na educação de nosso país para
termos a tão sonhada “pedagogia diferenciada”, proposta por ele em alguns de seus
livros.
Como tenho costume de consultar as bibliografias de livros técnicos, acabei
descobrindo Philllipe Meirieu como uma das fontes de Perrenoud. A mim foi
proporcionado muitos momentos de reflexão em livros como A pedagogia entre o
dizer e o fazer, além de suas interessantes propostas para facilitar a aprendizagem
de nossos alunos em Aprender sim, mas como?
No período de 2000 a 2006, participei de concursos para professor da rede
pública estadual do RN e municipal de Natal e de Parnamirim. O fato de ter
comprado e lido os livros recomendados pelos concursos me rendeu aprovação em
todos. Minha família ficava estupefata vendo-me passar em cinco concursos
consecutivos. E eu ia quebrando os meus recordes pessoais. Como não se podem
acumular tantos empregos públicos, fiz minhas escolhas.
153
Hoje, como um incentivo à leitura dos meus alunos, uso esse exemplo de que
a leitura e o estudo podem render bons frutos, como passar em concursos e
conseguir nosso lugar no mercado de trabalho.
Entre 2005 e 2006, estabeleci “contatos imediatos de 3º grau” com a
professora Penha, da UFRN, num curso de capacitação de professores de língua
materna. Fiquei entusiasmado com as notícias alvissareiras que ela trazia do front
acadêmico: haveria um curso de especialização em língua portuguesa. Sempre torci
para que isso acontecesse, e agora estava bem próximo. Para ficar atualizado, corri
até a livraria Cooperativa e fui ver o que havia de novidades nas prateleiras. De fato,
surgiram autores e títulos que em meados dos anos 90 ainda não eram
considerados como leitura indispensável para estudantes de Letras.
Após namorar alguns livros, saí de lá com a sacola cheia daqueles que me
pareciam interessantes para aumentar o meu repertório de professor de língua. De
prateleiras renovadas, fui lendo o que podia entre os poucos momentos de ócio que
meu trabalho me concedia.
Quase dois anos depois, chegou, então, o início do curso. Pronto! Desde
então minhas leituras mudaram de endereço: Irandé Antunes, Marcos Bagno, Mário
Perini, Maria Marta Pereira Schere, Mario Eduardo Martelotta, Rosa Virgínia e Silva,
Maria Aparecida Lino Paulikonis, Eni Orlandi, Maria Helena de Moura Neves,
Rodolfo Ilari, Stella Maris Bortoni-Ricardo, José Luís Fiorin, Ingedore Kock, Sírio
Possenti, João Wanderley Geraldi, Luíz Carlos Travaglia, Maurizio Gnerre, Lucília
Garcez, Dominique Maingueneau, Inez Sautchuck, Alcir Pécora, Angela Kleiman,
Patrick Charedeau, entre outros. Essa turminha tem sido minha leitura de cabeceira
e de todos os momentos de ócio. Contudo, paralelamente a todos eles, ainda
consulto as gramáticas de um Bechara, de um Celso Cunha e – por que não? – um
Napoleão. Claro que todas as ressalvas necessárias sobre o que eles concebem ser
uma língua. Afinal de contas, o que não se lê constantemente corre o risco de ficar
esquecido, embolorado, e é sempre bom refrescar a memória, pois, querendo ou
não, os alunos sempre param a aula para perguntar coisas do tipo; “entrega-se a
domicílio ou entrega-se em domicílio”. Gramáticas e comandos paragramaticais
sempre nos auxiliam, em nosso preparo em casa, para dirimir as possíveis dúvidas
daqueles alunos que querem se expressar na norma culta. Cabe ao professor,
obviamente, esclarecer que nem sempre esse rigor linguístico é necessário, visto
que a situação comunicativa é quem vai direcionar o nível de linguagem a ser
154
utilizado. Essa conversinha sobre a língua padrão e as normas não padrão é muito
boa... mas, se deixar, eu vou longe. Como não é o caso, passemos adiante.
Bem, então lá se foram, nesses catorze anos de ledor, 411 livros lidos e
vividos. Às vezes me pergunto sobre o que fazer quando não houver mais o que
realmente ler; se devo me contentar com qualquer coisa insípida e inodora. Para
essa pergunta retórica, caro leitor perspicaz, dou-te a resposta:
Quando a indesejada das leituras chegar (Não sei se dura ou caroável), talvez
eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga para ela:
– Alô, iniludível! Conheces o verbete chamado releitura?
Aí, então, o meu dia será bom, pode até a noite descer – com toda a solidão
do mundo e seus sortilégios. Encontrar-me-á na poltrona, à meia luz, relendo
Machado, Drummond ou Bandeira, ou simplesmente passeando os olhos pelas
minhas estantes, sempre tão arrumadas, com cada livro em seu lugar.
ANEXO 2 - “MEMÓRIAS DE LEITURA” 2
REGISTRO 1 (Leitura de Memória)
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A primeira recordação que tenho de leitura é de minha “cartilha”, onde
aprendi a ler. Chama-se “O sonho de Talita”, nome que durante muito tempo quis
que fosse o meu. Ficava imaginando o quanto seria importante se tivesse um livro
com meu nome. Lembro-me também que papai era um leitor assíduo, comprava
jornais todos os dias e os lia, também gostava de ler revistas e uns livrinhos que
carregava no bolso com histórias de bangbang. Mas não recordo de leituras feitas
por ele ou por mamãe: contavam histórias, algumas eram relatos de suas infâncias e
muitas delas eram para que tivesse medo de ir à rua, falar com estranhos, receber
objetos de estranhos e coisas desse tipo. Às vezes, perguntava o que tinha
naqueles livrinhos e ele dizia que eram histórias para pessoas adultas. Isso sempre
despertava curiosidade em mim, e um dia, quando já sabia ler, li um livrinho
daqueles, mas não gostei, nem cheguei a concluir a leitura, realmente não era coisa
para criança. Aos quatro anos de idade comecei a estudar no jardim de infância, era
uma escola particular e, embora tenha muitas fotos dessa época, não me lembro
dessa passagem. Aos seis anos de idade, segundo meus pais, comecei a ler e papai
passou a comprar gibis para que eu lesse, também comprava uns livrinhos que não
tinham o que ler, era para serem pintados, e eu adorava colori-los.
Aos dez anos, na minha festa de aniversário, recebi de minha madrinha um
livro que continha vários contos de fadas. Nunca esqueci disso, pois ganhei um
concurso de redação na quarta série por produzir um texto e sei que essa leitura foi
fundamental para a produção do texto solicitado pela professora.
156
Aqui está a produção feita na época, até hoje guardo com muito carinho...
Também tenho a lembrança de que nessa época recebi como prêmio um
livro que se chama O menino do dedo verde. Até hoje o guardo e minhas filhas
também leram depois de saber como o ganhei. Na época, papai soube que havia
estreado uma peça teatral que se chamava “Tistu, o menino do dedo verde” e fomos
assistir. Foi a primeira vez que fui ao teatro.
157
Na minha adolescência lia Júlia e Sabrina todos os dias, e mamãe
reclamava muito, pois sempre que me procurava eu estava lendo e não cumpria
meus afazeres domésticos. Era uma maratona ter que esconder os livros e, tantos
ela encontrasse, como os escondia, dizendo que aquilo só servia para eu viver
sonhando pelos cantos, apaixonada pelos rapazes que nunca existiriam. Era mais
difícil escondê-los do que comprá-los, pois guardava o dinheiro do lanche para
adquiri-los. Depois começamos a trocar entre amigas os livros, o que facilitava, pois
assim não os guardávamos em casa e sempre tínhamos algo novo para ler, embora
todas as histórias fossem iguais, o que na época não achava. A cada história era um
novo romance e uma nova aventura.
No meu ginásio, li um único livro, Dom Quixote, e fiquei encantada. A
professora pediu que fizéssemos uma representação de trechos da obra e foi um
sucesso. Cada grupo fez sua peça teatral e eu participei como a dona de uma
hospedaria onde Don Quixote e Sancho Pança ficaram hospedados.
Quando cursei o primeiro ano do Ensino Médio, ainda morava no Rio de
Janeiro e estudava num colégio chamado Mendes de Morais, localizado na Ilha do
158
Governador. Lá, tive uma professora que se chamava Eny e nunca esqueci seu
rosto. Ela era alta, uma senhora de seus cinquenta anos de idade, muito educada,
bonita, o cabelo bem arrumado, bem vestida e que, várias vezes, quando eu subia
no ônibus para ir ao colégio, ela já estava sentada e sempre lendo algum livro. Era
uma cena invejável, pois nunca consegui ler num ônibus, pois fico tonta. Durante o
ano ela nos mandou ler algumas obras, sempre livros de poemas e também
tínhamos que recitá-los em sala. Era muito difícil, mas tínhamos que memorizar os
poemas e depois apresentá-los para toda a turma. No final do ano ela realizou
conosco um sarau que foi muito bom, pois não tínhamos mais como ficar inibidos, já
éramos todos conhecidos.
No segundo e terceiro anos do Ensino Médio já morava em Pedro Velho,
cidade do interior, cerca de cem quilômetros de Natal. Tive a mesma professora de
língua portuguesa nas duas séries, chamava-se Ana Maria e ainda era estudante
universitária. Ela fazia uma ciranda, onde líamos várias obras, sempre de acordo
com a Escola Literária que estávamos estudando. Foi quando li várias obras como:
Sinhá Moça, O moço loiro, Senhora, Cinco minutos, A viuvinha, Navio Negreiro, O
homem e o mar e outras que já nem me lembro mais. Já no terceiro ano a leitura
inicial foi Os Sertões, de Euclides da Cunha. Quase não consegui terminar de ler,
pois as duas primeiras partes do livro eram bastante difíceis e só gostei quando
cheguei à terceira parte. Depois quando já estava na universidade acabei relendo
Os Sertões e não achei tão ruim como da primeira vez. Li também O Quinze, Vidas
Secas e A Bagaceira, todos no terceiro ano.
Quando cheguei na UFRN tive contato com outras leituras, li Iracema, O
guarani e Ubirajara para realizar um trabalho e gostei bastante. Recordo-me também
de ter lido Os de Macatuba a pedido do professor Humberto. Foi a primeira obra que
li de um autor do Rio Grande do Norte. Lia muitas apostilhas, umas interessantes,
outras nem tanto. Não me recordo de ter comprado um único livro, pois eram caros e
não era um costume entre os alunos da época, assim como hoje também não o é.
159
Ao começar a ensinar descobri que tinha que estudar a gramática, pois
naquela época ou se sabia a gramática normativa ou não se era bom professor de
língua portuguesa. Passei a estudá-la com perseverança, pois morria de medo de
não saber responder aos alunos ou ficar insegura perante uma classe repleta de
crianças prontas para me desafiar.
Hoje leio bem menos do que gostaria, pois o tempo é muito pouco e quando
não estou ministrando as aulas estou preparando ou corrigindo as atividades feitas.
Procuro ler jornais e revistas, até para informar-me dos acontecimentos. A última
leitura que fiz foi O caçador de pipas, pois tenho conseguido ler os textos
recomendados na pós-graduação. Espero que agora possa ter uma folga para ler
alguma coisa nova e sem compromisso, acho que essa seja a melhor leitura, mesmo
que muitas vezes não seja tão proveitosa para enriquecer meus conhecimentos.
Gosto de ler sem ter dia e hora para terminar, na praia, dormir e acordar para
continuar a leitura, sem preocupações.
160
ANEXO 3 - “MEMÓRIAS DE LEITURA” 3
“Memórias de leitura”
Na busca de lembranças de minha formação como leitora, encontro-me a
vasculhar vestígios de minha memória. Fui me percebendo voltando no tempo e
deixando a imaginação fluir, lembranças julgadas perdidas vão aflorando, tecendo-
as vou realizando um viagem cheia de emoções, de desafios e obstáculos onde
desfilam pessoas que amo. E, assim, vou construindo minhas memórias de leituras.
Nasci e vivi minha infância e início de adolescência numa cidade interiorana
do RN onde não havia escola destinada a crianças antes dos sete anos. No interior,
naquele tempo, não era fácil encontrar livros e o material didático da escola era
precário, mas, na condição de estudante, sempre cumpria com as tarefas exigidas
cotidianamente em sala de aula. Sempre gostei de estudar, mas a escola não me
traz lembranças aprazíveis de leitura, pois os professores não a incorporavam ao
universo do ensino. Algo que deveria fazer parte deste universo mantinha-se à parte.
Tinha que aprender longe do lúdico e de forma descontextualizada, não havendo,
assim, contribuição para estimular o gosto pela leitura. Durante o primeiro e o
segundo graus não lembro de ter lido por obrigação nem tampouco de frequentar
biblioteca. Existia uma, mas era um lugar onde ninguém entrava. Não foi, portanto,
na escola que me apaixonei pelos livros.
Nesse exercício gratificante de fazer emergir um tempo que consegui guardar
e que agora ressurge, lembro ter vivenciado as minhas primeiras experiências de
leitura através do universo dos quadrinhos, que, com a sua linguagem gráfica e
todos aqueles recursos usados para dinamizar as histórias e definir as emoções das
personagens, muito me encantava.
O tempo foi passando, a adolescência chegando e surgiu o desejo de novas
leituras. Por influência de minha avó materna, fui despertando para a leitura de
romances. Ela lia apaixonadamente e a partir daí manifestou-se o desejo de
penetrar também naquele mundo que a embevecia e cujo encanto eu também
terminava participando. Diante desse despertar para a leitura de romances, lembro
muito bem o primeiro que li, foi Pássaros Feridos, de Mecellouch Colleen, best-seller
da época, que tratava da história do padre que se apaixonara por uma menina.
Envolvi-me com a trama, viajava na história. Depois veio Se houver amanhã, de
161
Sidney Sheldon, que falava a respeito de uma moça que trabalhava em um banco e
foi acusada de roubo, foi presa, cumpriu pena e quando saiu passou a fazer o que
nunca tinha feito: roubar. Essa história me fez refletir um pouco a respeito dessa
situação. Desde então, comecei a despertar para um mundo de viagens inusitadas,
surpreendentes e prazerosas. Mergulhava na leitura que me conduzia a universos
fantásticos, viajava conduzida pela imaginação a lugares nunca antes visitados. Um
mundo novo magicamente foi aberto e penetrei no fascinante mundo dos livros.
Ao terminar o segundo grau casei, tive dois filhos: Junior e Daniele, lindos
bebês que passaram a ser a minha vida; e muito contribuíram com a minha
formação como leitora. Aos três anos começaram a estudar e passei a ter a manhã
“livre”. Esse tempo logo tornou-se insuficiente, pois, depois de cumprir com as
obrigações, poucas horas sobravam para minhas leituras. Dividia-me entre a leitura
e as tarefas de casa. As horas passavam depressa, não havia outro remédio senão
fechar o livro, mesmo diante de tanta curiosidade com o que ia acontecer. A leitura
fazia-me deslocar da rotina cotidiana para o mundo da fantasia. Meus filhos foram
crescendo e, através deles, passei a realizar leituras que não fiz na época “devida”.
Conheci Bagdá com Aladim, fui à terra do nunca com Peter Pan, refleti a respeito da
mentira com Pinóquio e, assim, através deles, fui participando daquele mundo
mágico. Percorri caminhos desconhecidos que só a leitura me possibilitaria trilhar.
Meus filhos fizeram-me sonhar e desejar saber mais, pois a leitura me permitia
vislumbrar outras perspectivas além do meu cotidiano. Sem me perceber eles iam
interferindo na minha formação enquanto leitora, pois, participando da formação
deles, li: Sonho de uma noite de verão, Pequeno Príncipe, Odisseia, As mil e uma
noites, depois as obras clássicas da literatura brasileira, e, a partir daí, fui cada vez
mais me interessando pela leitura.
Seduzida pela leitura resolvi estudar e enfrentei o meu primeiro vestibular
para o curso de Letras e, contrariando todas as expectativas, passei. Os livros
abriram-me as portas. Novas leituras, até então desconhecidas, surgiram, onde não
apenas lia por prazer, mas com responsabilidade, com disciplina. Através da
literatura, somada à leitura de textos teóricos, passei a ter acesso a uma leitura
considerada mais complexa, que exigia repertório, releituras para que pudesse
atingir um patamar de exigências e, assim, realizar uma leitura mais completa.
Passei a ter contato com Eça de Queiroz em O crime do Padre Amaro, onde o
mesmo focaliza criticamente a igreja e o celibato clerical; Incidente em Antares, de
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Érico Veríssimo; Capitães de Areia, com Pedro Bala pelas ladeiras da Bahia, de
Jorge Amado; O quinze, de Rachel de Queiroz; Vidas Secas, de Graciliano Ramos,
onde aquela família de retirantes na qual homem e animal eram tão semelhantes
tocou-me bastante; e tantos outros.
Diante dessas novas leituras uma que causou-me impacto, pela sua
complexidade, foi Macunaíma, a obra prima de Mário de Andrade, onde Macunaíma,
através do seu caráter, atribui aos brasileiros adjetivos como: preguiçoso, mentiroso,
povo sem nenhum caráter, é um texto, segundo Mário de Andrade, carregado de
“segunda intenção”. E, assim, através dessa leitura, me via a repensar leituras
anteriores, se, também, apresentavam alguma segunda intenção. Tornei-me uma
leitora mais crítica.
A formação acadêmica levou-me a refletir sobre o lado político-social
brasileiro, procurar fazer análise crítica de algumas situações, posicionar-me como
cidadã, alguém consciente da sua cota de participação social, passando a valorizar-
se mais. E, assim, foi a minha trajetória como leitora, onde concluí que a leitura é
uma viagem, onde temos sempre o desejo de ir mais longe, basta apenas abrir um
livro e mergulhar na magia da palavra.
Agora, de volta deste rápido encontro com minhas leituras, vejo a refletir
sobre o meu presente, a minha responsabilidade como profissional, mediadora da
formação de novos leitores.