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NATAL/RN 2014 LIEGE MONIQUE FILGUEIRAS DA SILVA Esporte como experiência estética e educativa: uma abordagem fenomenológica UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA ESTRATÉGIAS DO PENSAMENTO E PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

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NATAL/RN2014

LIEGE MONIQUE FILGUEIRAS DA SILVA

Esportecomo experiência

estética e educativa:uma abordagemfenomenológica

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTECENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃONÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA

ESTRATÉGIAS DO PENSAMENTO E PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA

ESTRATÉGIAS DO PENSAMENTO E PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

LIEGE MONIQUE FILGUEIRAS DA SILVA

Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa:

uma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológica

NATAL – RN

2014

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LIEGE MONIQUE FILGUEIRAS DA SILVA

Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa:

uma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológica

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do título de doutor em Educação, sob a orientação da Profa. Dra. Karenine de Oliveira Porpino.

NATAL – RN

2014

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Catalogação da Publicação na Fonte.

UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA

Silva, Liege Monique Filgueiras da.

Esporte como experiência estética e educativa: uma abordagem

fenomenológica/ Liege Monique Filgueiras da Silva. - Natal, RN, 2014.

189 f. : il.

Orientadora: Profa. Dra. Karenine de Oliveira Porpino.

Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-graduação em

Educação.

1. Esporte – Tese. 2. Educação física - Tese. 3. Estética – Tese. 4. Corpo –

Tese. I. Porpino, Karenine de Oliveira. II. Universidade Federal do Rio Grande

do Norte. III. Título.

RN/BS/CCSA CDU 796.01:37

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LIEGE MONIQUE FILGUEIRAS DA SILVA

Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa: Esporte como experiência estética e educativa:

uma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológicauma abordagem fenomenológica

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do título de doutor em Educação, sob a orientação da Profa. Dra. Karenine de Oliveira Porpino.

Aprovado em: _____ / _____ / _____

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________ Dra. Karenine de Oliveira Porpino – UFRN (Presidente da banca)

_______________________________________________________ Dra. Terezinha Petrucia da Nóbrega – UFRN (Examinadora interna)

_______________________________________________________ Dr. José Pereira de Melo – UFRN (Examinador interno)

_______________________________________________________

Dr. Iraquitan de Oliveira Caminha – UFBP (Examinador externo)

_______________________________________________________ Dr. Edilson Fernandes de Souza – UFPE (Examinador externo)

_______________________________________________________ Dr. Eduardo Anibal Pellejero - UFRN (Suplente interno)

_______________________________________________________ Dra. Elaine Melo de Brito Costa - UEPB (Suplente externo)

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Aos meus pais e a minha orientadora Karenine Porpino, pelo apoio incondicional, força e confiança sem igual. A vocês, minha eterna gratidão, admiração, amor e respeito.

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Ao quebrar o silêncio a linguagem realiza o que o silêncio pretendia e não conseguiu obter.

Maurice Merleau-Ponty

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Agradecimentos

Embora a elaboração de uma tese seja, pela sua finalidade acadêmica, um

trabalho autoral, esta escrita está longe de ser o resultado de uma atividade

individual. Certamente, ela se concretizou com a colaboração de inúmeras pessoas,

que, de modos diferentes, foram importantes para que eu conseguisse chegar até

aqui. E, por essa razão, desejo expressar os meus sinceros agradecimentos:

A Deus, por me amparar nos momentos difíceis, por me mostrar os caminhos

nas horas incertas e por me haver proporcionado a felicidade de encarar com

coragem e determinação a concretização deste sonho.

A painho, Luiz Silva, homem valente que nos últimos anos lutou pela vida.

Obrigada por todo investimento e toda dedicação que, em sua capacidade de amor

maior, proveu a mim o seu melhor. Viva muito que nossa estrada é longa. À mainha,

Rosário Sena, sua valentia em não desistir dos seus sonhos e audácia diante da

vida são exemplos para mim. Obrigada por sua alegria, sabedoria e palavras de

incentivo que contagiam meu coração e iluminam meu caminhar. Eu amo vocês!

Aos meus familiares e amigos, que, entendendo minhas ausências em muitos

momentos, sempre incentivaram meus estudos e a concretização desta tese. E

ainda, meus filhos peludos, Romeu e Kika, por alegrarem os meus dias e me

fazerem companhia quando, inevitavelmente, eu precisava estar somente com

vocês.

Ao meu grande mestre e amigo, professor Flávio Tinôco, por ter me

possibilitado descobrir a beleza e o prazer de jogar handebol. Às minhas parceiras

de quadra, pelos momentos compartilhados, pelos confrontos e pelas alegrias. E

não menos importante, a todos os clubes onde atuei, técnicos com que convivi, os

torcedores dos mais diversos e a todas as adversárias, pois, mesmo sem saber,

vocês marcaram a minha existência e me fizeram escrever esta tese.

Às professoras Ceiça Alves, Maria Pinto, Ana Maria, Rosinete e Dalvanir da

Escola Municipal Angélica Moura e do CMEI José Carlos, pela amizade e pelo apoio

inestimável na realização desta pesquisa.

A Karenine Porpino, minha orientadora desde a graduação, obrigada pelo seu

conhecimento, sabedoria e paciência de me fazer ir além do que eu imaginava. Você

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me fez ser uma pessoa melhor, uma profissional mais dedicada e uma pesquisadora

mais sensível e apaixonada. Obrigada por ter acreditado em mim quando nem eu

mesma acreditava. Hoje, fechamos juntas um ciclo de trabalho que certamente,

permanecerá aberto à amizade e às novas parcerias que daqui para a frente espero

estarem abertas para nós. Amo você!

À professora Petrucia Nóbrega, pessoa que admiro pelo conhecimento,

profissionalismo e generosidade em compartilhar tudo o que sabe. Obrigada por ter

mudado minhas concepções e ter transformado meus objetivos profissionais ainda

no início da graduação e por ter contribuindo sempre na minha formação.

Certamente, você faz parte desta escrita. Aos professores Iraquitan Caminha e José

Pereira, pelas desveladoras contribuições ao longo desse processo. Esta escrita

também tem muito de cada um de vocês. E ainda, aos professores Edilson Costa,

Eduardo Pellejero e Elaine Costa pela disponibilidade em compartilhar comigo esta

escrita. Sinto-me privilegiada.

Ao Grupo ESTESIA e ao laboratório VER do Departamento de Educação

Física da UFRN, na figura da professora Rosie Marie, pelo apoio nessa caminhada,

pela infraestrutura, pelo acesso à leitura diversa e pela oportunidade de participar

das valiosas atividades tão significativas na minha formação e tão necessárias para

a elaboração desta tese. E, ainda, aos demais parceiros institucionais pelos

seminários realizados na UFRN com professores Jacques Gleyse (Université de

Montpellier) e Carmem Soares (UNICAMP) e na UFPB com os demais colegas e

professores, os quais consistiram em uma parte muito importante do

desenvolvimento desta tese. Muito Obrigada!

À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em especial, ao Programa

de Pós-graduação em Educação, alunos, funcionários e professores, pelo

compromisso, credibilidade e seriedade na formação de mestres, doutores e

pesquisadores.

À Capes, pela bolsa de estudos que possibilitou o apoio financeiro necessário

para a realização desta tese.

À Andreia e a Fernando, pelo brilhante serviço profissional na revisão e arte

do trabalho.

Enfim, a todos os que, de forma direta ou indireta, contribuíram para a

realização deste trabalho. Muito obrigada!

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Resumo

Este trabalho trata do esporte como possibilidade de vivência do sensível e defende a tese de que a prática esportiva é uma experiência estética e educativa, em que se opera o sensível pelas sensações reverberadas no corpo do atleta, na dimensão do vivido. Buscamos responder nesta pesquisa as seguintes questões: O que sensibiliza o atleta na vivência do esporte? Quais são os sentidos e os significados vividos no esporte que fazem o atleta vivenciar essa prática? Como a experiência do atleta pode ser pensada como educação? Objetivamos discutir o esporte a partir da dimensão do vivido, buscando compreender os significados conferidos à prática esportiva e à experiência estética do atleta como educação. Para traçarmos essa argumentação, o enfoque da tese é de natureza teórico-filosófica, pautada em pensamentos como os de Merleau-Ponty, Walter Benjamin, Marcel Mauss e Friedrich Schiller. Para tal, apoiamo-nos na fenomenologia do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, tendo como referência o mundo vivido do atleta e a experiência da prática esportiva como campo do sensível. Iniciamos a reflexão com a narrativa de experiências esportivas, a partir de cinco elementos estéticos: tempo-espaço do corpo em quadra, o olhar no contexto esportivo, o contato com o adversário, a vitória e a derrota e o gesto técnico. Junto a isso, fizemos uma apreciação estética dos filmes “Olympia” e “Invictus”, por meio dos quais discutimos três categorias temáticas: a sensibilidade, as emoções e o paradoxo do jogo. Posteriormente, apresentamos o esporte como potencializador de uma educação sensível, manifesta nos processos corporais, do corpo em movimento. Conforme ficou evidenciado ao longo deste estudo, buscamos o alcance de uma reflexão sobre o esporte centrada no corpo do atleta como abertura ampla dos sentidos para as coisas do sensível, cujo viver estético transpõe qualquer concepção determinista, que resuma o mundo esportivo à mercantilização, à disciplinarização e ao mecanicismo. Esse entendimento aponta caminhos para a Educação Física, que, tendo como um dos conteúdos o esporte, pode permitir aos alunos o prazer de participar dos gestos construídos, coletivamente, por todos que se colocam em jogo, incorporando a capacidade do repetir, do refazer e do brincar como campo de possibilidades de uma educação que é móvel, sensível e se inscreve no corpo em movimento.

Palavras-chave: Esporte. Educação. Corpo. Estética.

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Abstract This paper deals with sport as a possibility of disclosing the sensible, and defends the idea that being a sportsperson equals living an aesthetic and educative experience in which one can interacts with the sensible by the athletic body’s reverberation of sensations in the dimension of the experienced. We try to answer, in our work, basically three questions: what moves the athlete when practicing a sport? Which are the meanings and motivations for the practice of sports? At what measure the athlete’s experience gains an educational character? Sport is debated in this work as an extension of the living, as long as it tries to understand the meanings inherent to sport itself as well as to the sportive experience as a kind of education. In support of our argument, we give a theoretic and philosophical approach to our thesis, based on thinkers like Maurice Merleau-Ponty, Walter Benjamin, Marcel Mauss and Friedrich Schiller. For this purpose, we get support on the phenomenology of the French philosopher Maurice Merleau-Ponty. Our reference is the living world of the athlete and his experience as a field of the sensible. Our point of departure is the analysis of the narratives of sport experiences, including five aesthetic elements; time and space of the body in the sports courts; the look on the sportive context; the contact with the adversary; victory and defeat; the technical gesture. Besides it, we worked out an aesthetic evaluation of the movies “Olympia” and “Invictus”, what let us discuss three thematic categories: sensibility, emotions and the play paradox. Subsequently, we point sport as an optimizer of the sensible education, present on the body’s processes, like the body in movement. It was also made clear along this paper that we tried to accomplish an analysis on sports centered in the athlete’s body as an outfit of the senses to things related to the sensible, whose aesthetic experience overpasses any deterministic conception that should sum up the sportive world to mercantilization, discipline practices and mechanicism. This approach franchises gateways to a Physical Education which, containing sports as one of its support, let pupils enjoy the pleasure of constructing common objectives, incorporating the capacity of replicating, re-making and playing as a field of possibilities offered by an education characterized as being moving, sensible and fitful to a body in movement. Key-words: Sport. Education. Body. Aesthetics.

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Resumen El presente trabajo trata sobre el deporte como posibilidad de vivencia del sensible y defiende la tesis de que la práctica deportiva es una experiencia estética y educativa en la cual se opera lo sensible por medio de las sensaciones reverberadas en el cuerpo del atleta, en la dimensión del vivido. El estudio busca responder a las siguientes cuestiones: ¿Que cosa sensibiliza el atleta en la vivencia del deporte? ¿Cuáles son los sentidos y los significados vividos en el deporte que hacen los atletas tener vivencia de esas prácticas? ¿Como la experiencia del atleta puede ser pensada como educación? Discutimos sobre el deporte desde la dimensión del vivido, tratando de comprender los significados conferidos a la práctica deportiva y a la experiencia estética del atleta como educación. Para impulsar ese argumento, nuestra tesis presenta un enfoque de naturaleza teórico-filosófica, asentado en pensamientos de Merleau-Ponty, Walter Benjamin, Marcel Mauss y Friedrich Schiller. Para ello nos basamos en la fenomenología del filósofo francés Maurice Merleau-Ponty, teniendo por referencia el mundo vivido del atleta y la experiencia de la práctica deportiva como campo del sensible. Comenzamos la reflexión con la narrativa de experiencias deportivas desde cinco elementos estéticos: tiempo-espacio del cuerpo en la cuadra, la mirada en el contexto deportivo, contacto con el adversario, la victoria y la derrota, y el gesto técnico. Junto a eso hicimos una evaluación estética de los filmes “Olympia” e “Invictus”, y por medio de ella hemos discutido sobre tres categorías temáticas: la sensibilidad, las emociones y el paradojo del juego. Después presentamos el deporte como potenciador de una educación sensible, manifiesta en los procesos corporales, del cuerpo en movimiento. Como ya se ha señalado en el curso de este estudio, buscamos el alcance de una reflexión sobre el deporte centrada en el cuerpo del atleta como apertura amplia de los sentidos para las cosas del sensible cuyo vivir estético transpone cualquier concepción determinista que resuma el mundo deportivo a la mercantilización, la disciplinarización y al mecanicismo. Ese entendimiento apunta caminos para la Educación Física que, tiendo como uno de sus contenidos el deporte, pueda permitir a los estudiantes el placer de participar de los gestos construidos colectivamente por todos que se ubican en juego, incorporando la capacidad del repetir, del rehacer y del jugar como campo de posibilidades de una educación que es mueble, sensible y se inscribe en el cuerpo en movimiento. Palabras-claves: Deporte. Educación. Cuerpo. Estética.

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Lista de Fotografias

Fotografia 01 – Infinidade de lembranças

Fonte: Arquivo da autora, 1998 ------------------------------------------------------------------- 37

Fotografia 02 – Tempo-espaço do corpo

Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 42

Fotografia 03 – O olhar que habita o jogo

Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 50

Fotografia 04 – Contato com as adversárias

Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 62

Fotografia 05 – O peso da derrota

Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 71

Fotografia 06 – Pan-americano 2001

Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 72

Fotografia 07 – A leveza da vitória

Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 73

Fotografia 08 – Gesto técnico do arremesso

Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 82

Fotografia 09 - Expressões do arremesso

Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 83

Fotografia 10 – Salto para o gol

Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 ------------------------------------------------------------ 84

Fotografias 11 e 12 – Nelson Mandela e François Pienaar

Fonte: Invictus. Cena 5, 2009 --------------------------------------------------------------------- 99

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Fotografias 13 e 14 – Equipe All Blacks

Fonte: Invictus, Cena 22, 2009 ----------------------------------------------------------------- 101

Fotografias 15 e 16 – Equipe Sprinboks

Fonte: Invictus, Cena 22, 2009 ----------------------------------------------------------------- 101

Fotografias 17 e 18 – Capitão Pienaar incentivando sua equipe

Fonte: Invictus, Cena 24, 2009 ----------------------------------------------------------------- 102

Fotografias 19 e 20 – Deuses gregos

Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 1, 1938 -------------------------------------------- 103

Fotografias 21 e 22 – Discóbulo vivificando

Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 2, 1938 -------------------------------------------- 104

Fotografias 23 e 24 – Performance e passagem da tocha olímpica

Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 3, 1938 -------------------------------------------- 104

Fotografias 24 e 25 – Atleta negro Jesse Owens

Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 9, 1938 ---------------------------------------------- 106

Fotografias 26 e 27 – Provas na terra

Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 5, 1938 -------------------------------------------- 107

Fotografias 28 e 29 – Provas no ar e nas águas

Fonte: “Olympia”, Festa da beleza, cena 11, 1938 ---------------------------------------- 108

Fotografias 30 e 31 – Lampejos de emoção

Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 6, 1938 -------------------------------------------- 108

Fotografias 32 e 33 – Espectadores brancos e negros

Fonte: “Olympia”, cena 5, 2009 ----------------------------------------------------------------- 114

Fotografias 34 e 35 – Atuação coletiva dos esportistas e dos espectadores

Fonte: “Olympia”, cena 26, 2009 --------------------------------------------------------------- 115

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Fotografias 36 e 37 – Vibração pela ação realizada

Fonte: “Olympia”, Festa da beleza, cena 9, 1938 ----------------------------------------- 116

Fotografias 38 e 39 – Gestos de contenção e evasão

Fonte: “Olympia”, Festa da beleza, cena 4, 1938 ------------------------------------------ 117

Fotografias 40 e 41 – Duelo dos barcos e das luvas

Fonte: “Olympia”, Festa da beleza, cena 10, 1938 ---------------------------------------- 118

Fotografias 42 e 43 – Atleta mobilizado pelo jogo

Fonte: “Invictus”, cena 25, 2009 --------------------------------------------------------------- 128

Fotografias 44 e 45 – Roupas, técnicas e equipamentos da época do filme “Olympia”

Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 7, 1938 ------------------------------------------- 131

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1. Entrando em quadra ______________________________________ 15

Início do jogo ------------------------------------------------------------------------------- 17 Regras do jogo ----------------------------------------------------------------------------- 24

2. Primeiro tempo - a experiência do jogar ___________________ 33

Tempo-espaço do corpo em quadra -------------------------------------------------- 40 O olhar no contexto esportivo ---------------------------------------------------------- 48 Contato com o adversário --------------------------------------------------------------- 56 A vitória e a derrota – leveza e peso ------------------------------------------------- 68 Gesto técnico – a potência criativa do corpo --------------------------------------- 79

3. Intervalo – o jogo como devaneio _________________________ 92

Vertigem ------------------------------------------------------------------------------------- 96 Tensão e excitação ---------------------------------------------------------------------- 112 Paradoxo ----------------------------------------------------------------------------------- 126

4. Segundo tempo – Esporte: a educação como jogo _______ 141

5. Apito final ______________________________________________ 168

6. Equipe __________________________________________________ 177

7. Anexos __________________________________________________ 185

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EntrandoemQuadra

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O homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga.

Friedrich Schiller

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Início do jogo

O jogo é fundamental, já dizia Schiller (1995)1. A experiência do jogar permite

ao homem uma passagem da sensação ao pensamento e do pensamento à

sensação, não como limitação da sensibilidade e da razão, mas como totalidade

ontológica da existência, imbricada com as coisas do nosso fazer, do pensar, do

sentir e do movimentar.

Assim, como numa experiência que jamais se repete, o início do jogo e todo

seu contexto transportam o atleta para um cenário no qual, diante dos seus olhos,

acontecimentos da vida e do mundo se desenrolam, de forma tão intensa como se

fosse a primeira vez. Um misto de sentimentos despertados pelo universo sensível

do jogo, o qual alarga a sua existência, e transborda sobre a razão objetiva, uma

corrente de sentidos2 que lhe insere esteticamente no mundo.

A prática esportiva envolve o atleta no mundo, sempre refazendo a vida

cotidiana, como uma nova forma de existência por intermédio do “eu posso” e não

de um “eu penso”. Uma unidade mente-corpo capaz de ampliar a experiência vivida

numa subjetividade fundada no poder de sentir e movimentar o corpo.

Nessa perspectiva, os horizontes se abrem e o atleta, confrontando o mundo

que habita, vai se constituindo por meio dos movimentos e da atuação do corpo no

mundo, instaurando nesse processo uma comunicação entre o dado e o evocado.

Aliado à performance que lhe é exigida, o corpo se funda em sensações, emoções e

criações que vão além daquilo que é ditado pelos técnicos e pelas regras, sendo o

contexto esportivo um espaço fecundo para a constituição de novas formas de sentir

e habitar o mundo.

Esta pesquisa tem como foco principal a dimensão estética do esporte, tendo

como referência o mundo vivido3 do atleta e a prática esportiva como campo do

sensível.

1 Não se trata aqui de uma semelhança conceitual entre jogo e esporte, mas sim algumas relações que fazem com que, se o primeiro pode se transformar no segundo, o esporte também pode vir a ser um jogo, sobretudo, por meio da dimensão sensível, no fazer estético do corpo. Nessa relação, compreendemos que o esporte é apenas uma das manifestações de jogo, dentro de um contexto bastante socializado e universal. 2 Em Merleau-Ponty (2011) os sentidos se referem à capacidade do corpo sentir. Uma comunicação sensível que expande a existência e dimensiona o homem consigo mesmo e com o mundo. 3 A expressão mundo vivido é uma tentativa de tradução da palavra alemã lebenswelt. Termo criado, inicialmente, por Husserl, em sua fenomenologia estrutural, e retomado nas reflexões de Maurice

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Partimos da compreensão de que no esporte os atletas constituem uma

racionalidade não determinada pelos padrões instituídos pela lógica formal, mas

uma razão sensível, que se constitui na apreensão dos sentidos e na sua

comunicação do corpo com o mundo esportivo.

Dessa forma, o esporte pode ser compreendido como fenômeno estético e o

atleta como existência constituída pelo logos estético4, o qual é capaz de explicar as

experiências do corpo, da emoção e do vivido nele.

Nessa direção, podemos refletir sobre o esporte a partir do mundo vivido do

atleta, sendo possível pensá-lo como experiência estética e educativa por meio das

relações que ele estabelece com o corpo na prática esportiva.

Para isso, nos apoiamos na fenomenologia do filósofo francês Maurice

Merleau-Ponty, o qual compreende o homem a partir da experiência vivida, na sua

entrega ao mundo e nas relações nele constituídas.

Afirmamos a tese de que a prática esportiva é uma experiência estética e

educativa, em que se opera o sensível pelas sensações reverberadas no corpo do

atleta, na dimensão do vivido. Experiência na qual o sensível é apreensão de

sentidos e possuidor de significados.

Esse posicionamento implica uma perspectiva de compreensão do esporte

não pelos aspectos estruturais ou pelas suas categorias explicativas, mas pelo viés

do atleta, por aquele que vivencia e que se refaz em cada instante ali vivido.

Trata-se de uma compreensão fenomenológica da prática esportiva, uma

experiência com técnicas e gestos próprios, configurados por uma estrutura rígida.

Mas que atravessa os recônditos do corpo, criando em cada atleta um estilo próprio

de jogar que educa através do sensível dos movimentos e da gestualidade.

Consideramos que o atleta não é somente um mero receptor ou

simplesmente um sujeito passivo diante do mundo esportivo. Ele interfere naquele

meio constantemente e o habita, e isso possibilita que ele invente e reinvente aquilo

que lhe é proposto ou imposto, dando-lhe um significado a partir de sua experiência

Merleau-Ponty (2011). De acordo com esse o filósofo, o termo está relacionado ao mundo pré-objetivo do ser, ou seja, aquele que antecede à reflexão, a totalidade das percepções vividas. 4 A estética não se define pelas relações exteriores entre o homem e o mundo, mas na apreensão dos sentidos enquanto experiência produtora de conhecimento, que consiste precisamente na relação do corpo com o mundo. Essa comunicação com o mundo sensível, enquanto expressão das relações corporais e, portanto, de conhecimento, é designada em Merleau-Ponty como logos estético: “Esse mundo sensível é o logos do mundo estético”. (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 65).

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corporal, criando um mundo próprio, no qual o esporte não é um objeto, ou seja, um

mero exercício físico, um passatempo ou elemento de representação pessoal, mas

uma prática existencial, em que o atleta encontra sentido.

O esporte gera sentidos que não se restringem à instrumentalização do corpo,

ao consumo ou ao mercantilismo, mesmo quando envolvidos com aspectos

relacionados ao rendimento, ao instrumentalismo e ao tecnicismo. Os atletas

rompem a lógica determinista do esporte criando e recriando formas de existência

social e pessoal para além daquilo que foi previsto ou predeterminado.

Essas ações constantes, invenção e reinvenção, partem das relações vividas

no mundo esportivo e emergem no corpo, atando o atleta ao esporte através da

experiência estética. O significado dessa prática não se encontra pronto, mas se

constitui no movimento, de forma inacabada, sempre em composição para o

esportista.

Certamente, não podemos negar algumas peculiaridades do universo

esportivo, tais como as exigências técnicas, a potencialização do consumo, a

instrumentalização e o trato severo com o corpo, referências importantes e que

devem ser consideradas na análise das práticas esportivas5. No entanto,

acreditamos que, além desses aspectos, os quais não podemos descartar, outras

dimensões precisam ser levadas em consideração na análise do esporte, pois a

prática esportiva também apresenta dimensões relacionadas à experiência do

sensível6.

Nesse sentido, cabe ressaltar que nos apoiamos na compreensão de estética

de Merleau-Ponty para a realização deste estudo, a qual se constrói na relação

imanente entre sujeito e objeto, homem e mundo, entre esporte e atleta.

5 A teoria crítica do esporte, derivada da escola de Frankfurt, por exemplo, se propôs a pensar e criticar as práticas esportivas por elas mesmas, em sua estrutura interna e nas condições que faziam com que o esporte acontecesse, ou seja, na sua lógica de dominação, repressão e a alienação por ele reforçada. Esses pensamentos e essas críticas ao esporte da escola frankfurtiana influenciaram vários autores brasileiros, como Valter Bracht (2003), Alexandre Fernando Vaz (2003) e Elenor Kunz (2003), que direcionaram suas reflexões acerca do esporte pautado nas características do corpo dominado, da disciplina, da violência, da normatização, da competição exacerbada e da espetacularização. 6Autores como Lovisolo (1997, 2009), Santos (2012) e Stigger (2002), sem negar a instrumentalização do esporte e sua espetacularização, compreendem que no esporte não temos somente um corpo dominado, mas corpos que se movem na tensão entre prazer e utilidade, domínio e liberdade. Sentidos que perpassam os fluxos de suas indeterminações, mostrando outros sentidos e significados para aqueles que dele participam.

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Em seu pensamento, a estética não se define apenas pelo belo artístico, mas

como vivência do sensível, na experiência do corpo com as coisas, com os outros e

com o mundo. Logo, não há conceitos definidos ou modelos preestabelecidos, mas

uma dialética entre o homem e o mundo através dos sentidos que transpassam essa

relação, abarcando o corpo. Essa experiência: “nos abre para aquilo que não

somos” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 156), colocando-nos em contato com o

incomum, com o inesperado e com o novo, fazendo-nos adentrar em outros mundos

e permitindo que essa experiência nos sensibilize e nos modifique.

Entrelaçado a isso, alarga-se a compreensão do corpo como objeto, para

incluir, entre outras questões, a dimensão do sensível como realidade essencial do

humano, sendo fundamental para a compreensão da ontologia do corpo proposta

por Merleau-Ponty (2009) a estesia, cuja natureza é sensível, capaz de sensação7.

Quando Merleau-Ponty menciona o corpo estesiológico, refere-se ao corpo

capaz de sensação, mas também de comunicação, de expressão, de criação. É o

corpo que se abre para o exterior, envolvido e afetado pelos sentidos e entrega

corpórea ao universo da experiência estética, impulsionada por sua relação com o

mundo. Uma comunicação marcada pelos sentidos que a sensorialidade e a

historicidade criam, numa síntese sempre provisória, numa expressão existencial

que move um corpo humano em direção a outro, expandido a vida para novas

elaborações construídas pelo mundo da experiência vivida (NÓBREGA, 2010).

Nessa relação, o homem educa e é educado, não pela sistematização do

conhecimento ou pelo ensino formal, mas pela experiência sensível, construída na

vivência do corpo, como na concepção fenomenológica de educação, a qual não se

resume a métodos prontos, visando objetivos determinados, mas abarca o ser

humano pelo universo dos sentidos, da sensibilidade e da criação.

Nessa direção, a estesia enquanto conhecimento sensível é expressa nesta

pesquisa pelo atrever-se do corpo à experiência estética no esporte. O que

possibilita uma reflexão capaz de conduzir ao espanto como condição de reaprender

a ver a prática esportiva por meio da educação sensível, que considera a

experiência vivida um educar aberto à transformação, à inovação, ao sensível.

7 Em Merleau-Ponty (2011) a sensação e a percepção não são elementos separados, posto que na própria sensação há significação, o que faz compreender a experiência vivida e suas múltiplas significações a partir da relação corpo, movimento e mundo como elementos indissociáveis que têm, no sentir, o sentido.

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Assim, referimo-nos às experiências que os atletas vivenciam no esporte

como conhecimento sensível, as quais não estão separadas pelo entendimento, mas

entrelaçadas na reversibilidade dos sentidos8, na dimensão estética.

Assim, o corpo do atleta, longe de remeter a qualquer fisiologismo, é de onde

irão emergir os sentidos fundamentais dessa experiência, no entrelaçamento dele

com o mundo esportivo. Um encontro que permite fruir sentidos, que conduzem a

outros modos de existir e que admite a criação de outras linguagens gestuais e

novas formas do corpo jogar, educar e se sensibilizar.

Pautamos a estética como linguagem sensível que se constitui no corpo,

enquanto processo de sentido que se dá através da experiência vivida e das

relações construídas no mundo. Logo, podemos compreendê-la em suas relações

com o esporte, como configuração do mundo da criação e do conhecimento.

Para traçarmos essa argumentação, o enfoque da tese é de natureza teórico-

filosófica, tendo Maurice Merleau-Ponty como referência para pensarmos a

dimensão estética do ser atleta, bem como discutirmos os sentidos criados pela

experiência vivida no âmbito das práticas esportivas.

Somando-se ao filósofo Merleau-Ponty, outros autores também deram

suporte as nossas discussões, entre eles: Benjamin (1989, 2002, 2012), Mauss

(2003) Elias (1992) e Schiller (1995), para afirmar o esporte como experiência

estética e educativa.

Buscamos responder, no decorrer da construção da tese, as seguintes

questões: O que sensibiliza o atleta na vivência do esporte? Quais são os sentidos e

os significados vividos no esporte, que fazem o atleta vivenciar essa prática? Como

a experiência do atleta pode ser pensada como educação?

Seguimos com o objetivo de discutir o esporte a partir da dimensão do vivido,

buscando compreender os significados conferidos à prática esportiva e à experiência

estética do atleta como educação.

Compreender a prática esportiva com enfoque numa educação sensível,

através dos seus sentidos e das sensações que são reverberadas nele, torna-se

uma reflexão importante para entender que o atleta não se restringe a determinadas 8 A noção de reversibilidade dos sentidos é discutida por Merleau-Ponty (2004b, 2009, 2011) como a comunicação do corpo que é, ao mesmo tempo, vidente e visível, tocante e tateante, sensível e sentiente, num duplo enlace que se funde numa única ação. Em suas palavras o corpo: “[...] vê vidente, ele se toca tocante, é visível e sensível para si mesmo” (MERLEAU-PONTY, 2004b, p.17).

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ações de movimento ou de pensamento, mas vive o esporte, educa e se educa ao

criar e recriar movimentos, modos de fazer no jogo, de se relacionar com o outro e

de posicionar-se diante do mundo. Nesse movimento, amplia a capacidade de

apreensão dos gestos, das coisas e do mundo, reorganiza-se em novas sensações

e acrescenta-se em novos sentidos através da experiência íntima e social do corpo.

Nesse trânsito, encontramos nos espaços acadêmicos algumas produções

que se aproximam de nosso objeto de estudo, trabalhos significativos para se

pensar a relação entre o esporte e a educação. Nesses espaços de produção do

conhecimento, encontramos seis teses de doutorado e três dissertações de

mestrado defendidas em programas de Pós-graduação na área da Educação e da

Educação Física que, assim como este trabalho, discutem o esporte a partir do

mundo vivido do atleta91011.

Evidenciamos, também, contribuições de estudos sobre a temática em

questão, tais como as pesquisas desenvolvidas na UFRN pelos professores Allyson

de Carvalho de Araújo (2006)12 e Antônio de Pádua dos Santos (2008)13 , e ainda os

9 Fizemos uma busca geral das dissertações e teses publicadas no Banco de Teses da Capes, defendidas a partir de 1987, segundo o termo “Esporte, Educação, Atleta”, sendo assinaladas “todas as palavras” como critério de busca para o assunto pesquisado. Nessa busca, considerando uma abordagem quantitativa dos dados obtidos, existem 98 dissertações e 30 teses, com a presença desse termo, no referido período. No entanto, nem todas se aproximam do nosso trabalho. 10 Dissertações de mestrado próximas ao nosso objeto de estudo: “Processo de formação e treinamento do atleta de elite no Brasil: dos jogos aos jogos”, de Lila Maria Peres Silva, dissertação defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação Física da UGF; “Pedagogia da dor: sobre o esporte, a vitória e a derrota na arena” de Luciano do Amaral Dornelles, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação da ULBRA; “Técnica, dor, feminilidade: educação do corpo na ginástica rítmica”, de Patrícia Luiza Bremer Boaventura, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UFSC. 11 Teses de doutorado próximas ao nosso objeto de estudo: Tese de Antonio de Pádua dos Santos, intitulada “Imaginário radical: trajetória esportiva de corredores de longa distância”, defendida Programa de Pós-graduação em Educação da UFRN; Tese de Fátima Maria Pilotto, intitulada “Educação corporal de atletas na ginástica artística”, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UFRS; Tese de Gabriela Aragão Souza de Oliveira, intitulada “Trajetória de mulheres-referência no esporte nacional como atletas e gestoras”, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UGF; tese de Giuliano Gomes de Assis Pimentel, intitulada “Risco, corpo e sociabilidade no voo livre”, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação Física da UNICAMP; Tese de Paulo Cesar Montagner, intitulada “A formação do jovem atleta e a pedagogia da aprendizagem esportiva”, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação Física da UNICAMP; Tese de Simone Meyer Sanches, intitulada “Prática esportiva e resiliência”, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação da USP. 12 Dissertação: “Um olhar estético sobre o telespetáculo esportivo: contribuições para o ensino do esporte na escola” (PPGED/UFRN). 13 Tese de doutorado: “Imaginário radical e Educação Física: trajetória de corredores de longa distância” (PPGED/UFRN).

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artigos14 produzidos no Grupo de Estudos Corpo e Cultura de Movimento (GEPEC-

UFRN), Grupo de Pesquisa Corpo, Fenomenologia e Movimento (ESTESIA-UFRN)

e do Laboratório de Imagens do Corpo e da Cultura de Movimento (VER-UFRN), do

qual faço parte, como referências significativas para a reflexão do atleta não como

um corpo dominado, mas um ser que dinamicamente escreve sua história no mundo

esportivo e nele encontra um sentido existencial.

Nessa direção, percebemos que o esporte, sob ponto de vista do atleta, ainda

tem sido pouco discutido nas pesquisas acadêmicas. Isto porque, a maioria desses

trabalhos parte do processo de formação, da resiliência, bem como do olhar externo

e explicativo do esporte, fazendo-se necessário ampliar os estudos que contemplem

a experiência sensível e o sentido estético dado pelo atleta.

Seguindo esse fio condutor, buscamos aproximar os significados da prática

esportiva da experiência vivida, em sua relação com a experiência estética e a

educação, para falar dos aspectos que fundamentam a vivência dos atletas nesse

contexto e que fazem sentido em sua existência. O sentido se faz para os atletas

através da própria existência, a partir da entrega do corpo e da excitação vivida no

esporte. E nesse movimento, de modo participativo, criando e recriando, vivendo e

habitando de modo dinâmico esse mundo, o corpo produz conhecimento, saberes

produzidos pela experiência humana no mundo vivido. Uma via dupla, na qual o

sentir e o educar estão presentes na mesma existência, na dimensão sensível,

tecida no entrelaçamento do corpo com o mundo, com os outros e com a cultura.

Relação encarnada, de experiência, de sensação, de criação e de renovação.

Nessa direção, apresentamos elementos que contribuam para pensar a

relação entre educação e esporte como uma realidade de aprofundamento sensível

que os constituem, centrada no corpo e na experiência estética como modos de

educar.

14 MELO, José Pereira de; NÓBREGA, Terezinha Petrucia da; Beleza e conflito em Olympia. Paidéia, Natal, v. 1, n. 2, p. 25-39, fev. 2006. / NÓBREGA, Terezinha Petrucia da; DIAS, João Carlos Neves de Souza e Nunes. Futebol: do espetáculo às aulas de Educação Física. Paidéia, Natal, ano 2, v. 1,p. 25-39. jan./dez. 2006. / SILVA, Liege Monique Filgueiras da; PORPINO, Karenine de Oliveira. O ensino do esporte: relato de experiência com alunos do 5º ano. Cadernos de formação RCBCE, Florianópolis, v. 2, p. 56-66, jul. 2011.

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Regras do jogo

Para investigar a temática abordada buscamos caminhos de compreensão

que não tivessem dado ou forma acabada, mas uma aproximação do vivido com o

sensível, pela dialogicidade do atleta com o mundo esportivo, sempre construindo

novas formas de habitá-lo.

Com esse intuito, apresentamos a atitude fenomenológica de Maurice

Merleau-Ponty como sendo essa referência metodológica, por acreditar que esse

viés de pensamento está diretamente ligado ao modo como compreendemos o

fenômeno pesquisado, a saber: numa perspectiva corporal e estética associada à

educação dos sentidos.

A Fenomenologia não é um método fechado ou algo exterior, onde o

pesquisador vai buscar respostas em algum lugar ou em algum objeto. Ao contrário,

ela é um constante recomeçar, um movimento que parte da experiência vivida e do

mundo para se pensar o fenômeno estudado.

Trata-se de uma atitude de pensamento ancorada na vida, que visa

compreender as coisas15, colocando o conhecimento como centro das experiências

vividas. Uma atitude que não propõe a explicação definitiva dos fenômenos, mas um

“chegar às coisas mesmas” pela descrição, anterior a qualquer formulação científica,

abstrata ou tradicional. O que significa considerar que, antes de qualquer realidade

objetiva, há um indivíduo que a vivencia; antes da objetividade, há um mundo

preestabelecido; e, antes de todo conhecimento, há uma vida que o fundamenta.

O foco de sua atenção é centralizado no desvelamento da experiência vivida,

interrogando-a, para tentar compreender a dimensão sensível do mundo,

procurando manter o rigor. Não o da precisão numérica, mas um caminho reflexivo

sempre aberto a novos diálogos e novos questionamentos. Para tal, ela ancora-se

na experiência vivida, penetrando na facticidade que é histórica, social e subjetiva.

Uma referência para o conhecimento revelado pelos sentidos que fundam a

existência individual e coletiva do “ser no mundo” como uma dimensão à qual ele

15 Sobre o termo coisa, Merleau-Ponty afirma: “A coisa, portanto [...] é um nó de propriedades, das quais cada uma é dada se a outra o for, um princípio de identidade. Aquilo que a coisa é, ela o é por arranjo interno, plenamente, sem hesitação, sem fissura: ou tudo ou nada. É o por si ou em si, num desdobramento exterior, que as circunstâncias permitem e não explicam. É objeto, quer dizer, expõe-se diante de nós por virtude sua, e precisamente porque está condensada em si mesma”. In: MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.158.

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não deixa de se situar, ademais, “o homem está no mundo e é no mundo que ele se

conhece” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 6).

Porém, esse relato do mundo, do tempo e do espaço vivido, não pretende

construir ou reconstruir o real, mas descrevê-lo a partir do campo perceptivo16.

Nesse caso, nosso olhar sobre o fenômeno esportivo.

Assim, sendo a percepção uma atitude corpórea, ela sempre se faz em torno

do núcleo do sensível, pela sintonia dada no corpo, pelo seu movimento fruidor e, ao

mesmo tempo, aberto, em que perceber: “[...] se opõe a imaginar, não é julgar, é

apreender um sentido imanente ao sensível antes de qualquer juízo” (MERLEAU-

PONTY, 2011, p. 63).

Tendo como pressupostos básicos a noção de percepção, a relação de

imanência entre sujeito e objeto, a facticidade e as experiências vividas, a

Fenomenologia de Merleau-Ponty põe em suspensão o mundo natural, sem romper

com o seu vínculo. Para isso, recorre a três momentos, que ocorrem de forma

inseparável: a descrição, a redução e a compreensão.

É pertinente destacarmos o papel da percepção, da consciência e do sujeito

no ato da descrição. A descrição, como apreciação, relata o percebido na

percepção, no fundo onde esta se dá, sem fazer julgamentos ou avaliações, mas

apontando para o percebido, descrevendo o sentido e a experiência como vivida

pelo sujeito, para visualizar, de modo, compreensivo, a realidade (BICUDO, 2000).

Logo, a necessidade da redução fenomenológica como artifício para que

possamos alcançar os objetivos pretendidos, ainda que não se possa esquecer que

a maior característica da redução fenomenológica é que esta nunca é completa,

especialmente, pela relação homem-mundo. Assim, sabendo que essa familiaridade

nunca será totalmente rompida, e que se deve sempre partir do princípio de que:

O maior ensinamento da redução é a impossibilidade da redução completa [...] Se fôssemos o espírito absoluto, a redução não seria problemática. Mas porque, ao contrário, nós estamos no mundo, já que o mesmo nossas reflexões têm lugar no fluxo temporal que elas procuram captar (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 10-11).

16 A experiência perceptiva é o campo primordial da relação do homem enquanto ser-no-mundo. É o que denominou de facticidade do mundo em relação às produções entalistas, na medida em que "tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. O universo da ciência é construído sobre o mundo-vivido [...]” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 3).

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A redução põe em evidência a intencionalidade da consciência voltada para o

mundo, distanciando a realidade como a concebe o senso comum, fazendo aparecer

o que é essencial no objeto e percebendo como se produz o sentido do fenômeno,

por meio da percepção e da descrição. Sendo, portanto, uma síntese unificadora e

provisória, e não a compreensão comum que usualmente se tem.

A compreensão ampliada da intencionalidade proposta por Merleau-Ponty

(2011) se distingue da intelectualização, que se limita à natureza imutável. A

intencionalidade é uma relação dialética onde surge o sentido, ela torna possível o

contato da percepção com o mundo, em que a consciência se vê no mundo agindo,

realizando operações e atribuindo significado aos objetos.

Nessa direção, para transitar nos conceitos da Fenomenologia, enfatizamos

como trajeto metodológico neste trabalho a narrativa do mundo vivido e a apreciação

estética de filmes no sentido de constituir um diálogo com destaque para as cenas

significativas a partir da ideia de complementaridade, e não de hierarquia entre a

minha experiência vivida e as produções fílmicas.

Com relação à narrativa, considero minha experiência como atleta de

handebol, cuja visibilidade nesta pesquisa pode ser dada através de fotografias de

treinos e de competições nacionais e internacionais.

Como atleta, conheci o handebol ainda na adolescência, inicialmente na

escola17. Posteriormente, as boas performances em competições regionais em nível

escolar levaram-me à seleção norte-rio-grandense, que me possibilitou participar de

competições nacionais, e a partir disso, ter a oportunidade de ser atleta profissional,

contratada pelo Clube de Regatas Vasco da Gama18 e pela Seleção Brasileira de

handebol19.

Com o retorno a Natal, sem filiação e desenvolvendo outras atividades, fiquei,

um pouco afastada das quadras. Mas, durante a realização desta pesquisa, com o

intuito de sentir e incorporar novamente as sensações vividas no mundo esportivo,

17 Instituto Sagrada Família, situada no município de Natal, no bairro do Alecrim. 18 Clube esportivo situado no município do Rio de Janeiro no qual permaneci, no período de 2000 a 2002, como atleta profissional de handebol. 19 Iniciei minha experiência na Seleção Brasileira de handebol em 1997, na categoria cadete, permanecendo até 2002, na categoria juvenil. Na seleção, participei de diversos campeonatos como torneios, sul-americano e Pan-americano, em diversas cidades do Brasil e diferentes países da América do Sul e da Europa.

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retornei ao handebol a fim de reviver situações que poderiam balizar meus

pensamentos para esta escrita.

Convidada para jogar no Centro Universitário FACEX, em 2011, voltei a atuar

em competições nacionais, desta vez, nos Jogos Universitários Brasileiros (JUBs)20.

Nessa competição, dialoguei com as demais jogadoras, anotei falas, registrei

minhas impressões diárias, fiz fotografias e fui fotografada. Essa experiência

desencadeou lembranças de fatos ocorridos em momentos anteriores vividos no

esporte. Com isso, passei a perceber a importância das situações do jogo e delimitei

minha narrativa às experiências vividas em quadra, evocadas pelas experiências

dessa competição. Parti das minhas relações construídas com os elementos que

compõem o esporte, ou seja, a quadra, os companheiros de equipe, os adversários,

o resultado final, as técnicas e as regras do jogo. Por meio desses elementos

surgiram os elementos estéticos como tempo-espaço do corpo em quadra, o olhar

no contexto esportivo, contato com o adversário, a vitória e a derrota – leveza e

peso, e, gesto técnico – a potência criativa do corpo.

Inicio narrando minhas experiências em jogo, numa perspectiva existencial,

desvelando o vivido, relevando sentimentos, e, ao mesmo tempo, construindo e

reconstruindo através do meu campo perceptual da narrativa, o esporte na minha

existencialidade como experiência estética e educativa.

Benjamin (2012), filósofo alemão, tinha a experiência como centro de sua

filosofia, e a narrativa, como um acontecimento infinito, no qual é possível refletir a

experiência humana.

Para o autor, a narrativa é uma dimensão existencial do homem, pois, de

certa maneira, o ato de contar e ouvir uma experiência envolve um eu-outro-mundo,

uma relação de intersubjetividades, dada pela articulação de um passado com o

presente, apoiado por uma situação que expressa a profusão de sentidos que

constituem o ser na sua existencialidade, isso porque, segundo Benjamin (2012, p.

230), “quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê

partilha dessa companhia” .

20 Competição realizada em 2011, na cidade de Campinas-SP, de 3 a 13 de novembro. Participaram do evento 194 instituições de ensino superior, sendo oito modalidades (atletismo, basquete, futsal, handebol, judô, natação, vôlei e xadrez), disputadas por mais de três mil atletas-estudantes vindos dos 26 estados e do Distrito Federal. Na referida competição, nos consagramos campeãs na modalidade handebol feminino da 1ª divisão.

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No estudo O narrador (2012) Benjamin examina as narrativas de Nikolai

Leskov21 e elabora importantes reflexões sobre o ato de narrar. O autor, ao refletir

alguns elementos próprios dos relatos orais presentes em certas narrativas

marcados pela violência e pelos absurdos da Primeira Guerra aponta possíveis

causas da falência da arte de narrar. Para ele, a faculdade de intercambiar

experiências começa a desaparecer com o rápido desenvolvimento do capitalismo, o

qual foi distanciando os grupos humanos, fazendo com que as gerações e as ações

de experiência entrassem em declínio. Entretanto, afirma a importância da narrativa

exatamente por ela refletir a experiência humana, ser uma forma de comunicação, e

principalmente, manter as tradições e as conservarem.

Nesse contexto, o sentido da vida dito na narração não se encerra, mas

perpassa o tempo e se reconstrói à medida em que é narrada, aproximando os

ouvintes da experiência vivida tal como ela é, contada pelo narrador. Isto porque,

ela mantém os valores e percepções presentes na experiência narrada,

conservando e desenvolvendo o sentido da vida. Em outras palavras: “O narrador

retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos

outros” (BENJAMIN, 2012, p. 217).

A partir do pensamento de Benjamin, compreende-se que a narrativa não se

interessa em transmitir, informar ou explicar as coisas, mas mergulha na vida do

narrador, retirando dela o vivido, o existencial, levando a experiência vivida a uma

maior amplitude. E isso supõe uma dimensão fenomenológica, ou seja, a

experiência do homem no mundo, imbuída pelas relações, afetos e valores de uma

vida que reflete e transcende o mundo em que ele está envolvido. Mundo aberto,

não acabado, mas profundo em sentidos, como são as histórias narradas e o

homem em sua existencialidade.

Segundo o autor,

O narrador pode: recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador infunde a sua substância mais íntima também naquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira (BENJAMIN, 2012, p. 221).

21 Escritor russo do século 19 cujas narrativas sobre os camponeses interessam a Benjamin (2012, p. 213).

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Nesse pensamento corpóreo, mutável, narrativo e descritivo, o corpo embala-

se no ritmo daquilo quer se quer conhecer, surgindo assim a compreensão em

conjunto com a interpretação:

Observa-se que a compreensão só se torna possível quando o pesquisador [...] assume o resultado da redução como um conjunto de asserções significativas para ele, pesquisador, mas que aponta para a experiência do sujeito, isto é, que aponta para a consciência que este tem do fenômeno. A esse conjunto de asserções denomina-se, aqui, unidades de significados (MARTINS, 1992, p. 60).

Desse modo, o mundo dado da consciência é sempre a intencionalidade, não

pertencendo nem ao sujeito nem ao objeto, mas como uma vinculação homem-

mundo, ou seja, um modo de pensar na constituição do objeto de conhecimento na

consciência, expresso na vida.

Para tanto, como horizonte de expressão para o estudo social do esporte,

buscamos produções cinematográficas que tratassem sobre o esporte no

Laboratório de Imagens do Corpo e da Cultura de Movimento (VER)22. Dentre tantas

possibilidades, escolhemos os filmes “Olympia”, um documentário23lançado na

Alemanha, em 1938; e “Invictus”, um longa metragem produzido nos Estados

Unidos, em 2009. Enfatizamos que a escolha por essas produções se deu

intencionalmente por elas traduzirem aproximações estreitas com a temática e com

os objetivos aqui propostos.

Mesmo sendo de séculos distintos, ambos trazem contribuições relevantes

para refletirmos o fenômeno esportivo. Isto porque, sem fugir da espetacularização e

das demandas estruturais do esporte, apontam para o seu conhecimento na

perspectiva de deslocamento do ético para o estético, ancorando-se na valoração de

referências sensíveis, lúdicas e autônomas partilhada pelo vínculo e pela

experiência corporal do atleta com o mundo esportivo.

Os filmes analisados, “Olympia”, da diretora alemã Leni Riefenstahl, que

retrata os Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, ocorridos em pleno regime nazista, e

“Invictus”, dirigido por Clint Eastwood, que retoma a história da equipe sul-africana

22 Laboratório instalado no Departamento de Educação Física da UFRN e é integrante do Grupo de Pesquisa Corpo, Fenomenologia e Movimento (ESTESIA). 23 Olympia é composto por duas partes, a saber: Parte 1 – Festa do Povo, e Parte 2 – Festa da beleza.

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de rúgbi e sua chegada à final da Copa do Mundo, no ano 1995, trazem o poder

ideológico e a dimensão ontológica do corpo como perspectiva de entrelaçamento

do pessoal com o cultural, o que possibilita, na complexidade da relação corpo e

mundo, reinterrogar o vivido.

Destacamos que nossa análise sobre os filmes encontra-se descrita nos

anexos e que, na perspectiva de termos uma visão geral películas, consideramos

em cada ficha de análise: a técnica cinematográfica (argumento geral do filme, foco

narrativo, cenário e figurino, trilha sonora, fotografia e câmera), sobre o corpo e a

cultura de movimento neles apresentados, e, ainda, as palavras-chaves

encontradas24.

Assim, realizamos uma apreciação estética das obras tendo como fator

preponderante o entrelaçamento do contexto tratado com meu mundo vivido,

destacando “cenas significativas” de cada filme nas quais fosse possível identificar

aspectos relacionados aos elementos estéticos e educativos do esporte. Assim nos

aproximamos de imagens e diálogos da nossa intencionalidade com o fenômeno

pesquisado, no sentido de que muitos aspectos poderiam ser analisados, sendo

necessário se fixar naquelas que atendessem as nossas questões de pesquisa. A

partir desse processo destacamos três temas para discussão: a sensibilidade, as

emoções e o paradoxo do jogo.

É pertinente destacarmos que nos aproximamos do conceito de “cenas

significativas” desenvolvido por Bicudo (2000) em suas pesquisas, no intuito de

compreendermos o agir com rigor em pesquisas que fazem uso de filmes como um

meio de registro. O termo foi apresentado como possibilidade metodológica nas

referências de pesquisas qualitativas. O autor apresenta a cena como um recurso

metodológico que parte do pensamento de que a compreensão da mesma possibilita

vários sentidos possíveis. As “cenas significativas” são as unidades de significado.

Logo, elas não seguem ditames impostos, marcando um encadeamento linear dos

sujeitos, não sendo, portanto, um fragmento, mas uma possibilidade de

compreensão do fenômeno, um modo de poder revelar o sentido percebido na

experiência vivida.

24 Essas fichas de análises são utilizadas pelo Laboratório de Imagens do Corpo e da Cultura de Movimento (VER) e foram gentilmente cedidas pela coordenação para a nossa pesquisa.

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As cenas transpõem as estruturas lineares de início, meio e fim, transitando

umas pelas outras, complementando-se, dialogando e se redefinindo por meio dos

sentidos e significações dados na apreciação estética, afinal, “[...], participar da

criação de um objeto estético é também criar a si mesmo, é poder retornar sempre a

um começo repleto de horizontes ilimitados e poder apreender a simbiose entre

vários fenômenos da existência” (PORPINO, 2011, p. 113).

Diante disso, os sentidos e os significados perceptíveis se definem, se

desfazem e se refazem diante dos múltiplos olhares possíveis, a partir da

experiência vivida de cada apreciador e da constante reatualização feita no

momento da apreciação.

Destarte, a experiência estética na narrativa e na apreciação fílmica se faz na

complexidade da relação entre corpo e mundo, levando em consideração a

reversibilidade dos sentidos e sua capacidade de reinterrogar o vivido.

Nessa direção, para compor esta escrita25, organizamos a seguinte estrutura

textual: a introdução e a metodologia são nomeadas, respectivamente de, entrando

em quadra e regras do jogo; os três capítulos são denominados de primeiro tempo,

intervalo e segundo tempo, em alusão à estrutura de um jogo de handebol.

No primeiro tempo – a experiência do jogar (capítulo 1), a experiência estética

do corpo no esporte tem como referência a narrativa de minha experiência e a

linguagem corpórea como elemento sensível no mundo esportivo. Neste capítulo,

pautamos nossa reflexão a partir de alguns autores como Merleau-Ponty, Calvino e

Serres, com o intuito de pensarmos sobre o sensível, os saberes e as técnicas

corporais como dados significativos para uma educação sensível, manifesta nas

criações e aprendizagens tecidas nas experiências vividas do atleta com os

elementos esportivos.

No intervalo: o jogo como devaneio (capítulo 2), fizemos um diálogo da prática

esportiva com as narrativas cinematográficas que tematizam o esporte, a saber:

“Olympia” e “Invictus”. Assim, por meio de autores como Merleau-Ponty, Benjamin,

Elias e Mauss foi possível fazer um diálogo epistemológico, entrelaçando os

conceitos de jogo, catarse-mimese e técnicas corporais a partir da apreciação

25 Nossa reflexão transita da 1ª pessoa do plural para a 1ª pessoa do singular, sobretudo, no capítulo 1. Parte em que narro acontecimentos do meu mundo vivido no esporte.

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fílmica, como conhecimentos necessários para pensarmos o esporte no contexto

social.

No segundo tempo – Esporte: a educação como jogo (capítulo 3),

apresentamos o jogo para compreensão da prática esportiva como experiência

estética e educativa. Tal compreensão se configura, no âmbito esportivo, por meio

do mover do corpo e das suas criações, aprendidos pelo educar do jogo. Um

aprender que imprime-se sobre o corpo do atleta e se constitui como conhecimento

aberto e sensível da experiência vivida no mundo. Encaminhamos a discussão a

partir de Schiller, Merleau-Ponty e Elias considerando o jogo estético, a

intencionalidade do movimento, o corpo como obra de arte e o papel social do

esporte, na perspectiva de pensá-lo como manifestação cultural sempre aberto à

criação de sentidos e possibilidades de significados.

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PrimeiroTempoA experiência do jogar

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Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento rememorado é sem limites, pois é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.

Walter Benjamin

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Neste capítulo, o foco da discussão é a prática esportiva como

potencializadora de um conhecimento sensível, que se manifesta nos processos

corporais, do corpo em movimento, revelado pela sensibilidade do atleta em quadra.

Para isso, considera-se a experiência estética do corpo no esporte, tendo

como referência o meu mundo vivido e a linguagem corpórea como campo da

experiência sensível26 no mundo esportivo. Trago cinco elementos estéticos para

essa compreensão: tempo-espaço do corpo em quadra, o olhar no contexto

esportivo, contato com o adversário, a vitória e a derrota e gesto técnico, como uma

forma de apresentar argumentos teóricos consistentes sobre eles, para

compreender o esporte por meio de uma estética que envolve o atleta e configura a

experiência educativa.

Para fundamentarmos nossa discussão, Merleau-Ponty se faz um pensador

importante, por trazer o sensível como uma realidade constitutiva do homem e do

conhecimento. Outros pensadores também foram utilizados, como Serres e Calvino,

para podermos compreender que, a profusão dos sentidos encontrados na

experiência do corpo no esporte são dimensões que lhes servem de suporte.

Para Merleau-Ponty (2011), é o sensível que afeta o homem, chega aos

sentidos e recebe destaque, revelando a impossibilidade de distinção eu-outrem, eu-

mundo, sentiente e sensível, pois, conforme o autor, “uma certa maneira de ser no

mundo que se propõe a nós de um ponto do espaço, que nosso corpo retoma e

assume se for capaz, e a sensação é literalmente uma comunhão” (MERLEAU-

PONTY, 2011, p. 286).

Ao centralizar sua reflexão na crítica às análises empiristas e intelectualistas

que dão ao corpo à ideia de transmissor de mensagens, como um sistema físico de

estímulos definidos por propriedades físico-químicas, o filósofo explica que o

sensível não é definido como um efeito imediato de um estímulo exterior, em que o

aparelho sensorial desempenha o papel da transmissão, mas uma condição humana

modelada pelo contexto do mundo, uma via dupla – condução-codificação – que,

sem separação, alude todo o corpo em sentido: “O sensível é aquilo que se

26 Em suas reflexões Merleau-Ponty (1989) busca compreender o homem a partir da sua experiência vivida, abrindo um imenso leque da relação do homem com seu corpo, com a cultura e com o mundo vivido. E, sobre isso ele esclarece que: “A partir do momento em que reconheci que minha experiência, justamente enquanto minha, abre-me para o que não é eu, que sou sensível ao mundo e ao outro, todos os seres que o pensamento objetivo colocado à distância aproximam-se singularmente de mim (MERLEAU-PONTY, 1989, p. 136).

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apreende com os sentidos, mas nós sabemos agora que este com não é

simplesmente instrumental, que o aparelho sensorial não é um condutor, que

mesmo na periferia a impressão fisiológica se encontra envolvida em relações antes

consideradas como centrais” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 32).

Na concepção de Merleau-Ponty (2011), o sensível não pode ser pensado

como respostas codificadas dos órgãos dos sentidos e a sensação um estímulo

físico que se esquiva. Pois os processos corporais entendidos como elementares,

provenientes do corpo, e superiores, vistos como mentais, mantêm relações que não

são ordenadas fisiologicamente, mas movimentos de um constante interpretar entre

o objeto e o sujeito da percepção. Logo, a qualidade do sensível e as determinações

do percebido imbricam-se, imprimindo certa atitude ao corpo e um engajamento dele

com o mundo:

A função do organismo na recepção dos estímulos é, por assim dizer, a de "conceber" uma certa forma de excitação. Portanto, o "acontecimento psicofísico" não é mais do tipo da causalidade "mundana", o cérebro torna-se o lugar de uma "enformação" que intervém antes mesmo da etapa cortical, e que embaralha, desde a entrada do sistema nervoso, as relações entre o estímulo e o organismo. A excitação é apreendida e reorganizada por funções transversais que a fazem assemelhar-se à percepção que ela vai suscitar (MERLEAU-PONTY, 2011, p.114).

O sensível excede seu significado elementar; o sensorial isolado. Por meio da

atitude corpórea o estímulo arrebata as emoções, as reações fisiológicas e todo o

ser, levando o homem a um movimento de busca, de entrega, assim como ocorre

entre o pintor e o quadro, um conjunto de relações, estímulos sensoriais que

constitui um todo:

O pintor deve ser transpassado pelo universo e não querer transpassá-lo [...] o que chamam inspiração deveria ser tomado ao pé da letra: há realmente inspiração e expiração do Ser, respiração no Ser, ação e paixão tão pouco discerníveis que não se sabe mais quem vê e quem é visto, quem pinta e quem é pintado (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 22).

Nessa perspectiva, o sensível mais do que aquilo que se vê, se ouve ou se

toca, é aquilo que, ao se ver, ouvir ou tocar, conduz ao objeto, faz ser transpassados

por ele, assim como o pintor com o quadro, o bailarino com a dança, o atleta com o

esporte.

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Por isso, considera-se pertinente para se pensar o fenômeno pesquisado o

sujeito que percebe e dá sentido ao ser-no-mundo, como fonte significativa para

refletimos a dimensão do sensível no esporte.

Convém trazer neste momento a minha experiência vivida no esporte, no seu

fazer estético, no fazer e refazer do corpo, pelos quais minha vida tem significação.

Assim, no corpo sensível das experiências vividas é que, enquanto atleta

reinstalo-me no cenário esportivo para embarcar na experiência estética do corpo no

esporte. E, retornando à minha memória, busco expressar as palavras silenciadas e

os sentidos que atravessam as múltiplas facetas e as inúmeras significações que

nele subjazem.

Retomar essa experiência estética foi um meio de acessar um mundo de

imagens, uma infinidade de lembranças enraizadas no corpo, uma transfiguração

temporal em que, misturada pelo presente e pelo passado, fui transportada a um

porvir de cores, de sons, e de acontecimentos que estão penetrados nas esferas do

ontológico e na expressividade do meu ser.

Olhar minhas fotografias no

esporte possibilitou reinstalar-me

na experiência esportiva, revivê-la

no meu corpo quando jogo,

interrogando-a novamente para

poder acessar elementos contidos

em sua estética. Abrigado por

outros corpos, pelo tecido do

universo que lhe é constituído e

pelo mundo esportivo, meu corpo

vai se configurando por intermédio

dessa experiência, uma vida e um

mundo.

Ao transportar-me através

dessas imagens, encontro-me

aberta ao esporte e às sutilezas

por ele reveladas. Um mundo

atado ao meu corpo. Sentidos Fotografia 01: Infinidade de lembranças Fonte: Arquivo da autora (1998)

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entrelaçados que foram impressos em minha vida. Afinal, a experiência vivida

imprime sentidos e é instituída por essa relação, permitindo ao vivido uma

significação no mundo.

Há um verdadeiro entrelaçamento do meu ser com o mundo esportivo, o qual

se relaciona com a minha forma de compreender as coisas e de me envolver com

elas. Isto porque, a compreensão é eminentemente corporal, e se dá a partir das

experiências vividas, do contato do corpo, com os outros e também com o mundo

(MERLEAU-PONTY, 2011).

O esporte sempre despertou meus sentidos e minhas emoções. A princípio

irrefletidos, mas mesmo assim, na medida em que eu ia me envolvendo, as

sensações e tudo que o envolvia criavam laços em mim cada vez mais nítidos, mais

fortes e existenciais. Ao longo de dezenove anos como atleta, as sensações

reverberadas, o sensível e o emocional experimentados através do esporte, são

sentidos que sempre tiveram fortes significações em minha existência. Uma

existência em que o esporte não aparece como um objeto distante, mas como

mundo em que habito, pautado pela fluidez do movimento do esporte e da vida.

Vivenciar o esporte como atleta é poder senti-lo e compreendê-lo com um

sentido singular, que se manifesta no corpo. E, para nós atletas, ele nem sempre

possui o mesmo significado que o demando ou o padronizado pela mídia, pela

política ou pela sociedade. Isto porque, vivê-lo é habitá-lo, descobri-lo através de

suas nuances, suas formas, seus sons e suas faces, é projetar horizontes que estão

ancorados no corpo e em seus movimentos, os quais se fundem, adquirindo um

sentido existencial, uma abertura que: “[...] supõe que o mundo seja e permaneça

horizonte, não porque minha visão o faça recuar alem dela mesma, mas porque de

alguma maneira, aquele que vê pertence-lhe e esta nele instalado” (MERLEAU-

PONTY, 2009, p. 101).

Desse modo, experienciar o handebol intensamente, em treinos, competições,

viagens, vitórias, derrotas, gritos, alegrias, tristezas, dores e sacrifícios diversos, nos

mistos de sentimentos e acontecimentos proporcionados por ele, tornou-o

indispensável em minha vida, sendo ainda uma referência de sucesso pessoal e de

formação educacional.

O esporte mudou minha existência e me fez sentir emoções que eu jamais

senti em outras experiências. Foi nas quadras que descobri, por exemplo, que

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minhas sensações mais íntimas eram reveladas, ascendendo e reascendendo

muitas vezes, o prazer e a dor, a alegria e a tristeza, a ansiedade e a serenidade, a

emoção e a frieza, o sorriso e o choro, num vínculo paradoxal.

Na prática esportiva os sentidos são sempre provisórios e inacabados, tendo

no corpo sua abertura para o sensível. A experiência estética possibilitada pela

presença corporal do atleta transpõe qualquer determinação ou definição prévia para

ele, constituindo-se, portanto, em um mesmo contexto, uma experiência sempre

renovada. “É a ciência do corpo humano que nos ensina, posteriormente, a distinguir

nossos sentidos. A coisa vivida não é reconhecida ou construída a partir dos dados

dos sentidos, mas se oferece desde o início como centro de onde estes se irradiam”

(MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 130).

É a partir das experiências vividas que o homem aprende sobre si e sobre

seus sentidos, aprendendo, ao mesmo tempo, o mundo através deles. Os sentidos

do corpo não se realizam por determinações externas entre eles, mas se faz

espontaneamente entre os elementos envolvidos, quando algo é significativo, os

sentidos são aguçados e a existência humana é transformada.

Pelas sensações do corpo vivo o esporte e, em seus movimentos, entrego-me

ao mundo e ao universo do sensível. Essa experiência ocorre no corpo, na sua

relação com o mundo e com o outro.

Na perspectiva do filósofo Merleau-Ponty (2004b), o sujeito da experiência

estética é um sujeito que é corpo, que escreve sua história nele e por meio dele.

Logo, faz a sua história por meio de tudo aquilo que vive e sente. O corpo que se

movimenta no esporte, se refaz a cada instante, revelando, a cada experiência

vivida, um novo mundo de sentidos e significados. Assim, compreendo-o como

fenômeno em que a experiência estética é vivida. Em cada sensação, expressão,

gesto ou comunicação vivida nele, adquiro e produzo saberes que dão sentido à

minha existência. Não por representação ou por determinação, mas pela

experimentação sensível do corpo, pelo movimento por vezes indeterminado, pelo

gesto imprevisível e pelo fazer e refazer de cada experiência vivida.

Nesse pensamento, compreendo que o esporte disponibiliza uma profundeza

de sentidos, presente nos corpos dos atletas, que nos possibilita compreendê-lo a

partir de sua relação com a estética e a educação, permitidas pelas diversas

significações vividas no jogar.

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Tempo-espaço do corpo em quadra

Todos os esportes têm dimensões específicas e um tempo próprio a ser

seguido. A constatação parece óbvia e de fato é. Há um tempo e um espaço para

que ele aconteça. As linhas delimitam a superfície a ser utilizada e o cronômetro

indica o seu andamento. São elementos fixos, controlados por um conjunto de

árbitros27 especializados para atuar e manter toda “ordem” e “forma” do seu

decorrer.

Em alguns esportes esses elementos são relativamente “curtos” e

“pequenos”, como no caso do atletismo e da natação, em outros, relativamente

“longos” e “grandes”, como nos esportes coletivos e automobilísticos, mas todos

marcados e regidos por delimitações e temporalidades próprias.

No caso do handebol, a estrutura da partida revela na existência dessa

organização interna uma duração determinada para a partida e uma limitação para

os espaços que serão preenchidos.

A partida é realizada no interior de uma quadra retangular previamente

delimitada. Oficialmente, suas dimensões são estas: 40 metros de comprimento e 20

metros de largura, existindo, em cada extremidade, uma área de gol, que

compreende, na sua amplitude máxima, 6 metros a partir da linha de fundo. Nesse

espaço, chamado a área do gol, a princípio só pode ser utilizada pelos goleiros,

sendo punidos os demais jogadores que a invadirem.

As partidas são realizadas em um período de tempo relativamente longo.

Uma partida oficial dura 1 hora, sendo esta dividida em dois tempos iguais de 30

minutos, com um intervalo de 10 minutos entre eles.

Nesse esporte é possível ao atleta viver tempos diferentes em um mesmo

espaço: o do próprio ato da partida que, conforme dito, divide-se em dois momentos,

e é onde desencadeiam-se as jogadas e criam-se as movimentações; e o intervalo,

27 Cada esporte tem um conjunto de arbitragem própria. No handebol, além dos dois árbitros que atuam diretamente no jogo, controlando as ações que possam fugir das regras, existem dois mesários na lateral da quadra, o secretário e o cronometrista. O secretário tem como função fazer a súmula da partida, computando todas as estatísticas do jogo (cartões, gols, faltas etc.). Já o cronometrista, que possui um cronômetro, é quem controla o tempo da partida, interrompendo-o todas as vezes que os árbitros ou técnicos (pedido de tempo) solicitarem.

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compreendido como período de descanso, de troca de jogadores e de possíveis

orientações técnicas.

São tempos distintos de um mesmo cenário que se comunicam. Logo, pode-

se considerar os movimentos realizados como uma inter-relação dos elementos da

partida (espaço, tempo, bola, quadra e jogadores), visto que eles se ligam ao tempo

como dependente direto do que é acionado no corpo. Ou seja, não há como separar,

no esporte, tempo-espaço e corpo. Posto que, ambos compõem as ações dos

atletas em quadra e a forma como eles habitam este lugar.

Percebo que esses fatores formam uma atmosfera em que habito desde os

meus 11 anos. O corpo já não é o mesmo desse tempo. A agilidade parece estar

reduzida, os arremessos gradativamente menos potentes, as dores multiplicaram-se

e as fragilidades técnicas/táticas/físicas estão mais aparentes. Entretanto, a

experiência que habita o corpo ao longo desses anos ainda suplanta proezas como

as dos momentos áureos da adolescência, recuperando percepções somente

sentidas em quadra, as quais justificam a minha permanência no esporte para me

sentir mais feliz, mais viva e mais humana, semelhante ao que diz Merleau-Ponty

(2011, p. 321): “Meu corpo toma posse do tempo [...] ele faz o tempo em lugar de

padecê-lo”.

Por isso, não experiencio o tempo e o espaço de modo cronológico e físico

simplesmente. Vivo-os no fluxo das minhas ações e vou habitando pela extensão do

meu corpo, experiências que ele vivencia e que ele mesmo mede.

Desse modo, meus movimentos não se configuram somente como um

deslocamento no tempo e no espaço, mas é um mover do próprio corpo, afinado a

eles, pela temporalidade e espacialidade habitada em mim, assim como reconhece o

filósofo: “[...] nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço”

(MERLEAU-PONTY, 2011, p. 205)

Nesse pensamento, quando habito os espaços da quadra, meu corpo lhe

assume e galga, em cada movimento, um tempo-espaço que lhe é peculiar,

antecedido pela potência criadora de viver e coexistir com esse mundo.

Essas ações acionam meu corpo, mobilizam os meus sentidos e me fazem

andar num fluir técnico sempre imprevisível e auto-organizado pela vivência espaço-

temporal que tenho de mim.

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Fotografia 02: Tempo-espaço do corpo Fonte: http://www.cbdu.org.br (2011)

Por meio disso, vou engajando o corpo e colocando em ação sua força

criadora, buscando novos acordos para viver a fixação do tempo e do espaço como

condição existencial. Uma maneira de existir que certamente aprendi com as

limitações que me foram impostas, mas que não foram suficientes para me indicar

os caminhos da criação imediata do jogo. Razão pela qual busco nas interseções

dos gestos, dos movimentos e dos encontros ali vividos, espaço e tempo para vivê-

los, do mesmo modo como afirma Gil (2005) acerca do espaço paradoxal28: “O

esportista prolonga o espaço que rodeia a sua pele, tece com as barras, os tapetes,

ou simplesmente com o solo que pisa, relações de conivência tão íntimas como as

que têm com o seu corpo” (GIL, 2005, p. 47).

Para ele, na experiência do

movimento há um prolongamento

ou uma ampliação do espaço que

rodeia o corpo, constituindo a

ocupação de um novo espaço: o

espaço do corpo.

Tal proposição corrobora

aquilo que vivo quando me movo

pelas quadras e nelas vou criando,

entre as ordens fixas e lógicas do

handebol, novos referentes para

viver o tempo-espaço que pertence

ao meu próprio corpo.

Nesse cenário, entre o

parecer do jogo e os meus

movimentos, vou desenhando

caminhos de ação e dirigindo meu

corpo ao alvo pretendido. Em

função dessa capacidade motriz,

preencho pequenos e grandes

espaços, projeto-me para aqui e para acolá, em encadeamentos temporais

28 “Espaço paradoxal: diferente do espaço objetivo, não esta separado dele. Pelo contrário, imbrica-se nele totalmente, a ponto de não ser mais possível distingui-lo deste espaço” (GIL, 2005, p. 47).

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sucessivos, causando a impressão de que meu movimento não tem espaço nem

tempo definido (Fotografia 02).

Com o corpo em trânsito sigo! Não há inércia! Se ando ou se paro, se vou ou

se volto, não sei. Os sentidos me guiam e o corpo me leva a uma nova condição de

existência ao transitar por suas próprias direções.

É um outro espaço, é um outro tempo. O movimento não tem ordem e a

velocidade parece diminuída. Retorcido e sem direção, opõe as características do

jogo e vai compondo sua ação, “dobra-se, curva-se, adapta-se, gozando de pelo

menos trezentos graus de liberdade, desenha dos pés à cabeça ou à ponta dos

dedos um caminho variável e complexo entre as coisas do mundo” (SERRES, 2001,

p. 76).

Esse é o tempo e o espaço que habita em mim no universo do esporte e que

faz do esporte a expansão do meu ser no mundo. Logo, não é a celeridade das

passadas ou a localização do corpo que compõe as minhas ações, mas o tempo-

espaço que em mim se projeta e faz dos meus movimentos uma expressão das

experiências ali vividas.

Mesmo que a ênfase da movimentação esteja visivelmente coordenada com o

tempo-espaço do jogo, são eles que se projetam em meu corpo para conduzirem

meus gestos e se misturarem a mim. E isto expressa, como forma elementar da

existência, a indissociabilidade entre tempo e espaço. O que significa entender o

espaço como o lócus onde se vivificam as relações humanas, como parte da

existência, o mundo de onde o corpo compõe o seu fundamento, “pode-se dizer ao

pé da letra que o espaço se sabe a si mesmo através do meu corpo” (MERLEAU-

PONTY, 1980, p. 437).

Para Merleau-Ponty (2011), o corpo é o espaço, é o tempo, é o movimento, é

o lugar. Ainda mais quando ele age e reage no mundo, espaço e tempo não são

pontos adjacentes entre si, nem uma relação sintética da consciência. Os

movimentos dilatam-se com eles, e entre o que está dado e o vir a ser, o

determinado e o indeterminado, o caos e a forma, o corpo pulsa e o gesto

simplesmente flui.

Portanto, se toda experiência é corporal, ela é por definição uma experiência

espacial. O que permite afirmar que corpo e espaço não são elementos separados,

mas se configuram como único ser, enraizados na existência, um corpo no mundo.

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Tempo e espaço não podem ser pensados somente por princípios físicos,

cronológicos ou mecânicos, como se fossem dados dissociados do corpo, mas como

próprios da existência e do movimento humano. Com isso, os atletas se entregam às

criações, sendo absorvidos por essas noções, sem perder de vista o contexto da

partida. Afinal, é em meio ao tempo e ao espaço que os atletas correm, gerenciam a

posse de bola, sabem o momento oportuno para saltar, arremessar e realizar o gol.

E essa lógica, embora pareça, não é imediata, mas é dada no nível da própria ação,

desencadeada no amálgama do corpo, sem cálculo nem previsão.

É a partir da espacialidade e do tempo que o atleta é no mundo esportivo de

modo encarnado. Sua experiência funda-se em uma perspectiva espaço-temporal e

na relação com os elementos da partida, aos quais ele não tem acesso em sua

totalidade, posto ser aberto e inacabado, tratando-se de uma relação marcada pelo

sentir do corpo em seus movimentos.

Segundo Caminha (2008), os movimentos do corpo são determinantes na

amplitude do raio de ação da capacidade perceptiva do homem. Esses movimentos

lhe dão o poder de desabrochar como ser-no-mundo e nele situar-se, em suas

palavras: “O mundo toma forma visível ou fenomenaliza-se de uma maneira

dinâmica porque a motricidade de nosso corpo nos permite galgar o espaço”

(CAMINHA, 2008, p. 340).

Nesse contexto, o corpo não se reduz ao espaço, mas seu movimento é meio

de percepção do espaço, do tempo e da ação, permitindo o ir e vir do corpo ao

encontro do mundo.

Desse modo, não há temporalidade e espacialidade sem o corpo, sem a

presença e a experiência do homem no mundo, em uma perspectiva de vivência

deles, assumida pela percepção e pela motricidade, ou seja, pela experiência vivida.

Tempo e espaço são construídos nessa relação, quando o corpo habitado e

abarcado por eles enraíza seus sentidos a fim de fazer brotar, no lugar de

experiência, um lugar de conhecimento, pois, “não é apenas a experiência do meu

corpo, mais ainda uma experiência de meu corpo no mundo e ele que dá um sentido

motor as ordens verbais” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 196).

É nessa existência encarnada, no homem em situação no mundo, que a

experiência do atleta se liga aos espaços e tempos da partida como elementos

vividos pelo corpo, em sua manifestação ontológica de existir.

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O atleta suspende o tempo e o espaço que lhe fora destinado. E, o que para

ele são “horas” de experiência, para o ato da partida são “segundos” de um dado

movimento. Nuances potencializadas pela capacidade espaço-temporal do corpo,

em sua infinitude de brincar com eles e de usá-los, sem negar os regulamentos

impostos.

O tempo cronológico dado aos atletas e as linhas das áreas demarcadas não

teriam função se não fossem vividos. E é nessa vivência do tempo-espaço que as

experiências deles são construídas em quadra. Um fluxo que não podem controlar,

mas que reinventam pelo sentir do corpo.

Como esclarece Merleau-Ponty (2011), o tempo funde-se através do homem,

em qualquer coisa que ele faça. A propriedade dessa temporalização aparece na

espontaneidade das ações, quando nele o corpo encontra recursos contra ele

mesmo, abrindo espaços para outros feitos: “Ele me arranca daquilo que eu ia ser,

mas ao mesmo tempo me dá o meio de apreender-me à distância e de realizar-me

enquanto eu” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 572).

O corpo nessa perspectiva ganha destaque, pertence à criação, torna-se leve,

flexível, encanta e se encanta, experiencia outros modos de existir que pervertem os

padrões de um corpo domesticado pelo esporte.

A prática esportiva acontece num tempo-espaço próprio do corpo que não é

fechado num sentido determinando e único. O corpo transita pelos conceitos e vai

criando diferentes durações e projeções, haja vista:

Todo o movimento do corpo visto do interior supõe um espaço particular [...] ao mesmo tempo, projeta-se sobre este espaço não um corpo ou membros em movimento, mas o próprio movimento que abriu o espaço e se confunde com o movimento do exterior visto do interior: daqui resultam linhas ou planos em movimento (GIL, 2005, p. 133).

A prática esportiva aciona esse espaço, propiciando de algum modo um

campo privilegiado de exploração do corpo ao jogar, por meios dos sentidos

situados na experimentação dos gestos.

O tempo e o espaço nesse sentido são vividos pelo corpo, criados por ele na

contingência dos seus acontecimentos. Corpo este que resolve a si mesmo, muda,

faz e se refaz, descerrando uma pluralidade de perspectivas, de vivência espaço-

temporal por meio da sensibilidade posta no jogo.

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Por meio disso, é possível compreender que o corpo do atleta subverte os

ditos, amplifica modos de fazer e de sentir, quando engajado nas quadras, nos

campos ou nas piscinas, experimenta, por meio da abertura das estruturas

processuais do esporte, autonomia para viver tempo-espaço como o entrelaçamento

entre o mundo e o corpo.

Ao adentrar nesse tempo-espaço vivido do corpo, certamente não podemos

negar que ele está situado em um modo físico e cronológico socialmente localizável.

Eles atendem a um regime disciplinar, com indicações que vêm se configurando ao

longo dos processos sócio-históricos, cada vez mais investidos por determinações

sociais, culturais, científicas e políticas. Um tempo e um espaço mecânico, marcado

por regularidades que repetem o agora pontual, racionalmente transcorrido,

objetivado por suas marchas e repetições numéricas.

Porém, as relações espaço-temporais conforme dito, não se reduzem às

orientações mecânicas, elas são determinados pelo tipo de ação envolvida, as quais

dependem de experiências prévias e do conhecimento simultâneo do espaço e do

próprio corpo.

Assim, como uma trama tecida no corpo, o vivido no esporte transcorre a

existência, coagulando no marco de um sistema, possibilidades de movimento. Pois,

o corpo, não obstante a cronologia e delimitação estabelecidas, consegue

experienciar um novo tempo e um novo espaço ao estar envolvido no enlace

estético da existência da partida e da vida.

Ora, não se trata de um sistema espaço-temporal a priori, sem marcação ou

direções distinguíveis, mas um espaço-tempo aberto às condições dos movimentos

e das possibilidades que compõem os lugares experienciados pelo corpo. E isso

acontece no mundo e nas relações intersubjetivas, em que o homem, mergulhado

no universo do sensível, dilata-se, alterando a sua percepção. Os limites impostos

vão se diluindo, se distribuindo pela superfície do corpo e simultaneamente

adentrando nas esferas da existência, tornando o corpo presente, vivo e aberto à

experimentação de novos contornos e novas temporalizações.

Conectado ao mundo, o homem vai criando movimentos e sentidos

existenciais, um modo distendido pelo esporte, levado para a vida habitual. Um

revelar ativo e atuante do corpo imbricado no mundo, que move-se em razão dos

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entrecruzamentos existenciais, sociais e históricos que envolvem o tempo e o

espaço não como dimensões, mas como orientações significativas da vida.

O movimento do corpo abre o espaço, acomodando o movimento ao espaço

aberto, uma feitura fendida pelo enraizamento do corpo no mundo, síntese assumida

pela percepção e pela motricidade, ou seja, pela experiência vivida, original e

originária, em que “a amplitude dessa apreensão mede a amplitude de minha

existência; [...] o espaço e o tempo que habito de todos os lados têm horizontes

indeterminados [...]” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 195).

Nesse pensamento, como aponta o autor, em referências intermitentes o

movimento vivido é vislumbrado como devedor originário da vida, ou seja, a

temporalização vital se mostra na novidade da ação latente, reestruturada nos

horizontes sedimentados e garantidos pelo mundo. Uma peculiar reorganização do

movimento, em outras palavras,

Uma “espontaneidade” adquirida de uma vez por todas que “se perpetua no ser em virtude do adquirido”, eis o tempo e eis exatamente a subjetividade. Eis o tempo, já que um tempo que não tivesse suas raízes em um presente e, através disso, em um passado não seria mais tempo, mas eternidade (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 573).

Nesse sentido, o espaço-tempo é apreendido como num correlato

indissociável de transformação e de construção de um sujeito encarnado em suas

experiências. Um movimento simultâneo do fazer, que é permitido no esporte e

elaborado diariamente pelos caminhos das relações singulares e múltiplas, fluidas e

atemporais, que se auto-organizam no próprio corpo.

Esse tempo-espaço vivido abriga um corpo mutante, que se metamorfoseia

nas demarcações da quadra e também da vida. Ondulações e modificações

inconclusas, sem certezas, sem seguranças. Um fluxo contínuo de intensidade, de

mobilidade e de projeções nascidas por todas as saliências e reentrâncias do corpo

que não cessam de traçar as suas próprias vias.

O tempo da partida constrói uma outra temporalidade, medida do corpo. E o

esporte aposta nesse corpo que se liberta da demarcação de uma territorialidade

fixa, que não se organiza a partir de estratificações numéricas ou justaposições

estáticas. Um corpo que muda de gradiente, que perde a localização imposta, que

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modifica planos, curvas e projeções em função dos movimentos que vai realizando e

descobrindo continuamente.

A experiência do jogar, portanto, aponta para o delineamento desse corpo e

desses novos acordos que rompem com a estabilidade e com a fixação. Pois seu

estado é de criação, conexões autênticas, atualizadas em cada acontecimento da

partida e da vida. Afinal, não se pode esquecer que o movimento é inerente à

dinâmica do viver. Um modo ativo que o esporte efetua pelos territórios do corpo,

engajando entre os sentidos e a inteligência, visão e tato, interioridade e

exterioridade, movimentos de afirmação e leitura do corpo no mundo.

O olhar no contexto esportivo

O olhar é uma ação que está presente em todas as fases do contexto

esportivo. É ele quem determina as ações e as condutas técnicas e táticas dos

jogadores em quadra.

No caso do handebol, a complexidade da partida solicita do atleta um olhar

aguçado para perceber as atitudes dos adversários, para compreender a partida e,

simultaneamente, para conduzir os seus próprios movimentos, os quais se

apresentam em três condições básicas: o tempo29, o espaço30, e a visão. O tempo

para se tomar uma decisão de forma muito rápida, o espaço como orientação da

situação da partida e a visão como percepção e interação com o entorno.

De acordo com Silva e Carvalho (2007), em uma partida de handebol os

atletas correspondem com conhecimento tático e técnico, com o engajamento

corporal e ao mesmo tempo com a visão que têm do todo.

Nesse contexto, a forma de perceber a partida e elaborar juntamente com

isso estratégias para o ataque ou para a defesa não depende somente do potencial

individual e coletivo dos jogadores, mas, junto a isso, do campo visual atado aos

movimentos do corpo.

29 O tempo aqui mencionado refere-se ao tempo cronológico do jogo, à velocidade de decisão do jogador em quadra. 30 Refiro-me às demarcações e às ocupações dos jogadores em quadra.

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O atleta que recebe a bola no engajamento31, por exemplo, precisa olhar

rápido para saber onde está posicionado, a qual distância está do gol, onde se

encontra o adversário mais próximo e decidir se é possível o passe, o drible, ou

mesmo o arremesso.

Quando ele adquire uma certa experiência ao longo de sua trajetória

esportiva, o saber latente adquirido pelo corpo lhe dirige à situação requerida de

maneira rápida e precisa. Não é mais necessário olhar fixamente para a bola, o

posicionamento dos adversários, nem a cor dos uniformes daqueles que o rodeiam.

Depois de alguns anos, basta sentir o jogo, ver com um só olhar tudo e todos ao

mesmo tempo.

Nessa direção, tomo meu olhar no jogo como um sistema que me abre ao

mundo esportivo, ao pensamento e ao sensível. Não como um sentido humano, mas

que isso, um movimento entrelaçado ao meu corpo, semelhante ao que diz Merleau-

Ponty (2004b, p. 20) sobre o mundo visível do pintor: “O pintor, qualquer que seja,

enquanto pinta, pratica uma teoria mágica da visão [...] Nada muda se ela não pinta

a partir do motivo: ele pinta, em todo caso, porque viu, porque o mundo, ao menos

uma vez, gravou dentro dele as cifras do visível”.

Nessa compreensão, o olhar aparece como guia do homem no mundo, como

sistema que impulsiona o movimento do corpo ao objeto visto.

A exemplo de uma partida, quando olho, não vejo simplesmente as coisas e

minhas adversárias. O ato de ver se manifesta como potência que orienta e

movimenta minhas ações em jogo, um ato em si mesmo, em consonância com o

corpo, assim como declara Merleau-Ponty (2011, p. 108):

Considero meu corpo, que é meu ponto de vista sobre o mundo, como um dos objetos desse mundo. A consciência que eu tinha de meu olhar como meio de conhecer, recalco-a e trato meus olhos como fragmentos de matéria. Desde então, eles tomam lugar no mesmo espaço objetivo em que procuro situar o objeto exterior, e acredito engendrar a perspectiva percebida pela projeção dos objetos em minha retina.

31 É um tipo de movimentação ofensiva do handebol que se baseia na ideia da inferioridade e da superioridade numérica, ou seja, os jogadores se movimentam e passam a bola rapidamente, confundindo os adversários, infiltrando os espaços defensivos e deixando um jogador livre para o arremesso.

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Desse modo, a experiência vivida no esporte é a experiência do meu olhar,

uma visibilidade convertida em gestos, pensamentos em ação, que diz sobre o meu

pensar e sobre meu agir em quadra.

Vendo e sendo tocada por ela, habito-a pelo olho, reconheço seus espaços e

crio o meu próprio tempo, de forma que meu corpo mergulhado em sentidos vai

caminhando pelos detalhes do visível, compondo com ele cadências sucessivas que

não param um só momento.

Na Fotografia 03, durante uma marcação individual32, é possível vislumbrar

esse olhar habitado pelo corpo em minha expressão revelada. Situada ali, percebo o

jogo com o corpo. A visão se junta ao pensamento e ele retorna em movimentos

inscritos na visibilidade. Uma constituição conjunta que projeta meu corpo para

frente e para trás, em encadeamentos lentos e contínuos. Pés no solo e também no

ar; cabeça erguida, olhar fixo que não se prende ao território que a adversária

aparentemente impõe, mas que parece tenso diante daquilo que posso ou não fazer,

causando a impressão de que ora o corpo se move, ora ele não se desloca no

espaço, ora eu vejo, ora sou vista.

32 A marcação individual é um sistema defensivo do handebol. Ela é utilizada em diversas situações, entre elas, quando a defesa tenta impedir a ação conjunta de um jogador com os demais no ataque, tendo um jogador específico para lhe marcar o jogo inteiro.

Fotografia 03: O olhar que habita o jogo Fonte: http://www.cbdu.org.br (2011)

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Quando olho a adversária, esse olhar parece expressar um pensamento em

ação, um movimento aparentemente imóvel, e um mundo atado ao meu, que me

envolve e também é envolvido em mim. Uma percepção que se realiza em constante

comunicação entre corpo e mundo. Uma visão que se faz sobre um contexto do

jogo, no qual estão presentes os horizontes que o movimento do olhar tornará

atuais, pois,

Percebo comportamentos imersos no mesmo mundo que eu, porque o mundo que percebo arrasta ainda consigo a minha corporeidade, porque minha percepção é impacto do mundo sobre mim e influência dos meus gestos sobre ele, de modo que, entre as coisas visadas pelos gestos do adormecido e esses gestos mesmos, na medida em que ambos fazem parte do meu campo, há não apenas a relação exterior de um objeto com um objeto, mas do mundo comigo, impacto, como de mim com o mundo, conquista (MERLEAU- PONTY, 2002, p. 171).

Na entrega desse olhar, o sensível significante se revela na visão,

manifestando meu Ser no mundo, não por ele estar diante de meus olhos, mas por

eu estar nele, vivendo-o por dentro, percebendo suas significações e atribuindo-lhes

sentido à vida.

No ato de ver, emprego meu corpo sem intermediações, vou dando

visibilidade a esse mundo que me vem, revelando suas propriedades sensíveis e

manifestando-lhe continuamente, nos feitos e refeitos da minha experiência

perceptiva, condicionada ao corpo, a minha relação com ele.

Nesse diálogo recíproco entre o corpo e visão, vou percebendo o jogo e me

entrelaço com ele, mesmo sem saber como eles se processam. O visível se une ao

corpo, projeta suas significações e dá sentido à minha vida. Em outras palavras:

“Basta que eu veja [...] para saber juntar-me a ela e atingi-la, mesmo se não sei

como isso se produz na máquina nervosa. Meu corpo móvel conta com o mundo

visível, faz parte dele, e por isso posso dirigi-lo no visível”. (MERLEAU-PONTY,

2004b, p. 16).

O visível incita, transpassa as superfícies do meu corpo, penetrando-o nas

coisas e irradiando de forma profunda o sensível em si. Um olhar ora atento, ora

difuso, que prioriza os detalhes, mas também o todo; que aproxima e também

afasta; que permite imaginar, mas também criar; que desvia, e também aproxima;

que olha o jogo, e também o engloba.

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O olho vê o mundo, e o que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele mesmo, e, na palheta, a cor que o quadro aguarda; e, uma vez feito, vê o quadro que responde a todas essas faltas, e vê os quadros dos outros, as respostas outras a outras faltas (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 19).

Desse modo, ao falar do olho como metáfora do corpo na pintura, esse autor

afirma que a experiência da visão e do pensamento são vivências do corpo, que se

faz na relação entre o homem e o mundo, atos de duas facetas de um corpo visível

e do poder vidente que o habita, um entrelaçamento sensível que tem como lócus a

experiência vivida.

Um visível envolvido pelo movimento, o qual instiga a visão fazendo com que

ela mova-se com ele, entrecruzando os dois lados da visibilidade, tornando o atleta

vidente e visível, observante e observado, igual ao que disse o pintor Paul Klee

acerca experiência do olhar na pintura: “numa floresta, várias vezes senti que não

era eu que olhava a floresta. Certos dias, senti que eram as árvores que me

olhavam, que me falavam [...] pinto talvez para surgir” (MERLEAU-PONTY, 2004b, p.

22).

Se o olho para Merleau-Ponty é aquilo que foi comovido por um certo impacto

do mundo, meu olhar interage com as coisas, com os outros e com o mundo,

despertando nas relações vividas movimentos simultâneos de pensamento e ação,

abertura e interrogação.

Um movimento inquiridor na possessão do ver, em que o mundo se mostra, o

corpo se aproxima, ao mesmo tempo em que se abre para ele como uma

consonância entre o vê/visto com o corpo que lhes acolhe.

Essa ideia do corpo vidente que penetra o mundo pela visão é apresentada

pelo autor supracitado, como um enigma fundante que consiste no fato de meu

corpo ser “[...] ao mesmo tempo, vidente e visível [...] que olha todas as coisas e

também se olha” (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 17).

Esse mundo percebido expresso por Merleau-Ponty (2004b) através da

pintura apresenta uma forma de olhar revelada pelos sentidos da experiência vivida,

que sobrepõe o ato de ver ao puro ato de pensar.

Em O Visível e o Invisível (2009), com a crítica ao enigma da fé perceptiva, é

possível compreender esse movimento do olhar não como órgão da visão, mas

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como percepção ancorada no corpo, uma atitude sensível que liga o homem ao

mundo.

Assim, o olhar não se reduz a uma visão estática. O olho envolve o

movimento. Pela movimentação da pupila o visível é alcançado, juntando aquele que

vê com o que é visto, uma forma harmônica do corpo com as coisas que se veem.

Posto que, não há oposição entre o ver e o visto. Na espessura entre eles acontece

a comunicação sem que nenhuma palavra seja soada, fazendo das coisas vistas um

elo do visível com o invisível, um diálogo sensível que celebra a existência e instiga

o movimento do próprio corpo.

Nessa direção, a visão de quem joga tateia os espaços da quadra se expõem

ao olhar do outro e as sensações daquilo que é visto. Uma via dupla que liga um

jogador ao outro, a mão à bola, a visão ao movimento, trazendo ao corpo o enigma

de ser vidente e visível.

Um paradoxo do corpo, um sistema de trocas com o mundo, em que este

interroga o olhar, torna presente o ausente, e estabelece uma interação entre poder

corporal de ver e sua ação de mover-se com o visto.

Como afirma Merleau-Ponty (2004b), através do olhar o homem interroga as

coisas e compreende o mundo, não por aquilo que está diante de seus olhos, mas

pelo seu envolvimento com ele, vivendo-o e inspecionando-o com sua visão. Um

entrelaçado que guia o movimento, que anuncia sentidos ao corpo e faz com que

ele, com seus sentidos, habite a visão.

Assim, olhar no esporte, antes de ser função é comunicação com esse

mundo, é abertura do corpo que assume nessa correspondência determinados

comportamentos diante das coisas vistas, afinal, “mover o corpo é visar às coisas

através dele, é deixá-lo corresponder à sua solicitação, que se exerce sobre ele sem

nenhuma representação” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 193).

Talvez por esse motivo, o jogar seja uma aprendizagem atribuída ao

entrelaçamento entre movimento e visão. Um olhar que suscita o movimento, e um

movimento que se funde com a visão.

Por meio disso, os gestos vão surgindo. Olhando e fazendo, movemos o

corpo ao visível requerido, burlamos os adversários, ocupamos os espaços e

realizamos o gol. O corpo projeta a visão e ela interpreta a partida, sem

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distanciamento e modelos pré-dados, um olhar-pensar em contínuo exercício nesse

mundo.

O atleta é, por assim dizer, alguém que consegue recriar o próprio esporte.

Com suas técnicas trançadas ao corpo, ele apreende e converte esse mundo em

cenários seus, apresentando aquilo que captou pela percepção estética, centrada na

imersão do mundo. Isto porque, semelhante ao artista, ele busca apresentar: “[...] o

mundo, convertê-lo inteiramente em espetáculo, fazer ver como ele nos toca. [...]”

(MERLEAU-PONTY, 2004b. p. 131-135).

O esporte é pensando e criado pelo olhar de quem joga, pela sensibilidade

que se impõe ao corpo quando este, alojado pelas motivações vividas, forma um

solo sensível entre a visibilidade e vidência devido à sua mobilidade.

E nessa operação, o atleta vive o esporte, torna-o visível a si e aos outros,

habitando as coisas sem conhecê-las, movendo-se movente, vê se vendo, abrindo-

se ao mundo e criando nessa relação uma nova significação para aquilo que foi

percebido através do seu olhar, dado pela manifestação do corpo em perceber e ao

mesmo tempo ser percebido.

Os limites de uma disjunção entre o visível e o vidente, o sensível e o

sentiente, o atleta e o esporte, seu corpo e o mundo se diluem e uma aderência os

liga num duplo enlace que perscrute uma única ação.

A prática esportiva mobiliza no corpo essa comunicação do vidente com o

visível, uma visão envolvida pelo movimento em que não há um tempo único, mas

um processo que entrecruza os dois lados da visibilidade, tornado aquele que vê um

corpo também visto, assim como o que é por ele observado.

A constante reciprocidade do vidente e do visível no esporte é acessível pela

natureza sensível do corpo. Uma visão engajada nas quadras e no mundo que

ultrapassa as superfícies, penetra as coisas visíveis, concedendo ao corpo o direito

de coexistir com as coisas como se estivessem fixados na mesma trama.

Sobre o assunto, Merleau-Ponty comenta: “O mundo visto não está 'em' meu

corpo e meu corpo não está 'no' mundo visível em última instância: carne aplicada à

outra carne, o mundo não a envolve nem é por ela envolvido” (MERLEAU-PONTY,

2009, p. 134).

Nesse sentido, é possível compreender que a carne do mundo entrelaça o

corpo e as coisas, convertendo em si as parcelas comuns dos outros seres. Um

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revelar da indivisão entre ação e passividade que faz do corpo um visível enredado

no invisível, constituindo os sentidos e animando os campos da visibilidade. E isto se

dá no esporte e fora dele, pois o olhar que tateia as quadras também desvela as

cores do mundo; uma singularidade do corpo, no mistério de ser sensível em si.

Afinal, o corpo é um turbilhão de sentidos, visíveis e táteis, em que o esporte,

os outros, as coisas e o mundo, nunca estão diante dele, mas ao seu redor.

Nessa perspectiva, Merleau-Ponty (2004b), ao falar sobre o olhar alude suas

reflexões ao pintor, observando que ele jamais veria de “fora”, como se sua visão

fosse apenas físico-óptica. Ao contrário, seu olhar nasce em conjunto com as coisas

e com o mundo, revelando detalhes que estavam ocultos na sua forma natural.

O mundo não está diante dele por representação: é antes o pintor que nasce nas coisas como por concentração e vinda a si do visível, e o quadro finalmente só se relaciona com o que quer que seja entre as coisas empíricas sob a condição de ser primeiramente “autofigurativo” (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 37).

Desse modo, seja nas práticas esportivas ou na vida cotidiana, o corpo do

atleta vê e apalpa as coisas, podendo ser visto e tocado, tocante e visto

simultaneamente pela possessão do ver e do exercício contínuo do mundo que se

mostra e interroga seu olhar.

O corpo coloca a sua força criadora e lança o movimento preenchido de

sentidos no mundo. Sentidos que guiam e permitem o homem desfrutar texturas,

sonoridades, cores, ritmos e sons que emergem do entrelaçamento do olho com os

movimentos do corpo, transformando, por meio da percepção, o que estava antes,

em um novo sentido de ser.

Olho o objetivo, sou aspirado por ele, e o aparelho corporal faz o que tem de fazer para que me encontre nele. A meus olhos tudo se passa no mundo humano da percepção e do gesto, mas meu corpo “geográfico” ou “físico” obedece às exigências do pequeno drama que não cessa de suscitar nele mil prodígios naturais (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 99).

Ao interpelar o mundo, o atleta sempre abre novos campos e modos para se

exprimir. Uma tarefa sempre inacabada e irrealizável na sua totalidade. Um estado

de criação corporal capaz de dimensionar a visão, transformar o invisível em visível,

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numa dialética de visibilidade construída a partir do olhar corpóreo, do movimento e

da subjetividade.

Formas diversas de perceber as coisas do mundo, em que o corpo aparece

não como receptor, mas como mundo em si mesmo. Uma comunicação ininterrupta

e interdependente do interior com o exterior, dada pelo despertar do olhar para além

da visão comum que busca, por meio do sensível, o entrelaçamento do vidente e do

visível, afinal, “O visível a nossa volta parece repousar em si mesmo. É como se a

visão se formasse em seu âmago ou como se houvesse entre eles e nós uma

familiaridade tão estreita como a do mar e da praia (MERLEAU-PONTY, 2009, p.

128).

Assim, a ideia de um olhar universal é irreal. Isto porque, tanto para o pintor

quanto para o atleta, o olhar, o movimento e o pensamento como processos

intrínsecos, só ocorrem no diálogo do corpo com o acontecimento, do olho enlaçado

ao visível, do visível posto no vidente. Um apalpar corpóreo, em que esporte e

mundo jamais cessam de serem vividos, experimentados e olhados.

O desdobrar da visão permite que o homem desvende o mundo, entregue-se

a ele e descubra novas formas de ver que transcendem o olhar comum, ou seja, que

conduzem a uma estesia e estranhamento dos sentidos.

Uma capacidade de ver que permite ao corpo se ligar às coisas e aos outros,

instituindo a circularidade dos acontecimentos, nos quais o contato aparece como

sintonia de transformação, revelando através desse envolvimento os entremeios da

visão e da relação entre o eu e o outro.

Contato com o adversário

Em sua dinâmica, o handebol é considerado um esporte de defesas de

território, representado por uma ocupação do espaço defensivo, num constante

ataque contra a defesa, transformando, na maioria das vezes, atacantes em

defensores, defensores em atacantes, de forma rápida e repetitiva dentro da partida.

Em sua própria essência, alicerça vigorosas disputas que se perduram em

todos os momentos, situações em que ataque e defesa se misturam em função de

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um território a ser conquistado, seja para conseguir o gol, seja para impedir sua

tentativa.

No handebol, vence quem fizer mais gols. Ele se caracteriza por uma luta

prévia a este, qual seja, o de se conseguir uma posição e uma situação que facilitem

a marcação do gol.

Como afirma Sanches (1992), essa modalidade se caracteriza por uma

intensa luta entre conseguir essa posição favorável, e, no caso da defesa, impedir

que se consiga tal posição. Sendo esse embate um quadro de grande contato físico.

Devido às suas características técnicas, em que a bola é segurada por no

máximo três segundos, podendo, nesse período, passar o adversário, efetuar

passes de uma extremidade à outra da quadra, ou arremessá-la contra as traves

contrárias para efetuar o gol. Sua peculiaridade não deixa imune o corpo do contato

forte dos adversários, nos contextos ofensivos e defensivos.

Essas particularidades do handebol e o movimento dinâmico da partida

certamente imprimem grande velocidade a partida. Movimentos ríspidos, gestos

sutis e uma ânsia pela realização do gol. O que gera, sem dúvida, uma luta no

sentido de se conseguir a sua facilitação, através do “controle” do corpo do outro,

dos espaços vazios e da própria bola.

Sobre esse contexto, Rota, Pelissari e Krebs (2003) ressaltam que, dentro de

uma partida de handebol há situações corriqueiras entre seus participantes, tais

como: segurar o corpo, empurrar a mão, bloquear o caminho do adversário,

interceptar a bola, dentre outros. Essas ações podem se transformar, por vezes, em

atitudes agressivas e hostis, formas de expressão que são necessárias para se

atingir os objetivos da própria modalidade. Entretanto, essa proximidade entre os

competidores é regida por um conjunto de regras que regulamentam o toque

corporal nessa modalidade, o que reduz, em sua maioria, comportamentos danosos

e de extrema violência.

Como qualquer esporte coletivo com a presença de adversários em constante

oposição, em que se busca o contato corporal com a finalidade de “parar” o

adversário, o handebol engendra no contato direto entre os corpos, sendo, portanto,

uma experiência aberta aos sentidos.

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Nesse encontro com o outro, os corpos se entrelaçam e se reconhecem,

mesmo diante do embate. Mas isso se impõe como inédito na partida, sempre em

construção, tornando cada momento uma nova experiência e uma nova relação.

De fato, esse contato nunca é igual, pois os corpos não são os mesmos. As

situações dentro de uma partida variam, os jogadores mudam e os movimentos

realizados jamais se repetem, apesar de ser o “mesmo esporte”.

Ainda que haja uma observação anterior de vídeos e imagens ou um scout33

feito do time a ser enfrentado, em quadra, tudo parece novo. É o toque, é o gesto

realizado, é a contorção do corpo e suas virtualidades. Na partida, tudo se faz

instável, preciso sentir o corpo das adversárias para saber como jogar. Pois, como

diria Serres (2004, p. 63), “nosso corpo transborda virtualidades”.

Embora o handebol se repita enquanto estrutura no sentido da organização

que o constitui, seus elementos marcados pela repetição flexionam-se ao novo,

havendo sempre no movimento contínuo da partida transformação e um novo sentir

por existir.

O contato com a pele do outro e o fato de perceber sua presença marcam

minha carne e provocam um excedente de sentidos. Cada toque vivido torna-se uma

extensão dos meus gestos e do meu próprio ser no outro, uma correlação na qual

modifico e sou modificada, me transforma nele e em mim mesma, mas também

exprime um outro de mim.

Meus atos impõem ações dos adversários em mim, fazendo-nos participantes

de um mesmo gesto, abrindo-nos para os imprevistos e nos deslocando em direção

ao que ainda não sabemos.

No inesperado do gesto realizado, quando há uma quebra em relação ao que

estava previsto, o movimento fundado na incerteza de um não saber, exige de mim

reações diversas, criações e surpresas que revelam uma nova existência.

Diante do handebol, estão colocados em cada instante: esquivas e

aproximações; afetos e desafetos; virilidades e sutilezas. Movimentos rápidos, fortes

e contínuos que inebriam o outro a mim. Os corpos se tocam! E o contato representa 33 O scout é uma ferramenta de registro das informações e análise do jogo. São folhas de análises que identificam os pontos fortes e fracos de uma equipe, bem como a técnica de cada atleta. Os dados podem ser feitos de forma manual ou através de programas de computadores específicos, podendo ser criado de acordo com o interesse de cada comissão técnica. Geralmente, em uma competição, os jogos são analisados com esse instrumento. Assim, com os dados quantificados, a comissão busca compreender o jogo do adversário para obter a vitória.

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ao mesmo tempo repúdio e acomodação; aproximações e distanciamentos; força e

sutileza; confronto e consonância. O corpo não para! Ele se move num vai e vem,

alternando consigo e com o outro, um gesto e um contato inebriados de sentidos!

Como concebe Merleau-Ponty (2011, p. 251):

A comunicação ou a compreensão dos gestos pela reciprocidade entre minhas intenções e os gestos do outro, entre meus gestos e intenções legíveis na conduta do outro. Tudo se passa como se a intenção do outro habitasse meu corpo ou como se minhas intenções habitassem o seu.

Esses antagonismos se fazem presentes ininterruptamente entre os

adversários, um paradoxo que permite que eu reconheça na gestualidade do outro

um novo diálogo para o meu deslocamento e o meu tempo. Posto que, na força do

movimento técnico, há a leveza da plasticidade corporal. Afirmando nessa dualidade

e na tensão entre os jogadores, a variação do corpo: “mãos, pés, coração, nervos e

músculos propiciam poder, leveza, adaptação e fôlego” (SERRES, 2004, p. 38).

Isso implica dizer que somos seres de abertura, que estamos dispostos ao

mundo e aos outros, numa relação dialética. Logo, os fatos vividos não são dados

isolados em nós, mas nascem nas nossas relações com o mundo e com os outros.

Nessa intersubjetividade, própria do existir humano, as nossas experiências,

são sempre renovadas, e os acontecimentos vão adquirindo novos sentidos na

medida em que o homem é afetado pelas experiências do outro na sua.

É por meio desse corpo como potência de vida, sempre em contato com o

mundo, que os adversários se fundem numa dinâmica imprevisível. Um estreito

corpo-a-corpo em movimentos opostos, acoplados como uma ação a dois.

O envolvimento com as adversárias dentro do jogo causa estranheza e

provoca os meus sentidos, não apenas os de repulsa, mas os de empatia e de

encantamento. Sensações que se dão entre os gestos que realizo e as malícias

delas para deter os meus.

Nessa relação em que o corpo cria novas expressões anteriormente

incorporadas, meu corpo deixa-se arrebatar por essa sedução e o envolvimento se

faz presente em duplo sentido, quando tento fugir delas e quando sou capturada por

elas. Ambos os movimentos estabelecem um diálogo entre nós. Um ser a dois, como

diria Merleau-Ponty (2011).

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Nesse contato com o outro, no mundo externo em que habito, meu mundo

não é um mundo particular e objetivado apenas pelas minhas percepções, mas o

meu mundo resulta do outro em mim.

A minha universalidade encontra a universalidade do outro, e nessa

integralidade entre eu e o outro, vamos nos lançando no mundo, percebendo e

compreendendo, por meio do experimentável, o mundo e os outros como inerência

de uma mesma vida.

Assim, entre tensão e incertezas, aproximações e separações, a partida

acontece, desenvolvendo, sem nome específico e sem previsões concretas, uma

imbricação dos corpos.

[...] ora, é justamente meu corpo que percebe o corpo de outrem, e ele encontra ali como que um prolongamento miraculoso de suas próprias intenções, uma maneira familiar de tratar o mundo; doravante, como as partes de meu corpo em conjunto formam um sistema, o corpo de outrem e o meu são um único todo, o verso e o reverso de um único fenômeno, e a existência anônima da qual meu corpo é a cada momento o rastro habita doravante estes dois corpos ao mesmo tempo (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 474).

Nesse pensamento, o jogo é uma possibilidade de intermédio entre mim e o

outro, de uma presença que me cativa, transcende meus sentidos e me faz habitar

no mesmo mundo que o seu.

Desse modo, o corpo se move numa sinergia de múltiplas sensações,

expandindo sua dimensão sensível através da vivência com o outro, indicando o que

afirma Merleau-Ponty (2011, p. 474) acerca do homem e das relações

intersubjetivas: “[...] nós somos, um para o outro, colaboradores em uma

reciprocidade perfeita, [...] nós coexistimos através de um mesmo mundo”.

Essa entrega demonstra que o outro faz parte de minha carne, que estou viva

e que, por meio dele uma experiência cinestésica habita meu viver, possibilitando

que eu transfira a ele a experiência que possuo do meu próprio corpo.

Na crítica à visão mecanicista de corpo, o filósofo Merleau-Ponty (2011)

elucida o movimento corporal ligado ao interesse cognitivo de agir no mundo. Nessa

situação o homem se entrelaça ao vivido numa liberdade sensível, caracterizada

pelo poder que tem de mover-se deliberadamente e de decidir quais movimentos irá

realizar diante do mundo e do outro.

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Para o autor essa experiência é entendida como a exploração associada dos

sentidos humanos quando o corpo coloca-se em situação para poder perceber o

mundo, em suas palavras:

Se aproximo de mim o objeto ou se o faço girar em meus dedos para "vê-lo melhor", é porque para mim cada atitude de meu corpo é de um só golpe potência de um certo espetáculo, porque para mim cada espetáculo é aquilo que é em uma certa situação cinestésica (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 406).

Nesse caso, meu corpo, em permanente posição para perceber o contexto do

jogo, toma perspectiva sobre ele e o liga às situações cinestésicas, a fim de dar

lugar a uma experiência aberta de sentidos em posse da ligação do outro em mim.

Uma relação entre percepção e movimento que se faz de forma

indeterminada entre eu e o outro, numa comunicação estesiológica fundada na

amplitude de nossas tomadas perspectivas.

E esse corpo estesiológico, de acordo com Merleau-Ponty (2009), é o corpo

na experiência sensível, quando, em sua entrega ao mundo, cria, improvisa e revela

uma profundeza de sentidos aquilo que vive.

Por isso, a plasticidade dos meus movimentos, a luta enfrentada, a força

executada e o próprio corpo embalado pela jogada livre a mover-se, me arrebatam e

me envolvem, por meio da sensibilidade posta do outro em mim, quando, em

movimento, toco e sou tocada.

Como se observa na Fotografia 04, a seguir, meu corpo está enlaçado às

outras atletas, não sendo possível definir quem inicia o contato. Pois ao mesmo

tempo em que eu sou tocada pelas adversárias, elas simultaneamente me tocam.

Sinto-me aí entre apalpante e apalpada, tangível e tangente, tocante e tocada, de

modo que vou me misturando a elas e elas a mim. Vamos nos atando pelos

movimentos dos nossos corpos, criando uma transitividade de um corpo ao outro,

numa apoteose sensível da imbricação entre eu e elas.

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Fotografia 04: Contato com as adversárias Fonte: http://www.cbdu.org.br (2011)

Nesse encontro, torna-se

evidente que o mundo de minhas

adversárias é acessível a mim,

que os gestos delas se tornam

meus e que sou afetada por

suas condutas. O abraço de

suas amplitudes permite que eu

repouse meu corpo, mesmo que

rapidamente, entrelace-me com

elas, entregando-me em

movimentos fortes, e ao mesmo

tempo suaves. Tudo isso

dilacera minha existência em

busca de novos gestos, novos

movimentos, dando-me uma

nova dimensão de estar nesse

mundo e por ele ser afetada.

Esse sensível que se

impõe em mim quando sou

tocada pelas adversárias, quando

somos ultrapassadas pelo mundo esportivo, é o corpo como sinônimo de

sensibilidade. Conforme esclarece Nóbrega (2000, p. 6), a respeito da noção de

corpo em Merleau-Ponty: “o corpo não é coisa, nem ideia, é movimento,

sensibilidade e expressão criadora”.

É por meio dele que sou sintonizada ao esporte e aderida ao mundo, sendo

absorvida pelas nuances dos outros e me constituindo enquanto sujeito por sua

porosidade e pelos sentidos nele despertados.

Na obra O Visível e o Invisível, reconheço esse sensível a partir da

compreensão de corpo no filósofo citado, em especial a compreensão de corpo

carne, que não é o corpo objeto, nem tampouco pensado pela alma. Mas corpo que

é sentiente e sensível, compreendido dentro de uma reversibilidade, em duplo

sentido daquilo que sente e daquilo que faz sentir (MERLEAU-PONTY, 2009).

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Para ele, a reversibilidade aparece sendo tanto aquilo que dá visibilidade ao

corpo carne como também uma propriedade e virtude primordial da carne. Se

minhas mãos tocam uma à outra, o mundo de cada uma abre-se para o da outra,

pertencendo ambas a um único espaço da consciência, pois um só homem toca

uma única coisa por intermédio das duas, sendo ambas, de acordo com Merleau-

Ponty (2009), tocantes e tocadas.

Um corpo humano está aí quando, entre visível e vidente, entre tocante e tocado, entre um olho e o outro, entre a mão que produz uma espécie de recruzamento, quando se acende a faísca do senciente-sensível, quando se inflama o que não cessará de queimar, até que um acidente do corpo disfarça o que nenhum acidente teria bastado para fazer... (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 18).

Pela propriedade da reversilibilidade há um círculo entre palpante e palpado,

visível e invisível, o vidente não existe sem o visível, há uma inscrição do palpante

no visível e do visível no tangível, de modo que também somos mundo com outro e

ele com nós (MERLEAU-PONTY, 2009).

Essa noção de subjetividade encarnada, essa carne com a qual coexistimos

no mundo, por meio dessa duplicidade inseparável de sentidos, se revela em meu

corpo quando jogo, como revelou anteriormente a Fotografia 4.

Trata-se de uma relação entre o corpo sensível do outro e o poder sentiente

que habita o meu. Uma experiência vivida no corpo, numa imbricação total consigo e

com o outro, entre o sentir e o ser sentida, em que há uma tomada de sentidos

intensa, um arrebatamento corpóreo, uma indivisão de corpos e uma entrega total

àquele momento.

O corpo, portanto, encontra-se em constante troca com o outro, trocas que

alimentam a existência, abrem novas possibilidades de viver, de ser construído

socialmente e de revelar sentidos e novas formas de existir. Uma existência que não

despreza o contato entre os corpos, ao contrário, ratifica essa importância para a

própria constituição do ser.

Para Merleau-Ponty (2004a), há no mundo a necessidade do outro, em que

ele não é apenas um ser pensante no mundo, nem tão pouco um objeto para mim.

Mais do que isso, é o outro eu-mesmo, sem que eu possa dizer que seja eu, pois ele

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não se reduz a uma formulação minha, mas uma presença comigo, habitantes de

um mesmo mundo sensível, um só comigo.

Dessa forma, vivo o mundo pelo meu corpo e também pelo corpo do outro,

indicando nesse estreito eu/adversário que estou viva no mundo, pois, “só sentimos

que existimos depois de já ter entrado em contato com os outros” (MERLEAU-

PONTY, 2002, p. 48).

De acordo com o autor supracitado, o outro é importante não apenas por sua

utilidade, mas para a felicidade e para a vida, o que nos faz compreender que, ao

lançar o corpo em jogo, lanço-o ao mundo e aos outros, fazendo ambos,

semelhantes a mim.

Eu e o outro somos como dois círculos concêntricos, e que se distinguem apenas por uma leve e misteriosa diferença [...] É no mais íntimo de mim que se produz a estranha articulação com o outro; o mistério de um outro não é senão o mistério de mim mesmo (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 168, 169).

Nesse contexto, conheço as adversárias através de seus corpos, pelas

sensações que eles me proporcionam. Efeitos que constituem em cada relação o

fundamento de minha existência. E ela não está dada, ela é sim, experiência do

corpo vivido. “Não vivemos a princípio na consciência de nós mesmos – nem

mesmo, aliás, na consciência das coisas – mas na experiência do outro”

(MERLEAU-PONTY, 2004a, p. 48).

Desse modo, meu ser, revelado por intermédio do sensível e contagiado pela

existência do outro, abre-se para o que se passa no mundo esportivo, entrega-se

sem restrições, tornando-me potência de compreensão alheia.

Viver o contato com o outro é construir uma existência de relações,

aumentando a compreensão de nós mesmos enquanto seres de um mesmo mundo,

partícipes de uma mesma experiência, com significações diversas.

É nas relações intersubjetivas que o homem vai criando, transcendendo e

atribuindo significados às relações vividas. Por meio dessa comunicação, da mistura

de corpos, pelos sentidos que os unem e pela cinestesia de suas experiências,

fazendo de cada vida, a um só tempo, uma história pessoal e coletiva.

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Nessa perspectiva, é o vivido, o envolvimento do homem com os outros e as

relações estabelecidas no mundo, que são produtoras de conhecimento. Um

conhecimento que não é uma razão objetiva, uma lógica homogeneizante, reduzida

às faculdades da consciência, mas aberta ao sensível, ao fluxo da experiência

vivida, aos sentidos do corpo.

Como afirma Merleau-Ponty (2011), o corpo é referência para a configuração

do conhecimento, evidenciado pelo sensível, pelas relações operadas de incertezas

e imprevisibilidades. Em outras palavras:

Todo o conhecimento, todo o pensamento objetivo vivem desse fato inaugural que senti, que tive qualquer que seja o sensível em causa, uma existência singular que tolhia repentinamente o meu olhar, e contudo prometia - lhe uma série indefinida de experiências, concreção de possíveis desde já reais nos lados ocultos da coisa, lapso de duração dado numa só vez (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 184).

Esse sentir está unido à atitude do corpo, em cada gesto lançado ao mundo,

em cada ato vivido, em cada aproximação do meu corpo aos demais corpos,

adversárias e companheiras de equipe.

Segundo Nóbrega (1999), as experiências do corpo possibilitam diferentes

perspectivas em sua abertura ao mundo e aos outros, configurada pela linguagem

sensível dos gestos, dos silêncios, do pensamento e da fala, o que expressa:

[...] a unidade da existência humana de forma profunda, com suas incertezas, sua imprevisibilidade e abertura a diferentes interpretações, unindo conceito e vivência e criando a possibilidade de novas formas de elaboração do conhecimento (NÓBREGA, 1999, p. 116).

Nesse pensamento, a tensão do encontro com o outro em quadra compõe um

conhecimento através da linguagem sensível que se mostra quando nos diluímos-

nos um no outro. Porque nosso encontro não se dá por protótipos gestuais, assim

como o que criamos para separarmo-nos não são fórmulas ensinadas, mas uma

criação sensível que expande o ser, impulsiona para o novo e afeta a existência.

Uma existência atada por um mesmo palco, no qual rompe com a lógica

determinista do contato físico e desconstrói o pensamento racionalista da fisiologia

mecanicista do estímulo-resposta, como algo pronto. Que não nega a rivalidade e a

competitividade dentro da quadra, mas que revela o estado sensível do corpo ao ser

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afetado pela experiência estética dada na relação inacabada com outros corpos,

evidenciando que “o movimento da existência em direção ao outro, em direção ao

futuro, em direção ao mundo pode recomeçar, assim como o rio que degela”

(MERLEAU-PONTY, 2011, p. 228).

Portanto, essa relação intercorpórea com o outro e o vínculo estabelecido

nesse contato colocam o corpo como universo aberto para todas as sensações da

sensibilidade, numa unicidade de existência que ensina sobre nós mesmos, sobre o

outro e expande ontologicamente o viver estético para outra forma de existir.

Diante disso, pode-se compreender que o corpo do outro em qualquer

situação que seja executa gestos, palavras, sinais e expressões que se põem a ser

decifradas, um terreno anônimo no qual os corpos são acoplados na mesma ação

pela reciprocidade de sentidos que se faz para si e para o outrem, imbricando, por

meio do quiasma34, corpos que se constroem a partir do pensamento que:

O outrem não é tanto uma liberdade vista de fora como destino e fatalidade, um sujeito rival de outro sujeito, mas um prisioneiro no circuito que o liga ao mundo, como nós próprios, e assim também no circuito que o liga a nós – É este mundo que nos é comum, é intermundo (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 241).

Nesse sentido, perceber o mundo é estar ligado a ele por meio da dimensão

dos sentidos, pelas experiências do corpo e pelas construções sensíveis da

existência do meu corpo ao corpo do outro e ao mundo.

Uma experiência que faz compreender que o corpo não é concebido como

algo determinado, mas é um sujeito de relações, estabelecido por meio dos vínculos

corporais propagados no mundo.

Assim, apontando o corpo como campo de todas as significações e a

presença do outro e do mundo como constituição do mesmo, podemos compreender

que o corpo é uma construção social, repleto de uma subjetividade construída na

intersubjetividade, ou seja, uma imbricação total com as coisas que compõem seu

mundo de existência. De certo, tudo está entrelaçado no campo que constitui a

34 Na obra O visível e o invisível Merleau-Ponty (2009) reflete a relação homem/mundo através da ideia do quiasma, afirmando não haver distinção entre homem e mundo, homem e outros corpos, corpos e outros corpos. Nessa pensamento, pela ideia do quiasma é possível compreender que todas as coisas pertencem a uma mesma carne, a carne do mundo.

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maneira do homem ser, uma existência elaborada de significados que atribuem

sentidos a cada nova revelação.

O homem, aberto ao mundo das transformações constantes, é uma

comunicação dos sentidos consigo mesmo e com o mundo, em que o corpo dá a

condição de possibilidade de ser afetado, sentir afetos e afetar o outro.

Como esclarece Caminha (2008), o processo de subjetivação do corpo é

intersubjetivo, o corpo é o lugar não somente de fundação da subjetividade, mas

também estrutura de identidade do sujeito, elaborada por meio das relações

intersubjetivas, que são, originalmente, intercorpóreas. Corpos que aqui e agora, por

reversibilidade, fundem-se num só, ou seja, uma inerência corporal fundindo entre si,

relações que ultrapassam a repulsa e a passividade para se transformar numa

empatia das afeições do sentir corpóreo e da cognição sensível.

Isto porque, o corpo e seus sentidos permitem o contato com o mundo, a

comunicação com ele é uma junção de corpos que torna o homem orgânico,

histórico e social, capaz de criar, de agir, de pensar e de sentir numa correlação do

“eu” e do “nós” como uma rede mutuamente compartilhada.

A intercorporeidade estabelecida nessa relação faz pensar que o homem age

simultaneamente por si e pelos outros, criando nesse processo horizontes singulares

e de convivência, o que pressupõe que sua existência é pessoal, constituída de um

histórico-social como solo de um mundo comum entre os corpos, em que “meu

mundo se acha ampliado na proporção histórica coletiva que minha existência

privada retoma e assume” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 580).

Assim, o homem vai sendo construído por cenários socioculturais, marcados

pelas experiências vividas de desconforto e de paz, de fuga e de empatia, de

presença e de ausência. Um circuito mundo-corpo-outro criador de marcas

sensoriais inscritas na dinamicidade das relações.

A prática esportiva ensina sobre essa relação, ensina a jogar com o outro na

quadra e na vida, ensina a entender o momento de aproximar e distanciar, de ir e de

vir, de afagar e de sair, aceitando o outro como extensão significante para se

estabelecer criações, provocações e organizações diante da quadra e da vida.

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A vitória e a derrota – leveza e peso

No handebol a partida acontece com duas equipes de 7 jogadores em cada

uma delas, sendo 6 na linha e 1 gol. Além disso, um time pode ter ainda mais 5

reservas, que ficam à disposição da comissão técnica para entrarem a qualquer

momento, quando houver necessidade.

Em quadra os atletas buscam realizar o gol, movendo a bola de mão em mão

por meio de passes ou se deslocando com ela, quicando-a no chão

ininterruptamente.

Dentro desse formato, esse esporte se engendra pela alta competitividade,

pela performance máxima e pela atenuação dos erros em busca da vitória. Para

alcançá-la é necessário obter um maior número de gols dentro da partida.

A díade vitória/derrota no handebol como em qualquer outro esporte funda-se

na imprevisibilidade. E, para isso, não há presunção. A audácia dos jogadores vai

constituindo o seu resultado final, o que torna imprevisível e surpreendente os seus

resultados.

Por esse motivo, nem sempre vence o time mais expressivo ou equipe que

possui os melhores atletas. Embora essas características sejam importantes, para o

atleta a conquista de uma partida ou de uma competição pauta-se na fluidez do

corpo, no sentido coletivo e na atuação em quadra.

Por isso, vencer ou perder não inclui apenas o placar final. Há uma antítese

vivida pelos atletas que é a “derrota com sabor de vitória” e a “vitória com sabor

amargo”, a qual se refere, respectivamente, à suplantação do desempenho

esperado ou um rendimento inferior, aquém daquilo que normalmente a equipe

apresenta.

Nessa ambivalência o resultado esportivo representa algo mais que o seu

significado imediato. Vitória e derrota constituem uma infinidade de vicissitudes

demarcadas sem contexto prévio. O atleta não sabe, mas o corpo quer mais,

movimenta-se incessante, construindo possibilidades de reinventar-se a si mesmo,

de avançar, de repousar e de recomeçar tudo outra vez.

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Quando me entrego às quadras, não há espaço para pensar em mais nada.

Meu corpo está, vai se situando no mundo por meio do movimento, sem ter pressa

para sair. Não há inércia. As sensações eclodem no corpo quando jogo. A cada

passo, uma nova história. Ele dilata-se, move-se, segue adiante, experimenta o

mundo.

Por isso, mais que o resultado final, o contexto esportivo é uma das

experiências mais extraordinárias que já vivi. Talvez porque sua sinergia me faça

experimentar sentimentos nunca antes sentidos, me faça tocar o que sem ele eu não

tocaria e me faça ver o mundo para além da minha visão comum. Tudo acontece de

forma imprevista. Ele penetra minha dimensão corpórea e ascende sentidos à minha

existência por meio da experiência do ganhar ou do perder.

Não há limites para as várias formas de envolvimento com o resultado de uma

partida ou de uma competição. Ele penetra na dimensão corpórea, ampliando a

sensibilidade para uma nova forma de sentir e de se entregar ao mundo por

intermédio das correntezas da sinergia.

Nessa direção, sendo a estesia na visão de Merleau-Ponty (2006) o

movimento ontológico do corpo, uma explosão metafísica do homem ao ser afetado

pelas coisas que compõem o mundo da beleza e o âmbito esportivo. Orgânica e

sensitiva, a estesia arrebata os sentidos pela entrega corpórea ao universo da

experiência estética, impulsionada pela experiência do corpo no mundo, interagindo

com os encantos da beleza.

O conceito de estesia do corpo em Merleau-Ponty, apresentado nas obras

Fenomenologia da percepção (2011), O visível e o invisível (2009) e O olho e o

espírito (2004b), apresenta-se na percepção do corpo por meio dos sentidos,

afastando-se consideravelmente do racionalismo, rompendo com as dicotomias

clássicas e com a linearidade humana.

A estesia por intermédio do acontecimento esportivo faz das sensações o

sentido sublime dos atletas se reconhecerem como humanos, como seres que não

são máquinas, manipulada e esteriotipada, mas agentes ativos na produção da

experiência, sujeito corpóreo, sensorial.

O corpo do atleta é fonte da estesia, quer dizer, uma capacidade fisiológica,

simbólica, histórica e afetiva de impressão dos sentidos, capaz de alterar todo o

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organismo quando é afetado através dos sons, dos ritmos e dos movimentos que o

esporte proporciona.

A proposta fenomenológica do filósofo supracitado apoia-se em uma

compreensão sensível do conhecimento, da vida e do corpo. Uma perspectiva que

faz compreender que, no atleta ela se realiza quando o jogo invade seu corpo e se

apossa dele para um entrelaçamento do senciente com o sensível. Um êxtase e

uma emoção que aflora, que lhe destaca no tempo, da vida ordinária e do

anonimato, para um corpo glorioso35, do sentir orgânico que conecta o corpo ao

mundo e aos outros como um suplemento de sentido.

Sendo assim, seja qual for o resultado obtido, ele se constrói na experiência

estética, no universo da sensibilidade que vai sendo construída pelo mundo da

experiência vivida, da indivisão do meu corpo e dos outros corpos: tu e eu, nós.

A exemplo de uma derrota, o momento é dado a uma manifestação emocional

desencadeada na maioria das vezes pela tristeza, pela raiva e pela frustração, uma

espessura de sentidos na textura dos acontecimentos vividos.

A derrota, por exemplo, produz significações mais amplas que a definem

como perda. Pois, embora perder faça parte do repertório de todo atleta, na maioria

das vezes, ela gera decepção. Como explica Rúbio (2006), diante do resultado

obtido e comparando-o com o desejado, é compreensível o sentimento de fracasso

do atleta quando ele não consegue atingir sua meta.

Para a autora, os momentos de derrota são sempre tidos como próprios para

avaliar erros e refazer planejamentos, levando atletas e equipes a se considerarem

duplamente punidos. Isso reforça o desconforto e o peso que essa categoria traz,

sobretudo, pela ligação do esporte com o imaginário heroico de força, conquista,

recordes e vitórias.

Perder é ruim, e até doloroso. Promove a frustração, mas também a

superação. Quem já perdeu uma vez, perderá outras vezes ainda. É um ciclo de

término e de recomeço. E não há dúvida que quem perde não domina a tristeza. Ela

vem, rouba os sorrisos e mostra a condição dúbia que o esporte proporciona.

35 O corpo glorioso é um termo adotado por Merleau-Ponty e refere-se ao corpo iluminado pelo contato do visível e do tangível (MERLEAU-PONTY, 2009).

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Fotografia 05: O peso da derrota Fonte: http://www.cbdu.org.br (2011)

Ao perder um jogo em

uma competição nacional, a

tristeza toma conta de mim,

evidenciando o peso da derrota

(Fotografia 05). Mãos ao rosto,

cabeça baixa, vou me desviando

em pequenos passos para fora

da quadra, e meu corpo,

aparentemente em estado de

impotência, vai chorando o

mundo que deixou. Nesse

momento solitário e doloroso,

vou revelando a dor e a angústia

pela tristeza da torcida, pela

alegria do adversário, pelo

movimento “não acertado”.

Nesse instante, percebo

como é difícil suportar aquilo que

não pode mais ser revisto. As

luzes se escurecem, os sons se emudecem, o trágico parece não ter fim, e a

realidade teima em existir.

Perder gera peso, suscita desconforto e provoca o desalento. Sentidos que

nos atingem e com os quais não queremos nos deparar. Pois, compreendido como

um desvio do caminho natural, ao apregoado em nossa cultura, que tem como

modelo social a vitória, a derrota, na maioria das vezes, soa surpreendente demais,

trazendo, entre outras coisas, a solidão.

Mesmo no caso de um esporte coletivo como é o handebol, a derrota traz um

peso individual, em que os afagos, abraços e toda coletividade são esquecidas pela

ausência do contato e pelo isolamento necessário, restando “a vergonha pelo

objetivo perdido, a confusão com a incapacidade e a falta de reconhecimento pelo

esforço realizado” (RÚBIO, 2006, p. 3).

Por outro lado, embora haja esse peso em momentos de derrota, não é o

resultado final nem a possibilidade de vitória que me faz permanecer em quadra, ao

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Fotografia 06: Pan-americano 2001 Fonte: Arquivo da autora (2001)

contrário, é o próprio contexto do jogo, as sensações sentidas e o prazer de jogar

que me atraem a esse mundo independente do seu resultado.

É certo que na vitória os sentimentos eclodem na entrega do corpo ao

momento de conquista, de superação, de realização pessoal, e principalmente de

alcançar um lugar no pódio. Sentimentos esses mediados pelo reconhecimento e

pelo coroamento que tem como símbolos: festejos, medalhas e troféus.

Embora no mercado essas premiações tenham preços simbólicos, para o

atleta seu valor é inestimável, conquistá-los é algo duradouro e inesquecível que

desperta e reconvoca por inteiro seus sentidos e suas emoções, em momentos de

vitória e de conquista.

Como pode ser visto, a

felicidade toma conta de minhas

expressões. Não penso em mais

nada, apenas sorrio, expressando a

felicidade por ter conquistado uma

competição (Fotografia 06).

Pois, diferentemente da

derrota, a vitória traz alívio, alegria e

leveza. Ela deixa o corpo leve, tira

do chão os pés dos que dela

participaram e dos que a

comemoram. Seus sentimentos são

de euforia, de êxito e de celebração.

Traz o afago inebriante, o choro

contagiante e retira por algum tempo

a sintonia e afinação com a

realidade, levando o atleta a uma

plenitude una e indivisível que

atravessa o corpo e afeta de

maneira profunda a sua existência.

É como se ali, entre as quatro linhas, tudo fosse mais intenso e de fato é. A

comemoração, o sorriso, o grito, o choro, os abraços e beijos, quase sempre, dos

mais sinceros. O olhar cúmplice e a persistência coletiva e menos egoísta, eis

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algumas das manifestações das mais humanas vividas no esporte. Acontecimentos

onde não há maiores considerações, além das atitudes que são tomadas naquele

momento.

Por isso, a intensidade do ser atleta move a busca pelo prazer da conquista,

da perfeição do movimento, da beleza dos gestos e da eficiência tática, favorecendo

uma mistura de corpos, de usos e de costumes diversos. Indivíduos diferentes que,

em prol de um único objetivo, tornam-se “uns” para alcançar o desígnio ao qual se

destinam.

No festejo de uma vitória os corpos se misturam, indistintamente e participam

de um envolvente estado emocional (Fotografia 07). Sorrisos, gritos, abraços,

emoções diversas vão surgindo, envolvendo meu corpo e todos os outros ao mesmo

tempo.

A vitória inquieta e reinventa sob novas formas a minha condição existencial.

Esse momento não é ideia, nem imaginação, é ato sensível que se instala no corpo,

movimenta minhas emoções e reencontra no corpo vibrante do outro as mesmas

sensações que percorrem o meu.

Fotografia 07: A leveza da vitória Fonte: http://www.cbdu.org.br

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Os laços se atam despertando e reconvocando por inteiro meus sentidos e

minhas emoções, em momentos de vitória e de conquista. É impossível não ir ao

encontro das outras, pois não venci sozinha. Aí quando se ganha a coletividade é

um instante necessário, com graus de envolvimento emocionais diferentes, mas

concebidos em unidade, na relação mútua com o grupo.

Ganhar é poder viver essa leveza do corpo em movimento, da vibração que

altera os ritmos dos meus órgãos e também da minha vida, dando novas sensações

à existência.

Os sentimentos surgem em cada instante ali vivido e paradoxalmente

eclodem no corpo a coragem e o medo, o nervosismo e a tranquilidade, a euforia e a

melancolia. Sentidos encontrados por mim no âmbito esportivo e experimentados no

campo da experiência sensível, os quais ganham amplitude através dos gestos e

revelam ao corpo um mundo infindável de sentidos e significados vivenciados em

momentos de vitória e de derrota.

Embora a educação ocidental eduque o homem para ser feliz, alegre e

vencedor, como se a infelicidade, a tristeza e a perda não fizessem parte da vida, no

esporte, os atletas encontram obrigatoriamente o vencer e o perder em seu

contexto. Todos pautados por um educar e uma atribuição de um sentido singular,

sem a necessária hierarquização da vitória.

Como escreve Lovisolo (2009), uma competição que se expressa em ganhar

e perder é a alma do esporte, isto porque, não faz sentido uma em que todos

ganhem, inclusive é contra a lógica da competição esportiva.

É o risco que o esporte impõe, mas que não deixa de incitar o atleta a viver e

se lançar na aventura do esporte, mesmo sem saber o seu resultado. É certo que

muitos esportistas entram em competições sabendo que não poderão ganhar, mas

desejam estar ali para acumular experiência, para superar desempenhos anteriores,

para estarem em uma seleção, para jogarem (LOVISOLO, 2009).

Trata-se de viver o esporte, de ser penetrado por ele e entregar-se ao mundo

por intermédio do sensível, da incerteza, do vir a ser. Tendo o corpo como lugar

onde as formas de sentir ganhem vida e as coisas do mundo adquiram sentidos,

fazendo do esporte um lugar de fundação e afetação humana.

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Nessa direção, o ganhar e o perder aparecem como elementos importantes

para o que o atleta possa descobrir as diferentes formas de envolvimento com o

mundo esportivo, fazendo deles uma experiência estética sempre nova.

Em todos os casos, não há quem tenha, ao longo da carreira esportiva, vivido

apenas a condição de vencedor, tendo em vista que a vitória e a derrota são as duas

condições básicas que marcam a trajetória atlética.

No caso da derrota, na maioria das vezes ela ajuda o esportista a visualizar

com mais clareza os erros cometidos, os pontos vulneráveis de um atleta ou de uma

equipe e apontam-se aqueles que podem ser melhorados. Enquanto a vitória dá a

sensação de que os erros não foram bastante, que o objetivo foi alcançado e que

tudo foi perfeito. Fato que traz para a derrota e para a vitória, respectivamente,

sentimentos de peso e de leveza. Oponentes que caminham juntos, mas que são

experimentados de maneira paradoxal pelos esportistas.

Caminhos que são percorridos de diferentes formas, abertos aos sentidos do

corpo e as fontes inesgotáveis de significações, o que inviabiliza estabelecer

hierarquias entre o ganhar e o perder, mas que abre espaço para reflexão da leveza

e do peso que neles residem.

Como ressalta Calvino (1990), para vivenciar a leveza é necessário conhecer

a experiência do peso, saber o seu valor. Embora o pensamento do autor esteja

voltado aos valores literários, compreendemos que o conceito de peso e leveza

explorado a partir da sensação do leitor nos permite estabelecer relações com o

vivido no esporte.

No aspecto leveza, Calvino a tem, antes de tudo, como um antídoto ao peso

do mundo. Em que a leveza e o peso em que ele argumenta não referem-se apenas

ao peso corporal, mas aos caminhos explorados da vida.

Nesse sentido, para o autor o homem busca leveza como reação ao peso de

viver, ou seja, ele sai do convencional para olhar o mundo de outras maneiras sem

negar o real, mas aceitando-o de diversas perspectivas. Para ele,

A leveza para mim está associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago e aleatório. Paul Valéry foi quem disse: Il faut être léger comme l’oiseau, et non comme la plume [É preciso ser leve como um pássaro e não como a pluma.] (CALVINO, 1990, p. 28).

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Nessa direção, a leveza não se reduz aos aspectos do voo, mas busca na

vida o sentido dessa ação, naquilo que conduz o ser ao ato de voar, como algo

consistente, preciso e autêntico.

A leveza e o peso de Calvino são perceptíveis dentro do esporte quando o

momento vivido conduz à sensação de transformar as limitações do que estar posto,

fazendo o corpo buscar novas formas de equilíbro para oscilar e viver a inconstância

esportiva.

Assim, ele coloca o atleta à espreita e o muda por um instante, exigindo

novas formas de ser, de mover, de parar, de equilibrar e desequilibrar. Um vai e vem

constante que modifica a existência pela rigidez e pelo encanto, fazendo do corpo

um refém, sem necessariamente tê-lo como presa.

Isso permite que o atleta encontre com os equilíbrios e desequilíbrios de suas

ações, de uma forma ou de outra, convoca-o as fontes profundas e adormecidas do

seu ser, elevando-o para uma vivência estética que amplia o sentido da vida e

impulsiona o corpo para as coisas ainda não vividas.

A experiência paradoxal do contexto esportivo envolve o corpo numa dança

cinestésica que dilacera as emoções, amplia os horizontes e evoca sentidos para a

existência. Não há contornos definidos, o sensível flui de forma confusa e

indeterminada, atado ao corpo, a sua sensorialidade e ao viver estético.

Nesse mover, o atleta revela sua móvel forma de ser, passando pelo mundo

da criação e da recriação, ampliando o conhecimento e a vivência para um

aprendizado sensível, como uma forma de buscar novos sentidos e significados para

as incongruências que o esporte lhe apresenta.

Há algo no resultado do esporte que vibra o corpo, que faz os sentidos serem

tocados e que estimula o atleta a continuar ali. No jogo o atleta se inunda em

sensações e deságua numa correnteza de significações que refletem a abertura do

ser ao mundo esportivo, sem as determinações do que está pronto. Como afirmam

Fernandes e Lacerda (2010, p. 5): “A vitória e a derrota estão, portanto, implicadas

na experiência estética, manifestando-se a fruição de cada uma delas por um estado

emocional que conflui para uma multiplicidade de opiniões e formas de sentir e viver

o momento”.

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Para as autoras, não há dúvida de que o esporte leva ao corpo sensível do

atleta, experiências e estados emocionais multiformes expressos nas sensações

decorrentes dos resultados por eles alcançados.

Por isso, ele é capaz de mobilizar os sentidos, de confundir as categorias

lógicas e de ascender à existência para um viver estético sem limites, visto que nele

o vivido se faz propósito de sua existência e encontra no atleta um mundo vivo,

expressivo e em constante movimento.

Afinal, o esporte é assim, permite ao corpo viver tudo de novo, tudo diferente,

repetir o novo. Uma abertura ao desconhecido. Experiências que se renovam e

tecem um nó de significações, configuradas pela plasticidade do corpo em

movimento, afinal, “[...] tudo o que vivemos ou pensamos sempre tem vários

sentidos” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 233).

Se o esporte institui diferentes sentidos e valores em seu contexto, nos

conduzindo a uma liberação de pulsões, emoções e prazeres inimagináveis, a

experiência estética nasce desse encontro sensível entre atleta e esporte, em que o

sentido não está em nenhum deles isoladamente, mas na interação estabelecida

entre eles.

Nela, o mundo vivido, pautado na sensibilidade de existir, revela, a todo

instante, sentidos que não estão na ordem por vezes lógica e linear do contexto do

esporte, como por exemplo, a alegria na vitória e o choro na derrota. Ao contrário

disso, ela se mostra sempre de forma indeterminada, me colocando entre

interrogações, permitindo que, captada pelos sentidos, o corpo ganhe uma nova

dimensão existencial e se expresse no mundo.

Logo, é por meio da experiência estética que eu me torno sensível ao mundo

esportivo e sou convocada a viver sempre uma nova sensibilidade. Seja pela leveza

da vitória, seja pelo peso da derrota. Um paradoxo que possibilita novas formas de

enxergar, sentir e habitar o mundo. Todos pautados nas múltiplas impressões e

interpretações permitidas no jogar.

A prática esportiva, nas condições apontadas, faz com que a vitória deixe de

ser razão de sua realização e o estético ganhe forma nos acontecimentos que até

então estava latente, fazendo desvelar a cada instante uma nova forma de sentir e

perceber as coisas do mundo.

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Dessa forma, mesmo baseado numa lógica social contemporânea que busca

a excelência e a produção, o esporte também perpassa por uma lógica pessoal,

apropriado por diferentes grupos e contextos culturais particulares, em que sua

lógica, ao desencadear situações de conflito, estabelece aos participantes

experiências estéticas decorrentes dos seus resultados.

A relação vitória/derrota, materializada no contexto esportivo, afigura-se como

um cenário importante à estruturação da experiência estética do atleta no ato da

competição e também no mundo. Implicações expressas que se consubstanciam em

estados emocionais multiformes incorporadas e atribuídas de significados que

confluem para uma multiplicidade de formas de sentir e existir.

Assim, implicado na experiência estética, o resultado de uma partida

manifesta uma fruição de um estado emocional capaz de transformar as situações

presentes em aprendizados diários. Isto porque, o corpo sensível experimenta-se

em performances que podem ser vitoriosas ou não, consoante o objetivo proposto e

o resultado esperado.

Desta feita, as situações antagônicas vividas na prática esportiva ensinam a

viver no mundo conflituoso em que vivemos. Não por uma receita determinada, mas

uma forma de viver sensível, estabelecida a partir das coisas indeterminadas e

imprevisíveis, as quais, permitem expandir os horizontes para novas formas de vida

e convivência.

A prática esportiva amplifica o corpo no mundo, o mundo no corpo. Ela é a

forma do corpo em movimento, no qual a alegria e a tristeza revelam, a cada

instante, o homem na sua forma de ser, cujas formas podem ser as mais variadas e

imprevisíveis, posto que:

Cada “sentido” é um mundo, e, absolutamente incomunicável para outros sentidos, e, no entanto, constrói um algo que, pela sua estrutura, de imediato se abre para o mundo dos outros sentidos e com ele constitui um único Ser (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 202).

Nesse sentido, a forma inconstante do esporte ou da vida se faz no mundo,

nas indeterminações e nas situações de conflito sempre pronto para revelar a móvel

forma de ser do homem. Um viver sensível que faz o corpo, enquanto carne do

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mundo, abrir-se e entregar-se às manifestações do cotidiano da vida como um

estado sempre inacabado de ser com as coisas do mundo.

A experiência sensível inova o corpo, o faz reviver outras significações, uma

síntese inacabada sempre ampliada por intermédio da afetação estética. Um mundo

aberto aos antagonismos e aos passos de criatividade que se realiza na construção

de cada novo movimento do corpo.

Gesto técnico – a potência criativa do corpo

O handebol é um esporte em que a velocidade, os saltos e os lançamentos

combinados às ações individuais e coletivas compõem as características básicas

demandadas para a sua prática.

Como todo esporte, ele tem movimentos peculiares e uma fundamentação

técnica36, baseada em competências específicas que viabilizam toda a concepção

da modalidade, a saber: o passe37, a recepção38, o drible39, a progressão40, a finta41

e o arremesso42 (VIEIRA; FREITAS, 2007).

Para esses autores, tais movimentos considerados fundamentais no handebol

são gestos técnicos determinados, pautados em formas “corretas” de execução, os

quais apoiam todas as ações ofensivas e/ou defensivas da modalidade, permitindo

que os atletas apropriarem-se deles e os realizem de forma rápida e eficiente

quando solicitado.

36 A técnica esportiva, de acordo com Garganta (1998), trata-se de uma motricidade especializada e específica de uma modalidade desportiva que permite resolver de uma forma eficiente as tarefas do jogo. 37 É a ação de enviar e dirigir a bola ao companheiro de equipe, para facilitar a próxima ação do jogo. 38 É receber, amortecer e reter a bola de forma adequada nas diferentes posições e situações em que o jogador for solicitado. 39 É o ato de impulsionar e dirigir a bola em direção ao solo, uma ou mais vezes, sem perder o controle da mesma. 40 São os deslocamentos dos jogadores na quadra, quando eles movimentam-se de um lugar a outro, de posse da bola, obedecendo às regras do jogo no que diz respeito ao manejo da bola. 41 Constitui-se no ato de mudar a direção ofensiva, ludibriando o adversário a fim de evitar a sua ação defensiva. 42 São os lançamentos efetuados em direção às traves do adversário, para que a bola adentre e seja efetuado o gol.

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Geralmente, essas técnicas são ensinadas com base no gesto ideal,

obedecendo a determinados padrões justificados por uma eficiência mecânica.

Penetradas pelo saber científico da fisiologia do exercício, da biologia e da

biomecânica, essas técnicas são normalizadas em uma única forma de execução.

Desse modo, elas tornam-se tradicionais, perdurando como uma técnica modelar, a

ser executada por todos os atletas, tornando-se o padrão de correção de todas as

outras formas incompletas ou variantes delas.

Entretanto, dada a complexidade desse esporte, nas suas diferentes fases

(ataque e defesa), sabe-se que as competências para jogar não encontram

respostas apenas no modo de fazer o movimento dentro de um padrão. Ao contrário,

decorre de um conjunto de saberes que não são organizados linearmente, mas

construídos na variabilidade das situações, quando na dimensão do gesto “correto”

ou “incorreto", constitui-se um novo movimento para jogar.

Percebo que esses gestos sempre me envolveram, seja pela dimensão

citada, seja pela indeterminação de sua vivência estética e imprevisível. O fato é

que, ambas revelam, a cada instante, uma nova forma de expressar aquilo que eu

quero fazer em quadra, o que gera uma satisfação não apenas nas criações, mas

também nos duros treinos técnicos, nas sucessivas repetições e no sacrifício

corporal, como expansão do meu ser no mundo.

Mesmo submetida à exigência da vitória, a pressão do sucesso e superação

dos limites, levada a sessões com repetições exaustivas de gestos técnicos e

táticos, visando ao aperfeiçoamento e à melhor aprendizagem dos movimentos,

aparentemente o meu corpo, por vezes, parecia “esquecido”. Isto porque, conforme

afirma Le Breton (2011), geralmente o corpo é visto como um físico, como um objeto

que se adéqua a um modelo ideal, e como uma máquina possante, mas pouco como

existência, como corpo sensível que vive e que sente.

Contudo, ainda que nessas exigências eu manifeste implicitamente a vontade

de não sentir cansaço, de esquecê-lo, tanto quanto for possível, o corpo jamais

deixará sua condição de carne, mesmo diante dos limites, da exaustão e das

repetições. Como constata Le Breton (2011, p. 144), “a repetição das ações leva a

uma erosão dos sentimentos da espessura e da singularidade das coisas”.

Crio, a partir da minha própria experiência, um mundo de sentidos para cada

movimento, para cada gesto. E, a partir das relações, dos sentidos encontrados no

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corpo, vou aprendendo e compreendendo o esporte. Mas isto supõe um saber

independente de qualquer ensinamento, pois o corpo apropria-se do mundo

esportivo e dos movimentos ali vivenciados, dando-lhes um significado peculiar para

aquilo que foi assimilado.

Como afirma Merleau-Ponty (2011), um movimento é aprendido quando o

corpo o compreendeu, quer dizer, quando ele o incorporou ao seu mundo. Tal fato

pode ser observado na técnica do arremesso. Quando o corpo aprendeu aquele

movimento, não é preciso mais pensar nos detalhes para realizá-lo. O contexto do

jogo me faz realizar. O aprendido não foi um único arremesso, mas a totalidade do

movimento no jogo. Corpo, bola e movimento se afinam em significado. O gesto

técnico deixa de ser desconhecido, me misturo a ele e fundo-me corporalmente.

O movimento acontece no dado instante do jogo, entre o inteligível e o

sensível. Sou o próprio arremesso, meu corpo o abarca, na passagem a um alvo

pretendido, o gol. Ele acontece, o corpo aplica-se ao movimento e o movimento

abarca o corpo.

Nessa direção, quando salto para o arremesso nesta ou naquela quadra,

mesmo que o corpo seja solicitado de maneira diferente, não tenho mais a

concepção de como este movimento deve ser executado, o ângulo que o braço deve

estar, a rotação correta do corpo ou o posicionamento da bola na mão. Corro... E,

passo a passo sinto meus passos na quadra. Acelero ou desacerelo, como se só

houvesse aquele instante, e de fato, é o que há! Aqui não há fingimento, simulação,

nem qualquer outra preocupação para além do gol.

No bailar da bola em minhas mãos, nas ações das adversárias, nos espaços

devidamente preenchidos meu corpo contorce, recolhe, expande... Para cima e para

baixo, para um lado e para o outro, para frente e para trás, em um tempo lento e

rápido, de forma firme e suave! A ida ao gol provoca euforia... Passadas fortes e

leves sobre a quadra e sobre nada, sinto o chão e também o céu. Tenho a

impressão feliz de saltar alto e de voar em pleno ar, mesmo que por poucos

segundos. E nesse instante, já não me apetece nada além do gol, que me liberta e

me cativa ao mesmo tempo, convocando-me a repetir esse gesto que pouco a

pouco me embriaga, abarca meus sentidos e minha existência (Fotografia 08).

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O arremesso me faz ir além do que imagino ou determino. No encontro com o

confronto, o gesto treinado não é suficiente para revolver o problema que o jogo me

coloca. Sua automatização se mistura a novas formas de realizá-lo, retirando de

minhas entranhas uma gestualidade que não está no rigor de uma organização

premeditada, mas na adaptabilidade do momento, no brincar do corpo com a bola na

mão.

Uma experiência sensível do movimento que ganha amplitude e manifesta no

mover espontâneo do corpo, uma maneira de ser e de estar no mundo. Uma entrega

que expande meu ser para uma comunicação de sentidos e significados,

construídos pela indeterminação das técnicas específicas, e reveladas de forma

imprevisível no contexto do jogo e nas ações do corpo.

Quando me entrego ao arremesso, há um pulsar do coração mais acelerado.

Diante da projeção da goleira e sob o olhar atento da torcida, a técnica executada

toca os lugares mais sutis de minha sensibilidade.

Fotografia 08: Gesto técnico do arremesso Fonte: http://www.cbdu.org.br (2011)

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Fotografia 09: Expressões do arremesso Fonte: Arquivo da autora (2001)

Conforme revela a Fotografia 09, minhas expressões vão mudando de acordo

com o movimento dos gestos. Movo-me explosivamente e vou sinalizando

alterações orgânicas e também estesiológicas, dando ao silêncio dessa ação um

novo sentido ao vivido, revelando que “o gesto está diante de mim como uma

questão, ele me indica certos pontos sensíveis do mundo, convida-me a encontrá-lo

ali” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 252).

Afinal, a sua execução não permite fuga, mas caminhos de escape. Na

brevidade do salto, conforme pode ser visto quando me impulsiono ao gol

(Fotografia 10), meu corpo se move, experimenta, improvisa. E, quando menos

espero, ele inventa novos encadeamentos gestuais, novas formas de vivenciar o

jogo e de fazê-lo acontecer.

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O gesto técnico se abre às interseções do movimento e, no contexto dado, a

técnica é reinventada, evidenciando a potência criativa do corpo e a estabilidade

instável do gesto técnico.

Por isso, o gesto realizado não se reduz a uma mera reprodução, ao

contrário, é sempre uma nova implicação do corpo, em sua capacidade de

metamorfosear-se, de sentir o jogo e viver o devaneio da criação do gesto esportivo.

Tal compreensão pauta-se nas ações do atleta em quadra. Atitudes

estruturadas pelo êxtase e arrebatamento corpóreo diante do jogo, quando, na

veemência do agir, as sensações cinestésicas se apoderam dele, revelando uma

unificação do corpo com o pensamento.

Como já afirmou Merleau-Ponty (2004b), toda técnica é técnica de corpo e ela

amplifica a metafísica de nossa carne. Por isso, o esporte não pode ser

compreendido em partes, nem em movimentos específicos, haja vista a técnica não

está no esporte, nem tampouco em ações ideais, mas na experiência do movimento,

na forma como o atleta se dirige ao mundo esportivo e nele se expressa. Pois,

Fotografia 10: Salto para o gol Fonte: Arquivo da autora (2001)

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Somos não só um corpo sensorial, mas também um corpo portador de técnicas, estilos e condutas aos quais corresponde toda uma camada superior de objetos: objetos culturais aos quais as modalidades de nosso estilo corporal conferem certa fisionomia (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 542).

Nesse entendimento, o corpo é tanto sensível a uma conduta como criador de

sentido, uma vez que, antes da ação, há apenas uma ausência. O que preenche as

lacunas dessa ausência é o gesto, a técnica.

Todo arremesso exige a aquisição e o aprendizado de uma técnica ou de

várias técnicas, para então ser executado. E isso, é indispensável para o gesto

como expressão do novo, do inusitado, do estético.

A prática esportiva não é reduzida apenas a uma técnica padronizada nem a

repetição de movimentos mecanizados, cada ação e conduta realizada estar

revestida de sentido que o próprio atleta impõe, fazendo dos gestos uma junção de

técnica e sentimento.

Nóbrega (2005), ao falar sobre a motricidade e a corporeidade como um

entrelaçamento indivisível no movimento humano, corrobora esse sentido do gesto

técnico vivido pelo atleta no contexto esportivo. Para ela, quando se realiza um

movimento dentro do esporte, mesmo que ele seja um gesto padronizado, ou ainda,

que se repita inúmeras vezes, ele jamais se reproduzirá da mesma forma, ou será

somente um estímulo mecânico. Todo o ser se envolve naquele instante e através

dele define-se uma maneira própria de realizar, sentir e interpretar aquele momento

(NÓBREGA, 2003).

Quando corro no jogo, quando grito em cada gol realizado, quando vibro ao

defender o adversário, não utilizo somente meu equipamento anatômico

objetivamente. Mesmo que, interiormente haja a ocorrência de reações anatômicas

e fisiológicas para cada ato, o corpo não se reduz a um automatismo periférico. O

corpo se expressa, vive os sentimentos, vive as sensações, em outros termos:

“realizar um movimento é realizar os projetos de nossa existência, é saber-se

enquanto ser de potencialidades originais” (NÓBREGA, 2005, p. 67).

No mesmo pensamento, recorremos novamente ao filósofo Merleau-Ponty

(2011), que em suas reflexões sobre o corpo e o movimento humano, afirma não

haver separação entre pensamento e movimento. Logo, a motricidade não está

somente no intelecto ou na consciência, mas no modo como o corpo se relaciona

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com o mundo. Em suas palavras: “a experiência motora de nosso corpo não é um

caso particular de conhecimento; ela nos fornece uma maneira de ter acesso ao

mundo e ao objeto” (MERLEAU-PONTY, 2011. p. 195).

De fato, os aspectos do corpo, do movimento e do sensível como

configuração da corporeidade e da percepção como criação e expressão da

linguagem, expressos no pensamento do filósofo, possibilitam compreender que o

caminho que o ser humano faz em direção ao mundo é feito a partir de uma

experiência que podemos chamar experiência sensível, criadora e afetuosa.

Para Merleau-Ponty (2011), o corpo não é coisa, não é objeto, nem ideia, mas

movimento. É sensibilidade que se põe em movimento no mundo e que nele cria

sentido. Logo, esse corpo vive, compreende o movimento e adquire o hábito, que é

a apreensão motora de uma significação motora.

Dizer que o corpo aprendeu e adquiriu um hábito motor é dizer que aquele

movimento instaurou uma significação nova, um sentido novo. Nessa experiência do

corpo, quando se adquire esse hábito motor, o espaço do objeto se integra ao

espaço corporal, em outras palavras:

Na verdade, todo hábito é ao mesmo tempo motor e perceptivo [...] reside, entre percepção explícita e o movimento efetivo, nesta função fundamental que delimita ao mesmo tempo nosso campo de visão e nosso campo de ação (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 210).

Dessa forma, o atleta capta, por meio dos sentidos, as formas técnicas e

táticas do esporte, e por essas sensações se entrega a potência da criação,

transformando pela dimensão do sensível esses movimentos em gestos seus. Ele

ultrapassa o automatismo e a reprodução dos gestos ao compreender aquela ação,

e entre a intenção e a efetuação dela, esse movimento constitui-se significação.

Afinal, não há limites para o corpo. Ele sabe, ele conhece. Pode quase tudo,

diria Serres (2004). Nesse universo de possibilidades, na imanência entre o sentir e

o fazer, ele cria e recria; inventa e reinventa. Amplifica a existência e constrói novas

expressões para aquilo que já existe, pois ele: “[...] se lembra de tudo, sem qualquer

dificuldade ou impedimento. O que nos distingue das máquinas é unicamente nossa

carne divina; a inteligência humana se distingue da artificial apenas pelo corpo

(SERRES, 2004, p. 18).

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A origem do conhecimento reside no corpo, no sentir e no viver sensível, o

que permite ao movimento mergulhar nessa dimensão corpórea, se transformar e

aparecer novamente já compreendido. “Não é preciso que os gestos se repitam

muitas vezes para que o corpo se aproprie deles e se torne bailarino ou sapateiro.

[...] o corpo imita, armazena e lembra” (SERRES, 2004, p. 75).

Nesse contexto, em sua móvel e movente forma de ser, ele trata de reinventar

sua própria trajetória, ao ponto de atravessar o gesto preexistente, subverter a

ordem instrumental e constituir novas possibilidades gestuais, investidas de

plasticidade e sensibilidade.

Assim, a potência criativa se mostra na técnica esportiva. Quando a dimensão

mecânica não é capaz de regulamentar o estilo pessoal, e o corpo suplantador cria,

na dinâmica do jogo e na idiossincrasia do atleta, possibilidades de avançar.

Por isso, os padrões e as inovações se condicionam reciprocamente,

formando uma unidade no contexto esportivo. Isso nos permite dizer que, os gestos

técnicos são potências criativas do atleta em jogo, pautados não por uma

reprodução ou designação objetiva, mas pelo esforço corporal e pela placidez do

corpo em movimento. Esses gestos, amparados pelo diálogo sensível do atleta com

o esporte, transbordam sobre a razão objetiva, uma experiência estética que amplia

o sentido da vida e conduz a uma nova dimensão de Ser no mundo.

Os saberes do corpo vão reconhecendo nessas técnicas uma gestualidade

própria, por meio da sensibilidade tácita, particular, que abarca o atleta diante do

inesperado de um movimento, tornando impossível viver o esporte sem um contexto

de descoberta, experimentação, devaneio e criação.

Nessa direção, o corpo nunca está acabado ou pronto como uma máquina

industrial, mas se constitui na cadência dos passos e dos descompassos, dos ciclos

do ir e do porvir, das relações que travam em sociedade. Um verdadeiro fluir de

indeterminações que descem pelos recônditos da existência sem saber onde

desaguar.

A cada nova ida e vinda, uma possibilidade de reinventar-se. Ações humanas

sobre um mundo em processo de construção e formação constante, apresentando

que o corpo é, simultaneamente, orgânico, sensorial e cultural, inserido dentro de

um contexto social, sedimentado de uma existência de afetos e desafetos de sua

historicidade, em que:

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[...] seja qual for a singularidade das condições locais ou temporais, o fato social nos aparece sempre como variante de uma única vida da qual a nossa também faz parte, e que qualquer outro seja para nós um outro nós mesmos (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 121).

Nessa relação, o homem não vive somente num mundo físico e particular, há

ao seu redor o mundo cultural, que reflete suas ações e seus vínculos. Portanto, o

outro, como ser pessoal na relação com o meu eu, na mesma dimensão na

experiência vivida posta nos contextos histórico-social, político-econômico, se

apresenta como uma intersubjetividade em ação. Ou seja, horizontes abertos, onde

o homem exerce sua ação, se engaja e reconhece no diálogo com os demais a

pausa ou a continuação da sua vida.

Não há contornos definidos. Por meio dos gestos e das expressões sensíveis

diretamente vinculadas ao corpo e comunicadas pelo movimento, o homem vai

delineando a maneira própria de estar no mundo.

Assim, o corpo enquanto dimensão própria do homem, na condição de sujeito

de uma cultura representada por toda uma gama de signos e símbolos dentro do

processo histórico e cultural, não está fechado em si mesmo, mas no átomo social,

em que sociedade e vida, ao invés de se oporem, enunciam um eu-outrem-mundo.

Ora, de acordo com Merleau-Ponty (2011), a subjetividade não é a identidade

imóvel consigo, ao contrário, ela abre-se a um outro e sair de si, uma existência

particular e social que faz a vida ser mais “interior”. Quer dizer, existe aí uma

intersubjetividade que é da ordem do vivido e, portanto, existente, nas relações

sociais.

Nesse sentido, a existência social é um horizonte constante da existência

individual, em que realidade social e existência social se confundem por meio da

vida intersubjetiva do homem.

Nesse pensamento, reconhecendo o caráter histórico-social da constituição

humana, a existência é um movimento de engajamento no mundo. Uma situação

física e social, construída a partir de uma linguagem comum entre os corpos e

desses com o mundo, manifestado em todas as suas formas pela motricidade.

Cada momento do movimento abarca toda a sua extensão, e em particular o primeiro momento, a iniciação cinética, inaugura a ligação entre um aqui e um ali, entre um agora e um futuro, que os outros momentos se limitarão a desenvolver. Enquanto tenho um corpo e através dele ajo no mundo, para

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mim o espaço e o tempo não são uma soma de pontos justapostos, nem tampouco uma infinidade de relações das quais minha consciência operaria a síntese e em que ela implicaria meu corpo (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 194).

O corpo movimenta-se, se expressa, modifica o mundo e se modifica a partir

dele. O corpo move o movimento, e o movimento move o corpo numa dialética que

se expande através da expressão criativa, interpondo-se ao mundo. É, portanto,

uma relação afetiva, orgânica, sensorial e dialógica, tudo mediado pela sociabilidade

do ser humano como sujeito ativo nas coisas do mundo.

Assim, mesmo no racionalismo existente no esporte há espaço para o êxtase

corporal, que permite que o ser humano, o atleta, e mesmo o espectador explorem o

corpo, as sensações, as tensões. Uma entrega de corpo e alma capaz de resultar

um novo uso do espaço, um êxtase, uma suspensão no tempo da vida normal,

cotidiana.

O esporte transfigura os momentos ordinários da existência, inventa sob

novas formas o poder do corpo, um eu posso no tempo, no espaço e na cultura, por

meio da motricidade regida pelo próprio corpo.

Assim, a existência, afirma Merleau-Ponty (2011), é o movimento pelo qual o

homem está no mundo, engaja-se numa situação física e social, que se transforma

no seu ponto de vista sobre este, de modo que a história individual se mistura aos

acontecimentos do mundo. Uma relação que nutre o homem para expressar suas

experiências, criando novas significações que expressem apropriadamente o sentido

de sua intenção nova, singular e plural.

Sendo assim, o atleta não é a identidade imóvel consigo, preso a uma

causalidade linear, posta em condições de um esporte separado da vida. Ao

contrário, é uma dimensão de existência e coexistência, em que cultura e vida

deixam de se opor para se tornarem um fazer em comum que, sem cessar, se faz

sob o modo do nós, isto é, a coexistência social (MERLEAU-PONTY, 1991).

Isso nos permite dizer que o eu do atleta se apropria de seu viver pessoal e

da presença do outro, constituindo um mundo comum de homens finitos,

inacabados, corpóreos, historicamente situados e constituídos a partir de uma

sensibilidade que se qualifica na intencionalidade dos movimentos guardados no

tempo, no espaço e nos rastros da vida.

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Com isso, afirmamos que o ser humano tem sua existência na e pela

sociedade, sendo esta uma forma de solicitação e condicionamento que serve de

orientação para a compreensão do mundo.

O mundo social existe ao constituir sentido para os indivíduos que nele vivem.

Cada ato individual é retirado de uma dimensão privada e inserido numa estrutura

totalizante que o reveste de um sentido novo ou o desvia daquele primitivamente

intencionado pelo sujeito.

Nessa troca intencional, o corpo-outrem-mundo vai transcendendo o natural,

o normal, com a sua capacidade de atribuir significado às coisas, sobretudo pela

comunicação intersubjetiva. Um mundo particular e social que vai sendo construído

pelas ações e relações humanas, abrindo novos modos de busca e preenchimentos

que passam a desencadear a realidade objetiva como realidade subjetiva.

Assim, compreendemos que o mundo social não existe na terceira pessoa,

mas é experimentado numa subjetividade que reelabora o homem a partir da

especificidade de sua situação. Logo, cada ação individual retira-se de uma

dimensão privada que está inserida numa estrutura totalizante que o reveste de

sentido, ou seja, um mundo social e um mundo pessoal que se apresentam como

existentes em si para além de minha existência mesma, ou melhor:

[...] o social não é somente um objeto, mas em primeiro lugar a minha situação, e quando desperto em mim a consciência desse social-meu, é toda a minha sincronia que se me torna presente, é todo o passado que, por meio dela, me torno capaz de pensar [...]. É toda a ação convergente e discordante da comunidade histórica que me é dada efetivamente em meu presente vivo (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 121).

Nessa direção, há a inerência do sujeito a um mundo social, de modo que, o

social existe surdamente como solicitação e condicionamento. Tanto o mundo social

quanto o mundo individual se apresentam como existentes “em-si” para além de

suas existências para mim mesma. O que nos faz compreender que, cada ato

individual é tirado de uma dimensão privada e é inserido numa estrutura totalizante

que o reveste de um sentido novo ou o desvia daquele primitivamente intencionado

pelo sujeito.

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Assim, na concretude de sua experiência subjetiva, o indivíduo vive a sua

presença em certa sociedade, sobre um mundo nunca constituído e nunca acabado,

em processo de construção e formação constante. Daí que “no objeto cultural, eu

sinto, sob o véu de anonimato, a presença próxima de outrem” (MERLEAU-PONTY,

2011, p. 466)

Notadamente, o homem não vive somente num mundo físico, há ao seu redor

o mundo cultural, que reflete a ação humana. Cada objeto do mundo cultural emite

uma atmosfera de humanidade que assume o homem por conta própria e o

reelabora a partir da especificidade da sua situação.

Em minha experiência narrada, não constituo um mundo particular, pessoal e

independente dos demais. Percebo um mundo comum ao dos outros, no qual me

relaciono e me comunico com outros sujeitos, não somente ao nível da fala, mas no

plano mais profundo e invisível, familiar, cultural. Logo, a trama dos acontecimentos

e das relações pessoais evidenciadas no tempo-espaço do corpo em quadra, no

olhar do contexto esportivo, no contato com o adversário, na vitória ou na derrota, e

no gesto técnico, estão na inerência do mundo e dos outros que me abre e insinua

um “algo”, através de meu corpo como um halo existencial.

Para tanto, sendo o trama individual atravessado pelas configurações sociais,

fica evidente a construção da prática esportiva para além dos determinismos e

padronizações que lhes são tipificadas, bem como, para além do devir de uma

individualização corporal. Os atletas, em meio à dinamicidade esportiva, atribuem

sentidos e constroem novas significações por intermédio das sensações do corpo e

das construções subjetivas que perpassam o esporte por meio da experiência

estética num vínculo do individuo com o mundo.

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Intervaloo jogo como devaneio

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O processo do jogo é exactamente este: uma configuração dinâmica de seres humanos cujas acções e experiência se interligam continuamente

Norbert Elias

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Neste capítulo, discutiremos a partir dos filmes “Invictus” e “Olympia”,

aspectos relacionados à vertigem, a tensão e excitação, e, ao paradoxo.

Recorremos a alguns autores como Merleau-Ponty (2004b, 2011) e Benjamin

(2002), para fundamentar a experiência estética que existe no jogo; Elias (1992) e

Welsch (2001), para compreender como no esporte é possível viver ao mesmo

tempo o autocontrole e o descontrole das emoções na perspectiva de deslocamento

do ético para o estético; e Mauss (2003), para entendermos que o atleta imbuído de

técnicas corporais vive a prática esportiva de forma tradicional e dinâmica.

Refletindo sobre a doação do homem ao mundo, afetado pelas coisas que

estão entregues ao contado do corpo, e aberto aos sentidos, nos apoiamos no

pensamento de Merleau-Ponty (2011), o qual mostra a participação efetiva do corpo

no envolvimento com as coisas no mundo, revelado como primazia para o

conhecimento que se manifesta ao sujeito por meio da existência. Assim ele afirma:

“O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao

mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é

inesgotável” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 14).

A concepção sobre o mundo vivido pensada pelo filósofo nos faz

compreender que no encontro do atleta com o esporte há uma comunicação entre

corpos, a qual é capaz de movê-los numa sinergia de múltiplas sensações, que

expande a existência para novos horizontes, revelando uma experiência fluida que

arrebata os sentidos e gesta novas formas de vida e convivência.

Assim, é o mundo vivido no esporte, o mundo o qual o corpo abarca, é

abarcado por ele e se interpenetram como parte de uma mesma existência, de um

mesmo tecido.

Esporte e atleta não são mundos distantes, mas horizontes que existem em

unicidade, em que o sensível é a expansão da expressão criativa e perceptiva. E

nesse processo, o saber é construído na medida em que experiencia-se o corpo no

esporte e vive-se a dor, o sacrifício, o confronto, as regras, mas também a leveza, a

graça e o fascínio de ser atleta.

Isto porque, no esporte, o atleta se funda em sensações e emoções

decorrentes das experiências ali vividas, ou seja, no corpo que joga. Corpo que se

machuca, que chora, que obedece, que padece, que sente, que vive e que se

comunica intensamente, ascendendo e reascendendo seus sentidos, escrevendo

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sua história nele, mas, simultaneamente, sendo marcado por ele. E isso se

manifesta como uma abertura do corpo ao esporte, que dá ao atleta sentido àquilo

que ainda não tinha, visando significações que transcendem o mundo biológico.

Se o pensamento fenomenológico de Merleau-Ponty reflete sobre a

experiência originária de nosso engajamento existencial no mundo por meio do

corpo, e considera a existência como fundante da experiência humana e não o

pensamento conceitual, entendemos que há no corpo um núcleo de significações

em que ele é um contínuo movimento de transcendência43 ao mundo.

Assim, a experiência estética vivida no contexto esportivo retira o corpo da

explicação causal e o arrebata para um outro mundo. Segundo Merleau-Ponty

(2011, p. 248),

A expressão estética confere a existência em si àquilo que exprime, instala-o na natureza como uma coisa percebida acessível a todos ou, inversamente, arranca os próprios signos – a pessoa do ator, as cores e a tela do pintor – de sua existência empírica e os arrebata para um outro mundo.

Nessa perspectiva, podemos compreender o esporte como malha que liga o

atleta ao mundo, aos outros e a si mesmo, permitindo que ele se encontre com as

intrínsecas condições da dor e do prazer, da harmonia e do conflito, do conhecer e

do sentir, além de construir sua singularidade em torno da experiência vivida, em

meio à multiplicidade de sentidos criados e recriados no mundo esportivo.

É nesse cenário que a estética do esporte tenciona valores sensíveis e

educativos numa perspectiva que prima pela espetacularização da performance

corporal, mas também pelos sentidos e idiossincrasias que ele manifesta nos

jogadores e nos seus apreciadores.

Como mostra Mafessoli (1996), é o enlace sensível, portanto, estético, que

produz o amálgama social. Logo, as estruturas culturais, sejam elas religiosas,

artísticas ou esportivas, certamente transcorrem da abordagem estética, assim,

“integrar o sensível na análise social é dar prova de lucidez” (MAFFESOLI, 1996, p.

73).

43 O transcendental aqui pauta-se na perspectiva do corpo numa imanência em relação às experiências, ao acontecimento, ao mundo vivido, em que ele passa por uma modulação existencial com a sua realidade circundante (MERLEAU-PONTY, 2004b, 2011).

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Entretanto, o que se percebe é a negligência do debate estético no esporte,

sobretudo no que diz respeito a uma melhor compreensão dessa manifestação

cultural, que ultrapassa a dimensão pessoal ao ancorar-se no contexto mais amplo,

o social (WELSH, 2001).

Nesse pensamento, acreditamos que os enredos sociais que configuram o

esporte apresentam significações estéticas peculiares que extravasam os campos

esportivos para difratar-se no conjunto cultural, fazendo-o emergir como prática

corporal prazerosa, relativamente dependente e autônoma. E é nesse intuito que

buscamos indícios na formação social, para refletirmos sobre o esporte dentro de

uma estrutura social mais ampla, configurado dentro de um dispositivo de regulação

estrutural e cultural, capaz de afetar o corpo e alargar o horizonte do atleta no

mundo, expandindo a existência para uma vida que se constrói a partir dos

princípios do educar-se por meio do sensível.

Para isso, utilizaremos duas produções cinematográficas como indicadoras do

debate, pelo entendimento de que mesmo que elas recaiam sobre tempos distintos

de sua criação, ambas podem formular a representação do imaginário pessoal e

social como uma maneira ontológica de existir e de educar-se pelo jogo.

Vertigem

No esporte a ordem e a desordem estão presentes. É na tensão, na incerteza,

na imprevisão e na ousadia que as ações dos atletas se desenvolvem. E há, sim, a

valorização de condutas para obtenção do sucesso e da vitória. Todavia, é preciso

reconhecer que nele não há só ordem imposta, existe também uma desordem que é

gerida por essa dominação.

Nessa perspectiva, ele se constitui entre a ordem dada e a desordem

gestada. É preciso o devaneio para o jogo acontecer. Corre, ataca, receba a bola,

arremessa, volta, defende, passa a bola, corre... O jogo é dinâmico, ele não para! O

corpo se move, cria, modifica, comunica e significa.

O ambiente do jogo é essencialmente complexo, aberto, dinâmico e não

linear, o que permite ao jogador gerir a ordem e a desordem, numa relação de

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complementaridade e antagonismos, ou seja, que não estão totalmente

entrelaçados, mas são irredutíveis.

Nesse diálogo, há a necessidade de uma constante reorganização das

situações decorrentes do jogo. O que imprime ao jogador uma organização

desenvolvida entre a ordem, que são regras, regulações e os padrões de movimento

do esporte que pratica, e a desordem que integra a modalidade jogada ao jogador

como fonte geradora de toda ação ali realizada.

Assim, diante da necessidade de conseguir responder às emergências do

jogo, o atleta vive a vertigem como uma maneira sempre nova de jogar. Com ela, a

sua existência é colocada em xeque, exigindo novas formas de equilíbrio e de

desequilíbrio, de idas e de vindas, de aproximações e de fugas, uma experiência na

qual surge uma nova realidade e o atleta transforma as indeterminações em

movimentos de vida.

Porpino (2012), ao refletir sobre o corpo, a experiência e a existência por meio

do mundo da arte, ou melhor, da experiência vivida a partir dela, convida-nos a

reconhecer o corpo como existência, mesmo sabendo que qualquer relato sobre a

experiência vivida jamais pode ser confundido com a própria experiência.

Tomando como campo estético de reflexão para seu texto algumas obras de

arte44, a autora parte deliberadamente da experiência sensível frente a elas,

tematizando sobre a vertigem que as mesmas proporcionam na apreciação. A

vertigem permite, a partir desse momento, modificações na existência, reforçando a

impressão de que é preciso reaprender a ver a cada instante.

Pensamos que de modo semelhante ocorre com o atleta no âmbito esportivo.

Assim como acontece com o apreciador diante das obras de arte, o atleta em jogo

tem a sua existência fundada no vislumbre da sensibilidade que se abre a cada vez

que ele se dispõe a jogar. Uma existência capaz de levá-lo à compreensão não

apenas daquele contexto, mas dele mesmo, dos outros e do mundo.

Nessa perspectiva, é possível dizer que a prática esportiva causa vertigem,

pois ela coloca o atleta a espreita do inesperado, frente aos antagonismos e às

instabilidades provocadas na experiência. Afinal, o jogo muda o instante, exige um

reordenamento das técnicas e do corpo, incluindo rupturas e fragmentações. Um

44 Artistas europeus como Vanessa Breecoft e Antony Gormley.

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estado vertigionoso que permite vivê-lo simultaneamente entre a rigidez e a

sensibilidade. Ou seja, a prática esportiva pode ser vivida como jogo em si, no

sentido liberal e dinâmico do jogar, pois antes das modalidades serem esportes

institucionalizados, elas são, sobretudo, jogo jogado. Assim como esclarece Knijnik e

Knijnik (2004, p. 109): “Mais do que categorias separadas em um continuum

estanque, a brincadeira vira jogo que se transforma em esporte, que pode vir a ser

uma brincadeira novamente”.

Nesse sentido, o caráter organizacional do esporte revela, portanto, uma

vertigem desafiadora. Os corpos de formato firme também são sensíveis ao que se

passa ao seu redor e em si mesmo, absorvendo o jogo e permitindo um diálogo com

as coisas que afetam o mundo da experiência vivida.

Na prática esportiva, nossa existência é confrontada, e a partir desse

momento não somos mais da forma que fomos no último instante. O corpo muda,

exigindo novas formas de equilíbrio, de desequilíbrio, de correr, de parar, de avançar

e de retroceder. Ela nos ensina a reaprender a ver o mundo e a nós mesmos,

modificando nossa existência a cada momento, ao modo como Serres (2004, p. 129)

se remete ao corpo e ao mundo vivido:

Essa vertigem corporal, testemunho da passagem contínua de um estado de equilíbrio rígido para um segundo estado paradoxal e refinado, depois para outro e mais outro que, de outra forma, permaneceriam estáveis por movimentos imprevistos, nós a experimentamos a cada entrada em um mundo que nos desorienta e a cada encontro com uma nova e inesperada lógica que aparentemente interpreta às avessas nossas atitudes, mas que, no entanto, descobre e perpetua os habitus complexos do corpo.

O esporte modifica a existência com sua rigidez ou com sua abertura, fazendo

o atleta, paradoxalmente, dependente e livre. Pois, de uma forma ou de outra, ele

delibera e ressoa como um ato que integra e reanima a vida, modifica o homem e

permite que ele o modifique, inaugurando formas de habitar o mundo, atualizadas

pelas situações nele encontradas. E isso é o que se pode observar no filme

“Invictus”.

Nele, dois personagens se destacam. Mandela, presidente da África do Sul,

busca no esporte a possibilidade para acabar com o fosso da segregação racial

entre negros e brancos existente no país. E, François Pienaar, capitão dos

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Springboks, sonha ganhar a copa do mundo, mesmo diante do descrédito dos

torcedores e das sucessivas derrotas que sua equipe vinha sofrendo.

Na obra, o poder ideológico, a competição exacerbada, a exaltação da

virilidade e a força perpassam o esporte, sem, no entanto, ofuscarem o universo do

agir, pensar e mover dos atletas dado pela dimensão ontológica do corpo, em sua

condição sensível de existir.

O esporte mostrado, o rúgbi, vai ganhando novos contornos no desenrolar da

trama. Vinculado à tenacidade e atrelado a uma ideia de vigor, também dialoga com

uma forma de jogar que desconstrói a eficiência moldada pelos ideais olímpicos. Isto

porque, a máxima olímpica do “mais alto, mais forte e mais veloz”, no filme, é

acrescida de valores estéticos como afetação, sensibilidade e significação, os quais

não estão retidos em conceitos, mas no fazer e refazer da experiência, dando

sentidos às coisas vividas e mostrando que “O sensível desafia as análises do

corpo, do espaço e do tempo em sua objetualidade. Desenhamos o espaço, vivemos

no tempo, por isso criamos gestos como os gestos do esporte” (MELO; NÓBREGA,

2006, p. 37).

A relação ideológica entre esporte e política caminha atrelada ao projeto de

integração e coesão social, potencializando valores e legitimando a experiência

estética do atleta no jogo.

Certamente, o filme gera formas diversas de pensar o esporte para além do

escopo utilitário e político, uma vez que, evidencia, a partir das demandas dos

Fotografias 11 e 12: Nelson Mandela e François Pienaar Fonte: Invictus. Cena 5 (2009)

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jogadores, uma vivência que versa sobre o atleta e esporte, como fenômenos

entrelaçados por meio da estesia, como forma de expansão do corpo sensível para

uma experiência estética dele com esse mundo.

Na produção cinematográfica, o esporte acoplado tanto à ideia de inclusão

como de vigor, aceitação do outro, resiliência, catarse e união, também dialoga com

as sensações dos atletas.

O rúgbi aparece como um jogo empolgante para os jogadores. Ele combina

força, tática e velocidade em um espetáculo agressivo e ao mesmo tempo virtuoso,

pautado pela habilidade e pela beleza das performances45 técnicas dos atletas.

As disputas durante os jogos remetem-nos à polidez/virilidade,

intensidade/suavidade, júbilo/choro, numa cumplicidade de sentidos, ao mesmo

tempo harmoniosa e conflituosa em todo contexto esportivo.

Em campo, os movimentos são fluidos, no vai e vem da bola, os corpos

jogam, o jogo torna-se jogado e jogante. E, o que parece previsível, desaparece,

trazendo uma indeterminação resultante dessa relação, em sua possibilidade de

expandir o corpo na dimensão do sensível e eclodir os sentidos a correnteza de

significações antes latente.

Mais do que jogo previsto é o inesperado que vemos. Ações, ritmos e

expressões que ousam o corpo numa dança que liberta e cativa, que silencia e

comunica, evidenciando, pelas expressões dos atletas, gestos que eclodem na

entrega do corpo aos sentidos efervescentes desse mundo vivido.

Os movimentos dos jogadores, especialmente em meio ao cansaço, vão além

das ordenações da técnica esportiva. Os atletas conseguem nuançar os gestos

padronizados com a potência sensitiva do jogo, fazendo fluir, por intermédio da

experiência estética, uma nova atitude corporal.

Tal caminho pode ser percebido nas últimas cenas do filme. No final da copa

do mundo, todo determinismo se desfaz e novos caminhos vão sendo traçados por

ambas as equipes. Enquanto os All Blacks (equipe neo-zelandesa) mostram sua

eficiência com a virilidade dos jogadores, a ampla experiência da equipe e as

técnicas padronizadas do esporte, os Springboks, distante disso, buscam a

superação de si mesmos, fazendo de cada jogada um universo de elaborações de

45 A performance aqui não diz respeito ao desempenho do corpo para alcançar um determinado fim, mas ao desempenho imprevisível do corpo em movimento vivenciado através da experiência estética.

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acordo com o ritmo do corpo que se mexe e se contorce por intermédio do fervor

esportivo.

Em campo, o jogo é tenso, termina empatado e vai para a prorrogação. A

inquietude é geral. De um lado, uma forte equipe, do outro, um time aguerrido,

incentivado pela autoconfiança do capitão que incentiva sua equipe dizendo:

“Levantem a cabeça, olhem nos meus olhos, estão ouvindo? Ouçam o seu país [...]

Sete minutos. Temos sete minutos! Defesa, defesa, defesa! É isso aí, vencer é o

nosso destino. Vamos bokke! Vamos! Vamos ser campões do mundo”.

Fotografias 15 e 16: Equipe Sprinboks Fonte: Invictus. Cena 22 (2009)

Fotografias 13 e 14: Equipe All Blacks Fonte: Invictus. Cena 22 (2009)

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A câmera, sob diversos ângulos, em imagens lentas, demonstra a

efervescência estética da experiência sensível que se revela nos corpos desses

atletas, explodindo uma comunicação ardente a qual contagia o ambiente pelo viés

da sensibilidade e do fazer de suas ações.

Esses fatores compõem as últimas cenas do filme, tomando maior amplitude

pelo contexto em que o jogo é mostrado, a saber: faltam sete minutos para acabar a

partida e os africanos perdem por três gols.

O que se vê são os africanos correndo pelos campos da sensibilidade e da

expressão criativa para tentar ganhar a competição. E o corpo jogando para o

mundo da criação, do fazer estético embalado pela experiência sensível do

movimento, ganha amplitude, dimensiona a expressão corpórea, germinando, dos

movimentos antes insólitos, inusitados sentidos e significados a experiência do

jogar.

A abertura às multiplicidades dos corpos em movimento, mostrados por

intermédio da ética, da cultura e dos sentidos creditados ao esporte, também pode

ser verificada em produções cinematográficas que têm dado visibilidade a sua

valorização estética sem esquecer seu enredo mesmo que ele tenha um sentido

plural.

Tomemos como exemplo, também, a produção “Olympia”. Feito por

solicitação de Adolf Hiltler, o filme é por vezes criticado em virtude da ideologia que

Fotografias 17 e 18: Capitão Pienaar incentivando sua equipe Fonte: Invictus. Cena 24 (2009)

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veicula. Isto porque, nesse evento, o líder alemão promoveu uma intensa

mobilização para demonstrar a superioridade física da raça germânica em relação

aos demais povos. Todavia, essa obra ultrapassa a política para se transformar em

um triunfo artístico das proezas atléticas e do corpo humano em movimento,

revelando “uma realidade nuançada pelo conflito e pela beleza que caracterizam os

Jogos Olímpicos como cenário político e estético” (MELO; NÓBREGA, 2006, p. 26).

Marco do documentário esportivo mundial, encontramos neste filme uma

maneira bastante artística de mostrar o virtuosismo do espetáculo esportivo e a

beleza estética dos esportistas em movimento. Ele começa como uma simulação do

Olimpo, exibindo as ruínas de Atenas, as estátuas de deuses gregos e o clima de

perfeição e pureza preconizadas pelo ideal olímpico. Posteriormente, aparece o

Discóbulo, que se vivifica e completa o movimento aprisionado da estátua, surgindo

em seguida os atletas com suas movimentações, performances artísticas e com a

aclamada passagem da tocha olímpica até o estádio para a cerimônia de abertura.

Fotografias 19 e 20: Deuses gregos Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 1 (1938)

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As imagens se abrem e se dissolvem, num ritmo suave e ondulado, em tons

claro e escuros, em direções e sequências que, num contínuo temporal, vão

ganhando forma expressiva para se transformar a dramaturgia em uma projeção do

real em vida.

Fotografias 23 e 24: Performance e passagem da tocha olímpica Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 3 (1938)

Fotografias 21 e 22: Discóbulo vivificando Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 2 (1938)

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Com uma rica produção de imagens, sons e movimentos, “Olympia” retira do

real as expressões e as técnicas realizadas pelos atletas para fazer aparecer à

expressiva e potente força da competição, da beleza dos corpos e do ideal olímpico.

Como afirma Almeida (2006, p. 83), a interação das cenas à sintaxe da edição exibe

neste filme um “conjunto de partes em movimento que, em ideologia técnica e

estética, visual e sonora, conduz e imerge o espectador, ao longo da projeção do

filme, na ‘ideia olímpica’, ao mesmo tempo em que trabalha sua memória e a refaz”.

A referida produção apresenta os interesses políticos e econômicos de

corporações dentro do esporte, e o uso dele para sacramentar a ideia de corpo

como perfeição, como o triunfo de um regime e de uma ideologia. Mas em meio a

tudo isso, também se mostra como vagaroso deleite de atletas masculinos e

femininos desnudos e de uma plasticidade gestual e expressiva que falam através

do silêncio dos corpos em movimento, remetendo-nos a uma colocação no filme a

um só tempo ideológica e estética, assim como assegura Melo (2005, p. 58):

Esse filme, um dos mais polêmicos da história do cinema, já despertou debates das mais diversas naturezas, indo desde a questão política do envolvimento de cinema e esporte com determinados regimes totalitários, passando pelas questões éticas do papel dos cineastas no forjar de representações sociais, chegando também às questões estéticas, pois Leni teve de criar mecanismos técnicos para permitir capturar em toda a plenitude os gestos esportivos, bem como inovou nas tomadas de planos inusitados.

As imagens seduzem o olhar, que parece vagar com as lentes da câmera e

pousar no estádio, como se estivéssemos vendo junto com ela. O atleta se torna

perceptível e sua móvel forma de ser aparece por meio da expressão da dor, do

cansaço, da alegria, dos exercícios ritmados, do equilíbrio do corpo, dos recordes

alcançados, das técnicas gestuais e do fluxo vertiginoso da competição.

Tal vertigem pode ser vista no atletismo, quando Jesse Owens, americano e

negro, conquistou quatro medalhas de ouro (provas de 100m, 200m, 4x100m e no

salto em distância), além de quebrar dois recordes mundiais na competição. Em um

deles (salto em distância), disputando centímetro a centímetro, ele vence no último

salto, o alemão favorito ao ouro Luz Long, expondo a Hitler e ao mundo que a raça

ariana não era superior.

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Durante essas provas, vemos não somente a consagração de um atleta e a

ira de Hitler, ao ver sua ideia de supremacia ariana ser destruída em virtude da

vitória de um negro. Vemos também na própria compleição do atleta e nos gestos

expressivos de suas ações as demonstrações de força, poder, vigor, leveza e

graciosidade que evidenciam o modo peculiar dele estar ali, competindo.

Inquietação corporal, movimentos mais explosivos e pulsação acelerada são

algumas das alterações sensoriais de uma infinidade de sensações estéticas visíveis

nas cenas do filme.

No ato da competição, os gestos, os olhares, a postura e a própria respiração

dos atletas são modificadas. Aquela experiência parece mexer e remexer a

existência deles de tal forma que os sentidos são alterados, a pele muda de cor e os

movimentos são revelados, expandindo o corpo para novos horizontes da

experiência estética. Análogo às reflexões de Merleau-Ponty (2004b, p. 21-22),

sobre a relação do pintor com seu corpo quando diz:

O pintor vive fascinação. Suas ações mais próprias – os gestos, os traços de que só ele é capaz, e que serão revelação para os outros, porque não têm as mesmas carências que ele – parecem-lhe emanar das coisas mesmas, como o desenho das constelações. Entre ele e o visível, os papéis inevitavelmente se invertem.

Fotografias 24 e 25: Atleta negro Jesse Owens Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 9 (1938)

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De modo semelhante ocorre nas cenas vistas. A fascinação no momento das

provas, possíveis pelo arrebatamento dos sentidos, envolve os atletas e oferta uma

gama de sensações, às quais eles não conseguem ficar indiferentes.

Percebemos que os feitos realizados numa partida, os lampejos de emoção

que transcendem nessas competições, o esforço depositado, a superação dos

limites, a coragem inabalável, o prazer celebrado entre o choro e o riso incontrolável,

e o próprio desempenho performático, aliado a um cenário incrivelmente belo, são

elementos que subitamente demonstram a sensação quase indescritível e o fascínio

estético experimentado por eles.

Fotografias 26 e 27: Provas na terra Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 5 (1938)

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Fotografias 28 e 29: Provas no ar e nas águas Fonte: Olympia. Festa da beleza, cena 11 (1938)

Fotografias 30 e 31: Lampejos de emoção Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 6 (1938)

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De formas distintas, cada produção exibe de forma contagiante a relação

entre a delicadeza e a robustez, a entrega e o refúgio dos atletas, sem deslocar a

busca pela vitória, própria do esporte.

Notamos que a experiência do esporte não se limita a estatutos definidos e

moldes estabelecidos, porque ela é vivida no corpo, como abertura e como

interrogação. Seus sentidos transpassam o corpo, tornam-lhe sensível a este

mundo, harmonizando-se com ele, compreendendo-o, e sendo sensibilizado em

cada experiência vivida.

Portanto, ele não se resume a fazeres mecanizados, articulados por

movimentos corporais preestabelecidos. Ao contrário, cada jogo desperta um campo

de virtualidades, uma decisão do corpo que revela o homem em situação, na sua

forma de ser, salvaguardando a permissão das regras e os fios de sua experiência.

Isto que dizer que, no espaço do jogo, a vertigem e as realidades situacionais,

configuram-se na medida em que os lances acontecem, nem antes nem depois, mas

naquele instante.

O jogo possui esse caráter criativo próprio, em que jogando, colocamos de

lado certos aspectos da “realidade” e inventamos uma outra “realidade”, que nos faz

seres autônomos. E é nesse sentido que ele abre problemáticas imprevisíveis, as

quais muitas vezes nem são resolvidas em função da rapidez com que surgem e

somem. Logo, ganhar ou perder não depende da destreza adquirida pelo jogador.

Cada jogada é desconectada da anterior, fragmentando o tempo em uma sucessão

da construção de novos instantes:

A bolinha de marfim rolando para a próxima casa enumerada, a próxima carta em cima de todas as outras, é a verdadeira antítese da estrela cadente. O tempo contido no instante em que a luz da estrela cadente cintila para uma pessoa [...] é o contrário daquele tempo infernal, em que transcorre a existência daqueles a quem nunca é permitido concluir o que foi começado (BENJAMIN, 1989, p. 129).

A partir desse pensamento, mesmo o autor referindo-se à alegoria dos jogos

de azar, por meio das imagens daquilo que o estado lúdico mostra ao jogador no ato

do jogo, podemos fazer relações com o campo esportivo, compreendendo que assim

como esse jogador, o atleta também se engaja na experiência. Talvez porque o jogo

seja para ele esse território de atuação do inesperado, aquele que apresenta a cada

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jogada uma constelação independente da outra, convocando-o para uma situação

sempre nova e original.

Durante uma partida, o ir e vir do corpo, as aproximações e os

distanciamentos necessários, se configuram nas múltiplas relações que o jogador

estabelece com os elementos do campo, com os outros, com a torcida, e também

com a repulsa e com o encanto que se abre a cada vez que seus modos de agir são

colocados em jogo.

A existência do jogo é fundada nesse estado vertiginoso, dos equilíbrios dos

desequilíbrios provisórios e contínuos. Variações intensas que sobrevivem em todo

o processo e ao seu término, permanecem como lembranças de um estágio

interrompido.

Essa sinuosidade, longe de ser um fardo, revela-se determinante para o

prazer no jogo, cuja experimentação acontece efetivamente no plano ontológico do

jogador. Experiência construída na repetição significativa e prazerosa, que jamais se

esgota em si mesma, representa um novo fazer que ao transcender a mecânica da

técnica, torna-se diferente.

O mesmo ímpeto para voltar ao jogo identificado no comportamento do

jogador de azar estar presente nas brincadeiras de crianças (BENJAMIN, 2002). E

sendo assim, por mais diferente que sejam os propósitos norteados das ações de

cada um separado, ambos comungam desse mesmo aspecto.

Um tal estudo teria, por fim, de examinar a grande lei que, acima de todas as regras e ritmos particulares, rege a totalidade do mundo dos jogos: a lei da repetição. Sabemos que para criança ela é a alma do jogo; que nada a torna mais feliz do que o “mais uma vez” [...] E, de fato, toda e qualquer experiência mais profunda deseja insaciavelmente, até o final de todas as coisas, repetição e retorno, restabelecimento da situação primordial da qual ela tomou o impulso inicial (BENJAMIN, 2002, p. 101).

Portanto, sendo a repetição uma prática da nossa experiência, não é à-toa

que sempre desejamos recomeçar um jogo depois de arbitrado seu fim pelo fato de,

um dia, termos sido crianças e nessa fase termos experimentamos esse movimento

cíclico como algo lúdico.

Benjamin (2002), em seus escritos, salientou que o fascínio da criação pela

repetição está relacionado ao desejo do novo, do saber fazer, de transformar e

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incorporar a própria essência do jogo. Segundo esse autor, antes de qualquer regra

ou código particular, a repetição é a lei que rege o universo do brinquedo. Para o

universo infantil não bastam algumas vezes: seu desejo de repetição é inesgotável,

engloba o infinito.

Dessa forma, nosso corpo brincante, desde a infância, busca saborear

sempre mais, as vitórias ou as derrotas, os lamentações ou as alegrias, as

conquistas e as renúncias, o que deu certo ou o que de errado, não importa. Ele

quer novamente, repetir o fato vivido, começar mais uma vez. Um estado cíclico de

um início-fim, fim-início que refaz o corpo, que refaz o jogo e recria a experiência

vivida cada vez que retorna ao seu ponto de partida.

Para o filósofo e sociólogo, a essência do brincar é um fazer sempre novo,

uma condição fundamental para eternizar a vivência lúdica, assim como confirmam

suas palavras:

A essência do brincar não é um “fazer como se”, mas um “fazer sempre de novo”, transformação da experiência mais comovente em hábito. Pois é o jogo, e nada mais, que dá à luz todo hábito. [...] O hábito entra na vida como brincadeira, e nele, mesmo em suas formas mais enrijecidas, sobrevive até o final um restinho de brincadeira (BENJAMIN, 2002, p. 102).

Visto por outro ângulo, o desejo de repetir a vivência lúdica articula-se à

possibilidade de recriar o contexto sociocultural mais amplo, democratizando

conhecimento e buscando meios para transformar uma dada realidade.

Desse modo, seja infante ou jogador, a satisfação na repetição dos gestos e

do jogo possibilita uma intervenção no mundo, dada pela vertigem vivida no jogo,

uma vez que permite não só um fazer igual, mas um fazer diferente dentro e externo

a ele. Ao mesmo tempo que o jogo denuncia os limites impostos à realidade

sociocultural, anuncia também alternativas criativas para se viver nela.

Por essas razões, no esporte é preciso viver a vertigem do jogo, repetir,

sentir, ser corpo e compreendê-lo a partir das construções cotidianas em nossa

sociedade. Afinal, a vertigem não representa o vivido apenas no momento do jogo,

mais que isso: ela está entrelaçada à realidade e às condições concretas da

existência, da história de vida, da classe social, dos medos, dos prazeres, dos

desafetos e das emoções provocadas pela situação.

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Assim, podemos entender que a vertigem vivida no jogo sacode o homem, da

mesma forma como na apreciação da arte proposta por Porpino (2012, p. 31):

A vertigem vivida na apreciação da arte ou o vislumbre do abismo que se abre a cada vez que nossos modos de ver são colocados em jogo sacodem-nos para a criação de novos equilíbrios parciais e nos preparam para novos desequilíbrios. Assim é nossa existência fundada no paradoxo, marcada por surpresas, desalentos, euforismos, ansiedades, paixões, desafetos, serenidades, dúvidas... tantas formas de viver o mundo quantas forem as circunstâncias nele encontradas.

Dessa maneira, a configuração desse estado vertiginoso como ação

interminável de uma entrega ao jogo por intermédio da experiência estética, permite

constatar que a prática esportiva para além de seu esgotamento de funcionalidade é

condição humana de existir, atravessa a prática da vida, resgata os sentidos,

transbordando o corpo numa enchente de expressões e afeta, de maneira profunda,

a existência.

A vertigem representa, pois, condição imprescindível para a construção da

prática esportiva, com um teor de sentido social e emocional, que não fica retida em

conceitos ou explicações exteriores, mas abarca o homem, incendiando o corpo, e

renovando a vida para uma nova existência, bem mais emotiva.

Uma estrada esportiva que nos permite encontrar indícios suficientes para

dizer que ela se faz na relação tensa entre razão e emoção, dor e prazer, contenção

e vazão. Um equilíbrio instável de polos distintos que se conciliam em um princípio

de contradição, no qual move o corpo num movimento de contato possível entre

eles.

Tensão e excitação

Sabe-se que o sentimento dúbio é oriundo em toda situação enfrentada pelos

jogadores na prática do esporte. E, conhecê-lo, diz Le Breton (2007a, 2007b), é fruto

de uma analogia na qual na vivência do perigo é declarada com satisfação.

Em algumas situações esportivas em que, por exemplo, exige-se esforços

para sobrevivência, a vitória parece estar relacionada ao nível pior de determinada

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situação, com o melhor grau de contentamento posterior, como explica Le Breton

(2007a, p. 11), “chegando ao fim de sua resistência física, ele alcança

simbolicamente uma marca. Atingindo o mundo, resgata o contato simbólico com

seu meio, tranqüiliza-se sobre os ‘limites’ de que necessita para existir”.

Nesse sentido, às relações entre as emoções reprimidas e os prazeres

externados nas práticas esportivas, são o equilíbrio central para o esporte e mesmo

para sua condução.

Assim como assegura Peil (2006), a tarefa do árbitro, não raro, é vista como a

de equilibrar o entusiasmo do jogo – que pode provocar a violência – com a norma

ou a razão. O desequilíbrio entre tais “impulsos” acabaria o jogo, quer pela violência,

quer por excessiva aplicação da norma.

Assim, podemos dizer que a aparente contradição revelada na tensão de

forças entre o autocontrole e o descontrole das emoções demonstrará uma

simbiose, ao menos, momentânea, para que neles e por eles o atleta transite no

esporte e no mundo.

Retornando ao filme “Invictus”, na final da Copa do Mundo de Rugby, 1995,

outros momentos são observados, especialmente na mudança de perspectiva das

imagens ao acompanhar a sequência de movimentação dos jogadores, suas

expressões de controle e descontrole das emoções, bem como a euforia da torcida

perante o espetáculo esportivo.

Perante essa tensão, as sensações dos atletas e torcedores variam,

baseando-se no paradoxo formulado pelo próprio jogo. Enquanto os jogadores

vivem a tensão entre o não deixar o adversário entrar em seu campo de defesa, ao

mesmo tempo essa mesma intenção os move para ataque ao campo adversário. Os

torcedores vivem o sentimento dúbio e a apreensão de cada gol, gerando em ambos

os casos o deleite e o desprazer, a limitação e o extravasamento como sentimentos

cíclicos que o jogo oportuniza.

Assim, atletas e torcedores imersos no jogo de mostrar e esconder, de

controlar e expressar, acabam por viver a experiência ambígua e simbiótica ofertada

no âmbito esportivo.

No contexto fílmico, o esporte, em especial o Rugby, aparece não apenas

como mediador do fim da oposição entre brancos e negros, mas como prática

cultural, um símbolo de identidade nacional e expressão política e social.

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Nas primeiras cenas, na competição narrada entre a África do Sul e a

Inglaterra, é possível perceber que essa partida é diversificamente prestigiada. Nela

os espectadores, árbitros e jogadores, são em sua maioria brancos e torcem pelos

Springboks (time africano), enquanto que um pequeno número de torcedores negros

demonstra com entusiasmo sua torcida pela Inglaterra, país colonizador da África do

Sul.

O fato é que o time nacional levava àquele povo lembranças da época da

segregação racial, o que faz com que o presidente Mandela busque em seu projeto

conciliar a sua negritude política à branquidade heroica de François Piennaar, ou

seja, um líder negro e um líder branco que concomitantemente buscam, de um lado,

a ascensão política e do outro, a reconstrução desacreditada de um time, ambos

imbuídos por um pertencimento esportivo capaz de promover a superação individual,

a adesão coletiva, o extravazamento do sofrimento das dores sociais, e sobretudo a

união humana.

Frente a esse cenário, o esporte é colocado como poder unificador, como

aquele capaz não apenas de provocar abraços de desconhecidos, de promover a

inclusão social, de valorizar a força e a virilidade, apesar de seus arquétipos

normatizados e competitivos.

No último jogo, por exemplo, a torcida africana sacode suas bandeiras, pula

enfaticamente e canta, veementemente, o hino do país, ações feitas nas

arquibancadas, mas que, como elo comunicativo, agregam-se aos jogadores em

campo, incitando sensações de incentivo e alegria, uma chamada inesgotável à

sensibilidade: “Trata-se de um ‘Nós’ que engloba, ao mesmo tempo, os

Fotografias 32 e 33: Espectadores brancos e negros Fonte: Invictus, cena 5 (2009)

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protagonistas do acontecimento esportivo e aqueles que são suas testemunhas”

(MAGNANE, 1969, p. 84.).

De acordo com o autor citado, os eventos esportivos, especialmente aqueles

de maior dramaticidade, proporcionam um elevado grau de atuação coletiva,

levando o espectador a atingir rapidamente níveis elevados de participação e fusão,

que articula jogadores e torcedores.

Os gritos coletivos impulsionam os jogadores, invadem seus corpos e se

apossam deles como que um entrelaçamento do senciente com o sensível, da razão

com a emoção, rumo à alternância entre tensão e relaxamento que o esporte causa.

Esse momento de antagonismo vivido no estádio pelos espectadores e

esportistas revela que os aspectos sensíveis e racionais se entrelaçam como parte

de uma comunicação humana, sendo isso o grande atrativo do jogo. O que fica claro

diante das câmeras, das faces preocupadas, do rosto machucado e dos

contorcionismos adjacentes do momento vivido, as angústias e os nós da garganta

que são abandonados no esporte com a imprevisível vitória dos Springboks.

Como aponta Mafessoli (1996), há momentos em uma sociedade em que as

determinações políticas, éticas ou morais, dão lugar às relações diárias e às

experiências vividas. Uma ligação entre ética e estética, de maneira que o laço

social se torna emocional, sendo: “[...] essa compreensão do laço social a partir

Fotografias 34 e 35: Atuação coletiva dos esportistas e dos espectadores Fonte: Invictus, cena 26 (2009)

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desses parâmetros não racionais, que são o sonho, o lúdico, o imaginário e o prazer

dos sentidos” (MAFFESOLI, 1996, p. 74).

Em “Olympia”, percebemos que os atletas não são ovacionados pelo perfeito

desempenho técnico, mas sim pelo alvo alcançado, pela conquista da medalha,

pelas ações realizadas. Conforme Soares (2004), isso ocorre porque “a força contida

no gesto põe em jogo todos os sentidos daquele que o executa e, também daquele

que observa essa gestualidade. É como se a profusão de códigos e sentidos ali

demonstrados tivesse uma força de persuasão impossível para a palavra”

(SOARES, 2004, p. 01).

Diante dessa cumplicidade, a impressão que temos é a de que a tensão antes

das provas é dissolvida pela vivacidade da mesma. Logo, a aliança entre ansiedade

e prazer se revela na vitória, mas, sobretudo no desempenho almejado, que passa

muito mais pela atividade do que pelo uso da razão prática que desemboca na

utilidade.

Fotografias 36 e 37: Vibração pela ação realizada Fonte: Olympia. Festa da beleza, cena 9 (1938)

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O filme oportuniza, do início ao fim da veiculação das cenas dos jogos, essa

sensação pelo foco do olhar tenso e das vibrações, além dos gestos expressivos de

cansaço, de furor, de sorrisos e de exaltação. Sensações vividas pelos atletas e

espectadores que vão sinalizando a experiência dúbia de viver a derrota, e a vitória,

mesmo posta de um extremo ao outro e em igual intensidade.

Percebemos que os gestos de contenção e evasão tornam-se o elemento que

centraliza o ato da transmissão fílmica, guiando a movimentação dos jogos e da

nossa atenção.

Isto porque, ao apreciar as cenas, sobretudo na prova de remo e luta de boxe,

entre o duelo dos barcos e das luvas, a tensão existente entre remar sem deixar o

barco adversário ser mais rápido, bem como golpear sem ao mesmo tempo ser

atingido, em ambos os casos demonstra uma mistura de sentimentos ocasionada

pelo confronto e pela expectativa de quem será o ganhador.

Fotografias 38 e 39: Gestos de contenção e evasão Fonte: Olympia. Festa da beleza, cena 4 (1938)

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Os confrontos apresentados e a sensação desencadeada pelas cenas

remetem a uma conciliação dialética da aparente oposição entre o autocontrole e o

descontrole das emoções. Isto porque, nos dois casos, a busca pela vitória e a

tentativa de impedimento da vitória do outro entrarão em sintonia com todos os

aspectos da prova e o resultado, independente de qual seja, sempre desembocará

numa correnteza de descontentamento/satisfação dos anseios da emoção e do

prazer.

Assim, a emoção é flagrante e o envolvimento dos atletas é guiado pelo

prazer que a própria competição gera. O que fica claro nos gestos expressões do

corpo pávido, sisudo, austero e enérgico, mesmo que submetido a um controle

voluntário, vão se esvanecendo diante do deleite em que o atleta encontra,

revelando sentimentos que, na vida cotidiana, talvez dificultassem essas

descobertas camufladas em seus íntimos.

Essa relação emocional vai se estreitando a cada movimentação dos corpos

que se mostram num ciclo de ações aceleradas, como se cada cena fosse

anunciando o desejo de chegada e do extravazamento da sensação por que

estavam contidas.

A transmissão dessas cenas sugere o sentimento de busca pela vitória,

quando nos faz perceber a bipolaridade das expressões dos atletas em destaque.

Essa constatação diz respeito ao alcance da disputa, que não se destaca somente

Fotografias 40 e 41: Duelo dos barcos e das luvas Fonte: Olympia. Festa da beleza, cena 10 (1938)

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na bravura e eficiência dos atletas, mas também na veiculação de imagens que no

boxe são representadas pela diminuição do ritmo das passadas e nos socos menos

fortes e decisivos. E, no remo, nas remadas que parecem ser retiradas das

profundezas do cansaço e da dor, o obstinado desejo de extravazar essa tensão.

Sendo o esporte essa manifestação cultural que lida com sentimentos e

emoções, como é o caso do risco, do perigo, do medo, do prazer dentre outros, tem-

se nele respostas não planejadas que convidam o atleta a um novo equilíbrio entre a

restrição e uma forma de desfrutar emoções que transite sobre esses dois polos de

ação.

Assim, considerando todo o contexto competitivo existente no esporte, de

uma maneira geral, as características de evasão presentes na maioria das

modalidades, a procura da emoção para além de uma representação sentimental, é

uma possibilidade de trânsito entre o real e o imaginário, o objetivo e o subjetivo.

Sobre isso, Elias e Dunning (1992), ao refletirem, no campo da sociologia,

sobre fenômenos tão diferentes como a guerra, o desporto e as emoções, afinando

os pontos de vistas comparativos numa lógica relacional entre a integração e o

conflito dos mesmos, discutem o papel do lazer e do esporte na formação das

sociedades contemporâneas, compreendendo o desenvolvimento dessas práticas

dentro da perspectiva de excitação e de emoção.

Sobre o esporte, os autores, ao afirmarem que ele constitui um campo

considerável de significado social, refletem que nele é possível vislumbrar ao mesmo

tempo, de maneira controlada, momentos de autocontrole e descontrole das

emoções.

Segundo esses autores, as pessoas têm pulsões inatas, mas na maioria das

vezes são reprimidas no contexto cultural, sendo o esporte uma prática em que

exteriorização das pulsões é possível através da permissão social da violência.

Desse modo, na Introdução de A busca da excitação, o sociólogo Norbert

Elias, ao pensar no surgimento do esporte moderno e no aparecimento de novas

formas de comportamento e participação na sociedade, afirma que as manifestações

culturais, as maneiras de lidar com o sofrimento e com a alegria, revelam muito

sobre a sociedade. E diante de uma manifestação como o esporte, ele faz a

seguinte pergunta:

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Que espécie de sociedade é esta onde as pessoas, em número cada vez maior, e em quase todo o mundo, sentem prazer, quer como atores ou espectadores, em provas físicas e confrontos de tensões entre indivíduos ou equipes, e na excitação criada por estas competições realizadas sob condições onde não se verifica derrame de sangue, nem são provocados ferimentos sérios nos jogadores? (ELIAS, 1992, p. 40).

Para o autor, essa aceitação, especialmente dos modelos de esporte inglês

pelos outros países parece indicar a existência da necessidade de competição que

envolva esforços com grande capacidade de sublimação, com uma firme

regulamentação, possibilitando assim menor violência e situações agradáveis dentro

da competição.

Nesse sentido, entende-se que o clímax do jogo não é representado apenas

pela vitória, fato que se o jogo é desinteressante, até o triunfo da vitória pode ser, de

certo modo, uma desilusão.

Sobre isso, Elias (1992) traz um exemplo emblemático de um esporte bem

regulamentado da Inglaterra, no século XVIII, a caça da raposa. Segundo o autor,

não bastava matar a raposa, pois matá-la sugeria o fim da excitação, o clímax da

caça e o seu prazer consistia na corrida pela raposa, e, sobretudo, nas regras que

desencadeavam um período de antecipação suficientemente longo desse prazer.

A caça à raposa, tal como emergiu no século XVIII, ainda que os próprios

caçadores negassem o prazer de matar, permitia aos cavalheiros e às senhoras

caçadoras os prazeres e o excitamento da perseguição. Uma prática que não se

baseava em formas isoladas de autocontrole, mas na acessão do autodomínio

exigido por todo o quadro, ou seja, o conjunto dos cavalos, cães de caça e raposa

(ELIAS, 1992).

É certo que, os vários tipos de desporto integram um elemento de

competição. Confrontos que envolvem força física ou certos tipos de violência. E

para isso, existem regras de comportamento, a fim de reduzir ao mínimo os danos

físicos entre os jogadores. Ou seja, manter suas atitudes sob controle.

Pensar no surgimento do esporte moderno implica necessariamente uma

reflexão acerca do surgimento de novas formas de comportamento e participação do

homem na sociedade. E é diante disso que o esporte e a emoção aparecem como

temática intimamente relacionada à vida social, possuindo uma série de funções na

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sociedade contemporânea, entre elas, a de possuir um caráter cartático e mimético

como efeitos produzidos nos espectadores e em seus praticantes (ELIAS, 1992).

Segundo o autor, para a sobrevivência das pessoas nas sociedades, faz-se

necessário um autocontrole dos impulsos libidinais, afetivos e emocionais. Um

autocontrole que deve perpassar o equilíbrio entre os níveis de contenção e

extravazamento.

Assim, o autor supracitado aponta que nas sociedades ocidentais atuais, a

impossibilidade de dar fluência à excitação, a repressão dos sentimentos, impulsos e

emoções torna-se inevitável, fazendo com que os homens busquem ocupações de

lazer que propiciem a evasão e o excitamento de muitas situações da vida cotidiana,

sem, no entanto, correr risco ou perigo nessa vivência.

Portanto, através das atividades miméticas46, ou seja, atividades de lazer que

despertam emoções relacionadas com as emoções em situações sérias da vida, os

indivíduos poderiam externá-las sem a condenação que teriam fora desse contexto.

Seria uma transposição das emoções para um espaço que não proporciona perigo à

ordem pública, nem à vida social.

Perigo imaginário, medo ou prazer mimético, tristeza e alegria são produzidos e possivelmente resolvidos no quadro dos divertimentos. [...] Deste modo, os sentimentos dinamizados numa situação imaginaria de uma actividade humana de lazer têm afinidades com os que são desencadeados em situações reais da vida — é isso que a expressão «mimética» indica —, mas o ultimo está associado aos riscos e perigos sem fim da frágil vida humana, enquanto o primeiro sustenta, momentaneamente, o fardo de riscos e de ameaças, grandes e pequenas, que rodeia a existência humana (ELIAS, 1992, p. 71).

Nesse sentido, a busca de excitação no lazer, diante das várias atividades

existentes em nosso tempo, como no nosso caso, o esporte, possui funções de

propiciar o descontrole controlado das emoções, uma liberação das amarras sociais,

e, por conseqüência, a excitação.

46 Nas reflexões de Elias (1992) o termo mimético é atribuído a uma gama de atividades de lazer que, embora sejam incomuns, compartilham características específicas entre os sentimentos miméticos e as situações sérias específicas da vida. Para ele, as atividades de lazer, especificamente as da classe miméticas, possibilitam à sociedade satisfazer: “[...] a necessidade de experimentar em público a explosão de fortes emoções – um tipo de excitação que não perturba nem coloca em risco a relativa ordem da vida social, como sucede às excitações de tipo sério” (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 112).

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Elias (1992) utiliza-se então da discussão de Aristóteles sobre a catarse da

tragédia grega para legitimar o conceito de mimese. A catarse como processo de

envolvimento coletivo dentro do teatro grego possibilitava que nesse espaço,

envolvidos com as peças, os indivíduos exteriorizassem suas emoções, e euforias

cujo o cunho ético da sociedade causava seu represamento.

Dessa forma, no esporte moderno haveria um componente diferencial em

relação à vida cotidiana, que, apesar das regras de comportamento, as emoções

mais fortes podem ser extravasadas.

Essa característica dos esportes é que permite a catarse ao final do processo

chamado por Elias e Dunning (1992) de “busca de excitação”, no qual os indivíduos

procuram alivio de todas as suas pulsões reprimidas pela sociedade.

Portanto, assim como assinala Elias e Dunning (1992), o esporte cumpre a

função de ser uma válvula de escape, uma espécie de catarse à pressão psicológica

exercida sobre as pessoas, pressões estas que reprimem suas pulsões no convívio

social. Para os autores é dentro de campo que os atletas remam de encontro às

convenções sociais, liberando as pressões reguladas pela sociedade, uma catarse

“controlada” pelas regras e permitida pelos impulsos de excitação que não são

experimentados nas situações do dia a dia.

Embora os conceitos de mimesis e catarse na obra de Elias e Dunning (1992)

estejam na consideração de que o esporte possui necessariamente um caráter

mimético, compreendemos que nem toda experiência esportiva leva à catarse.

Entretanto, há de se considerar que na busca da excitação, como sugerem os

autores supracitados, uma espécie de tensão, um excitamento agradável, faz os

sentimentos fluírem mais livremente no contexto esportivo. Uma excitação mimética

que pode ser apreciada e que pode ter um efeito libertador, cartático, mesmo se a

ressonância emocional ligada ao desígnio imaginário contiver elementos de

ansiedade, medo, ou mesmo desespero.

Essa tensão e relaxamento é o que configuram o excitamento vivido pelas

pessoas na prática esportiva, em que o corpo se entrega ao jogo e este desce entre

os devaneios da experiência sensível, transformando-se em prazer, afinal, “o

desporto é sempre, em todas as suas variedades, uma luta controlada, num quadro

imaginário, quer o adversário seja a montanha, o mar, a raposa ou outros seres

humanos (ELIAS, 1992, p. 84).

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O esporte não é a única forma de libertar-se das tensões provenientes da vida

social, e em particular uma excitação agradável. Mas nele certamente é possível

viver o arranjo e o devaneio, características do comportamento social, associando-

se inexoravelmente a razão e a emoção, sem separação nem hierarquias, como

aspectos que movem os atletas em sua prática.

Para Welsch (2001), o modelo disciplinar tradicional do esporte estava

associado à ascese, ou seja, uma utilização dele para controlar desejos corporais e

as conotações eróticas do homem. No entanto, hoje, como ele mesmo afirma, o

esporte é uma das esferas em que a relação intrínseca entre o erótico e o estético

recebe permissão de manifestar-se.

Aí se estabelece uma nova possibilidade de concepção de beleza atrelada ao

esporte que, embora presa ao ideal clássico de corpo perfeito, esbelto, claro e

definido, expõe outras perspectivas de ação para essa perfeição, que não é mais do

corpo e dos gestos, mas de sua eficiência.

De certo, as emoções e as atitudes que coexistem na beleza dos gestos, na

expressão facial e na postura corporal atlética em todas suas possibilidades de jogar

constantemente com os limites e as incertezas dos movimentos, ligam o espectador

ao enredo esportivo, a objetividade à subjetividade, o funcional ao estético, assim

como esclarece Welsch (2001, p. 144-145):

Admiramos a elegância de uma esguia saltadora em altura quando, subindo e descendo, desliza seu corpo suavemente sobre a barra; ou a potência da célere corredora cujas pernas espantosas explodem quando sentem se aproximar a linha de chegada – e essa é a razão de todo esse gosto em observar, inspecionar, mirar seus belos corpos durante e depois do evento, de modo que assim se possa melhor compreender suas realizações e melhor se surpreender ao vê-los cruzar tão inteiros e infatigáveis a linha de chegada. Nesse sentido, nós, como telespectadores, temos a razão em nos concentrarmos na realidade dos corpos. E os atletas têm razão em buscar a perfeição de seus corpos e mesmo de exibi-los. No esporte, o estético e o funcional andam de mãos dadas.

Nesse sentido, sendo o esporte uma prática cultural regida por regras e

normas éticas e sociais, enfrenta desafios motivados por suas próprias

características de ordem internas, bem como em função de sua própria estetização

(CAMINHA, 2009).

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Logo, se por um lado a perfeição corporal se converte para a eficiência do

gesto demandada por um aprimoramento dos investimentos sobre o corpo do atleta,

por outro, essa mesma conversão possibilita o surgimento de novos movimentos

para além da técnica padronizada, o que evidencia a plasticidade corporal e criativa

do atleta.

E sobre isso, Welsch (2001) aponta que o esporte se desloca do ético para o

estético, quando se torna um espetáculo social, caracterizado pelo “elemento

adicional da performance, que revela todos os tipos de habilidades pessoais, a

interpretação individual e a abertura para o evento que eles criam (enquanto é

criado)” (WELSCH, 2001, p. 153).

Nessa corrente de pensamento, a habilidade se equivale ao êxtase

provocado, como ocorre, por exemplo, na euforia de uma vitória. O que nos faz

compreender que, apesar de o espetáculo esportivo se justificar pelo viés da vitória,

ele não se restringe a ela, como assegura Welsch (2001, p. 152):

O ponto principal, entretanto, é que, no esporte, o objetivo de ganhar não pode se realizar diretamente, mas somente através da performance esportiva. É a superioridade da performance esportiva de alguém que produz a vitória. Assim a própria obra do atleta é, neste caso, a sua performance, que talvez resulte numa vitória.

Nesse contexto, o sentido maior do espetáculo esportivo para além da

necessária disputa do jogo, passa pela admiração dos corpos dos atletas, pela

exibição da performance técnica, pela contemplação estética dos corpos.

Desse modo, o corpo deixa de apenas submeter-se às regras de condutas

esportivas e do mercantilismo existente para aliar-se à técnica, à tática e à alegria de

jogar como elementos necessários à vitória e, também, à estesia que ele provoca.

Uma atividade como o esporte, que sensibiliza, confronta, emociona e excita,

também acaba sendo reveladora de um mundo encantador que se mostra, que cria

significações antes latentes como uma ampla e profunda sinergia da vivência

estética.

O êxtase do corpo em movimento, das emoções sentidas, do excitamento

vivido/regido pelo jogo e revelado pelo mundo da estesia, tem, no palco da

sensibilidade, uma gama de sentidos e significados que vão sendo construídos pelo

mundo da experiência estética.

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A tensão e a excitação, que afetam o atleta diante do jogo, elevam o

despertar corpóreo para um universo sensível e redimensionam a vida para uma

nova forma de existência que não para de se renovar.

O atleta transcende a esfera do mero preenchimento das regras, dos modelos

técnicos e dos controles estabelecidos no esporte, criando seu próprio transcurso ao

estar em jogo, o que de fato permite que a dinâmica imprevisível do âmbito esportivo

se manifeste no início e também no fim, senão vejamos:

Na competição e na performance reais algo mais está incluído: o evento e a ocorrência, o drama e a contingência, a boa e a má sorte, o sucesso e o fracasso, a surpresa e a excitação. Esses elementos fazem do evento esportivo algo particular e possivelmente único (WELSCH, 2001, p. 153).

A performance esportiva engloba o atleta e os torcedores, fazendo do

momento uma só existência sensível que se revela ontologicamente. Cada

movimento do corpo, no ato do jogo, surge da relação entre o dado e o evocado, ou

seja, dos gestos treinados e das situações que adentram a existência dinâmica do

jogar.

O corpo, nesse entendimento, desobedece às lógicas do movimento

determinado e linear. Ele quebra os grilhões do mecanicismo que o percebe como

algo pronto, fazendo de cada gesto e de cada movimento, por mais grosseiro que

seja, uma evasão de pressões e emoções. As quais, aprisionadas pelas tensões da

vida ordinária, fluem através da experiência vivida e anunciam um mundo esportivo

que provoca excitação.

A partir disso, reconhecendo que no esporte aspectos elementares da

condição humana estão em jogo e são encenados, é que aproximamos o

pensamento catártico do esporte de Elias (1992) com o estético de Welsch (2001),

por entender que, embora os autores falem em contextos e em épocas distintas, as

reflexões dos mesmos se aproximam, dado que a importância das práticas

esportivas não reside apenas na manifestação de tensões, mas também na

renovação desse sentimento. Uma dimensão sensível do esporte que revela muito

do papel que ele cumpre na vida social e do quão complexas são as experiências

estéticas que ele potencializa.

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Como declara Elias (1992), a apreciação de jogos ou manifestações artísticas

representam um complemento ao mundo premeditado do trabalho e das obrigações

sociais. De modo que eles não podem ser considerados menos importantes, pois

“[...] as instituições de lazer, quer sejam teatros, concertos, corridas ou jogos de

críquete, não são mais do que formas de representação de um mundo de fantasia

‘irreal’. A esfera mimética constitui uma parte distinta e integral da “realidade social”

(ELIAS, 1992, p. 116).

A experiência estética atrelada ao sensível e às emoções na fruição da

prática esportiva afeta, de maneira profunda, não só o atleta no momento do jogo.

Os outros corpos presentes também se envolvem na mesma sinergia dos sentidos,

um envolver suave e intenso, que expande as sensações e faz o corpo buscar um

novo equilíbrio, latente pelo sentido prosaico da vida cotidiana.

Diante disso, podemos afirmar que a prática esportiva é composta por uma

considerável tensão e excitação, dor e prazer, anseio e emoção, elementos cuja

ênfase transita entre o ético e o estético, sendo sem dúvida uma prática que permite

ao homem sentir e ver o mundo de forma diferente. Pois, mesmo diante dos

controles e das determinações, ela é capaz de transportar a existência para uma

dimensão corpórea, que revela o homem na sua forma única de existir, e múltipla

quanto fruto da experiência de mundo vivido.

Paradoxo

O jogo é um sistema complexo, cujas partes não podem ser compreendidas

sem a complementariedade entre elas, ou seja, é impossível compreendê-lo sem

levar em conta o fascínio que ele desperta nos jogadores, o contexto ético e estético

e suas características paradoxais, tais como ordem e desordem, tensão e excitação,

descompasso e cadência, dor e prazer, dentre outros. Por isso, diante de toda sua

estrutura, sabe-se que o caráter organizacional do esporte revela, portanto, ordem e

desordem. Semelhante ao que afirma Reverdito e Scaglia (2007, p. 53) acerca do

jogo de handebol:

O jogo de handebol fosse apenas ordem, no qual ataque e defesa se equilibrassem efetivamente dentro de um espaço e tempo requerido, o

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resultado já estaria determinado antes mesmo do jogo acontecer; todos os jogos acabariam empatados. Portanto, não seria jogo. Assim como, se o fosse apenas desordem, não existindo regulamento, não havendo uma lógica interna e nem objetivos, não seria jogo; não sabemos o que seria!

Sendo assim, o esporte não pode estar submetido a um princípio supremo de

ordem, como ideia determinada. Pois, por mais que isso exista, há de se considerar

que nele há uma combinação entre o que está estabelecido e o que é constituído

pelas ações dos atletas.

Como afirma Morin (2003), na dimensão dos fenômenos, é impossível

observá-los apenas de forma determinada (ordem) ou pelo acaso (desordem): “A

ordem, a desordem e a organização se desenvolvem junto, conflitual e cooperativa,

e de qualquer modo, inseparável” (MORIN, 2003, p. 216).

Na teoria dos sistemas complexos, a dialógica refere-se à relação de

complementaridade e antagonismos existentes no fenômeno: “significa que o

complementar pode tornar-se antagônico” (MORIN, 2005, p. 52). Assim, longe da

ideia de apenas antagonista, ordem e desordem demandam diálogo. E mais que

diálogo, ordem e desordem demandam inseparabilidade.

Diante disso, entre esses elementos o paradoxo se pauta entre a ordem e a

desordem dada ou estabelecida. Quando, no processo do jogo, o problema gerado

leva o atleta a uma construção criativa capaz de estabelecer para aquela situação e

para si uma nova criação, posto que: “[...] a ordem é aquilo que permite a previsão,

isto é, domínio, a desordem é aquilo que traz a angustia da incerteza diante do

incontrolável, do imprevisível, do indeterminado” (MORIN, 2003, p. 210).

Desse modo, o esporte, longe de ser uma prática pré-configurada ou fechada

por padrões, passa a ser compreendido como experiência que se modifica

continuamente. Tanto do ponto de vista da experiência de quem assiste, quanto de

quem joga, ele se renova, torna-se mutável, podendo guardar em si uma lógica

indeterminada. Isto porque, ele tem o poder de sempre recomeçar, instituir o novo, o

diferente, o inesperado. Um versátil estado que surpreende, descortina o comum,

enredando o corpo nas veredas do extraordinário.

Como aponta Welsch (2001) acerca do esporte como lugar em que a vivência

não permite script, ponto crucial da prática esportiva é que tudo é criado pela

performance dos atletas e pelo próprio evento, o qual:

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Não segue da implementação de um script. Quando testemunhamos algo dramático, isso é devido – no caso do esporte – a nada além do próprio evento. A ocorrência real não pode ser antecipada, a performance dos atletas é criativa no mais alto grau. Não havia nenhum script. Esporte é drama sem script. Cria o seu próprio drama (WELSCH, 2001, p. 154).

O paradoxo do jogo então constitui-se nesse pensamento, ou seja, na relação

entre ordem/desordem que acontece por meio da experimentação dos diversos

elementos do jogo, os quais interagem o fluir do corpo, sua alternâncias de tensão e

relaxamento, expansão e recolhimento, suas agitações e suas pausas, todas

partindo do corpo em trânsito.

Para ilustrar essa relação de autonomia e dependência que se estabelece no

jogo, podemos tomar como exemplo novamente o filme “Invictus”. Essa obra nos fez

pensar que a instituição esportiva favorece os jogadores que desestabilizam o

princípio da “previsibilidade objetiva”, ou seja, formas de jogar baseadas em

movimento ordenados e sentimentos igualitários.

A lógica de jogo dos Springboks indica um formato pouco alicerçado na busca

de sistematização e de performance estabelecida pelo ideal olímpico. Mobilizados

pelo jogo, pelos espectadores eufóricos, pela vitória, características fortemente

ligadas ao prazer que eles têm de jogar, reconhecemos aqui, entre outras

possibilidades, nuances estéticas.

Fotografias 42 e 43: Atleta mobilizado pelo jogo Fonte: Invictus, cena 25 (2009)

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No cenário fílmico dos jogos, ordem e desordem, ação e criação, destreza e

devaneio, tensão e excitação andam juntos, fundem o atleta ao gesto, o movimento

ao jogo enquanto interligações de planos e de ações, assim como escreve Elias

(1992, p. 87):

Cada equipa pode ter planejado a sua estratégia de acordo com o conhecimento que possui de si própria e das competências técnicas e pontos fracos dos seus opositores. Todavia, no decurso do jogo, produzem-se com freqüência, configurações que não foram intencionais ou previstas por cada um dos lados. [...] O processo do jogo é exactamenente este: uma configuração dinâmica de seres humanos cujas ações e experiências se interligam continuamente [...].

Nesse pensamento, aquilo que é eficiente para se ganhar um jogo não se

estabelece somente na competência gestual, mas, sobretudo, na harmonia dos

gestos como recombinações de técnicas que promovem o ato criativo no jogo

esportivo.

A brutalidade e a força, tão características no rúgbi, não se mostram

suficientes para um bom resultado. Sem dúvida, essas características são

importantes na referida modalidade. No entanto, a produção desvincula-se dessa

realidade para mostrar que o jogo é feito da imprevisibilidade das determinações

esportivas e atléticas. O que nos faz entender que a técnica treinada entrelaça-se à

sensibilidade posta pelo esporte, fazendo os atletas subverterem os ditos ao propor

novas escritas para seus corpos em movimento.

Invictus sugere a admiração pela equipe que não tem prestígio nem ascensão

no meio esportivo, nos convida a festejar o gol, aponta outras possibilidades de

utilização da técnica criativa de jogo, enaltece a diversidade, as ações corporais e a

exultação dos corpos que jogam, mostrando que

O sensível aqui não se apresenta como algo que deva ser eliminado por conter erros, por ser uma ilusão. O sensível define a essência do ser, ele contém significações que singularizam o sujeito e ao mesmo tempo permite a intercomunicação com a singularidade do outro, dando um novo sentido ao acontecimento (NÓBREGA, 2005, p. 70).

Nessa relação de existência corporal, o gesto possui um sentido, uma

direção, um significado. Expressão do pensamento desenhado pela gestualidade do

corpo, ele caracteriza uma relação sempre original no mundo.

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Para tanto, a prática esportiva compreendida como uma manifestação

cultural, que se articula com uma diversidade de elementos em sua sistematização,

a partir das regras, do uso ideológico, das condutas gestuais, da disciplinarização,

que tem como ponto de partida a padronização dos corpos como eficiência de jogo,

também se abre às novas produções da gestualidade do corpo em movimento.

O filme ensina não só passos para a vitória, na vida, no esporte e nas

relações sociais, mas trata de como vencer depois de sucessivas derrotas, pois,

“ganhar depois de estar abatido, crer na possibilidade da vitória novamente, é

decisivo para permanecer no esporte de alto rendimento” (SILVA; RÚBIO, 2003, p.

74).

Além disso, nos mostra como as ações dos jogadores se dão diretamente em

resposta aos movimentos do adversário, ou seja, não dada antecipadamente, o que

faz com que os elementos como equilíbrio, ordem e objetividade, abram espaço para

as instabilidades e incertezas da experiência do jogar.

Encontramos no filme “Olympia”, quando comparados a atualidade, a leveza

dos gestos atléticos sem o uso exagerado de indumentárias e adereços. Os atletas

usam vestimentas que não acentuam as valências físicas nem primam pela

espetacularização da performance corporal, mas dão ao corpo a lógica da igualdade

de oportunidades e um tom de leveza e graça sem deslocar a busca pela vitória,

própria do esporte.

Melo e Nóbrega (2006), ao refletirem a partir desse filme a configuração

política e estética do esporte, afirmam que na atualidade o corpo do atleta aparece

como aquele que transporta adereços, os quais fazem mais sucesso que suas

próprias realizações, ajudam, a quebrar regras e transformam o esportista num mero

coadjuvante. Avanços tecnológicos que, segundo eles, se diferem das Olimpíadas

de Berlim, na qual “[...] mostram-se na mais elementar forma de expressão” (MELO;

NÓBREGA, p. 36).

Desse modo, assim como declara Pociello (1995) acerca das mudanças no

vestuário dos ciclistas, no contexto fílmico, as roupas para além de uma

funcionalidade a elas impostas, se conectam à plasticidade do atleta, parecendo

brincar junto aos esportistas, ajustando o corpo: “[...] às formas em movimento,

ressaltando a esbeltez musculosa, enaltecendo a uma silhueta juvenil e unissex, que

pode se ver de longe e apreciar de perto [...]” (POCIELLO, 1995, p. 116).

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Segundo Pociello (1995), os adornos esportivos dão uma importância

fundamental ao atleta, valorizam suas formas, e o corpo, com os seus movimentos.

Vestuários e adereços se exibem com uma suavidade que se contrapõe a um

trabalho austero com suor e esforço.

Pode-se pensar, neste sentido, que, além de função, roupa e atletas se

entrelaçam durante as provas. A roupa se molda ao corpo, o corpo a conduz e

ambos se movimentam na competição.

Percebemos em “Olympia”, além das roupas, equipamentos e técnicas que,

comparados aos de hoje, revelam os investimentos feitos no campo esportivo que

tendem a aperfeiçoar as funções orgânicas e gestuais dos atletas. Um aparato

tecnocientífico que se manifesta não apenas nos acessórios e roupas, mas também

nas instalações esportivas e nos novos materiais, tais como as fibras de carbono,

poliéster, elastano, dentre outros, constituintes de vários equipamentos e vestuários

esportivos.

Entretanto, como afirma Sant'Anna (2000), as transformações drásticas pelas

quais vem passando o esporte nos dias atuais não significa que os novos “deuses

do estádio" sejam totalmente previsíveis, ou que o problema da técnica seja apenas

técnico e industrial. Ao contrário, a previsibilidade é sempre uma busca enquanto

Fotografias 44 e 45: Roupas, técnicas e equipamentos da época do filme Olympia Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 7 (1938)

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que a técnica é um problema ao mesmo tempo social, ético e político, isto porque,

segundo a referida autora entre corpo e técnica:

[...] não há somente relações harmoniosas e de acoplamento funcional, mas, também, tensões, disputas e diferenças, nem sempre visíveis ao primeiro olhar, nem sempre historicizadas e submetidas à análise etnográfica. Por isso, lembrar das sensibilidades culturais que em cada situação possibilitam a criação ou o abandono de cada técnica esportiva é uma maneira, entre outras, de perceber que toda a sedução exercida pelo esporte tem razões muito mais complexas do que pode explicar a sua insistente publicidade internacional (SANT'ANNA, 2000, p. 5).

Certamente, o impacto dos avanços científicos incide sobre o corpo dos

atletas transformações não apenas de ordem física e performática, mas, sobretudo,

técnica.

Cada época e cada cultura possui não apenas seus heróis, mas também seus

padrões de beleza, de eficácia, de recorde, de perfeição e de usos do corpo. Assim,

da época do filme aos dias atuais, vemos mudanças consideráveis nas técnicas

utilizadas, como por exemplo:

Nas provas do salto em altura, realizada através da técnica do salto tesoura e no salto com vara, realizado com a vara de bambu e o atleta amortecendo a queda em uma caixa de areia; os aparelhos rústicos utilizados na ginástica olímpica, entre outros (MELO; NÓBREGA, 2006, p. 36).

Esses recursos confirmam o quanto as transformações técnicas não são

somente dos equipamentos e das roupas usadas por cada atleta, mas também dos

processos históricos e culturais, ou seja, dos usos do corpo no esporte em

determinada época e sociedade. O que supõe uma emergência histórica de novas

tecnologias e, igualmente a isso, uma condição do próprio corpo em pertencer

àquele lugar.

Compreende-se assim que toda técnica esportiva é inseparável de uma

historicidade, de uma relação de troca entre as novas tecnologias e as aspirações

dos atletas, o que contraria, frontalmente, a crença a um saber técnico autônomo e

livre de qualquer relação com o tempo histórico ao qual está inserido. Sobre isso

Sant'Anna (2000, p. 5) acrescenta que exemplificando: “[...] A transformação dos

gestos e técnicas do futebol, do ski, da asa delta e de todas as modalidades

esportivas não ocorre, portanto, sem as influências culturais de cada época e

sociedade”.

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Nesse sentido, sabe-se que a técnica esportiva utilizada em um mesmo

campeonato pode não somente mudar, mas acontecer inúmeras vezes e de

maneiras diferentes. Isto porque, os atletas as transformam, subvertem os códigos

que as pontuam, criam conexões inexistentes e até mesmo as singularizam, como

no caso da ginástica olímpica, em que os novos gestos são batizados47 com o nome

do atleta criador.

Esse movimento de mudanças ocorrido no esporte seja nas roupas, nos usos

tecnológicos ou mesmo nas transformações do corpo através das técnicas

corporais, por mais que estejam ligados a questões negativas, como consumo e

moda, transformam a técnica do jogo e mudam a experiência do atleta a partir de

suas próprias idiossincrasias. Isto porque, as novas roupas, assim como os novos

gestos, exprimem a capacidade do atleta de transgredir as delimitações das formas

de movimento descritas pelos códigos esportivos.

Desse modo, o corpo, ao invés ser subjugado pelos investimentos técnicos e

científicos do esporte, se utiliza deles para inscrever novas relações orgânicas e

sociais. O que não nega a penetração da razão instrumental e os fins que se

procuram, mas desvela o inusitado e o surpreendente, levando o atleta aos campos

da existência, condensando suas experiências e fazendo-lhes florescer enquanto

carne do mundo.

Nessa direção, o esporte deixa de ser instrumento de exploração tecnológica,

disciplinador e adestrador, reduzido aos aspectos mecanicista e mercantilista. E o

corpo, não mais um reprodutor passivo, mas uma condição humana inacabada e

itinerante em sua possibilidade de fazer o esporte acontecer.

Nesse processo aberto e dinâmico do esporte, o corpo que é modificado e

também modifica o meio que habita. Faz e se refaz a partir de sua relação com o

entorno, ao mesmo tempo em que modifica-o, cria novos espaços e novas texturas

para ali ficar.

Essa constatação parte das considerações de Maturana e Varela (2001, p.

52) ao compreenderem que: “[...] os seres vivos são unidades autônomas”. Ao

47 Alguns exemplos de criações de ginastas brasileiros como Daiane dos Santos e Diego Hypolito, que tiveram movimentos nomeados após suas primeiras execuções, são estes respectivamente: “Dos Santos I e II” (O Duplo Twist Carpado e Duplo Twist Esticado são variações do salto twist, popularmente conhecido como uma pirueta de giro em torno de si, seguido de um mortal duplo; e o “Hypolito” (Duplo Twist carpado com mortal na segunda pirueta).

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redimensionarem o conceito de vida, esses autores afirmam sua dinamicidade como

potência auto-organizativa no mundo, em que ela cria, recria, inventa e reinventa a si

própria.

Eles esclarecem que o homem vive sempre criando, conhecendo e

interagindo com o mundo circundante e com o outro, num processo que se renova

constantemente.

Essa teoria, a autopoiése, ao pensar os seres vivos a partir de suas relações

com o entorno, considera que estes, à medida que interagem com o meio em que

vivem, são capazes de se autoproduzirem ininterruptamente, expondo sua

dinamicidade, mas também os seus limites. De modo que, autonomia e dependência

tornam-se coisas inseparáveis (MATURANA; VARELA, 2001).

A partir disso, podemos pensar o corpo como sendo autopoiético, ou seja,

como aquele que inventa e reinventa a partir de sua relação com o entorno,

compondo continuamente fronteiras e transformação, sendo ao mesmo tempo

produto e produtor, auto-organizado e auto-organizável:

[...] nós, os seres vivos, somos sistemas autopiéticos moleculares, indicando que o que nos define como classe particular de sistema autopoiético que somos, isto é, o que nos define como seres vivos, é que somos sistemas autopoiéticos moleculares, e que entre tantos sistemas moleculares diferentes, somos sistemas autopoiéticos (MATURANA; VARELA, 1997, p. 18).

Segundo os autores supracitados, o organismo se autogere, mas só é capaz

de fazer isso, na relação com os outros organismos. Logo, a autopoiése só é

possível porque cada ser é em relação, de maneira que o organismo vive um

processo de mudanças contínuas, especificadas através de uma seqüência

interminável de interações com o mundo.

Diante disso, pensemos nas imagens dos corredores de “Olympia”, corpos

magros, brancos, lânguidos, sem tanto volume corporal e sem a visível definição

muscular que apresentam os atletas da atualidade, eles apresentam “[...] uma

pureza estética que se aproxima da natureza humana e da própria estética dos

Deuses do Olimpo” (MELO; NÓBREGA, 2006, p. 35).

Na modalidade citada, como em tantas outras, quando comparados os

corpos, evidenciamos, entre outros aspectos, os avanços tecnológicos que

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intensificaram o desempenho dos atletas, suas formas físicas e até mesmo a

existência de técnicas diferenciadas.

A utilização de novas tecnologias sem dúvida contribuiu para o surgimento de

novas técnicas e outras visibilidades do corpo. E, ao mesmo tempo em que ele

passou a ser o ponto de partida para novas explorações e descobertas, esses

investimentos também impulsionaram o corpo a novas formas de existência.

O esporte em interação com as tecnologias, com as criações e formatos

diversos para fazê-lo acontecer, tem revelado o quanto esse entorno apenas

desencadeia mudanças possíveis e que o corpo, ao estabelecer relações com ele,

modifica e é modificado pelo mesmo, a partir da reciprocidade entre sujeito e objeto.

O corpo é nosso meio geral de ter o mundo. Ora ele se limita aos gestos necessários à conservação da vida, e correlativamente, põe em torno de nós um mundo biológico; ora, brincando com seus primeiros gestos e passando de seu sentido próprio a um sentido figurado, ele manifesta através deles um novo núcleo de significações (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 203).

Desse modo, podemos compreender que as transformações corporais e

técnicas no âmbito esportivo não são adaptações dos atletas àquele meio, mas

partícipes de uma modulação do próprio corpo em sua capacidade contínua de gerar

novas possibilidades de interação com as diferentes situações advindas do esporte.

Sobre esse movimento criador do homem no mundo, imerso de cultura e história,

sempre criando e recriando, é que Merleau-Ponty (2011, p. 122) afirma que: “O

corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a

um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente

neles”.

Nesse pensamento, o corpo permanece em constante movimento de

construção e reconstrução, ativo no mundo, dinâmico em suas ações, vivendo para

além do tolhimento dos gestos, outros tempos, espaços, ações, repertórios

inebriantes.

Embora reconheçamos que corpo do atleta é submetido a um

condicionamento físico para adquirir força, resistência, velocidade, muitas vezes, por

meio de repetições exaustivas e conhecimento tecnológico para aprimorar sua

performance, ele também é preparado para o autodomínio, para superar as

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condutas dos adversários, para subverter no esporte. Como afirma Mauss (2003) há

no corpo uma maneira adquirida e não natural de se comportar e se dispor no

mundo.

Sobre isso, o autor explica que, o corpo enquanto nosso meio técnico de agir

no mundo articula gestos específicos e padrões fundamentais, os quais são

construídos a partir das particularidades de cada sociedade, revelando ao mesmo

tempo, um componente coletivo e individual.

Segundo ele, o ser humano cria, ao longo de sua existência e em função de

seu contexto cultural, costumes que vão se tornando tradicionais e que ao responder

as demandas da sociedade onde se fazem presentes, adquirem eficácia simbólica e

significados importantes para o grupo social.

A esse entendimento, o antropólogo institui o conceito de técnicas corporais.

Isto é, as diferentes formas de utilização do corpo que permitem ao homem lidar

eficazmente com as demandas de seu contexto cultural. Em outros termos, são “as

maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma

tradicional, sabem servir-se de seu corpo” (MAUSS, 2003, p. 401).

Importa dizer que Mauss (2003) sobre a compreensão do uso e da

transmissão das técnicas corporais, o autor destaca duas questões importantes: a

sua especificidade segundo as diferentes sociedades e a sua transformação ao

longo das gerações.

Nessa direção, é possível compreender que as técnicas de corpo são

construídas a partir dos hábitos de cada grupo social, carregando os significados e

os valores de cada contexto cultural, assim como suas especificidades e

transformações, por isso elas variam: “[...] não simplesmente com os indivíduos e

suas imitações, variam sobretudo com as sociedades, as educações, as

conveniências e as modas, os prestígios” (MAUSS, 2003, p. 404),

O aprendizado das técnicas não ocorre simplesmente por uma cópia, por uma

incorporação mecânica ou por um ensino formal e instrumentalizado sem atribuição

de significados. Ao revés, essa maneira de dispor o corpo e a aprendizagem do

movimento acontece nas relações sociais, na construção da gestualidade humana e

no aprender sensível do corpo no mundo.

Nessa direção é que aproximo o gesto técnico do esporte do conceito de

técnica do corpo proposto por Mauss (2003), compreendendo como formas

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corporais tradicionais e eficazes, imbuídas de repetição, de inovação e de

inspiração, pois, como diria o autor, “antes das técnicas de instrumentos, há o

conjunto de técnicas do corpo” (MAUSS, 2003, p. 407).

O gesto esportivo oriundo dos movimentos dos atletas de alto rendimento

constitui-se, sem dúvida, em técnica imbuída de tradição e de transformação. Ela

não é somente um conjunto padronizado, mecanizado, separado da dimensão dos

significados culturais e das características de seus praticantes.

A mesma técnica definida como universal, é, no entanto, praticada praticado

de formas diferentes, com interesses variados e significados próprios. O que faz

compreender que, o esporte não pode ser visto apenas por uma perspectiva

mecânica, mas como fenômeno sociocultural dotado de fatos sociais, envolvendo as

dimensões biológica, psicológica e, sobretudo, sociológica, no sentido como

apresenta Marcel Mauss a respeito dos fatos sociais como fatos tradicionais, “eles

são técnicos, estéticos, econômicos, morfológicos” (MAUSS, 2001, p.114).

Nesse processo, o atleta não é só um mero receptor ou simplesmente

passivo. Ele interage com o meio constantemente, inventa e refaz aquilo que lhe é

proposto. Saberes que se propagam e estabelecem a imanência entre os gestos

tradicionais e as novas formas de fazer o esporte acontecer.

A técnica é uma condição essencial para que o esporte possa existir e,

sobretudo para que, em contrapartida, haja a construção de novos elementos. No

esporte, como já mencionado, ao serem requeridos pelas mudanças das regras, do

vestuário ou mesmo do aparato tecnocientífico, modificações tanto na estrutura

esportiva quanto nas técnicas utilizadas, novos saberes, vão sendo instituídos, por

meio da experiência estética do atleta.

Por isso, o esporte ao perpassar discursos e intervenções médicas,

científicas e pedagógicas, produz através destes, os seus saberes. O mesmo leque

que determina suas regras, suas normas e suas modificações, possibilita que novas

condutas sejam resignificadas, ou seja, que uma nova forma de saber seja instituída.

Em virtude disso, a plasticidade do corpo faz o atleta produzir mais,

experimentar seus limites e suas potencialidades, numa relação ao mesmo tempo

harmoniosa e conflituosa, em excessos ou em formas mais comedidas, mas sempre

com o corpo em abundância.

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Como pode ser visto nos dois filmes apresentados, não há dúvidas de que o

esporte funciona enquanto elemento socializador e formador, pois à medida que a

prática esportiva engendra um espírito de superação de limites e de criações, pode-

se afirmar que esse conhecimento adquirido nos esportes é uma excelente

experiência educativa para à vida em sociedade.

Nele pode-se sentir o valor da convivência de ser um e pertencer a um

aglomerado, deixando o corpo disperso, sem saber o que pode acontecer, mas

sempre sensível ao mundo e aos outros. Ele evoca os sentidos, faz emergir da

dimensão corpórea um estado de fluência capaz de alcançar em alarme

sentimentos, desejos, angústias, aspirações, paradoxos.

Dessa maneira, é a partir da estética do jogo que o atleta reconhece o valor

vivido no esporte e compreende o seu grau de beleza, sua harmonia e o prazer que

ele provoca. Afinal, ali ele se liberta e inventa, vive a disciplina e também a fantasia,

envolvimentos profundos que configuram o esporte como lugar em que a sua

existência transcende e onde ele vive o paradoxo do jogo e do corpo em movimento.

Conforme o desenvolvimento da nossa análise a partir dos filmes,

conjecturamos que o esporte é permeado pelos binômios ordem/desordem,

técnica/estética, tradição/inovação.

Tanto em “Olympia” quanto em “Invictus”, podemos observar que os

mecanismos de controle que fixam os limites do jogo são constantemente

reatualizados pelos investimentos feitos no esporte, pela potência criativa do corpo e

pela comunicação corpórea do atleta com os elementos que compõem o esporte, o

qual, transcendendo a normatização imposta, possibilita formas diversas de se

pronunciar neste mundo.

O âmbito esportivo se faz pelo próprio corpo em movimento. Um mundo que

se constitui pela atmosfera de formas, gestos, condutas, oscilações, paradoxos e

devaneios. O atleta pendula entre dois extremos, o da criação pessoal e o da técnica

inerente ao esporte, de modo que, ao mesmo tempo em que ele não pode se

desviar da técnica, pode criar e se expressar dentro desta. Um verdadeiro devaneio,

ou seja, ações imprevisíveis que se estruturam no êxtase e no arrebatamento do

atleta diante do jogo, quando na veemência do agir, as sensações cinestésicas48 se

48 A cinestesia é a percepção do corpo em movimento atado ao mundo, em que o tempo, o espaço, as coisas e os outros não são vistos como objetos, mas como meios pelos quais o homem se dispõe

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apoderam dele, revelando, sem qualquer previsão, uma unificação do corpo com o

pensamento.

Viver o devaneio é subverter todas as formas e possibilidades de jogar, quer

individual, quer coletivamente. É agir dentro das regras, sem deixar ser submetido

por elas. Incorporar formas diversas de avançar por meio de atos ousados, ou

mesmo de recuos necessários, sem achar que um nega outro. É a existencialidade

experimentada entre os limites e as potencialidades da vertigem, da tensão, da

excitação e do paradoxo que se estabelece na prática esportiva.

As conformações estéticas das especificidades dos gestos esportivos são

construídas sob esse trama complexo de relações de poderes normativos, técnicos

e também estéticos. Na execução controlada e nas características fechadas, o corpo

desafia não apenas os regulamentos que lhes são impostos, mas os seus próprios

limites, transcendendo, dentro dos padrões, formas diversas que transformam o

repertório gestual do atleta e também do esporte.

Pensamos que o esporte é pautado por concepções estéticas constituídas por

mecanismos de poder-saber, ordem-desordem, técnica e estética, os quais,

preponderantes em toda a sua historicidade e contexto firmado, não definem regras

e determinações, mas junto a isso possibilita uma abertura para uma ontologia

revelada pela sensibilidade do atleta tomado pela estesia do viver corpóreo.

As exacerbações retratadas na técnica e na padronização dos gestos, ao

mesmo tempo reproduzidas e criadas, constituem-se como fundamento dessa

manifestação, e, porque a experiência estética, experiência que se dá

exclusivamente no corpo, ocorre “a partir de uma relação de imanência entre sujeito

e objeto” (PORPINO, 2003, p. 145).

O esporte ata-se ao atleta, afetando sua existência para um viver imbricado

com o mundo do sensível, a qual, tatuada de significações de sua historicidade,

cultura e vivências diversas, vai estabelecendo suas próprias relações estéticas do

corpo enquanto carne do mundo.

A vivência da experiência estética do esporte amplia a existência humana

porque dimensiona o corpo e, com isso, entrelaça o saber e a sensibilidade para a

como potência universal de conexões, descobertas e sensações do corpo, em uma dimensão espaço-temporal e reflexiva no mundo (MERLEAU-PONTY, 2004b).

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construção de um conhecimento aberto, dinâmico, que impulsiona uma dialética das

coisas opostas e um despertar dos sentidos aberto ao mundo.

Juntando paradoxos, por meio da intersubjetividade, o esporte, enquanto

comunicação de polos opositores e antíteses inacabadas, se faz no movimento da

expressão criativa e nas formas inusitadas, os quais se expandem no jogo por meio

da estesia ontológica, da criação e da renovação da experiência vivida. Um

verdadeiro devaneio que amplia o sentido da vida e educa os sentidos para um

diálogo mais profundo consigo mesmo e com o mundo, aberto a novos contatos

vivos e significativos que desse convívio se descortinam.

Por isso, a partir das múltiplas abordagens do esporte, seja real ou

cinematográfico, fica claro seu leque de significações, de definições e sobretudo a

abertura de multiplicidade estética e educativa que ele propicia.

Podemos compreender, neste capítulo, que, através da entrega do jogador à

prática esportiva, o esporte assume formas, sentidos e significados distintos,

provoca excitações variadas que transitam do controle ao descontrole das emoções

(vive-versa), comportando sempre uma relação de autonomia e dependência, como

atuação recíproca de novos encadeamentos gestuais e existenciais.

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Segundo Tempoesporte: A educação como jogo

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A origem do conhecimento, e não somente a do conhecimento intersubjetivo, mas também do objetivo reside no corpo. Não se pode conhecer qualquer pessoa ou coisa antes que o corpo adquira a forma, a aparência, o movimento, o “habitus”, antes que ele com sua fisionomia entre em ação.

Michel Serres

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143

Neste capítulo, discutiremos o esporte como potencializador de uma

educação sensível, a qual se manifesta nos processos corporais, do corpo em

movimento. Para isso, considera-se o jogo com sentido educativo, a intencionalidade

do movimento, o corpo como obra de arte e o papel social do esporte como dados

importantes para se reaprender a ver o mundo e a prática esportiva, sobretudo na

Educação Física.

Em nosso entendimento, nenhuma prática corporal, inclusive a esportiva,

ocorre diante de uma lógica determinada, baseada em caminhos previsíveis e

estabelecida pelos ditames do pensamento formal e imutável. Para fundamentarmos

essa argumentação, nos apoiamos em Schiller, o qual discute a experiência do jogo

como um conhecimento estético, investido de beleza, liberdade e sensibilidade.

Maurice Merleau-Ponty também se fez igualmente importante por trazer o

movimento humano ampliado pela afetação e intenção do corpo que é móvel no

mundo, dotado de sentidos sociais, históricos e existenciais, habitado por um

conhecimento sensível sempre inacabado. Ademais, recorremos também ao

sociólogo Elias, no sentido de compreender o esporte como um campo de

considerável significado social que possui códigos de condutas, estruturação e

mobilização intensa com as emoções e sentimentos de satisfação, que o faz

transcender à racionalidade mecanicista e instrumental para trilhar pelos caminhos

da racionalidade estética e educativa, seja na ontologia, seja na epistemologia, ou

em ambas, podendo influir na Educação Física e no conhecimento do esporte.

Sabe-se que a experiência no esporte não se limita a estatutos definidos e

moldes estabelecidos, porque ela é vivida no corpo, como abertura e como

interrogação. Seus sentidos transpassam o corpo, tornam-lhe sensível a este

mundo, harmonizando-se com ele, compreendendo-o, e sendo sensibilizado em

cada experiência vivida.

Ao vivenciar a prática esportiva, o atleta metamorfoseia-se pelas

possibilidades plásticas dos movimentos ali realizados, imprimindo ao vivido um

determinado sentido que implica a presença não material em sua essência.

Tal pensamento nos faz pensar o esporte como elemento da cultura e como

manifestação do próprio contexto do jogo, no sentido que transcende as

necessidades imediatas da vida, conferindo-lhe sentido e significação que não estão

na ordem imediata do dado, mas do evocado, da experiência vivida.

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Todo esporte existe dentro de um mundo previamente delimitado, dedicado à

vivência de uma atividade pré-configurada por regras e procedimentos técnicos e

táticos, entretanto, ele necessita de particularidades para que possa acontecer. No

campo do vivido, suspenso da realidade corrente, ele se legitima, abre o homem ao

mundo, revestindo de significado a vida daqueles que o praticam. Por isso, ele

passa a ter função a serviço dos valores e do sentido do humano, características

propensas à compreensão do esporte como uma expressão da razão do excesso,

da transcendência e da excentricidade, isto é, da razão da liberdade.

É na vivência do corpo com os elementos do esporte, entre a tensão, a

emoção e divertimento que o atleta encontra a possibilidade de vínculo sensível com

o mundo. Essa experiência comporta sempre uma abertura, amplia o horizonte

vivencial e encontra novos sentidos na fruição da experiência estética por ele

despertada.

Como afirma Gumbrecht (2007), não há dúvida de que os esportes parecem

se qualificar como experiências estéticas, desencadeadas pelo desempenho e

performance dos esportistas. Para esse autor, no que se refere ao corpo do atleta, a

aparição inesperada dele no espaço assume uma bela forma que se dissolve de

maneira rápida e irreversível, podendo ser compreendida como uma espécie de

epifania.

O esporte transporta para um estado de múltiplas sensações imprevisíveis.

Ele provoca a existência, mobiliza os sentidos e eleva o corpo a experiências

inéditas. As sensações do corpo atravessam as fronteiras do poder e dos aspectos

tecnicista, instrumentalista e mercantilista. A amplitude do movimento ou a técnica

perfeita estão imbuídas de um sentido mais amplo, de modo que a experiência

estética do atleta não coaduna com essas características.

O jogo é indefinido e infinito, ele não tem forma, embora tenha regras. Não se

conforma em determinações ou em estatísticas prontas. Infinitos são os seus

caminhos e abertas são as suas passagens. Tudo ocorre de repente, transportando

o corpo por trilhas sensíveis as quais impulsionam o viver para um mundo

construído por diversas possibilidades de novas existências.

O mundo sensível vivido pelo corpo no âmbito esportivo dimensiona o atleta

para uma abertura do que está em si e no seu entorno, fazendo da vida uma nova

forma de conceber o mundo, o que configura a sua existência como algo móvel,

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mutante, repleta de significados ainda não vividos. E é por isso que ele sempre

deseja jogar novamente, viver o esporte como um contexto infinito.

Não se faz esporte, qualquer que seja, sem regras ou sem adversários. Para

vivenciá-lo é preciso organização, delimitação, e também, criação. Pois o que move

o esporte não são as determinações impostas ou as vitórias incessantes, mas o

prazer que ele sustenta, o fascínio que produz no atleta e o devaneio que ele

manifesta. Isto é, uma experiência ordenada, com critérios rígidos a serem seguidos,

imbuída de uma experiência lúdica, presente no mover do corpo, vinculada aos

sentimentos e às sensibilidades como forma fecunda e motivadora de viver e de

jogar.

Acreditamos que no esporte, mesmo diante do rigor e das duras exigências, a

experiência sensível do atleta não se deixa anular pela disciplinarização e

funcionalidade do esporte, de ascese49, por exemplo.

É no corpo o lugar onde o devaneio e a experiência estética acontecem, em

sua função sensível de fazer e de sentir para si mesmo formas de jogar. Nada o

separa daquilo que ele pode, que ele cria. E a prática esportiva se estabelece nessa

relação. Na intenção e significação, que atua entre sujeito e objeto, entre corpo e

mundo, neste estudo, entre atleta e esporte.

Tomando o sentido estético acima descrito, podemos discutir o esporte

pautado numa educação como jogo, em que o atleta e o mundo esportivo imbricam-

se para realização da expressão criativa. Uma relação que se funda no poder de

sentir e de se movimentar, capaz de possibilitar a experiência de um fazer livre e

fecundo, assim como afirma Caminha (2012, p. 24) ao tecer sobre as ações do

corpo:

Os movimentos previsíveis ou esperados transformam-se em movimentos inesperados ou livres. Os movimentos do corpo não somente acontecem no mundo, como também se dirigem intencionalmente para ele. [...] O corpo-sujeito não apenas realiza atos, como também operacionaliza ações, guiando-se por intenções e desejos. Pelo transbordamento de si, originado pelo sentir, podemos dizer que o corpo se constitui um “eu” como instância mediadora de relacionamentos.

49 O esporte em sua relação com o atleta visto pelo viés ascético diz respeito à produção de modos de ser e de relacionar-se consigo e com os outros, por meio de uma prática que exige esforço, repetição e renúncia.

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Desse modo, afirmamos que o esporte pode revelar-se como experiência

estética e educativa, tendo em vista a possibilidade de viver o corpo para além dos

muitos preconceitos e limites impostos pelos códigos sociais. Nele há um

arrebatamento tamanho, uma imbricação tão forte, e uma entrega total àquele

momento, que somente quem foi ou é atleta reconhece, a partir da experiência

vivida, a forma como o jogo é sentido no corpo.

A paixão que envolve o atleta na prática esportiva, a exaustão dos treinos e

das competições, e ainda, o fascínio em cada experiência ali vivenciada, habita o

corpo e é expressa por meio dos sentidos que entrelaçam um ao outro. Funde-os de

tal maneira que não há uma hierarquização do esporte em relação ao atleta. Ao

contrário, esse mundo sensível é talismã que se mistura a ele, sendo essa relação a

forma vibrante de ele realizar a sua existência.

Nesse pensamento, a experiência esportiva reabilita o sensível, transcende a

própria materialidade do esporte e transfigura a vida, pelo viver estético do atleta na

ação do jogo.

Nessa direção, pedimos licença a Schiller (1995), pois, nas próximas linhas

que se seguirão, refletiremos o esporte não como jogo, visto que não se pode traçar

uma semelhança entre eles, mas sim uma interface, que permite ao esporte, por

meio do da dimensão sensível ser vinculado, a cultura estética, isto é, o estado de

jogo proposto pelo autor.

O estado de jogo permitido pelo esporte, ou seja, a disposição estética do

atleta diante daquela experiência possibilita à razão se iniciar no campo da

sensibilidade e a rigidez de sua estruturação passar a ser despedaçado dentro da

dimensão sensível ali encontrada. Isto porque, o atleta é envolvido de tal maneira

que o esporte é uma oportunidade para instalar no corpo a razão, a animalidade, a

ética e a estética de sua condição humana.

Na teoria estética de Schiller (1995) o jogo tem um sentido educativo, ele

aparece como elemento da cultura humana, ligando dois aspectos fundamentais do

homem, a razão e a sensibilidade.

Como afirma o autor em suas cartas, a educação estética do homem traz uma

formação política, social, moral, epistemológica e pedagógica. Para ele, diante da

liberdade humana, o que se deve e ou se quer ser, o caminho proposto é a

educação estética, em que, entrelaçada ao lúdico, inclina-se à sensibilidade, à

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pulsão e aos ânimos, de tal maneira que transcendem as determinações da razão.

Em suas palavras:

Quando as duas qualidades se unificam, o homem conjuga a máxima plenitude de existência à máxima independência e liberdade, abarcando o mundo em lugar de nele perder-se e submetendo a infinita multiplicidade dos fenômenos a unidade de sua razão (SCHILLER, 1995, p. 73).

Essa conciliação antagônica compõe a ideia de humanidade, que somente é

conquistada no decurso existencial e estético. Uma realidade humana que não é

somente guiada pela inteligência, nem pela natureza, mas também pelas sensações,

pelos sentimentos, pela experiência estética.

Dimensão educativa que faz confluir sentimentos e emoções. Sensações que

o homem utiliza para aprender sobre as coisas que o rodeiam e para viver uma

dupla função: realizar-se como pessoa e mover-se esteticamente pelo mundo.

Para o autor supracitado, o lúdico transcende a relação imediata que tem com

o prazer, inserindo-se no contexto de construção do homem e da sociedade. Seu

pensamento visa integrar todas as capacidades e potencialidades humanas, fazendo

do prazer estético uma nova possibilidade de educação.

É através do jogo, na satisfação do impulso lúdico que Schiller (1995)

reconhece a integralidade do homem. Tal impulso, o lúdico, não é um instinto

particular ou espontâneo, mas uma imanência entre o biológico e o sensível, entre a

razão e a emoção. É o equilíbrio que possibilita encontrar as limitações da

sensibilidade e da razão a atuar juntas, sem que uma sobreponha à outra.

Nessa condição necessária para um ideal de educação, o corpo em

movimento, o homem que joga pode evidenciar os fundamentos para a grandeza e

excelência da humanidade, de tal maneira que “o homem joga somente quando é

homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga”

(SCHILLER, 1995, p. 84).

Assim, o jogo revela-se como princípio de beleza da humanidade, de

interação entre os sentidos e a razão, e também de liberdade do sentir, sendo capaz

de superar essas oposições.

Com isso, surge o prazer estético, o jogar como experiência significativa que

torna o jogo uma possibilidade de educação, tendo no estado lúdico a possibilidade

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do homem tornar-se integralmente homem, não por meio didático, mas como

experiência que faz o sujeito conhecedor do mundo.

Para Schiller (1995) o jogo é elemento significante para o homem, ou seja,

tem função social. No sentido de que, nele há significações como o prazer, a beleza,

o lúdico e o estético que engendra no homem não somente uma razão desprovida

de sensibilidade, mas um princípio de unidade e também de legalidade e de

liberdade.

Certamente, o esporte como uma manifestação cultural dada a sua

penetração mundial, possui características que o tornam um fenômeno popular, um

meio de entretenimento, de prazer e evação que influencia as culturas lúdicas

localizadas.

Desta forma, enquanto expressão social ele está presente de uma forma

descomunal em nossa sociedade, permeando o imaginário (paixão, mitologia,

ideologia da superação, etc.), causando comoções, e tendo, sobretudo, significação

própria pelos diversos grupos que o compõem.

A partir disso, aproximamos a noção de jogo do autor citado ao discurso

sobre o esporte realizado nos capítulos anteriores, por entender que nele existem as

relações do lúdico com a natureza da estética e do jogo.

Conforme visto, tanto nas experimentações com os elementos do jogo quanto

nas ricas possibilidades que se abrem no contexto fílmico, o atleta aprende e

compreende sobre sua existência a partir das experiências dos movimentos e das

relações com o mundo esportivo. São graus de conflito, de harmonia, de prazer, de

criação e de devaneios que vão despertando o sentido da vida.

Em sua capacidade de jogo, o esporte permite improvisar, criar e refazer as

realidades mais complexas, evocando a necessidade de se trabalhar não somente

diante de valores competitivos, mas junto a isso, ante a solidariedade, a cooperação,

a liberdade, a participação, o encontro, a alegria e o prazer como entonação da

melodia do jogo e da vida.

Reconhecemos que as relações entre o lúdico, o estético e o educativo não

se referem a qualquer prática esportiva, mas a um esporte que envolve o atleta pela

dimensão estética do existir, em suas ambivalências e imponderações. Nas

indeterminações, nos diálogos e nas criações do viver estético que rompem as

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barreiras do determinismo das coisas prontas, ecoando nos recônditos do corpo,

uma variedade de sentidos e significados.

Em várias situações no esporte, como já mencionamos anteriormente,

podemos vislumbrar um aprender que transgride a reprodução, a previsibilidade e a

funcionalidade como realidade onipotentes. É possível pensar o esporte a partir da

perspectiva daquele que joga, do corpo que se entrega às sensações do jogo e vive

de forma sensível a experiência do corpo em movimento, afinal,

No corpo desportivo, melhor dizendo, nos diferentes usos e versões desportivos do corpo – tal como nos outros modelos de corpo –, esculpe-se, em carne, sangue e osso, toda uma filosofia de vida, iluminada pela claridade espiritual e cultural, ética e moral. Assim, haja olhos, sensibilidade, lucidez e humildade para ver, entender e reconhecer (BENTO, 2006, p.172).

Nesse contexto, multiplicam-se os sinais e indicadores de que o corpo do

atleta não é somente submisso no contexto esportivo. Essa mesma submissão é

capaz de produzir possibilidades de imprevisão ocasionada pela técnica que se

funda na criação subjetiva.

O mesmo leque que faz do esporte uma prática disciplinar e rígida,

dimensiona o atleta para uma experiência ontológica e saber estético imbricados

com as coisas do sensível e do fazer humano.

O esporte educa pela sua dinâmica de coexistir com o atleta, na experiência

do jogar, no devaneio do jogo e nos paradoxos que ele solicita. Um mover que se

faz pelo aprender, pelo refazer e pelo existir, abertos às experiências do corpo em

sua condição sensível.

Ao afirmamos que o esporte é uma experiência estética e educativa,

acreditamos que esse educar se manifesta nos movimentos corporais, nos diálogos

e resignificações ali experienciados. Lugar onde o corpo atinge sua (im)potência,

(in)finitude, (in)suficiência e (d)eficiência que o limitam e lhe distendem (BENTO,

2006).

Ademais, o jogo e os movimentos dos atletas, por serem considerados

mutáveis, mostram que a intencionalidade dos gestos expressa a maneira única de

existir no momento vivido, uma vez que o corpo humano, por estar atado ao mundo

por meio de uma relação dinâmica, atribui sentidos que se renovam conforme a

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situação, pois é certo que “não há uma palavra, um gesto humano, mesmo

distraídos ou habituais, que não tenham uma significação” (MERLEAU-PONTY,

2011, p. 17).

Nessa direção, a intencionalidade torna-se importante nessa discussão, pois,

para Merleau-Ponty (2011), é ela que permite ao homem mover-se no mundo, criar

horizontes e alargar a experiência vivida. Nesta, os movimentos do corpo não são

somente ações mecânicas, desprovidas de intencionalidade. O sujeito que percebe

o mundo através de sua motricidade opera não no “eu penso”, mas no “eu posso”. E

quem pode é o corpo, em sua capacidade móvel de assumir o mundo em que está

inscrito.

Aprender o sentido da experiência em estado nascente é o esforço que

Merleau-Ponty efetua em suas reflexões, através de diálogos e críticas à tradição

científica e filosófica, ao tomar por fundamento da experiência humana não mais

uma consciência constituinte do mundo, mas como existência encarnada, feita pelo

corpo no contato espontâneo com o mundo sensível e inteligível.

Essa intencionalidade operante de que trata o filósofo não é um juízo lógico e

racional, mas uma conquista do homem em situação no mundo, permitindo-lhe a

compreensão de algo de modo consciente, ou seja, uma cinestesia possível por sua

condição corpórea.

Reforçamos que a atitude do autor supracitado em relação a nossa

capacidade motriz não é de um movimento como um deslocamento fundando por

ordens mecânicas, mas uma mobilização em que o homem executa para assumir o

mundo em que está inserido, sendo a intencionalidade a função que integra

pensamento e movimento como uma dimensão corporal em que são fundadas as

significações existenciais.

Nessa perspectiva, não sendo o corpo um mero objeto orgânico, que se move

por uma função de uma representação, mas uma rede de intencionalidade, um lócus

de comunicação onde nascem as significações dadas ao mundo, ele forma a

atividade expressiva que sobrepuja a diferenciação entre o subjetivo e o objetivo, ao

integrá-los em razão dos projetos aos quais se polariza, em outras palavras: “Só

posso compreender a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo e na medida em

que sou um corpo que se levanta em direção ao mundo” (MERLEAU-PONTY, 2011,

p. 114).

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Sendo, então, o corpo horizonte latente de toda experiência, pode-se

compreender que a consciência, o corpo e o mundo não são três estruturas

dissociadas, mas unidades existenciais que só atuam quando relacionadas entre si,

operando por meio do experimentável, da motricidade e da dialética corpo-outro,

corpo-objeto, corpo-mundo.

Desse modo, a intencionalidade deixa de ser a propriedade da consciência

isolada e constituinte para ser característica de um sujeito voltado ao mundo,

dispostos às coisas e aos outros, vivida de forma dinâmica pelos movimentos do

corpo, colocando-o em contato com tudo que o cerca.

Sobre isso, Caminha (2010), ao refletir acerca da experiência perceptiva em

Merleau-Ponty, como uma ação efetiva daquilo que se dispõe em volta do homem,

realizada no mundo e também nele, declara que cada movimento de nosso corpo dá

o poder de nos orientar e desabrochar nosso ser no mundo. Logo, na medida em

que nós podemos nos situar de uma maneira dinâmica com o corpo no mundo, torna

impossível pensar o aspecto motor como uma exterioridade absolutamente objetiva

para além do modo de ser corpo vivido, assim sendo: “[...] o corpo do sujeito que

percebe deve ser concebido como ato motor, por meio do qual a dimensão sensitiva

não é dissociada da função motriz” (CAMINHA, 2010, p. 177).

Tanto na experiência do corpo em jogo quanto no corpo do cinema, os

movimentos no esporte não são um conjunto de ações vitais, determinadas

exclusivamente por ações biológicas, sem intervenção de atitudes intencionais.

Conforme visto, para poder compreender o jogo, o corpo que executa movimentos é

ao mesmo tempo sujeito pensante e sujeito corporal, constituindo o paradoxo do ser

no mundo esportivo.

E o esporte é este lugar onde o homem pode experimentar suas intenções,

seus limites e suas potencialidades. Uma relação eu-outrem-mundo que permite ao

corpo se explicitar, celebrar suas peripécias, sublimar a dor, enfrentar a derrota e

entender o choro como sentimentos presentes na vida, retirando-o da zona de

coisificação, para instituir-lhes como sede de significações para além do protótipo

biológico e natural. Ou seja, nós somos o nosso corpo, ele é a medida e a expressão

do nosso ser; no mínimo, as duas qualidades estão inter-relacionadas (MERLEAU-

PONTY, 2011).

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Na perspectiva filosófica de Merleau-Ponty, o corpo não é uma coisa nem

uma ideia abstrata, mas presença sensível e intencional, que faz do homem

perceptivo uma consciência encarnada no mundo, capaz de reaprendê-lo

constantemente, o qual, não sendo espontâneo, se manifesta no corpo próprio, por

meio da motricidade e das relações estabelecidas com os outros e com o mundo.

Portanto, o corpo é o caminho para acessar o mundo, não é objeto, coisa ou

lugar de investigação. É corpo próprio nossa ancoragem no mundo, em que,

enquanto sujeito da percepção, tem suas relações pautadas pela ambiguidade e

pelo inacabamento de estar no mundo, de ser consciente e repleto de significado,

cultura e intencionalidade. O que significa entender que ser-no-mundo é condição

necessária para o ser humano voltar-se para si mesmo e organizar seu modo de

existir, pois, “ser corpo é estar atado a um certo mundo” (MERLEAU-PONTY, 2011,

p. 205).

Dessa maneira, o sentido dos acontecimentos se faz para cada um no contato

corpóreo de sua existência, o qual, pautado num mundo sensível, se revela como

saber intersubjetivo e meio de expressão corporal que nos possibilita comunicar com

o mundo e o outro.

E isso faz do esporte um meio de expressão corporal, lugar de

transcendência em que o corpo lança-se em ações e projeta expressões, cria

gestos, refaz movimentos e produz conhecimento pela relação espaço-temporal,

ordem-desordem, poder-saber, na perspectiva do enraizamento assumido pela

percepção e pela motricidade, ou seja, pela experiência vivida.

Sim, o esporte pode ser esse parceiro, um espaço onde o corpo é interlocutor

ativo permanente. Palco onde a cena lhe envolve em possibilidades e

impossibilidades, onde o ato intencional do atleta, que, sendo corpo, pronuncia-se,

comunica-se, e se manifesta no mundo com sua carne voraz, com suas expressões

fustigadas pelo cansaço, com sua fulgurante presença que sem fim está sempre

pronto a erguer-se sobre todo e qualquer deslize.

São atletas, corpos fenomenais, expressões realizadas que revelam não

apenas padrões de movimentos, mas a força criadora de movimentos intencionais,

do corpo que joga, do corpo que é experimentado e que considera nessa

experiência as crenças, as condutas, o próprio padrão do contexto percebido e as

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nuances de sua experiência intencional, não havendo, portanto, separação entre a

realização mecânica e a significação do movimento.

A convivência com o mundo esportivo como fora apresentado implica uma

influência recíproca de sentidos criados permanentemente por meio do

entrelaçamento do atleta com o esporte e com os outros, em que a consciência

integradora fundamenta as intencionalidades e os significados que colocam o sujeito

em relação ao mundo, não sendo “[...] apenas a experiência do meu corpo, mais

ainda uma experiência de meu corpo no mundo” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 145).

Nessa experiência, o corpo se torna ambíguo. Uma ambiguidade que não se

resolve pelo pensamento, mas pela existência, na relação corpórea com o outro e

consigo mesmo, dada pela síntese corporal na federação dos sentidos.

O corpo próprio carrega essa potência dinâmica e sensitiva, moldando-se em

sistemas diversos, apreendendo as significações do mundo pelo movimento, um

saber modulado pela motricidade e pela sensibilidade, isto porque:

Sou meu corpo, exatamente na medida em que tenho um saber adquirido e, reciprocamente, meu corpo é como um sujeito natural, como um esboço provisório de um ser total. Assim a experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que destaca o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o pensamento do corpo ou o corpo em ideia, e não a experiência do corpo ou o corpo em realidade (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 269).

Sendo o atleta corpo, corpo próprio, ele opera sua percepção, seu movimento

e sua reflexão, não como dados isolados da ordem do eu penso ou da

funcionalidade momentânea, mas da ordem do poder, do fazer e do sentir. Todos

pautados nas relações estabelecidas nessa experiência e no potencial do corpo em

significar e criar sentidos na existência.

Situar o esporte nessa condição é entender a relação do atleta que realiza e

se realiza no mundo esportivo, em seus elementos constituintes e em tudo que

apraz o mover do corpo, os sentidos despertados e os significados ali vivenciados.

Conforme Merleau-Ponty (2011), o corpo é o elemento fundamental na

construção do saber humano, em que o conhecimento não ocorre por meio de um

corpo dotado de aptidões físicas e intelectuais inatas, mas nas relações empregadas

no mundo e nos sentidos nele encontrados.

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Saberes que nascem e se fazem no corpo e nas relações experienciadas no

mundo, sendo ao mesmo tempo percepção e reflexão, intelectualização e

sensibilização, pautados na razão dos meios sensíveis e na emoção dos meios

inteligíveis, derivados das experiências pelas quais o corpo vive no mundo e pela

percepção que temos dele. Em outras palavras:

A verdade não “habita” apenas o “‘homem interior”, ou, antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece. Quando volto a mim a partir do dogmatismo do senso comum ou do dogmatismo da ciência, encontro não um foco de verdade intrínseca, mas um sujeito consagrado ao mundo (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 6).

Portanto, na relação entre esporte e atleta, a verdade é desprovida de

exatidão, se constituindo no próprio movimento da existência e da experiência

esportiva, o que nos faz entender que o fervor corpóreo causado pela afetação do

esporte mexe e remexe com a existência para uma nova forma de ser e estar no

mundo.

Na experiência do jogar, foi possível mostrar uma maneira sensível de se

viver no esporte mesmo diante do rigor, do tecnicismo e da funcionalidade, o que

configura uma educação dos sentidos no processo de formação do atleta.

Acreditamos que a prática esportiva, em sua realidade paradoxal, abre novas

perspectivas de compreensão do corpo do atleta, já que no esporte o aprender

prescinde de uma disponibilidade corporal para jogar, para viver pelo viés da

sensibilidade, ou seja, uma abertura ampla dos diversos estados da existência.

Tal compreensão nos remete aos sentimentos envolvidos no esporte como

situações que revelam, a todo instante, uma construção e reconstrução do vivido.

Pois, mesmo o esporte sendo configurado por regras, normas e práticas de poder,

ele se estabelece como um espaço em que a vida é refeita e levada ao limite, já que

nele vive-se a explosão das emoções de forma controlada e descontrolada.

Esse paradoxo, peculiar em diversas manifestações de lazer, especialmente

no esporte, é visto quando o atleta experimenta dentro das situações de jogo

emoções e impulsos que lhe proporcionam tipos de excitação nunca antes vividos.

E isso pode ser visto em diversas práticas corporais, sendo o esporte apenas um

exemplo.

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Percebemos que tal situação tornou-se evidente quando apresentamos as

produções cinematográficas. Nelas foi possível perceber o esporte como uma

estrutura social que demarca momentos históricos, especificidades e valores, como

ocorre, por exemplo, no enfoque ético e estético com que os atletas vivem as suas

modalidades.

Embora nesses filmes também esteja claro a disciplinarização do corpo, sua

preparação para determinados fins, o autocontrole e a produtividade, vemos que o

esporte também é um espetáculo de diversão, de celebração do corpo, de excitação

e de prazer.

No esporte, praticado ou assistido, existe a possibilidade de formarmos e

reformularmos noções de convivência, de pertencimento, de corpo e de movimento.

Nele não há apenas o atleta comercializado, treinado na busca de uma eficiência

puramente produtiva. Ao contrário, pode-se afirmar pelo seu sentido e significado

individual e plural a sua significância no processo de humanização do ser humano,

independentemente de suas disfunções e limitações. E, nessa relação, mais uma

vez, Bento (2006b, p. 170) alerta que:

Como elemento da civilização, o desporto é uma oportunidade para instalar no corpo a razão do espírito, um palco de submissão da animalidade da nossa natureza à espiritualidade moral, cultural, ética e estética da condição humana. É um sistema de valores espirituais, uma prática cultural instituída para espiritualizar o mais possível a dimensão física, motora e biológica do homem, para esclarecer e legitimar, para dignificar e elevar.

Pelos princípios, valores e objetivos, assim como pelos métodos, regras e

excitação que regram o treino e a competição, o esporte vincula-se à ação de viver,

de transcender normas, de constituir saber e de existencializar o movimento.

O esporte é, sem dúvidas, um campo de criação do homem, de criação do

corpo, ocupando-se da forma humana da sua versão nobre e superior. Dito de outro

modo: “É coisa, mas também é fenômeno; é algo concreto, mas é muito mais

mistério e sopro; é matéria revelada e igualmente alma escondida” (BENTO, 2006,

p. 166).

Segundo o autor, no esporte, o controle dificilmente encontra aplicação,

porque nele predomina o excesso, a liberdade dos ditames de um corpo inculto,

inábil, medonho, grotesco e bruto. Nele o corpo ultrapassa a sua resistência e se

torna belo, ético, ágil, espiritual e moral.

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Esporte que, pelo seu sentido e significado plural, revela a plasticidade do

corpo por meio da dimensão corpórea dos sentidos, a qual desconstrói a visão

mecanicista do corpo-máquina e constrói a visão do corpo a partir de um logos

estético que se mostra nos gestos e nas expressões do atleta em jogo.

Pensar o esporte assim é entendê-lo não apenas como ferramenta para o

desenvolvimento do ser humano, com fins pedagógicos ou como meio de

transformação social, mas especialmente como elemento educativo e estético na

vida humana.

Como já afirmamos, a experiência estética desenvolve-se através da

percepção de um sentido inseparável do sensível, acessível não por um sistema de

compreensão e interpretação, mas pela sintonia dada no corpo em seu poder de

acessar o homem ao mundo, transportando sentidos e instaurando significados. Ela

mobiliza as profundezas do ser para poder ressoar no corpo sentimentos, fazendo

transcender aquilo que condiciona o olhar para uma percepção singular e plural,

sensível e criativa. É certo que ela está relacionada às coisas do mundo, aos

emblemas que são conferidos às experiências vividas, pelos sentidos que atribuímos

e que ligam o homem ao mundo por meio da reversibilidade dos sentidos.

A partir desse pensamento é possível entender que o corpo atua no mundo

da experiência vivida. Logo, a experiência estética dos atletas é fonte inesgotável de

um conhecimento sensível, como a própria arte para o artista, conforme apresenta

Chaui (2010, p. 273):

É a obra que explica a vida e não o contrário, pois a obra é como o artista transforma, num sentido figurado e novo, o sentido literal e prosaico de sua situação de fato. A obra de arte é existência, isto é, o poder humano para transcender a facticidade nua de uma situação dada, conferindo-lhe um sentido que, sem a obra, ela não possuiria.

Compreendemos que dessa mesma forma é o mundo vivido no esporte, o

mundo que o corpo abarca, funde-se, cria sentidos e significados, interpenetrando-

se como partes de uma mesma existência, de um mesmo tecido.

Acreditamos na experiência sensível como construção de um novo

conhecimento e uma nova racionalidade por meio do corpo em movimento no

mundo esportivo, posto que “o sensível é uma realidade constitutiva do ser e do

conhecimento que se manifesta nos processos corporais” (NÓBREGA, 2010, p. 83).

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Na Fenomenologia de Merleau-Ponty, o corpo é sensível, modelado pela vida,

dotado de sentidos em todos os seus atos. Um corpo vivo que, ao relacionar-se com

os outros e com o mundo, sempre irá construir novas formas de ser, de ver, de fazer

e de viver.

Na tese fenomenológica, o sensível não é um objeto que está alheio ao

homem, mas algo que o afeta, que chega aos sentidos e recebe destaque. Assim, o

caminho que ele faz em direção ao mundo é feito a partir de uma experiência que

podemos chamar experiência sensível, afetada pelas coisas e despertada pela

sensibilidade que deixa o corpo afetado.

Ao afirmar que o corpo é sensível e, portanto, aberto aos sentidos da

experiência vivida, Merleau-Ponty (2011) compara-o não aos objetos físicos, mas

sim à obra de arte.

Tomando como referência um quadro ou um peça musical, a comunicação do

artista se faz pelo desdobramento das cores e dos sons, não sendo possível

distinguir o expresso da expressão, a significação da obra, o artista da criação. O

autor se apropria dessa poética filosófica para afirmar o corpo como um lugar

expressivo que projeta suas significações no mundo e faz das experiências vividas

fontes inesgotáveis de sentido.

Não obstante, Nóbrega (2010), ao tematizar o corpo como obra de arte a

partir das reflexões sobre a estética de Merleau-Ponty, reconhece que a experiência

sensível se dá não apenas na arte, mas em qualquer outra forma de existência. Para

a autora, na criação artística a técnica é necessária, é condição fundamental que

não se restringe ao aspecto funcional ou mecânico, mas à contemplação, posto que

ela “[...] não é um objeto rígido, mas sim um objeto flexível que permite a expressão

em sua diversidade e abrangência” (NÓBREGA, 2010, p. 91).

Nesse sentido, sobre a técnica, seja na arte ou no esporte, procede a

criatividade e a inovação. Uma forma de expressão, de uso do corpo que ao mesmo

tempo em que responde a uma ordem se instala na vivência do sensível, acrescida

não apenas de eficácia, mas, junto a isso, de leveza, de encanto e de espanto. Sem

a técnica, não há gols, cestas ou ponto, não há vitórias, empates ou derrotas, não há

performance, ritmo ou engenho. Sem ela: “Não há estética de coisa alguma. E a

ética fica deficitária e manca [...] não logramos ser verdadeiramente humanos. Nem

no corpo, nem na alma” (BENTO, 2006, p. 157).

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Esse pensamento relaciona-se com a possibilidade de vivência do sensível,

em que, por meio das técnicas do corpo que o atleta se utiliza para jogar, é possível

criar gestos, refazer movimentos, experimentar sensações e viver o corpo

inesgotavelmente.

Portanto, assim como a reflexão sobre a obra de arte expressa por Nóbrega

(2010), o esporte se constitui como um suplemento de sentido, formulado a partir da

experiência vivida. Uma modulação existencial que o torna significativo para o atleta.

Nessa perspectiva, a partir das reflexões de Merleau-Ponty (2011), Nóbrega

(2010) e de Bento (2006), podemos compreender aproximações entre a arte e o

esporte, os quais, mesmo sendo expressões distintas da cultura, se comunicam no

sentido de desvelar o corpo como estesia. Ambos ampliam o campo da

sensibilidade, arrancando do corpo, sentimentos, angústias, dores e alegrias que se

materializam nos gestos e nas expressões ali proferidas. É o corpo

existencializando-se.

Sobre isso, Bento (2006) esclarece que o esporte caminha para criação e

para arte, para estética e para harmonia, para a transcendência e para a liberdade

do corpo e da alma, esgotando o campo do possível e reduzindo o impossível ao

nada, tornando a existência mais do que ela é, em suas palavras:

O desporto é um palco onde entra em cena a representação do corpo, de suas possibilidades e de seus limites, do diálogo e da relação com a nossa natureza interior e exterior, com a vida e com o mundo. Quer se trate de crianças e jovens, de adultos e idosos, de carentes e deficientes, de rendimento ou recreação, o desporto é, em todos os casos, instrumento de concretização de uma filosofia do corpo e da vida. Constitui uma esperança para a necessidade de viver (BENTO, 2006, p. 164).

Acrescenta também o autor que, no esporte encontramos todos os domínios

culturais e que em todos eles, através dos sentidos imanentes às formas de

expressão que os perfazem, sejam elas mais racionais e objetivas ou sentimentais e

subjetivas, aprofunda-se a vivência do mundo e a experiência de vida. E nessa

reflexão, ele compara o esporte à arte, em especial, a poesia, senão vejamos:

O mito é o mesmo, o agonismo preside a uma e ao outro, a coroa de louros tem o mesmo preço, ambos comem o mesmo pão, bebem da mesma taça e saboreiam o mesmo vinho. No papel abúlico e passivo – que se coloca inteiramente á disposição da caneta – e no corpo dócil e passivo – que se

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submete aos métodos da exercitação e do treino – ficam impressos devaneios, ousadias e arrebatamentos da ala e ordens da vontade. Como seqüelas da vida que a cada um toca viver (BENTO, 2006, p. 170).

No fundo, arte e esporte são uma dialética de contrários, de

descontentamento e contentamento, um aviso de que é ilusório chegar à plenitude e

à autenticidade da vida sem ser pelo caminho da dor, do sacrifício, da renúncia, da

observância de obrigações, princípios e ideais (BENTO, 2006).

Nesse contexto, encontramos na prática esportiva impressionantes afinidades

com a arte em seu cunho estético, pois, seja pela técnica, seja pelas sensações

despertadas no artista, atleta ou espectador, ambas as manifestações transcendem

a esfera do mero preenchimento das regras, tornando uma dinâmica imprevisível do

corpo em movimento, o que nos faz entender que é possível comunicar o esporte

com a arte e pensá-lo como educação.

Já dizia Bento (2006) que o esporte é uma arte e o esportista, um artista que

vive para criar novos movimentos, uma invenção, destinado a ajudar o ser humano a

constitui-se cultura e moral. Assim, ele cumpre não apenas sua função de disciplinar

o corpo, mas permitir que este jogue, festeje a vitória, lide com a derrota, exteriorize

emoções, controle impulsos agressivos, compartilhe afetos e desafetos, confronte a

si mesmo e aos outros, percebendo e vivendo de forma sensível constantes diálogos

corpóreos que lhe permite construir novas significações através da experiência

vivida.

Esse vivido, conforme já mencionado no capítulo anterior, produz sensações,

emoções e saberes que podemos considerar como experiências educativas e

estéticas. Um conhecimento sensível que se incorpora nas alternâncias do jogo, nos

valores impregnados, nos sentimentos compartilhados e nos caminhos encontrados,

os quais se constituem como alternativa para uma nova percepção da realidade,

neste caso, do mundo esportivo.

Compreender o esporte nessa perspectiva do sensível é afirmar que ele

possui um campo de sentidos e significados que se mostram por meio da criação, da

excitação, da estesia, da técnica e da manifestação ontológica da existência.

O esporte expande a dimensão sensível ao imbricar o atleta ao universo do

inteligível, do visível com o invisível, da razão com a emoção, do sentir e do devir,

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formas educativas que se tornam uno para uma singular experiência da

sensibilidade e do fluxo do conhecimento do homem e do mundo.

Por meio disso, o atleta se torna mais sensível aos acontecimentos do mundo

e da sociedade. Isto porque, o esporte, por meio dessa educação sensível, amplia a

experiência do homem no mundo, abrindo o horizonte para o encanto da beleza e da

sensibilidade, assim como acrescenta Porpino (2006, p. 19):

A vivência estética é a experiência da beleza, da sensibilidade, da descoberta do sentido da vida cotidiana. Compreender a experiência estética e vivê-la plenamente é, portanto, poder abrir novos caminhos para a compreensão não fragmentada da existência humana, transgredindo a visão racionalista e levando à educação uma concepção de ser humano que possa transgredir a visão dicotomizada ainda predominante.

Uma educação sensível, entrelaçada com o mundo do esporte, sintoniza a

vida com as manifestações da beleza e do viver estético, dimensionando o ser

humano para uma experiência ontológica, imbricada com as coisas do sensível e do

fazer humano. Isto porque, o esporte coloca o homem na condição de sujeito capaz

de modificar o mundo em que está inserido, modificar suas relações e a si mesmo

através das suas criações e múltiplas formas de vida e de convivência.

O esporte permite que o homem viva e conviva de forma sensível com o

mundo, as pessoas e as normas que o cercam, criando sempre uma nova

significação para o que foi percebido através do corpo, posto que é ele que se abre

para o esporte e se entrega aos afagos esportivos, num entrelaçamento permanente

de significações.

Desse modo, para além da crítica contundente acerca do esporte,

compreendemos que nele, por meio das sensações expressas no corpo, o atleta

vive a experiência do jogar, o devaneio do jogo como configuração de uma

educação sensível que busca o caminho para a construção de um saber que tem no

humano a sua principal fonte de realização.

Afinal, o esporte não é só instituição de regras. Como afirma Santos (2012),

diante do rigor que as regras do esporte ditam, da disciplina, os atletas estão sempre

buscando uma nova maneira de fazer, de reescrever novas histórias, de viver o

esporte. Em outras palavras, “[...] não há somente um corpo dominado pelo

mercantilismo e pelas ideologias consumistas, mas sim um corpo de um sujeito-

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atleta que escreve sua história, que produz um sentido nas suas experiências

sociais [...] (SANTOS, 2012, p. 13-14).

Isto é educação. Uma experiência que caminha para um mundo aberto à

transformação e à criatividade, na qual, entrelaçada com a inteligência sensível,

realiza-se na construção de algo novo.

O corpo é o lugar em que se inscreve cada gesto aprendido. Assim, mesmo

submetido a ordens e normas, o corpo se revela em constante transformação, pois,

em cada experiência vivida, haverá sempre um novo mundo de sentidos e um modo

de fazer diferente.

Do esporte como fonte onde o devaneio do jogo ocorre, o ato de jogar permite

que o corpo se lance pelos caminhos da sensibilidade e da imprevisibilidade que

esse mundo proporciona. Afinal, ele é audácia, desafio, devaneio e indeterminação.

E nele o corpo se arrisca, se envolve, sente, joga, torna-se jogante. Isso torna o ato

de jogar uma experiência significativa, por meio da experiência estética, pelo valor

sensível, em seu ato de condução, de criação e de inspiração nas situações vividas.

Nessa perspectiva, o esporte não é concebido como algo formal e pronto, a

ser seguido. Ao contrário, trata-se de experiência sensível, vivenciada, constituindo-

se num caminho a ser construído, possibilitando novas práticas e saberes que se

fazem por meio da experiência estética.

Sendo assim, pode-se pensar o esporte como uma experiência educativa,

uma compreensão da prática esportiva como possibilidade de compreender o ser

humano na sua totalidade, naquilo que emerge do corpo. E isso acontece quando o

jogo é jogado, ou seja, quando considera-se a prática esportiva a partir dos sentidos

e sensações do jogador, na entrega ao desejo de jogar.

A prática esportiva por esse viés não tem caminhos prontos a serem

seguidos, mas trajetos infindáveis e imprevisíveis que são capazes de educar por

meio dos sentidos, conduzindo o homem à condição sensível enquanto processo

ético, estético e social.

Conforme Elias (1992) afirma ao procurar levantar e explicar alguns

problemas nas várias obras que compõem o livro “A busca da excitação”, ele e

Dunning ao estudar o Desporto tinham: “a profunda consciência de que a

compreensão do desporto contribuía para o conhecimento da sociedade.” (ELIAS,

1992, p.39). E mais adiante se pergunta:

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162

Que espécie de sociedade é esta onde as pessoas, em número cada vez maior, e em quase todo o mundo, sentem prazer, quer como actores ou espectadores, em provas físicas e confrontos de tensões entre indivíduos ou equipas, e na excitação criada por estas competições realizadas sob condições onde não se verifica derrame de sangue, nem são provocados ferimentos sérios nos jogadores? (ELIAS, 1992, p.40).

A partir desta pergunta colocada, o autor busca esclarecer a questão de sua

própria teoria dos processos civilizatórios, demonstrando que a investigação sobre o

desenvolvimento do desporto se faz semelhante ao código de conduta e de

sensibilidade das sociedades européias a partir do século XVI.

Para exemplificar isso, ele trás como exemplo, a experiência do boxe com o

sentido de uma luta corporal sem regras e com a utilização das pernas, até chegar a

um esporte com um conjunto de regras para proteger os lutadores.

A estas mudanças nos padrões de conduta e de sensibilidade dos indivíduos,

o autor supracitado dá o nome de processo, como a idéia de um fenômeno que está

inacabado. Ele considera também que o processo não tem uma finalidade

definida,vindo a atingir todas, ou quase todas, as áreas de convivência social e o

esporte é algo que não passa a margem do mesmo.

No decurso do século XX, as competições físicas, na forma altamente regulamentada a que chamamos “desportos” chegaram a assumir-se como representação simbólica da forma não violenta e não militar de competição entre Estados, e não nos devemos esquecer de que o desporto foi, desde o primeiro momento, e continua a ser, uma competição de esforços de seres humanos que exclui, tanto quanto possível, ações violentas que possam provocar agressões sérias nos competidores (ELIAS, 1992, p. 45).

Dessa forma, o principal esforço do processo civilizador, é criar instrumentos

que busquem, no mínimo, diminuir o uso da violência no convívio social. Para isso

se constituem um conjunto de regras, normas de conduta que possam cada vez

mais tornar a violência como algo que deva ser reprimido e mal visto pelo conjunto

da sociedade. E, no esporte, isso vem a ocorrer por meio da criação de uma série de

regras, normas de se praticar, aumento da proteção dos atletas, tudo com o objetivo

de tornar o esporte o menos violento possível e mais aceito pelos códigos de

conduta e sensibilidade da sociedade moderna.

Assim, um conjunto de regras define como a atividade deve ser praticada, o

que á torna um esporte, no sentido moderno. Logo, não só as regras, mas também o

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163

prazer, por elas desencadeadas passam a ser diferente também quando se compara

práticas esportivas onde não existe um complexo conjunto de regras que a

regulamenta. O que também está relacionado com toda a estrutura mais geral da

sociedade.

Como aponta Elias (1992), antes da regulamentação dos esportes o que

tínhamos eram algumas regras locais para a prática das atividades, e depois

passamos a ter uma busca por regras que regulamentem estas atividades em nível

nacional e até global, tornando-os esportes, no sentido aplicado por ele.

O sociólogo, define esporte nos tempos modernos como sendo uma atividade

que nunca esteve confinado apenas aos participantes isolados, ao contrário, sempre

incluiu confrontos realizados para a satisfação de espectadores. E que a

uniformização das regras é sinal de uma preocupação com o expectador, pois um

atrativo é o conhecimento das características e dinâmica do jogo, ou seja, o esporte

na modernidade é algo que carrega consigo a noção de espetáculo, de algo que

atende a uma necessidade básica de satisfação, de desencadear emoções, de

provocar excitação satisfatória nas pessoas.

Para ele, a função social dos esportes é fazer com que os indivíduos possam

de alguma maneira, sentir, ou buscar sentir, o prazer reprimido pela sociedade, a

repressão das pulsões, os instintos, os impulsos libidinais, afetivos e emocionais.

Todos estes sentimentos, experienciados de forma controlada. Na idéia de que os

esportes funcionem como uma esfera de canalização dos impulsos reprimidos pela

convivência social.

Assim, mesmo o universo dos esportes sendo esse espaço propício para a

expressão destes sentimentos e impulsos reprimidos pela sociedade, ele deve

ocorrer dentro de um conjunto de regras que façam com que os indivíduos sejam

civilizados durante prática do seu esporte.

Por meio dessa reflexão, podemos considerar que as características

esportivas são uma diminuição da violência por parte dos participantes e dos

espectadores, com a presença de um auto-controle, capaz de gerar uma tensão

controlada, que as tornam atraentes diante do público.

Pela perspectiva eliasiana, é possível que as pessoas busquem excitações

agradáveis para além da rotina do cotidiano, e o esporte, num contraponto às

exigências racionalistas imperantes no âmbito educacional, possibilitam a vivência

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164

de sensações de excitação, de irritação, prazer, cansaço e de situações de dor, a

ponto de mobilizar intensamente as emoções e sentimentos de satisfação. Assim, é

entendimento seu que:

[...] a sociedade que não oferece aos seus membros, e, em especial, aos mais jovens, oportunidades suficientes para a excitação agradável de uma luta que não exige, mas pode envolver, força e técnica corporal pode, indevidamente, arriscar-se a entorpecer a vida de seus membros; pode não proporcionar correctivos complementares suficientes para as tensões não excitantes produzidas pelas rotinas regulares da vida social (ELIAS, 1992, p. 95).

Esse pensamento aponta para uma compreensão do conhecimento do

esporte para o campo da Educação e da Educação Física. Conhecimento esse

pautado numa experiência estética e educativa impressa por meio das relações que

o atleta estabelece com o corpo e com o mundo na prática esportiva.

Não obstante, o jogo como elemento lúdico conforme visto em Schiller (1995)

ultrapassa a imediata relação com a vida habitual para se inserir no contexto da

construção do homem e da sociedade, transcendendo as suas limitações e

tornando-o pleno.

Portanto, pelo caráter social, educativo e estético presente no mover do

corpo, pensamos que é possível praticar esporte vivendo-o como jogo em si, como

lugar onde a infinitude se faz presente e se mostra quando, independente do

resultado, o atleta constrói ali novas formas de ser e de habitar o mundo.

Isso é essencial para a educação e, em particular, para a Educação Física,

por dar voz ao corpo, ao mundo vivido dos alunos e dos atletas como condição de

existência, que se configura na relação consigo, com os outros e com o mundo.

Acreditamos que, tal como refletimos anteriormente, a prática esportiva como

forma de evidenciar a educação sensível se constitui uma atitude educacional que

valoriza o corpo quando joga e em suas diversas e inusitadas manifestações da

experiência estética.

Não obstante, pode articular não só saberes aos alunos e atletas como aos

docentes, técnicos e professores por oportunizar, a partir das diferentes expressões

de movimento, uma consideração sensível e afetiva daquele sujeito em um

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entrelaçamento recíproco com o mundo esportivo e da sensibilidade como

atribuidora de significado a suas ações. E, sobre isso, afirma Nóbrega (2005, p. 83):

É justamente esse aspecto que deve ser considerado nas práticas pedagógicas da Educação Física, considerando uma reeleitura do seu acervo de movimentos, de forma que o jogo, a dança, a ginástica, o esporte possam expressar e comunicar a complexidade do ser humano que se movimenta.

No que tange à presença do esporte na escola, a Educação Física não deve

oferecer esse conteúdo dos gestos codificados e das normas como elementos

fechados, mas possibilitar o esporte sob uma perspectiva criativa, que permita ao

aluno, mesmo diante de tal referência, refazer esses gestos atribuídos de sentidos e

significados em relação ao seu cotidiano de existência.

Compreendemos o esporte como um dos fenômenos mais expressivos da

atualidade no âmbito da cultura de movimento50, pois está presente em nosso dia a

dia, por meio da televisão, dos jornais escritos, do rádio, das praças e dos clubes.

Portanto, ele faz parte de uma ou de outra forma, da vida da maioria das pessoas

em todo o mundo, sobretudo na escola (BRACHT, 2003).

Dessa forma, faz-se necessário considerar o atleta/aluno como agente

responsável por seu processo de aprendizagem e partícipe de uma construção

coletiva dos conhecimentos trabalhados no âmbito do esporte e da escola.

É nesse sentido que destacamos como necessário considerar a sensibilidade

do atleta/aluno como forma de contribuir para que ele mostre um saber que se

imbrica com o mundo do sensível e amplie seu campo de referência para a questão

ética e estética do movimento, pois, segundo Nóbrega (2005, p. 50), “o esporte é

uma obra de arte, uma expressão exuberante de movimentos e este aspecto deve

ser considerado na prática pedagógica”.

Consideramos importante incluir nas aulas de Educação Física o esporte

como uma proposta do mover-se mais plástica e mais maleável que o próprio corpo

afetado pela expansão do sensível sugere. É preciso deixar o corpo brincar com o

espaço e o tempo, brincar consigo e com os movimentos já existentes. É preciso

descobrir a infinitude de usá-lo e ousá-lo, não negando a técnica sistematizada, mas

permitindo caminhos de fuga e de criação. 50 Conceito divulgado na Educação Física Brasileira a partir dos estudos de Kunz (2003).

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Viver o esporte é viver o mundo, vivendo-o de forma sensível. E dentro de

uma sociedade racionalizadora, apática e mecânica, se faz desafio constante

considerar o esporte como manifestação cultural que pode tornar-se ainda mais

relevante no momento em que vivemos, no sentido de conectar pessoas, possibilitar

convívios, problematizar seus elementos constitutivos, e ainda evidenciar a

experiência sensível do corpo como condição do existir e do conhecer.

Já diria Nóbrega (2002) que a experiência de educar talvez não decida a vida,

em sua imediaticidade, mas projeta mundos. E é a nossa relação corporal que cabe

destacar, enfocando o ensinar e aprender a jogar bola, fazendo-se necessário

entender que “o corpo nem sempre, nem em toda parte, sabe jogar bola” (SERRES,

2001, p. 17).

O ofício da vida, assim como o de jogar, acontece no corpo, pois, “no gesto

de fazer calar, o corpo, localmente, joga bola com a alma” (SERRES, 2011, p. 17).

Talvez por isso, nos clubes, nas praças ou mesmo na Educação Física, vida e

esporte sejam ofícios misturados com a dinâmica do jogar e do viver.

E a Educação Física, embora não seja a única nesse processo, também

participa dessa estrada, do ensinar e aprender esporte, aprender a ser sensível, a

conviver, ganhar, perder, ousar e refazer, tudo por meio do corpo em movimento, do

corpo que joga, considerando que:

Por vezes é preciso ensinar o corpo a jogar bola! Como educadores, quais são os nossos instrumentos? Cada corpo tem seu tempo, a sua história, os seus desejos. É preciso ouvi-los, toca-los, percebe-los em si e em comunicação com os outros corpos. É preciso considerar que o corpo nem sempre sabe jogar bola! (NÓBREGA, 2002, p. 2).

Acrescenta ainda autora que por isso a Educação Física é necessária, para,

entre outras coisas, ensinar a jogar bola e outras expressões da linguagem do corpo

e do movimento humano.

Enfatizamos que nossas reflexões não se reduzem aos esportes com bola,

apenas tomamos essa discussão para afirmar e relacionar a relação corporal do

atleta/aluno com o mundo, destacando e enfocando a educação como jogo. Um

mover por meio de técnicas de corpo que contam a história pessoal do aluno/atleta

por meio das marcas que são tatuadas em seu corpo e que revelam sentidos que

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podem ser trazidos para o contexto da educação, isto é, da relação entre os

domínios do saber, do fazer e da própria vida.

Compreendemos que o esporte, em sua versatilidade e multiplicidade, é

capaz de abrir espaços para diversos corpos, diversos movimentos e suas mais

variadas experiências estéticas, permitindo que o homem habite no tempo e no

espaço do humano e não da máquina, criando sempre novos sentidos para si e para

a sociedade.

Afinal, o esporte é um universo de significações estéticas e educativas.

Guarda sim fios lógicos, rígidos e concretos, de razão e de estruturação, mas tece

igualmente a tudo isso um educar que fomenta a liberdade de criar, de sentir, de

recomeçar, de reinventar, e entre as múltiplas possibilidades do movimento humano,

permite viver o tempo, o espaço, o mundo e os outros como uma fenomenologia do

corpo e do movimento.

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Apito F inal

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O jogo inicia-se e, em determinando momento, “acabou”. Joga-se até que se chegue a um certo fim. [...] Mesmo depois de o jogo ter chegado ao fim, ele permanece como uma criação nova do espírito, um tesouro a ser conservado pela memória.

Johan Huizinga

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170

O apito final foi entoado e o jogo precisa terminar. Os sons produzidos pelas

quadras ainda soam pelo corpo, atravessando a carne e rasgando os sentidos para

poder expandir o horizonte da existência para a construção de um educar-se, que se

faz pelos caminhos da criação e do viver estético do corpo no esporte.

Admitimos que se faz necessário sair de quadra, entregar a bola e despedir-

se da torcida, das companheiras e das adversárias. Um percurso em que o corpo

marcado pelas experiências do jogo também vai se refazendo, a fim de encontrar

um melhor caminho para a compreensão dos limites e das possibilidades do esporte

como uma experiência estética e educativa.

A caminhada é gratificante, pois, assim como no esporte, a pesquisa se faz

entre idas e vindas, avanços e retrocessos, derrotas e vitórias, mas, sobretudo, de

sedução, de estesia e de realização. Por isso, foi possível perceber que a

elaboração do jogo, seja ele na quadra ou na escrita, se faz pela entrega do corpo

ao mundo, num entrelaçamento da existência em que atleta e mundo imbricam-se

na realização da expressão criativa, rumo aos campos da experiência vivida.

Imbuídos nisso, podemos reafirmar o que foi dito no início desta tese: a

prática esportiva é uma experiência estética e educativa, a partir das sensações

reverberadas no corpo, no diálogo sensível do atleta neste mundo.

A experiência estética por mim narrada e as análises das obras

cinematográficas são exemplos dessa relação, em que, nas ações do jogo o atleta

ultrapassa as fronteiras biológicas e normativas do esporte, cria e recria

movimentos, vivencia situações de afetos e de confrontos, de emoções e de

paixões, atribuindo sempre novos sentidos por meio da estesia que o esporte revela

ao atleta.

Nas dinâmicas relações que apresentamos do atleta em jogo, evidenciamos

que o esporte se revela como jogo, como força viva da existência, sendo o sensível

e o lúdico a condição essencial e fonte incitativa para o corpo que joga. Pois ele

acontece nas oscilações do viver, vinculando-se aos sentimentos e às sensibilidades

de forma fecunda e motivadora, fazendo-se, simultaneamente, lúdico, estético e

educativo.

Por meio do esporte, desvendou-se uma educação sensível que se dá

através da relação do atleta com os elementos constitutivos do esporte, como a

quadra, a bola, os adversários, dentre outros.

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Com base na fenomenologia de Merleau-Ponty foi possível compreender que

os gestos, as técnicas, os resultados e as relações do atleta com o âmbito esportivo

são ações que significam a existência e o fazem adentrar na inteireza e na

expressividade originária do “eu posso”.

Por meio do esporte afirmamos que o atleta se sensibiliza consigo, com os

outros e com o mundo, tendo como fundamental a experiência da solidariedade, da

cooperação, da confraternização, da liberdade, da criatividade, do encontro, da

alegria e do prazer como elementos que lhe tiram da vida cotidiana.

Entender essas nuances que se manifestam no enlace do atleta com o

esporte é compreender que ele está ligado a um ato de criar, de desconstruir ordens

lógicas, de refazer os modelos e instituir uma nova forma de existência sem limites

para viver novas experiências estéticas. Isso configura uma educação pautada no

sensível, uma educação que se abre para a experiência do jogar, revelando novos

movimentos e novas relações por meio da expressão criativa, que se renova a cada

momento. Uma experiência que desconstrói os concretos da codificação do corpo,

ao versar pela sua reversibilidade tal qual carne do mundo, configurada pela

dimensão corpórea dos sentidos, de um logos estético que se mostra diante do jogo.

Configurando-se com uma experiência estética e educativa, apontam-se

cenários educativos a partir dos sentidos e idiossincrasias dos atletas na prática

esportiva. Esses cenários educativos configuram-se, entre outras coisas, na

experiência do corpo com o tempo, o espaço, o olhar, o contato, os resultados e no

gesto técnico, os quais transportam o corpo para um estado de múltiplas sensações.

A cada experiência, o corpo toma uma dimensão diferente, fazendo com que

o atleta, afetado pela sensibilidade do jogo, revele novos movimentos e dê uma nova

amplitude ao gesto, proporcionando inusitadas comunicações entre o corpo e o

momento vigente.

Conforme visto nas experiências em quadra, o corpo sempre se comporta de

formas diversas. Quando o atleta se entrega ao jogo não há somente gestos

treinados, espaços definidos e tempos sincronizados, seu estado é imprevisível, é

abertura ampla de sentidos e imprescindível de relações.

Na experiência estética e educativa do esporte, apontamos enlaces

educativos que se imbricam com a própria vida social do atleta e que fazem parte de

seu mundo vivido. Tais enlaces se configuram por meio das oscilações e das

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antíteses ocorridas no contexto esportivo, os quais não se diferem da dinâmica do

viver.

Podemos observar por meio dos filmes “Olympia” e “Invictus” que o esporte

causa uma vertigem desafiadora, isto é, uma nova forma de jogar diante do mutável

contexto do jogo. São equilíbrios e desequilíbrios, aproximações e distanciamentos,

conflitos e consonâncias que fazem o corpo se reinventar e fazem a vida mudar.

Essas características ficaram perceptíveis nas duas obras analisadas quando

os atletas, imbuídos das técnicas específicas de suas modalidades, as refazem para

poder competir. Pois elas não se mostram suficientes diante da complexidade

esportiva, como no caso do Rugby, em que os Springboks para ganhar o jogo nos

minutos finais, se contorcem por meio do fervor vivido, fazendo de cada gesto

possibilidades para fazer o gol e ganhar a competição.

Da mesma forma, em “Olympia”, vemos formas distintas do atleta se

expressar. Uma articulação entre a robustez e a delicadeza, o esforço e a

superação, que, sem fugir da busca pela vitória, demonstram seu fascínio pelo

esporte.

Nesse sentido, pode-se afirmar que o esporte modifica a existência com suas

antíteses, fazendo do momento, quer seja pelo encanto, quer seja pelo espanto, um

dado existencial sensível que se revela ontologicamente. Pois, de uma forma ou de

outra, ele modifica a vida, ao mesmo tempo em que ela o modifica com o sentido

que os atletas criam para ele e compartilha com os outros e o mundo.

Como uma prática que permite a explosão de emoção dos atletas, podemos

observar, ainda, que os momentos de explosão nas competições nos filmes

analisados, como os gritos, as lágrimas, os abraços e as comemorações dos atletas

ao ganharem ou perderem uma competição, não são sentimentos apenas do

esporte, mas uma construção sociocultural que se insere no corpo e que nele é

possível extravasar de forma controlada.

As experiências vividas pelos atletas, seu modo de ser, de sentir e de

exteriorizar as emoções referem-se constitutivamente à sociedade à qual pertencem,

inclusive quando se trata do controle e descontrole das emoções como constituinte

da experiência humana. Há, de um lado, um lugar em que os sentimentos são

reprimidos e do outro, o esporte, que conflui numa excitação direcionada para o

prazer e experimentação das emoções em público e com aprovação social.

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Diante dessas ponderações, destacamos uma compreensão de educação no

esporte que extrapola os saberes disciplinares, constituindo-se a partir do paradoxo,

ou seja, das relações entre a ordem e desordem não como fenômenos separados,

mas como elementos indissociáveis no jogo. E foi o que observamos no contexto

fílmico, uma relação de autonomia e dependência que se faz pela sistematização

técnica, pelos investimentos tecnocientíficos e pelas relações de poder/saber que

são inscritos no corpo, como forma de controle e subversão.

Nos filmes analisados constatamos que o esporte é permeado por regras e

especificações, sendo marcado por mecanismos de poder-saber ao longo de suas

modificações históricas. Um poder que se impõe aos corpos dos atletas desde as

roupas e gestos padrões, mas que, por sua vez, também exercem poder, instituindo

permanentemente novos saberes. Uma circularidade que se caracteriza como uma

possibilidade educativa, capaz de fazer os atletas criarem e recriarem dentro das

limitações.

Os feitos dos atletas apresentados nas narrativas (capítulo 1) e nos filmes

(capítulo 2) demonstram que o corpo transcende e experimenta diversas

gestualidades para além das normas preestabelecidas, subvertendo-as, nutrindo e

mergulhando em recintos nunca antes experimentados, fazendo e refazendo-se sem

findar.

No mesmo contexto, notamos ainda que os atletas apontam para a

efemeridade dos padrões técnicos. Uma demonstração do esporte em múltiplas

possibilidades de sentido na experiência estética do corpo que certamente não

comunga com uma ideia pronta e definida.

Nessa perspectiva, compreendemos o esporte como prática estética e

educativa, pois, mesmo sendo conduzido por uma ótica de natureza universal,

possibilita uma vivência autônoma que se dá pelo processo paradoxal do jogo, na

abundância do corpo, configurando-se como contemplação permanente do devir, do

transcender e do existir.

Propondo novos anúncios para o esporte, é fundamental repensá-lo a partir

dos princípios lúdicos aqui revelados. Ao invés de olhá-lo pela ótica opressora, é

preciso enfatizar a experiência e as sensações daquele que joga, que comporta o

surpreendente, o indivizível, que rompe a mecanização gestual, não se fixando em

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regras preestabelcidas, que busca o prazer de simplesmente jogar com a bola, com

os outros e com o mundo que o cerca.

Vale salientar que não negamos a busca pelo resultado, nem propomos o

esquecimento das técnicas padronizadas do esporte. Mas as valorizamos como

processos dinâmicos e criativos, que ultrapassam os limites impostos pelas

codificações, reinventando-se e reconstruindo simultaneamente o atleta, o esporte e

o mundo.

Reconhecemos que as relações do jogo com a sua estética lúdica fornece

valiosos fundamentos para nossas reflexões sobre o esporte, tendo como

fundamental a ideia de entender a educação como jogo, como um ato de criação e

inspirador de situações de nossa existência.

Nesse pensamento, encontramos não corpos-máquinas ou atletas

reprodutores de gestos, uma vez que, a imanência entre a razão e a emoção

presente no âmbito esportivo torna-se fonte para o impulso lúdico e a harmonia

presente na intermediação de sua sensibilidade com a sua racionalidade.

Ficou claro em nossas reflexões que os fatos na experiência esportiva não

são da ordem do incondicional nem do fortuito, mas constituídos no próprio

movimento da existência. As ações dos atletas constituem a necessidade e a

contingência humana, pois na medida em que tudo o que lhe aparece diante do

jogo, aparece por seu corpo e esse é o caminho que ele tem para acessar o mundo.

No esporte, a educação se dá como um processo corporal sensível em que o

atleta se relaciona com os elementos esportivos, com os outros e com o mundo, e,

nesse relacionar-se, se fazem e se transformam.

Conforme vimos, a experiência do atleta é uma experiência mundana,

sensível, parcial e corporal. Portanto, há uma relação entre o corpo do atleta e as

ações a serem criadas, o que nos fez entender que o corpo, de certa forma, é o

alicerce de todo fazer, de todo “saber fazer”, de todo sentir e de todo refazer.

Tomamos as gestualidades dos esportistas para se pensar o corpo como

potência criativa por meio do sensível na obra de Merleau-Ponty. O esporte, então,

ao se comunicar com a arte, surge como campo de possibilidades para a

experiência do sensível e para a expressão criadora. E nisso encontramos uma

educação sensível, fulgurada pela experiência estética do esporte, que é capaz de

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proporcionar ao homem uma melhor compreensão estética sobre as coisas da vida,

resignificando o viver e o mundo, sem a formulação funcionalista do que está pronto.

O esporte pressupõe um espaço de relações humanas, de sentimentos, de

afetos e de confrontos, os quais marcam as pessoas e instituem níveis de ordem

individual e social que transforma a vida para uma existência imbricada com as

coisas do sensível, da coexistência e da alegria em compartilhar como sendo um

estado sensível para uma experiência estética e educativa.

Esse entendimento aponta caminhos para a Educação Física, que, tendo

como um dos conteúdos o esporte, pode permitir aos alunos o prazer de participar

dos gestos construídos, coletivamente, por todos que se colocam em jogo.

Os jogadores, sujeitos das ações pedagógicas realizadas, devem

compartilhar entre si a alegria de vivenciar o processo e se apropriar do produto de

suas ações. E isso não nega o esporte de rendimento, nem os modelos gestuais,

mas permite que na experiência esportiva todos tenham chance de brincar com tais

elementos, de criticá-los e de ousar transformá-los com as ações desenvolvidas,

com o corpo dos colegas e com o próprio corpo.

Por essas razões, na experiência esportiva na escola, é preciso viver a

aventura do corpo, ser corpo, sentir-se corpo e compreendê-lo a partir das

construções cotidianas de nossa sociedade. Afinal, o esporte não representa apenas

o vivido em um dado momento: ele está entrelaçado à realidade e às condições

concretas da existência, envolvendo valores, medos, emoções, prazeres e

excitações provocados pela situação.

Acreditamos que a Educação Física pode possibilitar o esporte como jogo e

incorporar a capacidade do repetir, do refazer e do brincar, recusando os princípios

rígidos que possam impedir as mudanças, o jogo como devaneio e as ousadias do

movimento.

As reflexões explicitadas, até o momento, remetem-no a continuarmos a

pensar o esporte através da relação do atleta com o esporte que se dá por meio do

corpo, dos sentidos, por meio da estesia. Em que o corpo em sua potência de criar,

se relacionar e significar, aponta para a entrega sensível da estesia do corpo e do

movimento. Isso possibilita refletir sobre o vivido, conhecer os sentidos criados e

recriados do atleta como uma realidade mutante e paradoxal, tendo no sensível uma

educação que é móvel, que arrebata, que excita e se inscreve no corpo.

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Conforme ficou evidenciado ao longo deste estudo, buscamos o alcance de

uma reflexão do esporte centrada no corpo como abertura ampla dos sentidos para

as coisas do sensível, nas quais o viver estético transpõe qualquer concepção

determinista, que se resume ao mundo da mercantilização, disciplinarização e

mecanicismo.

O corpo que joga, que brinca com o tempo e com o espaço, que vivencia o

contexto complexo do jogo, suas vertigens, tensões, excitações e paradoxos, educa-

se pelo sentir, pelo fazer e pelo repetir. Vemos que o mundo esportivo não se esgota

em propostas e possibilidades, pelo contrário, é um lugar imprevisível e inconstante

que permite ao corpo rasgar o tempo, lançar-se no espaço, jogar com as regras e

ser homem no pleno sentido da palavra.

Temos certeza de que este trabalho não finda por aqui, uma vez que

qualquer pesquisa ou leitura que fazemos de um fenômeno é sempre parcial e

inacabada. Portanto, estamos longe de produzir verdade, certeza e acabamentos

diante do conhecimento sobre o esporte.

Esperamos que nossa pesquisa possa contribuir com o debate e com os

estudos do esporte, do corpo, do movimento e da educação, como uma eterna

construção e desconstrução das formas e do mundo.

A partir disso, reafirmamos a contínua tarefa e o desafio da Educação Física

diante da temática exposta. Não que sejamos os únicos nesse trabalho, mas que

possamos propagar o esporte para além do aspecto da instrumentalidade, e quem

sabe, continuar alcançando sentidos sensíveis para o corpo e para o movimento

humano.

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Equipe

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NOBREGA, Terezinha Petrucia da. Merleau-Ponty: o corpo como obra de arte. Princípios UFRN, Natal, v. 7, n. 8, p. 95-108, jan./dez., 2000. ______. O corpo nem sempre sabe jogar bola: notas sobre ensinar e aprender em Educação Física. Texto produzido para a disciplina Didática da EF. UFRN, DEF, Janeiro, 2002. ______. Corpo, estética e conhecimento. In: ALMEIDA, Maria da Conceição de; KNOBB, Margarida; ALMEIDA, Maria Ângela de. (Org.). Polifônicas Idéias. Porto Alegre: Sulina, 2003. ______. Corporeidade e educação física: do corpo objeto ao corpo sujeito. 2. ed. Natal: EDUFRN, 2005. ______. Fenomenologia do corpo. São Paulo: Livraria da Física, 2010. PEIL, Luciana Marins Nogueira. Esporte e espírito romântico: o caso do golfe. 2006. 148 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em Educação Física, Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2006. POCIELLO, Christian. Os desafios da leveza: as práticas corporais em mutação. In: SANT'ANNA, Denise Bernuzzi (Org). Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. PORPINO, Karenine de Oliveira. Dança é educação: interfaces entre corporeidade e estética. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2001. ______. Interfaces entre corpo e estética: (re)desenhando paisagens epistemológicas e pedagógicas na Educação Física. In: LUCENA, Ricardo; SOUZA, Edílson (Org.). Educação física, esporte e sociedade. João Pessoa: UFPB, 2003, p. 145-160. ______. Paradoxos, abismos e vertigens: eu corpo, eu arte In: Eu corpo: experiência e conhecimento, 3., 2012, Natal. Anais eletrônicos... Natal: UFRN, 2012. Disponível em: <http://coloquiodocorpo.com.br/>. Acesso em: 5 set. 2012. ______. Dança é educação: interfaces entre corporeidade e estética. Natal: EDUFRN, 2006.

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Anexos

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FICHA DE ANÁLISE DO FILME OLYMPIA

- Título Original e em Português: Olympia (Teil I: Fest der volker / Teil II: Fest de schonheit) – Olympia (Parte 1: Festival do povo/ Parte 2: Festival da beleza) - Ano e País de Produção: Alemanha, 1938 - Direção: Leni Riefenstahl - Gênero: Documentário - Duração: 115min / 89min - Idioma: Alemão

1. Sobre a técnica cinematográfica

Argumento – O documentário retrata os Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, ocorridos em pleno regime nazista. Feito por solicitação de Adolf Hiltler, ele é por vezes criticado em virtude da ideologia que veicula. Isto porque, nesse evento, o líder alemão promoveu uma intensa mobilização para demonstrar a superioridade física da raça germânica em relação aos demais. Todavia, essa obra ultrapassa a política para se transformar em um triunfo artístico das proezas atléticas e do corpo humano em movimento. Foco narrativo – A produção apresenta os interesses políticos e econômicos de corporações dentro do esporte, e o uso dele para sacramentar a ideia de corpo como perfeito, como o triunfo de um regime e de uma ideologia. Mas, em meio a tudo isso também se mostra como vagaroso deleite de atletas masculinos e femininos desnudos e de uma plasticidade gestual e expressiva que falam através do silêncio dos corpos em movimento, remetendo-nos a uma colocação no filme a um só tempo ideológica e estética. Cenário e Figurino – A produção feita em sua maioria por captações em cenas externas e reais inicia com a alusão à Grécia, mostrando imagens de gravuras, altos-relevos, arcos, monumentos, ruínas, pilares, esculturas, um sítio arqueológico e o Parthenon, dando a entender que são elementos da Grécia Antiga. Além disso, passa pelos locais de competição como o estádio de Berlim, o lago, os campos, dentre outros. O figurino é contextual com o evento representado, localizado na cultura alemã do século XX, mas com foco na Antiguidade, Ora vestidos, ora nus, os atletas exibem corpos perfeitos, viris, fortes e jovens como referência à cultura grega antiga. Trilha sonora/sonorização: A trilha sonora (O triunfo da vontade) foi composta pelo maestro Herbert Windt (1894-1965). Ela preenche algumas cenas, mas, em boa parte das cenas, utilizam-se os silêncios, as falas e os ruídos dos atletas, locutores e torcedores. Fotografia e Câmera - Fotografia – O filme trabalha com captação de movimentos rápidos, enquadramentos fechados, planos de corte, close-ups extremos, trilhos alocados nas arquibancadas e também um dirigível que sobrevoava o complexo esportivo com uma câmera acoplada para filmar sequências aéreas. O fundo preto sob uma luz branca, de forma clara e suave, é trabalhado em todo o filme, valorizando os movimentos dos corpos e as expressões dos atletas e torcedores, e, de certa maneira, a grandiosidade do estádio e dos locais de competição.

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2. Sobre o corpo e a cultura de movimento

Olympia retira do real as expressões e as técnicas realizadas pelos atletas para fazer aparecer a expressiva e potente força da competição, da beleza dos corpos e do ideal olímpico. A obra transmite as emoções e as atitudes que coexistem na beleza dos gestos, na expressão facial e na postura corporal em todas suas possibilidades de jogar constantemente com os limites e as incertezas dos movimentos atléticos, ligando o espectador ao enredo esportivo. E, embora presa ao ideal clássico de corpo perfeito, esbelto, claro e definido, expõe outras perspectivas de ação para essa perfeição, que não é mais do corpo e dos gestos, mas de sua eficiência.

A cidade é representada por elementos ideológicos do nazismo, isto é, a exaltação do corpo belo e perfeito, do vigor físico e da juventude. Entretanto, durante essas provas, vemos não somente a consagração de um atleta e a ira de Hitler, ao ver sua ideia de supremacia ariana ser destruída em virtude da vitória nos 100 metros rasos de um negro dos Estados Unidos da América, Jesse Owens, que venceu as duas eliminatórias com facilidade. Na final, Owens levou o ouro e a Alemanha não conseguiu nenhuma medalha na modalidade mais tradicional das Olimpíadas.

Os atletas usam vestimentas que não acentuam as valências físicas nem primam pela espetacularização da performance corporal, mas dão ao corpo a lógica da igualdade de oportunidades e um tom de leveza e graça sem deslocar a busca pela vitória, própria do esporte. Percebemos em Olympia, além das roupas, equipamentos e técnicas que, comparados aos de hoje, revelam os investimentos feitos no campo esportivo, que, tende, a aperfeiçoar as funções orgânicas e gestuais dos atletas. Um tecnocientífico que se manifesta não apenas nos acessórios e roupas, mas, também, nas instalações esportivas e nos novos materiais tais como as fibras de carbono, poliéster, elastano, dentre outros, constituintes de vários equipamentos e vestuários esportivos, incidindo sobre o corpo dos atletas transformações não apenas de ordem física e performática, mas, sobretudo, técnica.

Embora no filme sejam enfaticamente mostrados, com raras exceções, os corpos brancos, em uma clara exaltação à raça ariana, atualmente é possível perceber que os modelos de atletas se confundem com os modelos das técnicas esportivas apresentadas por eles, o que confirma a utilização do corpo para além das ações comumente solicitadas ou sistematicamente padronizadas. Assim, o corpo, ao invés ser subjugado pelos investimentos técnicos e científicos do esporte, se utiliza deles para inscrever novas relações orgânicas e sociais. O que não nega a penetração da razão instrumental e os fins que se procuram, mas desvela o inusitado e o surpreendente, levando o atleta aos campos da existência, condensando suas experiências e fazendo-lhes florescer enquanto carne do mundo.

Nessa direção, o esporte deixa de ser instrumento de exploração tecnológica, disciplinador e adestrador, reduzido aos aspectos mecanicista e mercantilista, e o corpo, não mais um reprodutor passivo, mas uma condição humana inacabada e itinerante em sua possibilidade de fazer o esporte acontecer. Nesse processo aberto e dinâmico do esporte, o corpo que é modificado e também modifica o meio que habita. Faz e se refaz a partir de sua relação com o entorno, ao mesmo tempo em que modifica-o, cria novos espaços e novas texturas para ali ficar.

3. Palavras-chave: Esporte. Competição. Emoção. Olimpíada. Sensibilidade.

4. Pesquisadora: Liege Monique Filgueiras da Silva. Natal, 27/08/2013

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FICHA DE ANÁLISE DO FILME INVICTUS

- Título Original e em Português: Invictus

- Ano e País de Produção: Estados Unidos, 2009

- Direção: Clint Eastwood

- Gênero: Drama

- Duração: 133min

- Idioma: Inglês

1. Sobre a técnica cinematográfica

Argumento – O filme narra a estória da desacreditada equipe sul-africana de rúgbi e sua chegada à final da Copa do Mundo no ano 1995. No filme, dois personagens se destacam: Mandela, presidente recém-eleito da África da Sul, acreditando ser capaz de unificar a população por meio da linguagem universal do esporte, vê neste a possibilidade para acabar com o fosso da segregação racial entre negros e brancos existente no país; e François Pienaar, capitão dos Springboks, que sonha ganhar a Copa do Mundo, mesmo diante do descrédito dos torcedores e das sucessivas derrotas que sua equipe vinha sofrendo.

Foco narrativo – O filme tem como foco a relação ideológica entre esporte e política, os quais caminham atrelados ao projeto de integração e coesão social, potencializando valores e legitimando a experiência do atleta e o poder transformador de uma nação por meio do esporte.

Cenário e Figurino – A produção alternou as captações de imagens entre estúdio e cenas externa. Essas últimas, sobretudo no que se refere aos treinamentos da equipe dos Springboks na periferia da África do Sul e as competições nos estádios. O figurino é contextual com o contexto representado. Roupas simples e claras na maioria da população negra, destacando-se cores mais acentuadas e vestuário esportivo entre os jogadores, além do uso de ternos e vestidos entre a elite branca daquela população.

Trilha sonora/sonorização: A sonorização é prioritariamente preenchida a partir de falas/diálogos diretos entre os atores e algumas vezes em off ou instrumental principalmente

quando o presidente retoma sua vida na prisão. No entanto, o filme é marcado pelo hino da África do Sul, cantado veementemente pelos torcedores no final da Copa do Mundo.

Fotografia e Câmera - Fotografia – O filme trabalha com cores fortes, tendo como foco os tons verdes, vermelhos, azul, preto e amarelo, cores da bandeira da África do Sul. A câmera trabalha com grande rebuscamento, fazendo enquadramentos em plano médio e fechado, focando nas expressões e nas emoções dos atores.

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2. Sobre o corpo e a cultura de movimento

O filme apresenta a tensão e o relaxamento vivido pelas pessoas na prática esportiva, uma vivência que versa sobre a instabilidade, o virtuosismo e o prazer, tanto dos atletas quanto dos espectadores. Na produção cinematográfica, o esporte acoplado tanto à ideia de inclusão como de vigor, aceitação do outro, resiliência, catarse e união, também dialoga com as sensações dos atletas. O esporte mostrado, o rúgbi, como expressão da cultura africana, vai ganhando novos contornos no desenrolar da trama. Vinculado à tenacidade e atrelado a uma ideia de vigor é acrescido de valores estéticos como sensibilidade, emoção e prazer.

O filme, baseado em história real, mostra o momento em que Nelson Mandela assume a presidência sabendo o quanto seu país ainda está dividido pelo racismo, embora, oficialmente, não exista mais a política do Apartheid. O país então dividido tem como destaques dois esportes, o futebol – para os negros e pobres; e o rugby – para os brancos e ricos. É nesse aspecto que a nação vai sendo reconstruída, após o presidente apoiar a seleção nacional de rugby, tendo-a como instrumento estratégico e político, em prol da pacificação e unificação de um país.

No que diz respeito ao tempo em sua relação com o corpo e a cultura de movimento, pode-se perceber que o filme, embora traga marca de ordens cronológicas, quando aponta a situação cultural da população, nas cenas esportivas e nas competições mostradas, o tempo é vivencial, a partir das situações enfrentadas pelos jogadores em campo, no tempo que parece não tem fim, posto que faz o corpo dos atletas e torcedores vibrar, retirando-os da vida ordinária, suspendendo-os da vida cotidiana e construindo uma outra temporalidade, medida no corpo.

Os movimentos dos jogadores, especialmente em meio ao cansaço, vão além das ordenações da técnica esportiva. Os atletas conseguem nuançar os gestos padronizados com a potência sensitiva do jogo, fazendo fluir, por intermédio da experiência estética, uma nova atitude corporal, um êxtase corporal que dilacera suas emoções, reorganizando seus corpos e suas vidas.

Invictus sugere a admiração pela equipe que não tem prestígio nem ascensão no meio esportivo, nos convida a festejar o gol, aponta outras possibilidades de utilização da técnica criativa de jogo, enaltece a diversidade, as ações corporais e a exultação dos corpos que jogam. Além disso, nos mostra como as ações dos jogadores se dão em resposta aos movimentos do adversário, o que faz com que os elementos como equilíbrio, ordem e objetividade abram espaço para as instabilidades e incertezas da experiência do jogar.

Assim como pode ser visto no filme, não há dúvidas de que o esporte funciona como elemento socializador e formador, pois à medida que a prática esportiva engendra um espírito de superação de limites e de criações, pode-se afirmar que esse conhecimento adquirido nos esportes é uma excelente experiência educativa para a vida em sociedade.

3. Palavras-chave: Esporte. Cultura. Emoção. Competição. Superação.

4. Pesquisadora: Liege Monique Filgueiras da Silva. Natal, 25/08/2013