UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · a partir da conformação do processo penal à...
Transcript of UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · a partir da conformação do processo penal à...
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO
CURSO DE MESTRADO EM DIREITO
HBERTO OLMPICO COSTA
O GARANTISMO E A PROTEO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA PERSPECTIVA DO SISTEMA ACUSATRIO
Natal/RN 2016
HBERTO OLMPICO COSTA
O GARANTISMO E A PROTEO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA PERSPECTIVA DO SISTEMA ACUSATRIO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps Graduao em Direito PPGD, do Centro de Cincias Sociais Aplicadas CCSA da Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Walter Nunes da Silva Jnior.
Natal/RN 2016
Catalogao da Publicao na Fonte. rica Simony F. de Melo Guerra CRB15/296
Costa, Hberto Olmpico. O garantismo e a proteo dos direitos fundamentais na
perspectiva do sistema acusatrio. / Hberto Olmpico Costa. Natal, RN, 2016.
166 f. Orientador: Prof. Dr. Walter Nunes da Silva Jnior.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Cincias Sociais Aplicadas. Programa de Ps-Graduao em Direito.
1.Processo Penal - Dissertao. 2. Sistema Processual Acusatrio Dissertao. 3. Poder de punir - Dissertao. 4. Dever de punir Dissertao. 5. Direitos fundamentais Dissertao. 6. Estado Constitucional Democrtico de Direito Dissertao. I. Silva Jnior, Walter Nunes da. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Ttulo.
CDU 343.1
HBERTO OLMPICO COSTA
O GARANTISMO E A PROTEO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
NA PERSPECTIVA DO SISTEMA ACUSATRIO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps Graduao em Direito PPGD, do Centro de Cincias Sociais Aplicadas CCSA da Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Direito. Aprovada em: ___/___/2016.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Walter Nunes da Silva Jnior (Orientador)
UFRN
Prof. Dr. Paulo Srgio Duarte da Rocha Jnior
UERN
Prof. Dra. Yara Maria Pereira Gurgel
UFRN
Natal/RN 2016
Dedico este trabalho a minha me, por ser a luz que guia meu caminho todos os
dias, e as minhas irms rica e Rose pelo amor e felicidade que trouxeram em
minha vida.
AGRADECIMENTOS
A concretizao deste trabalho foi possvel graas s bnos de Deus, bem
como aos muitos colaboradores diretos e indiretos, dos quais sou eterno devedor.
Agradeo a todos e, em especial:
minha famlia, pelas horas de convivncia que lhes foram subtradas; Ao Professor Doutor Walter Nunes da Silva Jnior, pelo esforo e
dedicao na orientao desta Dissertao, na certeza de que seus slidos
conhecimentos em muito contribuiro para minha capacitao acadmico-
profissional.
Ao Professor Doutor Leonardo Martins, pelas aulas, pelo conhecimento
transmitido e pela ateno dispensada ao longo da minha caminhada no Curso de
Mestrado em Direito.
Professora Doutora Maria dos Remdios Fontes Silva, por no medir
esforos junto Coordenao do Curso de Mestrado em Direito da UFRN, atuando
sempre com profissionalismo e coerncia frente aos problemas enfrentados cotidianamente.
A todos os funcionrios da Secretaria do Programa de Ps-Graduao em Direito da UFRN, em particular a Senhora Maria Lgia de Campos Pipolo, pela disposio, competncia, colaborao e cordialidade no atendimento ao aluno em
geral.
Por fim, a todos que colaboram e incentivaram, cada um sua maneira, para
que eu conseguisse trilhar este caminho na minha vida acadmica.
Cumpre punir, mas no s cegas. Punir, mas utilmente. Se a justia pintada com uma venda nos olhos, mister que a razo seja seu guia.
Voltaire
RESUMO
Os direitos fundamentais constituem a estrutura central do processo penal,
que implica na compreenso da teoria constitucional desse ramo do Direito
vinculada a observncia de direitos e garantias fundamentais e estabelece-se os
limites para a atuao estatal no dever-poder de punir. Busca-se definir os contornos
da racionalidade do modelo acusatrio, formalmente aderido pela Constituio de
1988, superando a matriz inquisitria, a mentalidade autoritria e a ideologia da
defesa social que, no somente inspirou, mas tambm orientou a elaborao do
ainda vigente Cdigo de Processo Penal de 1941. O Garantismo aplicado ao
processo criminal uma forma de limitao do poder punitivo, visto que prope a
recuperao das garantias jurdicas fundamentais e o respeito aos direitos humanos.
Apresentam-se as perspectivas e necessidades de adequao legislativa para a reestruturao do cdigo processual penal de acordo com o modelo acusatrio. Por
fim, abordam-se os movimentos de poltica criminal incompatveis com o Estado
Constitucional Democrtico de Direito.
Palavras-Chave: Processo Penal. Sistema processual acusatrio. Limites ao poder-dever de punir. Direitos Fundamentais. Estado Constitucional Democrtico de Direito.
RESUMEN
Los derechos fundamentales constituyen la columna central de los procesos
penales, lo que implica la comprensin de la teora constitucional de esta rama del
Derecho vinculado a la observancia de los derechos y garantas fundamentales y
establece los lmites de la actuacin del Estado en su deber-poder de punir. Se
busca definir los contornos de la racionalidad del modelo acusatorio, formalmente
creado por la Constitucin de 1988, superando la matriz inquisitorial, la mentalidad
autoritaria y la ideologa de la defensa social que no slo inspira, sino tambin gui
el desarrollo del Cdigo del Proceso Penal del 1941. El Garantismo aplicado a un
proceso penal es una forma de limitacin del poder punitivo, ya que propone la
recuperacin de las garantas jurdicas fundamentales y el respeto de los derechos
humanos. Se presenta las perspectivas y necesidades de adecuacin legislativa para la reestructuracin del cdigo procesual penal de acuerdo con el modelo
acusatorio. Por ltimo, enfoca a los movimientos de poltica criminal incompatible
con el Estado constitucional democrtico del Derecho.
Palabras clave: Proceso Penal. Sistema procesal acusatorio. Lmites en el poder y la obligacin de castigar. Los derechos fundamentales. Estado Constitucional Democrtico de
Derecho.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Art. - Artigo
CADH - Conveno Americana de Direitos Humanos
Cap. - Captulo
CF - Constituio Federal CP - Cdigo Penal
CPP - Cdigo de Processo Penal
DJ - Dirio da Justia
DJU - Dirio da Justia da Unio
DOU - Dirio Oficial da Unio
HC - Habeas Corpus
Inc. - Inciso InfoPen - Sistema de Informaes Penitencirias
JSTF - Jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal
JSTJ - Jurisprudncia do Superior Tribunal Federal
Min. - Ministro
MP - Ministrio Pblico p. - Pgina (s)
PL - Projeto de lei
RE - Recurso Extraordinrio
Rel. - Relator
RHC - Recurso em Habeas Corpus
RT - Revista dos Tribunais
STF - Supremo Tribunal Federal
STJ - Superior Tribunal de Justia v.g - Por exemplo (verbi gratia)
SUMRIO
1 INTRODUO 13 2 BREVE HISTRICO SOBRE OS SISTEMAS INFORMADORES DO
PROCESSO PENAL E SEUS REFLEXOS NO SISTEMA BRASILEIRO 17 2.1 SISTEMA ACUSATRIO 18
2.2 SISTEMA INQUISITORIAL 20
2.3 SISTEMA MISTO 22
2.4 ASPECTOS GERAIS DOS SISTEMAS PROCESSUAIS NA LEGISLAO
ESTRANGEIRA 24
2.5 O SISTEMA PROCESSUAL CONSTITUCIONAL PENAL BRASILEIRO 27 3 O MODELO ACUSATRIO ADOTADO PELA CONSTITUIO DE 1988 32 3.1 AS GARANTIAS FUNDAMENTAIS NA CONFORMAO DO PROCESSO
PENAL MODERNO 37 3.1.1 O Devido Processo Legal 36 3.1.2 Presuno da No-culpabilidade 43 3.1.2.1 Presuno da No-culpabilidade e a sua repercusso no tratamento
igualitrio das partes 47 3.1.3 A Ampla Defesa 51 3.1.4 As Garantias Referentes Jurisdio 53 4 O MODELO ACUSATRIO COMO INSTRUMENTO DE GARANTIAS E O
PAPEL DO JULGADOR NA PERSECUO PENAL 57 4.1 O GARANTISMO COMO LIMITAO AO PODER PUNITIVO 59
4.2 REDEFINIO DAS FUNES DOS AGENTES DA JUSTIA CRIMINAL NO
PROCESSO PENAL CONSTITUCIONAL 64 4.2.1 A Polcia de Investigao 64 4.2.2 Defensor 68 4.2.3 O Ministrio Pblico 71 4.2.4 O juiz 74 5 PERSPECTIVAS E NECESSIDADES DE ADEQUAO LEGISLATIVA
PARA REESTRUTURAO DO SISTEMA DE ACORDO COM O MODELO ACUSATRIO 77
5.1 MOVIMENTOS DE POLTICA CRIMINAL IMCOMPATVEIS COM O ESTADO
CONSTITUCIONAL DEMOCRTICO DE DIREITO 78
5.2 PROPOSTAS DE REFORMAS NA LEGISLAO PROCESSUAL PENAL 82 5.3 REDIMENSIONAMENTO DO PAPEL DO JULGADOR NA PRODUO
PROBATRIA PENAL 85 6 CONCLUSO 88 REFERNCIAS 93 ANEXOS 105
13
1 INTRODUO
O fenmeno da criminalidade ganhou enorme proporo na histria recente,
estando presente nos debates, tanto de especialistas como do pblico em geral
atravs da mdia. Todos aqueles que lidam com o fenmeno criminal devem
enfrentar estes desafios, alm de fazer com que o amplo debate nacional sobre o tema transforme-se em real controle sobre as polticas criminais e de segurana
pblica, e, mais ainda, estimule a parceria entre rgos do poder pblico e
sociedade civil, na luta por segurana e qualidade de vida dos cidados brasileiros.
O presente trabalho analisa a relao entre os direitos fundamentais e o
exerccio da pretenso punitiva da sociedade, na perspectiva do sistema acusatrio,
a partir da conformao do processo penal constituio, tendo em vista a observncia das garantias processuais, imperativo do Estado Constitucional
Democrtico de Direito.
Abordam-se os possveis efeitos para o processo penal, concebido como o
locus para o exerccio de direitos voltados preservao da liberdade do acusado
que, com o advento do modelo de Estado Social de Direito, estruturado nas bases
do Estado Constitucional Democrtico de Direito, passa a exigir uma postura mais ativa do juiz criminal, no sentido de garantir a efetividade desses direitos
fundamentais.
A Constituio brasileira de 1988 elencou um de rol direitos processuais
fundamentais; constitucionalizou as funes da advocacia e das desfensorias
pblicas; fortaleceu o exerccio das partes; traou os parmetros para um modelo
processual acusatrio, no qual se constata a institucionalizao do Ministrio Pblico
como autor exclusivo da ao penal pblica e retirou do julgador as atividades
acusadoras, tpicas do sistema inquisitivo, podendo-se, assim, almejar
imparcialidade indispensvel no processo constitucional democrtico.
Ao longo dos anos, os Direitos Fundamentais dos cidados foram sendo
incorporados nas Constituies de vrios pases. No Brasil, a Constituio atual, em seu art. 5, apresenta extenso rol de normas destinadas a assegurar os direitos
individuais e coletivos.
A defesa do minimalismo penal e do garantismo no processo criminal,
significa a defesa dos direitos e garantias fundamentais do cidado, inseridos nos
14
nossos princpios constitucionais. Essa defesa reveste-se, a cada dia, de maior
importncia, visto que, quanto maior a influncia de movimentos repressivistas, como law and order (Lei e Ordem), mais eficaz deve ser o filtro garantista
desempenhado pelo processo penal.
O tema objeto desse trabalho tem como aspecto central realizar um olhar
constitucionalista sobre direito e processo penal brasileiro, na perspectiva do
sistema acusatrio, estruturado na dimenso subjetiva dos direitos fundamentais; e,
quando assim no for possvel, apontar os indcios de inconstitucionalidade dos
dispositivos examinados.
Os direitos fundamentais, vertical e horizontalmente considerados,
consubstanciam a reserva de justia da Constituio. Alm disso, considerando o
limite da ambivalncia da pena em relao aos valores fundamentais, faz-se crucial
uma leitura cuidadosa e temperada do direito processual penal positivo para que ele
no seja mero mecanismo de opresso e se apresente como um instrumento excepcional para a manuteno emergencial da estrutura dos valores da vida.
O pesquisador do direito processual constitucional penal realiza, sem
prescindir da complexidade e da importncia da dogmtica alem, uma leitura dos
limites e do espao de atuao da poltica criminal do Estado. Essa tarefa precede a
aplicao da lei penal, sendo um pressuposto para a atividade da sua concretizao.
O presente estudo se prope estabelecer limites ao poder punitivo estatal, visto que a Constituio Federal de 1988 e a Conveno Americana de Direitos
Humanos contm inmeros preceitos que conformam ou modulam o sistema
punitivo brasileiro. Este conjunto normativo limitador do castigo estruturado em
regras, princpios jurdicos, postulados poltico-criminais e garantias processuais que
demarcam o mbito de atuao dos sujeitos do processo penal, bem como na
elaborao de normas que incriminam vrias condutas humanas.
Nesse mbito, tero destaques as novas feies dos agentes estatais da
persecuo criminal: juiz, membro do ministrio pblico, autoridade policial e
defensor. Ressalte-se a atuao desses agentes em um processo penal com feies
acusatrias, expondo eventuais incongruncias que ainda persistem no
ordenamento, alm de apresentar sugestes para possveis solues.
Pretende-se, com o presente estudo, evidenciar a conciliao do carter punitivista do direito penal com a natureza limitadora do poder punitivo, uma vez que
este no tem apenas o carter punitivo, mas tambm limitativo e garantista; ou seja,
15
a observncia das garantias processuais constitucionais regulam e disciplinam a
aplicao e execuo da punio estatal, evitando excessos ou abusos.
A hiptese que se apresenta que o processo penal se legitima a partir da tutela de direitos fundamentais, submetida racionalidade do modelo acusatrio e
garantista, em que a deciso do magistrado deve ser produto da participao plena
dos envolvidos, em conformidade com o Estado Constitucional Democrtico de
Direito.
No tratamento do tema, guiado por uma concepo garantista, busca-se
contribuir para maiores anlises sobre o direito e o processo penal brasileiro,
justificado no momento atual pela existncia de tendncias neo-absolutistas,
especialmente no que diz respeito legislao penal de emergncia e de exceo,
que surgem com o pretexto de defesa da sociedade, mas que agem em detrimento
dos direitos e garantias individuais.
um estudo da poltica dogmtica e da poltica da dogmtica. Sem se descuidar da reserva da proteo da lei, traa os movimentos das constituies das
penas na poltica. Entende-se como dogmtica em movimento multidisciplinar, pois o
contedo desse enfoque abrange o direito constitucional e o processo penal positivo,
mas desloca a deciso para o constitucionalismo, que se faz, se funda e se legitima
no corao da poltica.
Para maior compreenso do assunto, a dissertao divide-se em seis captulos, sendo esta introduo o primeiro deles. No segundo, faz-se um breve
histrico sobre os sistemas informadores do processo penal, abordando os aspectos
gerais do tema no direito comparado e os seus reflexos no sistema processual
criminal brasileiro.
Ademais, no terceiro captulo busca-se uma anlise sobre o modelo
acusatrio adotado pela Constituio Federal de 1988, discorrendo sobre a
repercusso das garantias individuais na conformao do processo penal moderno,
destacando o devido processo legal, a garantia de igualdade, a ampla defesa e as
garantias referentes jurisdio.
Em seguida, no quarto captulo, o modelo acusatrio apresentado como um
instrumento de garantias, evidenciando o garantismo como uma limitao ao poder
punitivo estatal. De outro modo, na segunda parte deste captulo, constata-se uma redefinio das funes dos agentes da justia criminal sob a tica de um processo
penal constitucional.
16
No quinto, analisam-se as perspectivas e necessidades de adequao
legislativa para a reestruturao do cdigo processual penal de acordo com o
modelo acusatrio, abordando os movimentos de poltica criminal incompatveis com o Estado Constitucional Democrtico de Direito; identificam-se tambm quais as
propostas de reformas na legislao processual penal (algumas delas j encapadas
em projetos que tramitam no Congresso Nacional), bem como a atuao do julgador
na produo probatria penal.
Por fim, no ltimo captulo fazem-se as concluses, em que sero
apresentados os principais entraves concretizao do modelo acusatrio; admite-
se a existncia de um sistema acusatrio aparente, apenas formalmente acolhido
pelo ordenamento processual penal, face s inegveis resistncias de regras
infraconstitucionais em lamentvel e inoportuno contraste com a vontade e a
tendncia acusatria do ordenamento constitucional. Outrossim, sero apresentadas
sugestes para aperfeioamento do sistema.
17
2 BREVE HISTRICO SOBRE OS SISTEMAS INFORMADORES DO PROCESSO PENAL E SEUS REFLEXOS NO SISTEMA BRASILEIRO
A histria registra as barbries praticadas contra quem se viu na condio de
suspeito ou autor de crime. Mesmo depois de monopolizar a aplicao da pena pelo
Estado, o suspeito de crime ainda continuou a ocupar lugar de flagelo. Na realidade,
foi sob a tutela do Estado que a condio humana foi mais vulnerada e exposta
como afirmao de poder.
A obra Vigiar e Punir, de autoria do filsofo francs Michel Foucault1, sem dvida, um tratado histrico sobre a forma como a pena foi utilizada qual meio de
coero e suplcio; meio de disciplina e aprisionamento do ser humano, revelando a
face social e poltica dessa forma de controle social aplicado ao direito e s
sociedades de outrora, especialmente naquelas em que perdurou por muitos sculos o regime monrquico.
Para exemplificar a crueldade da apenao como retribuio ao mal causado,
pode-se cita seces de membros seguidas de incndio aos restos mortais,
mutilaes de cabeas seguidas de facadas lanadas ao peito; enforcamento
seguido de banho em caldeira de gua fervente e todas as formas possveis e
imaginveis de tortura e manifestao do poder sobre os corpos dos condenados2. A palavra do acusado tinha valor de prova plena. Pela tortura, a confisso era
quase sempre alcanada e, por isso, no raras vezes, constitua a nica prova.
O processo penal assimila esses episdios e remete-os, dentre outros
perodos, ao modelo processual denominado inquisitivo. O sistema era marcado
pela segregao do processado e concentrava no juiz os poderes para processar,
defender e julgar.
De acordo com Fernando da Costa Tourinho Filho3, no processo penal, o juiz
teve tradicionalmente maior liberdade de atuao, se comparado com o processo
civil, normalmente esteado na necessidade de busca da verdade material com a
qual se atingiria o ideal de justia criminal.
1 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Histria da Violncia nas Prises. So Paulo: Vozes, 2001. p.
26. 2 Idib., p. 26. 3 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. So Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 41.
18
Para Afrnio Silva Jardim4, inspirado nas lies do processualista italiano
Liebman a grande dificuldade do processo penal moderno compatibilizar o
princpio da imparcialidade do juiz, com a busca da verdade real ou material, na medida em que a outorga de poderes instrutrios pode, ao menos psicologicamente,
atingir sua necessria neutralidade.
O estudo da evoluo histrica do direito processual criminal de grande
importncia para a compreenso dos seus diversos institutos e princpios. Os
princpios processuais, como discorrido pela doutrina majoritria so importantes
para o conhecimento das dificuldades e dos fundamentos dos trmites processuais e
do entendimento de sua morosidade.
A pesquisa acerca da relao existente entre os direitos fundamentais e o
processo penal define, em resumo, limites e fundamentos do estudo da Teoria
constitucional do processo penal, em conformidade com a Teoria dos direitos
fundamentais. So trs os sistemas processuais surgidos no decorrer da evoluo do
processo penal: o acusatrio, o inquisitivo e o misto.
2.1 SISTEMA ACUSATRIO
O sistema acusatrio teve suas origens remotas na Grcia e em Roma;
todavia, aps a Revoluo de 1789, esse sistema se notabilizou, sendo adotado na
maioria dos pases dos continentes americano e europeu. Em tal sistema, o direito
de acusao foi assegurado a qualquer do povo, ficando o julgamento a cargo de
um tribunal popular que observava a oralidade, a publicidade e o contraditrio.
Os ideais iluministas e as revolues que marcaram a segunda metade do
sculo XVIII e a primeira metade do sculo XIX foram responsveis por profundas
mudanas no sistema processual. O cientificismo remodelou o processo penal, que
passou a ser concebido como uma relao jurdica, da qual participavam trs
sujeitos distintos, exercendo cada um deles uma funo especfica e bem
delimitada: acusao, defesa e julgamento.
4 JARDIM, Afrnio Silva. Direito Processual. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 40.
19
Luigi Ferrajoli5 ensina que modelo acusatrio histrico pode ser definido como
um sistema processual que tem o juiz como sujeito passivo rigidamente separado
das partes, sendo o julgamento um debate paritrio, iniciado pela acusao, qual compete o nus da prova, desenvolvida com a defesa, mediante um contraditrio
pblico e oral, solucionado pelo juiz com base em sua livre convico.
Alm de suas cactersticas histricas de oralidade e publicidade, vigora, no
processo acusatrio, o princpio da presuno de inocncia, permanecendo o
acusado em liberdade at que seja proferida a sentena condenatria irrevogvel. 6
De acordo Gustavo Henrique Badar,7 o processo acusatrio
essencialmente um processo de partes no qual a acusao e a defesa se
contrapem em igualdade de posies, apresentando um juiz sobreposto a ambas.
Como se constata, h uma ntida separao de funes, atribudas a pessoas distintas, fazendo do processo um verdadeiro actum trium personarum, sendo
informado pelo contraditrio. O juiz no mais inicia a acusao de ofcio, uma vez que h um rgo
responsvel pelo oferecimento da denncia. Assim, com a titularidade para a
propositura da ao penal pblica transferida para o Ministrio Pblico, verifica-se
uma ntida separao das funes de acusao e julgamento, com vistas
manuteno da imparcialidade do juiz no processo penal, ao exercer a jurisdio e
aplicar a lei ao caso concreto. Para Guilherme de Souza Nucci,8 no sistema acusatrio predomina a
liberdade de defesa e a isonomia entre as partes no processo, estabelecendo-se o
contraditrio; h possibilidade de recusa do julgador; livre sistema de produo de
provas; predomina a maior participao popular na justia penal, e a liberdade do
ru regra.
No referido sistema processual, a gesto das provas funo das partes,
cabendo ao juiz um papel de garante das regras do jogo, salvaguardando direitos e
liberdades individuais. Como se percebe, no modelo acusatrio constata-se uma
posio de igualdade dos sujeitos, cabendo exclusivamente s partes a produo do
5 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razo, 3. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 33. 6 BADAR, Gustavo Henrique. Processo Penal. 3. ed. rev., atual. e amp. So Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015. p. 87. 7 Ibid., p. 87. 8 NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Processo Penal e Execuo Penal. 5. ed. rev. atual. e
amp. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 116.
20
material probatrio, sendo norteado pelos princpios do contraditrio, da ampla
defesa, da publicidade e do dever de motivaes das decises judiciais.
Pode-se afirmar que o sistema acusatrio um imperativo do moderno processo penal, frente atual estrutura social e poltica do Estado, visto que tal
sistema o que mais avanou em relao aos direitos e garantias do ru, sendo o
mais compatvel com os atuais moldes do Estado Constitucional Democrtico de
Direito9.
2.2 SISTEMA INQUISITORIAL
O termo inquisitivo designava, no incio, o processo adotado desde o sculo
XII pelos tribunais eclesisticos para investigao criminal. Foi o papa Gregrio IX quem, no sculo XIII, instituiu a Inquisio como justia e tribunal eclesisticos da
Idade Mdia, para julgar os delitos contra a f, em sua forma definitiva e
persecutria, com o objetivo de exterminar aqueles considerados hereges.
Segundo Paulo Rangel10, o sistema inquisitivo tem a sua origem nos regimes
monrquicos, tendo-se aperfeioado no Direito Cannico. Foi adotado por quase
todas as legislaes da Europa dos sculos XVI a XVIII como alternativa de substituio do sistema acusatrio privado, no qual era a vtima a responsvel por
buscar a punio do acusado, comprometendo, assim, a defesa social.
Esse sistema se erigiu na afirmativa de que no se poderia deixar que a
defesa social dependesse da boa vontade dos particulares, tendo como cerne a
reivindicao que o Estado fazia para si do poder de reprimir a prtica dos delitos,
no sendo mais admissvel que tal represso fosse encomendada ou delegada aos
particulares .11
No sistema processual inquisitivo, observa-se a concentrao das funes de
acusar e julgar em apenas uma pessoa, desse modo, comprometendo a
imparcialidade do magistrado, visto que o juiz d incio ao de ofcio, defende o
ru e ainda faz o julgamento. 9 LOPES JNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de
Janeiro: Lmen Jris, 2012. v. 1, p. 58. 10 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 18. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 50. 11 Ibid., p. 50.
21
Gustavo Henrique Badar12 leciona que, no processo inquisitivo, no havia
contraditrio, pois este no seria nem mesmo possvel, em virtude da falta de
contraposio entre acusao e defesa. Ao ser excluda a dialtica entre acusao e defesa, a investigao cabia unilateralmente ao inquisidor, sendo inconcebvel, em
tal sistema, a existncia de uma relao juridica processual. Alm disso, o processo
normalmente era escrito e secreto.
O acusado tratado como objeto e no sujeito de direitos; uma vez que o
processo regido pelo sigilo, no h contraditrio nem ampla defesa, sendo o
sistema probatrio constitudo pela prova legal ou tarifada, no qual as provas tm
valores e pesos previamente determinados.
No sistema da prova tarifada, a confisso considerada a rainha das provas
e, para obt-la, so empregados os mais cruis e horrendos meios, entre os quais
se destaca a tortura, em que, muitas vezes, os acusados tm suas vidas ceifadas
pelos responsveis por obter a confisso, j que, dependendo do meio de tortura que for empregado, o acusado vem a bito antes mesmo que possa pronunciar uma
s palavra acerca do fato criminoso.
A colheita de provas no referido sistema processual objetiva uma ampla
reconstruo dos fatos, com vistas ao descobrimento de uma verdade absoluta, por
isso admite uma ampla atividade probatria, quer em relao ao objeto do processo,
quer em relao aos meios e mtodos para a descoberta da verdade. O juiz inquisidor tinha liberdade de colher provas, independentemente de sua proposio
pela acusao ou pelo acusado. O ru normalmente permanecia preso durante o
processo13.
Na busca pela verdade real, frequentemente, o acusado era torturado para
que se alcanasse a confisso. Em suma, o princpio inquisitivo baseia-se em um
princpio de autoridade, segundo o qual a verdade tanto mais bem acertada,
quanto maiores forem os poderes conferidos ao investigador14.
No sistema inquisitivo, a formao do convencimento do juiz no se d pelas
provas que lhe so apresentadas pelas partes, mas pelo que ele houver coletado na
sua investigao. E, assim busca convencer as partes da sua ntima convico com
as provas coletadas. Ou seja, o magistrado emite previamente um juzo de valor ao
12 BADAR, op. cit., p. 88. 13 Ibid., p. 88. 14 Ibid., p. 88.
22
iniciar a ao penal; e, antes de inici-la, j sabe, de certa maneira, como e qual
seria a sua deciso. E assim busca provas para corroborar o seu pensamento. H
um pr-julgamento antes mesmo de iniciar a ao penal. O sistema inquisitivo, que atingiu seu pice durante a Idade Mdia, na
Inquisio, um sistema processual marcado pelo desrespeito aos direitos humanos
e vida, sendo a prioridade do Estado o cumprimento das normas positivadas,
mesmo que venham afrontar direitos e garantias fundamentais, objetivando manter o
imprio da lei e da ordem.
O processo penal inquisitivo demonstra total incompatibilidade com as
garantias constitucionais, que devem existir dentro de um Estado Democrtico de
Direito. Portanto deve ser banido das legislaes modernas que visem assegurar ao
cidado as mnimas garantias de respeito dignidade da pessoa humana15. No
restam dvidas de que o sistema inquisitivo o mais prejudicial ao ru e no pode
subsistir, porque nele inexistem regras de igualdade e liberdade processuais16
2.3 SISTEMA MISTO
Com a Revoluo Francesa, os movimentos filosficos da poca acabaram por repercutir tambm na esfera do processo penal, retirando aos poucos
caractersticas do modelo inquisitivo em prol da valorizao que passou a ser dada
ao homem.17.
O sistema misto foi inaugurado pelo Cdigo de Instruo Criminal em 1808,
em vigor em 1811, introduziu na Frana o sistema processual misto, que foi seguido
por outras legislaes da Europa Ocidental. Tal sistema pretende ser um intermdio
entre a necessidade de represso e as garantias individuais, eliminando as
imperfeies de cada um dos outros sistemas.
Fernando da Costa Tourinho Filho18 leciona que o sistema inquisitivo desenvolve-se em trs etapas: a) investigao preliminar (de la policie judiciarie),
dando lugar aos procs verbaux; b) instruo preparatria (instruction prparatoire); 15 RANGEL, op. cit., p. 55. 16 BADAR, op. cit., p. 88. 17 LOPES JNIOR, op. cit., p. 127. 18 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 91-92.
23
e c) fase do julgamento (de jugement). Mas enquanto, no inquisitivo, essas trs
etapas eram secretas, no contraditrias, escritas, e as funes de acusar, defender
e julgar concentravam-se nas mos do juiz, no processo misto ou acusatrio formal, somente as duas primeiras fases continuaram secretas e no contraditrias. Na fase de julgamento, o processo se desenvolve oralement, publiquement et
contradictoirement. As funes de acusar, defender e julgar so entregues a
pessoas distintas.
Verifica-se que o sistema misto uma juno dos sistemas processuais
inquisitivo e acusatrio, possuindo trs fases: a investigao preliminar, realizada
pela polcia judiciria; a instruo preparatria, realizada pelo juiz instrutor, e a fase
judicial.
Na fase da instruo preparatria, tambm conhecida em alguns pases como
Juizado de instruo, bem como na fase da investigao preliminar, o sistema
inquisitivo vigora, tendo em vista que o procedimento levado a efeito pelo juiz, que investiga, faz a coleta de provas, alicerando-se em todas as informaes
necessrias, a fim de, posteriormente, realizar a acusao ao tribunal competente.
Ressalte-se que, como na fase da instruo preparatria, vigora o sistema
inquisitivo; o procedimento secreto, escrito e o autor do fato tratado como mero
objeto de direitos, no havendo o contraditrio nem a ampla defesa.
Aps a fase da instruo preparatria, e com o recebimento da acusao, d-se incio terceira fase, a fase judicial, na qual esto presentes as caractersticas do
sistema acusatrio, uma vez que o acusado sujeito de direitos e como tal
tratado, tendo direito ao contraditrio, ao estado de presuno de inocncia, sendo
considerado inocente, at que se prove o contrrio, por meio do devido processo
legal.
Conforme se denota, esse sistema faz uma mescla entre o sistema acusatrio
e o inquisitivo, mantendo a mesma base procedimental existente no procedimento
inquisitivo, mas adaptando parte dos princpios do sistema acusatrio na fase de
julgamento19.
Por sua vez, Aury Lopes Jnior20 aponta como principal defeito do modelo
misto o fato de que a prova colhida na inquisio do inqurito, sendo trazida
19 LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal. 3. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006. v. 1, p. 32. 20 LOPES JNIOR, op. cit., p. 130.
24
integralmente para dentro do processo e, ao final, basta o belo discurso do julgador
para imunizar a deciso.
Esse discurso vem mascarado com as mais variadas frmulas do estilo: a prova do inqurito corroborada pela prova judicializada; coteja-se a prova policial
com a judicializada; e assim, todo um exerccio imunizatrio, (ou melhor, uma fraude
de etiquetas) para justificar uma condenao que, na verdade, est calcada nos
elementos colhidos no segredo da inquisio. O processo acaba por converter-se
em uma mera repetio ou encenao da primeira fase21.
Para Paulo Rangel22, a imparcialidade do magistrado no sistema misto
continuou comprometida. Mantm-se o juiz na colheita das provas, antes mesmo da
acusao, quando deveria este ser retirado da fase persecutria, entregando-se a
mesma ao Ministrio Pblico, que deveria controlar as diligncias investigatrias
realizadas pela polcia de atividade judiciria, ou, se necessrio, realiz-las
pessoalmente, formando sua opinio delicti e iniciando a ao penal.
Aury Lopes Jnior23 critica a classificao do sistema como misto,
considerando-a insuficiente e redundante, uma vez que no existem mais sistemas
puros, (so tipos histricos), todos so mistos. Para o autor, preciso localizar o
princpio informador de cada sistema, seu ncleo, o qual far um sistema ser
inquisitivo ou acusatrio.
2.4 ASPECTOS GERAIS DOS SISTEMAS PROCESSUAIS NA LEGISLAO
ESTRANGEIRA
Na Alemanha, influenciada pelas ideias humanistas e iluministas, a
Declarao de Direitos Fundamentais do Povo Alemo, de 1848, optou por instituir
um sistema no qual vigoravam a publicidade e a oralidade do processo penal, e o
povo era quem julgava, baseado numa acusao levada a efeito pelos interessados
que, geralmente, eram agentes do governo, havendo, assim, a descentralizao das
funes de acusao, defesa e julgamento.
21 LOPES JNIOR, op. cit., p. 130. 22 RANGEL, op. cit., p. 55. 23 LOPES JNIOR, op. cit., p. 130.
25
A acusao era originada de um procedimento preparatrio, presidido pelo
Ministrio Pblico, que tinha como caractersticas o sigilo, mas no qual eram
respeitados os direitos do acusado. Aps o trmino desse procedimento, a acusao poderia ser oferecida ou arquivada e, quando oferecida, dava-se incio a uma fase
que tinha por finalidade a apurao mnima da materialidade do delito.
Aps a acusao ser admitida pelo Tribunal, dava-se incio a uma terceira
fase, na qual se desenvolvia o processo propriamente dito, com a diviso das
funes de acusao, defesa e julgamento. A presena da publicidade e a proibio
de o tribunal agir de ofcio, em relao ao incio do procedimento, ou aos limites nos
quais a acusao foi admitida; as partes ficam livres para obterem os meios de
prova que considerem pertinentes e necessrios ao deslinde do caso.
Por sua vez, na Itlia, o Cdigo Rocco (em 1930) foi editado e, mesmo
mantendo intactos os princpios do sistema inquisitivo, inspirou-se em ideais mais
garantistas, pois afastou o juiz da fase preparatria, incumbindo o Ministrio Pblico dessa funo, auxiliado pela Polcia, passando, desse modo, a serem respeitados o
princpio da imparcialidade do juiz e o contraditrio, em harmonia com os princpios
do sistema acusatrio.
Aps essa reforma efetuada pelo Cdigo Rocco, o processo penal italiano
passou a ser realizado em duas fases: a Audincia Preliminar e o Julgamento. A
iniciativa das provas era conferida s partes e, em casos excepcionais, ao Tribunal, sendo proibida na fase anterior audincia preliminar; o juiz era colocado no papel
de espectador passivo na disputa processual travada pelas partes, mitigando, de
forma significativa, seno eliminando, o princpio da verdade real.
Contudo, o juiz no era proibido de produzir provas; mas, para garantir sua
imparcialidade, devia evitar ao mximo sua interferncia de ofcio no processo penal.
E assim foram sendo implementados os demais direitos e garantias fundamentais do
acusado, adequando-se o sistema penal italiano ao sistema acusatrio.
Na Inglaterra, a partir do sculo XII, foi adotado o sistema jurdico conhecido como Common Law, no qual os costumes so a fonte mais importante para o
Direito.
Esse sistema fundamenta-se em precedentes conhecidos como cases,
sempre baseados nos costumes aplicados nas decises, registradas em livros. Essa forma diferente de solucionar os conflitos distanciou o modelo ingls do modelo
romano-germnico, que vigorava no restante da Europa.
26
De acordo com Jorge de Figueiredo Dias24, o processo penal ingls nasce
como um autntico processo de partes, diverso daquele antes existente. Na
essncia, o contraditrio pleno, e o juiz estatal est em posio passiva, sempre longe da colheita da prova. O processo, destarte, surge como uma disputa entre as
partes que, em local pblico (inclusive praas), argumentavam perante o jri, o qual,
enquanto sociedade, dizia a verdade, vere dictum.
elementar que um processo calcado em tal base estruturasse uma cultura
processual mais arredia a manipulaes, mormente porque o ru, antes de ser um
acusado, um cidado e, portanto, senhor de direitos inafastveis e respeitados. Por isso, incentivado pela ideologia liberal que se desprende j da Magna Charta
Libertatum de Joo-sem-Terra (1215) e acentuado sobretudo pelo Bill of Rights
(1689) e pelo Act of Settlement (1701), ele ganha o seu maior e vivaz florescimento,
a ponto de ainda hoje se manter essencialmente imodificado25.
No sculo XV, o Commom Law perde um pouco a sua fora e ento passam
a vigorar as jurisdies de equidade, nas quais havia processos escritos com base
no procedimento do Direito Cannico. Algum tempo depois, por volta do sculo XVII, as jurisdies de equidade se integram Common Law.
Uma das caractersticas marcantes do processo penal ingls dessa poca a
instituio do Jri, constitudo por vinte e trs jurados de cada condado, que tinha
como competncia denunciar crimes mais graves ao Jri de Acusao, e tambm a figura do Petty Jri, que era constitudo por doze jurados com a funo de analisar
as provas.
O Petty Jri foi reformado por volta dos sculos XV e XVI, para se tornar a
instituio de julgamento, atribuindo a qualquer habitante do reino a funo de
acusao, numa ao penal de iniciativa popular, com uma evidente imparcialidade
do julgador, amoldando-se a um sistema processual penal tipicamente acusatrio,
com as demais caractersticas inerentes a esse tipo de sistema.
A existncia do jri influenciou de forma decisiva a estrutura acusatria do
procedimento e o modo de obteno de provas, que deveria dar-se no dia do
julgamento, na presena de todos os membros do tribunal (notas da concentrao e
24 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1974. p. 113. 25 Idib, p. 113.
27
da oralidade), at ento desinformados a respeito do processo, dialogando as partes
perante os jurados, em uma aproximao justia-sociedade26.
Por fim, constata-se que no sistema ingls alcana-se, certamente, o maior nvel de acusatoriedade, pela implementao de um processo de partes, com
preocupao de parific-las, assegurando-se ampla defesa, contraditrio,
publicidade, oralidade e absoluta imparcialidade do juiz, sem desprezar os aspectos
atinentes disponibilidade da ao penal27.
2.5 O SISTEMA PROCESSUAL CONSTITUCIONAL PENAL BRASILEIRO
Os sistemas processuais penais so escolhidos de acordo com o momento
poltico de cada Estado, sendo adotado o modelo de sistema processual penal que mais esteja, em sintonia com os ideais e anseios da sociedade da poca, bem como
a cultura da sociedade, levando em considerao as legislaes processuais penais
adotadas nos outros pases.
De acordo com Jos Frederico Marques,28 antes da descoberta do Brasil, no
ano de 1446, foram compiladas em Portugal diversas leis do reino, em nome de
Afonso V, instituindo-se ento, as Ordenaes Afonsinas, atravs das quais regulava-se o Direito Processual Penal, com influncia marcante do direito cannico
e de seu procedimento inquisitorial.
J no reinado de D. Manuel, em 1521, nova codificao foi instituda, com o
nome de Ordenaes Manuelinas, permanecendo entretanto a mesma influncia do
direito cannico e de seu respectivo procedimento inquisitorial quanto ao processo
penal.
Por sua vez, em 1603, sob o reinado de Filipe II, foram promulgadas as
Ordenaes Filipinas, revalidadas em 1643 pelo rei D. Joo IV, repetindo o que
continham as Ordenaes anteriores a respeito do direito processual penal,
26 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuao do juiz no processo penal acusatrio:
Incongruncias no sistema brasileiro em decorrncia do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: SAFE, 2005, p. 35.
27 PRADO, Geraldo. Sistema acusatrio: a conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumes Juris, 1999. p. 111.
28 MARQUES, Jos Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, 1997. v. 1, p. 61.
28
vigorando tais regras, inclusive no Brasil, at a promulgao, em 1832, do Cdigo de
Processo Criminal do Imprio.
Fernando da Costa Tourinho Filho29 identifica o cdigo de 1832 como um grande monumento jurdico imperial; no s em virtude de ter sido redigido com
amparo na melhor doutrina clssica penal, como tambm por se afinar com o
esprito liberal da poca, constituindo-se significativo avano humanitrio,
principalmente se comparado aos processos cruis das ordenaes.
No Brasil, aps um longo perodo da vigncia da legislao criminal do
Imprio, foram editados o Cdigo de Processo Penal de 1941, consubstanciado no
Decreto Lei n 3.689, de 3 de outubro de 1941, e a Lei de Introduo ao Cdigo de
Processo Penal, Decreto-Lei n 3.931, de 11 de dezembro de 1941, os quais
trouxeram importantes mudanas na forma pela qual os acusados deveriam ser
processados.
No entanto, na exposio de motivos do referido cdigo, o ministro Francisco Campos30 revela a ideologia que orientou a sua confeco. Para justificar que os
rus possuam um extenso rol de garantias e favores, o ministro arrematou que era
necessrio ajustar as leis processuais no desiderato de servirem de instrumento
maior eficincia e energia da ao repressiva do Estado contra os que delinquem;
haja vista que, abolida a injustificvel primazia do interesse do indivduo sobre a
tutela social, no se pode contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuzo do bem comum, revelando um carter antidemocrtico e policialesco desse Cdigo.
O Cdigo de Processo Penal de 1941 foi idealizado imagem e
semelhana de um autntico Estado ditatorial, visto que o mesmo foi pensado mais
como arma poderosa colocada disposio de um Estado antidemocrtico, do que
como instrumento garantista de limitao do direito estatal de punir31.
O Estado Democrtico de Direito revela-se incompatvel com as premissas do
Cdigo de Processo Penal de 1941, que reduzia todo o processo penal ao litgio
entre segurana pblica e liberdade individual. Produto de uma poltica criminal de
defesa social e fortemente influenciado pelo Anteprojeto fascista de Rocco, o vigente
Cdigo de Processo Penal anuncia expressamente a prevalncia do interesse 29 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 240. 30 CAMPOS, Francisco. Cdigo de processo penal. 41. ed. So Paulo: Saraiva, 1941. p. 6. 31 SILVA JNIOR, Walter Nunes da. Reforma tpica do processo penal: inovaes ao
procedimento ordinrio e sumrio, com o novo regime das provas, principais modificaes do jri e as medidas cautelares pessoais (priso e medidas diversas da priso). 2. ed. rev. atual. ampl. Riode Janeiro: Renovar, 2012. p.27.
29
pblico sobre os denominados pseudodireitos individuais ou catlogo de garantias
e favores ou mesmo franquias e imunidades.
Esse cdigo surgiu na ditadura Vargas, em pleno Estado Novo, na vigncia da Constituio de 1937, imposta de forma unilateral e autoritria. Destaca-se ainda
que o Cdigo de Processo Penal sofreu influncia direta da legislao processual
penal italiana vigente na poca, o Cdigo Rocco, diploma processual fascista
editado por Mussolini32.
O Brasil, com a promulgao da Constituio federal de 1988, consagrou a
primazia do respeito aos direitos e garantias fundamentais do acusado, revelando a
necessidade de adequao do Cdigo de Processo Penal vigente, notadamente
quanto sua organizao com base nos direitos fundamentais aos princpios do
Estado Constitucional Democrtico de Direito, fruto dos anseios libertrios de uma
sociedade que vivia oprimida, que pugnava pelo respeito aos direitos humanos e
pela liberdade, como regra, e a priso, como exceo. Nesse sentido, Nereu Jos Giacomolli33 leciona que uma leitura convencional
e constitucional do processo penal, a partir da constitucionalizao dos direitos
humanos um dos pilares a sustentar o processo penal humanitrio.
A partir da, faz-se mister uma nova metodologia hermenutica (tambm
analtica e lingustica), valorativa, comprometida de forma tico-poltica, dos sujeitos
do processo e voltada ao plano internacional de proteo dos direitos humanos. Por isso h que se falar em processo penal constitucional, convencional e humanitrio,
ou seja, o do devido processo34.
imperativo buscar a superao deste enclausuramento normativo que
somente tem olhar para o ordenamento jurdico interno e vislumbrar o surgimento de
uma nova poltica-criminal, orientada a reduzir os danos provocados pelo poder
punitivo a partir do dilogo inclusivo dos direitos humanos, possibilitando criar uma
mudana cultural, para no s a Constituio efetivamente constitua-a-ao, mas
tambm para que se ordinarize o controle judicial de convencionalidade35.
32 TOVO, Paulo Cludio; TOVO, Joo Batista Marques. Princpios de processo penal. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 122-123. 33 GIACOMOLLI, Nereu Jos. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituio
Federal e o Pacto de So Jos da Costa Rica. So Paulo: Atlas, 2014. p.12. 34 Ibid., p.12. 35 LOPES JNIOR, Aury; PAIVA, Caio. Audincia de custdia e a imediata apresentao do preso
ao juiz: rumo evoluo civilizatria do processo penal. Revista Liberdades, n.17, p. 11-23, set./dez. 2014.
30
Sobre o tema, no julgamento do Recurso Extraordinrio 466.343/SP o STF
firmou posio de que a Conveno Americana de Direitos Humanos (CADH) tem
valor supralegal, uma vez que est situada acima das leis ordinrias, mas abaixo da Constituio.36 Assim, observa-se no contexto atual a abertura cada vez maior do
Estado constitucional a ordens jurdicas supranacionais de proteo de direitos
humanos.
Conforme exposto no Recurso Extraordinrio 466.343/SP constata-se que:
[...] diante do inequvoco carter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteo dos direitos humanos, no difcil entender que a sua internalizao no ordenamento jurdico, por meio do procedimento de
ratificao previsto na Constituio, tem o condo de paralisar a eficcia
jurdica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, possvel concluir que, diante da supremacia da Constituio sobre os atos normativos internacionais, a previso constitucional da priso civil do depositrio infiel (art. 5, inciso LXVII) no foi revogada pela ratificao do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos (art. 11) e da Conveno Americana sobre Direitos Humanos Pacto de San Jos da Costa Rica (art. 7, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relao legislao infraconstitucional que disciplina a matria, includos o art. 1.287 do Cdigo Civil de 1916 e o Decreto-Lei n 911, de 1
de outubro de 1969. Tendo em vista o carter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislao infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante tambm tem sua eficcia paralisada. o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do Novo Cdigo Civil (Lei n 10.406/2002), que reproduz disposio idntica ao art. 1.287 do Cdigo Civil
de 1916. (BRASIL, 2008c)37
36 MAZZUOLI, Valrio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 3. ed.
So Paulo: RT, 2013. p. 45. 37 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinrio RE 466.343/SP. Relator: Ministro
Cesar Peluso. Julgamento em: 12 out. 2008. Publicado em: 12 dez. 2008c. Disponvel em: . Acesso em: 5 jan. 2015.
http://stf.jus.br/portal/processo/verProcesso
31
Hodiernamente, vivemos em um Estado Constitucional Cooperativo,
identificado pelo Peter Hberle38 como aquele que no mais se apresenta como um
Estado Constitucional voltado para si mesmo, mas que se disponibiliza como referncia para os outros Estados Constitucionais membros de uma comunidade, e
no qual ganha relevo o papel dos direitos humanos e fundamentais.
Nesse sentido, Walter Nunes da Silva Jnior39 leciona que o
constitucionalismo contemporneo, exsurgido aps a Segunda Guerra Mundial,
possui como norte a democracia e os direitos fundamentais, o que revelado por
meio da proclamao de que a Constituio, com as suas disposies normativas,
cria e orienta o Estado Democrtico-Constitucional, no qual a Constituio a ordem
jurdica global e concreta que estabelece a base terica de todo o ordenamento
jurdico.
O processo penal regula o dever-poder de punir do Estado na perspectiva
democrtica, sendo um instrumento de tutela dos direitos essenciais da pessoa humana, razo pela qual a finalidade da reforma global do cdigo foi alterar o
modelo ditatorial e policialesco com o qual foi elaborado o cdigo de processo penal,
a fim de adapt-lo ao perfil do Estado constitucional, que tem como diretriz a pauta
de valores, escrita por meio dos direitos fundamentais declarados na Constituio.40
Conclui-se que a teoria constitucional do processo penal assentada no
estudo e compreenso dos direitos fundamentais, em resposta aos abusos cometidos pelo Estado e estrutura-se na imposio de limites ao direito de punir no
exerccio da funo jurisdicional.
38 HBERLE, Peter. El estado constitucional. Trad. de Hector Fix-Fierro. Mxico: Universidad
Nacional Autnoma de Mxico, 2003. p. 75-77. 39 SILVA JNIOR, Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: teoria (constitucional) do
processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 260. 40 Ibid., p. 27.
32
3 O MODELO ACUSATRIO ADOTADO PELA CONSTITUIO DE 1988
O Cdigo de Processo Penal brasileiro, embora inspirado em princpios
inquisitivos, apresenta diversos dispositivos, inseridos pelas sucessivas reformas
que prestigiam o sistema acusatrio. Nesse sentido, a sua leitura deve ser feita
conforme Constituio, visto que seu modelo de processo deve se adequar ao
constitucional acusatrio, corrigindo os excessos inquisitivos.
O sistema acusatrio caracteriza-se pela rgida separao entre as funes
de acusar, julgar e defender, sendo assegurada ao acusado a igualdade de armas,
de acordo com o princpio do equilbrio de situaes, atravs de procedimentos
baseados em regras de oralidade e publicidade, num regime de provas livres41.
O referido sistema configura o juiz como um sujeito passivo, rigidamente
separado das partes, e o processo como iniciativa da acusao, a quem compete provar o alegado, garantindo-se o contraditrio; exige-se que o ru participe
efetivamente do processo, no se resumindo a mero expectador.
A carta magna estabeleceu o contraditrio e a ampla defesa, nos temos do
art. 5, inciso LV; bem como a exclusividade da ao penal pblica a ser exercida
pelo Ministrio Pblico (art. 129, I), embora seja assegurado ao ofendido o direito
ao penal privativa, subsidiria da pblica (art. 5, LIX). De outra parte, a funo de julgar destinada a juzes constitucionalmente
investidos, nos termos do arts. 5, LIII e 92, ou seja, ningum ser processado nem
sentenciado, seno pela autoridade competente; alm disso, foram estabelecidos a
necessidade de motivao das decises judiciais (art. 93, IX), e a publicidade dos
atos processuais, podendo esta ser mitigada nos casos de defesa da intimidade, ou
quando o interesse pblico o justifique (art. 5, LX); todos dispostos expressamente
na Constituio Federal de 1988.
A essncia do modelo acusatrio a ntida separao entre as funes de
acusar, julgar e defender. Contudo, caso seja eliminada a diviso de tarefas, o
acusado deixa de ser um sujeito processual com direito de defesa e se converte em
41 GRINOVER, Ada Pellegrini. As garantias constitucionais do processo: novas tendncias do
direito processual. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1990. p.7.
33
objeto do processo. Ou seja, sem a diviso de tarefas, sem relao processual e
sem contraditrio, no haver, sequer um verdadeiro processo42.
Gustavo Henrique Badar43 enfatiza que, sob o ponto de vista do acusado, no modelo inquistrio, o ru no era um sujeito de direito, mas sim um objeto do
processo, uma fonte detentora de toda a verdade a ser extrada, para no se dizer
extorquida pelo inquisidor, ainda que mediante tortura. O acusado era, portanto,
epistemologicamente, um inimigo do inquisidor que, na busca da verdade, poderia tortur-lo para obter a confisso ex ore rei.
Por sua vez, no modelo acusatrio, o acusado um sujeito de direito, a quem
se assegura a ampla defesa, com o direito de produzir provas aptas a demonstrar a
verso defensiva de um lado, sendo-lhe assegurado, de outro, o direito ao silncio,
eliminando qualquer dever de colaborar com a descoberta da verdade.
Constata-se que o processo penal brasileiro tem um estrutura eminentemente
acusatria, j que a fase preliminar de investigao no integra a instruo do processo. Nesse sentido, o inqurito policial uma fase meramente investigatria,
dispensvel, cuja nica finalidade fornecer ao titular da ao penal elementos suficientes para a formao da opinio delictis (opinio a respeito de delito) e o
consequente oferecimento da denncia.
Para Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly44, a atividade da
Polcia Judiciria tem por finalidade preparar uma futura ao penal, colhendo os primeiros elementos de informao e impedindo, por exemplo, que os vestgios do
crime desapaream, essa atribuio no se desenvolve em face de uma acusao
formal e tampouco pressupe a existncia de partes.
Sobre o tema, Danielle Souza de Andrade e Silva45 afirma que, embora
mantido o inqurito policial, est-se diante de um sistema acusatrio, pois o
verdadeiro processo de partes estaria regrado pela titularidade da ao penal
pblica concedida ao Ministrio Pblico (art. 129, I, da CF), desvinculado do Poder
Executivo (Captulo IV do Ttulo IV da Constituio), a constituicionalizao da
funo do advogado (art. 133, CF) e a instituio das defensorias pblicas (art. 134,
CF).
42 BADAR, op. cit, p. 88. 43 Ibid., p. 89. 44 DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de processo penal. 2. ed. So
Paulo: Atlas, 2001. p. 59. 45 SILVA, op. cit., p. 63-64.
34
O papel de acusar tocar unicamente ao Ministrio Pblico, ou ao querelante,
nas aes penais de iniciativa privada, ao passo que o juiz decidir a imputao
formulada, descabendo falar em julgamento por parte do acusador, ou em acusao de ofcio46.
Constata-se que o sistema acusatrio funda-se na existncia de vrios
sujeitos processuais, tendo cada qual funes distintas de acusao, defesa e
julgamento, sendo certo que a funo investigativa no pode ser atribuda ao
julgador.
Nesse sentido, Eugnio Pacelli de Oliveira e Douglas Fischer47 afirmam que o
"Poder Judicirio, em sistema processual penal acusatrio, isto , em um sistema no
qual as funes de acusar (da acusatrio) e de julgar so atribudas a rgos
distintos, no tem poderes investigatrios".
O sistema acusatrio se caracteriza por contar com dois elementos fixos, que
so: o princpio acusatrio e o fato de que somente o oferecimento da acusao que permite o incio de seu processo. Os demais elementos invocados pela doutrina
(por exemplo, os princpios da oralidade, contraditrio, publicidade e igualdade de
armas) so elementos variveis desse sistema48.
A jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal reconheceu a legitimidade do
Ministrio Pblico para promover, por autoridade prpria, investigaes de natureza
penal e fixou os parmetros da atuao do MP. Por maioria, o Plenrio negou provimento ao Recurso Extraordinrio no 593.72749, com repercusso geral
reconhecida. Com isso, a deciso tomada pela Corte ser aplicada nos processos
sobrestados nas demais instncias, sobre o mesmo tema.
Entre os requisitos, os ministros frisaram que devem ser respeitados, em
todos os casos, os direitos e garantias fundamentais dos investigados e que os atos
investigatrios necessariamente documentados e praticados por membros do MP
devem observar as hipteses de reserva constitucional de jurisdio, bem como as
46 SILVA, op. cit., p. 63-64. 47 OLIVEIRA, Eugnio Pacelli de; FISCHER, Douglas. Comentrios ao cdigo de processo penal
e sua jurisprudncia. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 48 ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princpios reitores.
Curitiba: Juru, 2008. p. 466. 49 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinrio RE 593727. Relator: Ministro
Gilmar Mendes. Julgamento em: 18 maio 2015. Publicado em: 8 set. 2015. Disponvel em: . Acesso em: 5 jan. 2015.
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciarepercussao
35
prerrogativas profissionais garantidas aos advogados, como o acesso aos elementos
de prova que digam respeito ao direito de defesa. Destacaram ainda a possibilidade
do permanente controle jurisdicional de tais atos. Do voto-vista do ministro Celso de Mello foi fixado a seguinte tese em
repercusso geral:
O MP dispe de competncia para promover, por autoridade prpria, e por
prazo razovel, investigaes de natureza penal, desde que respeitados os
direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado e qualquer pessoa sob investigao do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as
hipteses de reserva constitucional de jurisdio e, tambm, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso pas, os advogados (lei 8906/94, artigo 7, incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem
prejuzo da possibilidade sempre presente no Estado Democrtico de
Direito - do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente
documentados (smula vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituio.50
Ratifica-se que o modelo adotado no Brasil o acusatrio, visto que constata-
se o litgio entre a acusao e a defesa, disciplinado por um juiz imparcial e
independente em relao a acusador e acusado. Todavia, no h previso expressa na Constituio Federal de 1988 de que o
sistema adotado no Brasil seria o acusatrio. Mas tal circunstncia no impede que,
a partir da compreenso aberta e sistmica dos princpios, regras e valores insertos
na Carta dirigente, possa ser extrada concluso de que o sistema ptrio se pauta
pelo princpio acusatrio51.
O sistema acusatrio objetiva garantir aos cidados sua dignidade, ao estabelecer efeitos ticos e morais s normas jurdicas. Dessa forma, os legisladores 50 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinrio RE 593727. Relator: Ministro
Gilmar Mendes. Julgamento em: 18 maio 2015. Publicado em: 8 set. 2015. Disponvel em: . Acesso em: 5 jan. 2015.
51 FICHER, Douglas. O sistema acusatrio brasileiro luz da Constituio Federal de 1988 e o PL 156. Revista eletrnica do Ministrio Pblico Federal, v. 3, p. 1-23, 2011. Disponvel em: . Acesso em: 30 nov. 2015.
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciarepercussaohttp://www.prrj.mpf.mp.br/custoslegis/revista_2011/2011_Dir_Penal_fischer.pdf
36
repensaram sua maneira de criar leis e acabaram por excluir, modificar e criar novas
normas legislativas.
Antnio Scarance Fernandes52 analisa que na evoluo do relacionamento individuo-Estado houve necessidade de normas que garantissem os direitos
fundamentais do ser humano contra o forte poder estatal intervencionista. Para isso
os pases inseriram em suas Constituies regras de cunho garantista, que impem
ao Estado e prpria sociedade o respeito aos direitos individuais.
A Constituio brasileira de 1988 consagrou o sistema acusatrio e garantidor
dos direitos fundamentais do cidado, defendendo os princpios do contraditrio,
publicidade dos atos processuais, devido processo legal e ampla defesa. Essa
postura adotada pela Constituio implementa o que se entende por democracia, ou
seja, a garantia da sociedade que os direitos fundamentais sero preservados.
3.1 AS GARANTIAS INDIVIDUAIS NA CONFORMAO DO PROCESSO PENAL
MODERNO
Inicialmente, recomenda-se relembrar a diferena entre os termos direitos e
garantias, muito observada por vrios juristas. Segundo os ensinamentos de Jos Cirilo de Vargas53, os direitos so anteriores ao Estado e, por isso mesmo, apenas
reconhecidos, jamais outorgados; por sua vez, as garantias decorrem de
verdadeiras normas jurdicas, de leis positivas, de preceitos constitucionais que
asseguram o gozo dos direitos e preservam o indivduo contra o extravasamento do
legislador ordinrio, do juiz e dos rgos executivos.
Por sua vez, trata-se das garantias de direitos fundamentais, distinguindo-as
em dois grupos: garantias gerais e garantias constitucionais. As primeiras destinam-
se a confirmar a eficcia social daqueles direitos, ao assegurarem a estrutura que
suportar sua existncia real. As garantias constitucionais, por conseguinte,
consistem nas instituies, determinaes e procedimentos, mediante os quais a
52 FERNANDES, Antnio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed. So Paulo: RT, 2002a.
p. 13. 53 VARGAS, Jos Cirilo de. Processo Penal e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey,
1992. p. 49.
37
prpria Constituio tutela a observncia ou, em caso de inobservncia, a
reintegrao dos direitos fundamentais.
As garantias constitucionais dividem-se em gerais (que protegem o regime de respeito pessoa humana em toda sua dimenso atravs de instituies
constitucionais, que impedem o arbtrio) e especiais (que so tcnicas e
mecanismos que limitam a atuao dos rgos estatais e particulares, dando
proteo eficcia, aplicabilidade e inviolabilidade dos direitos fundamentais de
modo especial). So exemplos de garantias constitucionais especiais os remdios
constitucionais, que so, na verdade, instrumentos de proteo processual dos
direitos fundamentais, para serem usados quando aqueles direitos so ou esto na
iminncia de serem violados.
3.1.1 O Devido Processo Legal
O devido processo legal to antigo que remonta ao perodo medieval. No
sculo XIII, em 15 de junho do ano de 1215, denominou-se law of the land a Magna
Carta do rei Joo Sem Terra. Para Nelson Nery Jnior54, tal princpio foi criado para
ser garantia dos nobres contra os abusos da coroa inglesa, representando a garantia principal do indivduo e da coletividade contra o arbtrio do Estado.
O processo penal foi erigido categoria de direito fundamental do cidado
contra o absolutismo do poder de punir por meio do Bill of Rights55 ingls, como
garantia contra os abusos praticados sob o manto do exerccio do poder de punir56.
Segundo Jorge Miranda57, no reinado de Eduardo III, um legislador
desconhecido editou no Parlamento Ingls, em 1354, uma lei que se utilizou pela primeira vez do termo due process of law. O devido processo legal clusula
constante e notvel pela sua relevncia constitucional nas instituies saxnicas;
sempre esteve presente na legislao das colnias inglesas da Amrica do Norte, 54 NERY JNIOR, Nelson. Princpios do Processo Civil na Constituio Federal. 6. ed. So
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 21. 55 A Declarao de direito de 1689 (em ingls Bill of Rights of 1689) um documento feito na
Inglaterra pelo Parlamento que determinou, entre outras coisas, a liberdade, a vida e a propriedade privada, assegurando o poder do Parlamento na Inglaterra.
56 SILVA JNIOR, op. cit., p. 418. 57 MIRANDA, Jorge. Textos histricos do direito constitucional. 2. ed. Lisboa: Imprensa Casa da
Moeda, 1990. p. 15.
38
tornando-se mais tarde parte da Constituio dos Estados e da Federao dos
Estados Unidos, que o recepcionaram em sua ntegra e o aperfeioaram.
A Declarao de Direitos de Virgnia (1776) tratava do princpio na seco 8 e foi a pioneira em utilizar em uma constituio escrita tal garantia aos direitos
individuais. Segundo esta,
em todo processo criminal includos naqueles em que se pede a pena
capital, o acusado tem direito de saber a causa e a natureza da acusao,
ser acareado com seus acusadores e testemunhas, pedir provas em seu favor e a ser julgado, rapidamente, por um jri imparcial de doze homens de
sua comunidade, sem o consentimento unnime dos quais, no se poder consider-lo culpado; tampouco pode-se obrig-lo a testemunhar contra si prprio; e que ningum seja privado de sua liberdade, salvo por mandado
legal do pas ou por julgamento de seus pares. 58
Guido Fernando Silva Soares59 afirma que outras constituies estaduais
americanas (Delaware 1776, Maryland 1776, Carolina do Norte 1776,
Massachussetts 1780, New Hampshire 1784) tambm consagraram o princpio antes da Constituio dos Estados Unidos. As dez primeiras emendas da Constituio dos Estados Unidos, denominadas Bill of Rights, foram editadas em
1791, na Filadlfia, e faziam constar na Emenda V o princpio do devido processo
legal.
No Brasil, imperioso registrar que na histria das constituies, desde a
imperial de 1824, todas elas tenham se ocupado de declarar os direitos
fundamentais, a maioria deles referentes ao processo penal, nunca havia sido
proclamada, expressamente, a clusula do devido processo legal, estando implcito,
como derivao das vrias garantias processuais de ordem criminal previstas nas
constituies. Registra-se a sua introduo explcita no direito ptrio, tal como
consta na Carta americana, a partir da Constituio de 1988 que evidenciou como uma garantia prevista no art. 5, inc. LIV. 58 VIRGINIA (Estado). Declarao de direitos do bom povo de Virgnia (1776). 1776. Disponvel
em: . Acesso em: 1 jun 2015.
59 SOARES, Guido Fernando Silva. Common Law. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 106.
http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%
39
Trata-se de garantir um processo legitimamente institudo e regularmente
desenvolvido, observando a plena contraditoriedade entre as partes, ou seja, um
contraditrio no somente formal, mas tambm substancial, no qual as partes sejam cientificadas da iniciativa judicial e postas em condio de cumprir as determinaes
tidas pelo rgo jurisdicional como necessrias.
possvel dividir o due process of law em dois aspectos: o substantive due
process e o procedural due process. O devido processo legal substantivo ou material
uma forma de controle de contedo das decises; segundo Carlos Alberto de
Siqueira Castro,60 "capaz de condicionar, no mrito, a validade das leis e da
generalidade das aes (e omisses) do Poder Pblico". J o devido processo legal,
em sua fase processual, um princpio sntese que engloba um conjunto de
garantias processuais mnimas, como o contraditrio, o juiz natural, a durao
razovel do processo e outras61.
Sobre o contedo do devido processo legal, a jurisprudncia do STF no julgamento do Habeas Corpus no 96.905/RJ decidiu que:
A garantia constitucional do "due process of law" abrange, em seu contedo material, elementos essenciais sua prpria configurao, dentre os quais
avultam, por sua inquestionvel importncia, as seguintes prerrogativas: (a)
direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judicirio); (b) direito citao e ao conhecimento prvio do teor da acusao; (c) direito a um
julgamento pblico e clere, sem dilaes indevidas; (d) direito ao
contraditrio e plenitude de defesa (direito autodefesa e defesa tcnica); (e) direito de no ser processado e julgado com base em leis ex post facto; (f) direito igualdade entre as partes (paridade de armas e de
tratamento processual); (g) direito de no ser investigado, acusado processado ou condenado com fundamento exclusivo em provas revestidas
de ilicitude, quer se trate de ilicitude originria, quer se cuide de ilicitude
derivada (RHC 90.376/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 93.050/RJ,
Rel. Min. CELSO DE MELLO); (h) direito ao benefcio da gratuidade; (i) direito observncia do princpio do juiz natural; (j) direito de no se
autoincriminar nem de ser constrangido a produzir provas contra si prprio (HC 69.026/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 77.135/SP, Rel. Min.
60 CASTRO, Carlos Alberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na
nova Constituio do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p. 383. 61 GOMES, Luiz Flvio. Presuno de violncia nos crimes sexuais. So Paulo: RT, 2001. p. 99.
40
ILMAR GALVO - HC 83.096/RJ, Rel. Min. ELLEN GRACIE - HC 94.016/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 99.289/RS, Rel. Min. CELSO
DE MELLO); (l) direito de ser presumido inocente (ADPF 144/DF, Rel. Min.
CELSO DE MELLO) e, em consequncia, de no ser tratado, pelos agentes do Estado, como se culpado fosse, antes do trnsito em julgado de eventual
sentena penal condenatria (RTJ 176/805-806, Rel. Min. CELSO DE
MELLO); e (m) direito prova. 62
Para Jos Herval Sampaio Jnior63, o princpio do devido processo legal
assume dentro do processo penal uma importncia transcendental que delineia todo
o seu agir, limitando inclusive a atividade do legislador. Portanto deve a lei se
conformar aos direitos e garantias fundamentais do cidado, no havendo lugar para
interferncia no ncleo protetivo da liberdade do agente.
Marco Antnio Marques da Silva64 corrobora tal entendimento ao afirmar que "o devido processo legal no se destina somente ao intrprete da lei, mas j informa
a atuao do legislador, impondo-lhe a correta e regular elaborao da lei
processual penal". Em outras palavras, o juiz est submetido e deve submeter as
partes norma processual penal vigente, o que caracteriza a garantia constitucional.
O surgimento do devido processo legal teve como funo precpua evitar as
arbitrariedades por parte do Estado e da Administrao Pblica, que no
respeitavam regras mnimas para a consecuo de seus interesses.
O devido processo legal no mbito do direito processual penal pode ser
verificado diante das seguintes garantias:
a) Acesso Justia Penal: considerado tanto sob o aspecto econmico, como sob o tcnico, expresso nos incisos LXXIV e LXXVII do art. 5 da CF;
compreende a garantia de assistncia jurdica gratuita aos necessitados,
promovendo o princpio da igualdade, alm da imprescindibilidade de atuao
62 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus HC 96905/RJ. Relator: Ministro Celso de
Mello. Julgamento em: 25 ago. 2009. Publicado em: 3 out. 2011b. Disponvel em: . Acesso em: 4 jan. 2016.
63 SAMPAIO JNIOR, Jos Herval. Processo constitucional: nova concepo de jurisdio. So Paulo: Mtodo, 2008. p. 137.
64 SILVA, Marco Antnio Marques da. Acesso Justia Penal e Estado Democrtico de Direito. So Paulo: Juarez de Oliveira, 2001. p. 17
http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28HC%24.SCLA.+E+96905.Nhttp://tinyurl.
41
tcnica, uma vez que essa assistncia jurdica deve ser promovida por
profissional devidamente habilitado para tanto;
b) Juiz Natural em matria penal: presente nos incisos XXXVII, XXXVIII e LIII do art. 5 da CF, consubstancia-se por meio da pr-constituio de rgo
jurisdicional competente, o juiz natural. Assim o indivvuo envolvido numa
persecutio criminis s pode ser validamente processado e julgado por agente
do Poder Judicirio autntico, ou seja, legtimo e regularmente investido no
exerccio da jurisdio penal;
c) Tratamento paritrio dos sujeitos parciais do processo penal: disposto no caput do artigo 5 da CF, que dispe sobre o direito igualdade de todos
perante a lei, alm do inciso I, que sobreleva a igualdade de gneros. Essa
garantia impe a necessidade de haver equilbrio de situaes entre os ofcios
da acusao e da defesa, em uma situao de reciprocidade e no apenas de
mera igualdade formal. Acentua, assim, a necessidade de a equidistncia do juiz ser adequadamente temperada, merc da atribuio ao magistrado de
poderes mais amplos, a fim de estimular a efetiva participao das partes no
contraditrio e, consequentemente, sua colaborao e cooperao no justo
processo;
d) Plenitude de defesa do indiciado, acusado, ou condenado, com todos os
recursos a ela inerentes: presente nos incisos LV e LVI do art. 5 da CF. O direito de defesa, no um privilgio, tampouco uma simples conquista da
humanidade, mas um autntico direito originrio e, por isso, inalienvel.
Abrange no s a defesa em seu aspecto subjetivo, consistente na faculdade
de, em abstrato, infirmar a imputao deduzida, mas tambm o objetivo, que
conduz defesa concretamente exercida, consubstanciada na autodefesa
(por meio de interrogatrio, participao na audincia, etc.), na defesa tcnica
e no direito de produzir provas lcitas e o direito de essas provas serem
apreciadas e influrem no convencimento do julgador;
e) Publicidade dos atos processuais penais e a motivao dos atos decisrios
penais: presentes nos incisos LX do art. 5 e IX do art. 93, tambm so meios
para que possa oferecer e garantir a amplitude da defesa do imputado. Alm
disso, por meio da motivao que o magistrado mostra como apreendeu os fatos e interpretou a lei que sobre eles incide, propiciando, com a
indispensvel clareza, lgica e preciso a perfeita compreenso da
42
abordagem de todos os pontos questionados e, consequentemente, a
concluso atingida;
f) Fixao de prazo razovel de durao do processo penal: compreende no s a obrigao de que haja um prazo, mas tambm que esse prazo seja
adequado para a parte desenvolver a sua atividade e, em relao ao
acusado, para que se realize a ampla defesa garantida pela Constituio;
g) Legalidade da execuo penal: garantia que se faz com ela indispensvel e
inarredvel complemento de todas as outras, reiterveis no processo de
execuo da sentena penal condenatria. Uma vez transitada em julgado, a
sentena assume a natureza de ttulo executivo, sendo o nico pressuposto
da execuo penal, reclamando, portanto, estrita observncia, no s do seu
prprio contedo, bem como das disposies legais e regulamentares
atinentes ao respectivo procedimento.
Assim, com base nas garantias acima expostas, pode-se inferir que a pessoa
fsica integrante da coletividade no pode ser privada de sua liberdade ou de outros
bens a ela correlatos sem o devido processo legal em que se realize a ao
judiciria.
E tudo isso com o pleno vigor de trs postulados bsicos, quais sejam, os
atinentes inadmissibilidade de sujeio punio estatal sem que tenha ocorrido a prtica de fato tpico, antijurdico e culpvel, e haja, correlatamente, indcios de
autoria; jurisdicionalizao da imposio de pena ou de medida de segurana;
vedao de realizao satisfativa do ius puniendi provisria ou definitivamente, antes
de transitada em julgado sentena condenatria.
O devido processo penal, ao tempo em que regula a jurisdio no mbito criminal, torna a persecutio criminis juridicamente vinculada por padres normativos
que, consagrados pela Constituio e pelas leis, traduzem limitaes significativas
ao poder do Estado65.
Portanto, pode-se concluir que a garantia constitucional do devido processo
legal, especificada no processo penal, reclama, para a sua efetivao, que o
procedimento em que este se materializa, observe rigorosamente todas as
formalidades prescritas em lei, para o perfeito atingimento de sua finalidade
65 SILVA JNIOR, op. cit., p.413.
43
solucionadora de conflito de interesses socialmente relevantes, quais sejam, o
punitivo e o de liberdade.
3.1.2 Presuno da No-culpabilidade
O reconhecimento da autoria de uma infrao criminal pressupe sentena
condenatria transitada em julgado, conforme previso expressa do art. 5, inc. LVII
da CF. Antes deste marco, presume-se inocente o ru, cabendo a acusao o nus
probatrio desta demonstrao, alm disso, o cerceamento cautelar da liberdade s
pode ocorrer em situaes excepcionais e de estrita necessidade.
O constituinte, segundo ensina Walter Nunes da Silva Jnior66 foi
extremamente feliz, ao cuidar de utilizar a expresso no-culpabilidade, evidenciando que o acusado no pode sofrer punies antecipadas, visto que s
admissvel a declarao de sua culpabilidade havendo a certeza (verdade real), ou
seja, da leitura do princpio se compreende que a adoo de providncias contrrias
ao acusado se justifica em uma verdade material, e no apenas formal, pois, na
dvida, a deciso deve ser em prol do incriminado.
Como decorrncia desse princpio, para que seja autorizada uma deciso contrria ao acusado, exige-se que o juiz tenha apoio em provas inquebrantveis,
que dissipem eventuais dvidas quanto ao acerto da posio adotada.67
No processo penal constitucional a regra a liberdade e o encarceramento,
antes de transitar em julgado a sentena condenatria situao excepcional e de
estrita necessidade. O STF no julgamento do Habeas Corpus 84.078 firmou o entendimento que a
presuno de no-culpabilidade prevalece at o trnsito em julgado da sentena
final, ainda que pendente recurso especial e/ou extraordinrio, sendo que a
necessidade do crcere cautelar pressupe devida demonstrao.
Na apresentao do relatrio do citado julgado o Ministro Eros Grau assim se
manifestou:
66 SILVA JNIOR, op. cit., p. 533. 67 Ibid., p. 538.
44
(...) A Lei de Execuo Penal condicionou a execuo da pena privativa de liberdade ao trnsito em julgado da sentena condenatria. A Constituio
do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5, inciso LVII, que "ningum ser considerado culpado at o trnsito em julgado de sentena penal condenatria". 2. Da que os preceitos veiculados pela Lei n. 7.210/84, alm de adequados ordem constitucional vigente, sobrepem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. 3. A priso antes do
trnsito em julgado da condenao somente pode ser decretada a ttulo
cautelar. 4. A ampla defesa, no se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinria. Por isso a execuo da sentena aps o julgamento do
recurso de apelao significa, tambm, restrio do direito de defesa,
caracterizando desequilbrio entre a pretenso estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretenso. 5. Priso temporria, restrio
dos efeitos da interposio de recursos em matria penal e punio
exemplar, sem qualquer contemplao, nos "crimes hediondos" exprimem muito bem o sentimento que EVANDRO LINS sintetizou na seguinte assertiva: "Na realidade, quem est desejando punir demais, no fundo, no
fundo, est querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao prprio delinqente". 6. A antecipao da execuo penal, ademais de incompatvel
com o texto da Constituio, apenas poderia ser justificada em nome da
convenincia dos magistrados --- no do processo penal. A prestigiar-se o princpio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] sero
inundados por recursos especiais e extraordinrios e subseqentes agravos e embargos, alm do que "ningum mais ser preso". Eis o que poderia ser
apontado como incitao "jurisprudncia defensiva", que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A
comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF no
pode ser lograda a esse preo. (...)
Da porque a Corte decidiu, por unanimidade, sonoramente, no sentido do
no recebimento do preceito da lei estadual pela Constituio de 1.988, afirmando de modo unnime a impossibilidade de antecipao de qualquer
efeito afeto propriedade anteriormente ao seu trnsito em julgado. A Corte
que vigorosamente prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade no a deve negar quando se trate da garantia da
liberdade, mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; a
ameaa s liberdades alcana de modo efetivo as classes subalternas. 8. Nas democracias mesmo os criminosos so sujeitos de direitos. No
45
perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. So pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmao constitucional da sua dignidade (art. 1, III, da Constituio do Brasil). inadmissvel a sua excluso social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstncias, as singularidades de cada
infrao penal, o que somente se pode apurar plenamente quando
transitada em julgado a condenao de cada qual Ordem concedida.68
Para Beccaria69, no se pode chamar um homem de ru antes da sentena
do juiz, nem a sociedade pode retirar-lhe a proteo pblica, seno quando tenha
decidido que ele violou os pactos segundo os quais aquela proteo lhe foi
outorgada.
Esse direito de no se considerado culpado, enquanto ainda h dvidas se o
ru inocente tambm foi afirmado no art. 8 da Declarao de Direitos da Virgnia, de 177670, bem como acolhido, na Declarao Universal dos Direitos do Homem e
do Cidado71, de 1789, com previso expressa no art. 6.
A presuno da no-culpabilidade um direito fundamental multifacetrio,
que se manifesta como regra de julgamento, regra de processo e regra de
tratamento, ou seja, cria-se um amplo espectro de garantias processuais que
beneficiam o acusado durante as investigaes e a tramitao da ao penal,
porm, sem impedir que o Estado cumpra sua misso de investigar e punir os
criminosos, fazendo uso de todos os instrumentos de persecuo previstos em lei,
que assegure o combate legtimo e efetivo da criminalidade72.
68 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 84.078/MG. Relator: Ministro Eros Grau.
Julgamento em: 5 fev. 2009. Publicado em: 3 mai. 2011. Disponvel em: . Acesso em: 4 mar. 2016.
69 BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. Traduo de Lcia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. So Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 55.
70 VIRGINIA (Estado). Declarao de direitos do bom povo de Virgnia (1776). 1776. Disponvel em: . Acesso em: 1 jun 2015.
71 FRANA. Declarao Universal dos Direitos do Homem e do Cidado (1789). 1789. Disponvel em: . Acesso em: 1 jun 2015.
72 SARMENTO, George. A presuno de inocncia no sistema constitucional brasileiro. In: Direitos fundamentais na Constituio de 1988: estudos comemorativos aos seus vinte anos. Rosmar Antonni Rodrigues Cavalcanti de Alencar (org.). Porto Alegre: Nria Fabris, 2008. p. 242-243.
http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%2884078.NUME.+OU+84078.http://tinyurl.com/peb5y7bhttp://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-
46
O reconhecimento desse verdadeiro postulado civilizatrio teve reflexos
importantes na formulao das supervenientes normas processuais, especialmente
das que vieram tratar da produo das provas, da distribuio do nus probatrio, da legitimidade dos meios empregados para comprovar a materialidade e a autoria dos
delitos.
Tal ideologia agrega ao processo penal parmetros para efetivao de
modelo de justia racional, democrtico e de cunho garantista, com destaque para a
observncia e proteo do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditrio,
do juiz natural, da inadmissibilidade de obteno de provas por meio ilcitos, da no
auto-incr