UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · a narrativa de experiências esportivas, a...
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NATAL/RN2014
LIEGE MONIQUE FILGUEIRAS DA SILVA
Esportecomo experiência
estética e educativa:uma abordagemfenomenológica
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTECENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃONÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA
ESTRATÉGIAS DO PENSAMENTO E PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA
ESTRATÉGIAS DO PENSAMENTO E PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO
LIEGE MONIQUE FILGUEIRAS DA SILVA
Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa:
uma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológica
NATAL – RN
2014
LIEGE MONIQUE FILGUEIRAS DA SILVA
Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa:
uma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológica
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do título de doutor em Educação, sob a orientação da Profa. Dra. Karenine de Oliveira Porpino.
NATAL – RN
2014
Catalogação da Publicação na Fonte.
UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA
Silva, Liege Monique Filgueiras da.
Esporte como experiência estética e educativa: uma abordagem
fenomenológica/ Liege Monique Filgueiras da Silva. - Natal, RN, 2014.
189 f. : il.
Orientadora: Profa. Dra. Karenine de Oliveira Porpino.
Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-graduação em
Educação.
1. Esporte – Tese. 2. Educação física - Tese. 3. Estética – Tese. 4. Corpo –
Tese. I. Porpino, Karenine de Oliveira. II. Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. III. Título.
RN/BS/CCSA CDU 796.01:37
LIEGE MONIQUE FILGUEIRAS DA SILVA
Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa:
uma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológica
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do título de doutor em Educação, sob a orientação da Profa. Dra. Karenine de Oliveira Porpino.
Aprovado em: _____ / _____ / _____
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________ Dra. Karenine de Oliveira Porpino – UFRN (Presidente da banca)
_______________________________________________________ Dra. Terezinha Petrucia da Nóbrega – UFRN (Examinadora interna)
_______________________________________________________ Dr. José Pereira de Melo – UFRN (Examinador interno)
_______________________________________________________
Dr. Iraquitan de Oliveira Caminha – UFBP (Examinador externo)
_______________________________________________________ Dr. Edilson Fernandes de Souza – UFPE (Examinador externo)
_______________________________________________________ Dr. Eduardo Anibal Pellejero - UFRN (Suplente interno)
_______________________________________________________ Dra. Elaine Melo de Brito Costa - UEPB (Suplente externo)
Aos meus pais e a minha orientadora Karenine Porpino, pelo apoio incondicional, força e confiança sem igual. A vocês, minha eterna gratidão, admiração, amor e respeito.
Ao quebrar o silêncio a linguagem realiza o que o silêncio pretendia e não conseguiu obter.
Maurice Merleau-Ponty
Agradecimentos
Embora a elaboração de uma tese seja, pela sua finalidade acadêmica, um
trabalho autoral, esta escrita está longe de ser o resultado de uma atividade
individual. Certamente, ela se concretizou com a colaboração de inúmeras pessoas,
que, de modos diferentes, foram importantes para que eu conseguisse chegar até
aqui. E, por essa razão, desejo expressar os meus sinceros agradecimentos:
A Deus, por me amparar nos momentos difíceis, por me mostrar os caminhos
nas horas incertas e por me haver proporcionado a felicidade de encarar com
coragem e determinação a concretização deste sonho.
A painho, Luiz Silva, homem valente que nos últimos anos lutou pela vida.
Obrigada por todo investimento e toda dedicação que, em sua capacidade de amor
maior, proveu a mim o seu melhor. Viva muito que nossa estrada é longa. À mainha,
Rosário Sena, sua valentia em não desistir dos seus sonhos e audácia diante da
vida são exemplos para mim. Obrigada por sua alegria, sabedoria e palavras de
incentivo que contagiam meu coração e iluminam meu caminhar. Eu amo vocês!
Aos meus familiares e amigos, que, entendendo minhas ausências em muitos
momentos, sempre incentivaram meus estudos e a concretização desta tese. E
ainda, meus filhos peludos, Romeu e Kika, por alegrarem os meus dias e me
fazerem companhia quando, inevitavelmente, eu precisava estar somente com
vocês.
Ao meu grande mestre e amigo, professor Flávio Tinôco, por ter me
possibilitado descobrir a beleza e o prazer de jogar handebol. Às minhas parceiras
de quadra, pelos momentos compartilhados, pelos confrontos e pelas alegrias. E
não menos importante, a todos os clubes onde atuei, técnicos com que convivi, os
torcedores dos mais diversos e a todas as adversárias, pois, mesmo sem saber,
vocês marcaram a minha existência e me fizeram escrever esta tese.
Às professoras Ceiça Alves, Maria Pinto, Ana Maria, Rosinete e Dalvanir da
Escola Municipal Angélica Moura e do CMEI José Carlos, pela amizade e pelo apoio
inestimável na realização desta pesquisa.
A Karenine Porpino, minha orientadora desde a graduação, obrigada pelo seu
conhecimento, sabedoria e paciência de me fazer ir além do que eu imaginava. Você
me fez ser uma pessoa melhor, uma profissional mais dedicada e uma pesquisadora
mais sensível e apaixonada. Obrigada por ter acreditado em mim quando nem eu
mesma acreditava. Hoje, fechamos juntas um ciclo de trabalho que certamente,
permanecerá aberto à amizade e às novas parcerias que daqui para a frente espero
estarem abertas para nós. Amo você!
À professora Petrucia Nóbrega, pessoa que admiro pelo conhecimento,
profissionalismo e generosidade em compartilhar tudo o que sabe. Obrigada por ter
mudado minhas concepções e ter transformado meus objetivos profissionais ainda
no início da graduação e por ter contribuindo sempre na minha formação.
Certamente, você faz parte desta escrita. Aos professores Iraquitan Caminha e José
Pereira, pelas desveladoras contribuições ao longo desse processo. Esta escrita
também tem muito de cada um de vocês. E ainda, aos professores Edilson Costa,
Eduardo Pellejero e Elaine Costa pela disponibilidade em compartilhar comigo esta
escrita. Sinto-me privilegiada.
Ao Grupo ESTESIA e ao laboratório VER do Departamento de Educação
Física da UFRN, na figura da professora Rosie Marie, pelo apoio nessa caminhada,
pela infraestrutura, pelo acesso à leitura diversa e pela oportunidade de participar
das valiosas atividades tão significativas na minha formação e tão necessárias para
a elaboração desta tese. E, ainda, aos demais parceiros institucionais pelos
seminários realizados na UFRN com professores Jacques Gleyse (Université de
Montpellier) e Carmem Soares (UNICAMP) e na UFPB com os demais colegas e
professores, os quais consistiram em uma parte muito importante do
desenvolvimento desta tese. Muito Obrigada!
À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em especial, ao Programa
de Pós-graduação em Educação, alunos, funcionários e professores, pelo
compromisso, credibilidade e seriedade na formação de mestres, doutores e
pesquisadores.
À Capes, pela bolsa de estudos que possibilitou o apoio financeiro necessário
para a realização desta tese.
À Andreia e a Fernando, pelo brilhante serviço profissional na revisão e arte
do trabalho.
Enfim, a todos os que, de forma direta ou indireta, contribuíram para a
realização deste trabalho. Muito obrigada!
Resumo
Este trabalho trata do esporte como possibilidade de vivência do sensível e defende a tese de que a prática esportiva é uma experiência estética e educativa, em que se opera o sensível pelas sensações reverberadas no corpo do atleta, na dimensão do vivido. Buscamos responder nesta pesquisa as seguintes questões: O que sensibiliza o atleta na vivência do esporte? Quais são os sentidos e os significados vividos no esporte que fazem o atleta vivenciar essa prática? Como a experiência do atleta pode ser pensada como educação? Objetivamos discutir o esporte a partir da dimensão do vivido, buscando compreender os significados conferidos à prática esportiva e à experiência estética do atleta como educação. Para traçarmos essa argumentação, o enfoque da tese é de natureza teórico-filosófica, pautada em pensamentos como os de Merleau-Ponty, Walter Benjamin, Marcel Mauss e Friedrich Schiller. Para tal, apoiamo-nos na fenomenologia do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, tendo como referência o mundo vivido do atleta e a experiência da prática esportiva como campo do sensível. Iniciamos a reflexão com a narrativa de experiências esportivas, a partir de cinco elementos estéticos: tempo-espaço do corpo em quadra, o olhar no contexto esportivo, o contato com o adversário, a vitória e a derrota e o gesto técnico. Junto a isso, fizemos uma apreciação estética dos filmes “Olympia” e “Invictus”, por meio dos quais discutimos três categorias temáticas: a sensibilidade, as emoções e o paradoxo do jogo. Posteriormente, apresentamos o esporte como potencializador de uma educação sensível, manifesta nos processos corporais, do corpo em movimento. Conforme ficou evidenciado ao longo deste estudo, buscamos o alcance de uma reflexão sobre o esporte centrada no corpo do atleta como abertura ampla dos sentidos para as coisas do sensível, cujo viver estético transpõe qualquer concepção determinista, que resuma o mundo esportivo à mercantilização, à disciplinarização e ao mecanicismo. Esse entendimento aponta caminhos para a Educação Física, que, tendo como um dos conteúdos o esporte, pode permitir aos alunos o prazer de participar dos gestos construídos, coletivamente, por todos que se colocam em jogo, incorporando a capacidade do repetir, do refazer e do brincar como campo de possibilidades de uma educação que é móvel, sensível e se inscreve no corpo em movimento.
Palavras-chave: Esporte. Educação. Corpo. Estética.
Abstract This paper deals with sport as a possibility of disclosing the sensible, and defends the idea that being a sportsperson equals living an aesthetic and educative experience in which one can interacts with the sensible by the athletic body’s reverberation of sensations in the dimension of the experienced. We try to answer, in our work, basically three questions: what moves the athlete when practicing a sport? Which are the meanings and motivations for the practice of sports? At what measure the athlete’s experience gains an educational character? Sport is debated in this work as an extension of the living, as long as it tries to understand the meanings inherent to sport itself as well as to the sportive experience as a kind of education. In support of our argument, we give a theoretic and philosophical approach to our thesis, based on thinkers like Maurice Merleau-Ponty, Walter Benjamin, Marcel Mauss and Friedrich Schiller. For this purpose, we get support on the phenomenology of the French philosopher Maurice Merleau-Ponty. Our reference is the living world of the athlete and his experience as a field of the sensible. Our point of departure is the analysis of the narratives of sport experiences, including five aesthetic elements; time and space of the body in the sports courts; the look on the sportive context; the contact with the adversary; victory and defeat; the technical gesture. Besides it, we worked out an aesthetic evaluation of the movies “Olympia” and “Invictus”, what let us discuss three thematic categories: sensibility, emotions and the play paradox. Subsequently, we point sport as an optimizer of the sensible education, present on the body’s processes, like the body in movement. It was also made clear along this paper that we tried to accomplish an analysis on sports centered in the athlete’s body as an outfit of the senses to things related to the sensible, whose aesthetic experience overpasses any deterministic conception that should sum up the sportive world to mercantilization, discipline practices and mechanicism. This approach franchises gateways to a Physical Education which, containing sports as one of its support, let pupils enjoy the pleasure of constructing common objectives, incorporating the capacity of replicating, re-making and playing as a field of possibilities offered by an education characterized as being moving, sensible and fitful to a body in movement. Key-words: Sport. Education. Body. Aesthetics.
Resumen El presente trabajo trata sobre el deporte como posibilidad de vivencia del sensible y defiende la tesis de que la práctica deportiva es una experiencia estética y educativa en la cual se opera lo sensible por medio de las sensaciones reverberadas en el cuerpo del atleta, en la dimensión del vivido. El estudio busca responder a las siguientes cuestiones: ¿Que cosa sensibiliza el atleta en la vivencia del deporte? ¿Cuáles son los sentidos y los significados vividos en el deporte que hacen los atletas tener vivencia de esas prácticas? ¿Como la experiencia del atleta puede ser pensada como educación? Discutimos sobre el deporte desde la dimensión del vivido, tratando de comprender los significados conferidos a la práctica deportiva y a la experiencia estética del atleta como educación. Para impulsar ese argumento, nuestra tesis presenta un enfoque de naturaleza teórico-filosófica, asentado en pensamientos de Merleau-Ponty, Walter Benjamin, Marcel Mauss y Friedrich Schiller. Para ello nos basamos en la fenomenología del filósofo francés Maurice Merleau-Ponty, teniendo por referencia el mundo vivido del atleta y la experiencia de la práctica deportiva como campo del sensible. Comenzamos la reflexión con la narrativa de experiencias deportivas desde cinco elementos estéticos: tiempo-espacio del cuerpo en la cuadra, la mirada en el contexto deportivo, contacto con el adversario, la victoria y la derrota, y el gesto técnico. Junto a eso hicimos una evaluación estética de los filmes “Olympia” e “Invictus”, y por medio de ella hemos discutido sobre tres categorías temáticas: la sensibilidad, las emociones y el paradojo del juego. Después presentamos el deporte como potenciador de una educación sensible, manifiesta en los procesos corporales, del cuerpo en movimiento. Como ya se ha señalado en el curso de este estudio, buscamos el alcance de una reflexión sobre el deporte centrada en el cuerpo del atleta como apertura amplia de los sentidos para las cosas del sensible cuyo vivir estético transpone cualquier concepción determinista que resuma el mundo deportivo a la mercantilización, la disciplinarización y al mecanicismo. Ese entendimiento apunta caminos para la Educación Física que, tiendo como uno de sus contenidos el deporte, pueda permitir a los estudiantes el placer de participar de los gestos construidos colectivamente por todos que se ubican en juego, incorporando la capacidad del repetir, del rehacer y del jugar como campo de posibilidades de una educación que es mueble, sensible y se inscribe en el cuerpo en movimiento. Palabras-claves: Deporte. Educación. Cuerpo. Estética.
Lista de Fotografias
Fotografia 01 – Infinidade de lembranças
Fonte: Arquivo da autora, 1998 ------------------------------------------------------------------- 37
Fotografia 02 – Tempo-espaço do corpo
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 42
Fotografia 03 – O olhar que habita o jogo
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 50
Fotografia 04 – Contato com as adversárias
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 62
Fotografia 05 – O peso da derrota
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 71
Fotografia 06 – Pan-americano 2001
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 72
Fotografia 07 – A leveza da vitória
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 73
Fotografia 08 – Gesto técnico do arremesso
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 82
Fotografia 09 - Expressões do arremesso
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 83
Fotografia 10 – Salto para o gol
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 84
Fotografias 11 e 12 – Nelson Mandela e François Pienaar
Fonte: Invictus. Cena 5, 2009 --------------------------------------------------------------------- 99
Fotografias 13 e 14 – Equipe All Blacks
Fonte: Invictus, Cena 22, 2009 ----------------------------------------------------------------- 101
Fotografias 15 e 16 – Equipe Sprinboks
Fonte: Invictus, Cena 22, 2009 ----------------------------------------------------------------- 101
Fotografias 17 e 18 – Capitão Pienaar incentivando sua equipe
Fonte: Invictus, Cena 24, 2009 ----------------------------------------------------------------- 102
Fotografias 19 e 20 – Deuses gregos
Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 1, 1938 -------------------------------------------- 103
Fotografias 21 e 22 – Discóbulo vivificando
Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 2, 1938 -------------------------------------------- 104
Fotografias 23 e 24 – Performance e passagem da tocha olímpica
Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 3, 1938 -------------------------------------------- 104
Fotografias 24 e 25 – Atleta negro Jesse Owens
Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 9, 1938 ---------------------------------------------- 106
Fotografias 26 e 27 – Provas na terra
Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 5, 1938 -------------------------------------------- 107
Fotografias 28 e 29 – Provas no ar e nas águas
Fonte: “Olympia”, Festa da beleza, cena 11, 1938 ---------------------------------------- 108
Fotografias 30 e 31 – Lampejos de emoção
Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 6, 1938 -------------------------------------------- 108
Fotografias 32 e 33 – Espectadores brancos e negros
Fonte: “Olympia”, cena 5, 2009 ----------------------------------------------------------------- 114
Fotografias 34 e 35 – Atuação coletiva dos esportistas e dos espectadores
Fonte: “Olympia”, cena 26, 2009 --------------------------------------------------------------- 115
Fotografias 36 e 37 – Vibração pela ação realizada
Fonte: “Olympia”, Festa da beleza, cena 9, 1938 ----------------------------------------- 116
Fotografias 38 e 39 – Gestos de contenção e evasão
Fonte: “Olympia”, Festa da beleza, cena 4, 1938 ------------------------------------------ 117
Fotografias 40 e 41 – Duelo dos barcos e das luvas
Fonte: “Olympia”, Festa da beleza, cena 10, 1938 ---------------------------------------- 118
Fotografias 42 e 43 – Atleta mobilizado pelo jogo
Fonte: “Invictus”, cena 25, 2009 --------------------------------------------------------------- 128
Fotografias 44 e 45 – Roupas, técnicas e equipamentos da época do filme “Olympia”
Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 7, 1938 ------------------------------------------- 131
1. Entrando em quadra ______________________________________ 15
Início do jogo ------------------------------------------------------------------------------- 17 Regras do jogo ----------------------------------------------------------------------------- 24
2. Primeiro tempo - a experiência do jogar ___________________ 33
Tempo-espaço do corpo em quadra -------------------------------------------------- 40 O olhar no contexto esportivo ---------------------------------------------------------- 48 Contato com o adversário --------------------------------------------------------------- 56 A vitória e a derrota – leveza e peso ------------------------------------------------- 68 Gesto técnico – a potência criativa do corpo --------------------------------------- 79
3. Intervalo – o jogo como devaneio _________________________ 92
Vertigem ------------------------------------------------------------------------------------- 96 Tensão e excitação ---------------------------------------------------------------------- 112 Paradoxo ----------------------------------------------------------------------------------- 126
4. Segundo tempo – Esporte: a educação como jogo _______ 141
5. Apito final ______________________________________________ 168
6. Equipe __________________________________________________ 177
7. Anexos __________________________________________________ 185
EntrandoemQuadra
O homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga.
Friedrich Schiller
17
Início do jogo
O jogo é fundamental, já dizia Schiller (1995)1. A experiência do jogar permite
ao homem uma passagem da sensação ao pensamento e do pensamento à
sensação, não como limitação da sensibilidade e da razão, mas como totalidade
ontológica da existência, imbricada com as coisas do nosso fazer, do pensar, do
sentir e do movimentar.
Assim, como numa experiência que jamais se repete, o início do jogo e todo
seu contexto transportam o atleta para um cenário no qual, diante dos seus olhos,
acontecimentos da vida e do mundo se desenrolam, de forma tão intensa como se
fosse a primeira vez. Um misto de sentimentos despertados pelo universo sensível
do jogo, o qual alarga a sua existência, e transborda sobre a razão objetiva, uma
corrente de sentidos2 que lhe insere esteticamente no mundo.
A prática esportiva envolve o atleta no mundo, sempre refazendo a vida
cotidiana, como uma nova forma de existência por intermédio do “eu posso” e não
de um “eu penso”. Uma unidade mente-corpo capaz de ampliar a experiência vivida
numa subjetividade fundada no poder de sentir e movimentar o corpo.
Nessa perspectiva, os horizontes se abrem e o atleta, confrontando o mundo
que habita, vai se constituindo por meio dos movimentos e da atuação do corpo no
mundo, instaurando nesse processo uma comunicação entre o dado e o evocado.
Aliado à performance que lhe é exigida, o corpo se funda em sensações, emoções e
criações que vão além daquilo que é ditado pelos técnicos e pelas regras, sendo o
contexto esportivo um espaço fecundo para a constituição de novas formas de sentir
e habitar o mundo.
Esta pesquisa tem como foco principal a dimensão estética do esporte, tendo
como referência o mundo vivido3 do atleta e a prática esportiva como campo do
sensível.
1 Não se trata aqui de uma semelhança conceitual entre jogo e esporte, mas sim algumas relações que fazem com que, se o primeiro pode se transformar no segundo, o esporte também pode vir a ser um jogo, sobretudo, por meio da dimensão sensível, no fazer estético do corpo. Nessa relação, compreendemos que o esporte é apenas uma das manifestações de jogo, dentro de um contexto bastante socializado e universal. 2 Em Merleau-Ponty (2011) os sentidos se referem à capacidade do corpo sentir. Uma comunicação sensível que expande a existência e dimensiona o homem consigo mesmo e com o mundo. 3 A expressão mundo vivido é uma tentativa de tradução da palavra alemã lebenswelt. Termo criado, inicialmente, por Husserl, em sua fenomenologia estrutural, e retomado nas reflexões de Maurice
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Partimos da compreensão de que no esporte os atletas constituem uma
racionalidade não determinada pelos padrões instituídos pela lógica formal, mas
uma razão sensível, que se constitui na apreensão dos sentidos e na sua
comunicação do corpo com o mundo esportivo.
Dessa forma, o esporte pode ser compreendido como fenômeno estético e o
atleta como existência constituída pelo logos estético4, o qual é capaz de explicar as
experiências do corpo, da emoção e do vivido nele.
Nessa direção, podemos refletir sobre o esporte a partir do mundo vivido do
atleta, sendo possível pensá-lo como experiência estética e educativa por meio das
relações que ele estabelece com o corpo na prática esportiva.
Para isso, nos apoiamos na fenomenologia do filósofo francês Maurice
Merleau-Ponty, o qual compreende o homem a partir da experiência vivida, na sua
entrega ao mundo e nas relações nele constituídas.
Afirmamos a tese de que a prática esportiva é uma experiência estética e
educativa, em que se opera o sensível pelas sensações reverberadas no corpo do
atleta, na dimensão do vivido. Experiência na qual o sensível é apreensão de
sentidos e possuidor de significados.
Esse posicionamento implica uma perspectiva de compreensão do esporte
não pelos aspectos estruturais ou pelas suas categorias explicativas, mas pelo viés
do atleta, por aquele que vivencia e que se refaz em cada instante ali vivido.
Trata-se de uma compreensão fenomenológica da prática esportiva, uma
experiência com técnicas e gestos próprios, configurados por uma estrutura rígida.
Mas que atravessa os recônditos do corpo, criando em cada atleta um estilo próprio
de jogar que educa através do sensível dos movimentos e da gestualidade.
Consideramos que o atleta não é somente um mero receptor ou
simplesmente um sujeito passivo diante do mundo esportivo. Ele interfere naquele
meio constantemente e o habita, e isso possibilita que ele invente e reinvente aquilo
que lhe é proposto ou imposto, dando-lhe um significado a partir de sua experiência
Merleau-Ponty (2011). De acordo com esse o filósofo, o termo está relacionado ao mundo pré-objetivo do ser, ou seja, aquele que antecede à reflexão, a totalidade das percepções vividas. 4 A estética não se define pelas relações exteriores entre o homem e o mundo, mas na apreensão dos sentidos enquanto experiência produtora de conhecimento, que consiste precisamente na relação do corpo com o mundo. Essa comunicação com o mundo sensível, enquanto expressão das relações corporais e, portanto, de conhecimento, é designada em Merleau-Ponty como logos estético: “Esse mundo sensível é o logos do mundo estético”. (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 65).
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corporal, criando um mundo próprio, no qual o esporte não é um objeto, ou seja, um
mero exercício físico, um passatempo ou elemento de representação pessoal, mas
uma prática existencial, em que o atleta encontra sentido.
O esporte gera sentidos que não se restringem à instrumentalização do corpo,
ao consumo ou ao mercantilismo, mesmo quando envolvidos com aspectos
relacionados ao rendimento, ao instrumentalismo e ao tecnicismo. Os atletas
rompem a lógica determinista do esporte criando e recriando formas de existência
social e pessoal para além daquilo que foi previsto ou predeterminado.
Essas ações constantes, invenção e reinvenção, partem das relações vividas
no mundo esportivo e emergem no corpo, atando o atleta ao esporte através da
experiência estética. O significado dessa prática não se encontra pronto, mas se
constitui no movimento, de forma inacabada, sempre em composição para o
esportista.
Certamente, não podemos negar algumas peculiaridades do universo
esportivo, tais como as exigências técnicas, a potencialização do consumo, a
instrumentalização e o trato severo com o corpo, referências importantes e que
devem ser consideradas na análise das práticas esportivas5. No entanto,
acreditamos que, além desses aspectos, os quais não podemos descartar, outras
dimensões precisam ser levadas em consideração na análise do esporte, pois a
prática esportiva também apresenta dimensões relacionadas à experiência do
sensível6.
Nesse sentido, cabe ressaltar que nos apoiamos na compreensão de estética
de Merleau-Ponty para a realização deste estudo, a qual se constrói na relação
imanente entre sujeito e objeto, homem e mundo, entre esporte e atleta.
5 A teoria crítica do esporte, derivada da escola de Frankfurt, por exemplo, se propôs a pensar e criticar as práticas esportivas por elas mesmas, em sua estrutura interna e nas condições que faziam com que o esporte acontecesse, ou seja, na sua lógica de dominação, repressão e a alienação por ele reforçada. Esses pensamentos e essas críticas ao esporte da escola frankfurtiana influenciaram vários autores brasileiros, como Valter Bracht (2003), Alexandre Fernando Vaz (2003) e Elenor Kunz (2003), que direcionaram suas reflexões acerca do esporte pautado nas características do corpo dominado, da disciplina, da violência, da normatização, da competição exacerbada e da espetacularização. 6Autores como Lovisolo (1997, 2009), Santos (2012) e Stigger (2002), sem negar a instrumentalização do esporte e sua espetacularização, compreendem que no esporte não temos somente um corpo dominado, mas corpos que se movem na tensão entre prazer e utilidade, domínio e liberdade. Sentidos que perpassam os fluxos de suas indeterminações, mostrando outros sentidos e significados para aqueles que dele participam.
20
Em seu pensamento, a estética não se define apenas pelo belo artístico, mas
como vivência do sensível, na experiência do corpo com as coisas, com os outros e
com o mundo. Logo, não há conceitos definidos ou modelos preestabelecidos, mas
uma dialética entre o homem e o mundo através dos sentidos que transpassam essa
relação, abarcando o corpo. Essa experiência: “nos abre para aquilo que não
somos” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 156), colocando-nos em contato com o
incomum, com o inesperado e com o novo, fazendo-nos adentrar em outros mundos
e permitindo que essa experiência nos sensibilize e nos modifique.
Entrelaçado a isso, alarga-se a compreensão do corpo como objeto, para
incluir, entre outras questões, a dimensão do sensível como realidade essencial do
humano, sendo fundamental para a compreensão da ontologia do corpo proposta
por Merleau-Ponty (2009) a estesia, cuja natureza é sensível, capaz de sensação7.
Quando Merleau-Ponty menciona o corpo estesiológico, refere-se ao corpo
capaz de sensação, mas também de comunicação, de expressão, de criação. É o
corpo que se abre para o exterior, envolvido e afetado pelos sentidos e entrega
corpórea ao universo da experiência estética, impulsionada por sua relação com o
mundo. Uma comunicação marcada pelos sentidos que a sensorialidade e a
historicidade criam, numa síntese sempre provisória, numa expressão existencial
que move um corpo humano em direção a outro, expandido a vida para novas
elaborações construídas pelo mundo da experiência vivida (NÓBREGA, 2010).
Nessa relação, o homem educa e é educado, não pela sistematização do
conhecimento ou pelo ensino formal, mas pela experiência sensível, construída na
vivência do corpo, como na concepção fenomenológica de educação, a qual não se
resume a métodos prontos, visando objetivos determinados, mas abarca o ser
humano pelo universo dos sentidos, da sensibilidade e da criação.
Nessa direção, a estesia enquanto conhecimento sensível é expressa nesta
pesquisa pelo atrever-se do corpo à experiência estética no esporte. O que
possibilita uma reflexão capaz de conduzir ao espanto como condição de reaprender
a ver a prática esportiva por meio da educação sensível, que considera a
experiência vivida um educar aberto à transformação, à inovação, ao sensível.
7 Em Merleau-Ponty (2011) a sensação e a percepção não são elementos separados, posto que na própria sensação há significação, o que faz compreender a experiência vivida e suas múltiplas significações a partir da relação corpo, movimento e mundo como elementos indissociáveis que têm, no sentir, o sentido.
21
Assim, referimo-nos às experiências que os atletas vivenciam no esporte
como conhecimento sensível, as quais não estão separadas pelo entendimento, mas
entrelaçadas na reversibilidade dos sentidos8, na dimensão estética.
Assim, o corpo do atleta, longe de remeter a qualquer fisiologismo, é de onde
irão emergir os sentidos fundamentais dessa experiência, no entrelaçamento dele
com o mundo esportivo. Um encontro que permite fruir sentidos, que conduzem a
outros modos de existir e que admite a criação de outras linguagens gestuais e
novas formas do corpo jogar, educar e se sensibilizar.
Pautamos a estética como linguagem sensível que se constitui no corpo,
enquanto processo de sentido que se dá através da experiência vivida e das
relações construídas no mundo. Logo, podemos compreendê-la em suas relações
com o esporte, como configuração do mundo da criação e do conhecimento.
Para traçarmos essa argumentação, o enfoque da tese é de natureza teórico-
filosófica, tendo Maurice Merleau-Ponty como referência para pensarmos a
dimensão estética do ser atleta, bem como discutirmos os sentidos criados pela
experiência vivida no âmbito das práticas esportivas.
Somando-se ao filósofo Merleau-Ponty, outros autores também deram
suporte as nossas discussões, entre eles: Benjamin (1989, 2002, 2012), Mauss
(2003) Elias (1992) e Schiller (1995), para afirmar o esporte como experiência
estética e educativa.
Buscamos responder, no decorrer da construção da tese, as seguintes
questões: O que sensibiliza o atleta na vivência do esporte? Quais são os sentidos e
os significados vividos no esporte, que fazem o atleta vivenciar essa prática? Como
a experiência do atleta pode ser pensada como educação?
Seguimos com o objetivo de discutir o esporte a partir da dimensão do vivido,
buscando compreender os significados conferidos à prática esportiva e à experiência
estética do atleta como educação.
Compreender a prática esportiva com enfoque numa educação sensível,
através dos seus sentidos e das sensações que são reverberadas nele, torna-se
uma reflexão importante para entender que o atleta não se restringe a determinadas 8 A noção de reversibilidade dos sentidos é discutida por Merleau-Ponty (2004b, 2009, 2011) como a comunicação do corpo que é, ao mesmo tempo, vidente e visível, tocante e tateante, sensível e sentiente, num duplo enlace que se funde numa única ação. Em suas palavras o corpo: “[...] vê vidente, ele se toca tocante, é visível e sensível para si mesmo” (MERLEAU-PONTY, 2004b, p.17).
22
ações de movimento ou de pensamento, mas vive o esporte, educa e se educa ao
criar e recriar movimentos, modos de fazer no jogo, de se relacionar com o outro e
de posicionar-se diante do mundo. Nesse movimento, amplia a capacidade de
apreensão dos gestos, das coisas e do mundo, reorganiza-se em novas sensações
e acrescenta-se em novos sentidos através da experiência íntima e social do corpo.
Nesse trânsito, encontramos nos espaços acadêmicos algumas produções
que se aproximam de nosso objeto de estudo, trabalhos significativos para se
pensar a relação entre o esporte e a educação. Nesses espaços de produção do
conhecimento, encontramos seis teses de doutorado e três dissertações de
mestrado defendidas em programas de Pós-graduação na área da Educação e da
Educação Física que, assim como este trabalho, discutem o esporte a partir do
mundo vivido do atleta91011.
Evidenciamos, também, contribuições de estudos sobre a temática em
questão, tais como as pesquisas desenvolvidas na UFRN pelos professores Allyson
de Carvalho de Araújo (2006)12 e Antônio de Pádua dos Santos (2008)13 , e ainda os
9 Fizemos uma busca geral das dissertações e teses publicadas no Banco de Teses da Capes, defendidas a partir de 1987, segundo o termo “Esporte, Educação, Atleta”, sendo assinaladas “todas as palavras” como critério de busca para o assunto pesquisado. Nessa busca, considerando uma abordagem quantitativa dos dados obtidos, existem 98 dissertações e 30 teses, com a presença desse termo, no referido período. No entanto, nem todas se aproximam do nosso trabalho. 10 Dissertações de mestrado próximas ao nosso objeto de estudo: “Processo de formação e treinamento do atleta de elite no Brasil: dos jogos aos jogos”, de Lila Maria Peres Silva, dissertação defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação Física da UGF; “Pedagogia da dor: sobre o esporte, a vitória e a derrota na arena” de Luciano do Amaral Dornelles, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação da ULBRA; “Técnica, dor, feminilidade: educação do corpo na ginástica rítmica”, de Patrícia Luiza Bremer Boaventura, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UFSC. 11 Teses de doutorado próximas ao nosso objeto de estudo: Tese de Antonio de Pádua dos Santos, intitulada “Imaginário radical: trajetória esportiva de corredores de longa distância”, defendida Programa de Pós-graduação em Educação da UFRN; Tese de Fátima Maria Pilotto, intitulada “Educação corporal de atletas na ginástica artística”, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UFRS; Tese de Gabriela Aragão Souza de Oliveira, intitulada “Trajetória de mulheres-referência no esporte nacional como atletas e gestoras”, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UGF; tese de Giuliano Gomes de Assis Pimentel, intitulada “Risco, corpo e sociabilidade no voo livre”, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação Física da UNICAMP; Tese de Paulo Cesar Montagner, intitulada “A formação do jovem atleta e a pedagogia da aprendizagem esportiva”, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação Física da UNICAMP; Tese de Simone Meyer Sanches, intitulada “Prática esportiva e resiliência”, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação da USP. 12 Dissertação: “Um olhar estético sobre o telespetáculo esportivo: contribuições para o ensino do esporte na escola” (PPGED/UFRN). 13 Tese de doutorado: “Imaginário radical e Educação Física: trajetória de corredores de longa distância” (PPGED/UFRN).
23
artigos14 produzidos no Grupo de Estudos Corpo e Cultura de Movimento (GEPEC-
UFRN), Grupo de Pesquisa Corpo, Fenomenologia e Movimento (ESTESIA-UFRN)
e do Laboratório de Imagens do Corpo e da Cultura de Movimento (VER-UFRN), do
qual faço parte, como referências significativas para a reflexão do atleta não como
um corpo dominado, mas um ser que dinamicamente escreve sua história no mundo
esportivo e nele encontra um sentido existencial.
Nessa direção, percebemos que o esporte, sob ponto de vista do atleta, ainda
tem sido pouco discutido nas pesquisas acadêmicas. Isto porque, a maioria desses
trabalhos parte do processo de formação, da resiliência, bem como do olhar externo
e explicativo do esporte, fazendo-se necessário ampliar os estudos que contemplem
a experiência sensível e o sentido estético dado pelo atleta.
Seguindo esse fio condutor, buscamos aproximar os significados da prática
esportiva da experiência vivida, em sua relação com a experiência estética e a
educação, para falar dos aspectos que fundamentam a vivência dos atletas nesse
contexto e que fazem sentido em sua existência. O sentido se faz para os atletas
através da própria existência, a partir da entrega do corpo e da excitação vivida no
esporte. E nesse movimento, de modo participativo, criando e recriando, vivendo e
habitando de modo dinâmico esse mundo, o corpo produz conhecimento, saberes
produzidos pela experiência humana no mundo vivido. Uma via dupla, na qual o
sentir e o educar estão presentes na mesma existência, na dimensão sensível,
tecida no entrelaçamento do corpo com o mundo, com os outros e com a cultura.
Relação encarnada, de experiência, de sensação, de criação e de renovação.
Nessa direção, apresentamos elementos que contribuam para pensar a
relação entre educação e esporte como uma realidade de aprofundamento sensível
que os constituem, centrada no corpo e na experiência estética como modos de
educar.
14 MELO, José Pereira de; NÓBREGA, Terezinha Petrucia da; Beleza e conflito em Olympia. Paidéia, Natal, v. 1, n. 2, p. 25-39, fev. 2006. / NÓBREGA, Terezinha Petrucia da; DIAS, João Carlos Neves de Souza e Nunes. Futebol: do espetáculo às aulas de Educação Física. Paidéia, Natal, ano 2, v. 1,p. 25-39. jan./dez. 2006. / SILVA, Liege Monique Filgueiras da; PORPINO, Karenine de Oliveira. O ensino do esporte: relato de experiência com alunos do 5º ano. Cadernos de formação RCBCE, Florianópolis, v. 2, p. 56-66, jul. 2011.
24
Regras do jogo
Para investigar a temática abordada buscamos caminhos de compreensão
que não tivessem dado ou forma acabada, mas uma aproximação do vivido com o
sensível, pela dialogicidade do atleta com o mundo esportivo, sempre construindo
novas formas de habitá-lo.
Com esse intuito, apresentamos a atitude fenomenológica de Maurice
Merleau-Ponty como sendo essa referência metodológica, por acreditar que esse
viés de pensamento está diretamente ligado ao modo como compreendemos o
fenômeno pesquisado, a saber: numa perspectiva corporal e estética associada à
educação dos sentidos.
A Fenomenologia não é um método fechado ou algo exterior, onde o
pesquisador vai buscar respostas em algum lugar ou em algum objeto. Ao contrário,
ela é um constante recomeçar, um movimento que parte da experiência vivida e do
mundo para se pensar o fenômeno estudado.
Trata-se de uma atitude de pensamento ancorada na vida, que visa
compreender as coisas15, colocando o conhecimento como centro das experiências
vividas. Uma atitude que não propõe a explicação definitiva dos fenômenos, mas um
“chegar às coisas mesmas” pela descrição, anterior a qualquer formulação científica,
abstrata ou tradicional. O que significa considerar que, antes de qualquer realidade
objetiva, há um indivíduo que a vivencia; antes da objetividade, há um mundo
preestabelecido; e, antes de todo conhecimento, há uma vida que o fundamenta.
O foco de sua atenção é centralizado no desvelamento da experiência vivida,
interrogando-a, para tentar compreender a dimensão sensível do mundo,
procurando manter o rigor. Não o da precisão numérica, mas um caminho reflexivo
sempre aberto a novos diálogos e novos questionamentos. Para tal, ela ancora-se
na experiência vivida, penetrando na facticidade que é histórica, social e subjetiva.
Uma referência para o conhecimento revelado pelos sentidos que fundam a
existência individual e coletiva do “ser no mundo” como uma dimensão à qual ele
15 Sobre o termo coisa, Merleau-Ponty afirma: “A coisa, portanto [...] é um nó de propriedades, das quais cada uma é dada se a outra o for, um princípio de identidade. Aquilo que a coisa é, ela o é por arranjo interno, plenamente, sem hesitação, sem fissura: ou tudo ou nada. É o por si ou em si, num desdobramento exterior, que as circunstâncias permitem e não explicam. É objeto, quer dizer, expõe-se diante de nós por virtude sua, e precisamente porque está condensada em si mesma”. In: MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.158.
25
não deixa de se situar, ademais, “o homem está no mundo e é no mundo que ele se
conhece” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 6).
Porém, esse relato do mundo, do tempo e do espaço vivido, não pretende
construir ou reconstruir o real, mas descrevê-lo a partir do campo perceptivo16.
Nesse caso, nosso olhar sobre o fenômeno esportivo.
Assim, sendo a percepção uma atitude corpórea, ela sempre se faz em torno
do núcleo do sensível, pela sintonia dada no corpo, pelo seu movimento fruidor e, ao
mesmo tempo, aberto, em que perceber: “[...] se opõe a imaginar, não é julgar, é
apreender um sentido imanente ao sensível antes de qualquer juízo” (MERLEAU-
PONTY, 2011, p. 63).
Tendo como pressupostos básicos a noção de percepção, a relação de
imanência entre sujeito e objeto, a facticidade e as experiências vividas, a
Fenomenologia de Merleau-Ponty põe em suspensão o mundo natural, sem romper
com o seu vínculo. Para isso, recorre a três momentos, que ocorrem de forma
inseparável: a descrição, a redução e a compreensão.
É pertinente destacarmos o papel da percepção, da consciência e do sujeito
no ato da descrição. A descrição, como apreciação, relata o percebido na
percepção, no fundo onde esta se dá, sem fazer julgamentos ou avaliações, mas
apontando para o percebido, descrevendo o sentido e a experiência como vivida
pelo sujeito, para visualizar, de modo, compreensivo, a realidade (BICUDO, 2000).
Logo, a necessidade da redução fenomenológica como artifício para que
possamos alcançar os objetivos pretendidos, ainda que não se possa esquecer que
a maior característica da redução fenomenológica é que esta nunca é completa,
especialmente, pela relação homem-mundo. Assim, sabendo que essa familiaridade
nunca será totalmente rompida, e que se deve sempre partir do princípio de que:
O maior ensinamento da redução é a impossibilidade da redução completa [...] Se fôssemos o espírito absoluto, a redução não seria problemática. Mas porque, ao contrário, nós estamos no mundo, já que o mesmo nossas reflexões têm lugar no fluxo temporal que elas procuram captar (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 10-11).
16 A experiência perceptiva é o campo primordial da relação do homem enquanto ser-no-mundo. É o que denominou de facticidade do mundo em relação às produções entalistas, na medida em que "tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. O universo da ciência é construído sobre o mundo-vivido [...]” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 3).
26
A redução põe em evidência a intencionalidade da consciência voltada para o
mundo, distanciando a realidade como a concebe o senso comum, fazendo aparecer
o que é essencial no objeto e percebendo como se produz o sentido do fenômeno,
por meio da percepção e da descrição. Sendo, portanto, uma síntese unificadora e
provisória, e não a compreensão comum que usualmente se tem.
A compreensão ampliada da intencionalidade proposta por Merleau-Ponty
(2011) se distingue da intelectualização, que se limita à natureza imutável. A
intencionalidade é uma relação dialética onde surge o sentido, ela torna possível o
contato da percepção com o mundo, em que a consciência se vê no mundo agindo,
realizando operações e atribuindo significado aos objetos.
Nessa direção, para transitar nos conceitos da Fenomenologia, enfatizamos
como trajeto metodológico neste trabalho a narrativa do mundo vivido e a apreciação
estética de filmes no sentido de constituir um diálogo com destaque para as cenas
significativas a partir da ideia de complementaridade, e não de hierarquia entre a
minha experiência vivida e as produções fílmicas.
Com relação à narrativa, considero minha experiência como atleta de
handebol, cuja visibilidade nesta pesquisa pode ser dada através de fotografias de
treinos e de competições nacionais e internacionais.
Como atleta, conheci o handebol ainda na adolescência, inicialmente na
escola17. Posteriormente, as boas performances em competições regionais em nível
escolar levaram-me à seleção norte-rio-grandense, que me possibilitou participar de
competições nacionais, e a partir disso, ter a oportunidade de ser atleta profissional,
contratada pelo Clube de Regatas Vasco da Gama18 e pela Seleção Brasileira de
handebol19.
Com o retorno a Natal, sem filiação e desenvolvendo outras atividades, fiquei,
um pouco afastada das quadras. Mas, durante a realização desta pesquisa, com o
intuito de sentir e incorporar novamente as sensações vividas no mundo esportivo,
17 Instituto Sagrada Família, situada no município de Natal, no bairro do Alecrim. 18 Clube esportivo situado no município do Rio de Janeiro no qual permaneci, no período de 2000 a 2002, como atleta profissional de handebol. 19 Iniciei minha experiência na Seleção Brasileira de handebol em 1997, na categoria cadete, permanecendo até 2002, na categoria juvenil. Na seleção, participei de diversos campeonatos como torneios, sul-americano e Pan-americano, em diversas cidades do Brasil e diferentes países da América do Sul e da Europa.
27
retornei ao handebol a fim de reviver situações que poderiam balizar meus
pensamentos para esta escrita.
Convidada para jogar no Centro Universitário FACEX, em 2011, voltei a atuar
em competições nacionais, desta vez, nos Jogos Universitários Brasileiros (JUBs)20.
Nessa competição, dialoguei com as demais jogadoras, anotei falas, registrei
minhas impressões diárias, fiz fotografias e fui fotografada. Essa experiência
desencadeou lembranças de fatos ocorridos em momentos anteriores vividos no
esporte. Com isso, passei a perceber a importância das situações do jogo e delimitei
minha narrativa às experiências vividas em quadra, evocadas pelas experiências
dessa competição. Parti das minhas relações construídas com os elementos que
compõem o esporte, ou seja, a quadra, os companheiros de equipe, os adversários,
o resultado final, as técnicas e as regras do jogo. Por meio desses elementos
surgiram os elementos estéticos como tempo-espaço do corpo em quadra, o olhar
no contexto esportivo, contato com o adversário, a vitória e a derrota – leveza e
peso, e, gesto técnico – a potência criativa do corpo.
Inicio narrando minhas experiências em jogo, numa perspectiva existencial,
desvelando o vivido, relevando sentimentos, e, ao mesmo tempo, construindo e
reconstruindo através do meu campo perceptual da narrativa, o esporte na minha
existencialidade como experiência estética e educativa.
Benjamin (2012), filósofo alemão, tinha a experiência como centro de sua
filosofia, e a narrativa, como um acontecimento infinito, no qual é possível refletir a
experiência humana.
Para o autor, a narrativa é uma dimensão existencial do homem, pois, de
certa maneira, o ato de contar e ouvir uma experiência envolve um eu-outro-mundo,
uma relação de intersubjetividades, dada pela articulação de um passado com o
presente, apoiado por uma situação que expressa a profusão de sentidos que
constituem o ser na sua existencialidade, isso porque, segundo Benjamin (2012, p.
230), “quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê
partilha dessa companhia” .
20 Competição realizada em 2011, na cidade de Campinas-SP, de 3 a 13 de novembro. Participaram do evento 194 instituições de ensino superior, sendo oito modalidades (atletismo, basquete, futsal, handebol, judô, natação, vôlei e xadrez), disputadas por mais de três mil atletas-estudantes vindos dos 26 estados e do Distrito Federal. Na referida competição, nos consagramos campeãs na modalidade handebol feminino da 1ª divisão.
28
No estudo O narrador (2012) Benjamin examina as narrativas de Nikolai
Leskov21 e elabora importantes reflexões sobre o ato de narrar. O autor, ao refletir
alguns elementos próprios dos relatos orais presentes em certas narrativas
marcados pela violência e pelos absurdos da Primeira Guerra aponta possíveis
causas da falência da arte de narrar. Para ele, a faculdade de intercambiar
experiências começa a desaparecer com o rápido desenvolvimento do capitalismo, o
qual foi distanciando os grupos humanos, fazendo com que as gerações e as ações
de experiência entrassem em declínio. Entretanto, afirma a importância da narrativa
exatamente por ela refletir a experiência humana, ser uma forma de comunicação, e
principalmente, manter as tradições e as conservarem.
Nesse contexto, o sentido da vida dito na narração não se encerra, mas
perpassa o tempo e se reconstrói à medida em que é narrada, aproximando os
ouvintes da experiência vivida tal como ela é, contada pelo narrador. Isto porque,
ela mantém os valores e percepções presentes na experiência narrada,
conservando e desenvolvendo o sentido da vida. Em outras palavras: “O narrador
retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos
outros” (BENJAMIN, 2012, p. 217).
A partir do pensamento de Benjamin, compreende-se que a narrativa não se
interessa em transmitir, informar ou explicar as coisas, mas mergulha na vida do
narrador, retirando dela o vivido, o existencial, levando a experiência vivida a uma
maior amplitude. E isso supõe uma dimensão fenomenológica, ou seja, a
experiência do homem no mundo, imbuída pelas relações, afetos e valores de uma
vida que reflete e transcende o mundo em que ele está envolvido. Mundo aberto,
não acabado, mas profundo em sentidos, como são as histórias narradas e o
homem em sua existencialidade.
Segundo o autor,
O narrador pode: recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador infunde a sua substância mais íntima também naquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira (BENJAMIN, 2012, p. 221).
21 Escritor russo do século 19 cujas narrativas sobre os camponeses interessam a Benjamin (2012, p. 213).
29
Nesse pensamento corpóreo, mutável, narrativo e descritivo, o corpo embala-
se no ritmo daquilo quer se quer conhecer, surgindo assim a compreensão em
conjunto com a interpretação:
Observa-se que a compreensão só se torna possível quando o pesquisador [...] assume o resultado da redução como um conjunto de asserções significativas para ele, pesquisador, mas que aponta para a experiência do sujeito, isto é, que aponta para a consciência que este tem do fenômeno. A esse conjunto de asserções denomina-se, aqui, unidades de significados (MARTINS, 1992, p. 60).
Desse modo, o mundo dado da consciência é sempre a intencionalidade, não
pertencendo nem ao sujeito nem ao objeto, mas como uma vinculação homem-
mundo, ou seja, um modo de pensar na constituição do objeto de conhecimento na
consciência, expresso na vida.
Para tanto, como horizonte de expressão para o estudo social do esporte,
buscamos produções cinematográficas que tratassem sobre o esporte no
Laboratório de Imagens do Corpo e da Cultura de Movimento (VER)22. Dentre tantas
possibilidades, escolhemos os filmes “Olympia”, um documentário23lançado na
Alemanha, em 1938; e “Invictus”, um longa metragem produzido nos Estados
Unidos, em 2009. Enfatizamos que a escolha por essas produções se deu
intencionalmente por elas traduzirem aproximações estreitas com a temática e com
os objetivos aqui propostos.
Mesmo sendo de séculos distintos, ambos trazem contribuições relevantes
para refletirmos o fenômeno esportivo. Isto porque, sem fugir da espetacularização e
das demandas estruturais do esporte, apontam para o seu conhecimento na
perspectiva de deslocamento do ético para o estético, ancorando-se na valoração de
referências sensíveis, lúdicas e autônomas partilhada pelo vínculo e pela
experiência corporal do atleta com o mundo esportivo.
Os filmes analisados, “Olympia”, da diretora alemã Leni Riefenstahl, que
retrata os Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, ocorridos em pleno regime nazista, e
“Invictus”, dirigido por Clint Eastwood, que retoma a história da equipe sul-africana
22 Laboratório instalado no Departamento de Educação Física da UFRN e é integrante do Grupo de Pesquisa Corpo, Fenomenologia e Movimento (ESTESIA). 23 Olympia é composto por duas partes, a saber: Parte 1 – Festa do Povo, e Parte 2 – Festa da beleza.
30
de rúgbi e sua chegada à final da Copa do Mundo, no ano 1995, trazem o poder
ideológico e a dimensão ontológica do corpo como perspectiva de entrelaçamento
do pessoal com o cultural, o que possibilita, na complexidade da relação corpo e
mundo, reinterrogar o vivido.
Destacamos que nossa análise sobre os filmes encontra-se descrita nos
anexos e que, na perspectiva de termos uma visão geral películas, consideramos
em cada ficha de análise: a técnica cinematográfica (argumento geral do filme, foco
narrativo, cenário e figurino, trilha sonora, fotografia e câmera), sobre o corpo e a
cultura de movimento neles apresentados, e, ainda, as palavras-chaves
encontradas24.
Assim, realizamos uma apreciação estética das obras tendo como fator
preponderante o entrelaçamento do contexto tratado com meu mundo vivido,
destacando “cenas significativas” de cada filme nas quais fosse possível identificar
aspectos relacionados aos elementos estéticos e educativos do esporte. Assim nos
aproximamos de imagens e diálogos da nossa intencionalidade com o fenômeno
pesquisado, no sentido de que muitos aspectos poderiam ser analisados, sendo
necessário se fixar naquelas que atendessem as nossas questões de pesquisa. A
partir desse processo destacamos três temas para discussão: a sensibilidade, as
emoções e o paradoxo do jogo.
É pertinente destacarmos que nos aproximamos do conceito de “cenas
significativas” desenvolvido por Bicudo (2000) em suas pesquisas, no intuito de
compreendermos o agir com rigor em pesquisas que fazem uso de filmes como um
meio de registro. O termo foi apresentado como possibilidade metodológica nas
referências de pesquisas qualitativas. O autor apresenta a cena como um recurso
metodológico que parte do pensamento de que a compreensão da mesma possibilita
vários sentidos possíveis. As “cenas significativas” são as unidades de significado.
Logo, elas não seguem ditames impostos, marcando um encadeamento linear dos
sujeitos, não sendo, portanto, um fragmento, mas uma possibilidade de
compreensão do fenômeno, um modo de poder revelar o sentido percebido na
experiência vivida.
24 Essas fichas de análises são utilizadas pelo Laboratório de Imagens do Corpo e da Cultura de Movimento (VER) e foram gentilmente cedidas pela coordenação para a nossa pesquisa.
31
As cenas transpõem as estruturas lineares de início, meio e fim, transitando
umas pelas outras, complementando-se, dialogando e se redefinindo por meio dos
sentidos e significações dados na apreciação estética, afinal, “[...], participar da
criação de um objeto estético é também criar a si mesmo, é poder retornar sempre a
um começo repleto de horizontes ilimitados e poder apreender a simbiose entre
vários fenômenos da existência” (PORPINO, 2011, p. 113).
Diante disso, os sentidos e os significados perceptíveis se definem, se
desfazem e se refazem diante dos múltiplos olhares possíveis, a partir da
experiência vivida de cada apreciador e da constante reatualização feita no
momento da apreciação.
Destarte, a experiência estética na narrativa e na apreciação fílmica se faz na
complexidade da relação entre corpo e mundo, levando em consideração a
reversibilidade dos sentidos e sua capacidade de reinterrogar o vivido.
Nessa direção, para compor esta escrita25, organizamos a seguinte estrutura
textual: a introdução e a metodologia são nomeadas, respectivamente de, entrando
em quadra e regras do jogo; os três capítulos são denominados de primeiro tempo,
intervalo e segundo tempo, em alusão à estrutura de um jogo de handebol.
No primeiro tempo – a experiência do jogar (capítulo 1), a experiência estética
do corpo no esporte tem como referência a narrativa de minha experiência e a
linguagem corpórea como elemento sensível no mundo esportivo. Neste capítulo,
pautamos nossa reflexão a partir de alguns autores como Merleau-Ponty, Calvino e
Serres, com o intuito de pensarmos sobre o sensível, os saberes e as técnicas
corporais como dados significativos para uma educação sensível, manifesta nas
criações e aprendizagens tecidas nas experiências vividas do atleta com os
elementos esportivos.
No intervalo: o jogo como devaneio (capítulo 2), fizemos um diálogo da prática
esportiva com as narrativas cinematográficas que tematizam o esporte, a saber:
“Olympia” e “Invictus”. Assim, por meio de autores como Merleau-Ponty, Benjamin,
Elias e Mauss foi possível fazer um diálogo epistemológico, entrelaçando os
conceitos de jogo, catarse-mimese e técnicas corporais a partir da apreciação
25 Nossa reflexão transita da 1ª pessoa do plural para a 1ª pessoa do singular, sobretudo, no capítulo 1. Parte em que narro acontecimentos do meu mundo vivido no esporte.
32
fílmica, como conhecimentos necessários para pensarmos o esporte no contexto
social.
No segundo tempo – Esporte: a educação como jogo (capítulo 3),
apresentamos o jogo para compreensão da prática esportiva como experiência
estética e educativa. Tal compreensão se configura, no âmbito esportivo, por meio
do mover do corpo e das suas criações, aprendidos pelo educar do jogo. Um
aprender que imprime-se sobre o corpo do atleta e se constitui como conhecimento
aberto e sensível da experiência vivida no mundo. Encaminhamos a discussão a
partir de Schiller, Merleau-Ponty e Elias considerando o jogo estético, a
intencionalidade do movimento, o corpo como obra de arte e o papel social do
esporte, na perspectiva de pensá-lo como manifestação cultural sempre aberto à
criação de sentidos e possibilidades de significados.
PrimeiroTempoA experiência do jogar
34
Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento rememorado é sem limites, pois é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.
Walter Benjamin
35
Neste capítulo, o foco da discussão é a prática esportiva como
potencializadora de um conhecimento sensível, que se manifesta nos processos
corporais, do corpo em movimento, revelado pela sensibilidade do atleta em quadra.
Para isso, considera-se a experiência estética do corpo no esporte, tendo
como referência o meu mundo vivido e a linguagem corpórea como campo da
experiência sensível26 no mundo esportivo. Trago cinco elementos estéticos para
essa compreensão: tempo-espaço do corpo em quadra, o olhar no contexto
esportivo, contato com o adversário, a vitória e a derrota e gesto técnico, como uma
forma de apresentar argumentos teóricos consistentes sobre eles, para
compreender o esporte por meio de uma estética que envolve o atleta e configura a
experiência educativa.
Para fundamentarmos nossa discussão, Merleau-Ponty se faz um pensador
importante, por trazer o sensível como uma realidade constitutiva do homem e do
conhecimento. Outros pensadores também foram utilizados, como Serres e Calvino,
para podermos compreender que, a profusão dos sentidos encontrados na
experiência do corpo no esporte são dimensões que lhes servem de suporte.
Para Merleau-Ponty (2011), é o sensível que afeta o homem, chega aos
sentidos e recebe destaque, revelando a impossibilidade de distinção eu-outrem, eu-
mundo, sentiente e sensível, pois, conforme o autor, “uma certa maneira de ser no
mundo que se propõe a nós de um ponto do espaço, que nosso corpo retoma e
assume se for capaz, e a sensação é literalmente uma comunhão” (MERLEAU-
PONTY, 2011, p. 286).
Ao centralizar sua reflexão na crítica às análises empiristas e intelectualistas
que dão ao corpo à ideia de transmissor de mensagens, como um sistema físico de
estímulos definidos por propriedades físico-químicas, o filósofo explica que o
sensível não é definido como um efeito imediato de um estímulo exterior, em que o
aparelho sensorial desempenha o papel da transmissão, mas uma condição humana
modelada pelo contexto do mundo, uma via dupla – condução-codificação – que,
sem separação, alude todo o corpo em sentido: “O sensível é aquilo que se
26 Em suas reflexões Merleau-Ponty (1989) busca compreender o homem a partir da sua experiência vivida, abrindo um imenso leque da relação do homem com seu corpo, com a cultura e com o mundo vivido. E, sobre isso ele esclarece que: “A partir do momento em que reconheci que minha experiência, justamente enquanto minha, abre-me para o que não é eu, que sou sensível ao mundo e ao outro, todos os seres que o pensamento objetivo colocado à distância aproximam-se singularmente de mim (MERLEAU-PONTY, 1989, p. 136).
36
apreende com os sentidos, mas nós sabemos agora que este com não é
simplesmente instrumental, que o aparelho sensorial não é um condutor, que
mesmo na periferia a impressão fisiológica se encontra envolvida em relações antes
consideradas como centrais” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 32).
Na concepção de Merleau-Ponty (2011), o sensível não pode ser pensado
como respostas codificadas dos órgãos dos sentidos e a sensação um estímulo
físico que se esquiva. Pois os processos corporais entendidos como elementares,
provenientes do corpo, e superiores, vistos como mentais, mantêm relações que não
são ordenadas fisiologicamente, mas movimentos de um constante interpretar entre
o objeto e o sujeito da percepção. Logo, a qualidade do sensível e as determinações
do percebido imbricam-se, imprimindo certa atitude ao corpo e um engajamento dele
com o mundo:
A função do organismo na recepção dos estímulos é, por assim dizer, a de "conceber" uma certa forma de excitação. Portanto, o "acontecimento psicofísico" não é mais do tipo da causalidade "mundana", o cérebro torna-se o lugar de uma "enformação" que intervém antes mesmo da etapa cortical, e que embaralha, desde a entrada do sistema nervoso, as relações entre o estímulo e o organismo. A excitação é apreendida e reorganizada por funções transversais que a fazem assemelhar-se à percepção que ela vai suscitar (MERLEAU-PONTY, 2011, p.114).
O sensível excede seu significado elementar; o sensorial isolado. Por meio da
atitude corpórea o estímulo arrebata as emoções, as reações fisiológicas e todo o
ser, levando o homem a um movimento de busca, de entrega, assim como ocorre
entre o pintor e o quadro, um conjunto de relações, estímulos sensoriais que
constitui um todo:
O pintor deve ser transpassado pelo universo e não querer transpassá-lo [...] o que chamam inspiração deveria ser tomado ao pé da letra: há realmente inspiração e expiração do Ser, respiração no Ser, ação e paixão tão pouco discerníveis que não se sabe mais quem vê e quem é visto, quem pinta e quem é pintado (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 22).
Nessa perspectiva, o sensível mais do que aquilo que se vê, se ouve ou se
toca, é aquilo que, ao se ver, ouvir ou tocar, conduz ao objeto, faz ser transpassados
por ele, assim como o pintor com o quadro, o bailarino com a dança, o atleta com o
esporte.
37
Por isso, considera-se pertinente para se pensar o fenômeno pesquisado o
sujeito que percebe e dá sentido ao ser-no-mundo, como fonte significativa para
refletimos a dimensão do sensível no esporte.
Convém trazer neste momento a minha experiência vivida no esporte, no seu
fazer estético, no fazer e refazer do corpo, pelos quais minha vida tem significação.
Assim, no corpo sensível das experiências vividas é que, enquanto atleta
reinstalo-me no cenário esportivo para embarcar na experiência estética do corpo no
esporte. E, retornando à minha memória, busco expressar as palavras silenciadas e
os sentidos que atravessam as múltiplas facetas e as inúmeras significações que
nele subjazem.
Retomar essa experiência estética foi um meio de acessar um mundo de
imagens, uma infinidade de lembranças enraizadas no corpo, uma transfiguração
temporal em que, misturada pelo presente e pelo passado, fui transportada a um
porvir de cores, de sons, e de acontecimentos que estão penetrados nas esferas do
ontológico e na expressividade do meu ser.
Olhar minhas fotografias no
esporte possibilitou reinstalar-me
na experiência esportiva, revivê-la
no meu corpo quando jogo,
interrogando-a novamente para
poder acessar elementos contidos
em sua estética. Abrigado por
outros corpos, pelo tecido do
universo que lhe é constituído e
pelo mundo esportivo, meu corpo
vai se configurando por intermédio
dessa experiência, uma vida e um
mundo.
Ao transportar-me através
dessas imagens, encontro-me
aberta ao esporte e às sutilezas
por ele reveladas. Um mundo
atado ao meu corpo. Sentidos Fotografia 01: Infinidade de lembranças Fonte: Arquivo da autora (1998)
38
entrelaçados que foram impressos em minha vida. Afinal, a experiência vivida
imprime sentidos e é instituída por essa relação, permitindo ao vivido uma
significação no mundo.
Há um verdadeiro entrelaçamento do meu ser com o mundo esportivo, o qual
se relaciona com a minha forma de compreender as coisas e de me envolver com
elas. Isto porque, a compreensão é eminentemente corporal, e se dá a partir das
experiências vividas, do contato do corpo, com os outros e também com o mundo
(MERLEAU-PONTY, 2011).
O esporte sempre despertou meus sentidos e minhas emoções. A princípio
irrefletidos, mas mesmo assim, na medida em que eu ia me envolvendo, as
sensações e tudo que o envolvia criavam laços em mim cada vez mais nítidos, mais
fortes e existenciais. Ao longo de dezenove anos como atleta, as sensações
reverberadas, o sensível e o emocional experimentados através do esporte, são
sentidos que sempre tiveram fortes significações em minha existência. Uma
existência em que o esporte não aparece como um objeto distante, mas como
mundo em que habito, pautado pela fluidez do movimento do esporte e da vida.
Vivenciar o esporte como atleta é poder senti-lo e compreendê-lo com um
sentido singular, que se manifesta no corpo. E, para nós atletas, ele nem sempre
possui o mesmo significado que o demando ou o padronizado pela mídia, pela
política ou pela sociedade. Isto porque, vivê-lo é habitá-lo, descobri-lo através de
suas nuances, suas formas, seus sons e suas faces, é projetar horizontes que estão
ancorados no corpo e em seus movimentos, os quais se fundem, adquirindo um
sentido existencial, uma abertura que: “[...] supõe que o mundo seja e permaneça
horizonte, não porque minha visão o faça recuar alem dela mesma, mas porque de
alguma maneira, aquele que vê pertence-lhe e esta nele instalado” (MERLEAU-
PONTY, 2009, p. 101).
Desse modo, experienciar o handebol intensamente, em treinos, competições,
viagens, vitórias, derrotas, gritos, alegrias, tristezas, dores e sacrifícios diversos, nos
mistos de sentimentos e acontecimentos proporcionados por ele, tornou-o
indispensável em minha vida, sendo ainda uma referência de sucesso pessoal e de
formação educacional.
O esporte mudou minha existência e me fez sentir emoções que eu jamais
senti em outras experiências. Foi nas quadras que descobri, por exemplo, que
39
minhas sensações mais íntimas eram reveladas, ascendendo e reascendendo
muitas vezes, o prazer e a dor, a alegria e a tristeza, a ansiedade e a serenidade, a
emoção e a frieza, o sorriso e o choro, num vínculo paradoxal.
Na prática esportiva os sentidos são sempre provisórios e inacabados, tendo
no corpo sua abertura para o sensível. A experiência estética possibilitada pela
presença corporal do atleta transpõe qualquer determinação ou definição prévia para
ele, constituindo-se, portanto, em um mesmo contexto, uma experiência sempre
renovada. “É a ciência do corpo humano que nos ensina, posteriormente, a distinguir
nossos sentidos. A coisa vivida não é reconhecida ou construída a partir dos dados
dos sentidos, mas se oferece desde o início como centro de onde estes se irradiam”
(MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 130).
É a partir das experiências vividas que o homem aprende sobre si e sobre
seus sentidos, aprendendo, ao mesmo tempo, o mundo através deles. Os sentidos
do corpo não se realizam por determinações externas entre eles, mas se faz
espontaneamente entre os elementos envolvidos, quando algo é significativo, os
sentidos são aguçados e a existência humana é transformada.
Pelas sensações do corpo vivo o esporte e, em seus movimentos, entrego-me
ao mundo e ao universo do sensível. Essa experiência ocorre no corpo, na sua
relação com o mundo e com o outro.
Na perspectiva do filósofo Merleau-Ponty (2004b), o sujeito da experiência
estética é um sujeito que é corpo, que escreve sua história nele e por meio dele.
Logo, faz a sua história por meio de tudo aquilo que vive e sente. O corpo que se
movimenta no esporte, se refaz a cada instante, revelando, a cada experiência
vivida, um novo mundo de sentidos e significados. Assim, compreendo-o como
fenômeno em que a experiência estética é vivida. Em cada sensação, expressão,
gesto ou comunicação vivida nele, adquiro e produzo saberes que dão sentido à
minha existência. Não por representação ou por determinação, mas pela
experimentação sensível do corpo, pelo movimento por vezes indeterminado, pelo
gesto imprevisível e pelo fazer e refazer de cada experiência vivida.
Nesse pensamento, compreendo que o esporte disponibiliza uma profundeza
de sentidos, presente nos corpos dos atletas, que nos possibilita compreendê-lo a
partir de sua relação com a estética e a educação, permitidas pelas diversas
significações vividas no jogar.
40
Tempo-espaço do corpo em quadra
Todos os esportes têm dimensões específicas e um tempo próprio a ser
seguido. A constatação parece óbvia e de fato é. Há um tempo e um espaço para
que ele aconteça. As linhas delimitam a superfície a ser utilizada e o cronômetro
indica o seu andamento. São elementos fixos, controlados por um conjunto de
árbitros27 especializados para atuar e manter toda “ordem” e “forma” do seu
decorrer.
Em alguns esportes esses elementos são relativamente “curtos” e
“pequenos”, como no caso do atletismo e da natação, em outros, relativamente
“longos” e “grandes”, como nos esportes coletivos e automobilísticos, mas todos
marcados e regidos por delimitações e temporalidades próprias.
No caso do handebol, a estrutura da partida revela na existência dessa
organização interna uma duração determinada para a partida e uma limitação para
os espaços que serão preenchidos.
A partida é realizada no interior de uma quadra retangular previamente
delimitada. Oficialmente, suas dimensões são estas: 40 metros de comprimento e 20
metros de largura, existindo, em cada extremidade, uma área de gol, que
compreende, na sua amplitude máxima, 6 metros a partir da linha de fundo. Nesse
espaço, chamado a área do gol, a princípio só pode ser utilizada pelos goleiros,
sendo punidos os demais jogadores que a invadirem.
As partidas são realizadas em um período de tempo relativamente longo.
Uma partida oficial dura 1 hora, sendo esta dividida em dois tempos iguais de 30
minutos, com um intervalo de 10 minutos entre eles.
Nesse esporte é possível ao atleta viver tempos diferentes em um mesmo
espaço: o do próprio ato da partida que, conforme dito, divide-se em dois momentos,
e é onde desencadeiam-se as jogadas e criam-se as movimentações; e o intervalo,
27 Cada esporte tem um conjunto de arbitragem própria. No handebol, além dos dois árbitros que atuam diretamente no jogo, controlando as ações que possam fugir das regras, existem dois mesários na lateral da quadra, o secretário e o cronometrista. O secretário tem como função fazer a súmula da partida, computando todas as estatísticas do jogo (cartões, gols, faltas etc.). Já o cronometrista, que possui um cronômetro, é quem controla o tempo da partida, interrompendo-o todas as vezes que os árbitros ou técnicos (pedido de tempo) solicitarem.
41
compreendido como período de descanso, de troca de jogadores e de possíveis
orientações técnicas.
São tempos distintos de um mesmo cenário que se comunicam. Logo, pode-
se considerar os movimentos realizados como uma inter-relação dos elementos da
partida (espaço, tempo, bola, quadra e jogadores), visto que eles se ligam ao tempo
como dependente direto do que é acionado no corpo. Ou seja, não há como separar,
no esporte, tempo-espaço e corpo. Posto que, ambos compõem as ações dos
atletas em quadra e a forma como eles habitam este lugar.
Percebo que esses fatores formam uma atmosfera em que habito desde os
meus 11 anos. O corpo já não é o mesmo desse tempo. A agilidade parece estar
reduzida, os arremessos gradativamente menos potentes, as dores multiplicaram-se
e as fragilidades técnicas/táticas/físicas estão mais aparentes. Entretanto, a
experiência que habita o corpo ao longo desses anos ainda suplanta proezas como
as dos momentos áureos da adolescência, recuperando percepções somente
sentidas em quadra, as quais justificam a minha permanência no esporte para me
sentir mais feliz, mais viva e mais humana, semelhante ao que diz Merleau-Ponty
(2011, p. 321): “Meu corpo toma posse do tempo [...] ele faz o tempo em lugar de
padecê-lo”.
Por isso, não experiencio o tempo e o espaço de modo cronológico e físico
simplesmente. Vivo-os no fluxo das minhas ações e vou habitando pela extensão do
meu corpo, experiências que ele vivencia e que ele mesmo mede.
Desse modo, meus movimentos não se configuram somente como um
deslocamento no tempo e no espaço, mas é um mover do próprio corpo, afinado a
eles, pela temporalidade e espacialidade habitada em mim, assim como reconhece o
filósofo: “[...] nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço”
(MERLEAU-PONTY, 2011, p. 205)
Nesse pensamento, quando habito os espaços da quadra, meu corpo lhe
assume e galga, em cada movimento, um tempo-espaço que lhe é peculiar,
antecedido pela potência criadora de viver e coexistir com esse mundo.
Essas ações acionam meu corpo, mobilizam os meus sentidos e me fazem
andar num fluir técnico sempre imprevisível e auto-organizado pela vivência espaço-
temporal que tenho de mim.
42
Fotografia 02: Tempo-espaço do corpo Fonte: http://www.cbdu.org.br (2011)
Por meio disso, vou engajando o corpo e colocando em ação sua força
criadora, buscando novos acordos para viver a fixação do tempo e do espaço como
condição existencial. Uma maneira de existir que certamente aprendi com as
limitações que me foram impostas, mas que não foram suficientes para me indicar
os caminhos da criação imediata do jogo. Razão pela qual busco nas interseções
dos gestos, dos movimentos e dos encontros ali vividos, espaço e tempo para vivê-
los, do mesmo modo como afirma Gil (2005) acerca do espaço paradoxal28: “O
esportista prolonga o espaço que rodeia a sua pele, tece com as barras, os tapetes,
ou simplesmente com o solo que pisa, relações de conivência tão íntimas como as
que têm com o seu corpo” (GIL, 2005, p. 47).
Para ele, na experiência do
movimento há um prolongamento
ou uma ampliação do espaço que
rodeia o corpo, constituindo a
ocupação de um novo espaço: o
espaço do corpo.
Tal proposição corrobora
aquilo que vivo quando me movo
pelas quadras e nelas vou criando,
entre as ordens fixas e lógicas do
handebol, novos referentes para
viver o tempo-espaço que pertence
ao meu próprio corpo.
Nesse cenário, entre o
parecer do jogo e os meus
movimentos, vou desenhando
caminhos de ação e dirigindo meu
corpo ao alvo pretendido. Em
função dessa capacidade motriz,
preencho pequenos e grandes
espaços, projeto-me para aqui e para acolá, em encadeamentos temporais
28 “Espaço paradoxal: diferente do espaço objetivo, não esta separado dele. Pelo contrário, imbrica-se nele totalmente, a ponto de não ser mais possível distingui-lo deste espaço” (GIL, 2005, p. 47).
43
sucessivos, causando a impressão de que meu movimento não tem espaço nem
tempo definido (Fotografia 02).
Com o corpo em trânsito sigo! Não há inércia! Se ando ou se paro, se vou ou
se volto, não sei. Os sentidos me guiam e o corpo me leva a uma nova condição de
existência ao transitar por suas próprias direções.
É um outro espaço, é um outro tempo. O movimento não tem ordem e a
velocidade parece diminuída. Retorcido e sem direção, opõe as características do
jogo e vai compondo sua ação, “dobra-se, curva-se, adapta-se, gozando de pelo
menos trezentos graus de liberdade, desenha dos pés à cabeça ou à ponta dos
dedos um caminho variável e complexo entre as coisas do mundo” (SERRES, 2001,
p. 76).
Esse é o tempo e o espaço que habita em mim no universo do esporte e que
faz do esporte a expansão do meu ser no mundo. Logo, não é a celeridade das
passadas ou a localização do corpo que compõe as minhas ações, mas o tempo-
espaço que em mim se projeta e faz dos meus movimentos uma expressão das
experiências ali vividas.
Mesmo que a ênfase da movimentação esteja visivelmente coordenada com o
tempo-espaço do jogo, são eles que se projetam em meu corpo para conduzirem
meus gestos e se misturarem a mim. E isto expressa, como forma elementar da
existência, a indissociabilidade entre tempo e espaço. O que significa entender o
espaço como o lócus onde se vivificam as relações humanas, como parte da
existência, o mundo de onde o corpo compõe o seu fundamento, “pode-se dizer ao
pé da letra que o espaço se sabe a si mesmo através do meu corpo” (MERLEAU-
PONTY, 1980, p. 437).
Para Merleau-Ponty (2011), o corpo é o espaço, é o tempo, é o movimento, é
o lugar. Ainda mais quando ele age e reage no mundo, espaço e tempo não são
pontos adjacentes entre si, nem uma relação sintética da consciência. Os
movimentos dilatam-se com eles, e entre o que está dado e o vir a ser, o
determinado e o indeterminado, o caos e a forma, o corpo pulsa e o gesto
simplesmente flui.
Portanto, se toda experiência é corporal, ela é por definição uma experiência
espacial. O que permite afirmar que corpo e espaço não são elementos separados,
mas se configuram como único ser, enraizados na existência, um corpo no mundo.
44
Tempo e espaço não podem ser pensados somente por princípios físicos,
cronológicos ou mecânicos, como se fossem dados dissociados do corpo, mas como
próprios da existência e do movimento humano. Com isso, os atletas se entregam às
criações, sendo absorvidos por essas noções, sem perder de vista o contexto da
partida. Afinal, é em meio ao tempo e ao espaço que os atletas correm, gerenciam a
posse de bola, sabem o momento oportuno para saltar, arremessar e realizar o gol.
E essa lógica, embora pareça, não é imediata, mas é dada no nível da própria ação,
desencadeada no amálgama do corpo, sem cálculo nem previsão.
É a partir da espacialidade e do tempo que o atleta é no mundo esportivo de
modo encarnado. Sua experiência funda-se em uma perspectiva espaço-temporal e
na relação com os elementos da partida, aos quais ele não tem acesso em sua
totalidade, posto ser aberto e inacabado, tratando-se de uma relação marcada pelo
sentir do corpo em seus movimentos.
Segundo Caminha (2008), os movimentos do corpo são determinantes na
amplitude do raio de ação da capacidade perceptiva do homem. Esses movimentos
lhe dão o poder de desabrochar como ser-no-mundo e nele situar-se, em suas
palavras: “O mundo toma forma visível ou fenomenaliza-se de uma maneira
dinâmica porque a motricidade de nosso corpo nos permite galgar o espaço”
(CAMINHA, 2008, p. 340).
Nesse contexto, o corpo não se reduz ao espaço, mas seu movimento é meio
de percepção do espaço, do tempo e da ação, permitindo o ir e vir do corpo ao
encontro do mundo.
Desse modo, não há temporalidade e espacialidade sem o corpo, sem a
presença e a experiência do homem no mundo, em uma perspectiva de vivência
deles, assumida pela percepção e pela motricidade, ou seja, pela experiência vivida.
Tempo e espaço são construídos nessa relação, quando o corpo habitado e
abarcado por eles enraíza seus sentidos a fim de fazer brotar, no lugar de
experiência, um lugar de conhecimento, pois, “não é apenas a experiência do meu
corpo, mais ainda uma experiência de meu corpo no mundo e ele que dá um sentido
motor as ordens verbais” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 196).
É nessa existência encarnada, no homem em situação no mundo, que a
experiência do atleta se liga aos espaços e tempos da partida como elementos
vividos pelo corpo, em sua manifestação ontológica de existir.
45
O atleta suspende o tempo e o espaço que lhe fora destinado. E, o que para
ele são “horas” de experiência, para o ato da partida são “segundos” de um dado
movimento. Nuances potencializadas pela capacidade espaço-temporal do corpo,
em sua infinitude de brincar com eles e de usá-los, sem negar os regulamentos
impostos.
O tempo cronológico dado aos atletas e as linhas das áreas demarcadas não
teriam função se não fossem vividos. E é nessa vivência do tempo-espaço que as
experiências deles são construídas em quadra. Um fluxo que não podem controlar,
mas que reinventam pelo sentir do corpo.
Como esclarece Merleau-Ponty (2011), o tempo funde-se através do homem,
em qualquer coisa que ele faça. A propriedade dessa temporalização aparece na
espontaneidade das ações, quando nele o corpo encontra recursos contra ele
mesmo, abrindo espaços para outros feitos: “Ele me arranca daquilo que eu ia ser,
mas ao mesmo tempo me dá o meio de apreender-me à distância e de realizar-me
enquanto eu” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 572).
O corpo nessa perspectiva ganha destaque, pertence à criação, torna-se leve,
flexível, encanta e se encanta, experiencia outros modos de existir que pervertem os
padrões de um corpo domesticado pelo esporte.
A prática esportiva acontece num tempo-espaço próprio do corpo que não é
fechado num sentido determinando e único. O corpo transita pelos conceitos e vai
criando diferentes durações e projeções, haja vista:
Todo o movimento do corpo visto do interior supõe um espaço particular [...] ao mesmo tempo, projeta-se sobre este espaço não um corpo ou membros em movimento, mas o próprio movimento que abriu o espaço e se confunde com o movimento do exterior visto do interior: daqui resultam linhas ou planos em movimento (GIL, 2005, p. 133).
A prática esportiva aciona esse espaço, propiciando de algum modo um
campo privilegiado de exploração do corpo ao jogar, por meios dos sentidos
situados na experimentação dos gestos.
O tempo e o espaço nesse sentido são vividos pelo corpo, criados por ele na
contingência dos seus acontecimentos. Corpo este que resolve a si mesmo, muda,
faz e se refaz, descerrando uma pluralidade de perspectivas, de vivência espaço-
temporal por meio da sensibilidade posta no jogo.
46
Por meio disso, é possível compreender que o corpo do atleta subverte os
ditos, amplifica modos de fazer e de sentir, quando engajado nas quadras, nos
campos ou nas piscinas, experimenta, por meio da abertura das estruturas
processuais do esporte, autonomia para viver tempo-espaço como o entrelaçamento
entre o mundo e o corpo.
Ao adentrar nesse tempo-espaço vivido do corpo, certamente não podemos
negar que ele está situado em um modo físico e cronológico socialmente localizável.
Eles atendem a um regime disciplinar, com indicações que vêm se configurando ao
longo dos processos sócio-históricos, cada vez mais investidos por determinações
sociais, culturais, científicas e políticas. Um tempo e um espaço mecânico, marcado
por regularidades que repetem o agora pontual, racionalmente transcorrido,
objetivado por suas marchas e repetições numéricas.
Porém, as relações espaço-temporais conforme dito, não se reduzem às
orientações mecânicas, elas são determinados pelo tipo de ação envolvida, as quais
dependem de experiências prévias e do conhecimento simultâneo do espaço e do
próprio corpo.
Assim, como uma trama tecida no corpo, o vivido no esporte transcorre a
existência, coagulando no marco de um sistema, possibilidades de movimento. Pois,
o corpo, não obstante a cronologia e delimitação estabelecidas, consegue
experienciar um novo tempo e um novo espaço ao estar envolvido no enlace
estético da existência da partida e da vida.
Ora, não se trata de um sistema espaço-temporal a priori, sem marcação ou
direções distinguíveis, mas um espaço-tempo aberto às condições dos movimentos
e das possibilidades que compõem os lugares experienciados pelo corpo. E isso
acontece no mundo e nas relações intersubjetivas, em que o homem, mergulhado
no universo do sensível, dilata-se, alterando a sua percepção. Os limites impostos
vão se diluindo, se distribuindo pela superfície do corpo e simultaneamente
adentrando nas esferas da existência, tornando o corpo presente, vivo e aberto à
experimentação de novos contornos e novas temporalizações.
Conectado ao mundo, o homem vai criando movimentos e sentidos
existenciais, um modo distendido pelo esporte, levado para a vida habitual. Um
revelar ativo e atuante do corpo imbricado no mundo, que move-se em razão dos
47
entrecruzamentos existenciais, sociais e históricos que envolvem o tempo e o
espaço não como dimensões, mas como orientações significativas da vida.
O movimento do corpo abre o espaço, acomodando o movimento ao espaço
aberto, uma feitura fendida pelo enraizamento do corpo no mundo, síntese assumida
pela percepção e pela motricidade, ou seja, pela experiência vivida, original e
originária, em que “a amplitude dessa apreensão mede a amplitude de minha
existência; [...] o espaço e o tempo que habito de todos os lados têm horizontes
indeterminados [...]” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 195).
Nesse pensamento, como aponta o autor, em referências intermitentes o
movimento vivido é vislumbrado como devedor originário da vida, ou seja, a
temporalização vital se mostra na novidade da ação latente, reestruturada nos
horizontes sedimentados e garantidos pelo mundo. Uma peculiar reorganização do
movimento, em outras palavras,
Uma “espontaneidade” adquirida de uma vez por todas que “se perpetua no ser em virtude do adquirido”, eis o tempo e eis exatamente a subjetividade. Eis o tempo, já que um tempo que não tivesse suas raízes em um presente e, através disso, em um passado não seria mais tempo, mas eternidade (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 573).
Nesse sentido, o espaço-tempo é apreendido como num correlato
indissociável de transformação e de construção de um sujeito encarnado em suas
experiências. Um movimento simultâneo do fazer, que é permitido no esporte e
elaborado diariamente pelos caminhos das relações singulares e múltiplas, fluidas e
atemporais, que se auto-organizam no próprio corpo.
Esse tempo-espaço vivido abriga um corpo mutante, que se metamorfoseia
nas demarcações da quadra e também da vida. Ondulações e modificações
inconclusas, sem certezas, sem seguranças. Um fluxo contínuo de intensidade, de
mobilidade e de projeções nascidas por todas as saliências e reentrâncias do corpo
que não cessam de traçar as suas próprias vias.
O tempo da partida constrói uma outra temporalidade, medida do corpo. E o
esporte aposta nesse corpo que se liberta da demarcação de uma territorialidade
fixa, que não se organiza a partir de estratificações numéricas ou justaposições
estáticas. Um corpo que muda de gradiente, que perde a localização imposta, que
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modifica planos, curvas e projeções em função dos movimentos que vai realizando e
descobrindo continuamente.
A experiência do jogar, portanto, aponta para o delineamento desse corpo e
desses novos acordos que rompem com a estabilidade e com a fixação. Pois seu
estado é de criação, conexões autênticas, atualizadas em cada acontecimento da
partida e da vida. Afinal, não se pode esquecer que o movimento é inerente à
dinâmica do viver. Um modo ativo que o esporte efetua pelos territórios do corpo,
engajando entre os sentidos e a inteligência, visão e tato, interioridade e
exterioridade, movimentos de afirmação e leitura do corpo no mundo.
O olhar no contexto esportivo
O olhar é uma ação que está presente em todas as fases do contexto
esportivo. É ele quem determina as ações e as condutas técnicas e táticas dos
jogadores em quadra.
No caso do handebol, a complexidade da partida solicita do atleta um olhar
aguçado para perceber as atitudes dos adversários, para compreender a partida e,
simultaneamente, para conduzir os seus próprios movimentos, os quais se
apresentam em três condições básicas: o tempo29, o espaço30, e a visão. O tempo
para se tomar uma decisão de forma muito rápida, o espaço como orientação da
situação da partida e a visão como percepção e interação com o entorno.
De acordo com Silva e Carvalho (2007), em uma partida de handebol os
atletas correspondem com conhecimento tático e técnico, com o engajamento
corporal e ao mesmo tempo com a visão que têm do todo.
Nesse contexto, a forma de perceber a partida e elaborar juntamente com
isso estratégias para o ataque ou para a defesa não depende somente do potencial
individual e coletivo dos jogadores, mas, junto a isso, do campo visual atado aos
movimentos do corpo.
29 O tempo aqui mencionado refere-se ao tempo cronológico do jogo, à velocidade de decisão do jogador em quadra. 30 Refiro-me às demarcações e às ocupações dos jogadores em quadra.
49
O atleta que recebe a bola no engajamento31, por exemplo, precisa olhar
rápido para saber onde está posicionado, a qual distância está do gol, onde se
encontra o adversário mais próximo e decidir se é possível o passe, o drible, ou
mesmo o arremesso.
Quando ele adquire uma certa experiência ao longo de sua trajetória
esportiva, o saber latente adquirido pelo corpo lhe dirige à situação requerida de
maneira rápida e precisa. Não é mais necessário olhar fixamente para a bola, o
posicionamento dos adversários, nem a cor dos uniformes daqueles que o rodeiam.
Depois de alguns anos, basta sentir o jogo, ver com um só olhar tudo e todos ao
mesmo tempo.
Nessa direção, tomo meu olhar no jogo como um sistema que me abre ao
mundo esportivo, ao pensamento e ao sensível. Não como um sentido humano, mas
que isso, um movimento entrelaçado ao meu corpo, semelhante ao que diz Merleau-
Ponty (2004b, p. 20) sobre o mundo visível do pintor: “O pintor, qualquer que seja,
enquanto pinta, pratica uma teoria mágica da visão [...] Nada muda se ela não pinta
a partir do motivo: ele pinta, em todo caso, porque viu, porque o mundo, ao menos
uma vez, gravou dentro dele as cifras do visível”.
Nessa compreensão, o olhar aparece como guia do homem no mundo, como
sistema que impulsiona o movimento do corpo ao objeto visto.
A exemplo de uma partida, quando olho, não vejo simplesmente as coisas e
minhas adversárias. O ato de ver se manifesta como potência que orienta e
movimenta minhas ações em jogo, um ato em si mesmo, em consonância com o
corpo, assim como declara Merleau-Ponty (2011, p. 108):
Considero meu corpo, que é meu ponto de vista sobre o mundo, como um dos objetos desse mundo. A consciência que eu tinha de meu olhar como meio de conhecer, recalco-a e trato meus olhos como fragmentos de matéria. Desde então, eles tomam lugar no mesmo espaço objetivo em que procuro situar o objeto exterior, e acredito engendrar a perspectiva percebida pela projeção dos objetos em minha retina.
31 É um tipo de movimentação ofensiva do handebol que se baseia na ideia da inferioridade e da superioridade numérica, ou seja, os jogadores se movimentam e passam a bola rapidamente, confundindo os adversários, infiltrando os espaços defensivos e deixando um jogador livre para o arremesso.
50
Desse modo, a experiência vivida no esporte é a experiência do meu olhar,
uma visibilidade convertida em gestos, pensamentos em ação, que diz sobre o meu
pensar e sobre meu agir em quadra.
Vendo e sendo tocada por ela, habito-a pelo olho, reconheço seus espaços e
crio o meu próprio tempo, de forma que meu corpo mergulhado em sentidos vai
caminhando pelos detalhes do visível, compondo com ele cadências sucessivas que
não param um só momento.
Na Fotografia 03, durante uma marcação individual32, é possível vislumbrar
esse olhar habitado pelo corpo em minha expressão revelada. Situada ali, percebo o
jogo com o corpo. A visão se junta ao pensamento e ele retorna em movimentos
inscritos na visibilidade. Uma constituição conjunta que projeta meu corpo para
frente e para trás, em encadeamentos lentos e contínuos. Pés no solo e também no
ar; cabeça erguida, olhar fixo que não se prende ao território que a adversária
aparentemente impõe, mas que parece tenso diante daquilo que posso ou não fazer,
causando a impressão de que ora o corpo se move, ora ele não se desloca no
espaço, ora eu vejo, ora sou vista.
32 A marcação individual é um sistema defensivo do handebol. Ela é utilizada em diversas situações, entre elas, quando a defesa tenta impedir a ação conjunta de um jogador com os demais no ataque, tendo um jogador específico para lhe marcar o jogo inteiro.
Fotografia 03: O olhar que habita o jogo Fonte: http://www.cbdu.org.br (2011)
51
Quando olho a adversária, esse olhar parece expressar um pensamento em
ação, um movimento aparentemente imóvel, e um mundo atado ao meu, que me
envolve e também é envolvido em mim. Uma percepção que se realiza em constante
comunicação entre corpo e mundo. Uma visão que se faz sobre um contexto do
jogo, no qual estão presentes os horizontes que o movimento do olhar tornará
atuais, pois,
Percebo comportamentos imersos no mesmo mundo que eu, porque o mundo que percebo arrasta ainda consigo a minha corporeidade, porque minha percepção é impacto do mundo sobre mim e influência dos meus gestos sobre ele, de modo que, entre as coisas visadas pelos gestos do adormecido e esses gestos mesmos, na medida em que ambos fazem parte do meu campo, há não apenas a relação exterior de um objeto com um objeto, mas do mundo comigo, impacto, como de mim com o mundo, conquista (MERLEAU- PONTY, 2002, p. 171).
Na entrega desse olhar, o sensível significante se revela na visão,
manifestando meu Ser no mundo, não por ele estar diante de meus olhos, mas por
eu estar nele, vivendo-o por dentro, percebendo suas significações e atribuindo-lhes
sentido à vida.
No ato de ver, emprego meu corpo sem intermediações, vou dando
visibilidade a esse mundo que me vem, revelando suas propriedades sensíveis e
manifestando-lhe continuamente, nos feitos e refeitos da minha experiência
perceptiva, condicionada ao corpo, a minha relação com ele.
Nesse diálogo recíproco entre o corpo e visão, vou percebendo o jogo e me
entrelaço com ele, mesmo sem saber como eles se processam. O visível se une ao
corpo, projeta suas significações e dá sentido à minha vida. Em outras palavras:
“Basta que eu veja [...] para saber juntar-me a ela e atingi-la, mesmo se não sei
como isso se produz na máquina nervosa. Meu corpo móvel conta com o mundo
visível, faz parte dele, e por isso posso dirigi-lo no visível”. (MERLEAU-PONTY,
2004b, p. 16).
O visível incita, transpassa as superfícies do meu corpo, penetrando-o nas
coisas e irradiando de forma profunda o sensível em si. Um olhar ora atento, ora
difuso, que prioriza os detalhes, mas também o todo; que aproxima e também
afasta; que permite imaginar, mas também criar; que desvia, e também aproxima;
que olha o jogo, e também o engloba.
52
O olho vê o mundo, e o que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele mesmo, e, na palheta, a cor que o quadro aguarda; e, uma vez feito, vê o quadro que responde a todas essas faltas, e vê os quadros dos outros, as respostas outras a outras faltas (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 19).
Desse modo, ao falar do olho como metáfora do corpo na pintura, esse autor
afirma que a experiência da visão e do pensamento são vivências do corpo, que se
faz na relação entre o homem e o mundo, atos de duas facetas de um corpo visível
e do poder vidente que o habita, um entrelaçamento sensível que tem como lócus a
experiência vivida.
Um visível envolvido pelo movimento, o qual instiga a visão fazendo com que
ela mova-se com ele, entrecruzando os dois lados da visibilidade, tornando o atleta
vidente e visível, observante e observado, igual ao que disse o pintor Paul Klee
acerca experiência do olhar na pintura: “numa floresta, várias vezes senti que não
era eu que olhava a floresta. Certos dias, senti que eram as árvores que me
olhavam, que me falavam [...] pinto talvez para surgir” (MERLEAU-PONTY, 2004b, p.
22).
Se o olho para Merleau-Ponty é aquilo que foi comovido por um certo impacto
do mundo, meu olhar interage com as coisas, com os outros e com o mundo,
despertando nas relações vividas movimentos simultâneos de pensamento e ação,
abertura e interrogação.
Um movimento inquiridor na possessão do ver, em que o mundo se mostra, o
corpo se aproxima, ao mesmo tempo em que se abre para ele como uma
consonância entre o vê/visto com o corpo que lhes acolhe.
Essa ideia do corpo vidente que penetra o mundo pela visão é apresentada
pelo autor supracitado, como um enigma fundante que consiste no fato de meu
corpo ser “[...] ao mesmo tempo, vidente e visível [...] que olha todas as coisas e
também se olha” (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 17).
Esse mundo percebido expresso por Merleau-Ponty (2004b) através da
pintura apresenta uma forma de olhar revelada pelos sentidos da experiência vivida,
que sobrepõe o ato de ver ao puro ato de pensar.
Em O Visível e o Invisível (2009), com a crítica ao enigma da fé perceptiva, é
possível compreender esse movimento do olhar não como órgão da visão, mas
53
como percepção ancorada no corpo, uma atitude sensível que liga o homem ao
mundo.
Assim, o olhar não se reduz a uma visão estática. O olho envolve o
movimento. Pela movimentação da pupila o visível é alcançado, juntando aquele que
vê com o que é visto, uma forma harmônica do corpo com as coisas que se veem.
Posto que, não há oposição entre o ver e o visto. Na espessura entre eles acontece
a comunicação sem que nenhuma palavra seja soada, fazendo das coisas vistas um
elo do visível com o invisível, um diálogo sensível que celebra a existência e instiga
o movimento do próprio corpo.
Nessa direção, a visão de quem joga tateia os espaços da quadra se expõem
ao olhar do outro e as sensações daquilo que é visto. Uma via dupla que liga um
jogador ao outro, a mão à bola, a visão ao movimento, trazendo ao corpo o enigma
de ser vidente e visível.
Um paradoxo do corpo, um sistema de trocas com o mundo, em que este
interroga o olhar, torna presente o ausente, e estabelece uma interação entre poder
corporal de ver e sua ação de mover-se com o visto.
Como afirma Merleau-Ponty (2004b), através do olhar o homem interroga as
coisas e compreende o mundo, não por aquilo que está diante de seus olhos, mas
pelo seu envolvimento com ele, vivendo-o e inspecionando-o com sua visão. Um
entrelaçado que guia o movimento, que anuncia sentidos ao corpo e faz com que
ele, com seus sentidos, habite a visão.
Assim, olhar no esporte, antes de ser função é comunicação com esse
mundo, é abertura do corpo que assume nessa correspondência determinados
comportamentos diante das coisas vistas, afinal, “mover o corpo é visar às coisas
através dele, é deixá-lo corresponder à sua solicitação, que se exerce sobre ele sem
nenhuma representação” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 193).
Talvez por esse motivo, o jogar seja uma aprendizagem atribuída ao
entrelaçamento entre movimento e visão. Um olhar que suscita o movimento, e um
movimento que se funde com a visão.
Por meio disso, os gestos vão surgindo. Olhando e fazendo, movemos o
corpo ao visível requerido, burlamos os adversários, ocupamos os espaços e
realizamos o gol. O corpo projeta a visão e ela interpreta a partida, sem
54
distanciamento e modelos pré-dados, um olhar-pensar em contínuo exercício nesse
mundo.
O atleta é, por assim dizer, alguém que consegue recriar o próprio esporte.
Com suas técnicas trançadas ao corpo, ele apreende e converte esse mundo em
cenários seus, apresentando aquilo que captou pela percepção estética, centrada na
imersão do mundo. Isto porque, semelhante ao artista, ele busca apresentar: “[...] o
mundo, convertê-lo inteiramente em espetáculo, fazer ver como ele nos toca. [...]”
(MERLEAU-PONTY, 2004b. p. 131-135).
O esporte é pensando e criado pelo olhar de quem joga, pela sensibilidade
que se impõe ao corpo quando este, alojado pelas motivações vividas, forma um
solo sensível entre a visibilidade e vidência devido à sua mobilidade.
E nessa operação, o atleta vive o esporte, torna-o visível a si e aos outros,
habitando as coisas sem conhecê-las, movendo-se movente, vê se vendo, abrindo-
se ao mundo e criando nessa relação uma nova significação para aquilo que foi
percebido através do seu olhar, dado pela manifestação do corpo em perceber e ao
mesmo tempo ser percebido.
Os limites de uma disjunção entre o visível e o vidente, o sensível e o
sentiente, o atleta e o esporte, seu corpo e o mundo se diluem e uma aderência os
liga num duplo enlace que perscrute uma única ação.
A prática esportiva mobiliza no corpo essa comunicação do vidente com o
visível, uma visão envolvida pelo movimento em que não há um tempo único, mas
um processo que entrecruza os dois lados da visibilidade, tornado aquele que vê um
corpo também visto, assim como o que é por ele observado.
A constante reciprocidade do vidente e do visível no esporte é acessível pela
natureza sensível do corpo. Uma visão engajada nas quadras e no mundo que
ultrapassa as superfícies, penetra as coisas visíveis, concedendo ao corpo o direito
de coexistir com as coisas como se estivessem fixados na mesma trama.
Sobre o assunto, Merleau-Ponty comenta: “O mundo visto não está 'em' meu
corpo e meu corpo não está 'no' mundo visível em última instância: carne aplicada à
outra carne, o mundo não a envolve nem é por ela envolvido” (MERLEAU-PONTY,
2009, p. 134).
Nesse sentido, é possível compreender que a carne do mundo entrelaça o
corpo e as coisas, convertendo em si as parcelas comuns dos outros seres. Um
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revelar da indivisão entre ação e passividade que faz do corpo um visível enredado
no invisível, constituindo os sentidos e animando os campos da visibilidade. E isto se
dá no esporte e fora dele, pois o olhar que tateia as quadras também desvela as
cores do mundo; uma singularidade do corpo, no mistério de ser sensível em si.
Afinal, o corpo é um turbilhão de sentidos, visíveis e táteis, em que o esporte,
os outros, as coisas e o mundo, nunca estão diante dele, mas ao seu redor.
Nessa perspectiva, Merleau-Ponty (2004b), ao falar sobre o olhar alude suas
reflexões ao pintor, observando que ele jamais veria de “fora”, como se sua visão
fosse apenas físico-óptica. Ao contrário, seu olhar nasce em conjunto com as coisas
e com o mundo, revelando detalhes que estavam ocultos na sua forma natural.
O mundo não está diante dele por representação: é antes o pintor que nasce nas coisas como por concentração e vinda a si do visível, e o quadro finalmente só se relaciona com o que quer que seja entre as coisas empíricas sob a condição de ser primeiramente “autofigurativo” (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 37).
Desse modo, seja nas práticas esportivas ou na vida cotidiana, o corpo do
atleta vê e apalpa as coisas, podendo ser visto e tocado, tocante e visto
simultaneamente pela possessão do ver e do exercício contínuo do mundo que se
mostra e interroga seu olhar.
O corpo coloca a sua força criadora e lança o movimento preenchido de
sentidos no mundo. Sentidos que guiam e permitem o homem desfrutar texturas,
sonoridades, cores, ritmos e sons que emergem do entrelaçamento do olho com os
movimentos do corpo, transformando, por meio da percepção, o que estava antes,
em um novo sentido de ser.
Olho o objetivo, sou aspirado por ele, e o aparelho corporal faz o que tem de fazer para que me encontre nele. A meus olhos tudo se passa no mundo humano da percepção e do gesto, mas meu corpo “geográfico” ou “físico” obedece às exigências do pequeno drama que não cessa de suscitar nele mil prodígios naturais (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 99).
Ao interpelar o mundo, o atleta sempre abre novos campos e modos para se
exprimir. Uma tarefa sempre inacabada e irrealizável na sua totalidade. Um estado
de criação corporal capaz de dimensionar a visão, transformar o invisível em visível,
56
numa dialética de visibilidade construída a partir do olhar corpóreo, do movimento e
da subjetividade.
Formas diversas de perceber as coisas do mundo, em que o corpo aparece
não como receptor, mas como mundo em si mesmo. Uma comunicação ininterrupta
e interdependente do interior com o exterior, dada pelo despertar do olhar para além
da visão comum que busca, por meio do sensível, o entrelaçamento do vidente e do
visível, afinal, “O visível a nossa volta parece repousar em si mesmo. É como se a
visão se formasse em seu âmago ou como se houvesse entre eles e nós uma
familiaridade tão estreita como a do mar e da praia (MERLEAU-PONTY, 2009, p.
128).
Assim, a ideia de um olhar universal é irreal. Isto porque, tanto para o pintor
quanto para o atleta, o olhar, o movimento e o pensamento como processos
intrínsecos, só ocorrem no diálogo do corpo com o acontecimento, do olho enlaçado
ao visível, do visível posto no vidente. Um apalpar corpóreo, em que esporte e
mundo jamais cessam de serem vividos, experimentados e olhados.
O desdobrar da visão permite que o homem desvende o mundo, entregue-se
a ele e descubra novas formas de ver que transcendem o olhar comum, ou seja, que
conduzem a uma estesia e estranhamento dos sentidos.
Uma capacidade de ver que permite ao corpo se ligar às coisas e aos outros,
instituindo a circularidade dos acontecimentos, nos quais o contato aparece como
sintonia de transformação, revelando através desse envolvimento os entremeios da
visão e da relação entre o eu e o outro.
Contato com o adversário
Em sua dinâmica, o handebol é considerado um esporte de defesas de
território, representado por uma ocupação do espaço defensivo, num constante
ataque contra a defesa, transformando, na maioria das vezes, atacantes em
defensores, defensores em atacantes, de forma rápida e repetitiva dentro da partida.
Em sua própria essência, alicerça vigorosas disputas que se perduram em
todos os momentos, situações em que ataque e defesa se misturam em função de
57
um território a ser conquistado, seja para conseguir o gol, seja para impedir sua
tentativa.
No handebol, vence quem fizer mais gols. Ele se caracteriza por uma luta
prévia a este, qual seja, o de se conseguir uma posição e uma situação que facilitem
a marcação do gol.
Como afirma Sanches (1992), essa modalidade se caracteriza por uma
intensa luta entre conseguir essa posição favorável, e, no caso da defesa, impedir
que se consiga tal posição. Sendo esse embate um quadro de grande contato físico.
Devido às suas características técnicas, em que a bola é segurada por no
máximo três segundos, podendo, nesse período, passar o adversário, efetuar
passes de uma extremidade à outra da quadra, ou arremessá-la contra as traves
contrárias para efetuar o gol. Sua peculiaridade não deixa imune o corpo do contato
forte dos adversários, nos contextos ofensivos e defensivos.
Essas particularidades do handebol e o movimento dinâmico da partida
certamente imprimem grande velocidade a partida. Movimentos ríspidos, gestos
sutis e uma ânsia pela realização do gol. O que gera, sem dúvida, uma luta no
sentido de se conseguir a sua facilitação, através do “controle” do corpo do outro,
dos espaços vazios e da própria bola.
Sobre esse contexto, Rota, Pelissari e Krebs (2003) ressaltam que, dentro de
uma partida de handebol há situações corriqueiras entre seus participantes, tais
como: segurar o corpo, empurrar a mão, bloquear o caminho do adversário,
interceptar a bola, dentre outros. Essas ações podem se transformar, por vezes, em
atitudes agressivas e hostis, formas de expressão que são necessárias para se
atingir os objetivos da própria modalidade. Entretanto, essa proximidade entre os
competidores é regida por um conjunto de regras que regulamentam o toque
corporal nessa modalidade, o que reduz, em sua maioria, comportamentos danosos
e de extrema violência.
Como qualquer esporte coletivo com a presença de adversários em constante
oposição, em que se busca o contato corporal com a finalidade de “parar” o
adversário, o handebol engendra no contato direto entre os corpos, sendo, portanto,
uma experiência aberta aos sentidos.
58
Nesse encontro com o outro, os corpos se entrelaçam e se reconhecem,
mesmo diante do embate. Mas isso se impõe como inédito na partida, sempre em
construção, tornando cada momento uma nova experiência e uma nova relação.
De fato, esse contato nunca é igual, pois os corpos não são os mesmos. As
situações dentro de uma partida variam, os jogadores mudam e os movimentos
realizados jamais se repetem, apesar de ser o “mesmo esporte”.
Ainda que haja uma observação anterior de vídeos e imagens ou um scout33
feito do time a ser enfrentado, em quadra, tudo parece novo. É o toque, é o gesto
realizado, é a contorção do corpo e suas virtualidades. Na partida, tudo se faz
instável, preciso sentir o corpo das adversárias para saber como jogar. Pois, como
diria Serres (2004, p. 63), “nosso corpo transborda virtualidades”.
Embora o handebol se repita enquanto estrutura no sentido da organização
que o constitui, seus elementos marcados pela repetição flexionam-se ao novo,
havendo sempre no movimento contínuo da partida transformação e um novo sentir
por existir.
O contato com a pele do outro e o fato de perceber sua presença marcam
minha carne e provocam um excedente de sentidos. Cada toque vivido torna-se uma
extensão dos meus gestos e do meu próprio ser no outro, uma correlação na qual
modifico e sou modificada, me transforma nele e em mim mesma, mas também
exprime um outro de mim.
Meus atos impõem ações dos adversários em mim, fazendo-nos participantes
de um mesmo gesto, abrindo-nos para os imprevistos e nos deslocando em direção
ao que ainda não sabemos.
No inesperado do gesto realizado, quando há uma quebra em relação ao que
estava previsto, o movimento fundado na incerteza de um não saber, exige de mim
reações diversas, criações e surpresas que revelam uma nova existência.
Diante do handebol, estão colocados em cada instante: esquivas e
aproximações; afetos e desafetos; virilidades e sutilezas. Movimentos rápidos, fortes
e contínuos que inebriam o outro a mim. Os corpos se tocam! E o contato representa 33 O scout é uma ferramenta de registro das informações e análise do jogo. São folhas de análises que identificam os pontos fortes e fracos de uma equipe, bem como a técnica de cada atleta. Os dados podem ser feitos de forma manual ou através de programas de computadores específicos, podendo ser criado de acordo com o interesse de cada comissão técnica. Geralmente, em uma competição, os jogos são analisados com esse instrumento. Assim, com os dados quantificados, a comissão busca compreender o jogo do adversário para obter a vitória.
59
ao mesmo tempo repúdio e acomodação; aproximações e distanciamentos; força e
sutileza; confronto e consonância. O corpo não para! Ele se move num vai e vem,
alternando consigo e com o outro, um gesto e um contato inebriados de sentidos!
Como concebe Merleau-Ponty (2011, p. 251):
A comunicação ou a compreensão dos gestos pela reciprocidade entre minhas intenções e os gestos do outro, entre meus gestos e intenções legíveis na conduta do outro. Tudo se passa como se a intenção do outro habitasse meu corpo ou como se minhas intenções habitassem o seu.
Esses antagonismos se fazem presentes ininterruptamente entre os
adversários, um paradoxo que permite que eu reconheça na gestualidade do outro
um novo diálogo para o meu deslocamento e o meu tempo. Posto que, na força do
movimento técnico, há a leveza da plasticidade corporal. Afirmando nessa dualidade
e na tensão entre os jogadores, a variação do corpo: “mãos, pés, coração, nervos e
músculos propiciam poder, leveza, adaptação e fôlego” (SERRES, 2004, p. 38).
Isso implica dizer que somos seres de abertura, que estamos dispostos ao
mundo e aos outros, numa relação dialética. Logo, os fatos vividos não são dados
isolados em nós, mas nascem nas nossas relações com o mundo e com os outros.
Nessa intersubjetividade, própria do existir humano, as nossas experiências,
são sempre renovadas, e os acontecimentos vão adquirindo novos sentidos na
medida em que o homem é afetado pelas experiências do outro na sua.
É por meio desse corpo como potência de vida, sempre em contato com o
mundo, que os adversários se fundem numa dinâmica imprevisível. Um estreito
corpo-a-corpo em movimentos opostos, acoplados como uma ação a dois.
O envolvimento com as adversárias dentro do jogo causa estranheza e
provoca os meus sentidos, não apenas os de repulsa, mas os de empatia e de
encantamento. Sensações que se dão entre os gestos que realizo e as malícias
delas para deter os meus.
Nessa relação em que o corpo cria novas expressões anteriormente
incorporadas, meu corpo deixa-se arrebatar por essa sedução e o envolvimento se
faz presente em duplo sentido, quando tento fugir delas e quando sou capturada por
elas. Ambos os movimentos estabelecem um diálogo entre nós. Um ser a dois, como
diria Merleau-Ponty (2011).
60
Nesse contato com o outro, no mundo externo em que habito, meu mundo
não é um mundo particular e objetivado apenas pelas minhas percepções, mas o
meu mundo resulta do outro em mim.
A minha universalidade encontra a universalidade do outro, e nessa
integralidade entre eu e o outro, vamos nos lançando no mundo, percebendo e
compreendendo, por meio do experimentável, o mundo e os outros como inerência
de uma mesma vida.
Assim, entre tensão e incertezas, aproximações e separações, a partida
acontece, desenvolvendo, sem nome específico e sem previsões concretas, uma
imbricação dos corpos.
[...] ora, é justamente meu corpo que percebe o corpo de outrem, e ele encontra ali como que um prolongamento miraculoso de suas próprias intenções, uma maneira familiar de tratar o mundo; doravante, como as partes de meu corpo em conjunto formam um sistema, o corpo de outrem e o meu são um único todo, o verso e o reverso de um único fenômeno, e a existência anônima da qual meu corpo é a cada momento o rastro habita doravante estes dois corpos ao mesmo tempo (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 474).
Nesse pensamento, o jogo é uma possibilidade de intermédio entre mim e o
outro, de uma presença que me cativa, transcende meus sentidos e me faz habitar
no mesmo mundo que o seu.
Desse modo, o corpo se move numa sinergia de múltiplas sensações,
expandindo sua dimensão sensível através da vivência com o outro, indicando o que
afirma Merleau-Ponty (2011, p. 474) acerca do homem e das relações
intersubjetivas: “[...] nós somos, um para o outro, colaboradores em uma
reciprocidade perfeita, [...] nós coexistimos através de um mesmo mundo”.
Essa entrega demonstra que o outro faz parte de minha carne, que estou viva
e que, por meio dele uma experiência cinestésica habita meu viver, possibilitando
que eu transfira a ele a experiência que possuo do meu próprio corpo.
Na crítica à visão mecanicista de corpo, o filósofo Merleau-Ponty (2011)
elucida o movimento corporal ligado ao interesse cognitivo de agir no mundo. Nessa
situação o homem se entrelaça ao vivido numa liberdade sensível, caracterizada
pelo poder que tem de mover-se deliberadamente e de decidir quais movimentos irá
realizar diante do mundo e do outro.
61
Para o autor essa experiência é entendida como a exploração associada dos
sentidos humanos quando o corpo coloca-se em situação para poder perceber o
mundo, em suas palavras:
Se aproximo de mim o objeto ou se o faço girar em meus dedos para "vê-lo melhor", é porque para mim cada atitude de meu corpo é de um só golpe potência de um certo espetáculo, porque para mim cada espetáculo é aquilo que é em uma certa situação cinestésica (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 406).
Nesse caso, meu corpo, em permanente posição para perceber o contexto do
jogo, toma perspectiva sobre ele e o liga às situações cinestésicas, a fim de dar
lugar a uma experiência aberta de sentidos em posse da ligação do outro em mim.
Uma relação entre percepção e movimento que se faz de forma
indeterminada entre eu e o outro, numa comunicação estesiológica fundada na
amplitude de nossas tomadas perspectivas.
E esse corpo estesiológico, de acordo com Merleau-Ponty (2009), é o corpo
na experiência sensível, quando, em sua entrega ao mundo, cria, improvisa e revela
uma profundeza de sentidos aquilo que vive.
Por isso, a plasticidade dos meus movimentos, a luta enfrentada, a força
executada e o próprio corpo embalado pela jogada livre a mover-se, me arrebatam e
me envolvem, por meio da sensibilidade posta do outro em mim, quando, em
movimento, toco e sou tocada.
Como se observa na Fotografia 04, a seguir, meu corpo está enlaçado às
outras atletas, não sendo possível definir quem inicia o contato. Pois ao mesmo
tempo em que eu sou tocada pelas adversárias, elas simultaneamente me tocam.
Sinto-me aí entre apalpante e apalpada, tangível e tangente, tocante e tocada, de
modo que vou me misturando a elas e elas a mim. Vamos nos atando pelos
movimentos dos nossos corpos, criando uma transitividade de um corpo ao outro,
numa apoteose sensível da imbricação entre eu e elas.
62
Fotografia 04: Contato com as adversárias Fonte: http://www.cbdu.org.br (2011)
Nesse encontro, torna-se
evidente que o mundo de minhas
adversárias é acessível a mim,
que os gestos delas se tornam
meus e que sou afetada por
suas condutas. O abraço de
suas amplitudes permite que eu
repouse meu corpo, mesmo que
rapidamente, entrelace-me com
elas, entregando-me em
movimentos fortes, e ao mesmo
tempo suaves. Tudo isso
dilacera minha existência em
busca de novos gestos, novos
movimentos, dando-me uma
nova dimensão de estar nesse
mundo e por ele ser afetada.
Esse sensível que se
impõe em mim quando sou
tocada pelas adversárias, quando
somos ultrapassadas pelo mundo esportivo, é o corpo como sinônimo de
sensibilidade. Conforme esclarece Nóbrega (2000, p. 6), a respeito da noção de
corpo em Merleau-Ponty: “o corpo não é coisa, nem ideia, é movimento,
sensibilidade e expressão criadora”.
É por meio dele que sou sintonizada ao esporte e aderida ao mundo, sendo
absorvida pelas nuances dos outros e me constituindo enquanto sujeito por sua
porosidade e pelos sentidos nele despertados.
Na obra O Visível e o Invisível, reconheço esse sensível a partir da
compreensão de corpo no filósofo citado, em especial a compreensão de corpo
carne, que não é o corpo objeto, nem tampouco pensado pela alma. Mas corpo que
é sentiente e sensível, compreendido dentro de uma reversibilidade, em duplo
sentido daquilo que sente e daquilo que faz sentir (MERLEAU-PONTY, 2009).
63
Para ele, a reversibilidade aparece sendo tanto aquilo que dá visibilidade ao
corpo carne como também uma propriedade e virtude primordial da carne. Se
minhas mãos tocam uma à outra, o mundo de cada uma abre-se para o da outra,
pertencendo ambas a um único espaço da consciência, pois um só homem toca
uma única coisa por intermédio das duas, sendo ambas, de acordo com Merleau-
Ponty (2009), tocantes e tocadas.
Um corpo humano está aí quando, entre visível e vidente, entre tocante e tocado, entre um olho e o outro, entre a mão que produz uma espécie de recruzamento, quando se acende a faísca do senciente-sensível, quando se inflama o que não cessará de queimar, até que um acidente do corpo disfarça o que nenhum acidente teria bastado para fazer... (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 18).
Pela propriedade da reversilibilidade há um círculo entre palpante e palpado,
visível e invisível, o vidente não existe sem o visível, há uma inscrição do palpante
no visível e do visível no tangível, de modo que também somos mundo com outro e
ele com nós (MERLEAU-PONTY, 2009).
Essa noção de subjetividade encarnada, essa carne com a qual coexistimos
no mundo, por meio dessa duplicidade inseparável de sentidos, se revela em meu
corpo quando jogo, como revelou anteriormente a Fotografia 4.
Trata-se de uma relação entre o corpo sensível do outro e o poder sentiente
que habita o meu. Uma experiência vivida no corpo, numa imbricação total consigo e
com o outro, entre o sentir e o ser sentida, em que há uma tomada de sentidos
intensa, um arrebatamento corpóreo, uma indivisão de corpos e uma entrega total
àquele momento.
O corpo, portanto, encontra-se em constante troca com o outro, trocas que
alimentam a existência, abrem novas possibilidades de viver, de ser construído
socialmente e de revelar sentidos e novas formas de existir. Uma existência que não
despreza o contato entre os corpos, ao contrário, ratifica essa importância para a
própria constituição do ser.
Para Merleau-Ponty (2004a), há no mundo a necessidade do outro, em que
ele não é apenas um ser pensante no mundo, nem tão pouco um objeto para mim.
Mais do que isso, é o outro eu-mesmo, sem que eu possa dizer que seja eu, pois ele
64
não se reduz a uma formulação minha, mas uma presença comigo, habitantes de
um mesmo mundo sensível, um só comigo.
Dessa forma, vivo o mundo pelo meu corpo e também pelo corpo do outro,
indicando nesse estreito eu/adversário que estou viva no mundo, pois, “só sentimos
que existimos depois de já ter entrado em contato com os outros” (MERLEAU-
PONTY, 2002, p. 48).
De acordo com o autor supracitado, o outro é importante não apenas por sua
utilidade, mas para a felicidade e para a vida, o que nos faz compreender que, ao
lançar o corpo em jogo, lanço-o ao mundo e aos outros, fazendo ambos,
semelhantes a mim.
Eu e o outro somos como dois círculos concêntricos, e que se distinguem apenas por uma leve e misteriosa diferença [...] É no mais íntimo de mim que se produz a estranha articulação com o outro; o mistério de um outro não é senão o mistério de mim mesmo (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 168, 169).
Nesse contexto, conheço as adversárias através de seus corpos, pelas
sensações que eles me proporcionam. Efeitos que constituem em cada relação o
fundamento de minha existência. E ela não está dada, ela é sim, experiência do
corpo vivido. “Não vivemos a princípio na consciência de nós mesmos – nem
mesmo, aliás, na consciência das coisas – mas na experiência do outro”
(MERLEAU-PONTY, 2004a, p. 48).
Desse modo, meu ser, revelado por intermédio do sensível e contagiado pela
existência do outro, abre-se para o que se passa no mundo esportivo, entrega-se
sem restrições, tornando-me potência de compreensão alheia.
Viver o contato com o outro é construir uma existência de relações,
aumentando a compreensão de nós mesmos enquanto seres de um mesmo mundo,
partícipes de uma mesma experiência, com significações diversas.
É nas relações intersubjetivas que o homem vai criando, transcendendo e
atribuindo significados às relações vividas. Por meio dessa comunicação, da mistura
de corpos, pelos sentidos que os unem e pela cinestesia de suas experiências,
fazendo de cada vida, a um só tempo, uma história pessoal e coletiva.
65
Nessa perspectiva, é o vivido, o envolvimento do homem com os outros e as
relações estabelecidas no mundo, que são produtoras de conhecimento. Um
conhecimento que não é uma razão objetiva, uma lógica homogeneizante, reduzida
às faculdades da consciência, mas aberta ao sensível, ao fluxo da experiência
vivida, aos sentidos do corpo.
Como afirma Merleau-Ponty (2011), o corpo é referência para a configuração
do conhecimento, evidenciado pelo sensível, pelas relações operadas de incertezas
e imprevisibilidades. Em outras palavras:
Todo o conhecimento, todo o pensamento objetivo vivem desse fato inaugural que senti, que tive qualquer que seja o sensível em causa, uma existência singular que tolhia repentinamente o meu olhar, e contudo prometia - lhe uma série indefinida de experiências, concreção de possíveis desde já reais nos lados ocultos da coisa, lapso de duração dado numa só vez (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 184).
Esse sentir está unido à atitude do corpo, em cada gesto lançado ao mundo,
em cada ato vivido, em cada aproximação do meu corpo aos demais corpos,
adversárias e companheiras de equipe.
Segundo Nóbrega (1999), as experiências do corpo possibilitam diferentes
perspectivas em sua abertura ao mundo e aos outros, configurada pela linguagem
sensível dos gestos, dos silêncios, do pensamento e da fala, o que expressa:
[...] a unidade da existência humana de forma profunda, com suas incertezas, sua imprevisibilidade e abertura a diferentes interpretações, unindo conceito e vivência e criando a possibilidade de novas formas de elaboração do conhecimento (NÓBREGA, 1999, p. 116).
Nesse pensamento, a tensão do encontro com o outro em quadra compõe um
conhecimento através da linguagem sensível que se mostra quando nos diluímos-
nos um no outro. Porque nosso encontro não se dá por protótipos gestuais, assim
como o que criamos para separarmo-nos não são fórmulas ensinadas, mas uma
criação sensível que expande o ser, impulsiona para o novo e afeta a existência.
Uma existência atada por um mesmo palco, no qual rompe com a lógica
determinista do contato físico e desconstrói o pensamento racionalista da fisiologia
mecanicista do estímulo-resposta, como algo pronto. Que não nega a rivalidade e a
competitividade dentro da quadra, mas que revela o estado sensível do corpo ao ser
66
afetado pela experiência estética dada na relação inacabada com outros corpos,
evidenciando que “o movimento da existência em direção ao outro, em direção ao
futuro, em direção ao mundo pode recomeçar, assim como o rio que degela”
(MERLEAU-PONTY, 2011, p. 228).
Portanto, essa relação intercorpórea com o outro e o vínculo estabelecido
nesse contato colocam o corpo como universo aberto para todas as sensações da
sensibilidade, numa unicidade de existência que ensina sobre nós mesmos, sobre o
outro e expande ontologicamente o viver estético para outra forma de existir.
Diante disso, pode-se compreender que o corpo do outro em qualquer
situação que seja executa gestos, palavras, sinais e expressões que se põem a ser
decifradas, um terreno anônimo no qual os corpos são acoplados na mesma ação
pela reciprocidade de sentidos que se faz para si e para o outrem, imbricando, por
meio do quiasma34, corpos que se constroem a partir do pensamento que:
O outrem não é tanto uma liberdade vista de fora como destino e fatalidade, um sujeito rival de outro sujeito, mas um prisioneiro no circuito que o liga ao mundo, como nós próprios, e assim também no circuito que o liga a nós – É este mundo que nos é comum, é intermundo (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 241).
Nesse sentido, perceber o mundo é estar ligado a ele por meio da dimensão
dos sentidos, pelas experiências do corpo e pelas construções sensíveis da
existência do meu corpo ao corpo do outro e ao mundo.
Uma experiência que faz compreender que o corpo não é concebido como
algo determinado, mas é um sujeito de relações, estabelecido por meio dos vínculos
corporais propagados no mundo.
Assim, apontando o corpo como campo de todas as significações e a
presença do outro e do mundo como constituição do mesmo, podemos compreender
que o corpo é uma construção social, repleto de uma subjetividade construída na
intersubjetividade, ou seja, uma imbricação total com as coisas que compõem seu
mundo de existência. De certo, tudo está entrelaçado no campo que constitui a
34 Na obra O visível e o invisível Merleau-Ponty (2009) reflete a relação homem/mundo através da ideia do quiasma, afirmando não haver distinção entre homem e mundo, homem e outros corpos, corpos e outros corpos. Nessa pensamento, pela ideia do quiasma é possível compreender que todas as coisas pertencem a uma mesma carne, a carne do mundo.
67
maneira do homem ser, uma existência elaborada de significados que atribuem
sentidos a cada nova revelação.
O homem, aberto ao mundo das transformações constantes, é uma
comunicação dos sentidos consigo mesmo e com o mundo, em que o corpo dá a
condição de possibilidade de ser afetado, sentir afetos e afetar o outro.
Como esclarece Caminha (2008), o processo de subjetivação do corpo é
intersubjetivo, o corpo é o lugar não somente de fundação da subjetividade, mas
também estrutura de identidade do sujeito, elaborada por meio das relações
intersubjetivas, que são, originalmente, intercorpóreas. Corpos que aqui e agora, por
reversibilidade, fundem-se num só, ou seja, uma inerência corporal fundindo entre si,
relações que ultrapassam a repulsa e a passividade para se transformar numa
empatia das afeições do sentir corpóreo e da cognição sensível.
Isto porque, o corpo e seus sentidos permitem o contato com o mundo, a
comunicação com ele é uma junção de corpos que torna o homem orgânico,
histórico e social, capaz de criar, de agir, de pensar e de sentir numa correlação do
“eu” e do “nós” como uma rede mutuamente compartilhada.
A intercorporeidade estabelecida nessa relação faz pensar que o homem age
simultaneamente por si e pelos outros, criando nesse processo horizontes singulares
e de convivência, o que pressupõe que sua existência é pessoal, constituída de um
histórico-social como solo de um mundo comum entre os corpos, em que “meu
mundo se acha ampliado na proporção histórica coletiva que minha existência
privada retoma e assume” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 580).
Assim, o homem vai sendo construído por cenários socioculturais, marcados
pelas experiências vividas de desconforto e de paz, de fuga e de empatia, de
presença e de ausência. Um circuito mundo-corpo-outro criador de marcas
sensoriais inscritas na dinamicidade das relações.
A prática esportiva ensina sobre essa relação, ensina a jogar com o outro na
quadra e na vida, ensina a entender o momento de aproximar e distanciar, de ir e de
vir, de afagar e de sair, aceitando o outro como extensão significante para se
estabelecer criações, provocações e organizações diante da quadra e da vida.
68
A vitória e a derrota – leveza e peso
No handebol a partida acontece com duas equipes de 7 jogadores em cada
uma delas, sendo 6 na linha e 1 gol. Além disso, um time pode ter ainda mais 5
reservas, que ficam à disposição da comissão técnica para entrarem a qualquer
momento, quando houver necessidade.
Em quadra os atletas buscam realizar o gol, movendo a bola de mão em mão
por meio de passes ou se deslocando com ela, quicando-a no chão
ininterruptamente.
Dentro desse formato, esse esporte se engendra pela alta competitividade,
pela performance máxima e pela atenuação dos erros em busca da vitória. Para
alcançá-la é necessário obter um maior número de gols dentro da partida.
A díade vitória/derrota no handebol como em qualquer outro esporte funda-se
na imprevisibilidade. E, para isso, não há presunção. A audácia dos jogadores vai
constituindo o seu resultado final, o que torna imprevisível e surpreendente os seus
resultados.
Por esse motivo, nem sempre vence o time mais expressivo ou equipe que
possui os melhores atletas. Embora essas características sejam importantes, para o
atleta a conquista de uma partida ou de uma competição pauta-se na fluidez do
corpo, no sentido coletivo e na atuação em quadra.
Por isso, vencer ou perder não inclui apenas o placar final. Há uma antítese
vivida pelos atletas que é a “derrota com sabor de vitória” e a “vitória com sabor
amargo”, a qual se refere, respectivamente, à suplantação do desempenho
esperado ou um rendimento inferior, aquém daquilo que normalmente a equipe
apresenta.
Nessa ambivalência o resultado esportivo representa algo mais que o seu
significado imediato. Vitória e derrota constituem uma infinidade de vicissitudes
demarcadas sem contexto prévio. O atleta não sabe, mas o corpo quer mais,
movimenta-se incessante, construindo possibilidades de reinventar-se a si mesmo,
de avançar, de repousar e de recomeçar tudo outra vez.
69
Quando me entrego às quadras, não há espaço para pensar em mais nada.
Meu corpo está, vai se situando no mundo por meio do movimento, sem ter pressa
para sair. Não há inércia. As sensações eclodem no corpo quando jogo. A cada
passo, uma nova história. Ele dilata-se, move-se, segue adiante, experimenta o
mundo.
Por isso, mais que o resultado final, o contexto esportivo é uma das
experiências mais extraordinárias que já vivi. Talvez porque sua sinergia me faça
experimentar sentimentos nunca antes sentidos, me faça tocar o que sem ele eu não
tocaria e me faça ver o mundo para além da minha visão comum. Tudo acontece de
forma imprevista. Ele penetra minha dimensão corpórea e ascende sentidos à minha
existência por meio da experiência do ganhar ou do perder.
Não há limites para as várias formas de envolvimento com o resultado de uma
partida ou de uma competição. Ele penetra na dimensão corpórea, ampliando a
sensibilidade para uma nova forma de sentir e de se entregar ao mundo por
intermédio das correntezas da sinergia.
Nessa direção, sendo a estesia na visão de Merleau-Ponty (2006) o
movimento ontológico do corpo, uma explosão metafísica do homem ao ser afetado
pelas coisas que compõem o mundo da beleza e o âmbito esportivo. Orgânica e
sensitiva, a estesia arrebata os sentidos pela entrega corpórea ao universo da
experiência estética, impulsionada pela experiência do corpo no mundo, interagindo
com os encantos da beleza.
O conceito de estesia do corpo em Merleau-Ponty, apresentado nas obras
Fenomenologia da percepção (2011), O visível e o invisível (2009) e O olho e o
espírito (2004b), apresenta-se na percepção do corpo por meio dos sentidos,
afastando-se consideravelmente do racionalismo, rompendo com as dicotomias
clássicas e com a linearidade humana.
A estesia por intermédio do acontecimento esportivo faz das sensações o
sentido sublime dos atletas se reconhecerem como humanos, como seres que não
são máquinas, manipulada e esteriotipada, mas agentes ativos na produção da
experiência, sujeito corpóreo, sensorial.
O corpo do atleta é fonte da estesia, quer dizer, uma capacidade fisiológica,
simbólica, histórica e afetiva de impressão dos sentidos, capaz de alterar todo o
70
organismo quando é afetado através dos sons, dos ritmos e dos movimentos que o
esporte proporciona.
A proposta fenomenológica do filósofo supracitado apoia-se em uma
compreensão sensível do conhecimento, da vida e do corpo. Uma perspectiva que
faz compreender que, no atleta ela se realiza quando o jogo invade seu corpo e se
apossa dele para um entrelaçamento do senciente com o sensível. Um êxtase e
uma emoção que aflora, que lhe destaca no tempo, da vida ordinária e do
anonimato, para um corpo glorioso35, do sentir orgânico que conecta o corpo ao
mundo e aos outros como um suplemento de sentido.
Sendo assim, seja qual for o resultado obtido, ele se constrói na experiência
estética, no universo da sensibilidade que vai sendo construída pelo mundo da
experiência vivida, da indivisão do meu corpo e dos outros corpos: tu e eu, nós.
A exemplo de uma derrota, o momento é dado a uma manifestação emocional
desencadeada na maioria das vezes pela tristeza, pela raiva e pela frustração, uma
espessura de sentidos na textura dos acontecimentos vividos.
A derrota, por exemplo, produz significações mais amplas que a definem
como perda. Pois, embora perder faça parte do repertório de todo atleta, na maioria
das vezes, ela gera decepção. Como explica Rúbio (2006), diante do resultado
obtido e comparando-o com o desejado, é compreensível o sentimento de fracasso
do atleta quando ele não consegue atingir sua meta.
Para a autora, os momentos de derrota são sempre tidos como próprios para
avaliar erros e refazer planejamentos, levando atletas e equipes a se considerarem
duplamente punidos. Isso reforça o desconforto e o peso que essa categoria traz,
sobretudo, pela ligação do esporte com o imaginário heroico de força, conquista,
recordes e vitórias.
Perder é ruim, e até doloroso. Promove a frustração, mas também a
superação. Quem já perdeu uma vez, perderá outras vezes ainda. É um ciclo de
término e de recomeço. E não há dúvida que quem perde não domina a tristeza. Ela
vem, rouba os sorrisos e mostra a condição dúbia que o esporte proporciona.
35 O corpo glorioso é um termo adotado por Merleau-Ponty e refere-se ao corpo iluminado pelo contato do visível e do tangível (MERLEAU-PONTY, 2009).
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Fotografia 05: O peso da derrota Fonte: http://www.cbdu.org.br (2011)
Ao perder um jogo em
uma competição nacional, a
tristeza toma conta de mim,
evidenciando o peso da derrota
(Fotografia 05). Mãos ao rosto,
cabeça baixa, vou me desviando
em pequenos passos para fora
da quadra, e meu corpo,
aparentemente em estado de
impotência, vai chorando o
mundo que deixou. Nesse
momento solitário e doloroso,
vou revelando a dor e a angústia
pela tristeza da torcida, pela
alegria do adversário, pelo
movimento “não acertado”.
Nesse instante, percebo
como é difícil suportar aquilo que
não pode mais ser revisto. As
luzes se escurecem, os sons se emudecem, o trágico parece não ter fim, e a
realidade teima em existir.
Perder gera peso, suscita desconforto e provoca o desalento. Sentidos que
nos atingem e com os quais não queremos nos deparar. Pois, compreendido como
um desvio do caminho natural, ao apregoado em nossa cultura, que tem como
modelo social a vitória, a derrota, na maioria das vezes, soa surpreendente demais,
trazendo, entre outras coisas, a solidão.
Mesmo no caso de um esporte coletivo como é o handebol, a derrota traz um
peso individual, em que os afagos, abraços e toda coletividade são esquecidas pela
ausência do contato e pelo isolamento necessário, restando “a vergonha pelo
objetivo perdido, a confusão com a incapacidade e a falta de reconhecimento pelo
esforço realizado” (RÚBIO, 2006, p. 3).
Por outro lado, embora haja esse peso em momentos de derrota, não é o
resultado final nem a possibilidade de vitória que me faz permanecer em quadra, ao
72
Fotografia 06: Pan-americano 2001 Fonte: Arquivo da autora (2001)
contrário, é o próprio contexto do jogo, as sensações sentidas e o prazer de jogar
que me atraem a esse mundo independente do seu resultado.
É certo que na vitória os sentimentos eclodem na entrega do corpo ao
momento de conquista, de superação, de realização pessoal, e principalmente de
alcançar um lugar no pódio. Sentimentos esses mediados pelo reconhecimento e
pelo coroamento que tem como símbolos: festejos, medalhas e troféus.
Embora no mercado essas premiações tenham preços simbólicos, para o
atleta seu valor é inestimável, conquistá-los é algo duradouro e inesquecível que
desperta e reconvoca por inteiro seus sentidos e suas emoções, em momentos de
vitória e de conquista.
Como pode ser visto, a
felicidade toma conta de minhas
expressões. Não penso em mais
nada, apenas sorrio, expressando a
felicidade por ter conquistado uma
competição (Fotografia 06).
Pois, diferentemente da
derrota, a vitória traz alívio, alegria e
leveza. Ela deixa o corpo leve, tira
do chão os pés dos que dela
participaram e dos que a
comemoram. Seus sentimentos são
de euforia, de êxito e de celebração.
Traz o afago inebriante, o choro
contagiante e retira por algum tempo
a sintonia e afinação com a
realidade, levando o atleta a uma
plenitude una e indivisível que
atravessa o corpo e afeta de
maneira profunda a sua existência.
É como se ali, entre as quatro linhas, tudo fosse mais intenso e de fato é. A
comemoração, o sorriso, o grito, o choro, os abraços e beijos, quase sempre, dos
mais sinceros. O olhar cúmplice e a persistência coletiva e menos egoísta, eis
73
algumas das manifestações das mais humanas vividas no esporte. Acontecimentos
onde não há maiores considerações, além das atitudes que são tomadas naquele
momento.
Por isso, a intensidade do ser atleta move a busca pelo prazer da conquista,
da perfeição do movimento, da beleza dos gestos e da eficiência tática, favorecendo
uma mistura de corpos, de usos e de costumes diversos. Indivíduos diferentes que,
em prol de um único objetivo, tornam-se “uns” para alcançar o desígnio ao qual se
destinam.
No festejo de uma vitória os corpos se misturam, indistintamente e participam
de um envolvente estado emocional (Fotografia 07). Sorrisos, gritos, abraços,
emoções diversas vão surgindo, envolvendo meu corpo e todos os outros ao mesmo
tempo.
A vitória inquieta e reinventa sob novas formas a minha condição existencial.
Esse momento não é ideia, nem imaginação, é ato sensível que se instala no corpo,
movimenta minhas emoções e reencontra no corpo vibrante do outro as mesmas
sensações que percorrem o meu.
Fotografia 07: A leveza da vitória Fonte: http://www.cbdu.org.br
74
Os laços se atam despertando e reconvocando por inteiro meus sentidos e
minhas emoções, em momentos de vitória e de conquista. É impossível não ir ao
encontro das outras, pois não venci sozinha. Aí quando se ganha a coletividade é
um instante necessário, com graus de envolvimento emocionais diferentes, mas
concebidos em unidade, na relação mútua com o grupo.
Ganhar é poder viver essa leveza do corpo em movimento, da vibração que
altera os ritmos dos meus órgãos e também da minha vida, dando novas sensações
à existência.
Os sentimentos surgem em cada instante ali vivido e paradoxalmente
eclodem no corpo a coragem e o medo, o nervosismo e a tranquilidade, a euforia e a
melancolia. Sentidos encontrados por mim no âmbito esportivo e experimentados no
campo da experiência sensível, os quais ganham amplitude através dos gestos e
revelam ao corpo um mundo infindável de sentidos e significados vivenciados em
momentos de vitória e de derrota.
Embora a educação ocidental eduque o homem para ser feliz, alegre e
vencedor, como se a infelicidade, a tristeza e a perda não fizessem parte da vida, no
esporte, os atletas encontram obrigatoriamente o vencer e o perder em seu
contexto. Todos pautados por um educar e uma atribuição de um sentido singular,
sem a necessária hierarquização da vitória.
Como escreve Lovisolo (2009), uma competição que se expressa em ganhar
e perder é a alma do esporte, isto porque, não faz sentido uma em que todos
ganhem, inclusive é contra a lógica da competição esportiva.
É o risco que o esporte impõe, mas que não deixa de incitar o atleta a viver e
se lançar na aventura do esporte, mesmo sem saber o seu resultado. É certo que
muitos esportistas entram em competições sabendo que não poderão ganhar, mas
desejam estar ali para acumular experiência, para superar desempenhos anteriores,
para estarem em uma seleção, para jogarem (LOVISOLO, 2009).
Trata-se de viver o esporte, de ser penetrado por ele e entregar-se ao mundo
por intermédio do sensível, da incerteza, do vir a ser. Tendo o corpo como lugar
onde as formas de sentir ganhem vida e as coisas do mundo adquiram sentidos,
fazendo do esporte um lugar de fundação e afetação humana.
75
Nessa direção, o ganhar e o perder aparecem como elementos importantes
para o que o atleta possa descobrir as diferentes formas de envolvimento com o
mundo esportivo, fazendo deles uma experiência estética sempre nova.
Em todos os casos, não há quem tenha, ao longo da carreira esportiva, vivido
apenas a condição de vencedor, tendo em vista que a vitória e a derrota são as duas
condições básicas que marcam a trajetória atlética.
No caso da derrota, na maioria das vezes ela ajuda o esportista a visualizar
com mais clareza os erros cometidos, os pontos vulneráveis de um atleta ou de uma
equipe e apontam-se aqueles que podem ser melhorados. Enquanto a vitória dá a
sensação de que os erros não foram bastante, que o objetivo foi alcançado e que
tudo foi perfeito. Fato que traz para a derrota e para a vitória, respectivamente,
sentimentos de peso e de leveza. Oponentes que caminham juntos, mas que são
experimentados de maneira paradoxal pelos esportistas.
Caminhos que são percorridos de diferentes formas, abertos aos sentidos do
corpo e as fontes inesgotáveis de significações, o que inviabiliza estabelecer
hierarquias entre o ganhar e o perder, mas que abre espaço para reflexão da leveza
e do peso que neles residem.
Como ressalta Calvino (1990), para vivenciar a leveza é necessário conhecer
a experiência do peso, saber o seu valor. Embora o pensamento do autor esteja
voltado aos valores literários, compreendemos que o conceito de peso e leveza
explorado a partir da sensação do leitor nos permite estabelecer relações com o
vivido no esporte.
No aspecto leveza, Calvino a tem, antes de tudo, como um antídoto ao peso
do mundo. Em que a leveza e o peso em que ele argumenta não referem-se apenas
ao peso corporal, mas aos caminhos explorados da vida.
Nesse sentido, para o autor o homem busca leveza como reação ao peso de
viver, ou seja, ele sai do convencional para olhar o mundo de outras maneiras sem
negar o real, mas aceitando-o de diversas perspectivas. Para ele,
A leveza para mim está associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago e aleatório. Paul Valéry foi quem disse: Il faut être léger comme l’oiseau, et non comme la plume [É preciso ser leve como um pássaro e não como a pluma.] (CALVINO, 1990, p. 28).
76
Nessa direção, a leveza não se reduz aos aspectos do voo, mas busca na
vida o sentido dessa ação, naquilo que conduz o ser ao ato de voar, como algo
consistente, preciso e autêntico.
A leveza e o peso de Calvino são perceptíveis dentro do esporte quando o
momento vivido conduz à sensação de transformar as limitações do que estar posto,
fazendo o corpo buscar novas formas de equilíbro para oscilar e viver a inconstância
esportiva.
Assim, ele coloca o atleta à espreita e o muda por um instante, exigindo
novas formas de ser, de mover, de parar, de equilibrar e desequilibrar. Um vai e vem
constante que modifica a existência pela rigidez e pelo encanto, fazendo do corpo
um refém, sem necessariamente tê-lo como presa.
Isso permite que o atleta encontre com os equilíbrios e desequilíbrios de suas
ações, de uma forma ou de outra, convoca-o as fontes profundas e adormecidas do
seu ser, elevando-o para uma vivência estética que amplia o sentido da vida e
impulsiona o corpo para as coisas ainda não vividas.
A experiência paradoxal do contexto esportivo envolve o corpo numa dança
cinestésica que dilacera as emoções, amplia os horizontes e evoca sentidos para a
existência. Não há contornos definidos, o sensível flui de forma confusa e
indeterminada, atado ao corpo, a sua sensorialidade e ao viver estético.
Nesse mover, o atleta revela sua móvel forma de ser, passando pelo mundo
da criação e da recriação, ampliando o conhecimento e a vivência para um
aprendizado sensível, como uma forma de buscar novos sentidos e significados para
as incongruências que o esporte lhe apresenta.
Há algo no resultado do esporte que vibra o corpo, que faz os sentidos serem
tocados e que estimula o atleta a continuar ali. No jogo o atleta se inunda em
sensações e deságua numa correnteza de significações que refletem a abertura do
ser ao mundo esportivo, sem as determinações do que está pronto. Como afirmam
Fernandes e Lacerda (2010, p. 5): “A vitória e a derrota estão, portanto, implicadas
na experiência estética, manifestando-se a fruição de cada uma delas por um estado
emocional que conflui para uma multiplicidade de opiniões e formas de sentir e viver
o momento”.
77
Para as autoras, não há dúvida de que o esporte leva ao corpo sensível do
atleta, experiências e estados emocionais multiformes expressos nas sensações
decorrentes dos resultados por eles alcançados.
Por isso, ele é capaz de mobilizar os sentidos, de confundir as categorias
lógicas e de ascender à existência para um viver estético sem limites, visto que nele
o vivido se faz propósito de sua existência e encontra no atleta um mundo vivo,
expressivo e em constante movimento.
Afinal, o esporte é assim, permite ao corpo viver tudo de novo, tudo diferente,
repetir o novo. Uma abertura ao desconhecido. Experiências que se renovam e
tecem um nó de significações, configuradas pela plasticidade do corpo em
movimento, afinal, “[...] tudo o que vivemos ou pensamos sempre tem vários
sentidos” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 233).
Se o esporte institui diferentes sentidos e valores em seu contexto, nos
conduzindo a uma liberação de pulsões, emoções e prazeres inimagináveis, a
experiência estética nasce desse encontro sensível entre atleta e esporte, em que o
sentido não está em nenhum deles isoladamente, mas na interação estabelecida
entre eles.
Nela, o mundo vivido, pautado na sensibilidade de existir, revela, a todo
instante, sentidos que não estão na ordem por vezes lógica e linear do contexto do
esporte, como por exemplo, a alegria na vitória e o choro na derrota. Ao contrário
disso, ela se mostra sempre de forma indeterminada, me colocando entre
interrogações, permitindo que, captada pelos sentidos, o corpo ganhe uma nova
dimensão existencial e se expresse no mundo.
Logo, é por meio da experiência estética que eu me torno sensível ao mundo
esportivo e sou convocada a viver sempre uma nova sensibilidade. Seja pela leveza
da vitória, seja pelo peso da derrota. Um paradoxo que possibilita novas formas de
enxergar, sentir e habitar o mundo. Todos pautados nas múltiplas impressões e
interpretações permitidas no jogar.
A prática esportiva, nas condições apontadas, faz com que a vitória deixe de
ser razão de sua realização e o estético ganhe forma nos acontecimentos que até
então estava latente, fazendo desvelar a cada instante uma nova forma de sentir e
perceber as coisas do mundo.
78
Dessa forma, mesmo baseado numa lógica social contemporânea que busca
a excelência e a produção, o esporte também perpassa por uma lógica pessoal,
apropriado por diferentes grupos e contextos culturais particulares, em que sua
lógica, ao desencadear situações de conflito, estabelece aos participantes
experiências estéticas decorrentes dos seus resultados.
A relação vitória/derrota, materializada no contexto esportivo, afigura-se como
um cenário importante à estruturação da experiência estética do atleta no ato da
competição e também no mundo. Implicações expressas que se consubstanciam em
estados emocionais multiformes incorporadas e atribuídas de significados que
confluem para uma multiplicidade de formas de sentir e existir.
Assim, implicado na experiência estética, o resultado de uma partida
manifesta uma fruição de um estado emocional capaz de transformar as situações
presentes em aprendizados diários. Isto porque, o corpo sensível experimenta-se
em performances que podem ser vitoriosas ou não, consoante o objetivo proposto e
o resultado esperado.
Desta feita, as situações antagônicas vividas na prática esportiva ensinam a
viver no mundo conflituoso em que vivemos. Não por uma receita determinada, mas
uma forma de viver sensível, estabelecida a partir das coisas indeterminadas e
imprevisíveis, as quais, permitem expandir os horizontes para novas formas de vida
e convivência.
A prática esportiva amplifica o corpo no mundo, o mundo no corpo. Ela é a
forma do corpo em movimento, no qual a alegria e a tristeza revelam, a cada
instante, o homem na sua forma de ser, cujas formas podem ser as mais variadas e
imprevisíveis, posto que:
Cada “sentido” é um mundo, e, absolutamente incomunicável para outros sentidos, e, no entanto, constrói um algo que, pela sua estrutura, de imediato se abre para o mundo dos outros sentidos e com ele constitui um único Ser (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 202).
Nesse sentido, a forma inconstante do esporte ou da vida se faz no mundo,
nas indeterminações e nas situações de conflito sempre pronto para revelar a móvel
forma de ser do homem. Um viver sensível que faz o corpo, enquanto carne do
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mundo, abrir-se e entregar-se às manifestações do cotidiano da vida como um
estado sempre inacabado de ser com as coisas do mundo.
A experiência sensível inova o corpo, o faz reviver outras significações, uma
síntese inacabada sempre ampliada por intermédio da afetação estética. Um mundo
aberto aos antagonismos e aos passos de criatividade que se realiza na construção
de cada novo movimento do corpo.
Gesto técnico – a potência criativa do corpo
O handebol é um esporte em que a velocidade, os saltos e os lançamentos
combinados às ações individuais e coletivas compõem as características básicas
demandadas para a sua prática.
Como todo esporte, ele tem movimentos peculiares e uma fundamentação
técnica36, baseada em competências específicas que viabilizam toda a concepção
da modalidade, a saber: o passe37, a recepção38, o drible39, a progressão40, a finta41
e o arremesso42 (VIEIRA; FREITAS, 2007).
Para esses autores, tais movimentos considerados fundamentais no handebol
são gestos técnicos determinados, pautados em formas “corretas” de execução, os
quais apoiam todas as ações ofensivas e/ou defensivas da modalidade, permitindo
que os atletas apropriarem-se deles e os realizem de forma rápida e eficiente
quando solicitado.
36 A técnica esportiva, de acordo com Garganta (1998), trata-se de uma motricidade especializada e específica de uma modalidade desportiva que permite resolver de uma forma eficiente as tarefas do jogo. 37 É a ação de enviar e dirigir a bola ao companheiro de equipe, para facilitar a próxima ação do jogo. 38 É receber, amortecer e reter a bola de forma adequada nas diferentes posições e situações em que o jogador for solicitado. 39 É o ato de impulsionar e dirigir a bola em direção ao solo, uma ou mais vezes, sem perder o controle da mesma. 40 São os deslocamentos dos jogadores na quadra, quando eles movimentam-se de um lugar a outro, de posse da bola, obedecendo às regras do jogo no que diz respeito ao manejo da bola. 41 Constitui-se no ato de mudar a direção ofensiva, ludibriando o adversário a fim de evitar a sua ação defensiva. 42 São os lançamentos efetuados em direção às traves do adversário, para que a bola adentre e seja efetuado o gol.
80
Geralmente, essas técnicas são ensinadas com base no gesto ideal,
obedecendo a determinados padrões justificados por uma eficiência mecânica.
Penetradas pelo saber científico da fisiologia do exercício, da biologia e da
biomecânica, essas técnicas são normalizadas em uma única forma de execução.
Desse modo, elas tornam-se tradicionais, perdurando como uma técnica modelar, a
ser executada por todos os atletas, tornando-se o padrão de correção de todas as
outras formas incompletas ou variantes delas.
Entretanto, dada a complexidade desse esporte, nas suas diferentes fases
(ataque e defesa), sabe-se que as competências para jogar não encontram
respostas apenas no modo de fazer o movimento dentro de um padrão. Ao contrário,
decorre de um conjunto de saberes que não são organizados linearmente, mas
construídos na variabilidade das situações, quando na dimensão do gesto “correto”
ou “incorreto", constitui-se um novo movimento para jogar.
Percebo que esses gestos sempre me envolveram, seja pela dimensão
citada, seja pela indeterminação de sua vivência estética e imprevisível. O fato é
que, ambas revelam, a cada instante, uma nova forma de expressar aquilo que eu
quero fazer em quadra, o que gera uma satisfação não apenas nas criações, mas
também nos duros treinos técnicos, nas sucessivas repetições e no sacrifício
corporal, como expansão do meu ser no mundo.
Mesmo submetida à exigência da vitória, a pressão do sucesso e superação
dos limites, levada a sessões com repetições exaustivas de gestos técnicos e
táticos, visando ao aperfeiçoamento e à melhor aprendizagem dos movimentos,
aparentemente o meu corpo, por vezes, parecia “esquecido”. Isto porque, conforme
afirma Le Breton (2011), geralmente o corpo é visto como um físico, como um objeto
que se adéqua a um modelo ideal, e como uma máquina possante, mas pouco como
existência, como corpo sensível que vive e que sente.
Contudo, ainda que nessas exigências eu manifeste implicitamente a vontade
de não sentir cansaço, de esquecê-lo, tanto quanto for possível, o corpo jamais
deixará sua condição de carne, mesmo diante dos limites, da exaustão e das
repetições. Como constata Le Breton (2011, p. 144), “a repetição das ações leva a
uma erosão dos sentimentos da espessura e da singularidade das coisas”.
Crio, a partir da minha própria experiência, um mundo de sentidos para cada
movimento, para cada gesto. E, a partir das relações, dos sentidos encontrados no
81
corpo, vou aprendendo e compreendendo o esporte. Mas isto supõe um saber
independente de qualquer ensinamento, pois o corpo apropria-se do mundo
esportivo e dos movimentos ali vivenciados, dando-lhes um significado peculiar para
aquilo que foi assimilado.
Como afirma Merleau-Ponty (2011), um movimento é aprendido quando o
corpo o compreendeu, quer dizer, quando ele o incorporou ao seu mundo. Tal fato
pode ser observado na técnica do arremesso. Quando o corpo aprendeu aquele
movimento, não é preciso mais pensar nos detalhes para realizá-lo. O contexto do
jogo me faz realizar. O aprendido não foi um único arremesso, mas a totalidade do
movimento no jogo. Corpo, bola e movimento se afinam em significado. O gesto
técnico deixa de ser desconhecido, me misturo a ele e fundo-me corporalmente.
O movimento acontece no dado instante do jogo, entre o inteligível e o
sensível. Sou o próprio arremesso, meu corpo o abarca, na passagem a um alvo
pretendido, o gol. Ele acontece, o corpo aplica-se ao movimento e o movimento
abarca o corpo.
Nessa direção, quando salto para o arremesso nesta ou naquela quadra,
mesmo que o corpo seja solicitado de maneira diferente, não tenho mais a
concepção de como este movimento deve ser executado, o ângulo que o braço deve
estar, a rotação correta do corpo ou o posicionamento da bola na mão. Corro... E,
passo a passo sinto meus passos na quadra. Acelero ou desacerelo, como se só
houvesse aquele instante, e de fato, é o que há! Aqui não há fingimento, simulação,
nem qualquer outra preocupação para além do gol.
No bailar da bola em minhas mãos, nas ações das adversárias, nos espaços
devidamente preenchidos meu corpo contorce, recolhe, expande... Para cima e para
baixo, para um lado e para o outro, para frente e para trás, em um tempo lento e
rápido, de forma firme e suave! A ida ao gol provoca euforia... Passadas fortes e
leves sobre a quadra e sobre nada, sinto o chão e também o céu. Tenho a
impressão feliz de saltar alto e de voar em pleno ar, mesmo que por poucos
segundos. E nesse instante, já não me apetece nada além do gol, que me liberta e
me cativa ao mesmo tempo, convocando-me a repetir esse gesto que pouco a
pouco me embriaga, abarca meus sentidos e minha existência (Fotografia 08).
82
O arremesso me faz ir além do que imagino ou determino. No encontro com o
confronto, o gesto treinado não é suficiente para revolver o problema que o jogo me
coloca. Sua automatização se mistura a novas formas de realizá-lo, retirando de
minhas entranhas uma gestualidade que não está no rigor de uma organização
premeditada, mas na adaptabilidade do momento, no brincar do corpo com a bola na
mão.
Uma experiência sensível do movimento que ganha amplitude e manifesta no
mover espontâneo do corpo, uma maneira de ser e de estar no mundo. Uma entrega
que expande meu ser para uma comunicação de sentidos e significados,
construídos pela indeterminação das técnicas específicas, e reveladas de forma
imprevisível no contexto do jogo e nas ações do corpo.
Quando me entrego ao arremesso, há um pulsar do coração mais acelerado.
Diante da projeção da goleira e sob o olhar atento da torcida, a técnica executada
toca os lugares mais sutis de minha sensibilidade.
Fotografia 08: Gesto técnico do arremesso Fonte: http://www.cbdu.org.br (2011)
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Fotografia 09: Expressões do arremesso Fonte: Arquivo da autora (2001)
Conforme revela a Fotografia 09, minhas expressões vão mudando de acordo
com o movimento dos gestos. Movo-me explosivamente e vou sinalizando
alterações orgânicas e também estesiológicas, dando ao silêncio dessa ação um
novo sentido ao vivido, revelando que “o gesto está diante de mim como uma
questão, ele me indica certos pontos sensíveis do mundo, convida-me a encontrá-lo
ali” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 252).
Afinal, a sua execução não permite fuga, mas caminhos de escape. Na
brevidade do salto, conforme pode ser visto quando me impulsiono ao gol
(Fotografia 10), meu corpo se move, experimenta, improvisa. E, quando menos
espero, ele inventa novos encadeamentos gestuais, novas formas de vivenciar o
jogo e de fazê-lo acontecer.
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O gesto técnico se abre às interseções do movimento e, no contexto dado, a
técnica é reinventada, evidenciando a potência criativa do corpo e a estabilidade
instável do gesto técnico.
Por isso, o gesto realizado não se reduz a uma mera reprodução, ao
contrário, é sempre uma nova implicação do corpo, em sua capacidade de
metamorfosear-se, de sentir o jogo e viver o devaneio da criação do gesto esportivo.
Tal compreensão pauta-se nas ações do atleta em quadra. Atitudes
estruturadas pelo êxtase e arrebatamento corpóreo diante do jogo, quando, na
veemência do agir, as sensações cinestésicas se apoderam dele, revelando uma
unificação do corpo com o pensamento.
Como já afirmou Merleau-Ponty (2004b), toda técnica é técnica de corpo e ela
amplifica a metafísica de nossa carne. Por isso, o esporte não pode ser
compreendido em partes, nem em movimentos específicos, haja vista a técnica não
está no esporte, nem tampouco em ações ideais, mas na experiência do movimento,
na forma como o atleta se dirige ao mundo esportivo e nele se expressa. Pois,
Fotografia 10: Salto para o gol Fonte: Arquivo da autora (2001)
85
Somos não só um corpo sensorial, mas também um corpo portador de técnicas, estilos e condutas aos quais corresponde toda uma camada superior de objetos: objetos culturais aos quais as modalidades de nosso estilo corporal conferem certa fisionomia (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 542).
Nesse entendimento, o corpo é tanto sensível a uma conduta como criador de
sentido, uma vez que, antes da ação, há apenas uma ausência. O que preenche as
lacunas dessa ausência é o gesto, a técnica.
Todo arremesso exige a aquisição e o aprendizado de uma técnica ou de
várias técnicas, para então ser executado. E isso, é indispensável para o gesto
como expressão do novo, do inusitado, do estético.
A prática esportiva não é reduzida apenas a uma técnica padronizada nem a
repetição de movimentos mecanizados, cada ação e conduta realizada estar
revestida de sentido que o próprio atleta impõe, fazendo dos gestos uma junção de
técnica e sentimento.
Nóbrega (2005), ao falar sobre a motricidade e a corporeidade como um
entrelaçamento indivisível no movimento humano, corrobora esse sentido do gesto
técnico vivido pelo atleta no contexto esportivo. Para ela, quando se realiza um
movimento dentro do esporte, mesmo que ele seja um gesto padronizado, ou ainda,
que se repita inúmeras vezes, ele jamais se reproduzirá da mesma forma, ou será
somente um estímulo mecânico. Todo o ser se envolve naquele instante e através
dele define-se uma maneira própria de realizar, sentir e interpretar aquele momento
(NÓBREGA, 2003).
Quando corro no jogo, quando grito em cada gol realizado, quando vibro ao
defender o adversário, não utilizo somente meu equipamento anatômico
objetivamente. Mesmo que, interiormente haja a ocorrência de reações anatômicas
e fisiológicas para cada ato, o corpo não se reduz a um automatismo periférico. O
corpo se expressa, vive os sentimentos, vive as sensações, em outros termos:
“realizar um movimento é realizar os projetos de nossa existência, é saber-se
enquanto ser de potencialidades originais” (NÓBREGA, 2005, p. 67).
No mesmo pensamento, recorremos novamente ao filósofo Merleau-Ponty
(2011), que em suas reflexões sobre o corpo e o movimento humano, afirma não
haver separação entre pensamento e movimento. Logo, a motricidade não está
somente no intelecto ou na consciência, mas no modo como o corpo se relaciona
86
com o mundo. Em suas palavras: “a experiência motora de nosso corpo não é um
caso particular de conhecimento; ela nos fornece uma maneira de ter acesso ao
mundo e ao objeto” (MERLEAU-PONTY, 2011. p. 195).
De fato, os aspectos do corpo, do movimento e do sensível como
configuração da corporeidade e da percepção como criação e expressão da
linguagem, expressos no pensamento do filósofo, possibilitam compreender que o
caminho que o ser humano faz em direção ao mundo é feito a partir de uma
experiência que podemos chamar experiência sensível, criadora e afetuosa.
Para Merleau-Ponty (2011), o corpo não é coisa, não é objeto, nem ideia, mas
movimento. É sensibilidade que se põe em movimento no mundo e que nele cria
sentido. Logo, esse corpo vive, compreende o movimento e adquire o hábito, que é
a apreensão motora de uma significação motora.
Dizer que o corpo aprendeu e adquiriu um hábito motor é dizer que aquele
movimento instaurou uma significação nova, um sentido novo. Nessa experiência do
corpo, quando se adquire esse hábito motor, o espaço do objeto se integra ao
espaço corporal, em outras palavras:
Na verdade, todo hábito é ao mesmo tempo motor e perceptivo [...] reside, entre percepção explícita e o movimento efetivo, nesta função fundamental que delimita ao mesmo tempo nosso campo de visão e nosso campo de ação (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 210).
Dessa forma, o atleta capta, por meio dos sentidos, as formas técnicas e
táticas do esporte, e por essas sensações se entrega a potência da criação,
transformando pela dimensão do sensível esses movimentos em gestos seus. Ele
ultrapassa o automatismo e a reprodução dos gestos ao compreender aquela ação,
e entre a intenção e a efetuação dela, esse movimento constitui-se significação.
Afinal, não há limites para o corpo. Ele sabe, ele conhece. Pode quase tudo,
diria Serres (2004). Nesse universo de possibilidades, na imanência entre o sentir e
o fazer, ele cria e recria; inventa e reinventa. Amplifica a existência e constrói novas
expressões para aquilo que já existe, pois ele: “[...] se lembra de tudo, sem qualquer
dificuldade ou impedimento. O que nos distingue das máquinas é unicamente nossa
carne divina; a inteligência humana se distingue da artificial apenas pelo corpo
(SERRES, 2004, p. 18).
87
A origem do conhecimento reside no corpo, no sentir e no viver sensível, o
que permite ao movimento mergulhar nessa dimensão corpórea, se transformar e
aparecer novamente já compreendido. “Não é preciso que os gestos se repitam
muitas vezes para que o corpo se aproprie deles e se torne bailarino ou sapateiro.
[...] o corpo imita, armazena e lembra” (SERRES, 2004, p. 75).
Nesse contexto, em sua móvel e movente forma de ser, ele trata de reinventar
sua própria trajetória, ao ponto de atravessar o gesto preexistente, subverter a
ordem instrumental e constituir novas possibilidades gestuais, investidas de
plasticidade e sensibilidade.
Assim, a potência criativa se mostra na técnica esportiva. Quando a dimensão
mecânica não é capaz de regulamentar o estilo pessoal, e o corpo suplantador cria,
na dinâmica do jogo e na idiossincrasia do atleta, possibilidades de avançar.
Por isso, os padrões e as inovações se condicionam reciprocamente,
formando uma unidade no contexto esportivo. Isso nos permite dizer que, os gestos
técnicos são potências criativas do atleta em jogo, pautados não por uma
reprodução ou designação objetiva, mas pelo esforço corporal e pela placidez do
corpo em movimento. Esses gestos, amparados pelo diálogo sensível do atleta com
o esporte, transbordam sobre a razão objetiva, uma experiência estética que amplia
o sentido da vida e conduz a uma nova dimensão de Ser no mundo.
Os saberes do corpo vão reconhecendo nessas técnicas uma gestualidade
própria, por meio da sensibilidade tácita, particular, que abarca o atleta diante do
inesperado de um movimento, tornando impossível viver o esporte sem um contexto
de descoberta, experimentação, devaneio e criação.
Nessa direção, o corpo nunca está acabado ou pronto como uma máquina
industrial, mas se constitui na cadência dos passos e dos descompassos, dos ciclos
do ir e do porvir, das relações que travam em sociedade. Um verdadeiro fluir de
indeterminações que descem pelos recônditos da existência sem saber onde
desaguar.
A cada nova ida e vinda, uma possibilidade de reinventar-se. Ações humanas
sobre um mundo em processo de construção e formação constante, apresentando
que o corpo é, simultaneamente, orgânico, sensorial e cultural, inserido dentro de
um contexto social, sedimentado de uma existência de afetos e desafetos de sua
historicidade, em que:
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[...] seja qual for a singularidade das condições locais ou temporais, o fato social nos aparece sempre como variante de uma única vida da qual a nossa também faz parte, e que qualquer outro seja para nós um outro nós mesmos (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 121).
Nessa relação, o homem não vive somente num mundo físico e particular, há
ao seu redor o mundo cultural, que reflete suas ações e seus vínculos. Portanto, o
outro, como ser pessoal na relação com o meu eu, na mesma dimensão na
experiência vivida posta nos contextos histórico-social, político-econômico, se
apresenta como uma intersubjetividade em ação. Ou seja, horizontes abertos, onde
o homem exerce sua ação, se engaja e reconhece no diálogo com os demais a
pausa ou a continuação da sua vida.
Não há contornos definidos. Por meio dos gestos e das expressões sensíveis
diretamente vinculadas ao corpo e comunicadas pelo movimento, o homem vai
delineando a maneira própria de estar no mundo.
Assim, o corpo enquanto dimensão própria do homem, na condição de sujeito
de uma cultura representada por toda uma gama de signos e símbolos dentro do
processo histórico e cultural, não está fechado em si mesmo, mas no átomo social,
em que sociedade e vida, ao invés de se oporem, enunciam um eu-outrem-mundo.
Ora, de acordo com Merleau-Ponty (2011), a subjetividade não é a identidade
imóvel consigo, ao contrário, ela abre-se a um outro e sair de si, uma existência
particular e social que faz a vida ser mais “interior”. Quer dizer, existe aí uma
intersubjetividade que é da ordem do vivido e, portanto, existente, nas relações
sociais.
Nesse sentido, a existência social é um horizonte constante da existência
individual, em que realidade social e existência social se confundem por meio da
vida intersubjetiva do homem.
Nesse pensamento, reconhecendo o caráter histórico-social da constituição
humana, a existência é um movimento de engajamento no mundo. Uma situação
física e social, construída a partir de uma linguagem comum entre os corpos e
desses com o mundo, manifestado em todas as suas formas pela motricidade.
Cada momento do movimento abarca toda a sua extensão, e em particular o primeiro momento, a iniciação cinética, inaugura a ligação entre um aqui e um ali, entre um agora e um futuro, que os outros momentos se limitarão a desenvolver. Enquanto tenho um corpo e através dele ajo no mundo, para
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mim o espaço e o tempo não são uma soma de pontos justapostos, nem tampouco uma infinidade de relações das quais minha consciência operaria a síntese e em que ela implicaria meu corpo (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 194).
O corpo movimenta-se, se expressa, modifica o mundo e se modifica a partir
dele. O corpo move o movimento, e o movimento move o corpo numa dialética que
se expande através da expressão criativa, interpondo-se ao mundo. É, portanto,
uma relação afetiva, orgânica, sensorial e dialógica, tudo mediado pela sociabilidade
do ser humano como sujeito ativo nas coisas do mundo.
Assim, mesmo no racionalismo existente no esporte há espaço para o êxtase
corporal, que permite que o ser humano, o atleta, e mesmo o espectador explorem o
corpo, as sensações, as tensões. Uma entrega de corpo e alma capaz de resultar
um novo uso do espaço, um êxtase, uma suspensão no tempo da vida normal,
cotidiana.
O esporte transfigura os momentos ordinários da existência, inventa sob
novas formas o poder do corpo, um eu posso no tempo, no espaço e na cultura, por
meio da motricidade regida pelo próprio corpo.
Assim, a existência, afirma Merleau-Ponty (2011), é o movimento pelo qual o
homem está no mundo, engaja-se numa situação física e social, que se transforma
no seu ponto de vista sobre este, de modo que a história individual se mistura aos
acontecimentos do mundo. Uma relação que nutre o homem para expressar suas
experiências, criando novas significações que expressem apropriadamente o sentido
de sua intenção nova, singular e plural.
Sendo assim, o atleta não é a identidade imóvel consigo, preso a uma
causalidade linear, posta em condições de um esporte separado da vida. Ao
contrário, é uma dimensão de existência e coexistência, em que cultura e vida
deixam de se opor para se tornarem um fazer em comum que, sem cessar, se faz
sob o modo do nós, isto é, a coexistência social (MERLEAU-PONTY, 1991).
Isso nos permite dizer que o eu do atleta se apropria de seu viver pessoal e
da presença do outro, constituindo um mundo comum de homens finitos,
inacabados, corpóreos, historicamente situados e constituídos a partir de uma
sensibilidade que se qualifica na intencionalidade dos movimentos guardados no
tempo, no espaço e nos rastros da vida.
90
Com isso, afirmamos que o ser humano tem sua existência na e pela
sociedade, sendo esta uma forma de solicitação e condicionamento que serve de
orientação para a compreensão do mundo.
O mundo social existe ao constituir sentido para os indivíduos que nele vivem.
Cada ato individual é retirado de uma dimensão privada e inserido numa estrutura
totalizante que o reveste de um sentido novo ou o desvia daquele primitivamente
intencionado pelo sujeito.
Nessa troca intencional, o corpo-outrem-mundo vai transcendendo o natural,
o normal, com a sua capacidade de atribuir significado às coisas, sobretudo pela
comunicação intersubjetiva. Um mundo particular e social que vai sendo construído
pelas ações e relações humanas, abrindo novos modos de busca e preenchimentos
que passam a desencadear a realidade objetiva como realidade subjetiva.
Assim, compreendemos que o mundo social não existe na terceira pessoa,
mas é experimentado numa subjetividade que reelabora o homem a partir da
especificidade de sua situação. Logo, cada ação individual retira-se de uma
dimensão privada que está inserida numa estrutura totalizante que o reveste de
sentido, ou seja, um mundo social e um mundo pessoal que se apresentam como
existentes em si para além de minha existência mesma, ou melhor:
[...] o social não é somente um objeto, mas em primeiro lugar a minha situação, e quando desperto em mim a consciência desse social-meu, é toda a minha sincronia que se me torna presente, é todo o passado que, por meio dela, me torno capaz de pensar [...]. É toda a ação convergente e discordante da comunidade histórica que me é dada efetivamente em meu presente vivo (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 121).
Nessa direção, há a inerência do sujeito a um mundo social, de modo que, o
social existe surdamente como solicitação e condicionamento. Tanto o mundo social
quanto o mundo individual se apresentam como existentes “em-si” para além de
suas existências para mim mesma. O que nos faz compreender que, cada ato
individual é tirado de uma dimensão privada e é inserido numa estrutura totalizante
que o reveste de um sentido novo ou o desvia daquele primitivamente intencionado
pelo sujeito.
91
Assim, na concretude de sua experiência subjetiva, o indivíduo vive a sua
presença em certa sociedade, sobre um mundo nunca constituído e nunca acabado,
em processo de construção e formação constante. Daí que “no objeto cultural, eu
sinto, sob o véu de anonimato, a presença próxima de outrem” (MERLEAU-PONTY,
2011, p. 466)
Notadamente, o homem não vive somente num mundo físico, há ao seu redor
o mundo cultural, que reflete a ação humana. Cada objeto do mundo cultural emite
uma atmosfera de humanidade que assume o homem por conta própria e o
reelabora a partir da especificidade da sua situação.
Em minha experiência narrada, não constituo um mundo particular, pessoal e
independente dos demais. Percebo um mundo comum ao dos outros, no qual me
relaciono e me comunico com outros sujeitos, não somente ao nível da fala, mas no
plano mais profundo e invisível, familiar, cultural. Logo, a trama dos acontecimentos
e das relações pessoais evidenciadas no tempo-espaço do corpo em quadra, no
olhar do contexto esportivo, no contato com o adversário, na vitória ou na derrota, e
no gesto técnico, estão na inerência do mundo e dos outros que me abre e insinua
um “algo”, através de meu corpo como um halo existencial.
Para tanto, sendo o trama individual atravessado pelas configurações sociais,
fica evidente a construção da prática esportiva para além dos determinismos e
padronizações que lhes são tipificadas, bem como, para além do devir de uma
individualização corporal. Os atletas, em meio à dinamicidade esportiva, atribuem
sentidos e constroem novas significações por intermédio das sensações do corpo e
das construções subjetivas que perpassam o esporte por meio da experiência
estética num vínculo do individuo com o mundo.
Intervaloo jogo como devaneio
93
O processo do jogo é exactamente este: uma configuração dinâmica de seres humanos cujas acções e experiência se interligam continuamente
Norbert Elias
94
Neste capítulo, discutiremos a partir dos filmes “Invictus” e “Olympia”,
aspectos relacionados à vertigem, a tensão e excitação, e, ao paradoxo.
Recorremos a alguns autores como Merleau-Ponty (2004b, 2011) e Benjamin
(2002), para fundamentar a experiência estética que existe no jogo; Elias (1992) e
Welsch (2001), para compreender como no esporte é possível viver ao mesmo
tempo o autocontrole e o descontrole das emoções na perspectiva de deslocamento
do ético para o estético; e Mauss (2003), para entendermos que o atleta imbuído de
técnicas corporais vive a prática esportiva de forma tradicional e dinâmica.
Refletindo sobre a doação do homem ao mundo, afetado pelas coisas que
estão entregues ao contado do corpo, e aberto aos sentidos, nos apoiamos no
pensamento de Merleau-Ponty (2011), o qual mostra a participação efetiva do corpo
no envolvimento com as coisas no mundo, revelado como primazia para o
conhecimento que se manifesta ao sujeito por meio da existência. Assim ele afirma:
“O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao
mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é
inesgotável” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 14).
A concepção sobre o mundo vivido pensada pelo filósofo nos faz
compreender que no encontro do atleta com o esporte há uma comunicação entre
corpos, a qual é capaz de movê-los numa sinergia de múltiplas sensações, que
expande a existência para novos horizontes, revelando uma experiência fluida que
arrebata os sentidos e gesta novas formas de vida e convivência.
Assim, é o mundo vivido no esporte, o mundo o qual o corpo abarca, é
abarcado por ele e se interpenetram como parte de uma mesma existência, de um
mesmo tecido.
Esporte e atleta não são mundos distantes, mas horizontes que existem em
unicidade, em que o sensível é a expansão da expressão criativa e perceptiva. E
nesse processo, o saber é construído na medida em que experiencia-se o corpo no
esporte e vive-se a dor, o sacrifício, o confronto, as regras, mas também a leveza, a
graça e o fascínio de ser atleta.
Isto porque, no esporte, o atleta se funda em sensações e emoções
decorrentes das experiências ali vividas, ou seja, no corpo que joga. Corpo que se
machuca, que chora, que obedece, que padece, que sente, que vive e que se
comunica intensamente, ascendendo e reascendendo seus sentidos, escrevendo
95
sua história nele, mas, simultaneamente, sendo marcado por ele. E isso se
manifesta como uma abertura do corpo ao esporte, que dá ao atleta sentido àquilo
que ainda não tinha, visando significações que transcendem o mundo biológico.
Se o pensamento fenomenológico de Merleau-Ponty reflete sobre a
experiência originária de nosso engajamento existencial no mundo por meio do
corpo, e considera a existência como fundante da experiência humana e não o
pensamento conceitual, entendemos que há no corpo um núcleo de significações
em que ele é um contínuo movimento de transcendência43 ao mundo.
Assim, a experiência estética vivida no contexto esportivo retira o corpo da
explicação causal e o arrebata para um outro mundo. Segundo Merleau-Ponty
(2011, p. 248),
A expressão estética confere a existência em si àquilo que exprime, instala-o na natureza como uma coisa percebida acessível a todos ou, inversamente, arranca os próprios signos – a pessoa do ator, as cores e a tela do pintor – de sua existência empírica e os arrebata para um outro mundo.
Nessa perspectiva, podemos compreender o esporte como malha que liga o
atleta ao mundo, aos outros e a si mesmo, permitindo que ele se encontre com as
intrínsecas condições da dor e do prazer, da harmonia e do conflito, do conhecer e
do sentir, além de construir sua singularidade em torno da experiência vivida, em
meio à multiplicidade de sentidos criados e recriados no mundo esportivo.
É nesse cenário que a estética do esporte tenciona valores sensíveis e
educativos numa perspectiva que prima pela espetacularização da performance
corporal, mas também pelos sentidos e idiossincrasias que ele manifesta nos
jogadores e nos seus apreciadores.
Como mostra Mafessoli (1996), é o enlace sensível, portanto, estético, que
produz o amálgama social. Logo, as estruturas culturais, sejam elas religiosas,
artísticas ou esportivas, certamente transcorrem da abordagem estética, assim,
“integrar o sensível na análise social é dar prova de lucidez” (MAFFESOLI, 1996, p.
73).
43 O transcendental aqui pauta-se na perspectiva do corpo numa imanência em relação às experiências, ao acontecimento, ao mundo vivido, em que ele passa por uma modulação existencial com a sua realidade circundante (MERLEAU-PONTY, 2004b, 2011).
96
Entretanto, o que se percebe é a negligência do debate estético no esporte,
sobretudo no que diz respeito a uma melhor compreensão dessa manifestação
cultural, que ultrapassa a dimensão pessoal ao ancorar-se no contexto mais amplo,
o social (WELSH, 2001).
Nesse pensamento, acreditamos que os enredos sociais que configuram o
esporte apresentam significações estéticas peculiares que extravasam os campos
esportivos para difratar-se no conjunto cultural, fazendo-o emergir como prática
corporal prazerosa, relativamente dependente e autônoma. E é nesse intuito que
buscamos indícios na formação social, para refletirmos sobre o esporte dentro de
uma estrutura social mais ampla, configurado dentro de um dispositivo de regulação
estrutural e cultural, capaz de afetar o corpo e alargar o horizonte do atleta no
mundo, expandindo a existência para uma vida que se constrói a partir dos
princípios do educar-se por meio do sensível.
Para isso, utilizaremos duas produções cinematográficas como indicadoras do
debate, pelo entendimento de que mesmo que elas recaiam sobre tempos distintos
de sua criação, ambas podem formular a representação do imaginário pessoal e
social como uma maneira ontológica de existir e de educar-se pelo jogo.
Vertigem
No esporte a ordem e a desordem estão presentes. É na tensão, na incerteza,
na imprevisão e na ousadia que as ações dos atletas se desenvolvem. E há, sim, a
valorização de condutas para obtenção do sucesso e da vitória. Todavia, é preciso
reconhecer que nele não há só ordem imposta, existe também uma desordem que é
gerida por essa dominação.
Nessa perspectiva, ele se constitui entre a ordem dada e a desordem
gestada. É preciso o devaneio para o jogo acontecer. Corre, ataca, receba a bola,
arremessa, volta, defende, passa a bola, corre... O jogo é dinâmico, ele não para! O
corpo se move, cria, modifica, comunica e significa.
O ambiente do jogo é essencialmente complexo, aberto, dinâmico e não
linear, o que permite ao jogador gerir a ordem e a desordem, numa relação de
97
complementaridade e antagonismos, ou seja, que não estão totalmente
entrelaçados, mas são irredutíveis.
Nesse diálogo, há a necessidade de uma constante reorganização das
situações decorrentes do jogo. O que imprime ao jogador uma organização
desenvolvida entre a ordem, que são regras, regulações e os padrões de movimento
do esporte que pratica, e a desordem que integra a modalidade jogada ao jogador
como fonte geradora de toda ação ali realizada.
Assim, diante da necessidade de conseguir responder às emergências do
jogo, o atleta vive a vertigem como uma maneira sempre nova de jogar. Com ela, a
sua existência é colocada em xeque, exigindo novas formas de equilíbrio e de
desequilíbrio, de idas e de vindas, de aproximações e de fugas, uma experiência na
qual surge uma nova realidade e o atleta transforma as indeterminações em
movimentos de vida.
Porpino (2012), ao refletir sobre o corpo, a experiência e a existência por meio
do mundo da arte, ou melhor, da experiência vivida a partir dela, convida-nos a
reconhecer o corpo como existência, mesmo sabendo que qualquer relato sobre a
experiência vivida jamais pode ser confundido com a própria experiência.
Tomando como campo estético de reflexão para seu texto algumas obras de
arte44, a autora parte deliberadamente da experiência sensível frente a elas,
tematizando sobre a vertigem que as mesmas proporcionam na apreciação. A
vertigem permite, a partir desse momento, modificações na existência, reforçando a
impressão de que é preciso reaprender a ver a cada instante.
Pensamos que de modo semelhante ocorre com o atleta no âmbito esportivo.
Assim como acontece com o apreciador diante das obras de arte, o atleta em jogo
tem a sua existência fundada no vislumbre da sensibilidade que se abre a cada vez
que ele se dispõe a jogar. Uma existência capaz de levá-lo à compreensão não
apenas daquele contexto, mas dele mesmo, dos outros e do mundo.
Nessa perspectiva, é possível dizer que a prática esportiva causa vertigem,
pois ela coloca o atleta a espreita do inesperado, frente aos antagonismos e às
instabilidades provocadas na experiência. Afinal, o jogo muda o instante, exige um
reordenamento das técnicas e do corpo, incluindo rupturas e fragmentações. Um
44 Artistas europeus como Vanessa Breecoft e Antony Gormley.
98
estado vertigionoso que permite vivê-lo simultaneamente entre a rigidez e a
sensibilidade. Ou seja, a prática esportiva pode ser vivida como jogo em si, no
sentido liberal e dinâmico do jogar, pois antes das modalidades serem esportes
institucionalizados, elas são, sobretudo, jogo jogado. Assim como esclarece Knijnik e
Knijnik (2004, p. 109): “Mais do que categorias separadas em um continuum
estanque, a brincadeira vira jogo que se transforma em esporte, que pode vir a ser
uma brincadeira novamente”.
Nesse sentido, o caráter organizacional do esporte revela, portanto, uma
vertigem desafiadora. Os corpos de formato firme também são sensíveis ao que se
passa ao seu redor e em si mesmo, absorvendo o jogo e permitindo um diálogo com
as coisas que afetam o mundo da experiência vivida.
Na prática esportiva, nossa existência é confrontada, e a partir desse
momento não somos mais da forma que fomos no último instante. O corpo muda,
exigindo novas formas de equilíbrio, de desequilíbrio, de correr, de parar, de avançar
e de retroceder. Ela nos ensina a reaprender a ver o mundo e a nós mesmos,
modificando nossa existência a cada momento, ao modo como Serres (2004, p. 129)
se remete ao corpo e ao mundo vivido:
Essa vertigem corporal, testemunho da passagem contínua de um estado de equilíbrio rígido para um segundo estado paradoxal e refinado, depois para outro e mais outro que, de outra forma, permaneceriam estáveis por movimentos imprevistos, nós a experimentamos a cada entrada em um mundo que nos desorienta e a cada encontro com uma nova e inesperada lógica que aparentemente interpreta às avessas nossas atitudes, mas que, no entanto, descobre e perpetua os habitus complexos do corpo.
O esporte modifica a existência com sua rigidez ou com sua abertura, fazendo
o atleta, paradoxalmente, dependente e livre. Pois, de uma forma ou de outra, ele
delibera e ressoa como um ato que integra e reanima a vida, modifica o homem e
permite que ele o modifique, inaugurando formas de habitar o mundo, atualizadas
pelas situações nele encontradas. E isso é o que se pode observar no filme
“Invictus”.
Nele, dois personagens se destacam. Mandela, presidente da África do Sul,
busca no esporte a possibilidade para acabar com o fosso da segregação racial
entre negros e brancos existente no país. E, François Pienaar, capitão dos
99
Springboks, sonha ganhar a copa do mundo, mesmo diante do descrédito dos
torcedores e das sucessivas derrotas que sua equipe vinha sofrendo.
Na obra, o poder ideológico, a competição exacerbada, a exaltação da
virilidade e a força perpassam o esporte, sem, no entanto, ofuscarem o universo do
agir, pensar e mover dos atletas dado pela dimensão ontológica do corpo, em sua
condição sensível de existir.
O esporte mostrado, o rúgbi, vai ganhando novos contornos no desenrolar da
trama. Vinculado à tenacidade e atrelado a uma ideia de vigor, também dialoga com
uma forma de jogar que desconstrói a eficiência moldada pelos ideais olímpicos. Isto
porque, a máxima olímpica do “mais alto, mais forte e mais veloz”, no filme, é
acrescida de valores estéticos como afetação, sensibilidade e significação, os quais
não estão retidos em conceitos, mas no fazer e refazer da experiência, dando
sentidos às coisas vividas e mostrando que “O sensível desafia as análises do
corpo, do espaço e do tempo em sua objetualidade. Desenhamos o espaço, vivemos
no tempo, por isso criamos gestos como os gestos do esporte” (MELO; NÓBREGA,
2006, p. 37).
A relação ideológica entre esporte e política caminha atrelada ao projeto de
integração e coesão social, potencializando valores e legitimando a experiência
estética do atleta no jogo.
Certamente, o filme gera formas diversas de pensar o esporte para além do
escopo utilitário e político, uma vez que, evidencia, a partir das demandas dos
Fotografias 11 e 12: Nelson Mandela e François Pienaar Fonte: Invictus. Cena 5 (2009)
100
jogadores, uma vivência que versa sobre o atleta e esporte, como fenômenos
entrelaçados por meio da estesia, como forma de expansão do corpo sensível para
uma experiência estética dele com esse mundo.
Na produção cinematográfica, o esporte acoplado tanto à ideia de inclusão
como de vigor, aceitação do outro, resiliência, catarse e união, também dialoga com
as sensações dos atletas.
O rúgbi aparece como um jogo empolgante para os jogadores. Ele combina
força, tática e velocidade em um espetáculo agressivo e ao mesmo tempo virtuoso,
pautado pela habilidade e pela beleza das performances45 técnicas dos atletas.
As disputas durante os jogos remetem-nos à polidez/virilidade,
intensidade/suavidade, júbilo/choro, numa cumplicidade de sentidos, ao mesmo
tempo harmoniosa e conflituosa em todo contexto esportivo.
Em campo, os movimentos são fluidos, no vai e vem da bola, os corpos
jogam, o jogo torna-se jogado e jogante. E, o que parece previsível, desaparece,
trazendo uma indeterminação resultante dessa relação, em sua possibilidade de
expandir o corpo na dimensão do sensível e eclodir os sentidos a correnteza de
significações antes latente.
Mais do que jogo previsto é o inesperado que vemos. Ações, ritmos e
expressões que ousam o corpo numa dança que liberta e cativa, que silencia e
comunica, evidenciando, pelas expressões dos atletas, gestos que eclodem na
entrega do corpo aos sentidos efervescentes desse mundo vivido.
Os movimentos dos jogadores, especialmente em meio ao cansaço, vão além
das ordenações da técnica esportiva. Os atletas conseguem nuançar os gestos
padronizados com a potência sensitiva do jogo, fazendo fluir, por intermédio da
experiência estética, uma nova atitude corporal.
Tal caminho pode ser percebido nas últimas cenas do filme. No final da copa
do mundo, todo determinismo se desfaz e novos caminhos vão sendo traçados por
ambas as equipes. Enquanto os All Blacks (equipe neo-zelandesa) mostram sua
eficiência com a virilidade dos jogadores, a ampla experiência da equipe e as
técnicas padronizadas do esporte, os Springboks, distante disso, buscam a
superação de si mesmos, fazendo de cada jogada um universo de elaborações de
45 A performance aqui não diz respeito ao desempenho do corpo para alcançar um determinado fim, mas ao desempenho imprevisível do corpo em movimento vivenciado através da experiência estética.
101
acordo com o ritmo do corpo que se mexe e se contorce por intermédio do fervor
esportivo.
Em campo, o jogo é tenso, termina empatado e vai para a prorrogação. A
inquietude é geral. De um lado, uma forte equipe, do outro, um time aguerrido,
incentivado pela autoconfiança do capitão que incentiva sua equipe dizendo:
“Levantem a cabeça, olhem nos meus olhos, estão ouvindo? Ouçam o seu país [...]
Sete minutos. Temos sete minutos! Defesa, defesa, defesa! É isso aí, vencer é o
nosso destino. Vamos bokke! Vamos! Vamos ser campões do mundo”.
Fotografias 15 e 16: Equipe Sprinboks Fonte: Invictus. Cena 22 (2009)
Fotografias 13 e 14: Equipe All Blacks Fonte: Invictus. Cena 22 (2009)
102
A câmera, sob diversos ângulos, em imagens lentas, demonstra a
efervescência estética da experiência sensível que se revela nos corpos desses
atletas, explodindo uma comunicação ardente a qual contagia o ambiente pelo viés
da sensibilidade e do fazer de suas ações.
Esses fatores compõem as últimas cenas do filme, tomando maior amplitude
pelo contexto em que o jogo é mostrado, a saber: faltam sete minutos para acabar a
partida e os africanos perdem por três gols.
O que se vê são os africanos correndo pelos campos da sensibilidade e da
expressão criativa para tentar ganhar a competição. E o corpo jogando para o
mundo da criação, do fazer estético embalado pela experiência sensível do
movimento, ganha amplitude, dimensiona a expressão corpórea, germinando, dos
movimentos antes insólitos, inusitados sentidos e significados a experiência do
jogar.
A abertura às multiplicidades dos corpos em movimento, mostrados por
intermédio da ética, da cultura e dos sentidos creditados ao esporte, também pode
ser verificada em produções cinematográficas que têm dado visibilidade a sua
valorização estética sem esquecer seu enredo mesmo que ele tenha um sentido
plural.
Tomemos como exemplo, também, a produção “Olympia”. Feito por
solicitação de Adolf Hiltler, o filme é por vezes criticado em virtude da ideologia que
Fotografias 17 e 18: Capitão Pienaar incentivando sua equipe Fonte: Invictus. Cena 24 (2009)
103
veicula. Isto porque, nesse evento, o líder alemão promoveu uma intensa
mobilização para demonstrar a superioridade física da raça germânica em relação
aos demais povos. Todavia, essa obra ultrapassa a política para se transformar em
um triunfo artístico das proezas atléticas e do corpo humano em movimento,
revelando “uma realidade nuançada pelo conflito e pela beleza que caracterizam os
Jogos Olímpicos como cenário político e estético” (MELO; NÓBREGA, 2006, p. 26).
Marco do documentário esportivo mundial, encontramos neste filme uma
maneira bastante artística de mostrar o virtuosismo do espetáculo esportivo e a
beleza estética dos esportistas em movimento. Ele começa como uma simulação do
Olimpo, exibindo as ruínas de Atenas, as estátuas de deuses gregos e o clima de
perfeição e pureza preconizadas pelo ideal olímpico. Posteriormente, aparece o
Discóbulo, que se vivifica e completa o movimento aprisionado da estátua, surgindo
em seguida os atletas com suas movimentações, performances artísticas e com a
aclamada passagem da tocha olímpica até o estádio para a cerimônia de abertura.
Fotografias 19 e 20: Deuses gregos Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 1 (1938)
104
As imagens se abrem e se dissolvem, num ritmo suave e ondulado, em tons
claro e escuros, em direções e sequências que, num contínuo temporal, vão
ganhando forma expressiva para se transformar a dramaturgia em uma projeção do
real em vida.
Fotografias 23 e 24: Performance e passagem da tocha olímpica Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 3 (1938)
Fotografias 21 e 22: Discóbulo vivificando Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 2 (1938)
105
Com uma rica produção de imagens, sons e movimentos, “Olympia” retira do
real as expressões e as técnicas realizadas pelos atletas para fazer aparecer à
expressiva e potente força da competição, da beleza dos corpos e do ideal olímpico.
Como afirma Almeida (2006, p. 83), a interação das cenas à sintaxe da edição exibe
neste filme um “conjunto de partes em movimento que, em ideologia técnica e
estética, visual e sonora, conduz e imerge o espectador, ao longo da projeção do
filme, na ‘ideia olímpica’, ao mesmo tempo em que trabalha sua memória e a refaz”.
A referida produção apresenta os interesses políticos e econômicos de
corporações dentro do esporte, e o uso dele para sacramentar a ideia de corpo
como perfeição, como o triunfo de um regime e de uma ideologia. Mas em meio a
tudo isso, também se mostra como vagaroso deleite de atletas masculinos e
femininos desnudos e de uma plasticidade gestual e expressiva que falam através
do silêncio dos corpos em movimento, remetendo-nos a uma colocação no filme a
um só tempo ideológica e estética, assim como assegura Melo (2005, p. 58):
Esse filme, um dos mais polêmicos da história do cinema, já despertou debates das mais diversas naturezas, indo desde a questão política do envolvimento de cinema e esporte com determinados regimes totalitários, passando pelas questões éticas do papel dos cineastas no forjar de representações sociais, chegando também às questões estéticas, pois Leni teve de criar mecanismos técnicos para permitir capturar em toda a plenitude os gestos esportivos, bem como inovou nas tomadas de planos inusitados.
As imagens seduzem o olhar, que parece vagar com as lentes da câmera e
pousar no estádio, como se estivéssemos vendo junto com ela. O atleta se torna
perceptível e sua móvel forma de ser aparece por meio da expressão da dor, do
cansaço, da alegria, dos exercícios ritmados, do equilíbrio do corpo, dos recordes
alcançados, das técnicas gestuais e do fluxo vertiginoso da competição.
Tal vertigem pode ser vista no atletismo, quando Jesse Owens, americano e
negro, conquistou quatro medalhas de ouro (provas de 100m, 200m, 4x100m e no
salto em distância), além de quebrar dois recordes mundiais na competição. Em um
deles (salto em distância), disputando centímetro a centímetro, ele vence no último
salto, o alemão favorito ao ouro Luz Long, expondo a Hitler e ao mundo que a raça
ariana não era superior.
106
Durante essas provas, vemos não somente a consagração de um atleta e a
ira de Hitler, ao ver sua ideia de supremacia ariana ser destruída em virtude da
vitória de um negro. Vemos também na própria compleição do atleta e nos gestos
expressivos de suas ações as demonstrações de força, poder, vigor, leveza e
graciosidade que evidenciam o modo peculiar dele estar ali, competindo.
Inquietação corporal, movimentos mais explosivos e pulsação acelerada são
algumas das alterações sensoriais de uma infinidade de sensações estéticas visíveis
nas cenas do filme.
No ato da competição, os gestos, os olhares, a postura e a própria respiração
dos atletas são modificadas. Aquela experiência parece mexer e remexer a
existência deles de tal forma que os sentidos são alterados, a pele muda de cor e os
movimentos são revelados, expandindo o corpo para novos horizontes da
experiência estética. Análogo às reflexões de Merleau-Ponty (2004b, p. 21-22),
sobre a relação do pintor com seu corpo quando diz:
O pintor vive fascinação. Suas ações mais próprias – os gestos, os traços de que só ele é capaz, e que serão revelação para os outros, porque não têm as mesmas carências que ele – parecem-lhe emanar das coisas mesmas, como o desenho das constelações. Entre ele e o visível, os papéis inevitavelmente se invertem.
Fotografias 24 e 25: Atleta negro Jesse Owens Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 9 (1938)
107
De modo semelhante ocorre nas cenas vistas. A fascinação no momento das
provas, possíveis pelo arrebatamento dos sentidos, envolve os atletas e oferta uma
gama de sensações, às quais eles não conseguem ficar indiferentes.
Percebemos que os feitos realizados numa partida, os lampejos de emoção
que transcendem nessas competições, o esforço depositado, a superação dos
limites, a coragem inabalável, o prazer celebrado entre o choro e o riso incontrolável,
e o próprio desempenho performático, aliado a um cenário incrivelmente belo, são
elementos que subitamente demonstram a sensação quase indescritível e o fascínio
estético experimentado por eles.
Fotografias 26 e 27: Provas na terra Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 5 (1938)
108
Fotografias 28 e 29: Provas no ar e nas águas Fonte: Olympia. Festa da beleza, cena 11 (1938)
Fotografias 30 e 31: Lampejos de emoção Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 6 (1938)
109
De formas distintas, cada produção exibe de forma contagiante a relação
entre a delicadeza e a robustez, a entrega e o refúgio dos atletas, sem deslocar a
busca pela vitória, própria do esporte.
Notamos que a experiência do esporte não se limita a estatutos definidos e
moldes estabelecidos, porque ela é vivida no corpo, como abertura e como
interrogação. Seus sentidos transpassam o corpo, tornam-lhe sensível a este
mundo, harmonizando-se com ele, compreendendo-o, e sendo sensibilizado em
cada experiência vivida.
Portanto, ele não se resume a fazeres mecanizados, articulados por
movimentos corporais preestabelecidos. Ao contrário, cada jogo desperta um campo
de virtualidades, uma decisão do corpo que revela o homem em situação, na sua
forma de ser, salvaguardando a permissão das regras e os fios de sua experiência.
Isto que dizer que, no espaço do jogo, a vertigem e as realidades situacionais,
configuram-se na medida em que os lances acontecem, nem antes nem depois, mas
naquele instante.
O jogo possui esse caráter criativo próprio, em que jogando, colocamos de
lado certos aspectos da “realidade” e inventamos uma outra “realidade”, que nos faz
seres autônomos. E é nesse sentido que ele abre problemáticas imprevisíveis, as
quais muitas vezes nem são resolvidas em função da rapidez com que surgem e
somem. Logo, ganhar ou perder não depende da destreza adquirida pelo jogador.
Cada jogada é desconectada da anterior, fragmentando o tempo em uma sucessão
da construção de novos instantes:
A bolinha de marfim rolando para a próxima casa enumerada, a próxima carta em cima de todas as outras, é a verdadeira antítese da estrela cadente. O tempo contido no instante em que a luz da estrela cadente cintila para uma pessoa [...] é o contrário daquele tempo infernal, em que transcorre a existência daqueles a quem nunca é permitido concluir o que foi começado (BENJAMIN, 1989, p. 129).
A partir desse pensamento, mesmo o autor referindo-se à alegoria dos jogos
de azar, por meio das imagens daquilo que o estado lúdico mostra ao jogador no ato
do jogo, podemos fazer relações com o campo esportivo, compreendendo que assim
como esse jogador, o atleta também se engaja na experiência. Talvez porque o jogo
seja para ele esse território de atuação do inesperado, aquele que apresenta a cada
110
jogada uma constelação independente da outra, convocando-o para uma situação
sempre nova e original.
Durante uma partida, o ir e vir do corpo, as aproximações e os
distanciamentos necessários, se configuram nas múltiplas relações que o jogador
estabelece com os elementos do campo, com os outros, com a torcida, e também
com a repulsa e com o encanto que se abre a cada vez que seus modos de agir são
colocados em jogo.
A existência do jogo é fundada nesse estado vertiginoso, dos equilíbrios dos
desequilíbrios provisórios e contínuos. Variações intensas que sobrevivem em todo
o processo e ao seu término, permanecem como lembranças de um estágio
interrompido.
Essa sinuosidade, longe de ser um fardo, revela-se determinante para o
prazer no jogo, cuja experimentação acontece efetivamente no plano ontológico do
jogador. Experiência construída na repetição significativa e prazerosa, que jamais se
esgota em si mesma, representa um novo fazer que ao transcender a mecânica da
técnica, torna-se diferente.
O mesmo ímpeto para voltar ao jogo identificado no comportamento do
jogador de azar estar presente nas brincadeiras de crianças (BENJAMIN, 2002). E
sendo assim, por mais diferente que sejam os propósitos norteados das ações de
cada um separado, ambos comungam desse mesmo aspecto.
Um tal estudo teria, por fim, de examinar a grande lei que, acima de todas as regras e ritmos particulares, rege a totalidade do mundo dos jogos: a lei da repetição. Sabemos que para criança ela é a alma do jogo; que nada a torna mais feliz do que o “mais uma vez” [...] E, de fato, toda e qualquer experiência mais profunda deseja insaciavelmente, até o final de todas as coisas, repetição e retorno, restabelecimento da situação primordial da qual ela tomou o impulso inicial (BENJAMIN, 2002, p. 101).
Portanto, sendo a repetição uma prática da nossa experiência, não é à-toa
que sempre desejamos recomeçar um jogo depois de arbitrado seu fim pelo fato de,
um dia, termos sido crianças e nessa fase termos experimentamos esse movimento
cíclico como algo lúdico.
Benjamin (2002), em seus escritos, salientou que o fascínio da criação pela
repetição está relacionado ao desejo do novo, do saber fazer, de transformar e
111
incorporar a própria essência do jogo. Segundo esse autor, antes de qualquer regra
ou código particular, a repetição é a lei que rege o universo do brinquedo. Para o
universo infantil não bastam algumas vezes: seu desejo de repetição é inesgotável,
engloba o infinito.
Dessa forma, nosso corpo brincante, desde a infância, busca saborear
sempre mais, as vitórias ou as derrotas, os lamentações ou as alegrias, as
conquistas e as renúncias, o que deu certo ou o que de errado, não importa. Ele
quer novamente, repetir o fato vivido, começar mais uma vez. Um estado cíclico de
um início-fim, fim-início que refaz o corpo, que refaz o jogo e recria a experiência
vivida cada vez que retorna ao seu ponto de partida.
Para o filósofo e sociólogo, a essência do brincar é um fazer sempre novo,
uma condição fundamental para eternizar a vivência lúdica, assim como confirmam
suas palavras:
A essência do brincar não é um “fazer como se”, mas um “fazer sempre de novo”, transformação da experiência mais comovente em hábito. Pois é o jogo, e nada mais, que dá à luz todo hábito. [...] O hábito entra na vida como brincadeira, e nele, mesmo em suas formas mais enrijecidas, sobrevive até o final um restinho de brincadeira (BENJAMIN, 2002, p. 102).
Visto por outro ângulo, o desejo de repetir a vivência lúdica articula-se à
possibilidade de recriar o contexto sociocultural mais amplo, democratizando
conhecimento e buscando meios para transformar uma dada realidade.
Desse modo, seja infante ou jogador, a satisfação na repetição dos gestos e
do jogo possibilita uma intervenção no mundo, dada pela vertigem vivida no jogo,
uma vez que permite não só um fazer igual, mas um fazer diferente dentro e externo
a ele. Ao mesmo tempo que o jogo denuncia os limites impostos à realidade
sociocultural, anuncia também alternativas criativas para se viver nela.
Por essas razões, no esporte é preciso viver a vertigem do jogo, repetir,
sentir, ser corpo e compreendê-lo a partir das construções cotidianas em nossa
sociedade. Afinal, a vertigem não representa o vivido apenas no momento do jogo,
mais que isso: ela está entrelaçada à realidade e às condições concretas da
existência, da história de vida, da classe social, dos medos, dos prazeres, dos
desafetos e das emoções provocadas pela situação.
112
Assim, podemos entender que a vertigem vivida no jogo sacode o homem, da
mesma forma como na apreciação da arte proposta por Porpino (2012, p. 31):
A vertigem vivida na apreciação da arte ou o vislumbre do abismo que se abre a cada vez que nossos modos de ver são colocados em jogo sacodem-nos para a criação de novos equilíbrios parciais e nos preparam para novos desequilíbrios. Assim é nossa existência fundada no paradoxo, marcada por surpresas, desalentos, euforismos, ansiedades, paixões, desafetos, serenidades, dúvidas... tantas formas de viver o mundo quantas forem as circunstâncias nele encontradas.
Dessa maneira, a configuração desse estado vertiginoso como ação
interminável de uma entrega ao jogo por intermédio da experiência estética, permite
constatar que a prática esportiva para além de seu esgotamento de funcionalidade é
condição humana de existir, atravessa a prática da vida, resgata os sentidos,
transbordando o corpo numa enchente de expressões e afeta, de maneira profunda,
a existência.
A vertigem representa, pois, condição imprescindível para a construção da
prática esportiva, com um teor de sentido social e emocional, que não fica retida em
conceitos ou explicações exteriores, mas abarca o homem, incendiando o corpo, e
renovando a vida para uma nova existência, bem mais emotiva.
Uma estrada esportiva que nos permite encontrar indícios suficientes para
dizer que ela se faz na relação tensa entre razão e emoção, dor e prazer, contenção
e vazão. Um equilíbrio instável de polos distintos que se conciliam em um princípio
de contradição, no qual move o corpo num movimento de contato possível entre
eles.
Tensão e excitação
Sabe-se que o sentimento dúbio é oriundo em toda situação enfrentada pelos
jogadores na prática do esporte. E, conhecê-lo, diz Le Breton (2007a, 2007b), é fruto
de uma analogia na qual na vivência do perigo é declarada com satisfação.
Em algumas situações esportivas em que, por exemplo, exige-se esforços
para sobrevivência, a vitória parece estar relacionada ao nível pior de determinada
113
situação, com o melhor grau de contentamento posterior, como explica Le Breton
(2007a, p. 11), “chegando ao fim de sua resistência física, ele alcança
simbolicamente uma marca. Atingindo o mundo, resgata o contato simbólico com
seu meio, tranqüiliza-se sobre os ‘limites’ de que necessita para existir”.
Nesse sentido, às relações entre as emoções reprimidas e os prazeres
externados nas práticas esportivas, são o equilíbrio central para o esporte e mesmo
para sua condução.
Assim como assegura Peil (2006), a tarefa do árbitro, não raro, é vista como a
de equilibrar o entusiasmo do jogo – que pode provocar a violência – com a norma
ou a razão. O desequilíbrio entre tais “impulsos” acabaria o jogo, quer pela violência,
quer por excessiva aplicação da norma.
Assim, podemos dizer que a aparente contradição revelada na tensão de
forças entre o autocontrole e o descontrole das emoções demonstrará uma
simbiose, ao menos, momentânea, para que neles e por eles o atleta transite no
esporte e no mundo.
Retornando ao filme “Invictus”, na final da Copa do Mundo de Rugby, 1995,
outros momentos são observados, especialmente na mudança de perspectiva das
imagens ao acompanhar a sequência de movimentação dos jogadores, suas
expressões de controle e descontrole das emoções, bem como a euforia da torcida
perante o espetáculo esportivo.
Perante essa tensão, as sensações dos atletas e torcedores variam,
baseando-se no paradoxo formulado pelo próprio jogo. Enquanto os jogadores
vivem a tensão entre o não deixar o adversário entrar em seu campo de defesa, ao
mesmo tempo essa mesma intenção os move para ataque ao campo adversário. Os
torcedores vivem o sentimento dúbio e a apreensão de cada gol, gerando em ambos
os casos o deleite e o desprazer, a limitação e o extravasamento como sentimentos
cíclicos que o jogo oportuniza.
Assim, atletas e torcedores imersos no jogo de mostrar e esconder, de
controlar e expressar, acabam por viver a experiência ambígua e simbiótica ofertada
no âmbito esportivo.
No contexto fílmico, o esporte, em especial o Rugby, aparece não apenas
como mediador do fim da oposição entre brancos e negros, mas como prática
cultural, um símbolo de identidade nacional e expressão política e social.
114
Nas primeiras cenas, na competição narrada entre a África do Sul e a
Inglaterra, é possível perceber que essa partida é diversificamente prestigiada. Nela
os espectadores, árbitros e jogadores, são em sua maioria brancos e torcem pelos
Springboks (time africano), enquanto que um pequeno número de torcedores negros
demonstra com entusiasmo sua torcida pela Inglaterra, país colonizador da África do
Sul.
O fato é que o time nacional levava àquele povo lembranças da época da
segregação racial, o que faz com que o presidente Mandela busque em seu projeto
conciliar a sua negritude política à branquidade heroica de François Piennaar, ou
seja, um líder negro e um líder branco que concomitantemente buscam, de um lado,
a ascensão política e do outro, a reconstrução desacreditada de um time, ambos
imbuídos por um pertencimento esportivo capaz de promover a superação individual,
a adesão coletiva, o extravazamento do sofrimento das dores sociais, e sobretudo a
união humana.
Frente a esse cenário, o esporte é colocado como poder unificador, como
aquele capaz não apenas de provocar abraços de desconhecidos, de promover a
inclusão social, de valorizar a força e a virilidade, apesar de seus arquétipos
normatizados e competitivos.
No último jogo, por exemplo, a torcida africana sacode suas bandeiras, pula
enfaticamente e canta, veementemente, o hino do país, ações feitas nas
arquibancadas, mas que, como elo comunicativo, agregam-se aos jogadores em
campo, incitando sensações de incentivo e alegria, uma chamada inesgotável à
sensibilidade: “Trata-se de um ‘Nós’ que engloba, ao mesmo tempo, os
Fotografias 32 e 33: Espectadores brancos e negros Fonte: Invictus, cena 5 (2009)
115
protagonistas do acontecimento esportivo e aqueles que são suas testemunhas”
(MAGNANE, 1969, p. 84.).
De acordo com o autor citado, os eventos esportivos, especialmente aqueles
de maior dramaticidade, proporcionam um elevado grau de atuação coletiva,
levando o espectador a atingir rapidamente níveis elevados de participação e fusão,
que articula jogadores e torcedores.
Os gritos coletivos impulsionam os jogadores, invadem seus corpos e se
apossam deles como que um entrelaçamento do senciente com o sensível, da razão
com a emoção, rumo à alternância entre tensão e relaxamento que o esporte causa.
Esse momento de antagonismo vivido no estádio pelos espectadores e
esportistas revela que os aspectos sensíveis e racionais se entrelaçam como parte
de uma comunicação humana, sendo isso o grande atrativo do jogo. O que fica claro
diante das câmeras, das faces preocupadas, do rosto machucado e dos
contorcionismos adjacentes do momento vivido, as angústias e os nós da garganta
que são abandonados no esporte com a imprevisível vitória dos Springboks.
Como aponta Mafessoli (1996), há momentos em uma sociedade em que as
determinações políticas, éticas ou morais, dão lugar às relações diárias e às
experiências vividas. Uma ligação entre ética e estética, de maneira que o laço
social se torna emocional, sendo: “[...] essa compreensão do laço social a partir
Fotografias 34 e 35: Atuação coletiva dos esportistas e dos espectadores Fonte: Invictus, cena 26 (2009)
116
desses parâmetros não racionais, que são o sonho, o lúdico, o imaginário e o prazer
dos sentidos” (MAFFESOLI, 1996, p. 74).
Em “Olympia”, percebemos que os atletas não são ovacionados pelo perfeito
desempenho técnico, mas sim pelo alvo alcançado, pela conquista da medalha,
pelas ações realizadas. Conforme Soares (2004), isso ocorre porque “a força contida
no gesto põe em jogo todos os sentidos daquele que o executa e, também daquele
que observa essa gestualidade. É como se a profusão de códigos e sentidos ali
demonstrados tivesse uma força de persuasão impossível para a palavra”
(SOARES, 2004, p. 01).
Diante dessa cumplicidade, a impressão que temos é a de que a tensão antes
das provas é dissolvida pela vivacidade da mesma. Logo, a aliança entre ansiedade
e prazer se revela na vitória, mas, sobretudo no desempenho almejado, que passa
muito mais pela atividade do que pelo uso da razão prática que desemboca na
utilidade.
Fotografias 36 e 37: Vibração pela ação realizada Fonte: Olympia. Festa da beleza, cena 9 (1938)
117
O filme oportuniza, do início ao fim da veiculação das cenas dos jogos, essa
sensação pelo foco do olhar tenso e das vibrações, além dos gestos expressivos de
cansaço, de furor, de sorrisos e de exaltação. Sensações vividas pelos atletas e
espectadores que vão sinalizando a experiência dúbia de viver a derrota, e a vitória,
mesmo posta de um extremo ao outro e em igual intensidade.
Percebemos que os gestos de contenção e evasão tornam-se o elemento que
centraliza o ato da transmissão fílmica, guiando a movimentação dos jogos e da
nossa atenção.
Isto porque, ao apreciar as cenas, sobretudo na prova de remo e luta de boxe,
entre o duelo dos barcos e das luvas, a tensão existente entre remar sem deixar o
barco adversário ser mais rápido, bem como golpear sem ao mesmo tempo ser
atingido, em ambos os casos demonstra uma mistura de sentimentos ocasionada
pelo confronto e pela expectativa de quem será o ganhador.
Fotografias 38 e 39: Gestos de contenção e evasão Fonte: Olympia. Festa da beleza, cena 4 (1938)
118
Os confrontos apresentados e a sensação desencadeada pelas cenas
remetem a uma conciliação dialética da aparente oposição entre o autocontrole e o
descontrole das emoções. Isto porque, nos dois casos, a busca pela vitória e a
tentativa de impedimento da vitória do outro entrarão em sintonia com todos os
aspectos da prova e o resultado, independente de qual seja, sempre desembocará
numa correnteza de descontentamento/satisfação dos anseios da emoção e do
prazer.
Assim, a emoção é flagrante e o envolvimento dos atletas é guiado pelo
prazer que a própria competição gera. O que fica claro nos gestos expressões do
corpo pávido, sisudo, austero e enérgico, mesmo que submetido a um controle
voluntário, vão se esvanecendo diante do deleite em que o atleta encontra,
revelando sentimentos que, na vida cotidiana, talvez dificultassem essas
descobertas camufladas em seus íntimos.
Essa relação emocional vai se estreitando a cada movimentação dos corpos
que se mostram num ciclo de ações aceleradas, como se cada cena fosse
anunciando o desejo de chegada e do extravazamento da sensação por que
estavam contidas.
A transmissão dessas cenas sugere o sentimento de busca pela vitória,
quando nos faz perceber a bipolaridade das expressões dos atletas em destaque.
Essa constatação diz respeito ao alcance da disputa, que não se destaca somente
Fotografias 40 e 41: Duelo dos barcos e das luvas Fonte: Olympia. Festa da beleza, cena 10 (1938)
119
na bravura e eficiência dos atletas, mas também na veiculação de imagens que no
boxe são representadas pela diminuição do ritmo das passadas e nos socos menos
fortes e decisivos. E, no remo, nas remadas que parecem ser retiradas das
profundezas do cansaço e da dor, o obstinado desejo de extravazar essa tensão.
Sendo o esporte essa manifestação cultural que lida com sentimentos e
emoções, como é o caso do risco, do perigo, do medo, do prazer dentre outros, tem-
se nele respostas não planejadas que convidam o atleta a um novo equilíbrio entre a
restrição e uma forma de desfrutar emoções que transite sobre esses dois polos de
ação.
Assim, considerando todo o contexto competitivo existente no esporte, de
uma maneira geral, as características de evasão presentes na maioria das
modalidades, a procura da emoção para além de uma representação sentimental, é
uma possibilidade de trânsito entre o real e o imaginário, o objetivo e o subjetivo.
Sobre isso, Elias e Dunning (1992), ao refletirem, no campo da sociologia,
sobre fenômenos tão diferentes como a guerra, o desporto e as emoções, afinando
os pontos de vistas comparativos numa lógica relacional entre a integração e o
conflito dos mesmos, discutem o papel do lazer e do esporte na formação das
sociedades contemporâneas, compreendendo o desenvolvimento dessas práticas
dentro da perspectiva de excitação e de emoção.
Sobre o esporte, os autores, ao afirmarem que ele constitui um campo
considerável de significado social, refletem que nele é possível vislumbrar ao mesmo
tempo, de maneira controlada, momentos de autocontrole e descontrole das
emoções.
Segundo esses autores, as pessoas têm pulsões inatas, mas na maioria das
vezes são reprimidas no contexto cultural, sendo o esporte uma prática em que
exteriorização das pulsões é possível através da permissão social da violência.
Desse modo, na Introdução de A busca da excitação, o sociólogo Norbert
Elias, ao pensar no surgimento do esporte moderno e no aparecimento de novas
formas de comportamento e participação na sociedade, afirma que as manifestações
culturais, as maneiras de lidar com o sofrimento e com a alegria, revelam muito
sobre a sociedade. E diante de uma manifestação como o esporte, ele faz a
seguinte pergunta:
120
Que espécie de sociedade é esta onde as pessoas, em número cada vez maior, e em quase todo o mundo, sentem prazer, quer como atores ou espectadores, em provas físicas e confrontos de tensões entre indivíduos ou equipes, e na excitação criada por estas competições realizadas sob condições onde não se verifica derrame de sangue, nem são provocados ferimentos sérios nos jogadores? (ELIAS, 1992, p. 40).
Para o autor, essa aceitação, especialmente dos modelos de esporte inglês
pelos outros países parece indicar a existência da necessidade de competição que
envolva esforços com grande capacidade de sublimação, com uma firme
regulamentação, possibilitando assim menor violência e situações agradáveis dentro
da competição.
Nesse sentido, entende-se que o clímax do jogo não é representado apenas
pela vitória, fato que se o jogo é desinteressante, até o triunfo da vitória pode ser, de
certo modo, uma desilusão.
Sobre isso, Elias (1992) traz um exemplo emblemático de um esporte bem
regulamentado da Inglaterra, no século XVIII, a caça da raposa. Segundo o autor,
não bastava matar a raposa, pois matá-la sugeria o fim da excitação, o clímax da
caça e o seu prazer consistia na corrida pela raposa, e, sobretudo, nas regras que
desencadeavam um período de antecipação suficientemente longo desse prazer.
A caça à raposa, tal como emergiu no século XVIII, ainda que os próprios
caçadores negassem o prazer de matar, permitia aos cavalheiros e às senhoras
caçadoras os prazeres e o excitamento da perseguição. Uma prática que não se
baseava em formas isoladas de autocontrole, mas na acessão do autodomínio
exigido por todo o quadro, ou seja, o conjunto dos cavalos, cães de caça e raposa
(ELIAS, 1992).
É certo que, os vários tipos de desporto integram um elemento de
competição. Confrontos que envolvem força física ou certos tipos de violência. E
para isso, existem regras de comportamento, a fim de reduzir ao mínimo os danos
físicos entre os jogadores. Ou seja, manter suas atitudes sob controle.
Pensar no surgimento do esporte moderno implica necessariamente uma
reflexão acerca do surgimento de novas formas de comportamento e participação do
homem na sociedade. E é diante disso que o esporte e a emoção aparecem como
temática intimamente relacionada à vida social, possuindo uma série de funções na
121
sociedade contemporânea, entre elas, a de possuir um caráter cartático e mimético
como efeitos produzidos nos espectadores e em seus praticantes (ELIAS, 1992).
Segundo o autor, para a sobrevivência das pessoas nas sociedades, faz-se
necessário um autocontrole dos impulsos libidinais, afetivos e emocionais. Um
autocontrole que deve perpassar o equilíbrio entre os níveis de contenção e
extravazamento.
Assim, o autor supracitado aponta que nas sociedades ocidentais atuais, a
impossibilidade de dar fluência à excitação, a repressão dos sentimentos, impulsos e
emoções torna-se inevitável, fazendo com que os homens busquem ocupações de
lazer que propiciem a evasão e o excitamento de muitas situações da vida cotidiana,
sem, no entanto, correr risco ou perigo nessa vivência.
Portanto, através das atividades miméticas46, ou seja, atividades de lazer que
despertam emoções relacionadas com as emoções em situações sérias da vida, os
indivíduos poderiam externá-las sem a condenação que teriam fora desse contexto.
Seria uma transposição das emoções para um espaço que não proporciona perigo à
ordem pública, nem à vida social.
Perigo imaginário, medo ou prazer mimético, tristeza e alegria são produzidos e possivelmente resolvidos no quadro dos divertimentos. [...] Deste modo, os sentimentos dinamizados numa situação imaginaria de uma actividade humana de lazer têm afinidades com os que são desencadeados em situações reais da vida — é isso que a expressão «mimética» indica —, mas o ultimo está associado aos riscos e perigos sem fim da frágil vida humana, enquanto o primeiro sustenta, momentaneamente, o fardo de riscos e de ameaças, grandes e pequenas, que rodeia a existência humana (ELIAS, 1992, p. 71).
Nesse sentido, a busca de excitação no lazer, diante das várias atividades
existentes em nosso tempo, como no nosso caso, o esporte, possui funções de
propiciar o descontrole controlado das emoções, uma liberação das amarras sociais,
e, por conseqüência, a excitação.
46 Nas reflexões de Elias (1992) o termo mimético é atribuído a uma gama de atividades de lazer que, embora sejam incomuns, compartilham características específicas entre os sentimentos miméticos e as situações sérias específicas da vida. Para ele, as atividades de lazer, especificamente as da classe miméticas, possibilitam à sociedade satisfazer: “[...] a necessidade de experimentar em público a explosão de fortes emoções – um tipo de excitação que não perturba nem coloca em risco a relativa ordem da vida social, como sucede às excitações de tipo sério” (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 112).
122
Elias (1992) utiliza-se então da discussão de Aristóteles sobre a catarse da
tragédia grega para legitimar o conceito de mimese. A catarse como processo de
envolvimento coletivo dentro do teatro grego possibilitava que nesse espaço,
envolvidos com as peças, os indivíduos exteriorizassem suas emoções, e euforias
cujo o cunho ético da sociedade causava seu represamento.
Dessa forma, no esporte moderno haveria um componente diferencial em
relação à vida cotidiana, que, apesar das regras de comportamento, as emoções
mais fortes podem ser extravasadas.
Essa característica dos esportes é que permite a catarse ao final do processo
chamado por Elias e Dunning (1992) de “busca de excitação”, no qual os indivíduos
procuram alivio de todas as suas pulsões reprimidas pela sociedade.
Portanto, assim como assinala Elias e Dunning (1992), o esporte cumpre a
função de ser uma válvula de escape, uma espécie de catarse à pressão psicológica
exercida sobre as pessoas, pressões estas que reprimem suas pulsões no convívio
social. Para os autores é dentro de campo que os atletas remam de encontro às
convenções sociais, liberando as pressões reguladas pela sociedade, uma catarse
“controlada” pelas regras e permitida pelos impulsos de excitação que não são
experimentados nas situações do dia a dia.
Embora os conceitos de mimesis e catarse na obra de Elias e Dunning (1992)
estejam na consideração de que o esporte possui necessariamente um caráter
mimético, compreendemos que nem toda experiência esportiva leva à catarse.
Entretanto, há de se considerar que na busca da excitação, como sugerem os
autores supracitados, uma espécie de tensão, um excitamento agradável, faz os
sentimentos fluírem mais livremente no contexto esportivo. Uma excitação mimética
que pode ser apreciada e que pode ter um efeito libertador, cartático, mesmo se a
ressonância emocional ligada ao desígnio imaginário contiver elementos de
ansiedade, medo, ou mesmo desespero.
Essa tensão e relaxamento é o que configuram o excitamento vivido pelas
pessoas na prática esportiva, em que o corpo se entrega ao jogo e este desce entre
os devaneios da experiência sensível, transformando-se em prazer, afinal, “o
desporto é sempre, em todas as suas variedades, uma luta controlada, num quadro
imaginário, quer o adversário seja a montanha, o mar, a raposa ou outros seres
humanos (ELIAS, 1992, p. 84).
123
O esporte não é a única forma de libertar-se das tensões provenientes da vida
social, e em particular uma excitação agradável. Mas nele certamente é possível
viver o arranjo e o devaneio, características do comportamento social, associando-
se inexoravelmente a razão e a emoção, sem separação nem hierarquias, como
aspectos que movem os atletas em sua prática.
Para Welsch (2001), o modelo disciplinar tradicional do esporte estava
associado à ascese, ou seja, uma utilização dele para controlar desejos corporais e
as conotações eróticas do homem. No entanto, hoje, como ele mesmo afirma, o
esporte é uma das esferas em que a relação intrínseca entre o erótico e o estético
recebe permissão de manifestar-se.
Aí se estabelece uma nova possibilidade de concepção de beleza atrelada ao
esporte que, embora presa ao ideal clássico de corpo perfeito, esbelto, claro e
definido, expõe outras perspectivas de ação para essa perfeição, que não é mais do
corpo e dos gestos, mas de sua eficiência.
De certo, as emoções e as atitudes que coexistem na beleza dos gestos, na
expressão facial e na postura corporal atlética em todas suas possibilidades de jogar
constantemente com os limites e as incertezas dos movimentos, ligam o espectador
ao enredo esportivo, a objetividade à subjetividade, o funcional ao estético, assim
como esclarece Welsch (2001, p. 144-145):
Admiramos a elegância de uma esguia saltadora em altura quando, subindo e descendo, desliza seu corpo suavemente sobre a barra; ou a potência da célere corredora cujas pernas espantosas explodem quando sentem se aproximar a linha de chegada – e essa é a razão de todo esse gosto em observar, inspecionar, mirar seus belos corpos durante e depois do evento, de modo que assim se possa melhor compreender suas realizações e melhor se surpreender ao vê-los cruzar tão inteiros e infatigáveis a linha de chegada. Nesse sentido, nós, como telespectadores, temos a razão em nos concentrarmos na realidade dos corpos. E os atletas têm razão em buscar a perfeição de seus corpos e mesmo de exibi-los. No esporte, o estético e o funcional andam de mãos dadas.
Nesse sentido, sendo o esporte uma prática cultural regida por regras e
normas éticas e sociais, enfrenta desafios motivados por suas próprias
características de ordem internas, bem como em função de sua própria estetização
(CAMINHA, 2009).
124
Logo, se por um lado a perfeição corporal se converte para a eficiência do
gesto demandada por um aprimoramento dos investimentos sobre o corpo do atleta,
por outro, essa mesma conversão possibilita o surgimento de novos movimentos
para além da técnica padronizada, o que evidencia a plasticidade corporal e criativa
do atleta.
E sobre isso, Welsch (2001) aponta que o esporte se desloca do ético para o
estético, quando se torna um espetáculo social, caracterizado pelo “elemento
adicional da performance, que revela todos os tipos de habilidades pessoais, a
interpretação individual e a abertura para o evento que eles criam (enquanto é
criado)” (WELSCH, 2001, p. 153).
Nessa corrente de pensamento, a habilidade se equivale ao êxtase
provocado, como ocorre, por exemplo, na euforia de uma vitória. O que nos faz
compreender que, apesar de o espetáculo esportivo se justificar pelo viés da vitória,
ele não se restringe a ela, como assegura Welsch (2001, p. 152):
O ponto principal, entretanto, é que, no esporte, o objetivo de ganhar não pode se realizar diretamente, mas somente através da performance esportiva. É a superioridade da performance esportiva de alguém que produz a vitória. Assim a própria obra do atleta é, neste caso, a sua performance, que talvez resulte numa vitória.
Nesse contexto, o sentido maior do espetáculo esportivo para além da
necessária disputa do jogo, passa pela admiração dos corpos dos atletas, pela
exibição da performance técnica, pela contemplação estética dos corpos.
Desse modo, o corpo deixa de apenas submeter-se às regras de condutas
esportivas e do mercantilismo existente para aliar-se à técnica, à tática e à alegria de
jogar como elementos necessários à vitória e, também, à estesia que ele provoca.
Uma atividade como o esporte, que sensibiliza, confronta, emociona e excita,
também acaba sendo reveladora de um mundo encantador que se mostra, que cria
significações antes latentes como uma ampla e profunda sinergia da vivência
estética.
O êxtase do corpo em movimento, das emoções sentidas, do excitamento
vivido/regido pelo jogo e revelado pelo mundo da estesia, tem, no palco da
sensibilidade, uma gama de sentidos e significados que vão sendo construídos pelo
mundo da experiência estética.
125
A tensão e a excitação, que afetam o atleta diante do jogo, elevam o
despertar corpóreo para um universo sensível e redimensionam a vida para uma
nova forma de existência que não para de se renovar.
O atleta transcende a esfera do mero preenchimento das regras, dos modelos
técnicos e dos controles estabelecidos no esporte, criando seu próprio transcurso ao
estar em jogo, o que de fato permite que a dinâmica imprevisível do âmbito esportivo
se manifeste no início e também no fim, senão vejamos:
Na competição e na performance reais algo mais está incluído: o evento e a ocorrência, o drama e a contingência, a boa e a má sorte, o sucesso e o fracasso, a surpresa e a excitação. Esses elementos fazem do evento esportivo algo particular e possivelmente único (WELSCH, 2001, p. 153).
A performance esportiva engloba o atleta e os torcedores, fazendo do
momento uma só existência sensível que se revela ontologicamente. Cada
movimento do corpo, no ato do jogo, surge da relação entre o dado e o evocado, ou
seja, dos gestos treinados e das situações que adentram a existência dinâmica do
jogar.
O corpo, nesse entendimento, desobedece às lógicas do movimento
determinado e linear. Ele quebra os grilhões do mecanicismo que o percebe como
algo pronto, fazendo de cada gesto e de cada movimento, por mais grosseiro que
seja, uma evasão de pressões e emoções. As quais, aprisionadas pelas tensões da
vida ordinária, fluem através da experiência vivida e anunciam um mundo esportivo
que provoca excitação.
A partir disso, reconhecendo que no esporte aspectos elementares da
condição humana estão em jogo e são encenados, é que aproximamos o
pensamento catártico do esporte de Elias (1992) com o estético de Welsch (2001),
por entender que, embora os autores falem em contextos e em épocas distintas, as
reflexões dos mesmos se aproximam, dado que a importância das práticas
esportivas não reside apenas na manifestação de tensões, mas também na
renovação desse sentimento. Uma dimensão sensível do esporte que revela muito
do papel que ele cumpre na vida social e do quão complexas são as experiências
estéticas que ele potencializa.
126
Como declara Elias (1992), a apreciação de jogos ou manifestações artísticas
representam um complemento ao mundo premeditado do trabalho e das obrigações
sociais. De modo que eles não podem ser considerados menos importantes, pois
“[...] as instituições de lazer, quer sejam teatros, concertos, corridas ou jogos de
críquete, não são mais do que formas de representação de um mundo de fantasia
‘irreal’. A esfera mimética constitui uma parte distinta e integral da “realidade social”
(ELIAS, 1992, p. 116).
A experiência estética atrelada ao sensível e às emoções na fruição da
prática esportiva afeta, de maneira profunda, não só o atleta no momento do jogo.
Os outros corpos presentes também se envolvem na mesma sinergia dos sentidos,
um envolver suave e intenso, que expande as sensações e faz o corpo buscar um
novo equilíbrio, latente pelo sentido prosaico da vida cotidiana.
Diante disso, podemos afirmar que a prática esportiva é composta por uma
considerável tensão e excitação, dor e prazer, anseio e emoção, elementos cuja
ênfase transita entre o ético e o estético, sendo sem dúvida uma prática que permite
ao homem sentir e ver o mundo de forma diferente. Pois, mesmo diante dos
controles e das determinações, ela é capaz de transportar a existência para uma
dimensão corpórea, que revela o homem na sua forma única de existir, e múltipla
quanto fruto da experiência de mundo vivido.
Paradoxo
O jogo é um sistema complexo, cujas partes não podem ser compreendidas
sem a complementariedade entre elas, ou seja, é impossível compreendê-lo sem
levar em conta o fascínio que ele desperta nos jogadores, o contexto ético e estético
e suas características paradoxais, tais como ordem e desordem, tensão e excitação,
descompasso e cadência, dor e prazer, dentre outros. Por isso, diante de toda sua
estrutura, sabe-se que o caráter organizacional do esporte revela, portanto, ordem e
desordem. Semelhante ao que afirma Reverdito e Scaglia (2007, p. 53) acerca do
jogo de handebol:
O jogo de handebol fosse apenas ordem, no qual ataque e defesa se equilibrassem efetivamente dentro de um espaço e tempo requerido, o
127
resultado já estaria determinado antes mesmo do jogo acontecer; todos os jogos acabariam empatados. Portanto, não seria jogo. Assim como, se o fosse apenas desordem, não existindo regulamento, não havendo uma lógica interna e nem objetivos, não seria jogo; não sabemos o que seria!
Sendo assim, o esporte não pode estar submetido a um princípio supremo de
ordem, como ideia determinada. Pois, por mais que isso exista, há de se considerar
que nele há uma combinação entre o que está estabelecido e o que é constituído
pelas ações dos atletas.
Como afirma Morin (2003), na dimensão dos fenômenos, é impossível
observá-los apenas de forma determinada (ordem) ou pelo acaso (desordem): “A
ordem, a desordem e a organização se desenvolvem junto, conflitual e cooperativa,
e de qualquer modo, inseparável” (MORIN, 2003, p. 216).
Na teoria dos sistemas complexos, a dialógica refere-se à relação de
complementaridade e antagonismos existentes no fenômeno: “significa que o
complementar pode tornar-se antagônico” (MORIN, 2005, p. 52). Assim, longe da
ideia de apenas antagonista, ordem e desordem demandam diálogo. E mais que
diálogo, ordem e desordem demandam inseparabilidade.
Diante disso, entre esses elementos o paradoxo se pauta entre a ordem e a
desordem dada ou estabelecida. Quando, no processo do jogo, o problema gerado
leva o atleta a uma construção criativa capaz de estabelecer para aquela situação e
para si uma nova criação, posto que: “[...] a ordem é aquilo que permite a previsão,
isto é, domínio, a desordem é aquilo que traz a angustia da incerteza diante do
incontrolável, do imprevisível, do indeterminado” (MORIN, 2003, p. 210).
Desse modo, o esporte, longe de ser uma prática pré-configurada ou fechada
por padrões, passa a ser compreendido como experiência que se modifica
continuamente. Tanto do ponto de vista da experiência de quem assiste, quanto de
quem joga, ele se renova, torna-se mutável, podendo guardar em si uma lógica
indeterminada. Isto porque, ele tem o poder de sempre recomeçar, instituir o novo, o
diferente, o inesperado. Um versátil estado que surpreende, descortina o comum,
enredando o corpo nas veredas do extraordinário.
Como aponta Welsch (2001) acerca do esporte como lugar em que a vivência
não permite script, ponto crucial da prática esportiva é que tudo é criado pela
performance dos atletas e pelo próprio evento, o qual:
128
Não segue da implementação de um script. Quando testemunhamos algo dramático, isso é devido – no caso do esporte – a nada além do próprio evento. A ocorrência real não pode ser antecipada, a performance dos atletas é criativa no mais alto grau. Não havia nenhum script. Esporte é drama sem script. Cria o seu próprio drama (WELSCH, 2001, p. 154).
O paradoxo do jogo então constitui-se nesse pensamento, ou seja, na relação
entre ordem/desordem que acontece por meio da experimentação dos diversos
elementos do jogo, os quais interagem o fluir do corpo, sua alternâncias de tensão e
relaxamento, expansão e recolhimento, suas agitações e suas pausas, todas
partindo do corpo em trânsito.
Para ilustrar essa relação de autonomia e dependência que se estabelece no
jogo, podemos tomar como exemplo novamente o filme “Invictus”. Essa obra nos fez
pensar que a instituição esportiva favorece os jogadores que desestabilizam o
princípio da “previsibilidade objetiva”, ou seja, formas de jogar baseadas em
movimento ordenados e sentimentos igualitários.
A lógica de jogo dos Springboks indica um formato pouco alicerçado na busca
de sistematização e de performance estabelecida pelo ideal olímpico. Mobilizados
pelo jogo, pelos espectadores eufóricos, pela vitória, características fortemente
ligadas ao prazer que eles têm de jogar, reconhecemos aqui, entre outras
possibilidades, nuances estéticas.
Fotografias 42 e 43: Atleta mobilizado pelo jogo Fonte: Invictus, cena 25 (2009)
129
No cenário fílmico dos jogos, ordem e desordem, ação e criação, destreza e
devaneio, tensão e excitação andam juntos, fundem o atleta ao gesto, o movimento
ao jogo enquanto interligações de planos e de ações, assim como escreve Elias
(1992, p. 87):
Cada equipa pode ter planejado a sua estratégia de acordo com o conhecimento que possui de si própria e das competências técnicas e pontos fracos dos seus opositores. Todavia, no decurso do jogo, produzem-se com freqüência, configurações que não foram intencionais ou previstas por cada um dos lados. [...] O processo do jogo é exactamenente este: uma configuração dinâmica de seres humanos cujas ações e experiências se interligam continuamente [...].
Nesse pensamento, aquilo que é eficiente para se ganhar um jogo não se
estabelece somente na competência gestual, mas, sobretudo, na harmonia dos
gestos como recombinações de técnicas que promovem o ato criativo no jogo
esportivo.
A brutalidade e a força, tão características no rúgbi, não se mostram
suficientes para um bom resultado. Sem dúvida, essas características são
importantes na referida modalidade. No entanto, a produção desvincula-se dessa
realidade para mostrar que o jogo é feito da imprevisibilidade das determinações
esportivas e atléticas. O que nos faz entender que a técnica treinada entrelaça-se à
sensibilidade posta pelo esporte, fazendo os atletas subverterem os ditos ao propor
novas escritas para seus corpos em movimento.
Invictus sugere a admiração pela equipe que não tem prestígio nem ascensão
no meio esportivo, nos convida a festejar o gol, aponta outras possibilidades de
utilização da técnica criativa de jogo, enaltece a diversidade, as ações corporais e a
exultação dos corpos que jogam, mostrando que
O sensível aqui não se apresenta como algo que deva ser eliminado por conter erros, por ser uma ilusão. O sensível define a essência do ser, ele contém significações que singularizam o sujeito e ao mesmo tempo permite a intercomunicação com a singularidade do outro, dando um novo sentido ao acontecimento (NÓBREGA, 2005, p. 70).
Nessa relação de existência corporal, o gesto possui um sentido, uma
direção, um significado. Expressão do pensamento desenhado pela gestualidade do
corpo, ele caracteriza uma relação sempre original no mundo.
130
Para tanto, a prática esportiva compreendida como uma manifestação
cultural, que se articula com uma diversidade de elementos em sua sistematização,
a partir das regras, do uso ideológico, das condutas gestuais, da disciplinarização,
que tem como ponto de partida a padronização dos corpos como eficiência de jogo,
também se abre às novas produções da gestualidade do corpo em movimento.
O filme ensina não só passos para a vitória, na vida, no esporte e nas
relações sociais, mas trata de como vencer depois de sucessivas derrotas, pois,
“ganhar depois de estar abatido, crer na possibilidade da vitória novamente, é
decisivo para permanecer no esporte de alto rendimento” (SILVA; RÚBIO, 2003, p.
74).
Além disso, nos mostra como as ações dos jogadores se dão diretamente em
resposta aos movimentos do adversário, ou seja, não dada antecipadamente, o que
faz com que os elementos como equilíbrio, ordem e objetividade, abram espaço para
as instabilidades e incertezas da experiência do jogar.
Encontramos no filme “Olympia”, quando comparados a atualidade, a leveza
dos gestos atléticos sem o uso exagerado de indumentárias e adereços. Os atletas
usam vestimentas que não acentuam as valências físicas nem primam pela
espetacularização da performance corporal, mas dão ao corpo a lógica da igualdade
de oportunidades e um tom de leveza e graça sem deslocar a busca pela vitória,
própria do esporte.
Melo e Nóbrega (2006), ao refletirem a partir desse filme a configuração
política e estética do esporte, afirmam que na atualidade o corpo do atleta aparece
como aquele que transporta adereços, os quais fazem mais sucesso que suas
próprias realizações, ajudam, a quebrar regras e transformam o esportista num mero
coadjuvante. Avanços tecnológicos que, segundo eles, se diferem das Olimpíadas
de Berlim, na qual “[...] mostram-se na mais elementar forma de expressão” (MELO;
NÓBREGA, p. 36).
Desse modo, assim como declara Pociello (1995) acerca das mudanças no
vestuário dos ciclistas, no contexto fílmico, as roupas para além de uma
funcionalidade a elas impostas, se conectam à plasticidade do atleta, parecendo
brincar junto aos esportistas, ajustando o corpo: “[...] às formas em movimento,
ressaltando a esbeltez musculosa, enaltecendo a uma silhueta juvenil e unissex, que
pode se ver de longe e apreciar de perto [...]” (POCIELLO, 1995, p. 116).
131
Segundo Pociello (1995), os adornos esportivos dão uma importância
fundamental ao atleta, valorizam suas formas, e o corpo, com os seus movimentos.
Vestuários e adereços se exibem com uma suavidade que se contrapõe a um
trabalho austero com suor e esforço.
Pode-se pensar, neste sentido, que, além de função, roupa e atletas se
entrelaçam durante as provas. A roupa se molda ao corpo, o corpo a conduz e
ambos se movimentam na competição.
Percebemos em “Olympia”, além das roupas, equipamentos e técnicas que,
comparados aos de hoje, revelam os investimentos feitos no campo esportivo que
tendem a aperfeiçoar as funções orgânicas e gestuais dos atletas. Um aparato
tecnocientífico que se manifesta não apenas nos acessórios e roupas, mas também
nas instalações esportivas e nos novos materiais, tais como as fibras de carbono,
poliéster, elastano, dentre outros, constituintes de vários equipamentos e vestuários
esportivos.
Entretanto, como afirma Sant'Anna (2000), as transformações drásticas pelas
quais vem passando o esporte nos dias atuais não significa que os novos “deuses
do estádio" sejam totalmente previsíveis, ou que o problema da técnica seja apenas
técnico e industrial. Ao contrário, a previsibilidade é sempre uma busca enquanto
Fotografias 44 e 45: Roupas, técnicas e equipamentos da época do filme Olympia Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 7 (1938)
132
que a técnica é um problema ao mesmo tempo social, ético e político, isto porque,
segundo a referida autora entre corpo e técnica:
[...] não há somente relações harmoniosas e de acoplamento funcional, mas, também, tensões, disputas e diferenças, nem sempre visíveis ao primeiro olhar, nem sempre historicizadas e submetidas à análise etnográfica. Por isso, lembrar das sensibilidades culturais que em cada situação possibilitam a criação ou o abandono de cada técnica esportiva é uma maneira, entre outras, de perceber que toda a sedução exercida pelo esporte tem razões muito mais complexas do que pode explicar a sua insistente publicidade internacional (SANT'ANNA, 2000, p. 5).
Certamente, o impacto dos avanços científicos incide sobre o corpo dos
atletas transformações não apenas de ordem física e performática, mas, sobretudo,
técnica.
Cada época e cada cultura possui não apenas seus heróis, mas também seus
padrões de beleza, de eficácia, de recorde, de perfeição e de usos do corpo. Assim,
da época do filme aos dias atuais, vemos mudanças consideráveis nas técnicas
utilizadas, como por exemplo:
Nas provas do salto em altura, realizada através da técnica do salto tesoura e no salto com vara, realizado com a vara de bambu e o atleta amortecendo a queda em uma caixa de areia; os aparelhos rústicos utilizados na ginástica olímpica, entre outros (MELO; NÓBREGA, 2006, p. 36).
Esses recursos confirmam o quanto as transformações técnicas não são
somente dos equipamentos e das roupas usadas por cada atleta, mas também dos
processos históricos e culturais, ou seja, dos usos do corpo no esporte em
determinada época e sociedade. O que supõe uma emergência histórica de novas
tecnologias e, igualmente a isso, uma condição do próprio corpo em pertencer
àquele lugar.
Compreende-se assim que toda técnica esportiva é inseparável de uma
historicidade, de uma relação de troca entre as novas tecnologias e as aspirações
dos atletas, o que contraria, frontalmente, a crença a um saber técnico autônomo e
livre de qualquer relação com o tempo histórico ao qual está inserido. Sobre isso
Sant'Anna (2000, p. 5) acrescenta que exemplificando: “[...] A transformação dos
gestos e técnicas do futebol, do ski, da asa delta e de todas as modalidades
esportivas não ocorre, portanto, sem as influências culturais de cada época e
sociedade”.
133
Nesse sentido, sabe-se que a técnica esportiva utilizada em um mesmo
campeonato pode não somente mudar, mas acontecer inúmeras vezes e de
maneiras diferentes. Isto porque, os atletas as transformam, subvertem os códigos
que as pontuam, criam conexões inexistentes e até mesmo as singularizam, como
no caso da ginástica olímpica, em que os novos gestos são batizados47 com o nome
do atleta criador.
Esse movimento de mudanças ocorrido no esporte seja nas roupas, nos usos
tecnológicos ou mesmo nas transformações do corpo através das técnicas
corporais, por mais que estejam ligados a questões negativas, como consumo e
moda, transformam a técnica do jogo e mudam a experiência do atleta a partir de
suas próprias idiossincrasias. Isto porque, as novas roupas, assim como os novos
gestos, exprimem a capacidade do atleta de transgredir as delimitações das formas
de movimento descritas pelos códigos esportivos.
Desse modo, o corpo, ao invés ser subjugado pelos investimentos técnicos e
científicos do esporte, se utiliza deles para inscrever novas relações orgânicas e
sociais. O que não nega a penetração da razão instrumental e os fins que se
procuram, mas desvela o inusitado e o surpreendente, levando o atleta aos campos
da existência, condensando suas experiências e fazendo-lhes florescer enquanto
carne do mundo.
Nessa direção, o esporte deixa de ser instrumento de exploração tecnológica,
disciplinador e adestrador, reduzido aos aspectos mecanicista e mercantilista. E o
corpo, não mais um reprodutor passivo, mas uma condição humana inacabada e
itinerante em sua possibilidade de fazer o esporte acontecer.
Nesse processo aberto e dinâmico do esporte, o corpo que é modificado e
também modifica o meio que habita. Faz e se refaz a partir de sua relação com o
entorno, ao mesmo tempo em que modifica-o, cria novos espaços e novas texturas
para ali ficar.
Essa constatação parte das considerações de Maturana e Varela (2001, p.
52) ao compreenderem que: “[...] os seres vivos são unidades autônomas”. Ao
47 Alguns exemplos de criações de ginastas brasileiros como Daiane dos Santos e Diego Hypolito, que tiveram movimentos nomeados após suas primeiras execuções, são estes respectivamente: “Dos Santos I e II” (O Duplo Twist Carpado e Duplo Twist Esticado são variações do salto twist, popularmente conhecido como uma pirueta de giro em torno de si, seguido de um mortal duplo; e o “Hypolito” (Duplo Twist carpado com mortal na segunda pirueta).
134
redimensionarem o conceito de vida, esses autores afirmam sua dinamicidade como
potência auto-organizativa no mundo, em que ela cria, recria, inventa e reinventa a si
própria.
Eles esclarecem que o homem vive sempre criando, conhecendo e
interagindo com o mundo circundante e com o outro, num processo que se renova
constantemente.
Essa teoria, a autopoiése, ao pensar os seres vivos a partir de suas relações
com o entorno, considera que estes, à medida que interagem com o meio em que
vivem, são capazes de se autoproduzirem ininterruptamente, expondo sua
dinamicidade, mas também os seus limites. De modo que, autonomia e dependência
tornam-se coisas inseparáveis (MATURANA; VARELA, 2001).
A partir disso, podemos pensar o corpo como sendo autopoiético, ou seja,
como aquele que inventa e reinventa a partir de sua relação com o entorno,
compondo continuamente fronteiras e transformação, sendo ao mesmo tempo
produto e produtor, auto-organizado e auto-organizável:
[...] nós, os seres vivos, somos sistemas autopiéticos moleculares, indicando que o que nos define como classe particular de sistema autopoiético que somos, isto é, o que nos define como seres vivos, é que somos sistemas autopoiéticos moleculares, e que entre tantos sistemas moleculares diferentes, somos sistemas autopoiéticos (MATURANA; VARELA, 1997, p. 18).
Segundo os autores supracitados, o organismo se autogere, mas só é capaz
de fazer isso, na relação com os outros organismos. Logo, a autopoiése só é
possível porque cada ser é em relação, de maneira que o organismo vive um
processo de mudanças contínuas, especificadas através de uma seqüência
interminável de interações com o mundo.
Diante disso, pensemos nas imagens dos corredores de “Olympia”, corpos
magros, brancos, lânguidos, sem tanto volume corporal e sem a visível definição
muscular que apresentam os atletas da atualidade, eles apresentam “[...] uma
pureza estética que se aproxima da natureza humana e da própria estética dos
Deuses do Olimpo” (MELO; NÓBREGA, 2006, p. 35).
Na modalidade citada, como em tantas outras, quando comparados os
corpos, evidenciamos, entre outros aspectos, os avanços tecnológicos que
135
intensificaram o desempenho dos atletas, suas formas físicas e até mesmo a
existência de técnicas diferenciadas.
A utilização de novas tecnologias sem dúvida contribuiu para o surgimento de
novas técnicas e outras visibilidades do corpo. E, ao mesmo tempo em que ele
passou a ser o ponto de partida para novas explorações e descobertas, esses
investimentos também impulsionaram o corpo a novas formas de existência.
O esporte em interação com as tecnologias, com as criações e formatos
diversos para fazê-lo acontecer, tem revelado o quanto esse entorno apenas
desencadeia mudanças possíveis e que o corpo, ao estabelecer relações com ele,
modifica e é modificado pelo mesmo, a partir da reciprocidade entre sujeito e objeto.
O corpo é nosso meio geral de ter o mundo. Ora ele se limita aos gestos necessários à conservação da vida, e correlativamente, põe em torno de nós um mundo biológico; ora, brincando com seus primeiros gestos e passando de seu sentido próprio a um sentido figurado, ele manifesta através deles um novo núcleo de significações (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 203).
Desse modo, podemos compreender que as transformações corporais e
técnicas no âmbito esportivo não são adaptações dos atletas àquele meio, mas
partícipes de uma modulação do próprio corpo em sua capacidade contínua de gerar
novas possibilidades de interação com as diferentes situações advindas do esporte.
Sobre esse movimento criador do homem no mundo, imerso de cultura e história,
sempre criando e recriando, é que Merleau-Ponty (2011, p. 122) afirma que: “O
corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a
um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente
neles”.
Nesse pensamento, o corpo permanece em constante movimento de
construção e reconstrução, ativo no mundo, dinâmico em suas ações, vivendo para
além do tolhimento dos gestos, outros tempos, espaços, ações, repertórios
inebriantes.
Embora reconheçamos que corpo do atleta é submetido a um
condicionamento físico para adquirir força, resistência, velocidade, muitas vezes, por
meio de repetições exaustivas e conhecimento tecnológico para aprimorar sua
performance, ele também é preparado para o autodomínio, para superar as
136
condutas dos adversários, para subverter no esporte. Como afirma Mauss (2003) há
no corpo uma maneira adquirida e não natural de se comportar e se dispor no
mundo.
Sobre isso, o autor explica que, o corpo enquanto nosso meio técnico de agir
no mundo articula gestos específicos e padrões fundamentais, os quais são
construídos a partir das particularidades de cada sociedade, revelando ao mesmo
tempo, um componente coletivo e individual.
Segundo ele, o ser humano cria, ao longo de sua existência e em função de
seu contexto cultural, costumes que vão se tornando tradicionais e que ao responder
as demandas da sociedade onde se fazem presentes, adquirem eficácia simbólica e
significados importantes para o grupo social.
A esse entendimento, o antropólogo institui o conceito de técnicas corporais.
Isto é, as diferentes formas de utilização do corpo que permitem ao homem lidar
eficazmente com as demandas de seu contexto cultural. Em outros termos, são “as
maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma
tradicional, sabem servir-se de seu corpo” (MAUSS, 2003, p. 401).
Importa dizer que Mauss (2003) sobre a compreensão do uso e da
transmissão das técnicas corporais, o autor destaca duas questões importantes: a
sua especificidade segundo as diferentes sociedades e a sua transformação ao
longo das gerações.
Nessa direção, é possível compreender que as técnicas de corpo são
construídas a partir dos hábitos de cada grupo social, carregando os significados e
os valores de cada contexto cultural, assim como suas especificidades e
transformações, por isso elas variam: “[...] não simplesmente com os indivíduos e
suas imitações, variam sobretudo com as sociedades, as educações, as
conveniências e as modas, os prestígios” (MAUSS, 2003, p. 404),
O aprendizado das técnicas não ocorre simplesmente por uma cópia, por uma
incorporação mecânica ou por um ensino formal e instrumentalizado sem atribuição
de significados. Ao revés, essa maneira de dispor o corpo e a aprendizagem do
movimento acontece nas relações sociais, na construção da gestualidade humana e
no aprender sensível do corpo no mundo.
Nessa direção é que aproximo o gesto técnico do esporte do conceito de
técnica do corpo proposto por Mauss (2003), compreendendo como formas
137
corporais tradicionais e eficazes, imbuídas de repetição, de inovação e de
inspiração, pois, como diria o autor, “antes das técnicas de instrumentos, há o
conjunto de técnicas do corpo” (MAUSS, 2003, p. 407).
O gesto esportivo oriundo dos movimentos dos atletas de alto rendimento
constitui-se, sem dúvida, em técnica imbuída de tradição e de transformação. Ela
não é somente um conjunto padronizado, mecanizado, separado da dimensão dos
significados culturais e das características de seus praticantes.
A mesma técnica definida como universal, é, no entanto, praticada praticado
de formas diferentes, com interesses variados e significados próprios. O que faz
compreender que, o esporte não pode ser visto apenas por uma perspectiva
mecânica, mas como fenômeno sociocultural dotado de fatos sociais, envolvendo as
dimensões biológica, psicológica e, sobretudo, sociológica, no sentido como
apresenta Marcel Mauss a respeito dos fatos sociais como fatos tradicionais, “eles
são técnicos, estéticos, econômicos, morfológicos” (MAUSS, 2001, p.114).
Nesse processo, o atleta não é só um mero receptor ou simplesmente
passivo. Ele interage com o meio constantemente, inventa e refaz aquilo que lhe é
proposto. Saberes que se propagam e estabelecem a imanência entre os gestos
tradicionais e as novas formas de fazer o esporte acontecer.
A técnica é uma condição essencial para que o esporte possa existir e,
sobretudo para que, em contrapartida, haja a construção de novos elementos. No
esporte, como já mencionado, ao serem requeridos pelas mudanças das regras, do
vestuário ou mesmo do aparato tecnocientífico, modificações tanto na estrutura
esportiva quanto nas técnicas utilizadas, novos saberes, vão sendo instituídos, por
meio da experiência estética do atleta.
Por isso, o esporte ao perpassar discursos e intervenções médicas,
científicas e pedagógicas, produz através destes, os seus saberes. O mesmo leque
que determina suas regras, suas normas e suas modificações, possibilita que novas
condutas sejam resignificadas, ou seja, que uma nova forma de saber seja instituída.
Em virtude disso, a plasticidade do corpo faz o atleta produzir mais,
experimentar seus limites e suas potencialidades, numa relação ao mesmo tempo
harmoniosa e conflituosa, em excessos ou em formas mais comedidas, mas sempre
com o corpo em abundância.
138
Como pode ser visto nos dois filmes apresentados, não há dúvidas de que o
esporte funciona enquanto elemento socializador e formador, pois à medida que a
prática esportiva engendra um espírito de superação de limites e de criações, pode-
se afirmar que esse conhecimento adquirido nos esportes é uma excelente
experiência educativa para à vida em sociedade.
Nele pode-se sentir o valor da convivência de ser um e pertencer a um
aglomerado, deixando o corpo disperso, sem saber o que pode acontecer, mas
sempre sensível ao mundo e aos outros. Ele evoca os sentidos, faz emergir da
dimensão corpórea um estado de fluência capaz de alcançar em alarme
sentimentos, desejos, angústias, aspirações, paradoxos.
Dessa maneira, é a partir da estética do jogo que o atleta reconhece o valor
vivido no esporte e compreende o seu grau de beleza, sua harmonia e o prazer que
ele provoca. Afinal, ali ele se liberta e inventa, vive a disciplina e também a fantasia,
envolvimentos profundos que configuram o esporte como lugar em que a sua
existência transcende e onde ele vive o paradoxo do jogo e do corpo em movimento.
Conforme o desenvolvimento da nossa análise a partir dos filmes,
conjecturamos que o esporte é permeado pelos binômios ordem/desordem,
técnica/estética, tradição/inovação.
Tanto em “Olympia” quanto em “Invictus”, podemos observar que os
mecanismos de controle que fixam os limites do jogo são constantemente
reatualizados pelos investimentos feitos no esporte, pela potência criativa do corpo e
pela comunicação corpórea do atleta com os elementos que compõem o esporte, o
qual, transcendendo a normatização imposta, possibilita formas diversas de se
pronunciar neste mundo.
O âmbito esportivo se faz pelo próprio corpo em movimento. Um mundo que
se constitui pela atmosfera de formas, gestos, condutas, oscilações, paradoxos e
devaneios. O atleta pendula entre dois extremos, o da criação pessoal e o da técnica
inerente ao esporte, de modo que, ao mesmo tempo em que ele não pode se
desviar da técnica, pode criar e se expressar dentro desta. Um verdadeiro devaneio,
ou seja, ações imprevisíveis que se estruturam no êxtase e no arrebatamento do
atleta diante do jogo, quando na veemência do agir, as sensações cinestésicas48 se
48 A cinestesia é a percepção do corpo em movimento atado ao mundo, em que o tempo, o espaço, as coisas e os outros não são vistos como objetos, mas como meios pelos quais o homem se dispõe
139
apoderam dele, revelando, sem qualquer previsão, uma unificação do corpo com o
pensamento.
Viver o devaneio é subverter todas as formas e possibilidades de jogar, quer
individual, quer coletivamente. É agir dentro das regras, sem deixar ser submetido
por elas. Incorporar formas diversas de avançar por meio de atos ousados, ou
mesmo de recuos necessários, sem achar que um nega outro. É a existencialidade
experimentada entre os limites e as potencialidades da vertigem, da tensão, da
excitação e do paradoxo que se estabelece na prática esportiva.
As conformações estéticas das especificidades dos gestos esportivos são
construídas sob esse trama complexo de relações de poderes normativos, técnicos
e também estéticos. Na execução controlada e nas características fechadas, o corpo
desafia não apenas os regulamentos que lhes são impostos, mas os seus próprios
limites, transcendendo, dentro dos padrões, formas diversas que transformam o
repertório gestual do atleta e também do esporte.
Pensamos que o esporte é pautado por concepções estéticas constituídas por
mecanismos de poder-saber, ordem-desordem, técnica e estética, os quais,
preponderantes em toda a sua historicidade e contexto firmado, não definem regras
e determinações, mas junto a isso possibilita uma abertura para uma ontologia
revelada pela sensibilidade do atleta tomado pela estesia do viver corpóreo.
As exacerbações retratadas na técnica e na padronização dos gestos, ao
mesmo tempo reproduzidas e criadas, constituem-se como fundamento dessa
manifestação, e, porque a experiência estética, experiência que se dá
exclusivamente no corpo, ocorre “a partir de uma relação de imanência entre sujeito
e objeto” (PORPINO, 2003, p. 145).
O esporte ata-se ao atleta, afetando sua existência para um viver imbricado
com o mundo do sensível, a qual, tatuada de significações de sua historicidade,
cultura e vivências diversas, vai estabelecendo suas próprias relações estéticas do
corpo enquanto carne do mundo.
A vivência da experiência estética do esporte amplia a existência humana
porque dimensiona o corpo e, com isso, entrelaça o saber e a sensibilidade para a
como potência universal de conexões, descobertas e sensações do corpo, em uma dimensão espaço-temporal e reflexiva no mundo (MERLEAU-PONTY, 2004b).
140
construção de um conhecimento aberto, dinâmico, que impulsiona uma dialética das
coisas opostas e um despertar dos sentidos aberto ao mundo.
Juntando paradoxos, por meio da intersubjetividade, o esporte, enquanto
comunicação de polos opositores e antíteses inacabadas, se faz no movimento da
expressão criativa e nas formas inusitadas, os quais se expandem no jogo por meio
da estesia ontológica, da criação e da renovação da experiência vivida. Um
verdadeiro devaneio que amplia o sentido da vida e educa os sentidos para um
diálogo mais profundo consigo mesmo e com o mundo, aberto a novos contatos
vivos e significativos que desse convívio se descortinam.
Por isso, a partir das múltiplas abordagens do esporte, seja real ou
cinematográfico, fica claro seu leque de significações, de definições e sobretudo a
abertura de multiplicidade estética e educativa que ele propicia.
Podemos compreender, neste capítulo, que, através da entrega do jogador à
prática esportiva, o esporte assume formas, sentidos e significados distintos,
provoca excitações variadas que transitam do controle ao descontrole das emoções
(vive-versa), comportando sempre uma relação de autonomia e dependência, como
atuação recíproca de novos encadeamentos gestuais e existenciais.
Segundo Tempoesporte: A educação como jogo
142
A origem do conhecimento, e não somente a do conhecimento intersubjetivo, mas também do objetivo reside no corpo. Não se pode conhecer qualquer pessoa ou coisa antes que o corpo adquira a forma, a aparência, o movimento, o “habitus”, antes que ele com sua fisionomia entre em ação.
Michel Serres
143
Neste capítulo, discutiremos o esporte como potencializador de uma
educação sensível, a qual se manifesta nos processos corporais, do corpo em
movimento. Para isso, considera-se o jogo com sentido educativo, a intencionalidade
do movimento, o corpo como obra de arte e o papel social do esporte como dados
importantes para se reaprender a ver o mundo e a prática esportiva, sobretudo na
Educação Física.
Em nosso entendimento, nenhuma prática corporal, inclusive a esportiva,
ocorre diante de uma lógica determinada, baseada em caminhos previsíveis e
estabelecida pelos ditames do pensamento formal e imutável. Para fundamentarmos
essa argumentação, nos apoiamos em Schiller, o qual discute a experiência do jogo
como um conhecimento estético, investido de beleza, liberdade e sensibilidade.
Maurice Merleau-Ponty também se fez igualmente importante por trazer o
movimento humano ampliado pela afetação e intenção do corpo que é móvel no
mundo, dotado de sentidos sociais, históricos e existenciais, habitado por um
conhecimento sensível sempre inacabado. Ademais, recorremos também ao
sociólogo Elias, no sentido de compreender o esporte como um campo de
considerável significado social que possui códigos de condutas, estruturação e
mobilização intensa com as emoções e sentimentos de satisfação, que o faz
transcender à racionalidade mecanicista e instrumental para trilhar pelos caminhos
da racionalidade estética e educativa, seja na ontologia, seja na epistemologia, ou
em ambas, podendo influir na Educação Física e no conhecimento do esporte.
Sabe-se que a experiência no esporte não se limita a estatutos definidos e
moldes estabelecidos, porque ela é vivida no corpo, como abertura e como
interrogação. Seus sentidos transpassam o corpo, tornam-lhe sensível a este
mundo, harmonizando-se com ele, compreendendo-o, e sendo sensibilizado em
cada experiência vivida.
Ao vivenciar a prática esportiva, o atleta metamorfoseia-se pelas
possibilidades plásticas dos movimentos ali realizados, imprimindo ao vivido um
determinado sentido que implica a presença não material em sua essência.
Tal pensamento nos faz pensar o esporte como elemento da cultura e como
manifestação do próprio contexto do jogo, no sentido que transcende as
necessidades imediatas da vida, conferindo-lhe sentido e significação que não estão
na ordem imediata do dado, mas do evocado, da experiência vivida.
144
Todo esporte existe dentro de um mundo previamente delimitado, dedicado à
vivência de uma atividade pré-configurada por regras e procedimentos técnicos e
táticos, entretanto, ele necessita de particularidades para que possa acontecer. No
campo do vivido, suspenso da realidade corrente, ele se legitima, abre o homem ao
mundo, revestindo de significado a vida daqueles que o praticam. Por isso, ele
passa a ter função a serviço dos valores e do sentido do humano, características
propensas à compreensão do esporte como uma expressão da razão do excesso,
da transcendência e da excentricidade, isto é, da razão da liberdade.
É na vivência do corpo com os elementos do esporte, entre a tensão, a
emoção e divertimento que o atleta encontra a possibilidade de vínculo sensível com
o mundo. Essa experiência comporta sempre uma abertura, amplia o horizonte
vivencial e encontra novos sentidos na fruição da experiência estética por ele
despertada.
Como afirma Gumbrecht (2007), não há dúvida de que os esportes parecem
se qualificar como experiências estéticas, desencadeadas pelo desempenho e
performance dos esportistas. Para esse autor, no que se refere ao corpo do atleta, a
aparição inesperada dele no espaço assume uma bela forma que se dissolve de
maneira rápida e irreversível, podendo ser compreendida como uma espécie de
epifania.
O esporte transporta para um estado de múltiplas sensações imprevisíveis.
Ele provoca a existência, mobiliza os sentidos e eleva o corpo a experiências
inéditas. As sensações do corpo atravessam as fronteiras do poder e dos aspectos
tecnicista, instrumentalista e mercantilista. A amplitude do movimento ou a técnica
perfeita estão imbuídas de um sentido mais amplo, de modo que a experiência
estética do atleta não coaduna com essas características.
O jogo é indefinido e infinito, ele não tem forma, embora tenha regras. Não se
conforma em determinações ou em estatísticas prontas. Infinitos são os seus
caminhos e abertas são as suas passagens. Tudo ocorre de repente, transportando
o corpo por trilhas sensíveis as quais impulsionam o viver para um mundo
construído por diversas possibilidades de novas existências.
O mundo sensível vivido pelo corpo no âmbito esportivo dimensiona o atleta
para uma abertura do que está em si e no seu entorno, fazendo da vida uma nova
forma de conceber o mundo, o que configura a sua existência como algo móvel,
145
mutante, repleta de significados ainda não vividos. E é por isso que ele sempre
deseja jogar novamente, viver o esporte como um contexto infinito.
Não se faz esporte, qualquer que seja, sem regras ou sem adversários. Para
vivenciá-lo é preciso organização, delimitação, e também, criação. Pois o que move
o esporte não são as determinações impostas ou as vitórias incessantes, mas o
prazer que ele sustenta, o fascínio que produz no atleta e o devaneio que ele
manifesta. Isto é, uma experiência ordenada, com critérios rígidos a serem seguidos,
imbuída de uma experiência lúdica, presente no mover do corpo, vinculada aos
sentimentos e às sensibilidades como forma fecunda e motivadora de viver e de
jogar.
Acreditamos que no esporte, mesmo diante do rigor e das duras exigências, a
experiência sensível do atleta não se deixa anular pela disciplinarização e
funcionalidade do esporte, de ascese49, por exemplo.
É no corpo o lugar onde o devaneio e a experiência estética acontecem, em
sua função sensível de fazer e de sentir para si mesmo formas de jogar. Nada o
separa daquilo que ele pode, que ele cria. E a prática esportiva se estabelece nessa
relação. Na intenção e significação, que atua entre sujeito e objeto, entre corpo e
mundo, neste estudo, entre atleta e esporte.
Tomando o sentido estético acima descrito, podemos discutir o esporte
pautado numa educação como jogo, em que o atleta e o mundo esportivo imbricam-
se para realização da expressão criativa. Uma relação que se funda no poder de
sentir e de se movimentar, capaz de possibilitar a experiência de um fazer livre e
fecundo, assim como afirma Caminha (2012, p. 24) ao tecer sobre as ações do
corpo:
Os movimentos previsíveis ou esperados transformam-se em movimentos inesperados ou livres. Os movimentos do corpo não somente acontecem no mundo, como também se dirigem intencionalmente para ele. [...] O corpo-sujeito não apenas realiza atos, como também operacionaliza ações, guiando-se por intenções e desejos. Pelo transbordamento de si, originado pelo sentir, podemos dizer que o corpo se constitui um “eu” como instância mediadora de relacionamentos.
49 O esporte em sua relação com o atleta visto pelo viés ascético diz respeito à produção de modos de ser e de relacionar-se consigo e com os outros, por meio de uma prática que exige esforço, repetição e renúncia.
146
Desse modo, afirmamos que o esporte pode revelar-se como experiência
estética e educativa, tendo em vista a possibilidade de viver o corpo para além dos
muitos preconceitos e limites impostos pelos códigos sociais. Nele há um
arrebatamento tamanho, uma imbricação tão forte, e uma entrega total àquele
momento, que somente quem foi ou é atleta reconhece, a partir da experiência
vivida, a forma como o jogo é sentido no corpo.
A paixão que envolve o atleta na prática esportiva, a exaustão dos treinos e
das competições, e ainda, o fascínio em cada experiência ali vivenciada, habita o
corpo e é expressa por meio dos sentidos que entrelaçam um ao outro. Funde-os de
tal maneira que não há uma hierarquização do esporte em relação ao atleta. Ao
contrário, esse mundo sensível é talismã que se mistura a ele, sendo essa relação a
forma vibrante de ele realizar a sua existência.
Nesse pensamento, a experiência esportiva reabilita o sensível, transcende a
própria materialidade do esporte e transfigura a vida, pelo viver estético do atleta na
ação do jogo.
Nessa direção, pedimos licença a Schiller (1995), pois, nas próximas linhas
que se seguirão, refletiremos o esporte não como jogo, visto que não se pode traçar
uma semelhança entre eles, mas sim uma interface, que permite ao esporte, por
meio do da dimensão sensível ser vinculado, a cultura estética, isto é, o estado de
jogo proposto pelo autor.
O estado de jogo permitido pelo esporte, ou seja, a disposição estética do
atleta diante daquela experiência possibilita à razão se iniciar no campo da
sensibilidade e a rigidez de sua estruturação passar a ser despedaçado dentro da
dimensão sensível ali encontrada. Isto porque, o atleta é envolvido de tal maneira
que o esporte é uma oportunidade para instalar no corpo a razão, a animalidade, a
ética e a estética de sua condição humana.
Na teoria estética de Schiller (1995) o jogo tem um sentido educativo, ele
aparece como elemento da cultura humana, ligando dois aspectos fundamentais do
homem, a razão e a sensibilidade.
Como afirma o autor em suas cartas, a educação estética do homem traz uma
formação política, social, moral, epistemológica e pedagógica. Para ele, diante da
liberdade humana, o que se deve e ou se quer ser, o caminho proposto é a
educação estética, em que, entrelaçada ao lúdico, inclina-se à sensibilidade, à
147
pulsão e aos ânimos, de tal maneira que transcendem as determinações da razão.
Em suas palavras:
Quando as duas qualidades se unificam, o homem conjuga a máxima plenitude de existência à máxima independência e liberdade, abarcando o mundo em lugar de nele perder-se e submetendo a infinita multiplicidade dos fenômenos a unidade de sua razão (SCHILLER, 1995, p. 73).
Essa conciliação antagônica compõe a ideia de humanidade, que somente é
conquistada no decurso existencial e estético. Uma realidade humana que não é
somente guiada pela inteligência, nem pela natureza, mas também pelas sensações,
pelos sentimentos, pela experiência estética.
Dimensão educativa que faz confluir sentimentos e emoções. Sensações que
o homem utiliza para aprender sobre as coisas que o rodeiam e para viver uma
dupla função: realizar-se como pessoa e mover-se esteticamente pelo mundo.
Para o autor supracitado, o lúdico transcende a relação imediata que tem com
o prazer, inserindo-se no contexto de construção do homem e da sociedade. Seu
pensamento visa integrar todas as capacidades e potencialidades humanas, fazendo
do prazer estético uma nova possibilidade de educação.
É através do jogo, na satisfação do impulso lúdico que Schiller (1995)
reconhece a integralidade do homem. Tal impulso, o lúdico, não é um instinto
particular ou espontâneo, mas uma imanência entre o biológico e o sensível, entre a
razão e a emoção. É o equilíbrio que possibilita encontrar as limitações da
sensibilidade e da razão a atuar juntas, sem que uma sobreponha à outra.
Nessa condição necessária para um ideal de educação, o corpo em
movimento, o homem que joga pode evidenciar os fundamentos para a grandeza e
excelência da humanidade, de tal maneira que “o homem joga somente quando é
homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga”
(SCHILLER, 1995, p. 84).
Assim, o jogo revela-se como princípio de beleza da humanidade, de
interação entre os sentidos e a razão, e também de liberdade do sentir, sendo capaz
de superar essas oposições.
Com isso, surge o prazer estético, o jogar como experiência significativa que
torna o jogo uma possibilidade de educação, tendo no estado lúdico a possibilidade
148
do homem tornar-se integralmente homem, não por meio didático, mas como
experiência que faz o sujeito conhecedor do mundo.
Para Schiller (1995) o jogo é elemento significante para o homem, ou seja,
tem função social. No sentido de que, nele há significações como o prazer, a beleza,
o lúdico e o estético que engendra no homem não somente uma razão desprovida
de sensibilidade, mas um princípio de unidade e também de legalidade e de
liberdade.
Certamente, o esporte como uma manifestação cultural dada a sua
penetração mundial, possui características que o tornam um fenômeno popular, um
meio de entretenimento, de prazer e evação que influencia as culturas lúdicas
localizadas.
Desta forma, enquanto expressão social ele está presente de uma forma
descomunal em nossa sociedade, permeando o imaginário (paixão, mitologia,
ideologia da superação, etc.), causando comoções, e tendo, sobretudo, significação
própria pelos diversos grupos que o compõem.
A partir disso, aproximamos a noção de jogo do autor citado ao discurso
sobre o esporte realizado nos capítulos anteriores, por entender que nele existem as
relações do lúdico com a natureza da estética e do jogo.
Conforme visto, tanto nas experimentações com os elementos do jogo quanto
nas ricas possibilidades que se abrem no contexto fílmico, o atleta aprende e
compreende sobre sua existência a partir das experiências dos movimentos e das
relações com o mundo esportivo. São graus de conflito, de harmonia, de prazer, de
criação e de devaneios que vão despertando o sentido da vida.
Em sua capacidade de jogo, o esporte permite improvisar, criar e refazer as
realidades mais complexas, evocando a necessidade de se trabalhar não somente
diante de valores competitivos, mas junto a isso, ante a solidariedade, a cooperação,
a liberdade, a participação, o encontro, a alegria e o prazer como entonação da
melodia do jogo e da vida.
Reconhecemos que as relações entre o lúdico, o estético e o educativo não
se referem a qualquer prática esportiva, mas a um esporte que envolve o atleta pela
dimensão estética do existir, em suas ambivalências e imponderações. Nas
indeterminações, nos diálogos e nas criações do viver estético que rompem as
149
barreiras do determinismo das coisas prontas, ecoando nos recônditos do corpo,
uma variedade de sentidos e significados.
Em várias situações no esporte, como já mencionamos anteriormente,
podemos vislumbrar um aprender que transgride a reprodução, a previsibilidade e a
funcionalidade como realidade onipotentes. É possível pensar o esporte a partir da
perspectiva daquele que joga, do corpo que se entrega às sensações do jogo e vive
de forma sensível a experiência do corpo em movimento, afinal,
No corpo desportivo, melhor dizendo, nos diferentes usos e versões desportivos do corpo – tal como nos outros modelos de corpo –, esculpe-se, em carne, sangue e osso, toda uma filosofia de vida, iluminada pela claridade espiritual e cultural, ética e moral. Assim, haja olhos, sensibilidade, lucidez e humildade para ver, entender e reconhecer (BENTO, 2006, p.172).
Nesse contexto, multiplicam-se os sinais e indicadores de que o corpo do
atleta não é somente submisso no contexto esportivo. Essa mesma submissão é
capaz de produzir possibilidades de imprevisão ocasionada pela técnica que se
funda na criação subjetiva.
O mesmo leque que faz do esporte uma prática disciplinar e rígida,
dimensiona o atleta para uma experiência ontológica e saber estético imbricados
com as coisas do sensível e do fazer humano.
O esporte educa pela sua dinâmica de coexistir com o atleta, na experiência
do jogar, no devaneio do jogo e nos paradoxos que ele solicita. Um mover que se
faz pelo aprender, pelo refazer e pelo existir, abertos às experiências do corpo em
sua condição sensível.
Ao afirmamos que o esporte é uma experiência estética e educativa,
acreditamos que esse educar se manifesta nos movimentos corporais, nos diálogos
e resignificações ali experienciados. Lugar onde o corpo atinge sua (im)potência,
(in)finitude, (in)suficiência e (d)eficiência que o limitam e lhe distendem (BENTO,
2006).
Ademais, o jogo e os movimentos dos atletas, por serem considerados
mutáveis, mostram que a intencionalidade dos gestos expressa a maneira única de
existir no momento vivido, uma vez que o corpo humano, por estar atado ao mundo
por meio de uma relação dinâmica, atribui sentidos que se renovam conforme a
150
situação, pois é certo que “não há uma palavra, um gesto humano, mesmo
distraídos ou habituais, que não tenham uma significação” (MERLEAU-PONTY,
2011, p. 17).
Nessa direção, a intencionalidade torna-se importante nessa discussão, pois,
para Merleau-Ponty (2011), é ela que permite ao homem mover-se no mundo, criar
horizontes e alargar a experiência vivida. Nesta, os movimentos do corpo não são
somente ações mecânicas, desprovidas de intencionalidade. O sujeito que percebe
o mundo através de sua motricidade opera não no “eu penso”, mas no “eu posso”. E
quem pode é o corpo, em sua capacidade móvel de assumir o mundo em que está
inscrito.
Aprender o sentido da experiência em estado nascente é o esforço que
Merleau-Ponty efetua em suas reflexões, através de diálogos e críticas à tradição
científica e filosófica, ao tomar por fundamento da experiência humana não mais
uma consciência constituinte do mundo, mas como existência encarnada, feita pelo
corpo no contato espontâneo com o mundo sensível e inteligível.
Essa intencionalidade operante de que trata o filósofo não é um juízo lógico e
racional, mas uma conquista do homem em situação no mundo, permitindo-lhe a
compreensão de algo de modo consciente, ou seja, uma cinestesia possível por sua
condição corpórea.
Reforçamos que a atitude do autor supracitado em relação a nossa
capacidade motriz não é de um movimento como um deslocamento fundando por
ordens mecânicas, mas uma mobilização em que o homem executa para assumir o
mundo em que está inserido, sendo a intencionalidade a função que integra
pensamento e movimento como uma dimensão corporal em que são fundadas as
significações existenciais.
Nessa perspectiva, não sendo o corpo um mero objeto orgânico, que se move
por uma função de uma representação, mas uma rede de intencionalidade, um lócus
de comunicação onde nascem as significações dadas ao mundo, ele forma a
atividade expressiva que sobrepuja a diferenciação entre o subjetivo e o objetivo, ao
integrá-los em razão dos projetos aos quais se polariza, em outras palavras: “Só
posso compreender a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo e na medida em
que sou um corpo que se levanta em direção ao mundo” (MERLEAU-PONTY, 2011,
p. 114).
151
Sendo, então, o corpo horizonte latente de toda experiência, pode-se
compreender que a consciência, o corpo e o mundo não são três estruturas
dissociadas, mas unidades existenciais que só atuam quando relacionadas entre si,
operando por meio do experimentável, da motricidade e da dialética corpo-outro,
corpo-objeto, corpo-mundo.
Desse modo, a intencionalidade deixa de ser a propriedade da consciência
isolada e constituinte para ser característica de um sujeito voltado ao mundo,
dispostos às coisas e aos outros, vivida de forma dinâmica pelos movimentos do
corpo, colocando-o em contato com tudo que o cerca.
Sobre isso, Caminha (2010), ao refletir acerca da experiência perceptiva em
Merleau-Ponty, como uma ação efetiva daquilo que se dispõe em volta do homem,
realizada no mundo e também nele, declara que cada movimento de nosso corpo dá
o poder de nos orientar e desabrochar nosso ser no mundo. Logo, na medida em
que nós podemos nos situar de uma maneira dinâmica com o corpo no mundo, torna
impossível pensar o aspecto motor como uma exterioridade absolutamente objetiva
para além do modo de ser corpo vivido, assim sendo: “[...] o corpo do sujeito que
percebe deve ser concebido como ato motor, por meio do qual a dimensão sensitiva
não é dissociada da função motriz” (CAMINHA, 2010, p. 177).
Tanto na experiência do corpo em jogo quanto no corpo do cinema, os
movimentos no esporte não são um conjunto de ações vitais, determinadas
exclusivamente por ações biológicas, sem intervenção de atitudes intencionais.
Conforme visto, para poder compreender o jogo, o corpo que executa movimentos é
ao mesmo tempo sujeito pensante e sujeito corporal, constituindo o paradoxo do ser
no mundo esportivo.
E o esporte é este lugar onde o homem pode experimentar suas intenções,
seus limites e suas potencialidades. Uma relação eu-outrem-mundo que permite ao
corpo se explicitar, celebrar suas peripécias, sublimar a dor, enfrentar a derrota e
entender o choro como sentimentos presentes na vida, retirando-o da zona de
coisificação, para instituir-lhes como sede de significações para além do protótipo
biológico e natural. Ou seja, nós somos o nosso corpo, ele é a medida e a expressão
do nosso ser; no mínimo, as duas qualidades estão inter-relacionadas (MERLEAU-
PONTY, 2011).
152
Na perspectiva filosófica de Merleau-Ponty, o corpo não é uma coisa nem
uma ideia abstrata, mas presença sensível e intencional, que faz do homem
perceptivo uma consciência encarnada no mundo, capaz de reaprendê-lo
constantemente, o qual, não sendo espontâneo, se manifesta no corpo próprio, por
meio da motricidade e das relações estabelecidas com os outros e com o mundo.
Portanto, o corpo é o caminho para acessar o mundo, não é objeto, coisa ou
lugar de investigação. É corpo próprio nossa ancoragem no mundo, em que,
enquanto sujeito da percepção, tem suas relações pautadas pela ambiguidade e
pelo inacabamento de estar no mundo, de ser consciente e repleto de significado,
cultura e intencionalidade. O que significa entender que ser-no-mundo é condição
necessária para o ser humano voltar-se para si mesmo e organizar seu modo de
existir, pois, “ser corpo é estar atado a um certo mundo” (MERLEAU-PONTY, 2011,
p. 205).
Dessa maneira, o sentido dos acontecimentos se faz para cada um no contato
corpóreo de sua existência, o qual, pautado num mundo sensível, se revela como
saber intersubjetivo e meio de expressão corporal que nos possibilita comunicar com
o mundo e o outro.
E isso faz do esporte um meio de expressão corporal, lugar de
transcendência em que o corpo lança-se em ações e projeta expressões, cria
gestos, refaz movimentos e produz conhecimento pela relação espaço-temporal,
ordem-desordem, poder-saber, na perspectiva do enraizamento assumido pela
percepção e pela motricidade, ou seja, pela experiência vivida.
Sim, o esporte pode ser esse parceiro, um espaço onde o corpo é interlocutor
ativo permanente. Palco onde a cena lhe envolve em possibilidades e
impossibilidades, onde o ato intencional do atleta, que, sendo corpo, pronuncia-se,
comunica-se, e se manifesta no mundo com sua carne voraz, com suas expressões
fustigadas pelo cansaço, com sua fulgurante presença que sem fim está sempre
pronto a erguer-se sobre todo e qualquer deslize.
São atletas, corpos fenomenais, expressões realizadas que revelam não
apenas padrões de movimentos, mas a força criadora de movimentos intencionais,
do corpo que joga, do corpo que é experimentado e que considera nessa
experiência as crenças, as condutas, o próprio padrão do contexto percebido e as
153
nuances de sua experiência intencional, não havendo, portanto, separação entre a
realização mecânica e a significação do movimento.
A convivência com o mundo esportivo como fora apresentado implica uma
influência recíproca de sentidos criados permanentemente por meio do
entrelaçamento do atleta com o esporte e com os outros, em que a consciência
integradora fundamenta as intencionalidades e os significados que colocam o sujeito
em relação ao mundo, não sendo “[...] apenas a experiência do meu corpo, mais
ainda uma experiência de meu corpo no mundo” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 145).
Nessa experiência, o corpo se torna ambíguo. Uma ambiguidade que não se
resolve pelo pensamento, mas pela existência, na relação corpórea com o outro e
consigo mesmo, dada pela síntese corporal na federação dos sentidos.
O corpo próprio carrega essa potência dinâmica e sensitiva, moldando-se em
sistemas diversos, apreendendo as significações do mundo pelo movimento, um
saber modulado pela motricidade e pela sensibilidade, isto porque:
Sou meu corpo, exatamente na medida em que tenho um saber adquirido e, reciprocamente, meu corpo é como um sujeito natural, como um esboço provisório de um ser total. Assim a experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que destaca o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o pensamento do corpo ou o corpo em ideia, e não a experiência do corpo ou o corpo em realidade (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 269).
Sendo o atleta corpo, corpo próprio, ele opera sua percepção, seu movimento
e sua reflexão, não como dados isolados da ordem do eu penso ou da
funcionalidade momentânea, mas da ordem do poder, do fazer e do sentir. Todos
pautados nas relações estabelecidas nessa experiência e no potencial do corpo em
significar e criar sentidos na existência.
Situar o esporte nessa condição é entender a relação do atleta que realiza e
se realiza no mundo esportivo, em seus elementos constituintes e em tudo que
apraz o mover do corpo, os sentidos despertados e os significados ali vivenciados.
Conforme Merleau-Ponty (2011), o corpo é o elemento fundamental na
construção do saber humano, em que o conhecimento não ocorre por meio de um
corpo dotado de aptidões físicas e intelectuais inatas, mas nas relações empregadas
no mundo e nos sentidos nele encontrados.
154
Saberes que nascem e se fazem no corpo e nas relações experienciadas no
mundo, sendo ao mesmo tempo percepção e reflexão, intelectualização e
sensibilização, pautados na razão dos meios sensíveis e na emoção dos meios
inteligíveis, derivados das experiências pelas quais o corpo vive no mundo e pela
percepção que temos dele. Em outras palavras:
A verdade não “habita” apenas o “‘homem interior”, ou, antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece. Quando volto a mim a partir do dogmatismo do senso comum ou do dogmatismo da ciência, encontro não um foco de verdade intrínseca, mas um sujeito consagrado ao mundo (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 6).
Portanto, na relação entre esporte e atleta, a verdade é desprovida de
exatidão, se constituindo no próprio movimento da existência e da experiência
esportiva, o que nos faz entender que o fervor corpóreo causado pela afetação do
esporte mexe e remexe com a existência para uma nova forma de ser e estar no
mundo.
Na experiência do jogar, foi possível mostrar uma maneira sensível de se
viver no esporte mesmo diante do rigor, do tecnicismo e da funcionalidade, o que
configura uma educação dos sentidos no processo de formação do atleta.
Acreditamos que a prática esportiva, em sua realidade paradoxal, abre novas
perspectivas de compreensão do corpo do atleta, já que no esporte o aprender
prescinde de uma disponibilidade corporal para jogar, para viver pelo viés da
sensibilidade, ou seja, uma abertura ampla dos diversos estados da existência.
Tal compreensão nos remete aos sentimentos envolvidos no esporte como
situações que revelam, a todo instante, uma construção e reconstrução do vivido.
Pois, mesmo o esporte sendo configurado por regras, normas e práticas de poder,
ele se estabelece como um espaço em que a vida é refeita e levada ao limite, já que
nele vive-se a explosão das emoções de forma controlada e descontrolada.
Esse paradoxo, peculiar em diversas manifestações de lazer, especialmente
no esporte, é visto quando o atleta experimenta dentro das situações de jogo
emoções e impulsos que lhe proporcionam tipos de excitação nunca antes vividos.
E isso pode ser visto em diversas práticas corporais, sendo o esporte apenas um
exemplo.
155
Percebemos que tal situação tornou-se evidente quando apresentamos as
produções cinematográficas. Nelas foi possível perceber o esporte como uma
estrutura social que demarca momentos históricos, especificidades e valores, como
ocorre, por exemplo, no enfoque ético e estético com que os atletas vivem as suas
modalidades.
Embora nesses filmes também esteja claro a disciplinarização do corpo, sua
preparação para determinados fins, o autocontrole e a produtividade, vemos que o
esporte também é um espetáculo de diversão, de celebração do corpo, de excitação
e de prazer.
No esporte, praticado ou assistido, existe a possibilidade de formarmos e
reformularmos noções de convivência, de pertencimento, de corpo e de movimento.
Nele não há apenas o atleta comercializado, treinado na busca de uma eficiência
puramente produtiva. Ao contrário, pode-se afirmar pelo seu sentido e significado
individual e plural a sua significância no processo de humanização do ser humano,
independentemente de suas disfunções e limitações. E, nessa relação, mais uma
vez, Bento (2006b, p. 170) alerta que:
Como elemento da civilização, o desporto é uma oportunidade para instalar no corpo a razão do espírito, um palco de submissão da animalidade da nossa natureza à espiritualidade moral, cultural, ética e estética da condição humana. É um sistema de valores espirituais, uma prática cultural instituída para espiritualizar o mais possível a dimensão física, motora e biológica do homem, para esclarecer e legitimar, para dignificar e elevar.
Pelos princípios, valores e objetivos, assim como pelos métodos, regras e
excitação que regram o treino e a competição, o esporte vincula-se à ação de viver,
de transcender normas, de constituir saber e de existencializar o movimento.
O esporte é, sem dúvidas, um campo de criação do homem, de criação do
corpo, ocupando-se da forma humana da sua versão nobre e superior. Dito de outro
modo: “É coisa, mas também é fenômeno; é algo concreto, mas é muito mais
mistério e sopro; é matéria revelada e igualmente alma escondida” (BENTO, 2006,
p. 166).
Segundo o autor, no esporte, o controle dificilmente encontra aplicação,
porque nele predomina o excesso, a liberdade dos ditames de um corpo inculto,
inábil, medonho, grotesco e bruto. Nele o corpo ultrapassa a sua resistência e se
torna belo, ético, ágil, espiritual e moral.
156
Esporte que, pelo seu sentido e significado plural, revela a plasticidade do
corpo por meio da dimensão corpórea dos sentidos, a qual desconstrói a visão
mecanicista do corpo-máquina e constrói a visão do corpo a partir de um logos
estético que se mostra nos gestos e nas expressões do atleta em jogo.
Pensar o esporte assim é entendê-lo não apenas como ferramenta para o
desenvolvimento do ser humano, com fins pedagógicos ou como meio de
transformação social, mas especialmente como elemento educativo e estético na
vida humana.
Como já afirmamos, a experiência estética desenvolve-se através da
percepção de um sentido inseparável do sensível, acessível não por um sistema de
compreensão e interpretação, mas pela sintonia dada no corpo em seu poder de
acessar o homem ao mundo, transportando sentidos e instaurando significados. Ela
mobiliza as profundezas do ser para poder ressoar no corpo sentimentos, fazendo
transcender aquilo que condiciona o olhar para uma percepção singular e plural,
sensível e criativa. É certo que ela está relacionada às coisas do mundo, aos
emblemas que são conferidos às experiências vividas, pelos sentidos que atribuímos
e que ligam o homem ao mundo por meio da reversibilidade dos sentidos.
A partir desse pensamento é possível entender que o corpo atua no mundo
da experiência vivida. Logo, a experiência estética dos atletas é fonte inesgotável de
um conhecimento sensível, como a própria arte para o artista, conforme apresenta
Chaui (2010, p. 273):
É a obra que explica a vida e não o contrário, pois a obra é como o artista transforma, num sentido figurado e novo, o sentido literal e prosaico de sua situação de fato. A obra de arte é existência, isto é, o poder humano para transcender a facticidade nua de uma situação dada, conferindo-lhe um sentido que, sem a obra, ela não possuiria.
Compreendemos que dessa mesma forma é o mundo vivido no esporte, o
mundo que o corpo abarca, funde-se, cria sentidos e significados, interpenetrando-
se como partes de uma mesma existência, de um mesmo tecido.
Acreditamos na experiência sensível como construção de um novo
conhecimento e uma nova racionalidade por meio do corpo em movimento no
mundo esportivo, posto que “o sensível é uma realidade constitutiva do ser e do
conhecimento que se manifesta nos processos corporais” (NÓBREGA, 2010, p. 83).
157
Na Fenomenologia de Merleau-Ponty, o corpo é sensível, modelado pela vida,
dotado de sentidos em todos os seus atos. Um corpo vivo que, ao relacionar-se com
os outros e com o mundo, sempre irá construir novas formas de ser, de ver, de fazer
e de viver.
Na tese fenomenológica, o sensível não é um objeto que está alheio ao
homem, mas algo que o afeta, que chega aos sentidos e recebe destaque. Assim, o
caminho que ele faz em direção ao mundo é feito a partir de uma experiência que
podemos chamar experiência sensível, afetada pelas coisas e despertada pela
sensibilidade que deixa o corpo afetado.
Ao afirmar que o corpo é sensível e, portanto, aberto aos sentidos da
experiência vivida, Merleau-Ponty (2011) compara-o não aos objetos físicos, mas
sim à obra de arte.
Tomando como referência um quadro ou um peça musical, a comunicação do
artista se faz pelo desdobramento das cores e dos sons, não sendo possível
distinguir o expresso da expressão, a significação da obra, o artista da criação. O
autor se apropria dessa poética filosófica para afirmar o corpo como um lugar
expressivo que projeta suas significações no mundo e faz das experiências vividas
fontes inesgotáveis de sentido.
Não obstante, Nóbrega (2010), ao tematizar o corpo como obra de arte a
partir das reflexões sobre a estética de Merleau-Ponty, reconhece que a experiência
sensível se dá não apenas na arte, mas em qualquer outra forma de existência. Para
a autora, na criação artística a técnica é necessária, é condição fundamental que
não se restringe ao aspecto funcional ou mecânico, mas à contemplação, posto que
ela “[...] não é um objeto rígido, mas sim um objeto flexível que permite a expressão
em sua diversidade e abrangência” (NÓBREGA, 2010, p. 91).
Nesse sentido, sobre a técnica, seja na arte ou no esporte, procede a
criatividade e a inovação. Uma forma de expressão, de uso do corpo que ao mesmo
tempo em que responde a uma ordem se instala na vivência do sensível, acrescida
não apenas de eficácia, mas, junto a isso, de leveza, de encanto e de espanto. Sem
a técnica, não há gols, cestas ou ponto, não há vitórias, empates ou derrotas, não há
performance, ritmo ou engenho. Sem ela: “Não há estética de coisa alguma. E a
ética fica deficitária e manca [...] não logramos ser verdadeiramente humanos. Nem
no corpo, nem na alma” (BENTO, 2006, p. 157).
158
Esse pensamento relaciona-se com a possibilidade de vivência do sensível,
em que, por meio das técnicas do corpo que o atleta se utiliza para jogar, é possível
criar gestos, refazer movimentos, experimentar sensações e viver o corpo
inesgotavelmente.
Portanto, assim como a reflexão sobre a obra de arte expressa por Nóbrega
(2010), o esporte se constitui como um suplemento de sentido, formulado a partir da
experiência vivida. Uma modulação existencial que o torna significativo para o atleta.
Nessa perspectiva, a partir das reflexões de Merleau-Ponty (2011), Nóbrega
(2010) e de Bento (2006), podemos compreender aproximações entre a arte e o
esporte, os quais, mesmo sendo expressões distintas da cultura, se comunicam no
sentido de desvelar o corpo como estesia. Ambos ampliam o campo da
sensibilidade, arrancando do corpo, sentimentos, angústias, dores e alegrias que se
materializam nos gestos e nas expressões ali proferidas. É o corpo
existencializando-se.
Sobre isso, Bento (2006) esclarece que o esporte caminha para criação e
para arte, para estética e para harmonia, para a transcendência e para a liberdade
do corpo e da alma, esgotando o campo do possível e reduzindo o impossível ao
nada, tornando a existência mais do que ela é, em suas palavras:
O desporto é um palco onde entra em cena a representação do corpo, de suas possibilidades e de seus limites, do diálogo e da relação com a nossa natureza interior e exterior, com a vida e com o mundo. Quer se trate de crianças e jovens, de adultos e idosos, de carentes e deficientes, de rendimento ou recreação, o desporto é, em todos os casos, instrumento de concretização de uma filosofia do corpo e da vida. Constitui uma esperança para a necessidade de viver (BENTO, 2006, p. 164).
Acrescenta também o autor que, no esporte encontramos todos os domínios
culturais e que em todos eles, através dos sentidos imanentes às formas de
expressão que os perfazem, sejam elas mais racionais e objetivas ou sentimentais e
subjetivas, aprofunda-se a vivência do mundo e a experiência de vida. E nessa
reflexão, ele compara o esporte à arte, em especial, a poesia, senão vejamos:
O mito é o mesmo, o agonismo preside a uma e ao outro, a coroa de louros tem o mesmo preço, ambos comem o mesmo pão, bebem da mesma taça e saboreiam o mesmo vinho. No papel abúlico e passivo – que se coloca inteiramente á disposição da caneta – e no corpo dócil e passivo – que se
159
submete aos métodos da exercitação e do treino – ficam impressos devaneios, ousadias e arrebatamentos da ala e ordens da vontade. Como seqüelas da vida que a cada um toca viver (BENTO, 2006, p. 170).
No fundo, arte e esporte são uma dialética de contrários, de
descontentamento e contentamento, um aviso de que é ilusório chegar à plenitude e
à autenticidade da vida sem ser pelo caminho da dor, do sacrifício, da renúncia, da
observância de obrigações, princípios e ideais (BENTO, 2006).
Nesse contexto, encontramos na prática esportiva impressionantes afinidades
com a arte em seu cunho estético, pois, seja pela técnica, seja pelas sensações
despertadas no artista, atleta ou espectador, ambas as manifestações transcendem
a esfera do mero preenchimento das regras, tornando uma dinâmica imprevisível do
corpo em movimento, o que nos faz entender que é possível comunicar o esporte
com a arte e pensá-lo como educação.
Já dizia Bento (2006) que o esporte é uma arte e o esportista, um artista que
vive para criar novos movimentos, uma invenção, destinado a ajudar o ser humano a
constitui-se cultura e moral. Assim, ele cumpre não apenas sua função de disciplinar
o corpo, mas permitir que este jogue, festeje a vitória, lide com a derrota, exteriorize
emoções, controle impulsos agressivos, compartilhe afetos e desafetos, confronte a
si mesmo e aos outros, percebendo e vivendo de forma sensível constantes diálogos
corpóreos que lhe permite construir novas significações através da experiência
vivida.
Esse vivido, conforme já mencionado no capítulo anterior, produz sensações,
emoções e saberes que podemos considerar como experiências educativas e
estéticas. Um conhecimento sensível que se incorpora nas alternâncias do jogo, nos
valores impregnados, nos sentimentos compartilhados e nos caminhos encontrados,
os quais se constituem como alternativa para uma nova percepção da realidade,
neste caso, do mundo esportivo.
Compreender o esporte nessa perspectiva do sensível é afirmar que ele
possui um campo de sentidos e significados que se mostram por meio da criação, da
excitação, da estesia, da técnica e da manifestação ontológica da existência.
O esporte expande a dimensão sensível ao imbricar o atleta ao universo do
inteligível, do visível com o invisível, da razão com a emoção, do sentir e do devir,
160
formas educativas que se tornam uno para uma singular experiência da
sensibilidade e do fluxo do conhecimento do homem e do mundo.
Por meio disso, o atleta se torna mais sensível aos acontecimentos do mundo
e da sociedade. Isto porque, o esporte, por meio dessa educação sensível, amplia a
experiência do homem no mundo, abrindo o horizonte para o encanto da beleza e da
sensibilidade, assim como acrescenta Porpino (2006, p. 19):
A vivência estética é a experiência da beleza, da sensibilidade, da descoberta do sentido da vida cotidiana. Compreender a experiência estética e vivê-la plenamente é, portanto, poder abrir novos caminhos para a compreensão não fragmentada da existência humana, transgredindo a visão racionalista e levando à educação uma concepção de ser humano que possa transgredir a visão dicotomizada ainda predominante.
Uma educação sensível, entrelaçada com o mundo do esporte, sintoniza a
vida com as manifestações da beleza e do viver estético, dimensionando o ser
humano para uma experiência ontológica, imbricada com as coisas do sensível e do
fazer humano. Isto porque, o esporte coloca o homem na condição de sujeito capaz
de modificar o mundo em que está inserido, modificar suas relações e a si mesmo
através das suas criações e múltiplas formas de vida e de convivência.
O esporte permite que o homem viva e conviva de forma sensível com o
mundo, as pessoas e as normas que o cercam, criando sempre uma nova
significação para o que foi percebido através do corpo, posto que é ele que se abre
para o esporte e se entrega aos afagos esportivos, num entrelaçamento permanente
de significações.
Desse modo, para além da crítica contundente acerca do esporte,
compreendemos que nele, por meio das sensações expressas no corpo, o atleta
vive a experiência do jogar, o devaneio do jogo como configuração de uma
educação sensível que busca o caminho para a construção de um saber que tem no
humano a sua principal fonte de realização.
Afinal, o esporte não é só instituição de regras. Como afirma Santos (2012),
diante do rigor que as regras do esporte ditam, da disciplina, os atletas estão sempre
buscando uma nova maneira de fazer, de reescrever novas histórias, de viver o
esporte. Em outras palavras, “[...] não há somente um corpo dominado pelo
mercantilismo e pelas ideologias consumistas, mas sim um corpo de um sujeito-
161
atleta que escreve sua história, que produz um sentido nas suas experiências
sociais [...] (SANTOS, 2012, p. 13-14).
Isto é educação. Uma experiência que caminha para um mundo aberto à
transformação e à criatividade, na qual, entrelaçada com a inteligência sensível,
realiza-se na construção de algo novo.
O corpo é o lugar em que se inscreve cada gesto aprendido. Assim, mesmo
submetido a ordens e normas, o corpo se revela em constante transformação, pois,
em cada experiência vivida, haverá sempre um novo mundo de sentidos e um modo
de fazer diferente.
Do esporte como fonte onde o devaneio do jogo ocorre, o ato de jogar permite
que o corpo se lance pelos caminhos da sensibilidade e da imprevisibilidade que
esse mundo proporciona. Afinal, ele é audácia, desafio, devaneio e indeterminação.
E nele o corpo se arrisca, se envolve, sente, joga, torna-se jogante. Isso torna o ato
de jogar uma experiência significativa, por meio da experiência estética, pelo valor
sensível, em seu ato de condução, de criação e de inspiração nas situações vividas.
Nessa perspectiva, o esporte não é concebido como algo formal e pronto, a
ser seguido. Ao contrário, trata-se de experiência sensível, vivenciada, constituindo-
se num caminho a ser construído, possibilitando novas práticas e saberes que se
fazem por meio da experiência estética.
Sendo assim, pode-se pensar o esporte como uma experiência educativa,
uma compreensão da prática esportiva como possibilidade de compreender o ser
humano na sua totalidade, naquilo que emerge do corpo. E isso acontece quando o
jogo é jogado, ou seja, quando considera-se a prática esportiva a partir dos sentidos
e sensações do jogador, na entrega ao desejo de jogar.
A prática esportiva por esse viés não tem caminhos prontos a serem
seguidos, mas trajetos infindáveis e imprevisíveis que são capazes de educar por
meio dos sentidos, conduzindo o homem à condição sensível enquanto processo
ético, estético e social.
Conforme Elias (1992) afirma ao procurar levantar e explicar alguns
problemas nas várias obras que compõem o livro “A busca da excitação”, ele e
Dunning ao estudar o Desporto tinham: “a profunda consciência de que a
compreensão do desporto contribuía para o conhecimento da sociedade.” (ELIAS,
1992, p.39). E mais adiante se pergunta:
162
Que espécie de sociedade é esta onde as pessoas, em número cada vez maior, e em quase todo o mundo, sentem prazer, quer como actores ou espectadores, em provas físicas e confrontos de tensões entre indivíduos ou equipas, e na excitação criada por estas competições realizadas sob condições onde não se verifica derrame de sangue, nem são provocados ferimentos sérios nos jogadores? (ELIAS, 1992, p.40).
A partir desta pergunta colocada, o autor busca esclarecer a questão de sua
própria teoria dos processos civilizatórios, demonstrando que a investigação sobre o
desenvolvimento do desporto se faz semelhante ao código de conduta e de
sensibilidade das sociedades européias a partir do século XVI.
Para exemplificar isso, ele trás como exemplo, a experiência do boxe com o
sentido de uma luta corporal sem regras e com a utilização das pernas, até chegar a
um esporte com um conjunto de regras para proteger os lutadores.
A estas mudanças nos padrões de conduta e de sensibilidade dos indivíduos,
o autor supracitado dá o nome de processo, como a idéia de um fenômeno que está
inacabado. Ele considera também que o processo não tem uma finalidade
definida,vindo a atingir todas, ou quase todas, as áreas de convivência social e o
esporte é algo que não passa a margem do mesmo.
No decurso do século XX, as competições físicas, na forma altamente regulamentada a que chamamos “desportos” chegaram a assumir-se como representação simbólica da forma não violenta e não militar de competição entre Estados, e não nos devemos esquecer de que o desporto foi, desde o primeiro momento, e continua a ser, uma competição de esforços de seres humanos que exclui, tanto quanto possível, ações violentas que possam provocar agressões sérias nos competidores (ELIAS, 1992, p. 45).
Dessa forma, o principal esforço do processo civilizador, é criar instrumentos
que busquem, no mínimo, diminuir o uso da violência no convívio social. Para isso
se constituem um conjunto de regras, normas de conduta que possam cada vez
mais tornar a violência como algo que deva ser reprimido e mal visto pelo conjunto
da sociedade. E, no esporte, isso vem a ocorrer por meio da criação de uma série de
regras, normas de se praticar, aumento da proteção dos atletas, tudo com o objetivo
de tornar o esporte o menos violento possível e mais aceito pelos códigos de
conduta e sensibilidade da sociedade moderna.
Assim, um conjunto de regras define como a atividade deve ser praticada, o
que á torna um esporte, no sentido moderno. Logo, não só as regras, mas também o
163
prazer, por elas desencadeadas passam a ser diferente também quando se compara
práticas esportivas onde não existe um complexo conjunto de regras que a
regulamenta. O que também está relacionado com toda a estrutura mais geral da
sociedade.
Como aponta Elias (1992), antes da regulamentação dos esportes o que
tínhamos eram algumas regras locais para a prática das atividades, e depois
passamos a ter uma busca por regras que regulamentem estas atividades em nível
nacional e até global, tornando-os esportes, no sentido aplicado por ele.
O sociólogo, define esporte nos tempos modernos como sendo uma atividade
que nunca esteve confinado apenas aos participantes isolados, ao contrário, sempre
incluiu confrontos realizados para a satisfação de espectadores. E que a
uniformização das regras é sinal de uma preocupação com o expectador, pois um
atrativo é o conhecimento das características e dinâmica do jogo, ou seja, o esporte
na modernidade é algo que carrega consigo a noção de espetáculo, de algo que
atende a uma necessidade básica de satisfação, de desencadear emoções, de
provocar excitação satisfatória nas pessoas.
Para ele, a função social dos esportes é fazer com que os indivíduos possam
de alguma maneira, sentir, ou buscar sentir, o prazer reprimido pela sociedade, a
repressão das pulsões, os instintos, os impulsos libidinais, afetivos e emocionais.
Todos estes sentimentos, experienciados de forma controlada. Na idéia de que os
esportes funcionem como uma esfera de canalização dos impulsos reprimidos pela
convivência social.
Assim, mesmo o universo dos esportes sendo esse espaço propício para a
expressão destes sentimentos e impulsos reprimidos pela sociedade, ele deve
ocorrer dentro de um conjunto de regras que façam com que os indivíduos sejam
civilizados durante prática do seu esporte.
Por meio dessa reflexão, podemos considerar que as características
esportivas são uma diminuição da violência por parte dos participantes e dos
espectadores, com a presença de um auto-controle, capaz de gerar uma tensão
controlada, que as tornam atraentes diante do público.
Pela perspectiva eliasiana, é possível que as pessoas busquem excitações
agradáveis para além da rotina do cotidiano, e o esporte, num contraponto às
exigências racionalistas imperantes no âmbito educacional, possibilitam a vivência
164
de sensações de excitação, de irritação, prazer, cansaço e de situações de dor, a
ponto de mobilizar intensamente as emoções e sentimentos de satisfação. Assim, é
entendimento seu que:
[...] a sociedade que não oferece aos seus membros, e, em especial, aos mais jovens, oportunidades suficientes para a excitação agradável de uma luta que não exige, mas pode envolver, força e técnica corporal pode, indevidamente, arriscar-se a entorpecer a vida de seus membros; pode não proporcionar correctivos complementares suficientes para as tensões não excitantes produzidas pelas rotinas regulares da vida social (ELIAS, 1992, p. 95).
Esse pensamento aponta para uma compreensão do conhecimento do
esporte para o campo da Educação e da Educação Física. Conhecimento esse
pautado numa experiência estética e educativa impressa por meio das relações que
o atleta estabelece com o corpo e com o mundo na prática esportiva.
Não obstante, o jogo como elemento lúdico conforme visto em Schiller (1995)
ultrapassa a imediata relação com a vida habitual para se inserir no contexto da
construção do homem e da sociedade, transcendendo as suas limitações e
tornando-o pleno.
Portanto, pelo caráter social, educativo e estético presente no mover do
corpo, pensamos que é possível praticar esporte vivendo-o como jogo em si, como
lugar onde a infinitude se faz presente e se mostra quando, independente do
resultado, o atleta constrói ali novas formas de ser e de habitar o mundo.
Isso é essencial para a educação e, em particular, para a Educação Física,
por dar voz ao corpo, ao mundo vivido dos alunos e dos atletas como condição de
existência, que se configura na relação consigo, com os outros e com o mundo.
Acreditamos que, tal como refletimos anteriormente, a prática esportiva como
forma de evidenciar a educação sensível se constitui uma atitude educacional que
valoriza o corpo quando joga e em suas diversas e inusitadas manifestações da
experiência estética.
Não obstante, pode articular não só saberes aos alunos e atletas como aos
docentes, técnicos e professores por oportunizar, a partir das diferentes expressões
de movimento, uma consideração sensível e afetiva daquele sujeito em um
165
entrelaçamento recíproco com o mundo esportivo e da sensibilidade como
atribuidora de significado a suas ações. E, sobre isso, afirma Nóbrega (2005, p. 83):
É justamente esse aspecto que deve ser considerado nas práticas pedagógicas da Educação Física, considerando uma reeleitura do seu acervo de movimentos, de forma que o jogo, a dança, a ginástica, o esporte possam expressar e comunicar a complexidade do ser humano que se movimenta.
No que tange à presença do esporte na escola, a Educação Física não deve
oferecer esse conteúdo dos gestos codificados e das normas como elementos
fechados, mas possibilitar o esporte sob uma perspectiva criativa, que permita ao
aluno, mesmo diante de tal referência, refazer esses gestos atribuídos de sentidos e
significados em relação ao seu cotidiano de existência.
Compreendemos o esporte como um dos fenômenos mais expressivos da
atualidade no âmbito da cultura de movimento50, pois está presente em nosso dia a
dia, por meio da televisão, dos jornais escritos, do rádio, das praças e dos clubes.
Portanto, ele faz parte de uma ou de outra forma, da vida da maioria das pessoas
em todo o mundo, sobretudo na escola (BRACHT, 2003).
Dessa forma, faz-se necessário considerar o atleta/aluno como agente
responsável por seu processo de aprendizagem e partícipe de uma construção
coletiva dos conhecimentos trabalhados no âmbito do esporte e da escola.
É nesse sentido que destacamos como necessário considerar a sensibilidade
do atleta/aluno como forma de contribuir para que ele mostre um saber que se
imbrica com o mundo do sensível e amplie seu campo de referência para a questão
ética e estética do movimento, pois, segundo Nóbrega (2005, p. 50), “o esporte é
uma obra de arte, uma expressão exuberante de movimentos e este aspecto deve
ser considerado na prática pedagógica”.
Consideramos importante incluir nas aulas de Educação Física o esporte
como uma proposta do mover-se mais plástica e mais maleável que o próprio corpo
afetado pela expansão do sensível sugere. É preciso deixar o corpo brincar com o
espaço e o tempo, brincar consigo e com os movimentos já existentes. É preciso
descobrir a infinitude de usá-lo e ousá-lo, não negando a técnica sistematizada, mas
permitindo caminhos de fuga e de criação. 50 Conceito divulgado na Educação Física Brasileira a partir dos estudos de Kunz (2003).
166
Viver o esporte é viver o mundo, vivendo-o de forma sensível. E dentro de
uma sociedade racionalizadora, apática e mecânica, se faz desafio constante
considerar o esporte como manifestação cultural que pode tornar-se ainda mais
relevante no momento em que vivemos, no sentido de conectar pessoas, possibilitar
convívios, problematizar seus elementos constitutivos, e ainda evidenciar a
experiência sensível do corpo como condição do existir e do conhecer.
Já diria Nóbrega (2002) que a experiência de educar talvez não decida a vida,
em sua imediaticidade, mas projeta mundos. E é a nossa relação corporal que cabe
destacar, enfocando o ensinar e aprender a jogar bola, fazendo-se necessário
entender que “o corpo nem sempre, nem em toda parte, sabe jogar bola” (SERRES,
2001, p. 17).
O ofício da vida, assim como o de jogar, acontece no corpo, pois, “no gesto
de fazer calar, o corpo, localmente, joga bola com a alma” (SERRES, 2011, p. 17).
Talvez por isso, nos clubes, nas praças ou mesmo na Educação Física, vida e
esporte sejam ofícios misturados com a dinâmica do jogar e do viver.
E a Educação Física, embora não seja a única nesse processo, também
participa dessa estrada, do ensinar e aprender esporte, aprender a ser sensível, a
conviver, ganhar, perder, ousar e refazer, tudo por meio do corpo em movimento, do
corpo que joga, considerando que:
Por vezes é preciso ensinar o corpo a jogar bola! Como educadores, quais são os nossos instrumentos? Cada corpo tem seu tempo, a sua história, os seus desejos. É preciso ouvi-los, toca-los, percebe-los em si e em comunicação com os outros corpos. É preciso considerar que o corpo nem sempre sabe jogar bola! (NÓBREGA, 2002, p. 2).
Acrescenta ainda autora que por isso a Educação Física é necessária, para,
entre outras coisas, ensinar a jogar bola e outras expressões da linguagem do corpo
e do movimento humano.
Enfatizamos que nossas reflexões não se reduzem aos esportes com bola,
apenas tomamos essa discussão para afirmar e relacionar a relação corporal do
atleta/aluno com o mundo, destacando e enfocando a educação como jogo. Um
mover por meio de técnicas de corpo que contam a história pessoal do aluno/atleta
por meio das marcas que são tatuadas em seu corpo e que revelam sentidos que
167
podem ser trazidos para o contexto da educação, isto é, da relação entre os
domínios do saber, do fazer e da própria vida.
Compreendemos que o esporte, em sua versatilidade e multiplicidade, é
capaz de abrir espaços para diversos corpos, diversos movimentos e suas mais
variadas experiências estéticas, permitindo que o homem habite no tempo e no
espaço do humano e não da máquina, criando sempre novos sentidos para si e para
a sociedade.
Afinal, o esporte é um universo de significações estéticas e educativas.
Guarda sim fios lógicos, rígidos e concretos, de razão e de estruturação, mas tece
igualmente a tudo isso um educar que fomenta a liberdade de criar, de sentir, de
recomeçar, de reinventar, e entre as múltiplas possibilidades do movimento humano,
permite viver o tempo, o espaço, o mundo e os outros como uma fenomenologia do
corpo e do movimento.
Apito F inal
169
O jogo inicia-se e, em determinando momento, “acabou”. Joga-se até que se chegue a um certo fim. [...] Mesmo depois de o jogo ter chegado ao fim, ele permanece como uma criação nova do espírito, um tesouro a ser conservado pela memória.
Johan Huizinga
170
O apito final foi entoado e o jogo precisa terminar. Os sons produzidos pelas
quadras ainda soam pelo corpo, atravessando a carne e rasgando os sentidos para
poder expandir o horizonte da existência para a construção de um educar-se, que se
faz pelos caminhos da criação e do viver estético do corpo no esporte.
Admitimos que se faz necessário sair de quadra, entregar a bola e despedir-
se da torcida, das companheiras e das adversárias. Um percurso em que o corpo
marcado pelas experiências do jogo também vai se refazendo, a fim de encontrar
um melhor caminho para a compreensão dos limites e das possibilidades do esporte
como uma experiência estética e educativa.
A caminhada é gratificante, pois, assim como no esporte, a pesquisa se faz
entre idas e vindas, avanços e retrocessos, derrotas e vitórias, mas, sobretudo, de
sedução, de estesia e de realização. Por isso, foi possível perceber que a
elaboração do jogo, seja ele na quadra ou na escrita, se faz pela entrega do corpo
ao mundo, num entrelaçamento da existência em que atleta e mundo imbricam-se
na realização da expressão criativa, rumo aos campos da experiência vivida.
Imbuídos nisso, podemos reafirmar o que foi dito no início desta tese: a
prática esportiva é uma experiência estética e educativa, a partir das sensações
reverberadas no corpo, no diálogo sensível do atleta neste mundo.
A experiência estética por mim narrada e as análises das obras
cinematográficas são exemplos dessa relação, em que, nas ações do jogo o atleta
ultrapassa as fronteiras biológicas e normativas do esporte, cria e recria
movimentos, vivencia situações de afetos e de confrontos, de emoções e de
paixões, atribuindo sempre novos sentidos por meio da estesia que o esporte revela
ao atleta.
Nas dinâmicas relações que apresentamos do atleta em jogo, evidenciamos
que o esporte se revela como jogo, como força viva da existência, sendo o sensível
e o lúdico a condição essencial e fonte incitativa para o corpo que joga. Pois ele
acontece nas oscilações do viver, vinculando-se aos sentimentos e às sensibilidades
de forma fecunda e motivadora, fazendo-se, simultaneamente, lúdico, estético e
educativo.
Por meio do esporte, desvendou-se uma educação sensível que se dá
através da relação do atleta com os elementos constitutivos do esporte, como a
quadra, a bola, os adversários, dentre outros.
171
Com base na fenomenologia de Merleau-Ponty foi possível compreender que
os gestos, as técnicas, os resultados e as relações do atleta com o âmbito esportivo
são ações que significam a existência e o fazem adentrar na inteireza e na
expressividade originária do “eu posso”.
Por meio do esporte afirmamos que o atleta se sensibiliza consigo, com os
outros e com o mundo, tendo como fundamental a experiência da solidariedade, da
cooperação, da confraternização, da liberdade, da criatividade, do encontro, da
alegria e do prazer como elementos que lhe tiram da vida cotidiana.
Entender essas nuances que se manifestam no enlace do atleta com o
esporte é compreender que ele está ligado a um ato de criar, de desconstruir ordens
lógicas, de refazer os modelos e instituir uma nova forma de existência sem limites
para viver novas experiências estéticas. Isso configura uma educação pautada no
sensível, uma educação que se abre para a experiência do jogar, revelando novos
movimentos e novas relações por meio da expressão criativa, que se renova a cada
momento. Uma experiência que desconstrói os concretos da codificação do corpo,
ao versar pela sua reversibilidade tal qual carne do mundo, configurada pela
dimensão corpórea dos sentidos, de um logos estético que se mostra diante do jogo.
Configurando-se com uma experiência estética e educativa, apontam-se
cenários educativos a partir dos sentidos e idiossincrasias dos atletas na prática
esportiva. Esses cenários educativos configuram-se, entre outras coisas, na
experiência do corpo com o tempo, o espaço, o olhar, o contato, os resultados e no
gesto técnico, os quais transportam o corpo para um estado de múltiplas sensações.
A cada experiência, o corpo toma uma dimensão diferente, fazendo com que
o atleta, afetado pela sensibilidade do jogo, revele novos movimentos e dê uma nova
amplitude ao gesto, proporcionando inusitadas comunicações entre o corpo e o
momento vigente.
Conforme visto nas experiências em quadra, o corpo sempre se comporta de
formas diversas. Quando o atleta se entrega ao jogo não há somente gestos
treinados, espaços definidos e tempos sincronizados, seu estado é imprevisível, é
abertura ampla de sentidos e imprescindível de relações.
Na experiência estética e educativa do esporte, apontamos enlaces
educativos que se imbricam com a própria vida social do atleta e que fazem parte de
seu mundo vivido. Tais enlaces se configuram por meio das oscilações e das
172
antíteses ocorridas no contexto esportivo, os quais não se diferem da dinâmica do
viver.
Podemos observar por meio dos filmes “Olympia” e “Invictus” que o esporte
causa uma vertigem desafiadora, isto é, uma nova forma de jogar diante do mutável
contexto do jogo. São equilíbrios e desequilíbrios, aproximações e distanciamentos,
conflitos e consonâncias que fazem o corpo se reinventar e fazem a vida mudar.
Essas características ficaram perceptíveis nas duas obras analisadas quando
os atletas, imbuídos das técnicas específicas de suas modalidades, as refazem para
poder competir. Pois elas não se mostram suficientes diante da complexidade
esportiva, como no caso do Rugby, em que os Springboks para ganhar o jogo nos
minutos finais, se contorcem por meio do fervor vivido, fazendo de cada gesto
possibilidades para fazer o gol e ganhar a competição.
Da mesma forma, em “Olympia”, vemos formas distintas do atleta se
expressar. Uma articulação entre a robustez e a delicadeza, o esforço e a
superação, que, sem fugir da busca pela vitória, demonstram seu fascínio pelo
esporte.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o esporte modifica a existência com suas
antíteses, fazendo do momento, quer seja pelo encanto, quer seja pelo espanto, um
dado existencial sensível que se revela ontologicamente. Pois, de uma forma ou de
outra, ele modifica a vida, ao mesmo tempo em que ela o modifica com o sentido
que os atletas criam para ele e compartilha com os outros e o mundo.
Como uma prática que permite a explosão de emoção dos atletas, podemos
observar, ainda, que os momentos de explosão nas competições nos filmes
analisados, como os gritos, as lágrimas, os abraços e as comemorações dos atletas
ao ganharem ou perderem uma competição, não são sentimentos apenas do
esporte, mas uma construção sociocultural que se insere no corpo e que nele é
possível extravasar de forma controlada.
As experiências vividas pelos atletas, seu modo de ser, de sentir e de
exteriorizar as emoções referem-se constitutivamente à sociedade à qual pertencem,
inclusive quando se trata do controle e descontrole das emoções como constituinte
da experiência humana. Há, de um lado, um lugar em que os sentimentos são
reprimidos e do outro, o esporte, que conflui numa excitação direcionada para o
prazer e experimentação das emoções em público e com aprovação social.
173
Diante dessas ponderações, destacamos uma compreensão de educação no
esporte que extrapola os saberes disciplinares, constituindo-se a partir do paradoxo,
ou seja, das relações entre a ordem e desordem não como fenômenos separados,
mas como elementos indissociáveis no jogo. E foi o que observamos no contexto
fílmico, uma relação de autonomia e dependência que se faz pela sistematização
técnica, pelos investimentos tecnocientíficos e pelas relações de poder/saber que
são inscritos no corpo, como forma de controle e subversão.
Nos filmes analisados constatamos que o esporte é permeado por regras e
especificações, sendo marcado por mecanismos de poder-saber ao longo de suas
modificações históricas. Um poder que se impõe aos corpos dos atletas desde as
roupas e gestos padrões, mas que, por sua vez, também exercem poder, instituindo
permanentemente novos saberes. Uma circularidade que se caracteriza como uma
possibilidade educativa, capaz de fazer os atletas criarem e recriarem dentro das
limitações.
Os feitos dos atletas apresentados nas narrativas (capítulo 1) e nos filmes
(capítulo 2) demonstram que o corpo transcende e experimenta diversas
gestualidades para além das normas preestabelecidas, subvertendo-as, nutrindo e
mergulhando em recintos nunca antes experimentados, fazendo e refazendo-se sem
findar.
No mesmo contexto, notamos ainda que os atletas apontam para a
efemeridade dos padrões técnicos. Uma demonstração do esporte em múltiplas
possibilidades de sentido na experiência estética do corpo que certamente não
comunga com uma ideia pronta e definida.
Nessa perspectiva, compreendemos o esporte como prática estética e
educativa, pois, mesmo sendo conduzido por uma ótica de natureza universal,
possibilita uma vivência autônoma que se dá pelo processo paradoxal do jogo, na
abundância do corpo, configurando-se como contemplação permanente do devir, do
transcender e do existir.
Propondo novos anúncios para o esporte, é fundamental repensá-lo a partir
dos princípios lúdicos aqui revelados. Ao invés de olhá-lo pela ótica opressora, é
preciso enfatizar a experiência e as sensações daquele que joga, que comporta o
surpreendente, o indivizível, que rompe a mecanização gestual, não se fixando em
174
regras preestabelcidas, que busca o prazer de simplesmente jogar com a bola, com
os outros e com o mundo que o cerca.
Vale salientar que não negamos a busca pelo resultado, nem propomos o
esquecimento das técnicas padronizadas do esporte. Mas as valorizamos como
processos dinâmicos e criativos, que ultrapassam os limites impostos pelas
codificações, reinventando-se e reconstruindo simultaneamente o atleta, o esporte e
o mundo.
Reconhecemos que as relações do jogo com a sua estética lúdica fornece
valiosos fundamentos para nossas reflexões sobre o esporte, tendo como
fundamental a ideia de entender a educação como jogo, como um ato de criação e
inspirador de situações de nossa existência.
Nesse pensamento, encontramos não corpos-máquinas ou atletas
reprodutores de gestos, uma vez que, a imanência entre a razão e a emoção
presente no âmbito esportivo torna-se fonte para o impulso lúdico e a harmonia
presente na intermediação de sua sensibilidade com a sua racionalidade.
Ficou claro em nossas reflexões que os fatos na experiência esportiva não
são da ordem do incondicional nem do fortuito, mas constituídos no próprio
movimento da existência. As ações dos atletas constituem a necessidade e a
contingência humana, pois na medida em que tudo o que lhe aparece diante do
jogo, aparece por seu corpo e esse é o caminho que ele tem para acessar o mundo.
No esporte, a educação se dá como um processo corporal sensível em que o
atleta se relaciona com os elementos esportivos, com os outros e com o mundo, e,
nesse relacionar-se, se fazem e se transformam.
Conforme vimos, a experiência do atleta é uma experiência mundana,
sensível, parcial e corporal. Portanto, há uma relação entre o corpo do atleta e as
ações a serem criadas, o que nos fez entender que o corpo, de certa forma, é o
alicerce de todo fazer, de todo “saber fazer”, de todo sentir e de todo refazer.
Tomamos as gestualidades dos esportistas para se pensar o corpo como
potência criativa por meio do sensível na obra de Merleau-Ponty. O esporte, então,
ao se comunicar com a arte, surge como campo de possibilidades para a
experiência do sensível e para a expressão criadora. E nisso encontramos uma
educação sensível, fulgurada pela experiência estética do esporte, que é capaz de
175
proporcionar ao homem uma melhor compreensão estética sobre as coisas da vida,
resignificando o viver e o mundo, sem a formulação funcionalista do que está pronto.
O esporte pressupõe um espaço de relações humanas, de sentimentos, de
afetos e de confrontos, os quais marcam as pessoas e instituem níveis de ordem
individual e social que transforma a vida para uma existência imbricada com as
coisas do sensível, da coexistência e da alegria em compartilhar como sendo um
estado sensível para uma experiência estética e educativa.
Esse entendimento aponta caminhos para a Educação Física, que, tendo
como um dos conteúdos o esporte, pode permitir aos alunos o prazer de participar
dos gestos construídos, coletivamente, por todos que se colocam em jogo.
Os jogadores, sujeitos das ações pedagógicas realizadas, devem
compartilhar entre si a alegria de vivenciar o processo e se apropriar do produto de
suas ações. E isso não nega o esporte de rendimento, nem os modelos gestuais,
mas permite que na experiência esportiva todos tenham chance de brincar com tais
elementos, de criticá-los e de ousar transformá-los com as ações desenvolvidas,
com o corpo dos colegas e com o próprio corpo.
Por essas razões, na experiência esportiva na escola, é preciso viver a
aventura do corpo, ser corpo, sentir-se corpo e compreendê-lo a partir das
construções cotidianas de nossa sociedade. Afinal, o esporte não representa apenas
o vivido em um dado momento: ele está entrelaçado à realidade e às condições
concretas da existência, envolvendo valores, medos, emoções, prazeres e
excitações provocados pela situação.
Acreditamos que a Educação Física pode possibilitar o esporte como jogo e
incorporar a capacidade do repetir, do refazer e do brincar, recusando os princípios
rígidos que possam impedir as mudanças, o jogo como devaneio e as ousadias do
movimento.
As reflexões explicitadas, até o momento, remetem-no a continuarmos a
pensar o esporte através da relação do atleta com o esporte que se dá por meio do
corpo, dos sentidos, por meio da estesia. Em que o corpo em sua potência de criar,
se relacionar e significar, aponta para a entrega sensível da estesia do corpo e do
movimento. Isso possibilita refletir sobre o vivido, conhecer os sentidos criados e
recriados do atleta como uma realidade mutante e paradoxal, tendo no sensível uma
educação que é móvel, que arrebata, que excita e se inscreve no corpo.
176
Conforme ficou evidenciado ao longo deste estudo, buscamos o alcance de
uma reflexão do esporte centrada no corpo como abertura ampla dos sentidos para
as coisas do sensível, nas quais o viver estético transpõe qualquer concepção
determinista, que se resume ao mundo da mercantilização, disciplinarização e
mecanicismo.
O corpo que joga, que brinca com o tempo e com o espaço, que vivencia o
contexto complexo do jogo, suas vertigens, tensões, excitações e paradoxos, educa-
se pelo sentir, pelo fazer e pelo repetir. Vemos que o mundo esportivo não se esgota
em propostas e possibilidades, pelo contrário, é um lugar imprevisível e inconstante
que permite ao corpo rasgar o tempo, lançar-se no espaço, jogar com as regras e
ser homem no pleno sentido da palavra.
Temos certeza de que este trabalho não finda por aqui, uma vez que
qualquer pesquisa ou leitura que fazemos de um fenômeno é sempre parcial e
inacabada. Portanto, estamos longe de produzir verdade, certeza e acabamentos
diante do conhecimento sobre o esporte.
Esperamos que nossa pesquisa possa contribuir com o debate e com os
estudos do esporte, do corpo, do movimento e da educação, como uma eterna
construção e desconstrução das formas e do mundo.
A partir disso, reafirmamos a contínua tarefa e o desafio da Educação Física
diante da temática exposta. Não que sejamos os únicos nesse trabalho, mas que
possamos propagar o esporte para além do aspecto da instrumentalidade, e quem
sabe, continuar alcançando sentidos sensíveis para o corpo e para o movimento
humano.
Equipe
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Anexos
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FICHA DE ANÁLISE DO FILME OLYMPIA
- Título Original e em Português: Olympia (Teil I: Fest der volker / Teil II: Fest de schonheit) – Olympia (Parte 1: Festival do povo/ Parte 2: Festival da beleza) - Ano e País de Produção: Alemanha, 1938 - Direção: Leni Riefenstahl - Gênero: Documentário - Duração: 115min / 89min - Idioma: Alemão
1. Sobre a técnica cinematográfica
Argumento – O documentário retrata os Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, ocorridos em pleno regime nazista. Feito por solicitação de Adolf Hiltler, ele é por vezes criticado em virtude da ideologia que veicula. Isto porque, nesse evento, o líder alemão promoveu uma intensa mobilização para demonstrar a superioridade física da raça germânica em relação aos demais. Todavia, essa obra ultrapassa a política para se transformar em um triunfo artístico das proezas atléticas e do corpo humano em movimento. Foco narrativo – A produção apresenta os interesses políticos e econômicos de corporações dentro do esporte, e o uso dele para sacramentar a ideia de corpo como perfeito, como o triunfo de um regime e de uma ideologia. Mas, em meio a tudo isso também se mostra como vagaroso deleite de atletas masculinos e femininos desnudos e de uma plasticidade gestual e expressiva que falam através do silêncio dos corpos em movimento, remetendo-nos a uma colocação no filme a um só tempo ideológica e estética. Cenário e Figurino – A produção feita em sua maioria por captações em cenas externas e reais inicia com a alusão à Grécia, mostrando imagens de gravuras, altos-relevos, arcos, monumentos, ruínas, pilares, esculturas, um sítio arqueológico e o Parthenon, dando a entender que são elementos da Grécia Antiga. Além disso, passa pelos locais de competição como o estádio de Berlim, o lago, os campos, dentre outros. O figurino é contextual com o evento representado, localizado na cultura alemã do século XX, mas com foco na Antiguidade, Ora vestidos, ora nus, os atletas exibem corpos perfeitos, viris, fortes e jovens como referência à cultura grega antiga. Trilha sonora/sonorização: A trilha sonora (O triunfo da vontade) foi composta pelo maestro Herbert Windt (1894-1965). Ela preenche algumas cenas, mas, em boa parte das cenas, utilizam-se os silêncios, as falas e os ruídos dos atletas, locutores e torcedores. Fotografia e Câmera - Fotografia – O filme trabalha com captação de movimentos rápidos, enquadramentos fechados, planos de corte, close-ups extremos, trilhos alocados nas arquibancadas e também um dirigível que sobrevoava o complexo esportivo com uma câmera acoplada para filmar sequências aéreas. O fundo preto sob uma luz branca, de forma clara e suave, é trabalhado em todo o filme, valorizando os movimentos dos corpos e as expressões dos atletas e torcedores, e, de certa maneira, a grandiosidade do estádio e dos locais de competição.
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2. Sobre o corpo e a cultura de movimento
Olympia retira do real as expressões e as técnicas realizadas pelos atletas para fazer aparecer a expressiva e potente força da competição, da beleza dos corpos e do ideal olímpico. A obra transmite as emoções e as atitudes que coexistem na beleza dos gestos, na expressão facial e na postura corporal em todas suas possibilidades de jogar constantemente com os limites e as incertezas dos movimentos atléticos, ligando o espectador ao enredo esportivo. E, embora presa ao ideal clássico de corpo perfeito, esbelto, claro e definido, expõe outras perspectivas de ação para essa perfeição, que não é mais do corpo e dos gestos, mas de sua eficiência.
A cidade é representada por elementos ideológicos do nazismo, isto é, a exaltação do corpo belo e perfeito, do vigor físico e da juventude. Entretanto, durante essas provas, vemos não somente a consagração de um atleta e a ira de Hitler, ao ver sua ideia de supremacia ariana ser destruída em virtude da vitória nos 100 metros rasos de um negro dos Estados Unidos da América, Jesse Owens, que venceu as duas eliminatórias com facilidade. Na final, Owens levou o ouro e a Alemanha não conseguiu nenhuma medalha na modalidade mais tradicional das Olimpíadas.
Os atletas usam vestimentas que não acentuam as valências físicas nem primam pela espetacularização da performance corporal, mas dão ao corpo a lógica da igualdade de oportunidades e um tom de leveza e graça sem deslocar a busca pela vitória, própria do esporte. Percebemos em Olympia, além das roupas, equipamentos e técnicas que, comparados aos de hoje, revelam os investimentos feitos no campo esportivo, que, tende, a aperfeiçoar as funções orgânicas e gestuais dos atletas. Um tecnocientífico que se manifesta não apenas nos acessórios e roupas, mas, também, nas instalações esportivas e nos novos materiais tais como as fibras de carbono, poliéster, elastano, dentre outros, constituintes de vários equipamentos e vestuários esportivos, incidindo sobre o corpo dos atletas transformações não apenas de ordem física e performática, mas, sobretudo, técnica.
Embora no filme sejam enfaticamente mostrados, com raras exceções, os corpos brancos, em uma clara exaltação à raça ariana, atualmente é possível perceber que os modelos de atletas se confundem com os modelos das técnicas esportivas apresentadas por eles, o que confirma a utilização do corpo para além das ações comumente solicitadas ou sistematicamente padronizadas. Assim, o corpo, ao invés ser subjugado pelos investimentos técnicos e científicos do esporte, se utiliza deles para inscrever novas relações orgânicas e sociais. O que não nega a penetração da razão instrumental e os fins que se procuram, mas desvela o inusitado e o surpreendente, levando o atleta aos campos da existência, condensando suas experiências e fazendo-lhes florescer enquanto carne do mundo.
Nessa direção, o esporte deixa de ser instrumento de exploração tecnológica, disciplinador e adestrador, reduzido aos aspectos mecanicista e mercantilista, e o corpo, não mais um reprodutor passivo, mas uma condição humana inacabada e itinerante em sua possibilidade de fazer o esporte acontecer. Nesse processo aberto e dinâmico do esporte, o corpo que é modificado e também modifica o meio que habita. Faz e se refaz a partir de sua relação com o entorno, ao mesmo tempo em que modifica-o, cria novos espaços e novas texturas para ali ficar.
3. Palavras-chave: Esporte. Competição. Emoção. Olimpíada. Sensibilidade.
4. Pesquisadora: Liege Monique Filgueiras da Silva. Natal, 27/08/2013
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FICHA DE ANÁLISE DO FILME INVICTUS
- Título Original e em Português: Invictus
- Ano e País de Produção: Estados Unidos, 2009
- Direção: Clint Eastwood
- Gênero: Drama
- Duração: 133min
- Idioma: Inglês
1. Sobre a técnica cinematográfica
Argumento – O filme narra a estória da desacreditada equipe sul-africana de rúgbi e sua chegada à final da Copa do Mundo no ano 1995. No filme, dois personagens se destacam: Mandela, presidente recém-eleito da África da Sul, acreditando ser capaz de unificar a população por meio da linguagem universal do esporte, vê neste a possibilidade para acabar com o fosso da segregação racial entre negros e brancos existente no país; e François Pienaar, capitão dos Springboks, que sonha ganhar a Copa do Mundo, mesmo diante do descrédito dos torcedores e das sucessivas derrotas que sua equipe vinha sofrendo.
Foco narrativo – O filme tem como foco a relação ideológica entre esporte e política, os quais caminham atrelados ao projeto de integração e coesão social, potencializando valores e legitimando a experiência do atleta e o poder transformador de uma nação por meio do esporte.
Cenário e Figurino – A produção alternou as captações de imagens entre estúdio e cenas externa. Essas últimas, sobretudo no que se refere aos treinamentos da equipe dos Springboks na periferia da África do Sul e as competições nos estádios. O figurino é contextual com o contexto representado. Roupas simples e claras na maioria da população negra, destacando-se cores mais acentuadas e vestuário esportivo entre os jogadores, além do uso de ternos e vestidos entre a elite branca daquela população.
Trilha sonora/sonorização: A sonorização é prioritariamente preenchida a partir de falas/diálogos diretos entre os atores e algumas vezes em off ou instrumental principalmente
quando o presidente retoma sua vida na prisão. No entanto, o filme é marcado pelo hino da África do Sul, cantado veementemente pelos torcedores no final da Copa do Mundo.
Fotografia e Câmera - Fotografia – O filme trabalha com cores fortes, tendo como foco os tons verdes, vermelhos, azul, preto e amarelo, cores da bandeira da África do Sul. A câmera trabalha com grande rebuscamento, fazendo enquadramentos em plano médio e fechado, focando nas expressões e nas emoções dos atores.
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2. Sobre o corpo e a cultura de movimento
O filme apresenta a tensão e o relaxamento vivido pelas pessoas na prática esportiva, uma vivência que versa sobre a instabilidade, o virtuosismo e o prazer, tanto dos atletas quanto dos espectadores. Na produção cinematográfica, o esporte acoplado tanto à ideia de inclusão como de vigor, aceitação do outro, resiliência, catarse e união, também dialoga com as sensações dos atletas. O esporte mostrado, o rúgbi, como expressão da cultura africana, vai ganhando novos contornos no desenrolar da trama. Vinculado à tenacidade e atrelado a uma ideia de vigor é acrescido de valores estéticos como sensibilidade, emoção e prazer.
O filme, baseado em história real, mostra o momento em que Nelson Mandela assume a presidência sabendo o quanto seu país ainda está dividido pelo racismo, embora, oficialmente, não exista mais a política do Apartheid. O país então dividido tem como destaques dois esportes, o futebol – para os negros e pobres; e o rugby – para os brancos e ricos. É nesse aspecto que a nação vai sendo reconstruída, após o presidente apoiar a seleção nacional de rugby, tendo-a como instrumento estratégico e político, em prol da pacificação e unificação de um país.
No que diz respeito ao tempo em sua relação com o corpo e a cultura de movimento, pode-se perceber que o filme, embora traga marca de ordens cronológicas, quando aponta a situação cultural da população, nas cenas esportivas e nas competições mostradas, o tempo é vivencial, a partir das situações enfrentadas pelos jogadores em campo, no tempo que parece não tem fim, posto que faz o corpo dos atletas e torcedores vibrar, retirando-os da vida ordinária, suspendendo-os da vida cotidiana e construindo uma outra temporalidade, medida no corpo.
Os movimentos dos jogadores, especialmente em meio ao cansaço, vão além das ordenações da técnica esportiva. Os atletas conseguem nuançar os gestos padronizados com a potência sensitiva do jogo, fazendo fluir, por intermédio da experiência estética, uma nova atitude corporal, um êxtase corporal que dilacera suas emoções, reorganizando seus corpos e suas vidas.
Invictus sugere a admiração pela equipe que não tem prestígio nem ascensão no meio esportivo, nos convida a festejar o gol, aponta outras possibilidades de utilização da técnica criativa de jogo, enaltece a diversidade, as ações corporais e a exultação dos corpos que jogam. Além disso, nos mostra como as ações dos jogadores se dão em resposta aos movimentos do adversário, o que faz com que os elementos como equilíbrio, ordem e objetividade abram espaço para as instabilidades e incertezas da experiência do jogar.
Assim como pode ser visto no filme, não há dúvidas de que o esporte funciona como elemento socializador e formador, pois à medida que a prática esportiva engendra um espírito de superação de limites e de criações, pode-se afirmar que esse conhecimento adquirido nos esportes é uma excelente experiência educativa para a vida em sociedade.
3. Palavras-chave: Esporte. Cultura. Emoção. Competição. Superação.
4. Pesquisadora: Liege Monique Filgueiras da Silva. Natal, 25/08/2013